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4 Inconsciente O conceito de inconsciente está completando um século de existência. Não é uma idade excessivamente avançada para um conceito; na história do saber ocidental podemos apontar alguns que contam sua idade em milênios. Mas isso também não quer dizer que os conceitos não se trans- formem, não envelheçam e não morram; muitos desapa- receram quase no próprio ato de sua criação, outros enve- lhecem rapidamente, e alguns conseguem sobreviver aos séculos. Nessa perspectiva, cem anos não é muito tempo, mas também não é pouco: mostram que o conceito sobre- viveu e que essa sobrevivência está indissoluvelmente li- gada à sobrevivência da teoria à qual ele pertence, em que pese as transformações sofridas por ele, conceito, ou por ela, teoria. Já foi dito 1 que os verdadeiros conceitos trazem a assinatura do seu autor; e creio que poucos são aqueles que portam uma assinatura tão nítida quanto o inconscien- te de Freud. A assinatura não é, porém, uma garantia de imutabilidade do conceito. Exatamente por não serem pu- ras abstrações formais produzidas artificialmente, por res- ponderem a problemas reais, os conceitos estão sujeitos a transformações e mutações, a renovações, que caracteri- zam a história do saber. Houve uma sensível mudança no conceito de incons- ciente, tal como foi historicamente introduzido por Freud em 1900, e o modo como ele é pensado hoje, após as 207 1 Deleuze, G. e Guattari, F., O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 16.

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Inconsciente

O conceito de inconsciente está completando um século deexistência. Não é uma idade excessivamente avançadapara um conceito; na história do saber ocidental podemosapontar alguns que contam sua idade em milênios. Masisso também não quer dizer que os conceitos não se trans-formem, não envelheçam e não morram; muitos desapa-receram quase no próprio ato de sua criação, outros enve-lhecem rapidamente, e alguns conseguem sobreviver aosséculos. Nessa perspectiva, cem anos não é muito tempo,mas também não é pouco: mostram que o conceito sobre-viveu e que essa sobrevivência está indissoluvelmente li-gada à sobrevivência da teoria à qual ele pertence, em quepese as transformações sofridas por ele, conceito, ou porela, teoria. Já foi dito1 que os verdadeiros conceitos trazema assinatura do seu autor; e creio que poucos são aquelesque portam uma assinatura tão nítida quanto o inconscien-te de Freud. A assinatura não é, porém, uma garantia deimutabilidade do conceito. Exatamente por não serem pu-ras abstrações formais produzidas artificialmente, por res-ponderem a problemas reais, os conceitos estão sujeitos atransformações e mutações, a renovações, que caracteri-zam a história do saber.

Houve uma sensível mudança no conceito de incons-ciente, tal como foi historicamente introduzido por Freudem 1900, e o modo como ele é pensado hoje, após as

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1 Deleuze, G. e Guattari, F., O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora34, 1992, p. 16.

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contribuições da lingüística, da lógica e da etnologia, so-bretudo a partir da leitura feita da obra de Freud porJacques Lacan. Isso não significa, porém, um abandono doconceito freudiano de inconsciente em favor de uma con-cepção lacaniana, até mesmo porque não estamos certosde se tratar de uma “nova” concepção do inconsciente.Certamente, os conceitos lacanianos não eliminam os con-ceitos freudianos, e não sei, até mesmo, se poderíamosafirmar que Lacan “ultrapassa” Freud, no sentido de umaAufhebung hegeliana.

Sem dúvida, o conceito de inconsciente sofre uma trans-formação com o tempo, mas essa transformação já se veri-fica na própria obra de Freud. Desde seu aparecimento nocapítulo VII da Traumdeutung até os textos finais da chama-da segunda tópica, a modificação é visível. Se nos textosiniciais Freud está preocupado em definir o sentido tópicodo inconsciente, nos textos posteriores a 1915 ele está maispreocupado com a relação entre o inconsciente e as pulsões.Mas mesmo num texto como O eu e o isso, de 1923, onde odas Es (o Isso) é privilegiado, Freud mantém a idéia doinconsciente como um lugar psíquico diferenciado e iden-tificado com o recalcado. É nesta medida que podemosdizer que a segunda tópica freudiana não substitui a pri-meira, e que os conceitos de Isso, Eu e Supereu não reco-brem os conceitos de Inconsciente, Consciente e Pré-cons-ciente. O Isso é inconsciente, mas não é o inconsciente.

I

A HIPÓTESE DO INCONSCIENTE

O que o inconsciente não é.

O artigo Das Unbewusste começa com uma justificativa doconceito de inconsciente. A preocupação de Freud é assi-

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nalar as diferenças entre o inconsciente tal como é conce-bido por ele e o inconsciente tal como era pensado pelafilosofia e pela psicologia, e uma das formas de se marcara diferença é apontando o que o inconsciente freudianonão é. Ele não é uma franja ou margem da consciência,também não é o profundo da consciência, assim como nãoé o lugar do caótico e do misterioso. E Freud, com plenarazão, estava preocupado em assinalar essas diferenças eem afirmar a irredutibilidade do seu conceito às noçõesaté então dominantes.

A concepção de psiquismo dominante até Freud era ade uma subjetividade identificada com a consciência edominada pela razão; quando muito admitia-se que aconsciência pudesse conter uma franja ou margem incons-ciente, ou ainda que, em alguns casos, se pudesse falar deocorrências psíquicas que permaneciam abaixo do umbralda consciência. O termo “inconsciente” era empregado deforma puramente adjetiva para designar aquilo que nãoera consciente, mas nunca para designar um sistema psí-quico autônomo e regido por leis próprias.

Mesmo depois de Freud ter elaborado seu conceito, oinconsciente psicanalítico ainda era identificado com o caó-tico, o misterioso, o inefável, o lugar da vontade em estadobruto e impermeável a qualquer inteligibilidade, visão ro-mântica do inconsciente que nada tem a ver com o conceitofreudiano. Qualquer dúvida quanto ao inadequado dessaconcepção pode ser eliminada pela simples leitura do capí-tulo VII de A interpretação do sonho, onde Freud declaraenfaticamente que nada há de arbitrário nos acontecimen-tos psíquicos, sejam eles conscientes ou inconscientes. Oinconsciente pensa, diz ele, e o próprio fato dos pensamen-tos oníricos latentes serem submetidos a deformações porexigência da censura atesta seu caráter lógico e sua inteli-gibilidade possível para a consciência. Se os conteúdoslatentes dos sonhos fossem caóticos e ininteligíveis, nãohaveria motivo para serem distorcidos pela defesa.

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Mas é em relação à psicologia da consciência que oinconsciente psicanalítico marca sua diferença mais radi-cal. A psicologia, embora identificasse o psíquico com aconsciência, admitia graus de consciência e até mesmoestados de consciência inconscientes. É o caso, por exem-plo, das “pequenas percepções”, de Leibniz, da “franja daconsciência”, de William James, das “representações in-conscientes”, de Herbart. Mas o que Freud afirma repeti-das vezes é que o inconsciente não é uma gradação daconsciência, seja no sentido do mais profundo, seja nosentido do mais afastado do centro. Daí a impropriedadedo termo “psicologia profunda” ou “psicologia das pro-fundezas” para designar substantivamente a psicanálise.Freud não nos fala de uma consciência que não se mostra,mas de outra coisa inteiramente distinta; fala-nos de umsistema psíquico, o Ics (Ubw), que se contrapõe a outrosistema psíquico, o Pcs/Cs (Vbw/Bw), que é em parte in-consciente (unbewusst) mas que não é o inconsciente (dasUnbewusste).

O inconsciente não é, tampouco, uma entidade empí-rica que se manteve oculta até o momento em que Freudveio a descobri-lo. Algo como um órgão ou como umaregião do cérebro até então inacessível à observação cien-tífica. Freud não descobriu o inconsciente da mesma formacomo um investigador descobre uma região interna docorpo que tivesse se mantido ao abrigo da mais minuciosainvestigação já empreendida. O próprio termo “descober-ta”, para designar o procedimento freudiano em relaçãoao inconsciente, tem que ser empregado com reservas.Freud não descobriu o inconsciente da mesma forma comoum astrônomo descobre um novo planeta. No caso doastrônomo, podemos dizer que o planeta já se encontravalá antes de ser descoberto, como que à espera de seu des-cobridor; no caso do inconsciente, é no mínimo discutívelque ele já estivesse lá à espera de Freud ou de quem querque fosse. Além do mais, o planeta se oferece à observação

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direta do astrônomo, ou pelo menos se não é observadomas inferido através de cálculos astronômicos, é observá-vel, ou seja, a partir do momento em que o astrônomodisponha de instrumentos de observação mais poderosospoderá comprovar empiricamente sua descoberta. Ora, averificação direta do inconsciente jamais será feita, suaimpossibilidade empírica não se deve à falta de instrumen-tos, mas a sua própria natureza. Uma fenomenologia doinconsciente é uma tarefa impossível. Ele poderá, quandomuito, ser inferido a partir de seus efeitos na consciênciaou, melhor ainda, a partir de seus efeitos no discurso ma-nifesto, mas jamais ser objeto de observação direta. O ter-mo “descobrir” poderia estar sendo empregado aqui como sentido de “desvelar”, “tirar o véu”, “deixar à vista algoque estava oculto”, mas que uma vez desvelado ou desco-berto, mostrar-se-ia total ou parcialmente ao observador.Nesse sentido, o inconsciente não foi “descoberto” porFreud. A partir da psicanálise, o inconsciente não se tornoumais visível ou simplesmente visível. Sua invisibilidadepermanece a mesma.

Melhor seria, então, dizer que Freud “inventou” o in-consciente? Ou, mais radicalmente ainda, que Freud“criou” o inconsciente da mesma forma que um ficcionistacria seus personagens? O inconsciente é uma pura ficçãofreudiana? Um conceito operatório? Uma forma abstrata?Estas perguntas nos remetem a uma questão que é umapedra no sapato dos comentadores de Freud: a do realismodo inconsciente, ou, se preferirmos, a do estatuto ontoló-gico do inconsciente.

O estatuto ontológico do inconsciente.

Durante um seminário na cidade de Cali, na Colômbia,dado por Juan-David Nasio, um dos participantes fez-lhea seguinte pergunta a propósito do inconsciente:

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— Eu gostaria, em primeiro lugar, de conhecer sua reaçãoà réplica de um amigo meu que não acredita na psicanálisee que me disse recentemente: “Quanto a mim, não tenhoinconsciente!” Que acha o senhor disso? É possível alguémnão ter inconsciente? — Se você me permite a ironia — respondeu Nasio —creio que seu amigo tem razão: ele não tem inconsciente. — Mas como é que ele pode ter razão?! — Ele tem razão porque, a meu ver, se o inconscienteexiste, ele só pode existir no interior do campo da psicaná-lise e, mais precisamente, no interior do campo do trata-mento analítico. Ora, seu amigo parece situar-se fora dessecampo e, por conseguinte, fora do inconsciente.2

A resposta de Nasio não se restringe ao transcrito aci-ma; na verdade ele utiliza a pergunta do participante paraproceder, em seguida, a uma exposição da concepção la-caniana do inconsciente. Voltarei mais à frente ao texto deNasio. Antes, pretendo me apropriar desse momento doseu seminário para retomar algumas questões levantadasacima.

Se estendermos a resposta dada por Nasio para alémdos limites da pergunta, somos obrigados a concluir quenão apenas o amigo do participante do seminário não tinhainconsciente, como, antes de Freud, ninguém tinha incons-ciente. O ser humano passou a ter inconsciente somente apartir da criação da psicanálise por Freud. Isso seria equi-valente, em física, a afirmarmos que antes de Newton nãohavia força de gravidade, que a gravitação passou a “exis-tir” somente com a criação da teoria gravitacional.

Sem querer entrar aqui na discussão popperiana3 sobreas concepções essencialista e instrumentalista das teorias

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2 Nasio, J.-D., Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, Rio de Janeiro,Jorge Zahar, 1993, p. 49.3 Cf. Popper, K., “Três pontos de vista sobre o conhecimento cientí-fico”, in: K. Popper, Conjecturas e refutações, Brasília, Editora UnB, 1980.

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científicas, não posso deixar de assinalar o mal-estar quea resposta dada por Nasio provoca naqueles que se iniciamna teoria e na prática psicanalíticas. É como se Freud ti-vesse revelado um tesouro oculto em cada um de nós e emseguida esse tesouro nos fosse retirado sob a alegação deque se tratava apenas de um nome, uma forma vazia, umsimples operador lógico, sem nenhuma realidade ontoló-gica. Repentinamente, retornamos à posição de despossuí-dos.

Mais do que uma questão de mal-estar ou de indife-rença positivista, trata-se de uma questão teórica, que temque ser enfrentada. Pode-se falar num realismo do incons-ciente? Ou o termo “inconsciente” designa apenas umaconstrução lógica tal como “polígono de n lados” ou “raizquadrada”? Os psicanalistas poderiam argumentar queesta não é uma questão teórica da psicanálise, mas umaquestão que diria respeito a uma epistemologia da psica-nálise, à filosofia da ciência ou que se trata de uma questãometafísica. Mas o fato é que a resposta a essa questão podedeterminar diferentes caminhos teóricos e clínicos para apsicanálise.

Creio que não é indiferente para a clínica psicanalíticase consideramos o inconsciente como pessoal ou não. Se oconsideramos como pessoal, podemos dizer que numa si-tuação clínica estão presentes o inconsciente do paciente e oinconsciente do analista; se o consideramos como impessoal,haverá apenas um único inconsciente, aquele que resulta oué produzido pela transferência.4 Mas se aceitamos a idéiade que não há um inconsciente pertencente a cada pessoae sim um inconsciente que se produz durante a relaçãoclínica transferencial e que não pertence nem ao analisan-do nem ao analista, mas que é um puro efeito da relaçãotransferencial, como vamos entender a afirmação feita por

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4 Cf. Nasio, J.-D., op. cit., p. 51.

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Freud no artigo O inconsciente, segundo a qual o incons-ciente é formado de representações recalcadas?

Nos textos da primeira tópica, Freud fala claramentenas Vorstellungen como conteúdos do inconsciente, e taisrepresentações são imagens complexas, imagens visuais,acústicas, táteis, olfativas, cinestésicas, que formam as Ob-jektvorstellungen ou Sachevorstellungen. Além do mais, essasrepresentações são minhas representações, não se confun-dem com as representações que formam o conteúdo doinconsciente de outra pessoa. Como então evitar o realismoe a pessoalidade do inconsciente? Por outro lado, aceitaresse realismo não traria o risco de se psicologizar o incons-ciente?

Um crítico persistente dessa ontologização do incons-ciente é Jacques Lacan. No seu seminário sobre os quatroconceitos fundamentais da psicanálise, afirma que “o es-tatuto do inconsciente é ético e não ôntico”, que “ele nãoé nem ser nem não-ser, mas é algo de não realizado”, que“o que é ôntico, na função do inconsciente, é a fenda”, eque “onticamente, então, o inconsciente é o evasivo”.5 Aoque Jean Laplanche, em seu seminário sobre o inconscientee o id, responde com uma concepção realista do incons-ciente, acrescentando, não sem um evidente tom provoca-tivo, que: “O inconsciente é individual; e para ser escan-daloso, eu diria que ele está na cabeça de cada indivíduo.”6

Em sua análise do conceito de inconsciente em Freud,Laplanche opta pela defesa de uma realidade do incons-ciente, recusando uma concepção instrumentalista ou ope-racional e se colocando, ao mesmo tempo, contra a con-cepção lacaniana do significante. O curioso é que o ponto

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5 Lacan, J., O seminário, Livro 11, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979,p. 34-37.6 Laplanche, J., Problemáticas IV — O inconsciente e o Id, São Paulo,Martins Fontes, 1992, p. 115.

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de partida dessa polêmica foi a comunicação feita porLaplanche e Leclaire no Colóquio de Bonneval7 sobre oinconsciente, em outubro de 1959, comunicação esta quepretendia ser uma exposição do ponto de vista de Lacansobre o inconsciente. Não demorou muito para que o pró-prio Lacan tornasse pública sua discordância com o pontode vista do discípulo, desautorizando-o como seu porta-voz. Essa discordância tomou a forma de um acréscimofeito a título de comentário à comunicação dos discípulos,quando da publicação do Colóquio em 1966, e transfor-mou-se numa oposição clara a partir de uma entrevistaconcedida a Anika Lemaire, em dezembro de 1969.8

Na comunicação feita durante o Colóquio de Bonneval,Laplanche parte de uma análise do livro de G. Politzer,Critique des fondements de la psychologie, 9 no qual o filósofomarxista, depois de fazer uma crítica da psicologia expe-rimental e da psicologia introspectiva e de propor a elimi-nação da metapsicologia freudiana, sugere uma articula-ção da prática psicanalítica com a teoria da Gestalt a fimde fundar uma psicologia concreta, espécie de síntese daprática psicanalítica e da psicologia da Gestalt sob a égidede uma “psicologia na primeira pessoa”. Para esta psico-logia concreta de nada serviriam os conceitos metapsico-lógicos (inconsciente, pulsão, recalcamento, superego etc)ou as várias concepções de aparato psíquico apresentadaspor Freud; aquilo que seria resgatado da psicanálise seria

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7 Essa comunicação foi publicada em 1961 em Les Temps Modernes,no 183 e depois em L’Inconscient (Colóquio de Bonneval), Paris, Descléede Brouwer, 1966. Foi reproduzida, acompanhada de comentários, emLaplanche, J., L’Inconscient et le ça (Problématiques IV), Paris, PUF, 1981(tradução brasileira: Problemáticas IV — O inconsciente e o id, São Paulo,Martins Fontes, 1992).8 Cf. Lemaire, A., Jacques Lacan — uma introdução, Rio de Janeiro,Campus, 1979.9 Politzer, G., Critique des fondements de la psychologie, Paris, PUF, 1968.

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o “drama individual” cujo esquema de orientação é forne-cido pelo Édipo. A crítica de Laplanche a Politzer é que,em função de uma orientação marcadamente fenomenoló-gica, ele teria eliminado o que de mais essencial haveriana proposta freudiana, incluindo-se aí o inconsciente con-cebido como um sistema e a idéia de conflito psíquico.

No que se refere especificamente ao conceito freudianode inconsciente, Politzer é de opinião de que ele não passade uma construção lógica, semelhante a uma lei da físicaque não tem nenhuma realidade para além de sua forma-lização matemática. O argumento de Laplanche10 é que, seconcebermos o inconsciente da mesma forma que conce-bemos uma lei física, a lei da queda dos corpos, por exem-plo (e = 1/2 GT2), como seria possível um conflito entre alei (abstrata) e uma representação, uma idéia ou um pen-samento? Mais ainda, se reduzimos o inconsciente a umasimples construção lógica ou a um operador formal, comoentender a tese freudiana referente aos conteúdos do incons-ciente (as Vorstellungen)? Uma Vorstellung não é, paraFreud, uma abstração, um esquema operatório, uma lei,mas uma entidade concreta que faz pressão num ou noutrosentido, que nos ameaça, que produz desprazer, algo, por-tanto, que tem uma realidade. Isto, com mais razão ainda,quando consideramos a Vorstellungsrepräsentanz — o recal-cado que forma o conteúdo do inconsciente, segundoFreud — com sua intensidade, seu investimento afetivo esua função de representância da pulsão.

Em geral, a posição do psicanalista frente ao incons-ciente é semelhante à do físico frente a alguns dos seusconceitos (como o de energia, por exemplo): é a posição deum realista ingênuo. Para ele, o inconsciente existe e pro-duz efeitos, assim como para o físico a energia existe como

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10 Laplanche, J., Problemáticas IV — O inconsciente e o id, São Paulo,Martins Fontes, 1992.

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realidade material. Dizer que se trata de um realismo in-gênuo não significa uma desqualificação da posição doanalista, mas apenas afirmar que ele não se coloca na po-sição do epistemólogo ou do filósofo da ciência. Para ele,há uma realidade do inconsciente, assim como para o físi-co, ou mesmo para cada um de nós, há uma realidade daenergia que é objeto das teorias físicas.

A questão da realidade do inconsciente está intima-mente ligada a uma outra: a da pessoalidade do inconsciente.Até que ponto é possível se afirmar que o inconsciente épessoal? Cada pessoa tem o seu inconsciente? Numa rela-ção analítica, podemos dizer que estão presentes o incons-ciente do analisando e o do analista?

Sobre este ponto, fiz referência, acima, às respostasdadas por Laplanche e por Nasio, este último falando deponto de vista lacaniano. Para Laplanche, não apenas háuma realidade do inconsciente, como ele é ainda conside-rado como individual; “ele está na cabeça de cada indiví-duo”, declara Laplanche numa fórmula que ele próprioconsidera escandalosa, mas cuja intenção é a de ressaltarsua realidade e sua individualidade. Num ponto de vistaoposto, temos Nasio afirmando que o inconsciente é umnome, uma hipótese, um princípio ou ainda um axioma.Não existe o inconsciente, o que existe é o significante ou,melhor ainda, o que Lacan chama de “alíngua”, isto é, alíngua peculiar com que cada paciente fala ao analista.Nessa alíngua ou por essa alíngua, algo é produzido narelação analítica e que é comum a ambos, analista e anali-sando: o inconsciente; e ele não é o inconsciente do anali-sando nem o inconsciente do analista (que não existemenquanto realidades individuais), mas um inconscienteimpessoal que pertence a ambos.11

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11 Cf. Nasio, J. -D., Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, Rio deJaneiro, Jorge Zahar, 1993, p. 51.

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Apesar de expressarem pontos de vista opostos, ambasas teses pretendem fidelidade ao texto freudiano, ou, pelomenos, é ao texto freudiano que recorrem para demonstrarsuas hipóteses. Convém, portanto, retornarmos também aele.

Inconsciente: sentidos descritivo e sistemático.

O fato de uma representação ser inconsciente (unbewusst)não é suficiente para que se determine sua pertinência aum sistema psíquico, apenas designa sua não presença naconsciência. Definir a natureza inconsciente de um fatopsíquico pela sua relação à consciência, isto é, pela sua nãopresença na consciência, corresponde ao que Freud cha-mou de sentido descritivo do termo “inconsciente”. Umarepresentação pode estar ausente da consciência e, no en-tanto, tornar-se consciente por decisão voluntária da pró-pria pessoa. Fatos do dia anterior, que não estão atualmen-te presentes na consciência, podem passar a ser conscientessem esforço por parte do indivíduo; além de não diferirem,em sua natureza, dos processos conscientes. Dizemos queesse fato era inconsciente (unbewusst), no sentido descriti-vo do termo. Por outro lado, há processos que são incons-cientes e cuja natureza difere dos processos conscientes, eque não são suscetíveis de se tornarem voluntariamenteconscientes. Constituem o recalcado e pertencem ao sistemainconsciente (das Unbewusste). Nesse caso, o termo incons-ciente está sendo empregado no sentido sistemático e nãodescritivo.

Freud propõe que, ao fazermos uso da escrita, substi-tuamos os termos “consciência” pelo símbolo Cs (Bw) e“inconsciente” por Ics (Ubw), sempre que estes termos es-tiverem sendo empregados no sentido sistemático. No en-tanto, o fato de uma representação pertencer ao sistema Cs

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não quer dizer que ela seja atualmente consciente, ela podeser suscetível de consciência, isto é, pode se tornar conscientesem que haja uma resistência a esta passagem. Nesse caso,ela era inconsciente mas não pertencia ao sistema Ics. Di-zemos, então, que pertencia ao sistema Pcs (sistema pré-consciente).

Há uma diferença fundamental entre a representaçãoque é inconsciente (no sentido descritivo) e aquela que éinconsciente porque pertence ao sistema Ics. No primeirocaso, ela em nada difere das representações conscientes enão há qualquer impedimento a que se torne consciente,enquanto que no segundo caso ela está submetida a umaoutra ordem e há uma resistência, por parte do sistemaPcs/Cs, a que ela tenha acesso à consciência. Essa resistên-cia é exercida em nome da censura que opera no limiteentre os sistemas Ics e Pcs/Cs.12

A partir dessa divisão em sistemas, podemos afirmarque um ato psíquico pode passar por três fases: numaprimeira fase, ele é inconsciente e pertence ao sistema Ics;em razão da censura, ele pode ter seu acesso à consciêncianegado; nesse caso ele é recalcado e permanece no sistemaIcs. Caso ele passe pela censura, torna-se suscetível deconsciência, portanto passa a pertencer ao sistema Pcs,sendo que neste caso poderá tornar-se consciente semmaiores problemas. A grande divisão, portanto, não é aque separa o que é inconsciente do que é consciente, masa que separa o que pertence ao sistema Ics do que pertenceao sistema Pcs/Cs.

Uma questão que se coloca para Freud é se o Cs definepropriamente um sistema. Desde o esquema de A interpre-tação do sonho, o Cs é localizado numa das extremidades

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12 Mais adiante Freud vai atribuir a censura não ao sistema Pcs/Cs,mas ao eu.

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do aparato psíquico e é concebido muito mais como umdispositivo de atenção ligado à percepção do que comoum sistema propriamente dito. O que se contrapõe ao sis-tema Ics não é a consciência, mas o sistema Pcs, o que fazcom que substituamos a notação anterior “sistema Pcs/Cs”pela notação “sistema Pcs”, retirando do Cs a característicade sistema. Teremos, então, dois sistemas psíquicos, o Icse o Pcs, concebidos como lugares psíquicos, como diferen-tes conjuntos de processos e representações psíquicas ecom diferentes modos de relação com a percepção-cons-ciência. Reduzindo o esquema do capítulo VII da Traum-deutung, a sua expressão mais simples, teremos:

P Cs Ics Pcs

Considerando-se a tese de Freud, reproduzida acima,de que um ato psíquico passa em geral por duas fases: umaprimeira, na qual ele é inconsciente e pertence ao sistemaIcs, e uma segunda, caso supere a censura, na qual ele setorna suscetível de consciência, passando a pertencer aosistema Pcs, a pergunta que surge é: o que acontece a umarepresentação quando é transposta do sistema Ics para osistema Pcs?

Hipótese da dupla inscrição e hipótese funcional.

A distinção que Freud estabelece entre o Ics e o Pcs comosendo dois lugares psíquicos, e que é conhecida como suaconcepção tópica, perderia sua razão de ser e se transfor-maria numa distinção meramente fenomenológica, se aesses lugares ou sistemas Freud não fizesse corresponderleis, modos de funcionamento dos processos psíquicos emodos de articulação entre as representações, inteiramente

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diferentes para um e outro sistema. O termo lugares psíqui-cos para caracterizar o Ics e o Pcs poderia dar a impressãode que a transposição de uma representação de um lugarpara outro seria análoga à mudança que se opera quandopassamos de um cômodo para outro de uma casa, sendoque a diferença entre esses lugares seria devida apenas aocaráter mais privado ou proibido de um desses cômodos.Mais do que definir lugares, ou além de definir lugares, adistinção entre os dois sistemas define modos de funcio-namento inteiramente diversos. A passagem de um siste-ma para outro não mantém inalterados os processos ou asrepresentações envolvidas. Na analogia acima, é como seao passarmos de um cômodo para outro de uma casamudássemos não apenas de lugar mas sofrêssemos umatransformação radical em nossa própria natureza.

E esta é a questão levantada por Freud, logo no iníciodo artigo O inconsciente: quando uma representação per-tencente ao sistema Ics se torna consciente, o que acontece?Dá-se uma nova inscrição da representação, paralelamenteà inscrição original que continua existindo, ou a mesmarepresentação sofre uma mudança de estado, passando deinconsciente para consciente? A primeira hipótese, a dadupla inscrição em sistemas diferentes, chamada tambémde topográfica, é considerada por Freud como a mais gros-seira, porém mais convincente; a segunda hipótese, cha-mada de funcional, é considerada por ele como mais pro-vável, embora menos plástica. O fato é que Freud não sedecide, de pronto, por nenhuma das duas. E talvez a nãodecisão imediata decorra do fato de que não se trata deuma única situação, mas de duas situações diferentes.

A situação apresentada por Freud é a de uma repre-sentação pertencente ao sistema Ics que se torna conscien-te; mas há também a situação inversa, a de uma repre-sentação que, de pertencente ao sistema Pcs/Cs, passa afazer parte do Ics. É o que acontece no recalcamento. A

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pergunta, para ambos os casos, pode ser a mesma, mas asrespostas podem ser diferentes dependendo de se tratardo recalcamento ou do retorno do recalcado.

Consideremos a situação apresentada na seção 2 doartigo O inconsciente, denominada “ponto de vista tópico”,e que estamos chamando aqui de “hipótese da dupla ins-crição”. O que ocorre, quando da passagem de uma repre-sentação pertencente ao Ics para o Pcs/Cs? Dá-se uma novatranscrição, permanecendo a inscrição originária preservadano Ics?

O que temos aqui é uma apresentação da questão quejoga com os mesmos termos (inscrição, transcrição) e segun-do o mesmo modo de pensar que os apresentados na Carta52.13 Nela, as inscrições originais sofrem, de tempos emtempos, uma retranscrição, de tal modo que podemos falarem várias retranscrições, cada qual correspondendo a di-ferentes modos de ordenamento das representações. Em-bora a Carta 52 não faça referência a sistemas psíquicos, jáfaz corresponder cada uma dessas transcrições e retrans-crições à inconsciência (Unbewusstsein) e à pré-consciência(Vorbewusstsein), ambos os termos empregados aqui nosentido descritivo. Apesar de ainda não descrever a in-consciência e a pré-consciência como sistemas psíquicos,Freud faz corresponder a cada uma delas inscrições distin-tas, prenunciando a hipótese da dupla inscrição, formula-da vinte anos depois no artigo sobre o inconsciente.

A segunda hipótese, chamada “funcional”, exposta naseção 4 do mesmo artigo, é apresentada em termos econô-micos. A passagem de uma representação do sistema Icspara o sistema Pcs/Cs é explicada em função da energia deinvestimento de cada sistema. A explicação econômicaabandona a hipótese da dupla inscrição (tópica) e adota a

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13 Correspondência de Freud para Fliess, carta de 6 de dezembro de 1896.

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hipótese funcional. Segundo esta hipótese, cada sistema psí-quico possui uma energia de investimento específica, de talforma que a passagem de uma representação de um sistemapara outro é explicada através do desinvestimento dessarepresentação por parte do primeiro sistema (Ics) e de uminvestimento ou reinvestimento por parte do segundo sis-tema (Pcs/Cs). Não há dupla inscrição da representação(uma no sistema Ics e outra no sistema Pcs/Cs), mas umamudança funcional que supõe a eliminação do investimentoanterior. Nesse caso, escreve Freud, “a hipótese funcionalanulou, sem dificuldade, a hipótese tópica”.14

Não tão facilmente como ele sugere. Na verdade, quan-do examina a hipótese tópica, Freud supõe o caso da passa-gem de uma representação pertencente ao sistema Ics parao sistema Pcs/Cs, enquanto que, ao descrever a hipótesefuncional, ele supõe o processo inverso: o do recalcamento.

O recalcamento opera na fronteira entre os sistemas Icse Pcs/Cs, e sua função é proteger o Pcs/Cs das repre-sentações fortemente investidas pulsionalmente e perten-centes ao sistema Ics. Por seu caráter ameaçador, estasrepresentações devem ser mantidas no Ics ou, no caso deterem acesso ao Pcs, são mandadas de volta para o Ics. Istose dá pela retirada do investimento ligado a essas repre-sentações — portanto, um desinvestimento — e a conse-qüente utilização dessa energia tornada disponível emoperações defensivas do eu, a fim de evitar que a repre-sentação recalcada tenha novamente acesso à consciência.

A hipótese funcional apresenta uma dificuldade: a deatribuir uma energia específica a cada sistema, quando oque Freud afirma é que toda energia de investimento temcomo fonte as pulsões, particularmente a pulsão sexual,portanto, energia libidinal. Isso fica claro quando, no pró-

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14 AE, 14, p. 177; ESB, 14, p. 207; GW, 10, p. 279.

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prio artigo O inconsciente, ao descrever o processo de de-sinvestimento, Freud fala em “retirada da libido”. Na hi-pótese funcional, a energia de um sistema não passa paraoutro sistema, o que é “transportável” de um sistema paraoutro é a representação, na medida em que lhe é retiradoo investimento de um sistema e passa a ser investida pelaenergia do outro sistema. Segundo essa hipótese, haveriauma energia de investimento inconsciente e uma energiade investimento pré-consciente/consciente. Se identifica-mos a energia do sistema Ics como sendo a libido, não restaoutra alternativa a não ser manter a idéia do interesse comosendo energia do sistema Pcs/Cs. Do ponto de vista daeconomia das energias de investimento, o processo de re-calcamento consiste na retirada do investimento Pcs darepresentação a ser recalcada, de modo que esta: 1) ficadesinvestida; 2) o investimento Pcs é substituído por uminvestimento Ics; ou 3) conserva o investimento Ics que jápossuía.15

Repetindo: no processo de recalcamento, uma repre-sentação fortemente investida pulsionalmente e pertencen-te ao sistema Ics procura uma expressão consciente. Aotentar a passagem do sistema Ics para o sistema Pcs, ela ébarrada ou enviada de volta ao Ics (se já penetrou no Pcs).Há, portanto, um desinvestimento Pcs/Cs e um reinvesti-mento Ics dessa Vorstellungsrepräsentanz: repulsa por partedo Pcs/Cs e atração exercida pelo Ics. Este é o caso, porém,do recalcamento posterior (Nachdrängen) ou recalcamentopropriamente dito, mas não o caso do recalcamento origi-nário (Urverdrängung). Já vimos que o mecanismo respon-sável pelo recalque originário não pode ser nem o inves-timento por parte do sistema Ics, nem o desinvestimentopor parte do Pcs, posto que no caso do recalque originário

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15 AE, 14, p. 177; ESB, 14, p. 207; GW, 10, p. 279.

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a divisão do aparato psíquico em sistemas ainda não ocor-reu. O único mecanismo presente no recalque originário éo contra-investimento (Gegenbesetzung), que joga com aenergia decorrente diretamente da fonte pulsional.

As duas hipóteses — a tópica e a funcional — não secolocam necessariamente de forma mutuamente excluden-te, e a afirmação de Freud, de que a hipótese funcional“anulou” a tópica, deve ser tomada com reservas, até por-que já havia afirmado antes, no mesmo artigo, que a hipó-tese tópica era “mais plástica”. Isto sem levarmos em contaque os processos utilizados para exemplificar cada umadas hipóteses não são os mesmos (em que pese a afirmaçãode Lacan de que o recalcado e o retorno do recalcado sãoa mesma coisa).

Não há, pois, uma escolha decisiva e definitiva, porparte de Freud, em relação às hipóteses acima. Em nenhummomento a distinção tópica entre os sistemas Ics e Pcs/Csé ameaçada, sendo que a hipótese funcional, com a tesedas energias de investimento distintas para cada sistema,ao invés de eliminar a distinção tópica, reforça-a. Além domais, por estarem em jogo processos distintos — recalca-mento e retorno do recalcado — podemos admitir que cadauma das hipóteses é válida ou pelo menos que funcionamelhor quando aplicada a um ou outro processo.

Na comunicação feita no Colóquio de Bonneval, La-planche defende o ponto de vista de que a hipótese fun-cional é verdadeira no que se refere a uma representaçãoisolada, mas que a hipótese tópica é superior quando con-sideramos sistemas de representações. Os exemplos apre-sentados por ele são retirados da psicologia da percepção,de modo que atendem apenas de forma aproximada aoque se quer demonstrar. Trata-se do caso das figuras re-versíveis, ou ainda o desses desenhos nos quais há umafigura dissimulada no meio da paisagem: “Descobrir ochapéu de Napoleão escondido entre as folhagens de umacena de almoço campestre.” Se o chapéu de Napoleão não

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é facilmente percebido, é porque não faz parte do contextomanifesto do desenho; ele será percebido somente quandoarticulado a outro contexto que é o da lenda napoleônica.Não estando presente no desenho, mas apenas insinuadopor um elemento isolado, disfarçado e oculto pela cenacampestre, não há como, espontaneamente, o chapéu deNapoleão ser percebido. Há, portanto, dois sistemas dereferência: a lenda napoleônica e o almoço campestre.Como este último sistema de referência é pregnante, im-pede, por contra-investimento, o aparecimento do detalheque é o chapéu de Napoleão disfarçado entre as folhagens.A idéia de Laplanche é que um processo análogo ocorreentre os sitemas Ics e Pcs/Cs. O que passa de um sistemapara outro são elementos isolados e não os sistemas designificação, estes últimos permanecendo restritos a cadasistema pela força de coesão interna de cada um.

Há um evidente perigo de se tomarem exemplos dapsicologia da percepção, como os de figura e fundo, dapsicologia da Gestalt, porque podem induzir o leitor a umaleitura fenomenológica da psicanálise. O exemplo acima étípico da distinção entre foco e margem ou de figura efundo do campo perceptivo. A distinção entre o que é focale o que é franjal no campo perceptivo não é da mesmanatureza da distinção entre o que é Ics e o que é Pcs/Cs.O exemplo do chapéu de Napoleão pode servir para ilus-trar a organização do campo perceptivo em termos dosistema Pcs/Cs, mas não para uma representação ou con-junto de representações recalcadas e pertencentes ao siste-ma Ics, em oposição a representações pertencentes ao sis-tema Pcs/Cs. Além do mais, a análise que Laplanche em-preende no artigo sobre o inconsciente conduz a conclu-sões com as quais não concordam nem seu parceiro deartigo, Serge Leclaire, nem J. Lacan, mestre de ambos esuposto autor original das idéias apresentadas pelos dis-cípulos no Colóquio de Bonneval. É o caso, por exemplo,da tese segundo a qual o inconsciente é a condição da

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linguagem, ou ainda a do desdobramento do processo derecalque originário em dois momentos.

A primazia concedida por Laplanche à hipótese tópicapor ocasião do Colóquio de Bonneval cede lugar, com opassar dos anos, a uma posição mais matizada que de certaforma concilia as duas hipóteses (o que aliás ocorreu comFreud no próprio artigo sobre o inconsciente). As duashipóteses não são mutuamente excludentes, referem-se aprocessos diferentes — ou se aceitamos que recalque eretorno do recalcado são a mesma coisa, a momentos di-ferentes do processo de recalcamento —, a hipótese dadupla inscrição sendo válida em se tratando do retorno dorecalcado, enquanto que a hipótese funcional se aplicamelhor ao recalcamento propriamente dito.

Vimos, no capítulo sobre o recalcamento, que o recal-camento propriamente dito consiste, segundo Freud, noprocesso pelo qual de uma representação pré-consciente éretirado o investimento pré-consciente (isto é, provenientedo sistema Pcs), de forma que a representação ou perma-nece desinvestida ou recebe um investimento do Ics, ou,ainda, conserva o investimento Ics que já possuía. Trata-se,portanto, de um processo no qual uma mesma repre-sentação é afetada pelo desinvestimento, pelo investimen-to inconsciente ou pelo contra-investimento, mas que emqualquer caso é a mesma representação que é afetada, nãohavendo duas representações, uma pré-consciente e outrainconsciente. Para este caso, vale a hipótese funcional oueconômica.

No caso da tomada de consciência ou do retorno dorecalcado, Freud supõe a possibilidade de uma repre-sentação estar presente em dois lugares psíquicos (Ics ePcs) ao mesmo tempo. Admite ainda que, com o afrouxa-mento da inibição por parte do eu, a representação possapassar do Ics para o Pcs sem perder sua primeira inscrição.Nesse caso, ao invés de termos uma única representaçãosofrendo diferentes processos econômicos, temos duas ins-

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crições distintas da mesma representação. É o caso da hi-pótese tópica ou da dupla inscrição.

Nas últimas páginas do artigo O inconsciente, o dilemahipótese tópica x hipótese funcional é diluído pela reintrodu-ção16 da distinção entre representação-objeto (Objektvorstel-lung) e representação-palavra (Wortvorstellung) e sua relaçãocom os sistemas Ics e Pcs/Cs. Já vimos da inconveniênciade se traduzirem os termos Objektvorstellung e Wortvorstel-lung por “representação de objeto” e “representação de pa-lavra”, respectivamente, já que a partícula “de” não indicaaqui que o objeto ou a palavra sejam aquilo que a repre-sentação representa, mas sim que objeto e palavra sãoambos considerados enquanto representação. A partir daí,o que até então era designado pelo termo representação-ob-jeto (Objektvorstellung) consciente é decomposto por Freudem representação-palavra (Wortvorstellung) e em repre-sentação-coisa (Sachevorstellung).17 Assim, o sistema Ics con-tém apenas os investimentos das representações-coisa, en-quanto que o sistema Pcs/Cs contém os investimentos darepresentação-coisa mais os da representação-palavra.

De um golpe, parece que sabemos agora em que consistea diferença entre uma representação consciente e uma in-consciente. Elas não são, como acreditávamos, diversastranscrições do mesmo conteúdo em lugares psíquicos di-ferentes, nem diversos estados funcionais de investimentono mesmo lugar, mas a representação consciente abarca arepresentação-coisa [Sachevorstellung] mais a correspon-dente representação-palavra, ao passo que a inconscienteé apenas a representação-coisa.18

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16 “Reintrodução” porque essa distinção foi introduzida no texto sobreas afasias, publicado em 1891 (ver vol. 1 desta IMF).17 Algumas vezes, Freud utiliza Dingvorstellung como sinônimo deSachevorstellung. Para maiores detalhes sobre a distinção entre Ding eSache (ambos traduzidos por “coisa”), ver: Garcia-Roza, L.A., O malradical em Freud, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 86 e segs.18 AE, 14, p. 198; ESB, 14, p. 230; GW, 10, p. 300.

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É em função desse enlace, ou melhor, do não-enlace,que o processo de recalcamento pode ser entendido. Norecalcamento não se trata apenas de evitar que uma repre-sentação Ics se torne Cs, mas de impedir que a represen-tação-coisa, pertencente ao sistema Ics, seja traduzida empalavras, isto é, seja sobreinvestida a partir do sistema Pcsfazendo o enlace com a representação-palavra. Esta novaforma de apresentar a questão é uma espécie de Aufhebungda posição anterior, que opunha a hipótese tópica à hipó-tese econômica. De fato, ela não impede que se faça umatopologia do Ics e do Pcs/Cs, como tampouco ameaça aconcepção econômica, além de possibilitar uma outra for-ma de se pensar a representação.

As propriedades do sistema Ics.

Ao descrever as propriedades particulares do sistema Ics,Freud declara que o núcleo do Ics consiste de repre-sentantes pulsionais (Triebrepräsentanzen)19 que procuramdescarregar seus investimentos; portanto, em moções dedesejo (Wunschregungen*).20 Freqüentemente esta afirma-ção conduz os comentadores a entenderem o Ics como um

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19 Aqui, Freud emprega Triebrepräsentanz como sinônimo de Vorstel-lungsrepräsentanz.* Wunschregung é de difícil tradução para o português, devido à di-ficuldade mesma de se traduzir o Wunsch freudiano. Os tradutoresbrasileiros optaram traduzir Wunsch por “desejo” apesar de saberemque o correspondente em alemão a “desejo” é Begierde e não Wunsch.Este último seria mais bem traduzido por “voto” (como em “votos defeliz ano novo”) ou ainda “anseio”. Regung, por sua vez, correspon-deria melhor a “moção” do que a “impulso”. E neste caso, a tradução“correta” de Wunschregung seria “moção de voto” ou “moção de an-seio”, o que evidentemente soaria estranho mesmo para os ouvidosteóricos. “Moção de desejo” acabou sendo a fórmula aceita.20 AE, 14, p. 183; ESB, 14, p. 213; GW, 10, p. 285.

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continente cujos conteúdos são os representantes-repre-sentação. No entanto, a própria idéia de sistema (SystemsUbw) pode nos orientar numa direção diferente, evitandoaté mesmo a idéia do Ics concebido topograficamente comoum lugar anatômico.

Quando, por exemplo, empregamos a expressão “sis-tema solar”, estamos nos referindo a um conjunto de cor-pos celestes, cada qual existindo concreta e materialmente,sem que a palavra “sistema” designe algo de material, umelemento a mais dentre os elementos componentes do con-junto. “Sistema” designa a natureza do conjunto, isto é, ofato de se tratar de um conjunto estrutural e não de umconjunto meramente aditivo, mas não designa um compo-nente material do conjunto. É o modo pelo qual as partesdeste conjunto se articulam que faz dele um conjunto es-trutural, diferentemente de um conjunto aditivo que con-siste apenas na soma de elementos dispersos. Assim, osistema solar não é um continente cujos conteúdos são oSol, os planetas, as luas, mas um modo pelo qual estescomponentes são pensados em suas articulações múltiplas.Da mesma forma, podemos considerar a língua como umconjunto articulado de elementos (lingüísticos) sem que oemprego do termo sistema fonológico, por exemplo, tenhacomo conseqüência a idéia do par continente/conteúdo. Oemprego corrente do termo “conteúdos do Ics”, que é semdúvida uma forma cômoda mas não rigorosa de expressão,conduz freqüentemente o ouvinte ou o leitor à idéia do Icscomo algo físico, lugar anatômico habitado pelas Vorstel-lungen.

Da maneira exposta acima, “sistema” passa a ser quasesinônimo de “estrutura”. De fato, “sistema” é um termoempregado geralmente para designar um conjunto de ele-mentos, materiais ou não, que em suas relações recíprocasformam um todo organizado. Com pequenos acréscimos,

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a definição pode ser aplicada a “estrutura”, tal como foipensada pelos primeiros teóricos da Gestalt. No entanto, éimportante lembrarmos que, quando Freud descreve o in-consciente como um sistema psíquico, a teoria da Gestaltsequer tinha aparecido no horizonte, Saussure não tinhadado seus cursos, Jakobson tinha apenas quatro anos deidade e Lacan ainda não tinha nascido. A palavra “estru-tura” ainda não tinha sido descoberta pelos teóricos dasciências humanas; aliás, as próprias ciências humanas, oupelo menos a maioria delas, ainda estavam por nascer. Oemprego do termo “estrutura”, deixando de designar sis-temas de correlações para dizer respeito a significações,ainda estava distante da época em que Freud escreve aTraumdeutung. A transformação do conceito de estrutura,desde seu emprego pelos psicólogos da Gestalt, passandopela lingüística de Saussure e Jakobson, pela antropologiade Lévi-Strauss, até Lacan, é toda ela posterior a Freud.

De qualquer maneira, há uma especificidade no em-prego freudiano do termo “sistema”. Os representantespulsionais que formam o núcleo do Ics estão coordenadosentre si mas sem se influenciarem mutuamente e sem secontradizerem, o que significa que, se forem ativados si-multaneamente e se suas metas forem incompatíveis, asmoções pulsionais não se cancelam reciprocamente, masconfluem em direção a uma meta intermediária, numasolução de compromisso.21

Não há negação no Ics, diz Freud. Esta afirmação deve,contudo, ser matizada. O que não há no Ics é o símbolo danegação, o “não”, mas o fato de Wunschregungen com me-tas incompatíveis chegarem a uma solução de compromis-so é, por si só, indicativo de um trabalho do negativo. No

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21 AE, 14, p. 183; ESB, 14, p. 213; GW, 10, p. 285.

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entanto, podemos afirmar que o sistema Ics funciona demodo que as Wunschregungen procurem a descarga da for-ma mais direta possível, sem que nada, internamente aopróprio Ics, se contraponha a esta tendência. No Ics nãofunciona o princípio da não-contradição, o que pode ocor-rer é um maior ou menor investimento de uma repre-sentação, mas não a exclusão de uma delas por ser incom-patível com a outra. O trabalho do negativo vai se fazerintensamente, em nome da censura, não no interior do Ics,mas, em termos tópicos, na fronteira entre o Ics e o Pcs,sendo que o agente da censura é o eu (inconsciente, masnão pertencente ao sistema Ics).

Comparado ao Pcs, o Ics se caracteriza por uma grandemobilidade das intensidades de investimento — o queFreud denomina processo psíquico primário —, e que, doponto de vista econômico, corresponde à livre circulaçãode energia de uma representação para outra. Essa circula-ção não se faz, porém, de forma anárquica, mas segundoos mecanismos da condensação e do deslocamento.22 Pelodeslocamento, uma representação pode receber de umaoutra toda a sua carga de investimento, e pela condensaçãoela pode receber o investimento de várias outras repre-sentações. Condensação e deslocamento correspondem aomodo de funcionamento denominado processo primário, ca-racterístico do sistema Ics. O sistema Pcs, por sua vez,funciona segundo o processo secundário, cuja característicaé um investimento mais estável das representações, acom-panhado de um bom investimento do eu e por uma inibi-ção dos processos primários. Enquanto ao processo primá-rio corresponde uma energia livre ou móvel, ao processosecundário corresponde a energia ligada. Finalmente, osprocessos primário e secundário são ainda respectivamen-

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22 Ver vol. 1 desta IMF, p. 153-56, e vol. 2, p. 223-24.

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te correlativos do princípio de prazer e do princípio de reali-dade. Enquanto os processos Ics procuram satisfação pelocaminho mais curto e direto, os processos Pcs, reguladospelo princípio de realidade, são obrigados a desvios eadiamentos na busca de satisfação. De modo esquemático,teríamos:

Sistema Ics Processo primário Energia livre Princípio do prazer

Sistema Pcs Processo secundário Energia ligada Princ. de realidade

Embora cômodo, o esquema não deve nos levar a iden-tificar Ics com processo primário e Cs com processo secundário.Já no Projeto de 1895, quando estabelece a distinção entreprocesso primário e processo secundário, Freud o faz numitem que tem por título “Processo primário e secundárioem ψ”; ambos os processos referidos ao sistema ψ, portantoinconscientes (a Cs é característica do sistema ω). Mesmoposteriormente ao Projeto, Freud deixa clara a possibilida-de de processos primários no nível da consciência.

Uma outra característica atribuída por Freud ao siste-ma Ics é a ausência de temporalidade: “Os processos dosistema Ics são atemporais [zeitlos], quer dizer, não estãoordenados de acordo com o tempo, nem se modificam pelapassagem deste, nem em geral têm qualquer relação comele.”23 Na verdade, a tese da atemporalidade do Ics nãodeve ser tomada sem uma certa relativização. Não se tratade uma negação absoluta de uma temporalidade no Ics,mas sim de marcar sua diferença em relação ao conceitotradicional de tempo e sobretudo à temporalidade carac-terística do sistema Pcs/Cs. A esse respeito bastaria lem-brar que a própria idéia de aparato psíquico, compreen-dendo o Ics e o Pcs/Cs, é inseparável da idéia de estruturas

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23 AE, 14, p. 184; ESB, 14, p. 214; GW, 10, p. 286.

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de retardamento (Verzögerung ou Verspätung) como princí-pio de diferenciação do aparato psíquico.24

O que Freud recusa ao Ics é uma temporalidade seme-lhante ao tempo vivido, descrito pelos fenomenólogos,mas não pode recusar uma temporalidade própria ao Ics,irredutível ao tempo do Pcs/Cs e que, tal como as estrutu-ras de retardamento às quais me referi acima, tem que serconcebido não como uma noção descritiva mas como umconceito explicativo. E vários são os indicadores dessa tem-poralidade: o conceito de período, as estruturas de retarda-mento, o conceito de posterioridade (Nachträglich e Nachträ-glichkeit), a importância concedida à repetição, a relaçãorecalque primário e recalque secundário, as noções de inscriçãoe de retranscrição. Difícil é pensar o Ics como atemporal.Não apenas o Ics, mas o próprio aparato psíquico, tal comoconcebido no Projeto de 1895, só é pensável a partir deestruturas de retardamento cuja função é precisamente ade funcionarem como responsáveis pela diferenciação doaparato.25

Mas não é apenas a temporalidade do Ics que nos éinacessível; em si mesmos, os próprios processos incons-cientes são incognoscíveis. Ao que Freud acrescenta: “sãoincapazes de existência [existenzunfähig].”26 Não creio quea expressão tenha sido empregada no sentido de uma to-mada de posição quanto ao estatuto ontológico do incons-ciente, mas sim para assinalar que os processos inconscien-tes são sempre objeto de conjeturas, que não podemos falardeles a não ser por inferências feitas a partir de seus su-postos efeitos: os sonhos, os sintomas, os atos falhos etc.

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24 Cf. vol. 2 desta IMF, p. 39-40.25 Para uma análise detalhada da questão da temporalidade do in-consciente, ver: Gondar, J., Os tempos de Freud, Rio de Janeiro, Revinter,1995, principalmente os caps. 2 e 3.26 AE, 14, p. 185; ESB, 14, p. 215; GW, 10, p. 286.

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Quando Freud “descreve” as propriedades do sistemaIcs, não devemos entender essa descrição como fruto daobservação direta, como se fosse possível uma fenomeno-logia do Ics; os chamados conteúdos do Ics, assim como osprocessos Ics, são inacessíveis à consciência, embora Freudassinale que são “menos incognoscíveis” que a coisa-em-sikantiana.27 O “menos incognoscível” serve aqui para assi-nalar que internamente ao aparato psíquico não há umaruptura absoluta entre os sistemas, que Ics e Pcs/Cs podemser considerados como sistemas fechados (na medida emque constituem um conjunto autônomo), mas não comosistemas isolados que não estabeleçam nenhuma troca en-tre eles. A relação entre o recalcado e o Pcs/Cs não é damesma natureza que a da coisa-em-si kantiana e o fenô-meno. Além disso, se as representações recalcadas sofremdistorções que as tornam irreconhecíveis, os afetos sãosempre verdadeiros.

Os afetos inconscientes.

Até o momento estamos considerando o sistema Ics comoconstituído apenas por Vorstellungen ou, mais precisamen-te, pelos Vorstellungsrepräsentanzen. No entanto, vimos nocapítulo anterior que a pulsão se faz representar no psi-quismo não apenas pela Vorstellung (representação), mastambém pelo Affekt (afeto). E a pergunta com que Freudinicia a seção 3 do artigo O inconsciente é se podemos falarem sentimentos e afetos inconscientes. Antes de maisnada, convém assinalar os diferentes modos pelos quais otermo Affekt se faz presente nos textos de Freud.28

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27 AE, 14, p. 167; ESB, 14, p. 197; GW, 10, p. 270.28 Para uma exposição mais detalhada, ver vol. 1 desta IMF, p. 91-94e 143-46.

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No artigo As neuropsicoses de defesa, de 1894, Freudafirma que “nas funções psíquicas cabe distinguir algo(quota de afeto, soma de excitação) que tem todas as pro-priedades de uma quantidade — embora não tenhamosmeio de medi-la; algo que é capaz de aumento, diminui-ção, deslocamento e descarga, e que se difunde pelas mar-cas mnêmicas das representações como o faria uma cargaelétrica pela superfície dos corpos”.29 Já nos Estudos sobrea histeria, da mesma época, “afeto” é empregado quasecomo sinônimo de “investimento” (Besetzung), trata-se deum afeto que, ao invés de ser descarregado, fica ligado auma representação. Concepção muito próxima a esta, va-mos encontrar vinte anos mais tarde no artigo O recalque,quando Freud se refere à representação como investida apartir da pulsão com um quantum de energia psíquicaque ele denomina “quota de afeto” (Affektbetrag). Essaquase identificação entre “afeto” e “soma de excitação”está também presente no Projeto de 1895. Sobre isto, ca-bem algumas considerações.

Embora “quota de afeto” (Affektbetrag) e “soma de ex-citação” (Erregungssumme) sejam empregados como sinô-nimos, seu significado não é o mesmo. Ambos os termosdizem respeito ao fator quantitativo postulado por Freudem sua hipótese econômica; no entanto, enquanto “somade excitação” aponta para a origem da quantidade, “quotade afeto” refere-se ao fator intensivo propriamente dito,capaz de se destacar da representação e encontrar destinosdiferentes desta última. Trata-se, ambas, de noções muitomais intensivas do que propriamente quantitativas, sendoque é com este caráter intensivo que a noção de afeto vaiaparecer nos textos de 1915.

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29 AE, 3, p. 61; ESB, 3, p. 73; GW, 1, p. 74.

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A distinção entre quota de afeto (Affektbetrag) e somade excitação (Erregungssumme) não esclarece, no entanto,se Affektbetrag e Affekt podem ser empregados como sinô-nimos. Apesar de podermos apontar uma certa imprecisãoterminológica nos primeiros textos freudianos, o Projeto de1895 já nos fornece algumas indicações quanto ao usodiferenciado dos dois termos, sendo que essa diferenciaçãotorna-se mais clara no artigo O inconsciente e, logo emseguida, nas Conferências de introdução à psicanálise. O quepodemos dizer é que o afeto (Affekt), enquanto repre-sentante da pulsão, possui tanto um aspecto quantitativoquanto um aspecto qualitativo, ou ainda, que ele pode sertomado como expressão qualitativa da quantidade de ex-citação proveniente da fonte pulsional. No artigo O incons-ciente, é feita a pergunta: além das representações, existemtambém moções pulsionais (Triebregungen), sentimentos(Gefühle), sensações (Empfindungen) inconscientes? Sendoque no parágrafo seguinte fica claro que ele está se refe-rindo a estados afetivos (Affektzustände) ou a afetos (Affekte)pura e simplesmente.

A rigor, diz Freud, não há afetos inconscientes comohá representações inconscientes, 30 já que é da natureza dosafetos serem sentidos como tais. No entanto, ele não excluia possibilidade de estruturas afetivas (Affektbildungen) nosistema Ics. E esta aparente contradição se resolve com adistinção entre representações inconscientes e afetos in-conscientes: enquanto as primeiras são investimentos detraços mnêmicos, “os afetos e sentimentos correspondema processos de descarga cujas exteriorizações últimas sãopercebidas como sensações”.31 Note-se que ele se refereaqui a afetos e sentimentos e não a afetos ou sentimentos,

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30 AE, 14, p. 174; ESB, 14, p. 204; GW, 10, p. 277.31 Ibid.

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numa clara indicação de que os dois termos não são sinô-nimos, mas que dizem respeito a momentos distintos deum processo.

Uma vez recalcada, uma representação continua exis-tindo, como formação real, no sistema Ics, enquanto que oafeto inconsciente permanece como potência não desen-volvida. É a esse afeto impedido de se desenvolver e quepermanece inconsciente que Freud nomeia Affektbildung.Nas Conferências introdutórias é feita uma distinção maisclara quando, em relação ao afeto, distingue as descargase as sensações ligadas a ele, sendo que as sensações sãoainda consideradas como de dois tipos: as referentes àsações motoras ocorridas (descargas) e as sensações diretasde prazer e desprazer, que são as que conferem ao afetoseu tom dominante.32 A partir dessas novas contribuiçõesà noção de afeto, creio que podemos considerar as inerva-ções motoras ou descargas como correspondendo ao as-pecto quantitativo do afeto, àquilo que Freud denominaquantum de afeto ou soma de excitação, e considerar as sen-sações de prazer e desprazer como o aspecto qualitativo,o afeto propriamente dito.

O afeto encontra-se originalmente ligado (de modo nãoessencial) a uma representação, conferindo a esta sua di-mensão intensiva. No caso do recalcamento, ambos (re-presentação e afeto) são atingidos, mas o destino de cadaum é diferente. A representação é propriamente recalcadamas o afeto, em conseqüência do recalque da represen-tação a que estava ligado, é compelido a ligar-se a outrarepresentação, o mesmo acontecendo se esta última fortambém recalcada. Desse modo, é possível que a consciên-cia venha atribuir as sensações de prazer ou de desprazerà representação à qual tem acesso, quando na verdade o

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32 AE, 16, p. 360; ESB, 16, p. 461; GW, 11, p. 410.

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quantum de afeto teria que ser referido à concatenaçãooriginal (inconsciente). É nesta medida que se fala em“afeto inconsciente”. O que é inconsciente não é o afetopropriamente dito, mas a representação à qual estava ori-ginalmente ligado.

Mas, se o que é recalcado é a representação e não oafeto, o que acontece com este último? Quais os destinosdo afeto? Na carta a Fliess, datada de 21 de maio de 1894,Freud escreve a respeito do que podemos considerar comoos destinos clínicos do fator intensivo (ou quantitativo,como ele preferia): “Conheço três mecanismos: 1) o datransformação do afeto (histeria de conversão), 2) o dodeslocamento do afeto (idéias obsessivas) e 3) o da trocade afetos (neurose de angústia e melancolia).” Este não éo mesmo quadro que encontramos em 1915, no artigo Oinconsciente. Nele, não é dos destinos clínicos que Freud seocupa, mas do que poderemos chamar de destinos meta-psicológicos do afeto. Estes destinos são também em núme-ro de três: 1) o afeto permanece (no todo ou em parte) talcomo é; 2) é transformado numa quota de afeto qualitati-vamente diferente (angústia); 3) é reprimido (unterdrückt),isto é, impedido de se desenvolver.33

A distinção feita acima entre quota de afeto (Affektbetrag)e afeto (Affekt) pode ser útil para compreendermos a afir-mação que Freud faz, no mesmo artigo, de que “é possívelque o desprendimento de afeto parta diretamente do sis-tema Ics, em cujo caso tem sempre o caráter de angústia”.34

Nesse caso, diz ele, os afetos “recalcados” (verdrängten) sãotrocados por angústia, isto é, por uma expressão puramen-te intensiva (e não propriamente quantitativa) do pulsio-nal, sem que nenhuma representação esteja ligada a eles.

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33 AE, 14, p. 174; ESB, 14, p. 204; GW, 10, p. 277.34 AE, 14, p. 175; ESB, 14, p. 205; GW, 10, p. 278.

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Nessa medida, o afeto não funciona como “significante”(para empregar a terminologia lacaniana), mas como sinal,índice da pulsão.

O trânsito entre os sistemas Ics e Pcs.

É fundamental para a teoria freudiana que o Ics não sejaconsiderado um simples resíduo de uma atividade psíqui-ca primitiva que teria cedido lugar ao Pcs, permanecendoa partir de então inativo ou com sua atividade reduzida aníveis desprezíveis. O inconsciente não só persiste, comoinsiste continuamente numa busca incessante de expressãoPcs/Cs. Já vimos que o recalcamento não elimina a repre-sentação por ele atingida, como já vimos também que oinconsciente “prolifera nas sombras”, formando seus deri-vados. Longe de ser uma instância morta, o Ics “é algo bemvivo, suscetível de desenvolvimento, e que mantém como Pcs toda série de relações; entre outras a de coopera-ção”.35

Vimos que o recalcamento incide sobre os Vorstellungs-repräsentanzen, mas que estes não apenas continuam exis-tindo no Ics, como continuam se organizando, estabelecen-do conexões e formando derivados. Na verdade, uma vezrecalcados e livres das exigências do sistema Pcs, os Vor-stellungsrepräsentanzen desenvolvem-se ainda com maiorriqueza, e nesta medida podemos dizer que o Ics prolon-ga-se nos seus derivados (Abkömmlinge). Estes formam sé-ries que vão desde os que se encontram mais próximos dorecalcado original até aqueles que, pela distorção a queforam submetidos e pela distância em relação ao recalcadooriginal, conseguem acesso ao Pcs e à consciência.

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35 AE, 14, p. 187; ESB, 14, p. 218; GW, 10, p. 288.

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Os derivados do recalcado não apresentam todos asmesmas características. Enquanto alguns se assemelhamao recalcado original, outros apresentam a mesma organi-zação que as representações do Cs, não se distinguindodestas a não ser pelo fato de serem inconscientes e incapa-zes de se tornar conscientes. Assim, apesar de qualitativa-mente poderem fazer parte do Pcs, de fato pertencem aoIcs. Este é o caso das formações da fantasia (Phantasiebil-dungen), ponto de partida e matéria-prima do trabalho dosonho e da formação do sintoma, as quais, apesar do ca-ráter altamente organizado, permanecem recalcadas. À di-ferença das formações da fantasia, as formações substitu-tivas (Ersatzbildungen), os atos falhos e os ditos de espírito,considerados também derivados do recalcado, conseguemacesso ao Pcs/Cs a partir de um investimento favorável doPcs. No entanto, o acesso ao sistema Pcs, e portanto apossibilidade de consciência, não se fazem senão à custade uma grande distorção em relação às representações Ics,como vimos no caso da formação dos sonhos.

Freud salienta a extrema importância dos derivados dorecalcado para a prática psicanalítica. Uma vez que o des-tino dos derivados é o mesmo que o das representaçõesatingidas pelo recalque primordial — serem excluídos daconsciência —, é apenas a partir daqueles derivados queconseguiram iludir a censura e ter acesso ao Pcs/Cs quepoderemos rastrear a série que conduz aos derivados re-calcados pertencentes ao Ics. A produção de derivadoscontinua a ser feita, independentemente da distância for-mal e temporal em relação ao recalcado original. Ela severifica nos sintomas, nos sonhos, nos atos falhos, assimcomo nas associações feitas pelo paciente na situação ana-lítica. É nisto, aliás, que consiste a chamada “regra funda-mental” que orienta a prática clínica: criar condições paraque o paciente, livre das restrições impostas pelo forma-lismo Pcs/Cs, produza derivados do recalcado.

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II

A TEORIA DA REPRESENTAÇÃO E OVORSTELLUNGSREPRÄSENTANZ

Freud elabora uma teoria da representação. Não faltarãoaqueles que apontarão uma dívida de Freud com Kant,Herbart, Stuart Mill, Brentano, para citar apenas alguns;mas a pergunta é se ele não opera uma subversão doconceito de Vorstellung a ponto de torná-lo irredutível àsconcepções que precederam a sua, mais do que tomá-loemprestado dos filósofos dos séculos XVIII e XIX.

A se apontar alguma influência mais direta, podería-mos citar a de Herbart (através de Meynert), a de StuartMill (assinalada pelo próprio Freud) e a de Brentano, dequem Freud foi aluno na Universidade de Viena, quandoera ainda estudante de medicina. Pela importância que anoção de Vorstellung tem na obra de Brentano e pelo con-tato direto entre ambos durante os cursos de filosofia naUniversidade de Viena, era de se esperar que esta fosse ainfluência mais forte. No entanto, o fato de Freud não fazer,em toda a sua obra, nenhuma referência a Brentano, a nãoser numa nota de rodapé que nada tem a ver com o con-ceito de Vorstellung, pode ser considerado como índice dapouca ou nenhuma influência exercida pelo filósofo.

A teoria da representação de Freud começa a se deli-near desde o seu primeiro texto teórico Zur Auffassung derAphasien, de 1891, com a distinção entre Objektvorstellung(representação-objeto) e Wortvorstellung (representação-palavra).36 Uma das contribuições mais importantes do

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36 O termo Objektvorstellung do texto de 1891 corresponde a Sachevor-stellung (representação-coisa) do texto O inconsciente, de 1915.

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trabalho sobre as afasias é o capítulo 6, no qual Freudelabora o modelo teórico do que denominou de aparelho delinguagem (Spracheapparat). Já vimos como o aparelho de lin-guagem de 1891 pode ser considerado como o primeiroesboço do que irá ser concebido como aparelho neurônicono Projeto de 1895, como aparelho de memória na Carta 52, ecomo aparelho psíquico no capítulo 7 de A interpretação dosonho.37

A noção de representação (Vorstellung) é central nessetexto. Nele, Freud recusa a idéia de que a representaçãoseja um efeito mecânico da estimulação externa e, em ter-mos mais amplos, a idéia de que o processo psicológicoseja um epifenômeno do processo fisiológico. O processopsicológico é paralelo ao fisiológico, e não uma duplicaçãomecânica ou um efeito secundário deste último. Dessaforma, o correlato fisiológico de uma representação não éo neurônio “nem nada de quiescente”, mas algo da natu-reza de um processo.38 Essa idéia de um processo que sedá na trama dos neurônios, ao longo de caminhos parti-culares, antecipa a noção de Bahnung, fundamental no Pro-jeto de 1895.

No que se refere especificamente à noção de repre-sentação, o que já está contido no trabalho sobre as afasiaspode ser resumido no seguinte: 1) a representação não émais concebida como estando contida na célula nervosa(como na antiga teoria dos engramas); 2) a representaçãonão pode mais ser pensada como independente das asso-ciações; representação e associações constituem um mes-mo processo; 3) a representação não pode mais ser consi-derada como um simples efeito mecânico da estimulaçãoperiférica; 4) a representação deve ser entendida como a

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37 Ver vol. 1 desta IMF, cap. 1, e vol. 2, cap. 2.38 Freud, Aphasies, p. 106.

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diferença entre duas séries de associações, isto é, como adiferença entre séries de processos, o que implica que oaparelho seja concebido em termos estruturais e não comouma soma de áreas corticais distintas. Na verdade, as as-sociações são responsáveis pela própria estruturação doaparelho.

É ao apresentar seu esquema psicológico da repre-sentação-palavra que Freud não apenas distingue, mastambém assinala o modo de articulação entre representa-ção-palavra (Wortvorstellung) e representação-objeto (Objekt-vorstellung).39 A representação-palavra é entendida comouma representação complexa, formada de representaçõessimples diversas: imagem acústica da palavra, imagemmotora, imagem da leitura e imagem da escrita. Este con-junto forma um complexo representativo fechado, que é aWortvorstellung. O fundamental, para Freud, é que a rep-resentação-palavra não se forma senão numa relação entreo aparelho de linguagem e um outro aparelho de lin- gua-gem.

O outro complexo, o da representação-objeto (Objektvor-stellung), não se constitui originalmente como tal, isto é,como representação-objeto, mas como um conjunto queFreud denomina “associações de objeto”, conjunto de ima-gens visuais, acústicas, táteis etc., que vão dar lugar àrepresentação-objeto. As associações de objeto não consti-tuem, por si mesmas, uma representação-objeto, comotampouco são consideradas como representação icônicade um objeto externo; elas formam apenas a matéria-primada Objektvorstellung. As associações de objeto agrupam-se,para formar uma representação-objeto, apenas a partir desua ligação com a representação-palavra, e somente em

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39 Ver vol. 1 desta IMF, p. 45, e vol. 2, p. 125.

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função dessa ligação podemos falar em representação-objeto,sendo que é por esta relação que o objeto ganha unidadee identidade, e que por sua vez a representação-palavraadquire sua significação. Assim, o termo representação-ob-jeto não designa o referente ou a coisa, mas, na sua rela-ção com a representação-palavra, designa o significado. Aanalogia entre a relação Wortvorstellung/Objektvorstellung,de Freud, e a relação Significante/Significado, que consti-tui a unidade do signo lingüístico para Saussure, é irre-sistível.

O que me parece essencial na Vorstellungslehre é que arepresentação não é vista como representação da coisaexterna, embora esta forneça os elementos sensoriais quevão se constituir na matéria-prima da Objektvorstellung.Mas, se o objeto (Objekt) retira seus elementos sensíveis dacoisa (Ding), ele só se constitui como objeto a partir daligação entre esses elementos e a Wortvorstellung.

Entre esse primeiro esboço de uma teoria da repre-sentação e a que vai ser apresentada nos artigos de 1915,há um longo percurso teórico que inclui uma teoria doinconsciente e uma teoria das pulsões. É somente ao finaldeste percurso que o conceito de Vorstellungsrepräsentanzpode ser elaborado. Sobre ele vamos nos deter agora.

A questão do Vorstellungsrepräsentanz diz respeito àrelação entre o Ics e as pulsões. Por que, então, não incluí-lano capítulo sobre a pulsão, já que é da pulsão que setrata?A verdade é que o próprio Freud não faz qualquerreferência ao Vorstellungsrepräsentanz no artigo Pulsões edestinos de pulsão, e isto, não por descuido ou esquecimen-to, mas porque necessitava, primeiro, discutir o conceitode recalque. Por outro lado, precisava poder dispor doconceito quando fosse tratar do inconsciente. Assim, é noartigo O recalque que Freud introduz o conceito, e o fazempregando uma forma gráfica que não deixa de provocar

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o leitor: “(Vorstellungs-) Repräsentanz”; assim mesmo, coma primeira parte do termo entre parênteses e com hífen.

Logo no início do artigo de 1915 sobre o recalcamento,ao distinguir o recalque original do recalque propriamentedito, Freud declara “ter razões para supor um recalqueprimordial, uma primeira fase do recalcamento que consisteem negar ao representante psíquico da pulsão [psychische(Vorstellungs-) Repräsentanz des Triebes] o acesso ao cons-ciente”.40 Até então, empregava os termos Vorstellung eRepräsentanz independentemente um do outro, e amboscom o significado nem sempre muito preciso. A partir deagora o conceito começa a tomar forma.

Comecemos com o problema que nos persegue desdeo início: o da tradução. Como traduzir Vorstellungsreprä-sentanz? Nas primeiras edições do Vocabulaire de la psycha-nalise, de Laplanche e Pontalis, a tradução escolhida parao português foi “representante ideativo”, embora na tra-dução para o francês tenham optado por “représentant-re-présentation”, que corresponderia melhor, em português, a“representante-representação” (forma adotada nas ediçõesposteriores do Vocabulário). Três anos antes da publicaçãodo Vocabulaire, Jacques Lacan, em seu Seminário 11, haviadito que o termo Vorstellungsrepräsentanz deveria ser tra-duzido não por “representante-representativo como se tra-duziu monotonamente, mas [como] o lugar-tenente da re-presentação [tenant-lieu de la représentation]”, 41 apesar delepróprio empregar algumas vezes “représentant de la repré-sentation” (representante da representação); na maioria dasvezes, porém, mantém o termo em alemão, sem traduzi-lo

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40 AE, 14, p. 143; ESB, 14, p. 171; GW, 10, p. 250.41 Lacan, J., O seminário, Livro 11, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979,p. 61.

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(o que não deixa de ser uma forma de assinalar a dificul-dade de encontrar a tradução adequada).

Quando publicaram o Vocabulaire, Laplanche e Pontalisestavam ainda suficientemente ligados a Lacan para faze-rem carga contra a tradução proposta pelo mestre. Mas,com o passar do tempo, a fidelidade diminuiu tornandopossíveis as críticas. Assim, em seu Problématiques III — Lasublimation, Jean Laplanche faz uma nota de rodapé, apropósito das traduções francesas do termo Vorstellungs-repräsentanz, comentando em especial a tradução propostapor Lacan.42 A nota começa com o comentário: “Como nãorelembrar que a noção introduzida por Lacan de um ’re-presentante da representação’ não pode ser creditada aFreud? Como tradução do termo freudiano Vorstellungs-repräsentanz, isso seria um contra-senso.” Segundo Laplan-che, o s que une os termos Vorstellung e Repräsentanz nãodenota um genitivo, isto é, não é indicativo de um com-plemento possessivo, o que faria com que a tradução fosse“representante da representação”; o substantivo femininoVorstellung não poderia dar como genitivo Vorstellungs. Écomum encontrarmos palavras compostas em alemão cujarelação de dependência é diferente da relação de um ge-nitivo, podendo, na opinião de Laplanche, aparecer comoum tipo de relação na qual um dos termos funciona comodeterminação do outro, como, por exemplo, em Handels-repräsentant que é “representante de comércio” e não “repre-sentante do comércio” (Repräsentant des Handels). Enquantoo primeiro é um representante no ramo comercial, o se-gundo é o representante de todos os comerciantes. O mes-mo acontece com Vorstellungsrepräsentanz, que é um “re-

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42 Laplanche, J., Problemáticas III — A sublimação, São Paulo, MartinsFontes, 1989, p. 25.

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presentante de representação” e não um “representante darepresentação”. O Vorstellungsrepräsentanz não representaa representação numa outra instância distinta da repre-sentação. Trata-se, portanto, de um representante no do-mínio da representação e não de um representante querepresente a representação num outro domínio. Laplancheopta, então, por traduzir Vorstellungsrepräsentanz por “repre-sentante representativo” ou, como ele prefere, por “represen-tante-representação”.

Passados porém alguns anos, ao integrar a equipe daPresses Universitaires de France responsável pela nova tra-dução das obras completas de Freud para o francês, La-planche faz uma nova escolha: traduz Vorstellungsrepräsen-tanz por “représentance de représentation”, que em portuguêsseria “representância de representação”, pensando ematender à diferença que existe em alemão entre Repräsen-tant e Repräsentanz; o primeiro designando o “repre-sentante” e o segundo designando melhor a “agência re-presentante” ou a “representância” (palavra não diciona-rizada em português).

Essa hesitação quanto à tradução adequada é expres-são da própria complexidade do conceito freudiano. Oproblema é de fato conceitual e não terminológico. E con-vém assinalar que as dificuldades apontadas quanto à tra-dução dizem respeito apenas à discordância entre doiscomentadores da obra de Freud, Lacan e Laplanche, ambosfranceses; sequer apontei as divergências entre outros co-mentadores, também franceses, e muito menos as que po-demos encontrar entre os comentadores e tradutores deFreud para o inglês, o italiano, o espanhol, para ficar naslínguas mais próximas ou mais utilizadas pelo leitor bra-sileiro.

O problema poderia ser atenuado se não fosse o fatodo próprio Freud empregar outros termos como se fossem

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sinônimos de Vorstellungsrepräsentanz, nem sempre preci-sando se há alguma diferença de significado. Poderíamoscomeçar com o próprio (Vorstellungs-) Repräsentanz, grafa-do de forma diferente, tal como aparece pela primeira vezno artigo O recalque. Encontramos ainda Vorstellungs-Re-präsentanz, os dois vocábulos separados por hífen; outrasvezes, Vorstellungsrepräsentanz des Triebes; ou ainda Trieb-repräsentanz, psychische Repräsentanz, psychischer Repräsen-tant, ou pura e simplesmente Vorstellung, Vertretung, Ver-treter, Repräsentation. Sem contar a sutil diferença entre aterminação em z ou em t, de Repräsentanz e Repräsentant,no original alemão.

VorstellungsrepräsentanzouVorstellungs-Repräsentanz

Representante-representação ourepresentante-representativo.

Triebrepräsentanz ouTriebrepräsentant

Representante-pulsional ou representante dapulsão. (Freqüentemente utilizado por Freudcomo sinônimo de Vorstellungsrepräsentanz)

Psychische Repräsentanzou psychischerRepräsentant

Representante psíquico.(Empregado às vezes para designar a pulsãocomo representante do corpo no psiquismo)

Vorstellung Representação.(Empregado às vezes com sentido amplopara designar a representação em geral, eoutras vezes para designar a parte ideativaou imagética da Vorstellungsrepräsentanz)

Affekt Afeto.(Designa, em geral, a parte intensiva ouquantitativa do Triebrepräsentanz, a outraparte sendo a Vorstellung)

Repräsentanz Representante ou representância ou aindaagência representante.

Repräsentant Representante.

Repräsentation Representação.(Empregado às vezes no lugar de Vorstellung)

Vertretung Representante ou representância.(Empregado às vezes no lugar deRepräsentanz)

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Antes de entrarmos na discussão propriamente teóricado conceito, julgamos conveniente listar (ver quadro na pá-gina anterior) os termos empregados por Freud e seus cor-respondentes em português, a fim de facilitar a discussão.

Para além das querelas relativas ao emprego de um oude outro termo, ou ainda quanto à tradução mais adequa-da, o que é importante ressaltar é que o conceito de Vor-stellungsrepräsentanz constitui-se como um conceito espe-cificamente psicanalítico, não se confundindo e nem sendoredutível às múltiplas acepções que os termos Vorstellunge Repräsentation adquiriram no vocabulário filosófico oumesmo no vocabulário psicológico. E concordemos ou nãocom a tradução feita por Lacan, não posso deixar de assi-nalar que coube a ele o mérito de ter trazido para o pri-meiro plano da discussão teórica em psicanálise o conceitode Vorstellungsrepräsentanz, além de tê-lo apontado comoo equivalente freudiano de seu conceito de significante.

Fazendo referência aos textos de Freud de 1915, sobreo recalque e sobre o inconsciente, Lacan declara que “nãofica nenhuma ambigüidade sobre este ponto: é o significan-te o que é recalcado, pois não há outro sentido a se darnestes textos à palavra Vorstellungsrepräsentanz”.43 Portan-to, não apenas destaca a importância do conceito nos textosfreudianos, coisa que até então ninguém fizera, como as-sinala a originalidade de Freud, mesmo quanto a um con-ceito que ele próprio Lacan e os lacanianos em geral con-sideram central: o de significante.

Pulsão e representação.

Desde o Projeto de 1895, Freud vinha acentuando o fato deque o aparato psíquico se contrapõe a algo que, embora

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43 Lacan, J., Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 714 (O destaque em “signifi-cante” é meu).

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exterior, faz sua presença no interior do aparato e emfunção do qual ele se constitui. Na terminologia do Projeto,esse algo é a Q (Quantität). Ainda no texto de 1895, eledistingue a Q exógena, proveniente dos estímulos exter-nos, da Q endógena, proveniente do interior do corpo.Enquanto a relação do sistema ψ com as Q exógenas se fazindiretamente via sistema ϕ, a relação com as Q endógenasé direta, o que as transforma na “mola pulsional do meca-nismo psíquico”(die Triebfeder des psychischen Mechanis-mus).44 O emprego dos termos “mola pulsional” (Triebfeder)e “excitação pulsional” (Triebreiz), assim como “pulsão”(Trieb), para designar a fonte de estimulação endógena,entendida como uma força constante, é já indicativo deuma concepção de aparato psíquico concebido como umaparato cuja função é dominar essa força constante queameaça invadi-lo.

Vinte anos mais tarde, em Para introduzir o narcisismo,Freud reafirma que “nosso aparato anímico deve ser con-cebido como um dispositivo cujo encargo é dominar asexcitações que de outra forma provocariam sensações pe-nosas ou efeitos patógenos”.45

Esta é a idéia que está presente desde o primeiro vo-lume desta Introdução: a do aparato psíquico entendidocomo um aparato de captura e transformação do dispersopulsional. Assim, se de um lado temos pulsões anárquicas,de outro lado temos o aparato como o lugar da ordem,capturando e transformando as pulsões segundo uma or-dem que é a da linguagem. No entanto, assim formulada,pode ficar a impressão de que o aparato psíquico e aspulsões surgem independentemente um do outro e que

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44 AdA, p. 324; AE, 1, p. 360; ESB, 1, p. 419.45 AE, 14, p. 82; ESB, 14, p. 102; GW, 10, p. 152.

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apenas num segundo momento se colocam um frente aooutro, opondo-se caos pulsional e ordem psíquica.

Pulsão e representação constituem-se na relação umaà outra, simultaneamente, sem que seja possível imaginar-mos cada uma delas isoladamente, embora se contrapo-nham como duas exterioridades. Nessa relação entre oaparato psíquico e a fonte somática de estimulação é apulsão que funciona como elemento de articulação. Estepode ser um dos sentidos da afirmação freudiana de quea pulsão é um conceito fronteiriço entre o anímico e osomático. Por um lado ela aponta para o corpo, entendidocomo fonte de estimulação constante e como medida deexigência de trabalho imposta ao anímico; por outro lado,aponta para o psíquico, enquanto sede das representações.E isso exige um esclarecimento maior.

Quando dizemos que o aparato anímico é um aparatode captura e que ele captura o diverso pulsional, não ficaimediatamente claro o que pretendemos designar por “di-verso pulsional”. A fonte da pulsão é o corpo, e o corpoem questão é um corpo vivo, logo organizado. É de sesupor, portanto, que esse corpo organizado, concebidocomo fonte das pulsões, imponha a elas sua organização;é de se supor também que as pulsões recebam do corposuas determinações primeiras. No entanto, a originalidadede Freud consiste exatamente em não levar em considera-ção essa ordem corporal na determinação das pulsões. Nãoé o corpo, enquanto totalidade organizada, que importaquando ele propõe o conceito de pulsão, razão pela qualafirma que “o conhecimento exato das fontes pulsionaisnão é invariavelmente necessário para fins de investigaçãopsicológica”.46

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46 AE, 14, p. 119; ESB, 14, p. 144; GW, 10, p. 216.

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Ora, se a psicanálise pode prescindir do estudo dasfontes pulsionais, isto é, do corpo enquanto fonte de estí-mulos, é porque a ordem ou a estrutura desse corpo nãoé determinante da natureza, do objeto ou do alvo daspulsões. Como de fato não o é, conforme Freud estabeleceem Pulsões e destinos de pulsão. Por fonte da pulsão, eleentende um processo somático interior a um órgão ou aqualquer outra parte do corpo. Claro está que o corpo sópode ser apontado como fonte de estímulos na medida emque seja um corpo vivo, mas para o que diz respeito àpulsão não importa a ordem desse organismo vivo. A pul-são não porta, nela mesma, qualquer indicação sobre essaordem, assim como a ordem do corpo não assinala para apulsão qual deve ser seu objeto ou como atingir o seu alvo.Não é que Freud negue uma ordem corporal, ele apenasnão considera essa ordem como pertinente para o que dizrespeito à pulsão. Os estímulos corporais são tomadosenquanto pura dispersão, sem que um tenha a ver com ooutro, sem formarem um conjunto estruturado. Caos pul-sional.

Mas a pulsão não seria pulsão se não fosse o aparatopsíquico, entendido como um aparato de linguagem (ouse preferirmos, como um aparato simbólico). O aparatopsíquico, desde o começo, se constitui frente a um outroaparato psíquico, sendo cada um deles também um apa-rato de linguagem. Assim, quando o aparato captura odisperso pulsional transformando-o e impondo-lhe umaordem, essa ordem é a ordem da linguagem. O que resultadessa captura e dessa transformação é o que Freud vaidenominar Vorstellungsrepräsentanz.

A pulsão como Repräsentant.

Ao definir a pulsão como um conceito limítrofe, Freud adefine também como “um representante [Repräsentant] psí-

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quico dos estímulos provenientes do interior do corpo”.47

O que temos aqui é a diferença entre Repräsentant e Reprä-sentanz.

Uma coisa é considerarmos a pulsão como repre-sentando o corpo no psiquismo, outra coisa é sua “repre-sentância” psíquica, isto é, o fato dela ser representadapsiquicamente pelos seus representantes. A pulsão comoum “representante psíquico dos estímulos” é um Reprä-sentant, mais especificamente um psychischer Repräsentant,portanto ela própria um representante e não o que é re-presentado. Esse modo de definir a pulsão nos leva a con-siderá-la como psíquica, consideração que entra em con-flito com a idéia de que pulsão e aparato psíquico se con-trapõem como duas exterioridades. No entanto, no artigoO inconsciente, Freud afirma que uma pulsão jamais podeser objeto do consciente ou do inconsciente, que mesmoneste último ela não pode ser representada de outra formaa não ser por uma representação (die Vorstellung repräsen-tiert sein).48 E neste caso teríamos que considerá-la comoexterna ao aparato psíquico.

É isto que leva Freud, no artigo de 1915, a considerá-lacomo um conceito fronteiriço e a falar no aspecto biológicoe no aspecto anímico: “Se agora, do aspecto biológico,passamos à consideração da vida anímica, a pulsão nosaparece como um conceito fronteiriço entre o anímico e osomático [Wenden wir uns nun von der biologischen Seite herder Betrachtung des Seelenlebens zu, so erscheint uns der“Trieb” als ein Grenzbegriff zwischen Seelischem und Somatis-chem].”49 A pulsão pode ser considerada, pois, sob umduplo aspecto: o biológico e o anímico. Por “aspecto bio-

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47 AE, 14, p. 117; ESB, 14, p. 142; GW, 10, p. 214.48 AE, 14, p. 173; ESB, 14, p. 203; GW, 10, p. 276.49 AE, 14, p. 117; ESB, 14, p. 142; GW, 10, p. 214.

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lógico” ou “ponto de vista biológico” (von der biologischenSeite her), ela é assimilada à excitação somática endógenae, nesse caso, Freud pode afirmar que ela funciona como“um estímulo para o psíquico [ein Reiz für das Psychis-che]”.50 Estímulo para o psíquico e não estímulo psíquico.Algo, portanto, que do exterior faz uma exigência de tra-balho ao aparato. E quando a consideramos do ponto devista anímico, o que está sendo enfatizado é o modo delase fazer presente no psiquismo, isto é, enquanto Triebreprä-sentanz. O conceito de pulsão aponta, portanto, para esseduplo registro — o somático e o anímico —, o que faz comque Freud afirme seu estatuto de conceito fronteiriço. Oque poderia ser esquematizado, provisoriamente, da se-guinte forma:

Somático(von der biologischen

Seite her)

Triebreiz

excitação somáticaendógena

Conceito fronteiriço(Grenzbegriff)

← Pulsão →(Trieb)

Psíquico(Seelenleben)

Triebrepräsentanz

Vorstellung Affekt

Enquanto conceito fronteiriço, a pulsão articula o so-mático e o psíquico. O que temos de levar em consideraçãoaqui, sob pena de desvirtuarmos a concepção freudiana, éque nela não é o corpo em sua totalidade (e muito menosenquanto totalidade organizada) que está sendo conside-rado, mas o sistema nervoso em particular.

No Projeto de 1895, Freud se serve do termo Reiz, exci-tação, estímulo, para em seguida distinguir o Reiz cujaproveniência é o mundo externo, do Reiz proveniente do

↓↓

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50 AE, 14, p. 114; ESB, 14, p. 138; GW, 10, p. 211.

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interior do próprio corpo. Em Pulsões e destinos de pulsãoele pergunta pelo tipo de relação que a pulsão mantémcom o estímulo (Reiz), e responde que “nada nos impedesubsumir o conceito de pulsão sob o de estímulo: a pulsãoseria um estímulo para o psíquico [der Trieb sei ein Reiz fürdas Psychische]”.51 No entanto, para que possamos subsu-mir o conceito de pulsão sob o de estímulo, é necessárioque façamos a distinção entre o Reiz proveniente do mun-do exterior e o Reiz proveniente do interior do próprioorganismo. Apenas este último deve ser denominado Trieb-reiz.

A questão principal é como se opera a transformaçãodesse Triebreiz, da pulsão considerada “do ponto de vistabiológico”, em seus representantes psíquicos. Se insisti tan-to na tese de que o aparato psíquico é um aparato decaptura e de transformação das Qη, é porque esse Triebreizé não apenas capturado, como é também transformado emalgo distinto dele mesmo.

A captura, já vimos, faz-se inicialmente pelo investi-mento colateral e pela ligação, mecanismos que constituemo contra-investimento como forma primeira de defesa con-tra a invasão das Qη. No entanto, uma vez capturada, aexcitação não é apenas conduzida, sem qualquer modifica-ção, em direção à descarga. Ela é transformada. E aqui aimagem da pulsão como “alimento” do psiquismo adquirealguma adequação. Tal como o organismo transforma oalimento ingerido, o aparato anímico transforma a pulsãoque o alimenta. Do ponto de vista energético, trata-se deexplicar a transformação da pulsão entendida como ener-gia somática, o Triebreiz, em energia psíquica.

No Projeto, Freud afirma que os estímulos endógenos(endogenen Reizen) são de natureza intercelular e gerados

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51 AE, 14, p. 114; ESB, 14, p. 138; GW, 10, p. 211.

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continuamente, mas só periodicamente transformam-seem estímulos psíquicos (psychischen Reizen). A explicaçãofornecida nesse texto de 1895 é de que se faz necessáriauma acumulação de Q para que possam ser rompidas asresistências em ψ. O pressuposto por Freud é que as Q denatureza intercelular, consideradas isoladamente, são depequena magnitude e que em seu caminho em direção aosistema y não têm suficiente intensidade para romper asbarreiras de contato que lhe oferecem resistência. Essa re-sistência é rompida por efeito da somação (Summation) dasQη, e somente a partir deste ponto é que passam a seconstituir como estímulos psíquicos.

Não creio que se possa inferir do exposto que Freudesteja defendendo a idéia de que pela somação uma ener-gia física se transforma em energia psíquica. Mesmo por-que, se fosse este o caso, ficaria com um problema maiorainda que seria o de explicar em que consiste essa energiapsíquica. O que está em questão não é a natureza daspulsões ou da energia psíquica, mas seu modo de trans-formação. Em Para introduzir o narcisismo52 e em O eu e oisso,53 Freud admite a possibilidade de uma energia deslo-cável, “em si indiferente” quanto a ser ou não sexual, queé identificada como energia psíquica. No Projeto, quandose referia aos estímulos pulsionais, considerava-os comoQ (Quantität), e quando muito distinguia entre Q e Qη, asprimeiras de origem exógena e as segundas de origemendógena, sem, contudo, assinalar qualquer diferença qua-litativa entre elas. A forma delas se exercerem era diferente— momentane Stosskraft para as primeiras e konstante Kraftpara as segundas —, mas não sua natureza.

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52 AE, 14, p. 76; ESB, 14, p. 94; GW, 10, p. 145.53 AE, 19, p. 45; ESB, 19, p. 60; GW, 13, p. 273.

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Não se trata, portanto, de explicar como uma energiafísica se transforma em energia psíquica, mas como a pul-são, em si mesma indeterminada, se faz presente no psi-quismo de forma diferenciada. No texto sobre as afasias,Freud defende a tese de que os processos fisiológico epsicológico não estão numa relação de causalidade, isto é,o psicológico não é causado pelo neurológico (o que sig-nifica dizer que o processo neurológico não cessa, para quetenha início o processo psicológico), mas que o processopsíquico é paralelo ao processo fisiológico, “a dependentconcomitant”.54 Essa idéia é mantida ao longo de sua obra;não há produção do psíquico pelo fisiológico ou vice-ver-sa, mas concomitância entre os dois registros. Assim, seuma determinada transformação se opera no plano darepresentação, deve se operar uma correspondente trans-formação no plano neurológico, sem contudo uma ser cau-sada pela outra. Isto significa que ao complexo processoda fala, exclusivo do humano, deve corresponder um com-plexo processo neurofisiológico capaz de funcionar comosuporte material das transformações ideativas.

O tipo de paralelismo defendido por Freud em seusprimeiros textos visa muito mais à recusa da tese do psi-cológico como um epifenômeno do fisiológico do que auma profissão de fé num paralelismo psicofisiológico.Tampouco, seu paralelismo é um isomorfismo como o pro-posto mais tarde pela teoria da Gestalt (particularmentepor W. Köhler).55 Freud não é um gestaltista e sua hipótesenão consiste em afirmar um paralelismo de estruturas.Apesar de compartilhar com os gestaltistas o repúdio à

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54 Aphasies, p. 105.55 Köhler, W., Die physischen Gestalten in Ruhe und im stationären Zu-stand: eine naturphilosophische Untersuchung, Braunschweig, F. Viewes,1920; e The Place of Value in a World of Facts, N. York, Livering Publis-hing, 1938, cap. 6: “On Isomorphism”.

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teoria das localizações cerebrais e à chamada hipótese daconstância, permanece pensando em termos elementaris-tas. As impressões e os traços são por ele concebidos comoelementares; a estrutura que o fenômeno psíquico possaapresentar não decorre da realidade externa ou do proces-so nervoso, mas da submissão desses elementos à tramada linguagem. O princípio estruturante é a linguagem. Sehá alguma ordem fora do aparato psíquico, essa ordemnão é imposta ao aparato. As fontes exógena e endógenafornecem apenas elementos dispersos. Podemos, até mes-mo, apontar algumas coincidências entre o isomorfismoda teoria da Gestalt e o paralelismo freudiano; podemos,ainda, argumentar que Freud não dispunha, até 1915, deuma teoria da Gestalt prêt-à-porter, mas o fato é que, mesmoque dispusesse, não concordaria com os fundamentos fe-nomenológicos dessa teoria.

Voltando à questão da transformação da energia somá-tica em energia psíquica, o que podemos dizer é que essatransformação não faz com que energia somática vire ener-gia psíquica, numa espécie de metamorfose espiritualista,mesmo porque “energia psíquica” é um termo ambígüo,tanto podendo designar a energia (física) necessária parao funcionamento psíquico, como uma energia que, nãosendo física, teria que ser concebida como anímica ou es-piritual. Não creio que em nenhum momento o materia-lista Freud admitisse algo desse tipo. Sempre que fala emtransformação de energia, o que está em jogo é a energiafísica. Assim, uma idéia intensa ou uma representaçãofortemente investida de afeto não é uma idéia carregadade uma energia especial, chamada energia psíquica, masuma idéia à qual corresponde, em termos de sistema ner-voso, um processo excitatório intenso.

Quando, por exemplo, Lacan afirma que o Triebreiz éaquilo pelo que certos elementos são triebbesetzt, investidospulsionalmente, e que este investimento nos coloca noterreno da energia, ressalta que se trata de energia poten-

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cial e não de energia cinética, pois “na pulsão, não se tratade modo algum ... de algo que vai se regrar pelo movimen-to”.56 Trata-se, portanto, de algo que vai ser pensado emtermos de energia cinética ou de energia potencial, modosde energia física; não está em questão nenhum tipo deenergia não-física. O conceito de energia está indissocia-velmente ligado ao conceito de matéria. A idéia de umaenergia espiritual, ou mesmo de uma energia psíquica, nãopassa de metáforas.

Esta é a razão pela qual Freud aponta o corpo como afonte da pulsão. A energia do Triebreiz é energia somática(física) e, quando falamos que ela se transforma em energiapsíquica, estamos apontando para o lugar da repre-sentância da pulsão. No termo composto “energia psíqui-ca”, o vocábulo “psíquico” não é adjetivo de “energia”, masindica apenas uma relação de dependência (a dependentconcomitant) entre a energia física e seu correlato psíquico.

Não se trata de pregar uma concepção fisicalista dapsicanálise, mas de manter presente o fato de que o aparatopsíquico proposto por Freud tem como correlato físico osistema nervoso. Isto não significa, de forma alguma, queo nível explicativo do processo psíquico seja o neurológico;Freud, mais do que ninguém, construiu um modelo expli-cativo para os processos psíquicos que opera com concei-tos especificamente psicanalíticos, o que não implica, con-tudo, uma negação do substrato físico do aparato psíquico.O Projeto de 1895 é, a este respeito, exemplar. Ao mesmotempo em que nos fala de neurônios e de energia quecircula pelos neurônios, nos fala também de repre-sentações e de investimentos afetivos. Trata-se de diferen-tes registros, irredutíveis um ao outro: o registro neuroló-gico e o registro psicológico. O sentido de um chiste, de

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56 Lacan, J., O seminário, Livro 11, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979,p. 156-57.

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um ato falho ou de um sonho não é explicável pela neu-rologia, da mesma forma que a ação dos neurotransmisso-res não é explicável pelos conceitos psicanalíticos, apesardeles se implicarem mutuamente.

Há ainda um outro aspecto, relativamente ao empregodo termo “energia psíquica”, que não deve ser desprezadoquando tomamos como referência o Projeto de 1895: emnenhum momento desse texto Freud emprega o termo“energia psíquica”, mas sim o termo “energia ψ“, isto é,energia que circula no sistema ψ e não energia psíquica.Não nos esqueçamos que o sistema ψ é concebido porFreud como um sistema de neurônios. Sendo assim, “ener-gia ψ“ é energia circulante pelo sistema ψ de neurônios enão um tipo de energia anímica distinta da energia física.Na verdade, são poucos os momentos em que Freud fazuso do termo psychische Energie e, quando o faz, empregao termo no plural (psychischen Energien), além de especifi-car que se trata das “energias psíquicas das pulsões” (derpsychischen Energien der Triebe).57

O problema desapareceria se considerássemos “apare-lho psíquico” e “sistema nervoso” como sinônimos. Nessecaso, “energia psíquica” passaria a ser sinônimo de “ener-gia nervosa”, e a questão da transformação da energiaficaria restrita ao sistema nervoso, não nos obrigando apensar a metamorfose da energia física em energia psíqui-ca. Apesar de Freud afirmar, ao apresentar seu modelo deaparelho psíquico no capítulo 7 de A interpretação do sonho,que se manteria estritamente “no terreno psicológico”, 58

não são poucas as vezes que encontramos em seus comen-

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57 AE, 14, p. 148; ESB, 14, p. 177; GW, 10, p. 256 (Em duas passagensde Para introduzir o narcisismo, emprega “energias psíquicas” claramen-te para designar a energia sexual [libido] e a energia das pulsões doeu [AE, 14, p. 74, 76; ESB, 14, p. 92, 94; GW, 10, p. 141, 143]).58 AE, 5, p. 529; ESB, 5, p. 572; GW, 2/3, p. 541.

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tadores uma clara decisão de identificar os dois registros.Esta é pelo menos a tendência dominante quando o textoem questão é o Projeto de 1895 (embora, repito, em nenhummomento Freud faça uso da expressão “aparelho psíqui-co”).

Quando, por exemplo, Michel Tort, num artigo publi-cado nos Cahiers pour l’Analyse, comenta a questão da re-presentação da pulsão no psiquismo, escreve: “Para alémde um certo acúmulo de energia somática (Trieb), esta setransforma em energia psíquica (Antrieb) no sistema nervosoou aparelho psíquico.”59 Sistema nervoso “ou” aparelho psí-quico. Podemos considerar que, em se tratando de umcomentário sobre o Projeto, esta identificação é compreen-sível. Afinal, o texto começa com a afirmação de que seupropósito é “representar os processos psíquicos como es-tados quantitativamente determinados de partículas ma-teriais especificáveis”;60 estas partículas são os neurônios,pelos quais circula a Q, energia do sistema nervoso central.O aparelho que Freud descreve no Projeto é, portanto, umaparelho neurônico, e se o denominamos de “aparelhopsíquico”, a equiparação com o sistema nervoso torna-selegítima.

Mas, se o texto começa descrevendo neurônios e ener-gia que ocupam estes neurônios, aos poucos passa a des-crever representações e afetos ligados a estas repre-sentações. E Freud não confunde representação com neu-rônio, como tampouco pensa que a representação habita oneurônio. Neurônios e representações pertencem a regis-tros diferentes do discurso freudiano. Pouco antes de es-crever o Projeto, Freud havia afirmado que o processo psi-

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59 Tort, M., “A propos du concept freudien de ’Representant’ (Reprä-sentanz)”, in: Cahiers pour l’Analyse, 5, Paris, Cercle d’Epistémologiede l’École Normale Supérieure, 1966. (O grifo é meu).60 AE, 1, p. 339; ESB, 1, p. 315; AdA, p. 305.

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cológico e o processo neurofisiológico são concomitantesdependentes, são processos paralelos, não havendo rela-ção de causalidade entre eles.61 Sobre esta afirmação re-pousa sua teoria sobre as afasias e sua concepção do apa-relho de linguagem, e ela continua válida quando elaborao modelo teórico do aparelho psíquico em A interpretaçãodo sonho. Se o aparelho psíquico pudesse ser reduzido aosistema nervoso, não haveria razão para se construir umateoria psicanalítica: a neurologia ou a neurobiologia ouainda a biologia molecular poderiam dar conta do recado.

O conceito de pulsão foi elaborado para tentar respon-der a essa questão. Na fronteira do somático com o psíqui-co, a pulsão articula esses dois registros. Enquanto Trieb-reiz, ela é excitação somática de origem endógena. Conce-bida como Reiz, excitação, ela é algo que se passa no regis-tro do sistema nervoso. Mas, por outro lado, ela só se fazpresente no psiquismo pelos seus representantes, os Trie-brepräsentanzen. Daí seu caráter de conceito fronteiriço, aomesmo tempo somático e psíquico, sem ser inteiramenteredutível a um ou a outro.

A complexidade do conceito não se esgota porém nesseaspecto. A pulsão, como já vimos, é não-natural. Isto querdizer que, mesmo quando a consideramos em seu registrosomático como excitação nervosa, ela não visa atender àsnecessidades do organismo considerado como um todo,não é adaptativa, não busca o equilíbrio do organismo,mas impõe ao sistema nervoso um modo de funcionamen-to independente do atendimento às funções biológicas. Nohomem, o sistema nervoso tem que ser capaz de respondera exigências que em nada correspondem às necessidadesbiológicas ou que até mesmo as colocam em causa. Pornão ter objeto próprio e por não poder atingir plenamente

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61 Aphasies, p. 105.

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seu alvo, a pulsão impõe ao sistema nervoso ou ao aparatoneurônico um modo de funcionamento distinto daqueleque caracteriza o de um animal desprovido de linguagem.

O Vorstellungsrepräsentanz.

Enquanto no artigo Pulsões e destinos de pulsão o que estáem pauta é a pulsão ela própria, seus elementos compo-nentes e seus destinos, no artigo O recalque aparece umconceito que, embora já estivesse presente dissimulada-mente nos textos freudianos sob a denominação geral deVorstellung, faz aqui sua primeira aparição com a denomi-nação que lhe é própria: trata-se do Vorstellungsrepräsen-tanz. Como o aspecto terminológico e os problemas detradução já foram discutidos no início deste capítulo, voume ater aqui apenas ao aspecto conceitual.

Uma pulsão, diz Freud, nunca pode ser objeto da cons-ciência ou mesmo do inconsciente, só pode sê-lo a repre-sentação que é seu representante ... e cada vez que falamos deuma moção pulsional inconsciente ou de uma moção pulsionalrecalcada é por um descuido inofensivo de expressão. Não pode-mos aludir senão a uma moção pulsional cujo representante-re-presentação (Vorstellungsrepräsentanz) é inconsciente.62

O Vorstellungsrepräsentanz é uma representação ou umconjunto de representações investido pulsionalmente e,sob este aspecto, é um delegado da pulsão no psiquismo,um Triebrepräsentanz. Uma pulsão não se faz presente nopsiquismo a não ser pelos seus Triebrepräsentanzen. Portan-to, o Vorstellungsrepräsentanz é um Triebrepräsentanz.

Mas o Vorstellungsrepräsentanz, como o próprio nomeindica, é uma entidade de dupla face. Enquanto Vorstel-lung, é uma representação ou conjunto de representações,

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62 AE, 14, p. 173; ESB, 14, p. 203; GW, 10, p. 276.

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uma imagem complexa; enquanto Repräsentanz, é uma for-ma de presentificação da pulsão no psiquismo, algo decaráter puramente intensivo e não ideativo como na Vor-stellung. O que nos obriga a desdobrar a unidade do Vor-stellungsrepräsentanz em seus dois elementos componentes:a Vorstellung, o componente ideativo propriamente dito, eo Affekt, o componente intensivo.

Conceitofronteiriço Psíquico

Trieb →

Vorstellung

Vorstellungsrepräsentanz

Affekt

Anteriormente ao artigo O recalque, Freud empregavaa palavra Vorstellung para designar tanto a representaçãoem geral, independentemente dela ser consciente ou in-consciente, como para designar as representações incons-cientes. A distinção, presente desde o texto sobre as afasias,entre a representação-objeto (Objektvorstellung) e a repre-sentação-palavra (Wortvorstellung), em nada nos esclarecequanto à função de representância das pulsões. É apenasem 1915, no artigo sobre o recalcamento, que Freud intro-duz a expressão “psychische (Vorstellungs-) Repräsentanz desTriebes”,63 que teve seu emprego simplificado para “Vor-stellungsrepräsentanz”. A Vorstellung, parte integrante doVorstellungsrepräsentanz, não se confunde com a Vorstellungenquanto designa a representação em geral. A diferençaestá em que apenas a primeira é considerada como Trieb-repräsentanz, como representante pulsional. Mas há ainda

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63 AE, 14, p. 143; ESB, 14, p. 171; GW, 10, p. 250.

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a outra parte componente do Vorstellungsrepräsentanz que,apesar de não nomeada no termo composto forjado porFreud, é também um Triebrepräsentanz: o Affekt, ou comoprefere ele às vezes, Affektbetrag (quantum de afeto).

O Affekt, enquanto parte componente do Vorstellungs-repräsentanz, é a parte intensiva, à diferença da Vorstellungque é a parte significativa. Sob este aspecto, representa apulsão mais diretamente do que a Vorstellung. A excitaçãopulsional (Triebreiz) encontra no afeto uma expressão dire-ta: o quantum de excitação se expressa psiquicamente soba forma de um quantum de afeto, algo que, enquanto puraintensidade, permanece exterior à trama significante. Estaé a razão pela qual Freud (e posteriormente Lacan) vaiconsiderá-lo como sendo da ordem do sinal e não da or-dem do significante. Quando relaciona o afeto à angústiae faz desta última angústia sinal, o que Freud está querendoressaltar é o fato de que a angústia não está ligada a ne-nhuma representação, sendo portanto pura expressão daintensidade pulsional, ficando fora da trama significante.

Isto, porém, se consideramos o Affekt isoladamente.Mas se o consideramos enquanto parte integrante do Vor-stellungsrepräsentanz, é o que confere sua dimensão inten-siva, marcando assim o caráter de Repräsentanz da Vorstel-lung. Sem o Affekt, o Vorstellungsrepräsentanz ficaria redu-zido à sua dimensão significativa, esvaziada de intensida-de; por outro lado, sem a Vorstellung, a representância dapulsão seria reduzida à pura circulação de intensidadessem qualquer caráter significante.

A Vorstellung e o Affekt são, portanto, os dois “delega-dos” da pulsão no psiquismo. Do ponto de vista econômi-co, a Vorstellung é vista como sendo da ordem do investi-mento, enquanto que o Affekt é considerado da ordem dadescarga: “Toda a diferença reside em que as repre-sentações são investimentos — no fundo, de traços mnêmi-cos —, enquanto que os afetos e sentimentos correspon-

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dem a processos de descarga cujas exteriorizações últimassão percebidas como sensações.”64

O fato das Vorstellungen corresponderem a investimen-tos lhes confere um status privilegiado no campo da repre-sentação, posto que é o investimento proveniente da fontepulsional que faz uma exigência de trabalho ao aparatopsíquico, responsável, portanto, pelo trabalho propria-mente criativo do aparato, enquanto que o afeto, por serda ordem da descarga, se perderia consumindo-se65. Noentanto é o afeto que exprime de forma mais direta ocompromisso da pulsão com o corporal, enquanto que asVorstellungen formam a rede significante própria do Ics.Desvinculado da Vorstellung, o afeto não é consideradocomo significante mas como sinal, modo de expressão dapulsão bruta não capturada e submetida à cadeia signifi-cante. Ampliando-se o esquema apresentado acima, tere-mos o seguinte:

SomáticoConceito

fronteiriço Psíquico

Triebreiz Trieb

Vorstellungsrepräsentanz (Imagem/traço + intensi-

dade/investimento*)

Triebrepräsentanz

Affekt (Intensidade/descarga)

* Intensidade/investimento: resto do Affekt que originalmente estavaligado à Vorstellung e que em decorrência do recalcamento permaneceucomo energia de investimento (libido).

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64 AE, 14, p. 174; ESB, 14, p. 204; GW, 10, p. 277 (o grifo é meu).65 Cf. Assoun, P.-L., Introduction à la métapsychologie freudienne, Paris,PUF, 1993, p. 73.

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O que articula os traços mnêmicos entre si, forman-do as Bahnungen (as facilitações/dificultações), é o inves-timento, e este investimento corresponde à dimensão in-tensiva dos Vorstellungsrepräsentanzen, sendo, portanto,parte do Affekt que originalmente estava ligado à repre-sentação. O investimento não é um determinado quantumde afeto que ocupa uma representação, mas aquilo que ligaos traços dispersos, formando a trama dos Vorstellungsre-präsentanzen. A se admitir como válido o esquema acima,teremos a libido como uma modalidade da intensidade e nãocomo algo qualitativamente distinto desde a fonte corpo-ral, o que, aliás, está de acordo com Freud, quando afirmaque “os investimentos energéticos que o eu dirige aos ob-jetos de suas aspirações sexuais, nós os denominamos ‘li-bido’ ”.66

A Vorstellung, na medida em que não seja mais consi-derada como representação de coisa mas como repre-sentação-coisa, isto é, na medida em que seu caráter signi-ficante resulte não da relação que mantém com a coisaexterna mas com a relação que mantém com as demaisVorstellungen, passa a se comportar, em conjunto com asdemais, não como um sistema de sinais, mas como umalinguagem. Natureza de significante para as Vorstellungen,natureza de sinal para os Affekte, esta é uma das maneiraspelas quais podemos pensar essa dupla de representantespulsionais. O “inconsciente estruturado como uma lingua-gem” é a versão lacaniana da trama dos Vorstellungsreprä-sentanzen freudiana.

Isso não é simplesmente Vorstellung, mas, como escreveFreud, em seu artigo sobre o inconsciente, Vorstellungs-repräsentanz, o que constitui a Vorstellung como um ele-

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66 AE, 16, p. 377; ESB, 16, p. 483; GW, 11, p. 430.

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mento associativo, combinatório. Desse modo, o mundo daVorstellung é desde então organizado segundo as possi-bilidades do significante como tal (...) e essas Vorstellun-gen gravitam, permutam-se, modulam-se segundo as leisque vocês podem reconhecer, se seguem meu ensino,como as leis mais fundamentais do funcionamento dacadeia significante.67

O inconsciente é estruturado como uma linguagem?

Afirmar que o Vorstellungsrepräsentanz freudiano corres-ponde ao significante lacaniano, mesmo que esta afirmaçãoparta do próprio Lacan, não significa que com ela o con-ceito freudiano torne-se, repentinamente, claro e distinto,livre de toda e qualquer obscuridade.

O princípio lacaniano de que o inconsciente é estrutu-rado como uma linguagem tem sua origem, e recebe seuaval lingüístico, a partir dos estudos do lingüista RomanJakobson sobre a afasia. Para ele, todo distúrbio afásicopode ser reduzido a dois tipos básicos: ou são distúrbiosda similaridade (metafóricos) ou são distúrbios da conti-güidade (metonímicos). Foi o próprio Jakobson quem re-lacionou os pólos metafórico e metonímico descritos pelalingüística com a condensação e deslocamento apontadospor Freud como sendo os mecanismos básicos do trabalhodo sonho. Aliás, o que está insinuado, desde o texto freu-diano sobre as afasias, e tornado explícito em A interpreta-ção do sonho, é que os mecanismos apontados como respon-sáveis pelo trabalho do sonho não se restringem ao sonhoe ao chiste, mas são considerados por Freud como os traçosdistintivos de todo processo primário e, portanto, como

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67 Lacan, J., O seminário, Livro 7, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, p.80-81.

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mecanismos fundamentais do inconsciente. Lacan reiteraa força da tese freudiana, fazendo da metáfora e da meto-nímia não apenas mecanismos do inconsciente, mas meca-nismos formadores do próprio inconsciente, no recalqueoriginal.

A assimilação do par condensação/deslocamento aopar metáfora/metonímia tem por base o fato de que nacondensação temos uma sobreimposição dos significantesdando origem à metáfora, enquanto que no deslocamentotemos uma substituição de significantes com base na con-tigüidade, que pode ser equiparada à metonímia. Assim,o efeito de distorção produzido pelo trabalho do sonho,através dos mecanismos de condensação e deslocamento,é análogo ao efeito da metáfora e da metonímia na lingua-gem, o duplo sentido, isto é, o fato dela dizer outra coisadiferente daquilo que diz à letra.

Mas se do ponto de vista da lingüística esse efeito dealteração do sentido, devido à metáfora e à metonímia, éclaramente decorrente da substituição de significantes queapresentam uma relação de similaridade (no caso da me-táfora) e da substituição de significantes que mantêm re-lações de contigüidade (na metonímia), do ponto de vistapsicanalítico a distinção entre os dois mecanismos não étão clara. O próprio Lacan não os distingue senão em casosmuito precisos, sendo que as afirmações de que “o desejoé uma metonímia” e “o sintoma é uma metáfora” devemser consideradas apenas como uma orientação geral doslaços associativos em um ou outro sentido.

Uma das conseqüências da assimilação dos mecanis-mos lingüísticos da metáfora e da metonímia aos meca-nis-mos psicanalíticos da condensação e do deslocamento, me-canismos fundamentais de funcionamento do inconscien-te, é a de que os processos Ics não formam um conjuntoanárquico, alheio a qualquer ordem, mas que são processossistematizáveis de acordo com determinadas leis. Uma ou-

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tra conseqüência é que, através desses mecanismos, pro-duz-se uma ruptura entre o significante e o significado, detal modo que, pela interposição de um novo significante,o significante original caia na categoria de significado,permanecendo como significante latente. Quanto mais ex-tensa for a cadeia significante, maior será a distorção pro-duzida.

Concordar com a assimilação da condensação e dodeslocamento à metáfora e à metonímia significa concor-dar com a tese segundo a qual o inconsciente é estruturadocomo uma linguagem; o que, por sua vez, corresponde ase aceitar a aplicação do princípio da arbitrariedade dosigno lingüístico aos conteúdos do Ics.

A noção de arbitrariedade do signo lingüístico refere-se ao fato de que o laço que une o significante e o signifi-cado é arbitrário, isto é, não natural. Graças a esse fato,podemos afirmar que na língua não há senão diferenças.Este é um princípio fundamental da lingüística de Saussu-re. Em seu Cours de linguistique général, Saussure afirmaque a linguagem não é constituída fundamentalmente pornomes dados às coisas. A linguagem não é uma nomen-clatura. O signo lingüístico não é constituído pela uniãode uma coisa e um nome, mas pela união de um conceitoe uma imagem acústica. Se fosse possível estabelecer umarelação fixa entre o objeto e o signo, a linguagem seriatransformada num mero sistema de sinais, análogo ao quepodemos encontrar no mundo animal.

Este é um dos pontos que nos permite a aproximaçãoda Vorstellung freudiana ao signo lingüístico, assim comosua equiparação ao significante lacaniano. Se a Vorstellung(particularmente a Sachevorstellung) fosse concebida porFreud como representação de coisa, isto é, como imagemmental, representando por semelhança a coisa externa, elaseria apenas um ícone dessa realidade externa, uma espé-cie de Gestalt psicológica correspondente à Gestalt física da

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coisa. Isto na hipótese do ícone poder ser concebido comosigno natural, o que, em se tratando de representação hu-mana, me parece insustentável. Mesmo no caso das repre-sentações Pcs/Cs, Freud não hesita em afirmar que seusignificado decorre não da relação que a Vorstellung man-tém com a coisa externa, mas da relação que ela mantémcom a representação-palavra. O que a coisa externa forneceé um disperso sensível, que somente adquirirá unidade deobjeto a partir da ligação com a Wortvorstellung.

Assim, as Vorstellungen podem conter um índice daexterioridade, mas seu caráter de significante não decorrede sua relação com a exterioridade do objeto. Se não é acoisa externa que fornece à Vorstellung seu significado —e aqui estou pensando nas Vorstellungen que constituem oconteúdo do Ics —, este só pode resultar da relação quecada Vorstellung mantém com as demais Vorstellungen. Ora,quando um signo significa, não por sua relação com a coisamas por sua relação com os demais signos, temos precisa-mente a característica fundamental do signo lingüístico: aarbitrariedade. Claro que isso não é suficiente para iden-tificarmos a Vorstellung freudiana ao signo saussureano,mas é suficiente, juntamente com a assimilação da conden-sação e do deslocamento à metáfora e à metonímia, paraconcedermos crédito à tese de que o inconsciente é estrutu-rado como uma linguagem.

No entanto, para não se incorrer no erro de simples-mente assimilar a Vorstellung (ou mesmo o significantelacaniano) ao signo lingüístico, é importante assinalar al-gumas distinções fundamentais. Em primeiro lugar, paraSaussure, o signo lingüístico une um significado e umsignificante, sendo que esta união constitui uma unidade.Além do mais, ambos os elementos — significado e signi-ficante — que Saussure aponta como um conceito (signifi-cado) e uma imagem acústica (significante) podem serequiparados, respectivamente, à Wortvorstellung e à Sache-

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vorstellung freudianas. Contudo, Saussure considera am-bas as representações como signos lingüísticos, enquantoque, para Freud (assim como para Lacan), o significantepossui uma extensão maior, abarcando significantes nãolingüísticos. Uma segunda diferença fundamental é a arti-culação do significante psicanalítico com o corpo. Já vimosque, se por um lado o Vorstellungsrepräsentanz articula-secom os demais Vorstellungsrepräsentanzen, formando umarede significante, por outro lado ele é uma forma de pre-sentificação da pulsão. Uma outra diferença importanteentre a concepção psicanalítica do significante e o signolingüístico é a implicação de sujeito, essencial à primeirae ausente no segundo. O objeto de investigação do lingüis-ta é o signo enquanto relação entre um significante e umsignificado. A relação do signo com a coisa ou do signocom o corpo, e mais ainda, do signo com a sexualidade,não faz parte das preocupações do lingüista. Finalmente,aquilo que pode ser considerado como significante, para apsicanálise, ultrapassa em extensão a noção de signo lin-güístico. Para a psicanálise, um significante pode ser umapalavra, mas pode ser também um sintoma corporal, umlapso, um sonho, o relato de um sonho, um gesto, um som,um silêncio. Por outro lado, o caráter significante de umacontecimento deve obedecer a três critérios não-lingüís-ticos, para que ele possa ser considerado um significantepsicanalítico: 1) ser involuntário; 2) ser desprovido de sen-tido; 3) ser ligado a outros significantes, inconscientes.68

Embora essas características tenham sido apontadas porNasio em relação ao significante lacaniano, nada impedeque sejam igualmente atribuídas à Vorstellung freudiana.

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68 Cf. Nasio, J. -D., Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, Rio deJaneiro, Jorge Zahar, 1993, p. 17-18.

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O inconsciente e o trabalho do negativo.

Voltando à pergunta feita no início desta seção: por que oconceito de Vorstellungsrepräsentanz não fez seu apareci-mento antes do artigo O recalque? É instigante que doistextos tão próximos, ou mesmo simultâneos, e versandosobre temas tão interligados, como são O recalque e O in-consciente, apresentem diferenças tão marcantes quanto àspossibilidades de desdobramento do problema da repre-sentância da pulsão no psiquismo.

Ao mesmo tempo em que o recalque é apontado comoum dos destinos da pulsão, somos advertidos de que recal-que e inconsciente são conceitos correlativos, isto é, que orecalque funda o inconsciente e que este é identificado como recalcado. A conclusão que se tira é que o recalque, comodestino da pulsão, não está à disposição do aparato psíqui-co senão a partir do momento em que se opera a distinçãoentre o inconsciente e o pré-consciente/consciente.

O conceito de recalque aponta, por um lado, para ateoria do inconsciente, uma vez que Freud identifica oinconsciente, enquanto sistema psíquico, com o recalcado;por outro lado, o recalque aponta para a pulsão e as trans-formações que lhe são impostas. No entanto, falta apontaro operador dessa ligação entre o inconsciente e a pulsão.Esta é a função do conceito de recalque originário (Urver-drängung). É o recalque originário que opera a clivagemdo psiquismo em dois grandes sistemas — o Ics e o Pcs/Cs—, de modo que se estabeleça uma fixação da pulsão nes-sas representações primordiais e sua inscrição no incons-ciente. Por esta operação, cria-se uma representância dapulsão no psiquismo, e o agente desta representância énomeado de Vorstellungsrepräsentanz des Triebes.

Não se trata de uma simples questão de contenção daenergia pulsional. Pelo recalque originário, as repre-sentações primordiais vão se articular umas com as outras

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numa série de oposições significantes, o que as torna ele-mentos da linguagem, antes mesmo que o infans disponhaplenamente da função da fala. Sem essa captura pelo queLacan chamou de “malha dos significantes”, a pulsão per-maneceria como pura quantidade ou pura intensidade psí-quica. O ponto central da problemática do Vorstellungsre-präsentanz passa a ser o da relação entre os dois Triebreprä-sentanzen, a Vorstellung e o Affekt, e a pulsão, o que podeser resumido como a problemática da representância (Re-präsentanz), tal como apresentada acima.

Como entender, do ponto de vista econômico, essarepresentância? Se admitimos, com Freud, que o ponto devista econômico diz respeito ao modo pelo qual, nos pro-cessos psíquicos, se dá a circulação e repartição da energiapulsional, a representância seria a forma pela qual a ener-gia somática (Triebreiz) seria representada no psiquismopor uma energia psíquica (o Affekt, por exemplo). Isto nãoapontaria forçosamente para um dualismo energético, jácriticado acima? Esse dualismo energético não estaria, porsua vez, ocultando um dualismo substancial de tipo car-tesiano? Algo como: energia somática = res extensa; energiapsíquica = res cogitans? E no caso de defendermos ummonismo energético, estaríamos fazendo um reducionis-mo biologista?

Estas perguntas não encontram, nos textos freudianos,uma resposta clara, livre de qualquer ambigüidade. Aocontrário, se lermos seus textos à letra, vamos encontrardeclarações sobre sua “intuição básica dualista”, 69 ou so-bre a transformação da energia somática em energia psí-quica. Há várias formas de “dualismo” em Freud: dualis-mo de princípios (princípio de prazer/princípio de reali-

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69 AE, 19, p. 47; ESB, 19, p. 62; GW, 13, p. 276.

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dade), dualismo tópico (Inconsciente/consciente), dualis-mo pulsional (pulsões de vida/pulsão de morte), e temosainda: processo primário/processo secundário, energia li-vre/energia ligada, pulsão/representação, pulsões se-xuais/pulsões de autoconservação etc.

Apesar de sua declaração de uma “intuição básica dua-lista”, o que encontramos em Freud são dualidades que nãoimplicam necessariamente um dualismo propriamentedito, ou pelo menos que não têm por base um dualismode tipo filosófico. Este último, cujo exemplo mais famosoé o de Descartes, caracteriza-se basicamente pela tese daexistência de duas substâncias, a material e a espiritual, àdiferença do monismo que afirma existência de uma únicasubstância. Freud não é um dualista, no sentido filosóficodo termo, o que ele faz é pensar em termos de dualidades,de categorias que se opõem dialeticamente, e cujos termosimplicados nessa oposição não existem fora da relação deoposição. Nada que possa ser identificado à distinção on-tológica entre a res cogitans e a res extensa cartesiana. Adiferença que estou fazendo, aqui, entre “dualismo” e“dualidade” pode ser resumida no seguinte: no dualismo,as entidades implicadas preexistem e são exteriores às re-lações que estabelecem, enquanto que numa dualidade, oselementos que a formam só existem na e pela relação es-tabelecida. Neste sentido, os “dualismos” freudianos sãomuito mais dualidades do que dualismos propriamenteditos.

Voltando à questão da relação entre o somático e opsíquico em Freud, relação esta que pode ser expressa pelopar pulsão/representação, o melhor seria pensá-la segun-do um modelo hegeliano do que segundo um modelocartesiano (isto para aqueles que fazem questão de procu-rar aproximações e analogias entre a psicanálise e a filoso-fia). A favor dessa referência hegeliana, teríamos o fato deque Hegel pensa em termos de dualidades e não de dua-

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lismos. Embora situe o sujeito no centro de sua reflexãofilosófica, tal como Descartes destacou o papel do negativo.

De fato, Hegel é um dos mais agudos críticos da tradi-ção filosófica que, aprisionada à noção de substância, des-prezou a noção de sujeito. O pressuposto da filosofia quese inicia com os gregos é de que é possível constituir-seum discurso sobre o ser ou a substância, ou seja, sobre oobjeto, sem levar-se em conta o sujeito. Para Hegel, umdiscurso sobre o ser tem necessariamente que incluir a sipróprio, já que a totalidade daquilo que é inclui o própriodiscurso. Um discurso sobre o ser é necessariamente tam-bém um discurso sobre o sujeito. Melhor ainda, ser e dis-curso — objeto e sujeito — não são duas realidades quepossam ser pensadas independentemente uma da outra(não formam um dualismo, mas uma dualidade).

Ao fazer isso, Hegel introduz a negatividade como ca-tegoria ontológica. Se a substância é concebida como Ser(Sein) e seu fundamento ontológico é a identidade, o sujeitotem seu fundamento na negatividade. Contrariamente acomo pensava a filosofia grega e boa parte da filosofiamoderna, Hegel não considera o homem como parte danatureza ou como prolongamento-coroamento do natural.O homem nada tem de natural; ele na verdade se constituipela negação do natural. É ao negar a natureza, assimilan-do-a e transformando-a, que o homem se constitui comohomem. A negatividade é ação do homem sobre a nature-za, ação criadora porque negadora-transformadora dodado.

Essa negatividade é também a marca da autoconsciên-cia (Selbstbewusstsein) e a potência da dialética. A consciên-cia ingênua, não-crítica, imersa na experiência, acreditacomo verdadeiro tudo aquilo que se lhe apresenta comocerteza sensível, como “coisa percebida”, para descobrirem seguida que estas supostas verdades são falsas. O re-sultado da experiência da consciência sensível é, pois, ne-

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gativo. Mas esse caráter negativo é provisório, posto queao denunciar o erro permite sua superação (Aufhebung).

Não se trata de fazer da negação o princípio único eabsoluto do pensamento; trata-se, ao contrário, de explici-tar a positividade da negação. No lugar da negação abso-luta, Hegel introduz a negação determinada, imanente aoreal e fundamento da dialética. Um século e meio antes deHegel, Spinoza já havia afirmado que toda determinaçãoé negação (Determinatio negatio est). No entanto, a negaçãotinha para ele um estatuto puramente lógico, não fazendoparte da essência da substância. O ser, a substância, é puraafirmação (reedição moderna do princípio de Parmênides:“O que é, é; o que não é, não é”). A negação, segundoSpinoza, pode logicamente determinar os limites daquiloque é, mas não é possível, a ela mesma, ser (no sentidoontológico do termo). A grande novidade de Hegel emrelação a Spinoza é estabelecer o estatuto ontológico danegatividade. Para ele, se é verdade que toda determinaçãoé negação, é também verdade que toda negação determinadaé uma forma de afirmação.

A questão que se coloca é de como pode surgir algo denovo a partir da negação determinada. Se a negação de-terminada é um não-A em relação a um A inicial, comopode surgir um B que seja algo de novo em relação a A?A resposta de Hegel é que o termo dado (A), na medidaem que fora isolado, já continha ele mesmo uma negação,caso contrário seria indeterminado. Tudo aquilo que é con-tém em si tanto a afirmação como a negação, o que faz comque o real seja entendido como um processo e não comoalgo acabado e dado na experiência. É pela negação deter-minada que se efetua a superação do “dado” e a transiçãopor meio da qual tem lugar o processo de produção-reve-lação do verdadeiro.70

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70 Hegel, F. G., Phénoménologie de l’esprit, Paris, Aubier, 1941, p. 71.

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Considerada isoladamente, a negatividade é um puronada. Não existe, para Hegel, um em-si da negatividade(aquilo que poderíamos chamar de negativo puro); a ne-gatividade é sempre concebida como negatividade parcial,a negatividade absoluta é uma abstração. Dizer que a ne-gatividade considerada isoladamente é um puro nada temcomo contrapartida a afirmação de que ela implica umsuporte natural. O que caracteriza a ordem humana é anegação do natural. Ao negar o dado enquanto em-si,enquanto natural, a negação funda o para-si que é a cons-ciência humana, e a persistência deste para-si é a afirmaçãodo nada pela destruição/transformação do ser. Hegel cha-ma morte a essa negatividade, uma vez que é realizada pelapermanência do nada (destruição do em-si) enquanto pen-samento e discurso.

O homem se constitui, portanto, como uma desconti-nuidade em relação ao natural. Essa descontinuidade éproduzida pelo discurso (logos) que, ao invés de ser dado,é ação negadora/transformadora do dado. Com Hegel, odiscurso deixa de ser o lugar neutro onde o mundo naturalé representado e passa a ser a forma pela qual o mundonatural é revelado e ao mesmo tempo transformado pelaatividade negadora. Essa atividade negadora é o entendi-mento (Verstand) que, no prefácio da Fenomenologia do espí-rito, Hegel apresenta como o maior e mais admirável poderdo homem. A negação não é, pois, um procedimento exte-rior, um acidente ou uma ficção do entendimento, mas,como já havia assinalado Kant, um procedimento necessá-rio à razão, único capaz de revelar a objetividade da ver-dade. Essa negação, essencial à consciência, é a morte deque ela é portadora; não morte de si própria, mas destrui-ção/transformação do natural que é por ela negado masmantido enquanto negado. O natural é superado (aufgeho-ben). Este é um conceito-chave do pensamento hegeliano,

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e através dele podemos estabelecer a ponte entre o conceitode negação em Hegel e em Freud.

A Aufhebung freudiana.

Aufhebung é um dos conceitos fundamentais da filosofiahegeliana, e o mesmo termo vamos encontrar presentenum texto pequeno mas de grande importância em Freud:A denegação (Die Verneinung). E mais uma vez nos depara-mos com a dificuldade de tradução. Não se trata, porém,da mesma dificuldade apontada acima para traduzir al-guns dos conceitos freudianos, mas uma dificuldade espe-cífica do termo Aufhebung que, em alemão, contém doissignificados antitéticos. Aufheben, o verbo, significa tanto“negar” quanto “conservar”, mas não alternadamente esim simultaneamente. Em português, como em qualquerlíngua, encontramos palavras que possuem significadosdistintos e mesmo opostos, dependendo do emprego quese faz delas. Não é este o caso de aufheben. A palavra alemãcombina, numa unidade, significados opostos.

Jean Hyppolite, na tradução que fez para o francês daFenomenologia do espírito, traduziu aufheben por supprimer(suprimir) e Aufhebung por suppression (supressão), apesarde com esta opção marcar quase que exclusivamente o ladonegativo do conceito.71 Numa tradução recente, Jean-PierreLefevre72 optou por traduzir aufheben por abolir (abolir) eAufhebung por abolition (abolição). Também aqui o que éressaltado é o aspecto negativo do conceito. Na mais re-

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71 Hegel, G. W. F., La phénoménologie de l’esprit, Paris, Aubier, 1941(trad. Jean Hyppolite). Ver comentário à p. 19, n. 34.72 Hegel, G. W. F., La phénoménologie de l’esprit, Paris, Aubier, 1991(trad. Jean-Pierre Lefevre). Ver Glossaire, p. 529.

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cente tradução para o francês da Fenomenologia do espírito,Pierre-Jean Labarrière e Gwendoline Jarczyk optaram pe-los neologismos sursumer e sursomption para traduzir auf-heben e Aufhebung, respectivamente.73 Uma outra formaque se tornou usual em francês foi dépasser (superar) edépassement (superação). Estas são apenas algumas das tra-duções propostas; há outras mais, sendo que a mesmadificuldade encontrada pelos tradutores e comentadoresfranceses da obra de Hegel está também presente nos tra-dutores e comentadores de outras nacionalidades.

O importante a ser destacado no conceito de Aufhebungé essa duplicidade de sentidos: algo é suprimido, abolido,superado, mas ao mesmo tempo mantido enquanto supri-mido, abolido, superado. Algo é negado e ao mesmo tempoconservado. É esse duplo sentido da Aufhebung que nospermite compreender o estatuto da negatividade em He-gel. Em aufheben, aquilo que é negado perde sua imediatez,mas não é nadificado, é conservado enquanto negado, ésuperado. Assim, a fruta transformada em doce é negada(suprimida) em sua forma de fruta, mas conservada en-quanto doce. Essa é a diferença entre a negação absolutae a negação determinada; enquanto a primeira é nadifica-dora, a segunda constitui um processo de transformaçãono qual aquilo que é negado engendra um novo conteúdo.Uma suposta verdade percebida como erro engendra umanova verdade, de tal modo que o erro superado (aufgeho-ben) é um momento do processo de produção da verdade.Os dois sentidos de Aufhebung, o negativo (negar) e opositivo (conservar), formam uma unidade que é a dosuperar, ultrapassar, transcender.

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73 Sobre a tradução de aufheben e Aufhebung, ver: Jarczyk, G. e Labar-rière, P.-J., Hegeliana, Paris, PUF, 1986, cap. 6.

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Sem entrarmos nos meandros da filosofia hegeliana,podemos resumir os três sentidos da Aufhebung: 1) sentidonegativo: “fazer cessar”, “suspender”, “abolir”; 2) sentidopositivo: “manter”, “conservar”; 3) unidade do negativo edo positivo: “colocar em reserva”, “manter como provisão,para quando se fizer necessário”.74

Em Freud, a Aufhebung adquire seu peso teórico noartigo A denegação, de 1925. O que está em análise nessetexto de apenas cinco páginas é o ato pelo qual o pacienteenuncia um pensamento ao mesmo tempo que o nega:“Agora você pensará que quero dizer algo ofensivo, masrealmente não tenho esse propósito” ou “Você perguntaquem pode ser a pessoa do sonho. Não é minha mãe”.75

Freud entende que esta é uma forma do paciente expressarum desejo até então recalcado, ao mesmo tempo em quese defende negando que ele lhe pertença.

Assim, uma representação ou um pensamento recalcadopode irromper na consciência com a condição de que se deixenegar. A negação é um modo de tomar consciência do recal-cado; na verdade, é uma suspensão [Aufhebung] do recalca-mento, mas nem por isto uma aceitação do recalcado.76

Ora, na medida em que o paciente formula o conteúdodo pensamento recalcado, apesar de negar que seja expres-são do seu desejo, há uma suspensão (Aufhebung) do recal-camento — posto que o recalcado pôde ascender à cons-ciência —, mas permanece o essencial do recalcamento, jáque o conteúdo é negado. Suponhamos, porém, que oanalista desmascare para o paciente sua artimanha e esteseja obrigado a aceitar o que há pouco negava. Diz Freud:nem por isso o recalcamento é suspenso (aufgehoben). O

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74 Cf. Jarczyk, G., e Labarrière, P. -J., op. cit., p. 105-106.75 AE, 19, p. 253; ESB, 19, p. 296; GW, 14, p. 12.76 Ibid.

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que ocorre, em sua opinião, é uma separação do intelectuale do afetivo, isto é, uma aceitação intelectual do conteúdorecalcado mas uma recusa afetiva. Jean Hyppolite,77 emseu comentário do texto freudiano, afirma que o que houveneste caso foi uma negação da negação, isto é, uma afirma-ção, mas apenas uma afirmação intelectual.

Isso nos remete aos vários níveis da negação e da afir-mação em Freud. A negação, alvo de análise no artigo DieVerneinung, é a negação que se faz através do símbolo danegação, o “não” da frase “A pessoa do sonho não é minhamãe”. Há, porém, outros níveis de negação e de afirmaçãoinferiores ou anteriores ao do exemplo de Freud, assimcom há outras formas de negatividade, distintas dessadenegação de que estamos tratando, apontadas pelo próprioFreud. Além da Verneinung (denegação), temos: Verwer-fung (rejeição, repúdio), Verleugnung (desmentido, recusa),Verdrängung (recalque), Ausstossung (expulsão), o que nosleva a procurar suas origens psíquicas e as formas do quepoderíamos chamar de afirmação primordial e de negaçãoprimordial.

O que está por trás e na origem da afirmação, dizFreud, é a Vereinigung (união), e o que está por trás danegação é a Ausstossung (expulsão), o que nos remete àpolaridade pulsional original: “A afirmação [Bejahung] —como substituto da união — pertence a Eros, e a negação[Verneinung] — sucessora da expulsão —, à pulsão de des-truição.”78

Tentemos seguir os passos de Freud nesse artigo (parao que, o auxílio de Jean Hyppolite é extremamente valio-so). Partindo dos exemplos de denegação, que são formas

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77 Hyppolite, J., “Commentaire parlé sur la Verneinung de Freud”, in:Lacan, J., Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 882.78 AE, 19, p. 256; ESB, 19, p. 300; GW, 14, p. 15.

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de juízos, e da distinção entre juízos atributivos e juízos deexistência, Freud os articula à distinção que a criança operaentre o interno e o externo. O juízo atributivo consiste emse afirmar ou negar um atributo particular a uma determi-nada coisa. O que é importante, para a análise que Freudempreende, é se esse atributo é considerado bom ou mau.No início, o eu, regido pelo princípio do prazer, introjetaaquilo que é experimentado como prazeroso e expulsa desi, para o mundo externo, aquilo que é vivido como des-prazeroso. A função do juízo de existência, por sua vez,consiste não em atribuir um predicado particular a umobjeto, mas em afirmar ou negar a existência de algo quecorresponde a uma representação. Se o juízo de atribuiçãoestá ligado originalmente ao eu-prazer (Lust-Ich), o juízode existência está ligado ao eu-realidade (Real-Ich).

O que a análise de Hyppolite nos revela é que Freudfundamenta essas duas formas de juízo em dois mecanis-mos primários: a Bejahung (a afirmação primordial), quecorresponde à introjeção daquilo que é experimentadocomo bom, e a Ausstossung (a expulsão primordial), quecorresponde ao que é experimentado como mau e colocadopara fora. Mas, comenta Hyppolite, “a afirmação primor-dial nada é além do afirmar; mas negar é mais que quererdestruir”, 79 o que nos leva de volta à frase de Freud citadaacima: “A afirmação [Bejahung] — como substituto daunião — pertence a Eros, e a negação [Verneinung] — su-cessora da expulsão —, à pulsão de destruição.”

Por que afirmar é apenas afirmar, e negar é algo mais?Porque a afirmação, enquanto pura afirmação indetermi-nada, é um puro sim indiscriminado, sim absoluto, tãoimprodutivo quanto o não absoluto. Vimos, no começodesta seção, que toda determinação é negação; uma afir-

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79 Hyppolite, J., op. cit., p. 883.

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mação pura, primordial, é uma afirmação que não passoupela negação e que portanto não recebeu a determinaçãoque somente pode advir pela relação da afirmação com anegação. É somente após a negação que a determina quea afirmação primordial dá lugar a uma nova afirmação,esta, determinada.

A Bejahung, entendida como afirmação primordial, cor-responde a uma espécie de simbolização primitiva, ante-rior à aquisição da fala, cujo mecanismo consiste em fazercom que alguma coisa tenha existência para o sujeito. Nãose trata de um mecanismo pelo qual algo perdido é sim-bolizado, mas uma tentativa de manter a situação de uni-ficação originária. É coisa de Eros, diz Freud. O outromecanismo a que Freud se refere é a Ausstossung (Freudnão emprega o termo Verwerfung, que Lacan traduz porforclusion). A Ausstossung é a expulsão primitiva, e aquiloque é expulso, por ser experimentado como mau, fica forado simbólico, constituindo um domínio distinto, podendoretornar sob a forma de um real alucinado.

O termo simbolização empregado acima deve ser consi-derado com alguma reserva. Assim, a Bejahung primordialnão pertence ao mesmo nível da oposição Fort-Da exem-plificada por Freud em Além do princípio de prazer. No casodesta última, há claramente uma oposição significante (O-A; Fort-Da) que pode ser considerada como um esboço delinguagem, antes mesmo da aquisição da fala por parte doinfans. No par Bejahung-Ausstossung, não há ainda nadaque possa ser considerado como um julgamento, mas simsua pré-condição e que pode ser apontado como o momen-to mítico em que se estabelece a distinção do fora e dodentro.

Há, contudo, uma diferença sutil mas significativa nomodo pelo qual Freud se refere à afirmação e à negaçãoprimordiais. A afirmação (Bejahung), ele diz ser o substituto(Ersatz) da união, enquanto que a negação (Verneinung) é

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a sucessora (Nachfolge) da expulsão. Ou seja, a afirmaçãoprimordial nada mais faz do que se substituir à unificação,permanecendo no registro da afirmação indeterminada, damanutenção desse momento mítico da união simbiótica,do afetivo puro da relação primordial mãe-filho. É nessamedida que Hyppolite pode dizer que “a afirmação pri-mordial nada mais é do que afirmar”, não há ainda umasuperação dessa unificação que não dá lugar a uma dife-renciação. “Mas negar é mais do que querer destruir.” É anegação que vai tornar possível uma afirmação determi-nada e a própria constituição do sujeito. Evidentemente,não se trata aqui de uma negação absoluta, negação psicó-tica radical, nadificadora, mas de uma negação determina-da, como foi visto acima a propósito da negação hegeliana,na qual o que é negado, ao invés de ser pura e simples-mente nadificado, constitui um processo de transformaçãoengendrando um novo conteúdo.

A partir do exposto, podemos entender o recalque pri-mário como uma forma de negação na qual o negado émantido enquanto negado, sendo superado (aufgehoben) enão destruído. Mas aqui, ainda não está presente o símboloda negação, ele será possível somente a partir da aquisiçãoda fala, o que vai dar lugar ao recalque propriamente ditoe à constituição da trama dos Vorstellungsrepräsentanzen. Éa criação do símbolo da negação (o “não”), diz Freud, quetorna possível a função do julgamento. Portanto, o “não”é a condição do surgimento do pensamento. Negar é algomais que querer destruir.

O que fica claro, a partir do artigo sobre a Verneinung,é que a negação, tomada em toda sua extensão, ultrapassaa denegação stricto sensu expressa pela forma verbal do“não”. Há em Freud várias formas de negação, desde anegação primordial, que é a Ausstossung, até a denegação(Verneinung) expressa no discurso. Não se trata, portanto,da mera oposição afirmação/negação, mas de uma série

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de negações e negações de negações que engendram umprocesso no qual o afirmado e o negado não são excluídospela negação seguinte, mas superados (aufgehoben).

O próprio conceito de pulsão (Trieb), na medida em quese distingue do instinto (Instinkt), pode ser pensado comuma Aufhebung do natural. A errância da pulsão, com suaausência de objeto específico e impossibilidade de satisfa-ção plena, impede que seja assimilada a um impulso na-tural, mas, por outro lado, a desnaturalização que ela ope-ra não coloca o homem ao abrigo das chamadas necessi-dades naturais. Há exigências vitais que, de alguma ma-neira, têm que ser atendidas, o Not des Lebens de que falaFreud. O corpo, enquanto natural, não é nadificado pelapulsão, mas sim negado e conservado, transformado, supe-rado (aufgehoben). O mesmo podemos dizer do antigo dua-lismo corpo/alma, entendido enquanto dualismo substan-cial. O conceito de Vorstellungsrepräsentanz expressa simul-taneamente o somático (enquanto Repräsentanz) e o aními-co ou a linguagem (enquanto Vorstellung), ao mesmo tem-po pulsão e significação, corpo e linguagem.

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