Inconsciente Lacan Freud

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II O INCONSCIENTE DE FREUD A LACAN

J foi dito que os verdadeiros conceitos trazem a assinatura do seu autor ; e creio que poucos so aqueles que portam uma assinatura to ntida quanto o inconsciente de Freud. 1

Considerado por Lacan como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanlise, o inconsciente um termo bastante caro queles que procuram lidar com a teoria e a prtica psicanalticas com um certo rigor. Dedicaremos, portanto, este captulo ao estudo deste conceito que no s sacramenta a ruptura entre a psicologia e a psicanlise, mas tambm funciona como marca registrada da novidade introduzida pela psicanlise lacaniana em relao s demais psicanlises. Portanto, acompanhamos Lacan em suas formulaes, onde o inconsciente no o primordial nem o instintivo e, de elementar, conhece as os elementos do significante2, na considerao de que as leis que regem o inconsciente so as leis da estrutura significante, ou seja, leis de linguagem. No captulo 1 trabalhamos a anterioridade da linguagem em relao ao sujeito. Cabe agora desenvolvermos a anterioridade desta em relao ao inconsciente, pois isto, certamente nos conduzir a um entendimento melhor do axioma lacaniano : o inconsciente estruturado como linguagem. Nesta segunda etapa, ento, procuramos fundamentar nosso trabalho da seguinte

1 2

GARCIA-ROZA, L.A., Introduo metapsicologia freudiana vol.3. R.J.: Zahar,1995,p.207. LACAN, J. (1998) op.cit. p.526.

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forma : . Inicialmente, percorreremos o desenvolvimento, promovido por Freud, do conceito de inconsciente, a partir da Interpretao dos Sonhos (1900), procurando identificar as revises por ele sofridas ao longo dos textos tericos. Durante este percurso, procuraremos abordar tambm a relao, ao nosso ver bastante legtima, entre este conceito e a noo de estrutura, tal como desenvolvida no captulo anterior. . Na segunda parte, traremos algumas contribuies lacanianas a respeito do conceito de inconsciente, procurando sempre estabelecer suas aproximaes e seus pontos de disjuno em relao a obra freudiana, o que nos permitir, acompanhando Lacan, pensar a linguagem como a condio necessria para a constituio do sujeito do inconsciente. . Na terceira parte, ento, trataremos da relao entre os conceitos de inconsciente e pulso. Para o desenvolvimento deste ponto, nos serviremos de J.A. Miller que nos fornece uma verdadeira cartografia da pulso, a partir dos paradigmas do gozo, em Lacan.

II.1 O inconsciente freudiano

A interpretao dos sonhos a via real para o conhecimento das atividades inconscientes da vida anmica3. Sejamos rigorosos ! Recorramos, ento, a Interpretao dos Sonhos (1900) de Freud, a partir da qual trabalharemos o que Lacan considerou, no Seminrio 11 (1990), como sendo o inconsciente freudiano e o nosso.

3

FREUD, S. A Interpretao dos Sonhos (1900) in Obras psicolgicas completas. R.J. E.S.B., p.550.

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Tropeo, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela () Ali, alguma coisa quer se realizar algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hincia, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. assim, de comeo, que a explorao freudiana encontra o que se passa no inconsciente.4

justamente este o inconsciente que identificamos no texto da Interpretao dos Sonhos (1900) e em todos os demais artigos metapsicolgicos de 1915. Nestes trabalhos os conceitos de inconsciente e recalque esto intimamente articulados sem, entretanto, se superporem. Freud, em 1900, trata o recalque originrio como a condio de possibilidade do inconsciente, ou seja, o recalque originrio que promove a clivagem do aparelho psquico em sistemas diferenciados, sendo ele, o seu ato de fundao por excelncia. Neste ponto, faz-se necessrio recorrer aos artigos metapsicolgicos de Freud, de 1915, quando a questo da temporalidade adquire uma formalizao mais rigorosa, principalmente, com os textos O Inconsciente (1915) e do Recalque (1915). Com Lacan, podemos considerar que o recalque originrio justamente aquilo que funda a sua prpria anterioridade, na medida em que uma exigncia simblica. Esta exigncia impe ao aparelho psquico uma clivagem, barrando o sujeito e introduzindo-o no registro da falta, que nada mais que a

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LACAN, J. O Seminrio livro 11. R.J.: Zahar, 1990,p.30.

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inaugurao no campo da linguagem, que ao mesmo tempo que o determina, o aliena de seu objeto. Entretanto, vale insistir que o inconsciente no coincide com o recalcado - o que alis, declarado por Freud na introduo do artigo O Inconsciente (1915), quando ele afirma que o recalcado as uma parte do inconsciente, e na parte final da Interpretao dos Sonhos (1900) quando considera que o aparelho psquico , predominantemente, inconsciente.

() deve-se pressupor que o inconsciente a base geral da vida psquica. O inconsciente a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente. () o inconsciente a verdadeira realidade psquica.5

A questo que comparece a Freud neste momento, ento, : Como devemos chegar a um conhecimento do inconsciente?. Ele mesmo responde : Certamente, s o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu transformao ou traduo para algo consciente6. Entretanto, nesta passagem, algo opera no sentido de fazer com que o material, agora consciente, seja estranho prpria conscincia a ponto dela no reconhec-lo como seu. Tal como um outro, que aderido ela insiste em se presentificar de forma sempre fugaz e surpreendente. Mas de que outro se trata ? Uma Outra cena. neste sentido, que os sonhos se74 75

FREUD, S. (1900) op.cit. p.554. FREUD, S. O inconsciente (1915) in Obras psicolgicas completas. R.J.: E.S.B. p.191.

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oferecem como material privilegiado investigao psicanaltica. Cena bizarra, aterrorizante, persecutria, romntica, herica ou ertica. Pouco importa. O que Freud nos diz que de realizao de desejo que se trata. E Lacan reafirma que l onde o sujeito no se reconhece que o desejo, atropelando o enunciado consciente, se atualiza como falha, como furo. Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que novo Aqui, no campo do sonho, ests em casa. Wo es war, soll Ich werden.7 Estamos diante,

portanto, de um sujeito clivado, dividido, alienado em relao ao desejo. Assimetria fundamental, diviso fundadora que atesta o fato de que a linguagem a condio do sujeito, do inconsciente, ou melhor dizendo, do sujeito do inconsciente. Sabemos que o texto do Ego e o Id (1923) o ltimo dos grandes trabalhos tericos de Freud. E, mais uma vez, logo no primeiro captulo, Freud afirma que a diviso do aparelho psquico constitui a premissa fundamental da psicanlise. Entretanto, diferente da primeira tpica, onde o recalcamento original instaura uma ciso radical entre inconsciente e consciente, os sistemas do isso e do eu esto intimamente articulados. O eu de 1923 parcialmente inconsciente, sendo constitudo a partir do isso, ou seja, , na verdade, uma parte diferenciada do isso, devido proximidade com o meio externo, o que nos indica uma reviso na teoria do narcisismo de 1914. Na Interpretao dos Sonhos (1900), Freud faz poucas referncias a noo de ego, entretanto, sinaliza e aponta a sua funo defensiva e reativa frente aos impulsos carregados de desejo do sistema inconsciente. Sua tpica, nesse momento, , fundamentalmente, temporal e o inconsciente comparece, j neste poca, como um

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LACAN, J. (1990) op.cit. p.47.

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sistema dotado de leis prprias, cujo funcionamento autnomo. Mas, no texto O Ego e o Id (1923) 8, que as formulaes freudianas

adquirem uma maior sistematizao e clareza. Nesse momento, Freud nos apresenta um aparelho psquico clivado em eu / isso / supereu, sendo o isso o ncleo dos desejos inconscientes, pulses que insistem em emergir, sede das pulses propriamente ditas, que exigem trabalho ao aparelho psquico. Esta exigncia de trabalho, caracterstica mais elementar do conceito freudiano de pulso, que autoriza Lacan na promoo e na positivao deste conceito de pulso de morte, apresentada no texto Alm do Princpio do Prazer (1920), quando Freud, a partir do fenmeno da compulso a repetio, formaliza este conceito. Ou seja, a repetico, na realidade, como Lacan afirma, constitui o selo, a assinatura da pulso de morte. Fora demonaca, a servio da destruio de ligaes pr-estabelecidas que clama pelo novo, que insiste na criao de novas e incessantes ligaes. Sua vertente positiva e produtiva est justamente nesta luta incansvel pela obteno de satisfao. Lacan, no Seminrio da tica (1997), sobre a pulso, comenta que se trata de uma vontade de destruio direta, uma vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da funo do significante. Vontade de recomear com novos custos.9 Tomando como referncia o Projeto para uma psicologia cientfica (1895), se trataria da tentativa de reproduo da primeira experincia de satisfao. Freud situa a repetio em relao diferena de quantidade entre o prazer da satisfao exigida e a que efetivamente conseguida razo pela qual o sujeito nunca est realmente8

Optamos por utilizar o texto traduzido para o portugus, que corresponde ao texto original em latim, onde Ego e Id encontram-se como Es e Ich, respectivamente. A partir deste ponto, entretanto, adotaremos eu e isso quando nos referirmos a estes conceitos. 9 LACAN, J. O Seminrio livro 7. R.J. : Zahar, 1997, p.259.

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satisfeito. Trabalho significante por excelncia ou, como prefere Lacan, genuno funcionamento da mquina significante.

Formaes reativas e substitutivas bem como sublimaes no bastaro para remover a tenso persistente (), o fator impulsionador que no permite qualquer parada em nenhuma das posies alcanadas, mas, nas palavras do poeta,

ungebandigt immer vorwarts dringt (pressiona sempre para a frente, indomado).10

Alis, Lacan no Seminrio 11 (1998) nos chama a ateno para o fato de que o inconsciente algo de no realizado, ou seja, o inconsciente est sempre em vias de advir. Com isso, ele insiste no carter evanescente da funo inconsciente o que a faz coincidir estruturalmente com a funo do significante que insiste na busca de uma significao, sem nunca satisfazer-se, quer dizer, sem nunca esgotar-se numa significao qualquer. Trata-se, portanto, de um saber no advindo ainda, e por isso mesmo, inantecipvel.

O aparecimento evanescente se faz entre dois pontos, o inicial e o terminal, desse tempo lgico entre um instante de ver em que algo sempre elidido, se no perdido, da intuio mesma, e esse momento10

elusivo

em

que,

precisamente,

a

FREUD, S. Alm do Princpio do Prazer (1920) in Obras psicolgicas completas. R.J. E.S.B.,p.60.

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apreenso do inconsciente no conclui, em que se trata sempre de uma recuperao lograda. 11

Mais adiante, neste mesmo texto, Lacan aponta que Freud reduz tudo o que chega a sua escuta funo de puros significantes, o que denuncia, mais uma vez, a ntima relao do conceito de inconsciente com o de corte. Interessante perceber que este gesto freudiano de reduo das qualidades sensveis nos autoriza a pensar Freud como um dos precurssores daquilo que, posteriormente, ser considerado o mtodo estrutural propriamente dito. Acompanhamos Kaufmann nesta discusso. Segundo este autor, a noo de estrutura intervm em Freud desde a Interpretao dos Sonhos (1900), onde o sonho a via de compreenso da rede de relaes que se estabelece entre os sistemas psquicos e a censura. Assim tambm, a estrutura ser para a organizao o que o aparelho para seu modo de funcionamento.12 De acordo com Kaufmann, Freud chega inclusive a utilizar o termo dialeto, a propsito da neurose obsessiva, indicando assim a sua busca em relao a rede de relaes constituinte do discurso, no caso, obsessivo.13

Os meios de que se serve a neurose obsessiva para exprimir seus pensamentos mais secretos, a11 12

LACAN, J.(1990) op.cit. p.36. KAUFMANN, P. Dicionrio enciclopdico de psicanlise : o legado de Freud e Lacan. R.J.:Zahar, 1996, p.175. 13 De acordo com o Dicionrio Aurlio, dialeto significa variedade regional de uma lngua e lngua o conjunto das palavras e expresses, faladas ou escritas, usadas por um povo, por uma nao. O que nos chama a ateno neste ponto o fato de tais significados apontarem claramente para a idia de estrutura. Trata-se de uma rede de relaes estabelecida a partir de um conjunto, no caso, de uma regio, o que nos sugere a definio mais elementar do conceito de estrutura, qual seja, um conjunto de elementos regidos por leis, cujo funcionamento se d, fundamentalmente, pela relao entre estes elementos.

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linguagem dessa neurose, no passam de certo modo de um dialeto que deveramos penetrar com mais facilidade.14

Assoun15, neste mesmo sentido, evoca Freud: como se estivssemos na presena de um captulo de um autor de lngua estrangeira ()16 , ou seja, o sujeito tem diante de si um livro cujo texto fala outra lngua, e esta outra lngua que precisa ser investida. Trata-se de uma imposio de sentido, de significao, onde ler querer saber o que isso conta. Banal, direis. Entretanto, sabemos que a leitura de uma lngua estrangeira supe um leitor desprovido de todo juzo. Este o ponto. Este advertido leitor no pode autorizar-se na postulao de um significado, pois como afirma Assoun, a letra demasiado impositiva para isso, exigindo sempre a busca de novas significaes. No desenvolvimento desta pesquisa freudiana sobre os sonhos, nos deparamos com dois artigos contemporneos publicao do O Ego e o Id (1923) e Alm do Princpio do Prazer (1920). No primeiro deles, entitulado Observaes sobre a teoria e prtica da interpretao de sonhos (1922), Freud se pergunta sobre as concluses que podem ser extradas de um sonho corretamente traduzido. Segundo ele, a prtica analtica nem sempre evitou erros e avaliaes em demasia sobre esse ponto, e isso se d, em parte, devido a um respeito exagerado pelo inconsciente misterioso. No outro artigo Algumas notas adicionais sobre a interpretao de sonhos como um todo (1925),

14 15

FREUD, S. apud KAUFMANN, P. (1996) p.175. ASSOUN, P.L. Metapsicologia freudiana uma introduo. R.J.: Zahar, 1996. 16 FREUD,S. apud ASSOUN, P.L. (1996) p.143.

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Freud vai discutir os limites inerentes interpretao. Neste trabalho, ele faz afirmaes que parecem se dirigir perfeitamente bem aos psicanalistas da contemporaneidade. So elas :

Agora, vozes crticas vo se elevar. No sendo possvel interpretar todo o sonho com que se lida, iro objetar, que seria preciso deixar de afirmar, mais do que se pode estabelecer, e contentar-se em dizer que se pode demonstrar pela interpretao que alguns sonhos tem um significado, mas que, quanto ao resto, nos vemos desconhecedores. O prprio fato de o sucesso na interpretao depender da resistncia, porm, absolve o analista da necessidade de tal modstia.17

() temos de nos acostumar com que um sonho assim capaz de ter muitos significados.18

Temos aqui mais um elemento a favor da hiptese de que, se um significante no significa nada e o inconsciente se constitui como pura articulao significante, ento, o sujeito psicanaltico, sujeito do inconsciente, est submetido ordem signinificante, quer dizer, est sempre em vias de advir, sendo, portanto, inantecipvel.FREUD, S. Algumas notas adicionais sobre a interpretao de um sonho como um todo (1925) in Obras psicolgicas completas. E.S.B. p.161. 87 Ibid. p.162.17

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II.2 O inconsciente lacaniano

Partiremos da afirmativa lacaniana de que o inconsciente freudiano no so os conceitos introduzidos, historicamente, por Freud. Lacan nos diz que o inconsciente, conceito freudiano, outra coisa ().19 De acordo com Coelho dos Santos, se trata de uma leitura estrutural, onde a metapsicologia de 1920 trabalhada a partir da teoria do significante. Com isso, as formulaes freudianas so submetidas uma espcie de tratamento significante, o que promove a reinveno lacaniana20 de alguns conceitos freudianos. Segundo esta autora, as intervenes lacanianas no texto freudiano equivalem a atos psicanalticos na medida em que tais intervenes so sempre parciais, isto , possibilitam novas metforas, deixando, por vezes, restos que exigem trabalho. No que se refere ao conceito de inconsciente, Coelho dos Santos sugere a seguinte hiptese : Se a exigncia de trabalho feita ao psquico pela pulso equivale a exigncia de trabalho imposta ao corpo pelo significante mestre, ento, a realidade da castrao inerente estrutura de linguagem. Pretendemos, ao final deste trabalho, justamente reunir elementos que justifiquem a idia de que, se o inconsciente se define a partir do significante, ento, o que define a especificidade do sujeito psicanaltico sua inevitvel e inescapvel sujeio lei da castrao.

19 20

LACAN, J. (1990) op.cit. p.26. Ver a este respeito : COELHO DOS SANTOS, T. As estruturas freudianas da psicose e sua reinveno lacaniana in Sobre a psicose. Birman, J. (org.) R.J.: Contracapa, 1999a.

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A castrao na estrutura da linguagem isso que se indica na incompletude da cadeia

significante.21

Assim, a psicanlise institui o sujeito como barrado ao introduzir a funo do inconsciente como causa () 22

De acordo com esta interpretao, a virada lacaniana consiste na considerao de que o inconsciente lacaniano o isso freudiano. No toa que Lacan afirma que o modelo do inconsciente isso fala.23 No Seminrio 11 (1990) Lacan discute bastante os conceitos de inconsciente e isso, referindo sempre o inconsciente linguagem. No so poucas as passagens deste Seminrio em que percebemos a articulao entre pulso e significante, pois se o inconsciente evasivo, pulsativo, no-realizado, ento o significante , rigorosamente falando, pulsional , no sentido mais freudiano deste conceito, ou seja, se presentifica como exigncia de trabalho. Em outras palavras, a pulso a prpria operatividade da cadeia significante, da linguagem.24 Outro autor que desenvolveu um extenso trabalho sobre o tema do inconsciente foi Alain Juranville. De acordo com ele, a possibilidade de demonstrao do inconsciente reside na sua deduo lgica da linguagem e, segundo ele, foi esta a

COELHO DOS SANTOS,T. et al. O sujeito da psicanlise e a lei que o constitui. Caderno do Tempo Psicanaltico, Rio de Janeiro: n.4, SPID.(s.d.) 22 COELHO DOS SANTOS, T. (1999) op.cit.p.71. 23 LACAN, J. A Lgica del Fantasma . Seminrio indito em espanhol. p.98. 24 COELHO DOS SANTOS, T. Psicanlise e Psicologia: Ordem e Caos in Revista de Psicologia e Psicanlise do Instituto de Psicologia da UFRJ nmero 5, 1994.

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estratgia de Lacan ao propor a construo do termo inconsciente a partir do significante. Com isso, teramos, a partir de Lacan, uma teoria do inconsciente deduzida, logicamente, de uma teoria da linguagem. Neste sentido, temos um inconsciente fadado impossibilidade da plenitude (do desejo) tal como a incompletude inerente s significaes no campo da linguagem, pois, como afirma Juranville : o desejo dado a priori na linguagem.25 Todo o esforo de Lacan, ento, teria sido no sentido de dar preciso a esta concepo freudiana de um desejo inconsciente cujo objeto falta. E Juranville coloca como hiptese do percurso lacaniano, a tese de que na ausncia da Coisa, o que mantm o homem no desejo a lei 26, afirmando ainda que a lei constitutiva do desejo, para Lacan, no a lei do dipo discusso que ser, posteriormente, realizada no captulo 3 deste trabalho. Considerar que o que mantm o homem no desejo a lei, ou seja que a lei constitutiva do desejo, implica a suposio de que a lei dada de sada e determina aquilo que h de ser, constituindo, desta forma, o desejo, na ausncia da coisa. neste sentido que podemos dizer que o significante, assim como a lei da castrao, convoca o sujeito a desejar.

Uma lei positiva, que me intima a desejar. E a desejar o desejo do Outro. E seu efeito necessrio e ao qual, alis, no se pode escapar a castrao () Essa lei, imposta quele que fala faz surgir o

25 26

JURANVILLE, A. Lacan e a filosofia. R.J.: Zahar, 1987, p.82. Ibid. p.95.

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sujeito do desejo. 27

J dissemos, repetidas vezes, que o objeto absoluto, capaz de responder satisfao pulsional, falta. Vimos tambm que, para que o desejo se mantenha necessria a interveno de uma lei que, imposta quele que fala, incite o sujeito a desejar. Estamos diante, ento, de uma falta radical do suposto objeto de satisfao pulsional, para todo sujeito / ser falante. Referir a teoria do objeto castrao implica considerar o desejo dependente da articulao do significante. neste sentido que Lacan no se cansa de insistir que o Es freudiano no uma matria bruta, nem uma fora cega natural. Tambm no so poucas as vezes em que ele aponta esta dependncia do desejo e do objeto em relao castrao, ao significante. H significante no real e Esse o Outro no Outro so formulaes clssicas e extremamamente rigorosas que marcam a diferena entre a teoria e a prtica lacanianas em relao s demais psicanlises. Formalizando as reflexes realizadas at este ponto e fazendo-as convergir para a clnica psicanaltica, sem o que este trabalho seria em vo, podemos considerar que a novidade lacaniana diz respeito, justamente, desmontagem do signo, enquanto representante da possibilidade de complementariedade entre significado e significante significao. Com Lacan, a nfase recai sobre barra, sobre a impossibilidade de acoplamento entre significante e significado, restando ao significante se relanar insistentemente em busca de outras significaes. importante, neste ponto, salientarmos que no se trata de uma no relao entre significante e significado, mas de uma relao que no passa pela

27

Id. p.98.

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complementariedade entre eles. Esta operao de desmontagem do signo, que resulta na emergncia do significante enquanto exigncia constante de outra coisa, de outros objetos, faz aparecer um inconsciente onde a linguagem comparece em sua lgica de eterna pergunta. Pura funo significante, produtor de efeitos de sentido este o inconsciente do qual o sujeito lacaniano padece. E intervindo sobre o discurso do analisando, entendido aqui como um vasto repertrio de signos, que o analista se insere, cortando, promovendo hincia, impossibilitando o estancamento da cadeia significante. Com esta operao o analisando se v desfalcado da significao, sendo reenviado srie desejante que corresponde a uma das dimenses do significante, onde este no cessa de no se inscrever. Momento de angstia, pois situa o desejo como desejo de outra coisa, pois no h nenhum significante nico que possa identific-lo e ele conduzido para um pouco mais alm, para um pouco depois.28 compreendida, que Lacan fez aos analistas : Da a advertncia, to mal

No respondam demanda, a fim de que o desejo seja liberado. No pare a demanda sobre o significante que ele lhe prope, e deixe-o vagar.29

E ainda, no Seminrio 7 (1997), Lacan diz :

Se o frustro, porque ele me demanda alguma

28 98

MILLER,J.A. Lacan elucidado. R.J. : Zahar,1997, p.79. LACAN, J. apud MILLER, J.A.(1997) p.79.

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coisa. Que lhe responda, justamente. Mas, ele bem sabe que isto no seria mais que palavras. Como as tem de quem quer. No est nem mesmo certo de que ficaria agradecido a mim por serem boas palavras, ainda menos se fossem ms. Estas palavras, ele no as demanda a mim. Ele me demanda pelo fato de falar : sua demanda intransitiva, ela no implica nenhum objeto.30

Intransitivo. Pois bem, assim tambm o circuito da pulso que parece gozar a deriva, apesar dos objetos com os quais encontra. Poderamos arriscar dizer que a pulso goza ? Qual seria a particularidade do gozo pulsional ? Como pensar estas questes, tomando como referncia lgica do significante ? Faz-se necessrio neste momento, ento, estabelecermos a articulao entre os conceitos de significante e gozo, tomando como referncia o circuito da pulso em sua relao com a noo de inconsciente.

II.3 Inconsciente e pulso

No que se refere a trajetria freudiana, ainda que esquematicamente, podemos extrair de sua obra modelos de dualismos pulsionais. O primeiro deles, frequentemente referido ao texto Sobre o narcisismo : Uma introduo (1914), diz respeito tenso entre as pulses do eu e as pulses sexuais -, sendo o eu objeto, e no fonte das

30

LACAN, J. (1997)

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pulses.31 Num segundo tempo, com o Alm do Princo do Prazer (1920), o dualismo comparece como pulso de vida e pulso de morte, sendo esta ltima identificada a um desejo de retorno ao inanimado, desejo de reunificao. O que nos interessa, neste ponto, poder identificar que, se h um desejo de reunificao, justamente porque a diviso est dada, a condio do sujeito, apesar do eu esforar-se, permanentemente, no sentido de nos fornecer uma espcie de miragem unificatria para alm da diferena sexual, quer dizer, apesar da diviso sexuada. Podemos indicar ainda que, de Freud a Lacan, assistimos a uma metaforizao da pulso de morte. Com Lacan, a pulso de morte formalizada, sendo elevada dignidade de conceito. Desse modo, considerando o primeiro tempo do percurso lacaniano, podemos dizer que, pulso de morte em Freud, Lacan faz corresponder a primazia do significante, a mquina simblica (tal como desenvolvida no Seminrio 21985). neste sentido que podemos entender que Lacan rel Freud pela via da pulso de morte, o que justifica o seu axioma, introduzido logo no incio de seu percurso, do inconsciente estruturado como uma linguagem. Nos vemos novamente convocados a recorrer a Coelho dos Santos que, ao se questionar sobre o sentido da retomada lacaniana em relao noo de objeto em Freud, considera que Lacan d um passo a mais em relao aos impasses freudianos. Da, a sua constante referncia ao passe lacaniano a partir dos impasses freudianos. Para Lacan, no h pulso que no seja de morte j que o objeto de toda busca31

Consideramos que, na medida em que o ego objeto e no fonte das pulses, no se trata de uma oposio entre duas fontes pulsionais pulses do eu e pulses sexuais - o que nos autoriza a colocar em questo o termo dualismo que, to frequentemente, caracteriza a relao entre eles. De acordo com Garcia-Roza, no dualismo as entidades implicadas preexistem e so exteriores s relaes que estabelecem. No caso das dualidades, os elementos que a formam s existem na e pela relao estabelecida. Em Freud, temos, ento, dualidades categorias que se opem dialeticamente, e cujos termos implicados nessa oposio no existem fora da relao de oposio. A esse respeito, consultar GARCIA-ROZA, L.A. Introduo metapsicologia freudiana. vol. 3, R.J.: Editora Zahar, p.276.

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s pode ser orientado pelo significante. Assim, a pulso, enquanto exigncia de trabalho, tal como Freud a definiu, resignificada por Lacan como exigncia de significao. E porque no dizer de significante, j que o interessante perceber que, ao mesmo tempo que a significao exigncia da prpria pulso, a castrao exigncia da prpria cadeia significante. Neste sentido, a pulso, ao contrrio do instinto, demanda, justamente, que o objeto esteja perdido. O objeto da pulso, definido por Lacan, como a presentificao de um buraco, um vazio habitado pelo objeto a, enquanto representante deste objeto perdido. Talvez, ento, fosse mais coerente, conforme nos indica o Seminrio 11 (1990), falarmos em objetos a, j que estamos pressupondo que este objetos so

representantes, derivados do suposto objeto original da pulso. Quanto aos objetos a, podemos dizer que a pulso os contorna, sem nunca satisfazer-se, o que nos permite considerar que, em se tratando de psicanlise lacaniana, goza-se da falta32, o que nos indica uma ntima articulao entre os conceitos de pulso e gozo. Mais um vez preciso tomarmos cuidaddo com a articulao entre os conceitos! O conceito freudiano das Ding aparece, muitas vezes, referido ao objeto que teria correspondido satisfao pulsional, nos fornecendo a miragem terica de que este objeto j teria existido, apesar de ter sido perdido, o que poderia sugerir a idia de uma pretensa completude originria - gozo. Em Freud, portanto, das Ding algo que falta sem nunca ter existido. A verso freudiana, portanto, apresenta como nica qualidade do objeto o fato de ele ser originrio, causa inicial. J o objeto a, este sim, conceito lacaniano, carrega consigo a noo de incompletude originria, operando, inicialmente,

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COELHO DOS SANTOS, T. Isso uma estrutura significante: goza-se de um corpo. In : O desejo o diabo: as formaes do inconsciente. Jimenez, S. e Barros da Motta, R. (orgs.) R.J.:Contracapa, 1999b.

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como objeto causa de desejo para, num segundo tempo, assumir-se como condensador de gozo. Ou seja, segundo Lacan, o objeto a a indicao de uma falta, e no aquilo que poderia vir a preench-la. O objeto a aquilo que faz falta.33

a fenda, aberta pelo nascimento, que instaura o movimento pulsional, que fora constante porque incapaz de encontrar um anteparo que possa barrar defitivamente sua busca de satisfao pois, se puder encontr-lo, seu destino que a morte se cumpre. 34

Segundo Milller35, as teses de Lacan sobre a pulso no se prestam a um ordenamento temporal. Trata-se de um percurso que compreende uma srie de resignificaes conceituais, sendo que, nesta trajetria, alguns conceitos vo sendo redefinidos e outros at abandonados. De acordo com Miller, no h como se estabelecer uma cartografia do conceito de pulso sem se recorrer aos operadores estruturais : significante e gozo. Partir do pensamento estrutural, em Lacan, significa, necessariamente, sujeitar o homem linguagem. Alis, se tomarmos a definio mais elementar de sujeito no Dicionrio Aurlio, teremos : 1) Escravizado, cativo. 2) Obrigado, constrangido. 3) Que se sujeita vontade alheia. 4) Passvel, e sujeitar: 1) Tornar sujeito. 2) TornarAcreditamos que esta resignificao na obra lacaniana pode ser autorizada se retomarmos os textos lacanianos a partir do Seminrio 17 (1992) - O avesso da psicanlise - quando ele formaliza a passagem do mito estrutura. Esta questo ser discutida nos captulos posteriores deste trabalho. 34 COELHO DOS SANTOS, T., A pulso pulso de morte?. Caderno Tempo Psicanaltico. 35 As referncias a Miller neste ponto esto fundamentadas no resumo traduzido e comentado, elaborado pela Prof. Tania Coelho dos Santos do artigo de MILLER, J.A. Les paradigmes de la jouissance La Cause Freudienne : Revue de psychanalyse. LEcole de la Cause Freudienne n.42.33

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obediente ou dependente. 3) Constranger, coagir. 4) Render-se lei, ou vontade de outrem ; submeter-se. 5) Conformar-se. Parece ser na busca disso que constrange e escraviza e que, ao mesmo tempo institui o sujeito, que Miller vai delimitar em Lacan um percurso marcado por seis paradigmas do gozo. Segundo ele, num primeiro tempo, assistimos a uma imaginarizao do gozo, ou seja, uma disjuno entre os conceitos de significante e gozo. Este primeiro movimento do ensino de Lacan corresponde quele que toma como ponto de partida a introduo do simblico enquanto constituindo uma dimenso distinta da experincia analtica e um ordem prpria de existncia.36 Trata-se de uma tenso entre o domnio do simblico sobre toda satisfao pulsional (imaginrio), acompanhado de uma autonomia do imaginrio, cuja consequncia lgica seria a decantao de um resto que parece se furtar permanentemente simbolizao. O significante, neste sentido, no tem aderncia alguma ao gozo.

Tudo que , em Freud, propriamente falando libidinal, imputado ao gozo imaginrio como obstculo, como barreira. O que faz com que Lacan apresente o eixo do gozo imaginrio em posio transversal ao eixo simblico como obstculo ou barreira elaborao simblica.37

36

MILLER, J.A. Os seis paradigmas do gozo. Opo lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanlise, S.P.Abril, 2000, v.26/27, p.87. 107 Ibid. p.89.

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interessante, neste ponto, percebermos que, apesar da dominncia do simblico, Lacan se mantm rigorosamente freudiano ao reconhecer uma certa autonomia do imaginrio o que nos autoriza a concepo de dois estatutos simblicos distintos, nesta etapa lacaniana: um que permanece como anterioridade lgica imaginria j que no passou pela via da fala, apesar de sua submisso linguagem, e outro que corresponderia ao que deste imaginrio j passou simbolizao, pela via da fala. De acordo com Bernardino Horne38, podemos identificar que, nesta etapa, os registros do imaginrio e do simblico so disjuntos, sendo inclusive representados por dois eixos antagnicos, onde ao imaginrio corresponde o libidinal, o campo do gozo, enquanto que a linha que vai do sujeito ao Outro abre o campo do Simblico.39 Resumindo, este primeiro paradigma opera com a tenso entre um imaginrio dominado pelo simblico e um gozo que escapa simbolizao. Dito de outra forma, diante da satisfao simblica que estende seu imprio sobre o conjunto do psiquismo, subsiste a satisfao imaginria que chamamos propriamente de gozo.40 De acordo com Miller, com esse gesto inaugural Lacan resgatou a ordem simblica em sua autonomia, ensinando aos analistas uma palavra de ordem em relao pureza do simblico, ou seja, sua no relao com o imaginrio enquanto sede daquilo que Freud chamou de libido . Num segundo momento, ento, conforme nos indica Miller, assitiramos a significantizao do gozo. Trata-se, basicamente, da retranscrio da pulso emHORNE, B. A funo da fantasia in Os circuitos do desejo na vida e na anlise. Escola Brasileira de Psicanlise (orgs.), Contracapa, R.J., 2000. 39 Ibid.p.53. 40 MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.88.38

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termos simblicos, do progresso e da radicalizao da primazia da linguagem, da estrutura e do simblico em detrimento da fala, do imaginrio. Teramos, portanto, neste momento da trajetria lacaniana, a incluso do resto sob o domnio da linguagem. O que justifica, mais uma vez, o fato de haver estrutura de linguagem mesmo naquilo que no se disse, j que estamos operando como linguagem enquanto estrutura e no simplesmente como funo, propriedade. Miller fala que se trata de um apagamento do gozo pelo significante.41 Esta etapa teria como expresso mxima o Seminrio 7 (1997) A tica da psicanlise que representa o terceiro paradigma, tal como indica Miller, onde a primazia do significante atinge seu mais alto grau de radicalizao. Neste momento do texto lacaniano, assistimos a uma apropriao macia e inescapvel do campo do vivo pelo significante.

Como resultado, o gozo permanece fora, e o que entra no sistema, o faz como falo, como significante, estabelecendo-se, finalmente, o

domnio do significante sobre o imaginrio.42

O gozo imaginrio absorvido no registro simblico e o Seminrio 5 (1999) de Lacan marca tambm este momento do ensino onde o falo absorvido como significante do gozo.A fantasia que, no primeiro paradigma, se localizava no eixo imaginrio, constitui, no41 42

MILLER, J.A. (2000) op.cit.p.90. HORNE, B. (2000) op.cit.p.53.

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segundo, uma nova cadeia significante. O objeto a advm como imagem significante : o imaginrio escrito no aparelho simblico.43

Os pontos fundamentais referentes esta etapa esto referidos disjuno entre as noes de significante e gozo, onde a verdadeira satisfao pulsional e todo suplemento inadequado esta satisfao. Este o paradigma do gozo absoluto, macio, gozo atribudo ao real. No primeiro paradigma, o gozo era considerado na vertente imaginria e, no segundo, na vertente simblica ; no terceiro, ser considerado no real.44 Neste ponto, o gozo est do lado de das Ding.

o que quer dizer das Ding () O que quer dizer das Ding, a Coisa ? Quer dizer que a satisfao, a verdadeira, a pulsional, a Befriedigung no se encontra nem no imaginrio nem no simblico, que ela est fora do que simbolizado, que ela da ordem do real. 45

Neste terceiro modelo, ento, o gozo valorizado fora do sistema e o acesso a ele s se d por foramento, isto transgresso. Da o comparecimento de personagens hericas neste Seminrio. Estamos diante de um herosmo do gozo.46 O quarto paradigma - o gozo fragmentadoou normal - tem como referncia o43 44

HORNE, B. (2000) op.cit. p.53. HORNE, B. (2000) op.cit. p.54. 45 MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.91. 115 MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.92.

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Seminrio 11 (1990), quando Lacan promove uma homologia de estrutura entre o inconsciente (estruturado como linguagem) e a pulso (funcionamento das zonas ergenas). O inconsciente o que se abre e se fecha tal qual uma zona ergena (boca ou nus). Neste ponto no podemos mais identificar se o corpo que parasita a mquina simblica ou se a mquina significante que parasitada pelo corpo. Temos, ento, a circunscrio de um gozo que comparece como excluso interna ao campo do simblico, sendo os objetos a, derivados de das Ding, agora totalmente despedaada, esfacelada. Portanto, pela ao do significante, numa temporalidade lgica, que se introduz a miragem do gozo absoluto, gozo de das Ding. Com o Seminrio 11 (1990), testemunhamos que os objetos a tm ao limitada, no apresentando carter incestuoso tal como das Ding. Vemos o reaparecimento do objeto como parcial, ou seja, um gozo fragmentado em pequenos objetos a. No lugar de das Ding, a Coisa macia dejetada no real, temos o furo no Outro. importante neste ponto marcarmos a preciosidade da passagem do Seminrio 7 (1997) para o Seminrio 11 (1990), onde assistimos, claramente, a parcializao e a incluso do gozo no campo do vivo. Com isso, a discusso entre corpo vivo e a linguagem parece encontrar um ponto de convergncia terica, j que se trata, no mbito da psicanlise lacaniana , de uma apropriao mtua. At o Seminrio da tica da psicanlise (1997), tnhamos um corpo apropriado pelo significante, o que nos indicava que a mquina simblica se apropriava do corpo vivo. Tratava-se, ento, conforme j mencionamos anteriormente, de uma relao de apropriao do vivo pelo significante. No nos esqueamos que no Seminrio 7 (1997)

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estamos em pleno imprio da primazia do significante. Com o Seminrio 11 (1990), assistimos algumas reformulaes. Lacan desmente a clivagem do significante e do gozo, forja uma aliana, uma articulao estreita entre eles. Trata-se de mostrar que o gozo no est em excesso em relao a esse simblico, mas que ele se insere no funcionamento do significante, que ele conexo ao significante. Portanto, neste momento, Lacan introduz o gozo no campo do vivo,

formalizando a passagem da Coisa s coisas. Isto , a prpria repetio pulsional se encarrega de engendrar o gozo como acontecimento na estrutura. Vemos, neste momento do percurso lacaniano, a evidncia de um gozo inerente ao circuito pulsional.

Enquanto que no Seminrio 7 preciso uma grande transgresso para alcanar o gozo, no Seminrio 11 aquilo que a separao comporta o funcionamento normal da pulso enquanto ela vem responder ao vazio () A operao conceitual que Lacan empreendeu no Seminrio 11 foi a de superimpor a estrutura do sujeito quela do gozo. Assim, do mesmo modo que o sujeito vale como falta--ser, o circuito da pulso inclui uma hincia, um pequeno buraco.47

De acordo com Coelho dos Santos48, essa comunidade de estrutura entre o47

Trecho do resumo traduzido e comentado por Tania Coelho dos Santos do artigo Os seis paradigmas do gozo de J.A. Miller, para os Seminrios de Pesquisa do P.P.G.T.P./ UFRJ, 2000/1, p.9. 48 Ibid. p.10.

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inconsciente e a pulso nos traz uma dificuldade : o objeto perdido, no ponto onde Lacan est, parece encontrar-se referido a uma perda natural, independente do significante. A perda do objeto, ou melhor, o buraco aqui introduzido como uma perda e justificado como uma perda natural49. Deste modo, temos de um lado a falta significante, e de outro uma falta natural articulada esta perda que se produz naturalmente, o que nos indicaria um deslocamento do sujeito, que passa de mquina significante a corpo vivo. Vemos aqui explcitas referncias ao texto freudiano Alm do Princpio do Prazer (1920), quando Freud aponta, justamente, a perda de vida inerente aos seres de reproduo sexuada. Nestes casos, constata-se que a morte introduzida ao mesmo tempo que a vida, no se tratando, portanto, de uma aquisio tardia.50 Neste ponto, Lacan parece estar considerando a possibilidade de acesso a uma satisfao, um gozo que comparece como excluso interna ao prprio campo compreendido pela castrao. Gozo extimo castrao, no sentido de no antes simbolizado. Gozo da novidade, do sempre novo. Gozo discursivo- chegamos ento ao que Miller considerou como sendo o quinto paradigma .

Na continuao do ensino de Lacan, o gozo portanto distribudo sob a figura do objeto pequeno a, quer dizer, de uma instncia, muito mais modesta, reduzida, mais manejvel do que a

49 50

Id. p.10. A este respeito ver o texto freudiano Alm do princpio do prazer (1920), onde Freud estabelece uma distino entre a reproduo por cissiparidade e a reproduo sexuada, indicando, justamente, que esta implica uma perda de vida.

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Coisa. 51

, neste sentido, que Lacan, no Seminrio 17 (1992), fala em mais-de-gozar, indicando, justamente, que este o gozo da pulso por excelncia. A noo de mais-degozar implica em fazer da falta (falta-a-ser) causa de gozo (mais-de-gozar). Portanto, trata-se da promoo da noo de falta condio de potncia de gozo, e no simplesmente carncia, tal como podemos evidenciar em relao ao gozo mitigado referido ao objeto incestuoso. Lacan vai implicar, portanto, a falta-a-ser como mais-degozar. E neste sentido, o sujeito lacaniano deixa de ser identificado quele que carece de gozo, para se constituir, justamente, como aquele que goza na falta. Com o Seminrio 17 (1992), Lacan faz equivaler sujeito e gozo. Esta a novidade introduzida neste paradigma : o avesso da psicanlise o gozo. O avesso do desejo o gozo. importante sinalizarmos que no se trata da considerao do gozo enquanto avesso ao desejo. A sutileza aqui est no fato de que a lgica do significante engendra em seu percurso o avesso e o direito, ou seja, a dupla face do significante. Neste sentido, cada elemento traz, necessariamente, em excluso interna, o seu avesso. Com isso, o desejo no se define seno pelo gozo, e o sujeito, em sua dupla face, dividido entre o desejo e o gozo. At as formulaes reunidas no quinto paradigma, estaramos num primeiro tempo de Lacan, marcado pela descrio da estrutura, da articulao entre os significantes, um tempo do Outro. Num segundo momento, marcado pela articulaes dos paradigmas posteriores, a questo era saber como que o ser vivo, o organismo, a

51

MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.95.

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libido eram capturados pela noo de estrutura.52 O que Miller assinala que esta noo de gozo discursivo, que marca o quinto paradigma, traz em si a idia de que a relao entre significante e gozo primitiva, originria. Coelho dos Santos, acompanhando Miller, nos adverte para o fato de precisarmos, neste ponto, estabelecer dois paradigmas distintos de gozo: o primeiro deles marcado pelo gozo mtico, onde ao menos um no se sujeita castrao. O exemplo aqui o pai da horda primeva relatada por Freud em Totem e Tabu (1913), com a consequncia lgica do gozo estar referido ao pai morto, aquele a quem nada falta. Isto justificaria o fato de que o acesso a este gozo implica, necessariamente, transgresso, atravessamento da barreira da fantasia. O gozo de das Ding , portanto pensado como fora da simbolizao, um gozo absoluto. Num segundo registro, entretanto, o gozo passa a se articular com o pai vivo, esvaziado, miservel, falante, castrado e, por isso mesmo, desejante (de uma mulher). Este mais-de-gozar, ento, de acordo com Miller, seria como aquilo que, promovendo o gozar, mantm a falta-degozar53 o que amplia o repertrio dos objetos pequeno a.

o que Lacan chama de midos objetos pequeno a, o que pulula na sociedade para causar nosso desejo e tamponar a falta de gozo, mas apenas por um instante, pois a repetio no se detm. 54

A este respeito, Miller coloca ainda que se trata de um deslocamento sensvel

52 53

MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.96. MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.100. 54 MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.100.

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entre a relao do gozo com a fantasia e com a repetio, o que ir implicar um novo valor para o conceito de sintoma. A travessia da fantasia, como j mencionamos, traz em si a idia de transgresso e, neste sentido, a direo de um tratamento psicanaltico se daria no sentido de convidar o sujeito a ir mais alm, na direo do vazio, da destituio subjetiva, ou ainda, como bem nos indica Miller, o efeito esperado de um final de anlise seria a queda do sujeito suposto saber e da assuno do ser de gozo.55 No que se refere relao do gozo com a repetio, Miller nos indica que a repetio , de algum modo, a forma desenvolvida do fantasma, tal como o fantasma uma espcie de forma concentrada da repetio. E, neste sentido, a repetio o que merece ser chamado de sintoma (), uma repetio de gozo. uma constante que se prolonga, que dura.56

O sintoma, tal como ele tomado na ltima parte do ensino de Lacan, comporta em si mesmo, o desenvolvimento temporal dessa relao com o gozo, que no se presta transgresso, mas, se presta muito mais ao que Lacan chama, em O Avesso da Psicanlise, de entrar de fininho, ou o que alhures, eles chamam de saber como fazer com o sintoma. 57

Temos, portanto, neste quinto paradigma, a considerao de uma relao55 56

MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.100. MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.100. 126 MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.100.

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originria e indissocivel entre significante e gozo que pode ser compreendida a partir do conceito de mais-de-gozar. E com isso, o Seminrio 20 (1985), que ir inaugurar o sexto paradigma, entitulado por Miller, de a no-relao. Neste momento de seu ensino, Lacan passa a considerar que o que caracteriza a relao do significante com o gozo a no relao, o corte, sendo que a interseo vazia entre estes conjuntos passa a ser susceptvel de ser preenchida por um certo nmero de termos que podemos considerar, nesta perspectiva, como suplncias, operadores de conexo entre os dois conjuntos.58 Neste sexto paradigma, o gozo um fato. H gozo, segundo Miller, e h gozo no campo do vivo, do corpo vivo.

() trata-se de uma definio que relaciona o gozo unicamente ao corpo vivo. Sem dvida s h psicanlise de um corpo vivo e que fala.59

A sutileza em relao a este paradigma talvez seja o fato de que, nesta etapa, disjuno no-relao. Mas o que isso nos indica ? De acordo com Miller, estamos em tempos de um gozo que passa ao largo do Outro. Gozo do Um, assim denominado por Lacan essa nova categoria de gozo, desprendido de qualquer idealismo, que se apresenta no corpo prprio. Sempre o corpo prprio quem goza, por qualquer que seja o meio.60 Seguindo esta nova perspectiva, tambm a palavra no visa mais o reconhecimento ou a compreenso. Trata-se de uma modalidade de gozo. Resumindo,

58 59

MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.101. MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.102. 60 MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.103.

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trata-se de tomar a palavra como um modo de satisfao especfica do corpo falante.61 Segundo Miller, nesta etapa, Lacan opera na vertente do para alm do dipo sem, entretanto, submeter uma ordem outra. Esta nova formulao serve para limitar, e no simplesmente subordinar ou excluir o imprio da estrutura que comparecia, at este momento, como uma necessidade que se impe a tudo o que , a tudo que se manifesta, aos fenmenos.62 De com Miller, a novidade do Seminrio Mais, ainda (1985) de Lacan explorar tudo que subtrado da necessidade. Tudo o que no provm mais da necessidade nos deixa muito mais exigentes quanto necessidade 63 o que combina bem com a idia de que o gozo seja propriedade do corpo vivo. H gozo. Isto um fato. Pois bem, h gozo, isto um fato, e mais, se trata de um gozo que passa ao largo do Outro. O que dizer, ento, do pai ? Como podemos pensar a relao entre estes paradigmas do gozo em Lacan e a funo paterna de Freud a Lacan ? esta trajetria, proposta por Miller, que culmina com a no- relao entre significante e gozo, podemos fazer corresponder um paralelo declnio da funo paterna, dos ideais ? contrrio, se trata de resgatar o ideal paterno ? Ou, ao

61 62

MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.104. MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.104. 63 MILLER, J.A. (2000) op.cit. p.104.