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INDÍGENAS DOS SÉCULOS XVI-XVII EM SÃO FRANCISCO DO SUL- SC 1 Vitor Marilone Cidral da Costa do Amaral Dra. Dione da Rocha Bandeira Dra. Roberta Barros Meira (Universidade da Região de Joinville UNIVILLE) Resumo: Dentro deste projeto, busca-se a compreensão dos povos autóctones que viveram na região da Baía da Babitonga, até o século XVII. Como também a relação destes indígenas com os viajantes destes séculos. Exemplo disso eram Álvar Núñez Cabeza de Vaca, Hans Staden, Ulrich Schmidel e Aleixo Garcia. Portanto, este trabalho aborda os olhares destes viajantes sobre estes indígenas, como também sua contribuição para os navegadores que chegavam ao Litoral Norte Catarinense. Para isso, o projeto se apoia em documentações primárias do período, como os diários de bordo dos navegadores e as cartas jesuíticas do Sul do Brasil. Esta não é uma questão nova. Embora, releva notar que esses dois séculos tem sido muito pouco abordados pela bibliografia. O conjunto documental trabalhado revela um olhar diferente, apresentando as singularidades, o exótico, o imaginário e as primeiras etnografias sobre os diferentes povos indígenas que encontraram esses viajantes nas suas travessias pelo Novo Mundo. Explica-se assim a escolha por uma pesquisa interdisciplinar, que parte da História e da Arqueologia para trazer novos elementos para a História indígena. Palavras-chave: Relatos de Viajantes; Indígenas; Litoral Norte Catarinense. 1 Este trabalho de Iniciação Científica está vinculado ao projeto guarda-chuva intitulado: Cultura material e patrimônio arqueológico pré-colonial da costa leste da ilha de São Francisco do Sul/SC- contribuição para uma arqueologia da paisagem costeira e estudos de etnicidade. Conta com o apoio financeiro da FAPESC e FAP/Univille e vincula-se à linha de pesquisa Patrimônio e Sustentabilidade do Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade e ao grupo de estudos Arqueologia e Cultura Material/ArqueoCult da Univille.

INDÍGENAS DOS SÉCULOS XVI-XVII EM SÃO FRANCISCO … · substancial entre a quantidade de relatos portugueses e os de outras ... indígenas podem justificar várias picadas encontradas

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INDÍGENAS DOS SÉCULOS XVI-XVII EM SÃO FRANCISCO DO SUL- SC1

Vitor Marilone Cidral da Costa do Amaral Dra. Dione da Rocha Bandeira

Dra. Roberta Barros Meira (Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE)

Resumo: Dentro deste projeto, busca-se a compreensão dos povos autóctones que viveram na região da Baía da Babitonga, até o século XVII. Como também a relação destes indígenas com os viajantes destes séculos. Exemplo disso eram Álvar Núñez Cabeza de Vaca, Hans Staden, Ulrich Schmidel e Aleixo Garcia. Portanto, este trabalho aborda os olhares destes viajantes sobre estes indígenas, como também sua contribuição para os navegadores que chegavam ao Litoral Norte Catarinense. Para isso, o projeto se apoia em documentações primárias do período, como os diários de bordo dos navegadores e as cartas jesuíticas do Sul do Brasil. Esta não é uma questão nova. Embora, releva notar que esses dois séculos tem sido muito pouco abordados pela bibliografia. O conjunto documental trabalhado revela um olhar diferente, apresentando as singularidades, o exótico, o imaginário e as primeiras etnografias sobre os diferentes povos indígenas que encontraram esses viajantes nas suas travessias pelo Novo Mundo. Explica-se assim a escolha por uma pesquisa interdisciplinar, que parte da História e da Arqueologia para trazer novos elementos para a História indígena. Palavras-chave: Relatos de Viajantes; Indígenas; Litoral Norte Catarinense.

1Este trabalho de Iniciação Científica está vinculado ao projeto guarda-chuva intitulado: Cultura material e patrimônio arqueológico pré-colonial da costa leste da ilha de São Francisco do Sul/SC- contribuição para uma arqueologia da paisagem costeira e estudos de etnicidade. Conta com o apoio financeiro da FAPESC e FAP/Univille e vincula-se à linha de pesquisa Patrimônio e Sustentabilidade do Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade e ao grupo de estudos Arqueologia e Cultura Material/ArqueoCult da Univille.

1. Introdução

Este trabalho tem como objetivo compreender as ocupações indígenas no

município de São Francisco do Sul-SC, como também por todo litoral norte de Santa

Catarina. Para isso, são abarcados principalmente relatos de viajantes, cartas

jesuíticas e revisões bibliográficas.

Sobre o período e região em destaque, percebe-se que há uma diferença

substancial entre a quantidade de relatos portugueses e os de outras

nacionalidades. Chama a atenção, no entanto, a produção de importantes escritos

por autores de diversas nacionalidades. Exemplo disso seriam os relatos feitos por:

Ulrich Schmídel (1534), Álvar Núñez Cabeza de Vaca (1541) e Hans Staden (1550).

A diversidade desses autores e as suas diferentes visões e impressões nos

propiciam uma ideia da natureza e da ocupação indígena na região, compreendendo

melhor suas ocupações pelo território de Santa Catarina. Mas, principalmente, a

importância do conhecimento geográfico que os indígenas tinham sobre a região,

que levaria europeus a outras civilizações em busca de metais preciosos.

2. Relatos de viagem e descrição sobre hábitos indígenas

Durante todo o século XVI, muitos foram os viajantes, navegadores e

soldados europeus que chegaram à Santa Catarina, principalmente os espanhóis.

Neste momento, a Europa passava por escassez de metais preciosos e, por meio

das navegações transatlânticas no Novo Mundo, puderam, ao chegar às costas

litorâneas de Santa Catarina, ter conhecimento de rotas indígenas que davam

acesso aos metais preciosos como o ouro e a prata. Para tanto, as informações

recolhidas dos indígenas do litoral foram cruciais para os viajantes na busca destes

metais. Como aponta Sérgio Buarque de Holanda:

Na América, ao recolher dos indígenas vagas notícias sobre a existência de serras ofuscantes, o adventício limitou-se, provavelmente, a transmudar, segundo sua esperança ou cobiça, a matéria que nelas fulgia, fosse embora

neve, quartzo ou mica. A tão pouca se reduziria sua parte na elaboração e desenvolvimento ulterior desse mito. (HOLANDA, 2000, p.84).

O imaginário que se tinha da América, na Europa do século XVI, perpassava

entre o desconhecido (mítico) e uma realidade cartográfica e espacial de um mundo

onde se poderia colher riquezas. Eram as utopias do Novo Mundo que traziam

aventureiros da Europa por estas terras. E, consequentemente, levaram às

interações desses homens com os indígenas do litoral norte de Santa Catarina.

Apesar das utopias sobre estas terras e a frequente entrada de espanhóis em Santa

Catarina, em 1530, Portugal envia Martin Afonso de Souza, para demarcar um ponto

ao sul do Tratado de Tordesilhas. Antes disso, segundo Pereira (2004, p. 40), “[...]

esse largo trecho de costa até o Rio da Prata no mais completo abandono, à mercê

de qualquer outra nação que se aventurasse firmar pé aqui [...]”. E com as inúmeras

navegações estrangeiras, Martim Afonso de Souza foi à resposta da Coroa

Portuguesa diante dessas navegações. Conforme Schwartz e Lockhart (2002, p.

221) “Em 1530, ficou claro que Portugal tinha de decidir: ou tomava posse do Brasil

de modo mais permanente ou perdia sua terra para os ativos rivais europeus”. Neste

período, “as notícias da grande riqueza do Peru sacudiram a Espanha e fizeram os

espanhóis se afastarem de sua prática geral de expansão passo-a-passo”.

(SCHWARTZ; LOCKHART, 2002, p. 305). E em 1545, com a exploração do Alto

Peru (atual Bolívia), foram encontradas as minas de Potosí, onde teve um valor

bastante significativo para a Coroa Espanhola e, atrairia novas expedições.

A expedição militar de Martim Afonso de Sousa de 1531 – é a reação portuguesa à crescente presença de estranhos no litoral brasileiro – coincide com a conquista do Peru [...]. E as frotas seguintes vão se alternando nesse ritual que ora alarga e ora faz recuar o meridiano de Tordesilhas em favor de uma ou da outra Coroa. (CARUSO, 2007, p. 32)

Neste momento, diversas são as crônicas (relatos) e gravuras que estão

sendo publicadas na Europa. Além de descreverem a fauna deste Novo Mundo,

estes viajantes descrevem os nativos da região. É partindo dessas notícias, do

imaginário de serras ofuscantes onde se poderia encontrar ouro e prata, que temos

notícia do navegador Aleixo Garcia, quando participou da expedição de Juan Díaz

de Solís. Embora Aleixo Garcia sofresse com um naufrágio, não podemos

desconsiderar que neste momento, (séc. XVI), havia intenções de procura de metais

preciosos por estes navegadores.

Os textos produzidos na América ou sobre este continente durante o período de domínio espanhol existem em quantidade gigantesca. Cada região gerou uma série de relatos sobre os diferentes grupos indígenas, seus costumes, características e crenças, o contato com os europeus, o processo de Conquista, colonização e catequese, a fauna e a flora etc. Muitos desses documentos passaram a ser chamados genericamente de “crônicas”, conceito que, apesar de ser muito utilizado, foi pouco problematizado pelos historiadores, sendo frequentemente interpretado como sinônimo de relato do período colonial sobre o Novo Mundo. (FERNANDES; KALIL, 2011, p. 47).

Os relatos de viagem além de descrevem a fauna e o exótico, também

descrevem os nativos desse Novo Mundo. Essas descrições, não passavam de

representações do outro. Nas palavras de Lohn (2004, p.44); “A América tornou-se a

concretização desse enorme e poderoso conjunto de imagens e representações”. E

assim, os nativos eram descritos.

Sobre Aleixo Garcia, pouco se sabe sobre suas experiências em Santa

Catarina. Após o náufrago, Aleixo Garcia estabeleceu contato com os Carijó e,

através de estratégias de sobrevivência, tomou conhecimento de terras onde

poderia encontrar metais preciosos, como também encontrar alimentos,

apropriando-se do conhecimento indígena. “E assim, Aleixo Garcia, ajudado pelos

indígenas que habitavam a região, fez uma longa incursão pelo interior, atingindo,

em 1524, a região onde hoje se situa o Paraguai”. (COSTA, 2011, p. 35).

Essa é uma questão importante de acentuar-se. Pois, a incursão de Aleixo

Garcia destaca um sentido horizontal de ocupação indígena. E principalmente,

demonstra que os indígenas do litoral não viviam isolados naquela região. Isso é

perceptível pela própria ocupação Guarani, que ocupava quase todo sul do Brasil.

Como aponta o historiador Romão Kath e a arqueóloga Dione da Rocha Bandeira:

A presença indígena na região norte de Santa Catarina foi bastante intensa, e é certo que existiam formas de comunicação entre os grupos, seja fluvial ou terrestre – no segundo caso, pela utilização de picadas que serviam para os grupos se deslocarem por determinadas áreas e regiões, buscando alimentos ou mantendo laços de hospitalidade. Esses deslocamentos

indígenas podem justificar várias picadas encontradas como ligação entre o litoral e o planalto, como mencionado por Gonneville e Solis. (KATH; BANDEIRA, 2015, p. 03).

Esses deslocamentos podem ser perceptíveis na descrição de Candela

sobre o indígena guarani chamado de Magorary, que era prisioneiro dos indígenas

Guaxarapos.

La primera información que nos parece interesante destacar es la pertenencia del testigo Magoary a la comunidad de los carios. Sin embargo, Magoary no se encuentra en su comunidad y aparece como prisionero de los indios guaxarapos. Los indios guaxarapos pertenecen a la lista numerosa de indios chaqueños quinientistas, quienes se disputaban com los carios-guaraníes la supremacía del río Paraguay. En efecto, por medio de la lengua guaraní los intérpretes europeos irán reconstruyendo el entramado geopolítico de la zona a medida que van realizando las preguntas. (CANDELA, 2014, p. 03)

Neste momento, havia uma grande migração guarani para as regiões do

Paraguai e proximidades2. Uma questão de análise importante, é o uso dos termos

“Carijó” e “Guarani” nestes relatos. De acordo com Combés (2010 apud LANGER,

2011, p. 08) “[...] a partir de meados do século XVI Carijó tornou-se sinônimo de

guarani e, do mesmo modo, abrangente que referia tanto os grupos do litoral sul do

Brasil (Carijós), quanto os da cordilheira andina – Carios de la sierra”.

Após Aleixo Garcia ter ido junto ao povo Carijó, alcançando depois, o rio

Paraguai. No ano de 1525, segundo Lohn (2004, p. 57), “foi morto numa cilada cuja

autoria não é certa e jamais chegou a ser esclarecida”. De acordo com Holanda

(2000, p. 89), Aleixo Garcia foi “trucidado, (...) pelos índios, ao chegar, no seu

regresso, à margem do Paraguai. Garcia ainda tivera tempo de mandar emissários a

Santa Catarina com avisos e amostras do metal achado”.

Estes viajantes, como Aleixo Garcia, enunciavam uma América repleta de

riquezas ao descrever as amostras de metais achados. Logo em seguida, temos

Álvar Núñez Cabeza de Vaca, que ao tomar conhecimento de rotas indígenas e de

2Como aponta Martti Parssinen: “Essa migração teria acontecido por volta de 1520, sendo acompanhada pelo aventureiro português Alejo Garcia. Depois que Nordenskiöld publicou as evidências em seu famoso artigo “A invasão guarani do império Inca no século XVI: uma migração indígena histórica”, alguns estudiosos levantaram a possibilidade de que certos grupos guaranis teriam entrado na área fronteiriça Inca, na atual Bolívia, já em tempos de Topa Inca, no século XV (Means, 1917:482- 484; Pärssinen, 1992:132; Renard-Casevitz et al. 1986:122). PÄRSSINEN, Martti. Quando começou, realmente, a expansão Guarani em direção às Serras Andinas Orientais. Revista de Arqueologia, São Paulo, v.18, p.51-66, 2005. p. 52.

serras onde se poderia colher riquezas, tentou empreender a sua própria jornada.

Conforme Lohn (2004, p. 58), “a partir de 1543, em busca de povoados de “terra

adentro”, para encontrar os índios que possuem ouro e prata”. Uma questão

importante de explanar, é sobre as informações de metais preciosos e povoados no

interior, que eram relatadas aos viajantes que chegavam à costa litorânea, pelos

indígenas. E como isso foi importante, pois, todos os viajantes que chegavam ao

litoral, se baseavam nas informações de outros europeus que seguiam as rotas

expostas pelos indígenas.

Nomeado como governador da Província do Rio da Prata a mando do Rei da

Espanha, Carlos V, em “Madrid no dia 15 de abril do ano de 1540, Cabeza de Vaca

recebeu o título de adelantado do Rio de la Plata”. (NEETZOW, 2001, p. 20). Após

sua nomeação, em dezembro de 1540, partiu da Espanha rumo à Província do Rio

da Prata, chegando à Ilha de Santa Catarina em 1541.

[...] Alvar Núñez se embarcó nuevamente en diciembre de 1540, esta vez como adelantado, gobernador y capitán general del Río de la Plata, aunque bajo la condición de que el desaparecido Juan de Ayolas hubiera muerto. Tras volver a naufragar, esta vez cerca de la costa de Brasil, en la isla de Santa Catalina [...]. (MAURA, 2011, p. 25).

Após sua chegada à Ilha de Santa Catarina, esteve seis meses junto aos

carijó recolhendo informações do caminho antes percorrido por outros espanhóis.

“Caminhos estes que aproximaram o Pacífico e o Atlântico e uniram etnias, ideais e

novas terras”. (CORRÊA, 2010, p. 09). O que se deve deixar claro, é que os

indígenas foram cruciais para a sobrevivência de Cabeza de Vaca e outros viajantes

que estavam juntos ao governador. Neste momento, eram os indígenas do litoral

que tinham o domínio de rotas e, ao mesmo tempo, a prática da plantação de

alimentos. Isso é importante, pois aponta para os hábitos de alimentação indígena,

assim como a troca de mantimentos. Saberes e conhecimentos que foram cruciais

para a sobrevivência de Cabeza de Vaca e sua tropa.

[...] o “bom tratamento” que o governador dispensa aos índios é mencionado três vezes, bem como o espírito “pacífico” destes. Os presentes dados pelos europeus – e em particular pelo governador – são sempre “régios”,

“generosos”, “abundantes”. Igualmente abundante seria a comida recebida pelos conquistadores. (MARKUN, 2009, p. 152).

Cabeza de Vaca ressalta ainda, que os guarani que habitavam o território

cultivavam mandioca pelo menos duas vezes ao ano e milho. “Além de ocuparem

um vasto território, criavam patos e galinhas, eram gente muito amiga, mas também

muito guerreira e vingativa”. (MARKUN, 2009, p. 151).

Os Tupi das zonas costeiras viviam no nível econômico das culturas simplesmente plantadoras. Conheciam uma forma primitiva da agricultura, que era realizada mediante as queimadas, das roças. Entre as plantas típicas cultivadas figura a mandioca, que ainda hoje é de grande importância na alimentação da população brasileira, assim como o milho, o feijão e algumas plantas industriais. Também eram coletados frutos de plantas tropicais. Ao lado disso, a caça e a pesca, nos rios e no mar, tinham uma certa importância. Como os animais domésticos, os indígenas sustentavam, sobretudo, os papagaios, cujas penas eram muito cobiçadas como adornos. (THOMAS, 1982, p. 14).

Conforme Santos (1998 Apud Costa, 2011, p. 21); “A população indígena que

vivia na área litorânea foi chamada pelos europeus de Carijó. Era uma população de

tradição Tupi-Guarani, que, dividida em várias tribos e aldeias, habitavam grande

parte do território brasileiro”.

Apesar dos guarani serem os mais gentis e brandos com os espanhóis e

muitas historiografias abordarem desta forma. Estes discursos estavam

intrinsecamente ligados às visões dos viajantes espanhóis sobre os guarani. Pois,

estes guaranis tinham seus interesses e, ao mesmo tempo, estavam em guerras

com outros grupos étnicos, principalmente os aliados aos portugueses.

[...] afirmar que os guaranis foram inicialmente e majoritariamente incorporados à colonização porque eram mais dóceis é reproduzir os discursos dos europeus em relação aos índios. Esses discursos estão intrinsecamente relacionados com suas práticas e intenções. Assim, enunciar os atributos dados aos diversos grupos indígenas sem precisar o que motivava esta qualificação, resulta numa análise incompleta, que invariavelmente reproduz o discurso do “vencedor”. (SPOSITO, 2013, p. 11).

E assim temos as primeiras “etnografias”, surgidas nos relatos de viajantes

que traziam consigo discursos civilizatórios, descrições do exótico e representações

que se fizeram verdade em uma Europa recém-saída da Idade Média. Além de

Cabeza de Vaca, temos nesse período na região platina o germânico Ulrich

Schmídel e seus relatos são importantes para pensarmos os guarani nestas regiões

Ulrich Schmídel chegou à região do Rio da Prata em 1535. Em 1542, serviu

como adelantado para o então governador Cabeza de Vaca, no qual testemunha ter

certas “rixas”. “A data do início da viagem de Schmidell é de 1534 e seu retorno em

1554. Estava ele a serviço do rei da Espanha, Carlos V de Habsburg”. (NEETZOW,

2001, p. 08).

En 1535 llegó al Río de la Plata. Fue uno de los primitivos fundadores de Buenos Aires en la embocadura del Riachuelo, y se halló en la batalla de Matanza, en que murió el Hermano del adelantado. [...] En 1536-1537 formó parte de la expedición de Ayolas, sucessor de Mendoza, subiendo los ríos Paraná y Paraguay para descobrir nuevas tierras, fue uno de los fundadores de la Asunción, después de assistir a todos los combates que precedieron a este establecimiento. [...] En el Paraguay continuó guerreando por el espacio de cuatro años. Desde 1542 sirvó com el Adelantado Alvar Núñes Cabeza de Vaca, del que se muestra enemio, y a quien trata con menosprecio, juzgándolo con su critério de aventureiro: “No era hombre para tanta empresa –dice en su historia, -y le aborrecían todos porque era perezoso y poco piadoso con los soldados. (SCHMÍDEL, 2013, p. 17-18).

As “rixas” entre Ulrisch Schmídel3 e Álvar Núñez Cabeza de Vaca podem ser

explicadas pela disputa pelo título de governador entre Cabeza de Vaca e Domingo

Martinez de Irala. “Todavia a coroa espanhola não estava certa da morte desse

último. Por isso, que a princípio o cargo ainda pertenceria a Ayolas. Mas estando ele

morto, Cabeza de Vaca seria seu sucessor”. (NEETZOW, 2001, p. 20).

O cargo de governador e Adelantado é concedido a Domingo Martínez de Irala, no qual teve inicio a uma série de entrigas (sic) políticas e administrativas entre ele e Alvar Nuñes Cabeza de Vaca que deverá tomar posse em nome do rei. Portanto, um eleito na América e o outro tendo mando provindo do rei de Espanha. Por se tratar de dois concorrentes, houveram aqueles que se aliaram um e a outro. Schmidell deixa claro a sua preferência [...]. (NEETZOW, 2001, p. 19).

3Diversas são as formas que se pode encontrar o nome de Schmídel. Sendo as mais encontradas como: Schmídel e Schmídell.

Após a vinda destes viajantes que aqui estavam descrevendo sobre as

populações indígenas, temos também a chegada do germânico Hans Staden. Sua

chegada se deu no ano de 1550 e suas descrições são importantes para pensarmos

que os Carijó que viviam no litoral de Santa Catarina estavam já acompanhados

pelos espanhóis.

Pouco depois vimos, ao avançarmos, cinco barcos cheios de selvagens que remavam em nossa direção. [...] quando chegaram mais perto, vimos um homem vestido e com barba. [...] vimos que era cristão. Gritamos que se aproximasse com seu barco para que pudéssemos falar; os outros deviam ficar para trás. Quando isso sucedeu, perguntamos em que região estávamos, e ele disse: “Vocês estão no porto de Jurumirim, como os nativos o chamam, ou no porto de Santa Catarina, como os que descobriram batizaram-no”. (STADEN, 2010, p. 38).

Além das descrições sobre a estadia dos espanhóis com os Carijó do litoral,

Hans Staden também descreve sobre o habito alimentar dos nativos e a troca de

mantimentos. Nas palavras de Staden (2010, p. 38): “Os carijós eram tribo amiga

dos espanhóis, plantassem mandioca, de modo que os navios recebessem

alimentos dos selvagens, quando necessitassem”. Nesse relato, destaca-se a

associação feita por Hans Staden entre algumas mortes de indígenas com as

dificuldades entroncadas nas rotas seguidas pelos espanhóis. Como aponta Staden

(2010, p. 40): “Aqueles que iam por terra se abasteceram com mantimentos para a

marcha na selva. Também levaram consigo alguns selvagens. Muitos dentre eles

morreram de fome; os outros atingiram seu destino, como soubemos mais tarde”.

Por todo o período colonial, sabe-se que estes indígenas continuariam

morrendo por fatores diversos, como doenças e a escravidão. Nas palavras de

Lucas Boiteux (1950, p. 60), “[...] desde o início do povoamento europeu (séc. XVI),

pagaram o maior e o mais cruel tributo à fúria escravista, principalmente dos

moradores do litoral paulista”.

3. Os indígenas traçados pelos Jesuítas

A chegada dos jesuítas no Brasil é bastante significativa para podermos

pensar os diversos imaginários que se tinha sobre os indígenas na época4. Na

América, os religiosos desejavam civilizar os indígenas. “Para tanto, os ameríndios

teriam de abandonar os “vis costumes”, converterem-se e morrerem como cristãos”.

(RAMINELLI, 1996, p. 31). E como os guarani de Santa Catariana estavam em

constante migração para as regiões do Paraguai e Argentina5, as transformações

culturais causadas pelos jesuítas aos indígenas nestas regiões são expressivas.

Fazer análise historiográfica sobre os jesuítas, bem como os discursos nas

cartas, permite compreender as diferentes narrativas. Certeau (1982, p. 212), nos

leva a pensar sobre o uso das cartas como uma importante fonte primária. Pois,

segundo ele, a carta “[...] adquire uma pertinência epistemológica e social que não

tinha antes; em particular, torna-se o instrumento de um duplo trabalho que se

refere, por um lado à relação com o homem "selvagem", por outro à relação com a

tradição religiosa.” Se por um lado se faz uma crítica sobre a humanidade dos

indígenas, por outro, teve todo um viés religioso em catequizar e “domar” o

“selvagem”. Conforme Maria J. Leite e Möra (2008, p. 07) “(...) a ação jesuítica

tornou-se imprescindível para a purificação das almas, visto que embora os

indígenas fossem possuidores de uma humanidade diferente poderiam ser

resgatados pela catequização”.

4. Considerações Finais

A análise dos relatos de viagem é bastante significativo, pois demonstra que

os indígenas de Santa Catarina foram importantes e cruciais para a sobrevivência

dos europeus. Não apenas em Santa Catarina, mas em todo o Brasil. Como

também, auxiliam a compreender os hábitos dos indígenas na região, seja territorial,

seja alimentício, seja no âmbito social. Mesmo trazendo representações descritas

4É importante enfatizar que neste momento, diversas eram as representações sobre o indígena, como “selvagem”, “gentis” e até mesmo, tanto as cartas escritas pelos jesuítas, como os relatos de viajantes, estes indígenas na maioria das vezes eram representados como inferiores. Inclusive, questionava-se sua humanidade. 5Neste caso, refiro-me as Companhia de Jesus inserida nestes países e a entrada dos Guarani nestas regiões, que involuntariamente, muitos deles acabaram passando por estas companhias.

por cristãos, brancos e europeus, os relatos buscam retratar, em uma análise crítica,

o cotidiano destes viajantes diante do desconhecido.

Quanto às questões jesuíticas, é importante observar que as narrativas

daquele momento colocavam os indígenas numa posição inferior, desconsiderando

suas crenças, seus costumes e sua humanidade. E também, perceber como ainda

essas narrativas está presente no Brasil. Compreender inclusive que os indígenas

não foram apenas importantes pelo conhecimento geográfico ou métodos agrícolas,

mas sim, para a formação brasileira como um todo.

As fontes primárias, como os relatos de viagem, são importantes por

possibilitar, como documento, uma análise mais sistemática sobre o período. E

principalmente, perceber os discursos usados pelos europeus diante do

desconhecido, das representações e dos imaginários.

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