16
ISSN 0102-0625 Indígena Krahô em manifestação na cidade de Palmas, Tocantins. Foto: Renato Santana/Cimi Ano XXXV • N 0 353 • Brasília-DF • Março 2013 – R$ 5,00 Páginas 8 e 9 Ofensiva ruralista contra a ocupação de terras tradicionais pelos povos indígenas ultrapassa as cercas para entrar com toda força no Congresso Nacional. Comissões da Câmara e do Senado viram tribunas para deputados e senadores da bancada ruralista atacarem indígenas e organizações de apoio. Na defesa de projetos que alienam as comunidades da posse de suas terras, parlamentares seguem com projeto colonizador e mexem num formigueiro. O movimento indígena reage! Seca puxa aumento de conflitos por água em 2012, aponta CPT Página 3 Povo Matsés denuncia prospecção de petróleo no Vale do Javari (AM) Página 7 Conselho Indígena de Roraima realiza assembleia sob a ameaça do latifúndio Página 12 Indígenas reagem à ofensiva ruralista

Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

ISSN

010

2-06

25

Indí

gena

Kra

hô e

m m

anife

staç

ão n

a ci

dade

de

Palm

as, T

ocan

tins.

Fot

o: R

enat

o Sa

ntan

a/Ci

mi

Em defesa da causa indígenaAno XXXV • N0 353 • Brasília-DF • Março 2013 – R$ 5,00

Páginas 8 e 9

Ofensiva ruralista contra a ocupação de terras tradicionais pelos povos indígenas ultrapassa as cercas para entrar com toda força no Congresso Nacional. Comissões da Câmara e do Senado viram

tribunas para deputados e senadores da bancada ruralista atacarem indígenas e organizações de apoio. Na defesa de projetos que alienam as comunidades da posse de suas terras, parlamentares

seguem com projeto colonizador e mexem num formigueiro. O movimento indígena reage!

Seca puxa aumento de conflitos por água em 2012,

aponta CPTPágina 3

Povo Matsés denuncia prospecção de petróleo no

Vale do Javari (AM)Página 7

Conselho Indígena de Roraima realiza assembleia sob a

ameaça do latifúndioPágina 12

Indígenas reagem à ofensiva ruralista

Page 2: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

2Março–2013

Dilma Machadão Porantinadas

Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.

ISSN

010

2-06

25

APOIADORES

Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Faça sua assinatura pela internet:

[email protected]

Preços:

Ass. anual: r$ 60,00

Ass. de apoio: r$ 80,00

Ass. dois anos: r$ 100,00

América latina: Us$ 50,00

outros Países: Us$ 70,00

Na língua da nação indígena sateré-Mawé, PorANTIM

significa remo, arma, memória.

Dom Erwin Kräutler Presidente do Cimi

Emília AltiniVice-Presidente do Cimi

Cleber César Buzattosecretário executivo do Cimi

rePorTAgeM:ruy sposati (Ms) e J. rosha (AM)

Luana Luizy - estagiária

AdMINIsTrAção:Marline dassoler Buzatto

seLeção de FoTos:Aida Cruz

edITorAção eLeTrôNICA:Licurgo s. Botelho (61) 3034-6279

IMPressão:gráfica Teixeira (61) 3336-4040

redAção e AdMINIsTrAção:sds - ed. Venâncio III, sala 310 CeP 70.393-902 - Brasília-dF

Tel: (61) 2106-1650Fax: (61) 2106-1651

[email protected]

registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º ofício

de registro Civil - Brasília

edIToresRenato Santana – rP: 57074/sPPatrícia Bonilha – rP: 28339/sP

CoNseLho de redAçãoAntônio C. Queiroz, Benedito Prezia, Egon D. Heck, Nello Ruffaldi, Paulo Guimarães,

Paulo Suess, Marcy Picanço, Saulo Feitosa, Roberto Liebgot, Elizabeth Amarante Rondon e

Lúcia Helena Rangel

Editorial

o último dia 12 de março, o Diário Oficial da União trouxe o Decreto Presidencial nº 7.957/13, que altera o Decreto

nº 5.289, de 29 de novembro de 2004 e legaliza a repressão militarizada a todo e qualquer ato de resistência da sociedade civil organizada contra a invasão de seus territórios por obras de infraestrutura.

O Decreto 7.957/13, “de caráter preventivo e repressivo”, institui, entre outras determinações, “a Com-panhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública”. Dentre os objetivos desta companhia está o de “prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos técnicos sobre impactos ambientais negativos”.

Jorge Amado - escritor baiano e um dos grandes da literatura brasileira - consagrou em seu livro Gabriela, Cravo e Canela a personagem Maria Macha-dão, inspirada na cafetina Antonia Machadão. Ambas comandavam com mão de ferro o Bataclan, em Ilhéus (BA), casa que reunia cassino, música, espetáculos de dança e bebidas. No livro e na história, por lá se refestela-vam os coronéis das fazendas de cacau

NIbama devastado

O Ibama sempre foi o responsável pelos licenciamentos ambientais no Brasil. No entanto, o governo federal pretende acabar com tal prerrogativa pela Lei Complementar 140, que visa transferir para estados e municípios a função. Muito se fala em quem de-vasta o meio ambiente. Talvez fosse o caso de falar mais em quem deixa.

Credencial para humorista

O senador ruralista Blairo Maggi (PR/MT) estranhou os questiona-mentos sobre o fato de ter assumido a presidência da Comissão de Meio Ambiente do Senado. O senador disse estar credenciado para o posto devido a sua vida de empresário da soja e governador do Mato Grosso. Maggi está credenciado mesmo é para humorista... de péssima qualidade.

Assassino de Munduruku segue livre

Adenilson Kirixi Munduruku foi assassinado com três tiros, sendo um deles na testa, em novembro do ano passado na aldeia Teles Pires (PA), durante Operação Eldorado da Polícia Federal. Tudo foi filmado, fotografado e testemunhado por de-zenas de indígenas. Cadê o resultado da investigação isenta que o ministro da Justiça prometeu e até agora não saiu? O crime segue impune.

MARIOSAN

e demais integrantes da elite na Ilhéus da virada do século XIX para o XX.

O Bataclan faz parte da história nacional e hoje é um centro cultural. Já Maria Machadão ganhou a todos e todas como personagem de Amado. Qualquer semelhança com o Palácio do Planalto é mera coincidência e por aqui vale mais como figura de lingua-gem. Sim, porque Dilma Machadão decidiu que agora é assim: se povos indígenas ou comunidades tradicio-nais se negarem a aceitar a execução de projetos hidrelétricos em seus rios, qualquer ministro do Executivo ou mesmo ela própria podem solicitar a Força Nacional para garantir o projeto. A medida atende também a canteiros de obras já em execução, para caso de greves de trabalhadores.

“Prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos técnicos sobre impactos ambientais negativos”, diz o texto do decreto acerca das novas atribuições da Força Nacional. Existe impacto ambiental positivo? Para Dil-ma Machadão sim: são aqueles impac-tos que não possuem voz destoante. Assim como Maria Machadão, Dilma trata sua equipe com rédea curta e

que ninguém ouse descontentar os ruralistas que frequentam o Palácio do Planalto; antes eram plantadores de cacau, hoje são os de soja.

Dilma Machadão é pragmática e vibra por resultados, eficiência e nú-meros. Recebe quem bem entende e não deixa de demonstrar insatisfação quando é contrariada. Como Maria Machadão, Dilma é um produto do meio. Ministra das mais eficientes no tempo de Lula, foi sacada para uma missão que deveria ser de um dos fritados no óleo quente do chamado mensalão. Como o desenvolvimentis-mo já tinha virado modinha no gover-no federal, Dilma Machadão juntou o porco chinês com a vontade de comer soja - produzida em terras indígenas e áreas de conservação ambiental.

Tal como no Bataclan, no Palácio do Planalto há quem tenha se apaixo-nado pela elite que por lá se refestela; há os que a suportam por força de ofício. Porém, algo é bastante claro: a chefe, Dilma Machadão, está cada vez mais envolvida com as elites. Com o Decreto 7.953/13 já até denominou quem são os capangas para defender os interesses de seus fregueses.

Caras e máscaras

Blairo Maggi, agrobandeirante

Page 3: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

3 Março–2013

Destruição e poluição de mananciais, impedimento de acesso à água, apropriação privada e não cumprimento de procedimentos legais, dentre outros, são as razões apontadas pela CPT para o aumento do conflito pela água

C

Conjuntura

Roberto Malvezzi (Gogó)Assessor nacional e agente da Comissão

Pastoral da Terra (CPT) Bahia

omo era absolutamente pre-visível, cresceram de forma substancial os conflitos pela água em todo o Brasil em

2012, totalizando 115 conflitos, em 19 estados da União, envolvendo 184.925 pessoas. Uma das razões fundamentais, sem dúvida, é o registro dos conflitos acontecidos em função da seca (36), embora a própria Comissão Pastoral da Terra (CPT) reconheça que esse registro está aquém do real acontecido e em acontecimento, já que a longa estiagem não acabou.

Mas, a estiagem sozinha não explica o avanço dessa modalidade de conflito. Se retirados os 36 conflitos registra-dos especificamente como oriundos da seca, mesmo assim os conflitos totalizam 79, portanto, 11 a mais que em 2011.

Outro forte indicativo de que a seca não é a única razão do crescimento dos conflitos pela água é que aqueles registrados como oriundos da estiagem se concentram em apenas seis estados, sendo cinco do Nordeste e um da região Sul (Santa Catarina). Porém, os conflitos de água em geral abrangem 18 estados brasileiros. Dessa forma, a constatação é de que os conflitos pela água já adquiriram, efetivamente, uma dimensão nacional.

Os atuais conflitos mais específicos, gerados pela seca, em muito diferem dos conflitos das longas estiagens do passado. Contam-se na história 41 “grandes secas”, a começar pela primeira registrada pelo Padre Fernão Cardin, entre 1583 e 1585, no Nor-deste, quando o estado mais atingido foi Pernambuco. Naquela ocasião, os engenhos da Província não moeram, as fazendas ficaram sem água e cerca de cinco mil indígenas desceram o sertão em busca de comida.

Já não ocorrem as intensas migra-ções, a mortalidade infantil, os saques, as frentes de emergência e tantas outras graves situações que caracterizaram socialmente a seca, um fenômeno que é natural em algumas regiões. Como qual-quer outra região semi-árida do mundo, o Nordeste brasileiro sempre estará sujeito a secas periódicas. Isto porque uma das características naturais desse tipo de região é ter chuvas irregulares e mal distribuídas geograficamente.

Porém, este processo natural é bas-tante agravado pela falta de investimen-to em políticas públicas. Nesse sentido, persistem as ocupações de bancos e órgãos públicos, o fechamento de es-tradas e outros atos para reivindicar aos governos que implementem políticas públicas e obras estruturantes para empoderar e dar à população melhores condições de enfrentar os períodos de estiagem prolongada. As secas acon-

tecem todos os anos, mas a cada três décadas os períodos se emendam e elas se tornam mais prolongadas.

Outras razões levantadas pela CPT para os conflitos pela água são: destruição e poluição de mananciais, impedimento de acesso à água, apro-priação privada e não cumprimento de procedimentos legais, dentre outros. Esses problemas são causados em sua maioria esmagadora pela construção de hidrelétricas, barragens e açudes e por mineradoras. E eles são comanda-dos por empresários e pelos próprios governos estaduais e federal. Há um fenômeno não captado pelos dados que é a apropriação privada dos aquí-feros subterrâneos, particularmente no Oeste Baiano, e também das águas de superfície para finalidade de irrigação. Mesmo assim, os números evidenciam quem são os causadores dos problemas e quem são as vítimas.

Conflitos pela água aumentaram em 2012

O Brasil está desencadeando um processo paradoxal relativo à água: por um lado, prossegue no rumo da privatização dos serviços de água; da construção de grandes obras que afe-tam o acesso das populações à água; da poluição de mananciais; e da eliminação de mananciais pelo desmatamento e intenso uso da água para fins econô-micos, principalmente a irrigação. Por outro lado, desencadeou também um processo de abastecimento de água pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), no programa “Água para Todos” e no programa “Oferta de Água”, que inclui também a finalidade econômica. Vem daí a implementação de adutoras de médio e grande porte, sistemas simples de abastecimento para populações rurais, captação de água de chuva para beber e produzir, etc.

Esse paradoxo é explicado por uma razão simples: a falta de visão sistêmica dos gestores nacionais os impede de relacionar a lâmpada com o interruptor, ou seja, não conseguem estabelecer uma política que permita o acesso à água e que também preserve os mananciais. A ganância do capital – hi-dronegócio –, apoiada pela política dos governos, desequilibra uma gestão que necessariamente deveria ser holística.

Com essa política os conflitos pela água vão estar em linha ascendente. n

Conflitos 2012 Números Estados Famílias Pessoas

Seca 36 6 5.201 26.005

Água 79 5 + 13 = 18* 31.784 158.920

Total 115 19 36.985 184.925

Cinco estados registraram tanto conflitos por seca, quanto pela água. Treze, só conflitos pela água. Alagoas registrou só conflitos pela seca, perfazendo um total de 19 estados envolvidos nessa categoria de conflito.

Foto

: Arq

uivo

Cim

i

Foto

s: R

uy S

posa

ti

Page 4: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

4Março–2013

O governo sinaliza que

irá retirar da Funai

atribuições estabelecidas pelo Decreto 1775/1996 e

pela Portaria 14/1996/

MJ. Na foto, família

Guarani aguarda por demarcação de terras em

área retomada no Mato

grosso do Sul

Conjuntura

Paulo SuessAssessor Teológico do Cimi

arecia que foi a mão de Deus – não como no caso de Marado-na! - que escolheu, com o novo papa, um nome não esperado

pela opinião pública. “Os cardeais me buscaram dos confins do mundo” decla-rou o recém-eleito. Alegria espontânea no meio do povo, não necessariamente por ser um ítalo-americano, mas por dar sinais para a renovação da Igreja, não baseada na tecnologia, mas em atitudes humanas e na opção pelos pobres.

Primeiro espanto, aparição de um septuagenário que elegeu o nome “Fran-cisco”. O verdadeiro espanto é que nessa longa história da Igreja nenhum papa teve a ideia ou a coragem de escolher esse nome que é um programa.

Segundo espanto, o papa Francisco aparece na sacada do palácio “apenas” com a batina branca e não diz laudetur Iesus Christus, mas boa noite.

Terceiro espanto, o novo papa se inclina diante da multidão na Praça de

São Pedro e pede orações e a benção do povo, antes de ele dar a benção apostó-lica urbi et orbi1, prevista na cerimônia.

Quarto espanto, notícias da biografia de Jorge Mario Bergoglio que contam que o arcebispo e cardeal de Buenos Aires não atravessava sua metrópole com motorista e Mercedes, mas com transporte público, com ônibus e metrô.

Quinto espanto, outra notícia dessa mesma biografia de Bergoglio que se re-fere ao bispo cozinheiro. Desde a morte prematura de sua mãe aprendeu preparar seu almoço e outras comidas gostosas.

Sexto espanto, este jesuíta e bispo de Buenos Aires pertence a uma família de classe média e adquiriu uma simplici-dade franciscana e certa reserva contra a pompa curial. Por sua prática de pastoral e vida, Jorge Bergoglio pode hoje ser qualificado como “teólogo anônimo de libertação”, embora nunca tenha rezado pela cartilha da Teologia da Libertação.

1 [com esta expressão latina, que significa “à cidade de Roma e ao mundo”, o Papa oferece a sua benção de Páscoa e Natal ao público em geral na Praça de São Pedro].

Seu colega de Companhia, Karl Rahner, saberia bem explicar o significado desse anonimato.

Sétimo espanto, por conta de grupos que defendem os direitos humanos. A mídia nos informou que Bergoglio e sua Igreja argentina não mostraram atitudes proféticas durante a ditadura militar (1976-1983), como aconteceu em outras igrejas latino-americans. Nessa época, Mário Bergoglio ainda não era bispo, mas provincial dos jesuítas da Argentina (1973-1979). Como provincial, expulsou dois jovens jesuítas – Orlando Virgílio Yorio e Francisco Jálics – da Companhia de Jesus e dificultou a sua recepção na diocese de Morón do Salesiano Dom Miguel Raspanti.

Entre expulsão e trâmites de recep-ção, no dia 23 de maio de 1976, Yori e Jálics foram sequestrados pelas forças militares, torturados e, meio ano mais tarde (em 22 de outubro de 1976), expa-triados. A sincronização entre expulsão e sequestro dos dois ex-jesuítas indica certo “entendimento” entre autoridade eclesiástica e militar. Definitivamente

provado não foi. Bergoglio negou a sua colaboração com os militares. Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz de 1980, garantiu à BBC Mundo: “Não há nenhum vínculo que relacione Bergoglio com a ditadura”.

Segundo o Ritual Romano, o novo papa deu uma indulgência plenária aos fieis, urbi et orbi. Certamente, o papa Francisco pediu também para si mesmo essa indulgência de Deus e o perdão de Orlando Yorio e Francisco Jálics, com quem agora partilha o nome. Quem po-deria assumir a tarefa do papado, sem a misericórdia divina?

Brasil e suas pastorais desejam ao papa Francisco que ele, como seu padroeiro de Assis, no abraço dos le-prosos, que hoje se encontram não só na cúria romana, mas por toda parte do mundo, encontre sua missão profunda e conversão permanente. Desejamos que ele, como São Francisco, na oração diante do ícone da cruz na Igreja de São Damião, escute a voz de Jesus, que o convida para a reconstrução da Igreja em ruína, da qual todos fazemos parte. n

Foto

: Arq

uivo

/Cim

i

Conselho Indigenista Missioná-rio (CIMI) vem a público manifes-tar preocupação e alertar para as ameaças feitas pelo governo

federal, por meio do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, conforme declara-ções veiculadas pela imprensa, de que mu-dará o procedimento de demarcação das terras indígenas. A vontade do ministro, no entender do Cimi, revela a intenção de agradar setores da base política do governo federal no Congresso Nacional, especialmente aqueles articulados pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), que atualmente exercem uma violenta pressão contra os direitos constitucionais dos povos indígenas e quilombolas e que se articulam em torno da Frente Parlamentar da Agropecuária.

O governo sinaliza que irá retirar da Fundação Nacional do Índio (Funai) atribuições estabelecidas pelo Decreto 1775/1996 e pela Portaria 14/1996/MJ, relativas aos trabalhos de identificação e delimitação das terras indígenas no país. O que se pretende de fato é concretizar um ajuste político que imponha maiores

risco aos povos indígenas uma vez que a AGU já se posicionou, através da Por-taria 303/2012, contrária aos preceitos constitucionais indígenas.

O Cimi alerta que as mudanças anun-ciadas, caso efetivadas, irão aprofundar os graves problemas e violências que são cometidas contra os povos indígenas no Brasil. Não podemos aceitar que os povos indígenas sejam, uma vez mais, vitimados pelo governo brasileiro em função dos interesses de segmentos ligados ao latifúndio e ao agronegócio. Não podemos aceitar, uma vez mais, que indígenas e quilombolas sejam conside-rados entraves diante da ambição de segmentos que pretendem explorar suas terras. Não podemos aceitar, uma vez mais, que os direitos constitucionais dos povos indígenas sejam tratados como moeda de troca à mercê de articulações políticas e interesses privados.

Por fim, esperamos que ainda exista o mínimo de bom senso às instâncias do governo brasileiro a fim de que não se concretizem as mudanças sinalizadas pelo ministro da Justiça. n 

e mais profundas dificuldades e limites à efetivação dos direitos dos povos indígenas expressos no Artigo 231 da Constituição Federal.

Fazendo eco a argumentos falacio-sos dos ruralistas, o ministro da Justiça, estranhamente, vem questionando as atribuições da Funai de analisar e emitir parecer, no âmbito administrativo, acerca das manifestações contrárias aos estudos elaborados pelos Grupos de Trabalho (GTs) e apresentados em relatório circuns-tanciado de identificação e delimitação de terras indígenas. O ministro está esquecendo, no entanto, de salientar pu-blicamente que todos os procedimentos e pareceres emitidos no âmbito da Funai são submetidos a longa e criteriosa análi-se, pela consultoria jurídica do Ministério da Justiça, antes dele próprio decidir acerca da declaração de tradicionalidade de uma determinada terra indígena.

Além do direito ao contraditório, es-tabelecido pelo Decreto 1775, no ano de 1996, para atender as reivindicações dos setores contrários aos direitos indígenas, os interessados envolvidos em processos

de demarcação de terras têm esta pre-visão expressa também na Constituição Federal e vem fazendo uso do dispositivo em processos judiciais que questionam os procedimentos administrativos. Não cabe, portanto, a alegação de que o procedimento de demarcação é parcial e ou injusto para os que vivem sobre terras tradicionalmente indígenas, em ocupações de boa ou má fé. Ao contrá-rio, a efetivação desses procedimentos esbarra na letargia governamental, que os submete a processos que se arrastam por décadas. Assim, os povos indígenas sobrevivem sem que possam ter acesso às terras necessárias a sobrevivência física e cultural que, conforme determi-na a Constituição, são de seu usufruto exclusivo e permanente.

Na avaliação do Cimi, as declarações do ministro da Justiça visam abrir cami-nhos, inclusive, para que a atribuição de julgar as manifestações contrárias às demarcações das terras indígenas seja assumida, de maneira direta, pela Advocacia Geral da União (AGU). Enten-demos que isso se constitui em grave

Nota Pública

Cimi repudia declarações do ministro da Justiça sobre mudanças no procedimento demarcatório de terras indígenas

outra vez, a mão de deus

Os sete espantos do papa Francisco

P

O

Page 5: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

5 Março–2013

C

Conjuntura

Ouça o Potyrõ Todos os sábados e domingos, às 12h35,dentro do Programa Caminhos da Fé, na rádio Aparecida. A transmissão é para todo o Brasil.

Ouça o Potyrõ

820 kHz

www.a12.comTambém estamos on line pelo portal www.a12.com

Por Renato Santanade Brasília (DF)

“Racista! Homofóbico!”

om tais palavras e um levante de protestos durante sessão da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, além da

reação nas redes sociais, a sociedade brasileira recebeu a indicação do de-putado federal Pastor Marco Feliciano (PSC/SP) para a presidência da comissão.

A onda de protestos que antecedeu o encontro, assim que o nome do pas-tor foi lançado pelo PSC, deveria ser suficiente para que imediatamente a indicação fosse retirada. No entanto, o grupo evangélico que compõe o partido seguiu adiante.

Integrante da base aliada do governo federal, o pastor evangélico foi indicado por seu partido que ficou, conforme decisão das lideranças da base da pre-sidenta Dilma Rousseff, com a mesa da Comissão de Direitos Humanos. Em quase duas décadas de existência, a comissão nunca tinha recebido candi-datura similar.

Eis algumas frases controversas do deputado que, no dia 7 de março, foi eleito – com 11 votos – presidente da comissão depois de sessão tumultuada e às portas fechadas, por determinação do presidente da Câmara, deputado Henrique Alves (PMDB/RN).

“A AIDS é o câncer gay”.“Os africanos descendem de ancestrais

que foram amaldiçoados por Noé. Por isso, o paganismo, o ocultismo, misérias e doenças como ebola na África”.

“Nosso medo é só esse: união homosse-xual não é normal. O reto não foi feito para ser penetrado. Não haveria condição de dar sequência à nossa raça”.

Na tarde do dia anterior, 6, a sessão da comissão que votaria o nome de Feliciano terminou adiada. Por recurso apresentado pela deputada Érika Kokai (PT/DF), o então presidente da comis-são, deputado Domingos Dutra (PT/MA), decidiu adiar a votação alegando que a comissão não poderia deferir ou

indeferir o pedido da deputada. Durante a reunião, os protestos eram intensos.

“Não discuto a legitimidade da candidatura do pastor, mas digo que ela fere o artigo 32 (do regimento in-terno da comissão). A atuação pública e reconhecida do pastor atinge de forma clara os princípios que essa comissão deve proteger e zelar. A indicação fere o regimento”, defendeu a deputada Érika. Antes, deputados da comissão apelaram aos líderes do PSC para que indicassem outro parlamentar. Sem sucesso.

Depois da votação, realizada sem a presença de vários deputados e do então presidente Dutra, que saíram da reunião depois da decisão do presidente da Câ-mara de proibir a entrada de movimen-tos sociais no plenário da comissão, os deputados Ivan Valente (PSOL/SP), Jean Wyllys (PSOL/RJ), Luiz Erundina (PSB/SP) e Chico Alencar (PSOL/RJ) acenaram para a formação de uma frente parlamentar e até mesmo uma comissão paralela em protesto à eleição de Feliciano.

“Essa comissão representa a luta contra a discriminação, contra o precon-ceito. Defende a tolerância e a liberdade. Não é de direitos humanos, mas de de-fesa dos direitos humanos. Um impasse foi instalado agora. A presidência precisa de alguém que represente a amplitude; que não seja parte, mas todo”, declarou o deputado Ivan Valente, depois de tentar ser coagido a não falar por um companheiro partidário de Feliciano.

“Estado é laico, mas a nação é cristã”

A defesa da eleição do deputado Marco Feliciano baseou-se em três pon-tos. O primeiro se respaldava no fato de

que a eleição do parlamentar era legíti-ma, posto que o acordo de lideranças partidárias está previsto no regimento; depois que as opiniões pessoais do deputado não o acompanhariam na presidência. Por fim, a lógica religiosa se impôs.

“Nós amamos o homossexual, amamos o ser humano, não amamos a prática. Se o indivíduo quer amar a vaca... Cristão não é homofóbico. Ser contra o homossexualismo não nos torna homofóbicos. Amamos o pecador, mas não amamos a prática das coisas erradas. Talvez (os contrários à eleição de Feliciano) sejam cristofóbicos”, afir-mou o deputado Hidekazu Takayama (PSC/SP).

Já o deputado Henrique Afonso (PV/AC), também evangélico, foi além. Ele disse em claro e bom tom que apesar do Estado ser laico e desatrelado de qualquer religião, ele está circunscrito dentro de uma nação cristã. “O debate (na comissão) está entre uma visão pós-moderna e em outra cristã. Dizem que nós evangélicos, cristãos genuínos, somos homofóbicos e racistas, mas não somos”, completou.

Alianças conservadorasA eleição de Feliciano coroa o for-

talecimento dado pelas alianças feitas pelo governo federal às concepções mais conservadoras e atrasadas postas no tabuleiro social brasileiro. A chegada do PSC à mesa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias ocorre no mesmo momento em que o parlamentar Blairo Maggi (PR/MT), latifundiário aliado de Dilma e muitas vezes elogiado por Lula, é eleito para a presidência da Comissão de Meio Ambiente do Senado – ou seja, o lobo cuidará das galinhas.

Na guerra de ruralistas por terras de comunidades tradicionais e campo-nesas - além da depredação legalizada do meio ambiente - e de evangélicos ao que consideram pagãos (índios, quilombolas, religiões de matriz afro), pecadores pervertidos (homossexuais), e temas como criminalização do aborto e infanticídio, ganhar essas comissões significa impor significativa derrota aos setores da sociedade brasileira que ainda buscam direitos e afirmação.

Para os povos indígenas, qui-lombolas, ribeirinhos, pescadores,

camponeses, homossexuais, mu-lheres, negros, vítimas da

ditadura militar, traba-lhadores em situação análoga à escravidão e familiares de vítimas

de grupos policiais de extermínio, as comissões

eram importantes trincheiras institu-cionais de enfrentamento aos aliados de primeira hora: ruralistas, bancada da bala e evangélicos. Todos, infelizmente, da base aliada de Dilma. n

Comissão de Direitos Humanos acaba nas mãos de grupo político racista e homofóbico

Page 6: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

6Março–2013

ASegundo os

indígenas, em apenas

cinco dias do início do mês

de março, pelo menos trinta mães

com seus filhos recém-

nascidos procuraram diariamente

o posto de saúde da

aldeia São José, em busca de

atendimento

Saúde Indígena

Cimi Regional Goiás-Tocantins

Associação União das Aldeias Apinajé - Pempxá denunciou, no dia 14 de março, a situação caótica a que a área da saúde

indígena está relegada nas aldeias onde vivem, no Tocantins. Segundo carta assi-nada pela entidade, há muitos doentes, especialmente crianças, sem atendi-mento adequado, sem transporte e sem medicamentos básicos. A avaliação é de que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em seus dois anos de atuação, conseguiu piorar o que já era ruim – o descaso, despreparo e preca-riedade do atendimento da Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

“Denunciamos que o descaso, a omissão e a irresponsabilidade dos ges-tores do Polo Base de Tocantinópolis, da Chefe do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) e da Sesai, estão com-prometendo o atendimento da saúde da população indígena Apinajé e colo-cando em risco a vida dos pacientes. No momento a situação nas aldeias é caótica”, afirma trecho da carta divul-gado pela Associação Pempxá.

Segundo os indígenas, em apenas cinco dias do início do mês de março, pelo menos trinta mães com seus filhos recém-nascidos procuraram diariamen-te o posto de saúde da aldeia São José,

estão quebradas. Sem viaturas, a chefia administrativa do polo tem recorrido aos veículos da Funai para levar os pacientes das aldeias para os hospitais. “Desse modo, a Sesai está jogando suas responsabilidades aos outros órgãos públicos e aos próprios pacientes. Algumas mães estão reclamando que, quando receberam alta do Hospital Mu-nicipal José Sabóia, em Tocantinópolis, tiveram que fretar veículos de parti-culares para voltar para suas aldeias”, denuncia a carta.

Os indígenas também informam que os postos de saúde das aldeias estão sem os remédios da chamada “farmácia

básica”, necessários para combater as viroses das crianças e outras doenças em que os pacientes têm prescrição médica.

Esta situação foi relatada ao pro-curador do Ministério Público Federal (MPF), João Raphael Lima Durante, na 4ª Assembleia Geral da Associação União das Aldeias Apinajé – Pempxá, realizada na aldeia Palmeiras, nos dias 27 e 28 de fevereiro e 1 e 2 de março. Os Apinajé afirmam que, apesar das denúncias e solicitações de melhor atendimento, infelizmente, a situação está piorando cada vez mais e, até agora, nenhuma medida foi tomada pelas autoridades competentes.

“É preocupante a quantidade de crianças recém-nascidas que, todos os dias, buscam atendimento nos postos de saúde das aldeias, onde há muitos meses não se vê um médico e estão fal-tando até analgésicos. Algo precisa ser feito pelos poderes públicos. É inaceitá-vel que essas crianças morram por falta de médicos, remédios e transportes. E o pior, por negligência e omissão dos gestores, que estão sendo bem pagos para responder por essas demandas, que não estão acontecendo. Aí, vem aquela pergunta que todos nós gos-taríamos de fazer a esses gestores da saúde indígena: Para onde estão indo os recursos que o governo federal, através do Ministério da Saúde, libera todos os meses para pagar médicos, dentistas, transportes e medicamentos?”, ques-tionam, na carta.

Por último, os Apinajé denunciam que a bomba d’água da aldeia Mariazi-nha foi danificada e que não tiveram res-posta dos responsáveis pelo conserto e manutenção da mesma. Eles contam que esta mesma bomba ficou mais de três meses no conserto em 2012 e só foi arrumada quando a comunidade da aldeia Mariazinha apreendeu uma viatura da Sesai. Durante as negocia-ções para liberar a viatura, foi feito o compromisso de comprar outra bomba reserva. “Mas isso não foi cumprido e, agora, a comunidade continua sofrendo do mesmo jeito”, concluem. n

Povo Apinajé denuncia caos na atenção à saúde

Sem a presença do médico que faz o atendimento da atenção básica para

examinar as crianças, elas precisam ser encaminhadas para as cidades. Na maioria dos casos, as crianças estão na faixa etária de 0 a 3 anos,

e apresentam sintomas de febres, gripes e doenças

respiratórias.

em busca de atendimento. No entanto, sem a presença do médico que faz o atendimento da atenção básica para examinar as crianças, elas precisam ser encaminhadas para as cidades. No dia 14 de março, dez crianças estavam internadas no Hospital Municipal José Sabóia, em Tocantinópolis, e outras quatro haviam sido encaminhadas para hospitais de Araguaína, sendo que uma delas em estado grave. Na maioria dos casos, as crianças estão na faixa etária de 0 a 3 anos, e apresentam sintomas de febres, gripes e doenças respiratórias.

A transferência das crianças e das pessoas doentes para receberem atendimento nas cidades próximas é outro sério problema vivenciado pelos indígenas nas comunidades, já que não há transporte. As duas viaturas da Sesai, lotadas no Pólo Base de Tocantinópolis,

É preocupante a quantidade de crianças recém-nascidas que, todos os dias, buscam atendimento nos postos de saúde das aldeias, onde há muitos meses não se vê um médico e estão faltando até

analgésicos. Algo precisa ser feito pelos poderes públicos. É inaceitável que essas crianças morram por falta de médicos,

remédios e transportes.

Foto

: Arq

uivo

Cim

i

Foto

: Arq

uivo

Cim

i

Page 7: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

7 Março–2013

Grandes projetos

No Brasil, em 2007, a ANP iniciou uma série de pesquisas, contratando a aquisição de dados aerogeofísicos e geoquímicos da Bacia do Acre. Sem qualquer processo de licenciamento e esclarecimento ao governo federal de sua atividades, principalmente à Funai, deu prosseguimento às pesquisas

Equipe Vale do Javari Cimi Regional Norte I

ntre os dias 09 e 13 de março, na aldeia Lobo, às margens do Rio Jaquirana, na Terra Indíge-na Vale do Javari, ocorreu a IV

Reunião Binacional Matsés Brasil-Peru, que reuniu 137 lideranças de seis co-munidades Matsés do Brasil e de onze aldeias peruanas. O encontro contou com a presença de representantes governamentais dos dois países, das forças armadas brasileiras e da Funda-ção Nacional do Índio (Funai). Por parte da sociedade civil, estavam presentes representantes do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), do Centro de Desen-volvimento do Indígena da Amazônia (CEDIA), do Peru, e a equipe do Conse-lho Indigenista Missionário (Cimi).

O encontro foi marcado pela indig-nação e revolta dos Matsés diante da realização de levantamentos sísmicos em regiões em que há a presença de índios isolados, tanto na fronteira Brasil-Peru como no interior dos dois países, segundo vários relatos e verifi-cações dos próprios indígenas.

Após visualizarem o mapa das linhas de prospecção sísmica, eles afirmaram: “nossas terras estão retalhadas feito peixe ticado”. Segundo o CTI (2011), a empresa canadense Pacific Rubiales

Energy iniciou seus trabalhos de levan-tamento sísmico na área do Lote 135, no Peru, uma região com fortes indícios da presença de povos indígenas isolados.

Com uma área de 1.020.390 ha, o Lote 135 foi concedido em contrato entre o governo peruano e a mencio-nada empresa para a exploração de petróleo em 21 de novembro de 2007. Este lote se sobrepõe em quase sua totalidade à reserva territorial Tapiche--Blanco-Yaquerana, incluindo a bacia do Rio Jaquirana, com seus afluentes. Em 2003, a Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Selva Peruana (Ai-dsep) encaminhou ao governo peruano a proposta de uma área de 1.185.74.62 ha para proteção dos povos indígenas isolados. Na III Reunião dos Matsés do Brasil e Peru, realizada em dezembro de 2011, um documento foi enviado às autoridades dos dois países cobran-do oficialmente uma resposta a esta solicitação. No entanto, até agora, os indígenas nunca receberam nenhuma manifestação por parte do governo.

De acordo com o planejamento da empresa Pacific Rubiales, serão 789 km de linhas sísmicas no Lote 135, o que irá quadricular completamente o território habitado por esses indígenas, além da abertura de 134 clareiras para pouso de helicóptero com uma área de 60 x 40 m, cada uma, contando com a circulação de um número de trabalhadores que poderá chegar a 500 pessoas ao longo do trabalho. Estando em um cerco de pressão por mega projetos que visam à exploração do petróleo, tanto do lado peruano, como do brasileiro, a TI Vale do Javari está cerceada pelos grandes investimentos.

No Brasil, em 2007, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) iniciou uma série de pesquisas, contratando a aquisição de dados aerogeofísicos e geoquímicos da Bacia do Acre. Sem qualquer processo de licenciamento e esclarecimento ao governo federal de sua atividades, principalmente à Funai, deu prosseguimento às pesquisas. Em 2009, a ANP continuou as violações

P r e ç O s

Ass. anual: R$ 60,00 Ass. dois anos: R$ 100,00 *Ass. de apoio: R$ 80,00 América Latina: US$ 50,00 Outros países: US$ 70,00

* Com a assinaTura de aPoio voCê ConTribui Para o envio do jornal a diversas Comunidades indígenas do País.

Solicite Sua aSSinatura pela internet:[email protected] o

se preferir pode enviar CHeQue por carta registrada nominal aoConselHo indigenisTa missionÁrio, para o endereço:sds – ed. venâncio iii, salas 309/314 – CeP: 70393-902 – brasília-dF– Para a sua segurança, se for enviar cheque, mande-o por carta registrada!– Comunique sempre a finalidade do depósito ou cheque que enviar.– Inclua seus dados: nome, endereço, telefone e e-mail.

banCo bradesCo

agência: 0606-8 – Conta Corrente: 144.473-5

ConselHo indigenisTa missionÁrioenvie cópia do depósito por e-mail, fax (61-2106-1651) ou correio e especifique a finalidade do mesmo.

Formas de Pagamento:

e fez a contratação das atividades de prospecção sísmica para serem feitas no Alto Juruá, ao longo de 12 linhas, na parte sul da Terra Indígena Vale do Javari, que totaliza 1.017 km. As linhas sísmicas foram traçadas ao longo de apenas 10 km de distância da TI Vale do Javari, local também que apresenta evidências de perambulação dos indí-genas isolados, principalmente entre o estado do Amazonas e do Acre.

Além disso, verifica-se que o traçado de uma das linhas (a linha 08) atravessa um varadouro utilizado historicamente pelo povo Marubo, e que, portanto, eles também deveriam ser consultados e informados, como prevê a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre a consulta pré-via, livre e informada sobre quaisquer atividades de impactos diretos em territórios tradicionais.

Diante destas violações aos direitos dos povos indígenas Matsés, as lide-ranças que participaram da IV Reunião elaboraram um documento expressan-do suas principais reivindicações e a decisão de parar qualquer atividade petroleira em suas terras. Elas também exigem dos governos brasileiro e peru-ano ações imediatas para impedir que os grupos de isolados ao longo dessas áreas sejam afetados pelos interesses da exploração petroleira. n

Prospecção de petróleo impacta Matsés no Brasil e no Peru

De acordo com o planejamento da empresa Pacific Rubiales, serão 789 km de linhas sísmicas no Lote 135, o que irá

quadricular completamente o território habitado por esses indígenas, além da abertura de 134 clareiras para pouso de

helicóptero com uma área de 60 x 40 m, cada uma, contando com a circulação de um número de trabalhadores que poderá

chegar a 500 pessoas ao longo do trabalho.

EFo

to: A

rqui

vo C

imi

Page 8: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

8Março–2013

“Estamos extremamente preocupados.

Quanto mais o governo sede,

se omitindo na efetivação

dos direitos indígenas

sobre suas terras, mais os ruralistas

atacam esses direitos. As

movimentações intensas,

sistemáticas e sem qualquer

tipo de limite ético

demonstram que o ruralismo

faz uso de terrorismo

político no ataque aos povos

indígenas no Brasil”, diz secretário

executivo do Cimi

Direitos indígenas

A

Ruralistas intensificam ofensiva contra povos indígenasLUTA PELA TERRA Seja no campo, na cidade ou no Congresso Nacional, o latifúndio brasileiro ataca o direito à terra de ocupação tradicional em ações orquestradas que vão de propostas de alteração na Constituição às campanhas contra demarcação de terras indígenas

No parlamento, comissões viram trincheiras ruralistas

Tal cenário não está demonstrado em outro flanco de ataque à questão indígena no país. Parlamentares ruralistas pedem a criação de uma Comissão Paramentar de Inquérito (CPI), na Câmara dos Deputa-dos, para investigar a Funai e sua função estatal: o procedimento de demarcação de terras indígenas. Informações de sites de organizações ruralistas dão conta de que o número de assinaturas para a abertura da CPI já foi atingido. Por enquanto, o que se tem de notícias é a convocação da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, à Comissão de Agricultura da Câmara Federal para explicar a demarcação de terras indígenas.

“A demanda comum do setor rural bra-sileiro é a de necessidade de maior trans-parência nos processos de demarcações de terras indígenas realizados pela Funai. A entidade tem atualmente elaborado processos aos quais os produtores rurais e os municípios não têm acesso”, diz o texto da convocação assinado pelo deputado ru-ralista Luiz Carlos Heinze (PP/RS). Ou seja, a estratégia adotada pelos ruralistas é de atacar por todos os lados, com proposições desmedidas, inconstitucionais e quase di-árias. Uma delas é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 237/13, do deputado Nelson Padovani (PSC/PR), que visa o ar-rendamento de terras indígenas, onde 50% de área de cada uma delas poderiam ser usadas por fazendeiros para abertura de pasto e monocultivos de soja, cana.

Pelas comissões, ruralistas e aliados, caso da bancada evangélica, movimentam--se contra os direitos dos povos indígenas. As eleições do pastor Marco Feliciano (PSC/SP) para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e do latifundiário Blairo Maggi (PR/MT) para a Comissão de Meio Ambiente do Senado atende a estratégia de desidratação das pautas in-dígenas– ambos chegaram a tais cadeiras por intermédio de negociações do próprio governo federal, posto que ambos fazem parte da base. Maggi, antes de assumir a presidência da comissão este ano, afirmou que os ambientalistas querem que a socie-dade viva em árvores, comendo coquinho, como Adão e Eva.

Renato Santanade Brasília (DF)

ofensiva do setor ruralista contra os povos indígenas está a todo vapor em um ano que antecede outro, o eleitoral, período dos mais emblemáticos para o país. Depois de o governo federal

estancar a reforma agrária e dos parla-mentares alterarem o Código Florestal, uma série de campanhas, protestos, audiências públicas, ações institucionais e busca por cadeiras e mesas em comis-sões no Congresso Nacional nutrem um único objetivo: desconstruir os direitos indígenas pela terra e paralisar a já quase inexistente demarcação de territórios de ocupação tradicional. A situação chegou a tamanho nível de tensão que a senadora ruralista Kátia Abreu (PSD/TO) perdeu o controle durante sessão da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (ver texto abaixo). No mesmo dia, o presidente da Câmara Federal, deputado Henrique Alves, criou a comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Consti-tuição (PEC) 215.

Durante o governo Dilma Rousseff, apenas dez terras indígenas foram de-marcadas no Brasil, sendo todas na região Norte – sete no Amazonas, duas no Pará e uma no Acre, ou seja, áreas que hoje não envolvem os conflitos mais encar-niçados entre latifundiários invasores e comunidades indígenas. Os dados são do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com base nas publicações do Ministério da Justiça no Diário Oficial da União. Uma vez que 335 terras estão em alguma das fases do procedimento de demarcação, em dezenas com demora de dez, 20 anos para a conclusão, caso da Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC), e outras 348

reivindicadas, a quantidade recente de demarcações é abaixo do esperado pelos povos indígenas e Ministério Público Federal (MPF).

No entanto, e apesar de ter no governo federal um aliado estrutural, os ruralistas não descansam. Na região da divisa entre os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul, nos últimos meses, os latifundiários foram às ruas protestar contra as demarcações de terras indígenas distribuindo adesivos com os dizeres: “Ou o país acaba com as demarcações ou as demarcações vão aca-bar com o país”. Em Coronel Sapucaia (MS), fazendeiros se mobilizaram nos últimos dias 5 e 6 para definir estratégias de como fazer para a Funai não cumprir Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado junto ao Ministério Público Federal (MPF), que determina a demarcação de terras indígenas no sul do estado.

“Estamos extremamente preocupa-dos. Quanto mais o governo sede, se omitindo na efetivação dos direitos indí-genas sobre suas terras, mais os ruralistas atacam esses direitos. As movimentações

intensas, sistemáticas e sem qualquer tipo de limite ético demonstram que o rura-lismo faz uso de terrorismo político no ataque aos povos indígenas no Brasil. As consequências desse processo são impre-visíveis”, analisou o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.

“A classe produtora é a favor do indíge-na e sabemos que eles precisam de amparo social e não de terras”, afirmou o diretor da Federação da Agricultura e Pecuária (Fama-sul) do MS, Ruy Fachini. Em novembro do ano passado, o MPF encerrou inquérito so-bre o assassinato do cacique Nísio Gomes Guarani Kaiowá, ocorrido um ano antes. Mais de 20 pessoas foram presas, sendo seis fazendeiros, entre eles o presidente do Sindicato Rural de Aral Moreira, Osvin Mittanck. Já no assassinato do jovem de 15 anos Denílson Guarani Kaiowá, um fazendeiro assumiu a morte do indígena, apesar de testemunhas afirmarem que o jovem teria sido executado pelo filho do proprietário rural e ao assumir o homicí-dio, o pai teria como intenção abrandar possíveis penas judiciais.

Foto

s: L

aila

Men

ezes

/Cim

i

Page 9: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

9 Março–2013

“Perdemos as margens de diálogo com os últimos episódios no congresso e no governo. O PL da CNPI está prestes a sofrer um golpe, para não falar da PEC 215. A conjuntura é delicada”, declara cacique Marcos Xukuru

riquezas para o capital. Para isso, precisam dos territórios indígenas. Precisam expul-sar os povos e para isso usam de várias manobras e falcatruas”, salienta o assessor político da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), Paulino Montejo.

Segundo a Frente Parlamentar da Agro-pecuária (FPA), 120 deputados federais e 13 senadores integram a bancada ruralista, perfazendo 23,4% da Câmara e 16% do Sena-do. Os dados são próximos de levantamento feito em 2011 pelo Departamento Intersin-dical de Assessoria Parlamentar (DIAP), que apontou a existência de 120 deputados e 18 senadores ruralistas. Na última legislatura (2007-2010), de acordo com o DIAP, 117 deputados federais pertenciam ao grupo. Tal fortalecimento se deu na reabertura polí-tica, a partir de 1985, quando latifundiários passaram a priorizar a ação no parlamento em vista da garantia da propriedade privada na Constituição, que seria provada em 1988.

Na Comissão de Direitos Humanos, por exemplo, dominada por ruralistas e evangélicos conservadores, requerimento foi apresentado solicitando a visita de inte-grantes da comissão ao estado do Pará, na Terra Indígena Apyterewa, para “conhecer a realidade dos assentados” da terra, ou seja,

ocupantes não indígenas que por lei devem ser, caso pequenos produtores, indenizados e realocados pelo INCRA em outra terra. O pedido é do deputado Zequinha Marinho (PSC/PA). Os ataques estão pulverizados em todos os espaços institucionais possíveis, perfazendo os três poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Em discussão com o senador Roberto Requião (PMDB/PR), Kátia Abreu (PSD/TO) afirmou: “Direito de propriedade é direito humano, de uma minoria”. Na ocasião, a senadora propôs que os governos estadu-ais tivessem 15 dias, sob penas de crimes de responsabilidades, para cumprirem ordem judicial de reintegração de posse, comuns em situações de retomadas indí-genas, por exemplo. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, acompanha toda a conjuntura com uma ideia na cabeça: tirar da Funai a demarcação de terras indígenas e passar para um órgão a ser criado no âmbito do Ministério da Justiça.

PL 3571: ruralistas definem CNPI

Talvez o mais escandaloso dos episó-dios recentes está relacionado com o Pro-jeto de Lei 3571/2008, que cria o Conselho

Nacional de Política Indigenista (CNPI), hoje apenas uma comissão. No último dia 12 de março, os membros da Comissão de Finanças e Tributação (CFT) designaram o deputado federal Jerônimo Goergen (PP--RS) como relator da matéria. Integrante da bancada ruralista, o deputado, no dia 21 de março, apresentou requerimento de redistribuição do PL 3571 para a Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia para apreciação. O detalhe é que Goergen preside a comissão.

“Perdemos as margens de diálogo com os últimos episódios no congresso e no go-verno. O PL da CNPI (que criará o conselho no âmbito do que é hoje a Comissão Na-cional de Política Indigenista) está prestes a sofrer um golpe, para não falar da PEC 215. A conjuntura é delicada”, declara o integrante da CNPI, cacique Marcos Xukuru (PE). Conforme Sônia Guajajara, integrante da Coordenação das Organizações Indí-genas da Amazônia Brasileira, não resta alternativa aos povos indígenas a não ser ir para as ruas e mobilizações. “A Consti-tuição de 1988 está na mira. Precisamos lutar para que ela não seja destruída, mas colocada em prática”, afirma a liderança indígena do Maranhão.

A

Kátia Abreu se descontrola e acusa MPF, Funai e Cimi de agirem em conluio para ampliar terras indígenas

senadora Kátia Abreu (PSD/TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Agropecu-ária (CNA), perdeu o controle no último dia 11 de abril, durante sessão da Comissão de Agricultura

e Reforma Agrária. Acusou o MPF e a Funai de agirem em conluio, sob as vontades do Cimi, para “ampliar” terras indígenas. Declarou que não entrará em negociação com o que chamou de “invasores” de terras e que os latifun-diários não podem arcar com problemas sociais que não lhes dizem respeito.

O despautério da senadora atingiu também o Minis-tério da Justiça. “A Justiça lá (no Ministério) só funciona para os índios, só funciona para o Cimi. Virou uma repre-sentação de classe. Não existe Justiça para os fazendeiros. Tinha que ter um ministério para os produtores”, disse a senadora, que desconsiderou o fato de que durante a gestão Dilma Rousseff a demarcação de terras indí-genas foi preterida das ações do Executivo, conforme

demonstram os números de procedimentos concluídos. Kátia Abreu demonstrou desconhecimento ao afirmar

que a Constituição Federal assegura o direito à terra apenas aos povos indígenas que nelas estavam em 1988. Além de não ser isso que diz o texto constitucional, é majoritária a opinião entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o marco de temporalidade não deve ser levado em consideração, como ficou nítido nos votos dos ministros que votaram pela nulidade dos títulos dos invasores da Terra Indígena Caramuru Catarina--Paraguaçu (BA).

Sem nenhuma comprovação, apenas com especu-lações de jornalistas ligados a revistas semanais, Kátia Abreu afirmou que está em curso a demarcação de uma “reserva indígena” do tamanho do estado de São Paulo, que se estenderia entre Goiás, Tocantins e Mato Grosso. “Não consigo compreender esse topete da Funai em desobedecer ordens e em não cumprir determinações

estratégicas do país. Terra indígena é uma expropria-ção”, afirmou.

A senadora frisou, em tom de justificativa, que a violência no campo é motivada pelo fato do direito à propriedade privada ser violado com “invasões” de terras. “Se o governo pagar pelas terras pode vender o Brasil inteiro e dar para quem quiser que não vou falar nada”, desdenhou. Com o cinismo que lhe é peculiar, defendeu a suspensão de todas as demarcações de terras indígenas até a votação, pelos ministros do Supremo Tribunal Fede-ral (STF), dos embargos declaratórios da homologação de Raposa Serra do Sol (RR). A medida seria uma forma de garantir segurança jurídica aos fazendeiros. Numa ten-tativa de se mostrar compreensiva, a senadora ruralista, proprietária de latifúndios país afora, disse que “todos têm direito à terra, mas o sonho dos índios não pode custar o meu sonho; o sonho dos sem-terra não pode custar o dos produtores rurais”. n

A ironia do senador, considerado o “Rei da Soja”, porém, se traduz em tragédia no estado do parlamentar, o Mato Grosso, onde fazendas de soja desertificaram centenas de milhares de hectares. “Exis-tem muitos minérios e madeiras preciosas nessas localidades, que estão inseridas na Amazônia Legal”, declarou o deputado es-tadual Dilmar Dal’Bosco durante audiência pública em defesa da PEC 215.

Aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, sob intensos protestos de comunidades indígenas, a PEC teve co-missão formada por decisão do deputado federal Henrique Alves (PMDB/RN), presi-dente da casa e eleito com o compromisso de encaminhar a PEC 215 para votação. Pela A proposta da bancada ruralista visa transferir do Executivo para o Legislativo o processo de demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e a criação de Áreas de Proteção Ambiental. Com a maior bancada no Congresso Nacional, controlan-do ¼ da Câmara, ruralistas passariam a ter influência direta nas decisões de demarca-ções, atendendo aos próprios interesses.

“O que está em curso é exatamente a continuidade daquilo que foi iniciado há 512 anos. Sugar o máximo possível de

Page 10: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

Marãwaitsédé foi palco de

históricos e recentes

conflitos com posseiros,

muitos deles de grandes

proporções. Promovida por

latifundiários e um

projeto de colonização

da região pelo governo

estadual, a invasão começou durante a

década de 1950

10Março–2013

A

PaísAfora

Equipe ItabunaCimi Regional Leste

erca de 900 índios Pataxó da aldeia Coroa Vermelha, em Porto Seguro, extremo sul da Bahia, retomaram, no dia

5 de março, uma área de 4.100 hec-tares usada por um empresário como campo de pouso de pequenas aerona-ves, localizado dentro do território tradicional reivindicado pelos Pataxó.

O território ocupado inclui a Área de Preservação Ambiental (APA) Coroa Vermelha. Porém, mesmo assim, a invasão de pessoas não-indígenas

é grande pelo fato desta área estar ao norte da rodovia BA-001, que liga Porto Seguro a Santa Cruz de Ca-brália. Uma equipe da Secretaria de Meio Ambiente do Estado da Bahia se deslocou para o local, além da Coordenação Técnica Local (CTL) da Fundação Nacional do Índio (Funai) de Porto Seguro, na pessoa de Irajá Pataxó.

A área retomada pelos Pata-xó apresenta vegetação de restinga costeira, com remanescentes de flora e fauna de Mata Atlântica e mangue-zais ameaçados por empresários do setor de turismo e de hotelaria. Os

Pataxó temem a destruição da vege-tação, assim como ocorreu em Coroa Vermelha.

A APA Coroa Vermelha, reivindi-cada pelos indígenas como território tradicional, abrange parte da zona costeira dos municípios de Santa Cruz de Cabrália e de Porto Seguro. Ela foi criada em 1988, com o objetivo de garantir a preservação dos recursos naturais da região e, ao mesmo tem-po, o desenvolvimento de atividades turísticas. Hoje em dia, no entanto, o que se percebe é que a área de pre-servação se tornou palco de conflitos ambientais, depósito irregular de lixo,

extração ilegal de areia, ocupação de-sordenada do solo e desmatamento.

Jonga Pataxó afirma que a reto-mada é para garantir a proteção da vegetação nativa e da terra tradi-cional. Iracema Pataxó e Poa Pataxó dizem “que a presença dos Pataxó neste local é para garantir a proteção da área contra os invasores que que-rem usar a terra para a construção de hotéis, pousadas, e a especulação imobiliária”. Como a área está dentro do território reivindicado, os Pataxó afirmam que vão resistir até o fim e não vão ceder as terras para os invasores. n

Por Ruy Sposatide Campo Grande (MS)

paz para os Xavante de Ma-rãiwatsédé ainda parece algo distante. O cacique da aldeia, Damião Paridzané, sofreu uma

ameaça em público no dia 8 de março, pouco mais de um mês depois de finali-zada a desintrusão da Terra Indígena. O território de Marãiwatsédé fica situado nos municípios de Alto Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia e São Félix do Ara-guaia, região nordeste do Mato Grosso. Os indígenas lutaram por quase meio século para garantir a permanência na área.

A ameaça aconteceu na área co-mercial do município de Bom Jesus do Araguaia. O cacique estava na cidade com um grupo de jovens guerreiros Xa-vante. Em um momento em que Damião estava sozinho, ele foi abordado por um antigo morador de Posto da Mata, uma das comunidades retiradas da terra indígena. “Ele ameaçou e culpou o cacique Damião de ter tirado todos os posseiros de lá”, relata o indígena Aquilino Tsere’ubu’õ Tsirui’a.

De longe, os guerreiros percebe-ram os gestos exaltados do homem e correram para afastá-lo. “Todo mundo conhece esse homem [que ameaçou Da-mião]. Ele é um matador. E ele também é genro de um famoso pistoleiro daqui”, denuncia. Os Xavante, então, levaram o cacique de volta para a aldeia.

A essa nova intimidação somam-se duas ameaças ao bispo emérito de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldá-liga. Defensor histórico da luta dos Xa-vante pela retomada de Marãiwatsèdè,

dom Pedro foi ameaçado anonimamen-te de sequestro e morte em dezembro de 2012 e em fevereiro deste ano. Ainda no ano passado, a Polícia Federal (PF) confirmou a veracidade das ameaças, abriu um inquérito para tratar do caso e deslocou um contingente da Força Nacional para a região.

Histórico explicita desrespeito

Marãwaitsédé (que significa “mata densa”) está localizada nos municípios de Alta Boa Vista e São Félix do Ara-guaia, estado do Mato Grosso, Essa terra foi palco de históricos e recentes conflitos com posseiros, muitos deles de grandes proporções. Promovida por latifundiários e um projeto de coloniza-ção da região pelo governo estadual, a invasão começou durante a década de 1950. De acordo com os Xavante, o Ser-viço de Proteção aos Índios (órgão que antecedeu a Funai), não fez nada para

impedir a invasão da terra indígena. Na década seguinte a agropecuária Suiá--Missu irregularmente adquiriu a terra. Com quase 1,5 milhão de hectares, esta propriedade chegou a ser considerada o maior latifúndio do Brasil. Em 1966, transportados por aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), os indígenas foram for-çados a migrar para a Missão Salesiana de São Marcos, há 400 km de distância de sua terra original, onde uma epide-mia de sarampo, em poucos dias, matou cerca de 150 indígenas. A população Xavante de Marãwaitsédé era de 3.000 indivíduos antes da invasão. Hoje, a ela é de cerca de 1.000 indígenas.

Em 1980, a terra foi vendida para a empresa petrolífera italiana, Agip. Durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Eco 92, realizada no Rio de Janeiro, a Agip anunciou, sob pressão, que devolveria Marãiwatséde aos Xavante. Dos 165 mil hectares

homologados pelo governo federal em 1998, 90% de seu território era ocupado ilegalmente por fazendeiros e posseiros não indígenas, majoritaria-mente criadores de gado e produtores de soja e arroz.

Segundo levantamento do Minis-tério Público Federal (MPF), grande parte das áreas de Marãiwatsédé estava nas mãos de 22 grandes posseiros. O grupo, constituído de prefeitos, ex--prefeitos, vereadores, empresários e até um desembargador, de acordo com o levantamento, era dono de mais de 32 fazendas, o equivalente a 44,6 mil hec-tares. Por conta deste histórico, a região apresenta um dos maiores desmata-mentos em áreas protegidas do estado do Mato Grosso: 45% da mata nativa foi destruída, como aponta o Relatório 2010 do Programa de Monitoramento de Áreas Especiais (ProAE) do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam).

Após 40 anos de reivindicação e intensas mobilizações dos movimentos sociais, o processo de desintrusão desta terra indígena foi finalmente iniciado em dezembro de 2012. No entanto, além das problemáticas relacionadas à conclusão do processo de desintru-são e da intensificação das atitudes preconceituosas, como reação a este processo, os indígenas sobrevivem em condições precárias. Os rios estão poluídos e as terras foram devastadas. As crianças apresentam sinais de grave desnutrição,mas, muitas vezes, os indígenas não conseguem acesso à saúde pública, especialmente nos mu-nicípios de Alto Boa Vista e Bom Jesus do Araguaia, onde sofrem por enorme preconceito de não índios. n

Depois de retirada de invasores em Marãiwatsédé, cacique Xavante sofre ameaça

C

Comunidade Pataxó faz retomada em área invadida por empresários

Foto

: Mar

cy P

ican

ço/A

rqui

vo C

imi

Page 11: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

11 Março–2013

“Estamos reivindicando o direito de nossos alunos estudarem. Já fizemos diversos documentos, enviados para a Secretaria de Educação, para o Ministério Público, para todos os lugares que poderíamos mandar, e nunca fomos atendidos”, diz Valdirene Pataxó

Equipe Extremo SulCimi Regional Leste

m protesto, no dia 12 de março, comunidades indígenas fecha-ram as duas pistas da BR 367, em Coroa Vermelha, no município

de Santa Cruz de Cabrália, na Bahia. Centenas de índios, entre eles mãe, pais e alunos, reclamam das péssimas condições da escola indígena de Coroa Vermelha. Segundo os manifestantes, faltam mesas e cadeiras nas salas de aula, entre outros problemas de infraes-trutura. Eles disseram que só liberariam a rodovia quando representantes da Secretaria de Educação entregassem as cadeiras que tinham prometido para as comunidades.

A secretária da escola, Valdirene, afirmou que a estrutura física está cain-do e corre o risco de o teto desabar a qualquer momento. No total, a escola atende a 800 alunos, nos três turnos,

Por Haroldo HelenoCimi Regional Leste – Equipe Itabuna (BA)

cacique Babau, da etnia Tupi-nambá, entregou o Manifesto Povos Indígenas: aqueles que devem viver ao coordenador residente

da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil, Jorge Chediek. A liderança indígena solicitou o apoio da instituição internacional para a resolução das ques-tões fundiárias envolvendo os territórios indígenas e os graves desrespeitos e violações aos direitos de seus povos cometidos por ruralistas e madeireiros, dentre outros do setor privado, e pelo governo brasileiro.

A entrega do Manifesto ocorreu durante a fala do cacique na abertura da 11ª Conferência Anual do Brazil Model United Nations (Bramun), no Hotel Ibe-rostar, localizado na Praia do Forte, na Bahia. O evento aconteceu entre os dias 20 e 24 de março e reuniu cerca de 370 jovens de 18 escolas internacionais de todo o Brasil, além de escolas do Panamá e da Argentina.

Este é o segundo Manifesto que o Conselho Indigenista Missionário

da pré-escola até o 9º ano. Os alunos estão sentando no chão porque não tem cadeiras suficientes.

“Estamos reivindicando o direito de nossos alunos estudarem. Já fizemos diversos documentos, enviados para a Secretaria de Educação, para o Ministé-rio Público, para todos os lugares que poderíamos mandar, e nunca fomos atendidos. Passamos os quatro anos do mandato do prefeito Jorge Pontes reivindicando, e nada foi feito até ago-ra. Ontem (dia 11) os pais chegaram na escola e viram seus filhos sentados no chão, não gostaram e pediram apoio dos funcionários para fazer essa manifesta-ção, porque a situação está grave e há o risco de, a qualquer momento, o teto desabar na cabeça dos alunos. Estamos pedindo socorro para que alguém nos ouça porque estamos desesperados, e sem termos mais a quem recorrer”, desabafou Valdirene.

Ela conta que representantes da

(Cimi) faz com o intuito de denunciar os decretos de extermínio impostos aos povos indígenas no Brasil. Com o mesmo objetivo, o primeiro Manifesto foi publicado em 1973, em plena dita-dura. Passados quarenta anos, muitas das graves situações denunciadas ainda persistem. Segundo o prefácio desse segundo Manifesto, a sua publicação tem o intuito de concretizar a profecia anunciada pelo Y- Juca Pirama: “Chegou o momento de anunciar, na esperança, que aquele que deveria morrer é aquele que deve viver”.

Na apresentação do manifesto, Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Pre-lazia de São Félix do Araguaia (MT) des-taca que: “Há 500 anos o índio é aquele que deve morrer. 500 anos proibidos para esses povos classificados com um genérico apelido, negadas as identida-des, a vida diferente e alternativa. 500 anos de sucessivos impérios invasores e de sucessivas oligarquias herdeiras da secular dominação. 500 anos sob a pre-potência de uma civilização hegemônica, que vem massacrando os corpos com as armas e o trabalho escravo e as almas com um deus exclusivo. Por economia

PaísAfora

Por educação, indígenas fecham trecho da BR 367

Secretaria de Educação de Santa Cruz de Cabrália estiveram na escola no dia 11 e propuseram a construção de um pavilhão com cinco salas para desocu-par as que têm risco de desabamento. “Também prometeram que hoje iriam trazer as cadeiras, mas até agora não apareceram. Estamos aqui esperando que tomem alguma providência. Assim que isso acontecer, nós liberamos a pista”, salientou.

Segundo ela, a escola indígena rece-be recursos diferenciados para a meren-da escolar. Mesmo assim, há constante falta de merenda, além de falta de água. Além de não ter cadeiras e mesas, alguns banheiros não têm porta, as janelas das salas de aula e da secretaria estão com vidros quebrados e a estrutura de alguns telhados está comprometida. A preca-

riedade da escola em Coroa Vermelha reflete o descaso e a omissão sistemática que caracterizam a educação indígena em vários estados do Brasil.

Nesse sentido, é importante lembrar que a Constituição Federal afirma que a educação é um direito público subjetivo, sendo responsabilidade do Estado a sua oferta gratuita, ininterrupta e de qualida-de. Para populações indígenas, esta ofer-ta é ainda mais específica. Desse modo, o poder público não pode se furtar da responsabilidade de construir escolas, garantir uma infraestrutura adequada, contratar e remunerar professores e outros profissionais da educação, como também deve assegurar o respeito aos modos como estes povos concebem e organizam suas escolas, conferindo-lhes um tratamento diferenciado. n

Cacique Babau entrega manifesto contra decretos de extermínio à ONU

E

de mercado, por política imperial, por religião imposta, por bulas e decretos e portarias pseudo civilizados e pseudo cristãos. Já se passaram, então, 500 anos para aqueles povos que tinham que mor-rer e, finalmente, mesmo continuando as várias formas de extermínio, os Povos Indígenas são aqueles que devem Viver”.

Lágrimas e sorriso A fala do cacique Babau emocionou

a todos e todas. Os relatos de violên-cias praticadas contra a comunidade Tupinambá da Serra do Padeiro e contra os demais povos indígenas do país cau-saram profunda comoção. A clareza e a força de Babau, que não abandonou seu típico sorriso, impressionaram os representantes estrangeiros.

Ele leu um trecho do manifesto que diz: “Que este decreto de extermínio vis-lumbra o desenvolvimentismo dominante e antropocêntrico que desconsidera a

importância de outros seres, dos animais, das plantas, em favor da expansão das fronteiras agropecuárias para o monocul-tivo de grãos, produção de biocombus-tíveis, plantio de eucaliptos, criação de gado em larga escala, que geram impacto não só na vida dos povos indígenas, como também nas terras, nas águas, nas matas, ameaçando o equilíbrio ecológico”.

Em seguida, Babau afirmou: “Os in-vasores querem que falemos sua língua, que professemos a sua religião e que pensemos como eles. A ganância deles é muito grande, tudo para eles é mer-cadoria, o ar, as plantas, os animais. Eu sempre falo em ser vivente e não só em ser humano, pois todos os seres sobre a terra devem viver e ser respeitados”.

Na abertura do evento foram exibi-dos vários vídeos abordando temáticas ligadas à defesa dos direitos humanos no mundo, bem como de denúncia de violações. n

O

Foto

: Cim

i Reg

iona

l Les

teFo

to: C

imi R

egio

nal L

este

Page 12: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

12Março–2013

A

Luta pela terra

J. Roshade Manaus (AM)

caminho da cidade de Paca-raima, no extremo norte de Roraima, um indígena Macuxi ouviu do taxista que o con-

duzia a seguinte frase: “vou namorar uma indígena e me casar com a terra!”. Quem não conhece a realidade daquele Estado e a conjuntura que envolve toda a questão indígena no Brasil pode não compreender o significado da frase, mas se trata de uma eloquente preten-são de setores que avançam contra os direitos indígenas, sobretudo a partir do mandato do presidente Luis Inácio Lula da Silva, e se fortalecem no gover-no de Dilma Rousseff.

Outra ilustração das ameaças contra os territórios indígenas é um adesivo colado na porta do gabinete de um dos deputados federais de Roraima onde se lê “revisão da Raposa Serra do Sol já!”. E é justamente no Congresso Nacional o local em que se articulam e se maquinam as fórmulas para legitimar a derrubada dos direitos assegurados constitucionalmente aos povos indíge-nas. Dentro os inúmeros Projetos de Lei, Propostas de Emendas Constitucio-nal (PECs) e outros textos, destacam-se as PECs 215, 237/13 e o PL 1610/96, além da Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU).

Na arena política a bancada ruralista toma a frente das articulações contra os indígenas. São 214 deputados e 14 senadores ligados aos latifundiários e ao setor de agronegócios buscando apoio de outros segmentos, como o dos evangélicos, que formam uma bancada em torno de 70 parlamentares. Nesse cenário eles procuram criar as condi-ções para passar o “rolo compressor” nas votações dos projetos que alteram a legislação indigenista. “É um momen-to de muita preocupação para todo o movimento indígena”, na avaliação de Cleber Buzatto, Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário – CIMI.

Opinião semelhante manifestou o secretário de nacional de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidên-cia da República, Paulo Maldos, para quem “a aprovação da PEC 215 será um desastre”. Representando o Governo Federal na Assembleia, ele recebeu do vice-coordenador do CIR, Ivaldo André Macuxi, um documento cobrando do governo federal medidas para proteger as terras indígenas.

O avanço sobre os territórios tra-dicionais indígenas não ficam somente nas intenções. Na prática, vai aconte-cendo em todas as terras, demarcadas ou não. Os invasores entram para roubar gado, para vender bebidas al-coólicas, por meio de casamento com indígenas ou aliciando comunidades inteiras para utilizar seus pastos e ou-tras áreas. Jacir José de Souza, um dos líderes mais conhecidos dos povos da terra Raposa Serra do Sol, destacada a entrada de “marreteiros” (comerciantes

que percorrem o interior) e o cresci-mento populacional da vila de Uiramu-tã, transformada em município pela lei nº 098 de 17 de outubro de 1995.

Autossustentação é uma defesa do território

Há cerca de dois anos, uma reporta-gem veiculada pela rede Bandeirantes mostrava indígenas catando lixo no aterro sanitário de boa Vista. O teor da reportagem foi contestado pelo Conselho Indígena de Roraima, na ocasião. “Foi uma grotesca montagem, com cenas de vários anos atrás”, disse Dionito Souza, coordenador da orga-nização naquela oportunidade. Não tem sido poucas as matérias veiculadas pelo s jornais de Roraima tentando criar uma imagem negativa das comunidades indígenas após a homologação.

Em fevereiro deste ano, estudantes do Centro Indígena de Formação de Surumu – uma das oito regiões da terra

indígena Raposa Serra do Sol-, iniciou uma experiência que vem apresentando resultados bastante animadores. No local onde foi realizada a Assembleia do CIR foi apresentado um projeto de-monstrativo de plantação denominado “Projeto Mandala”.

Numa área de aproximadamente 200 metros quadrados, foram construídos 44 canteiros de 9 metros de comprimento onde os estudantes fizeram hortas de tomate, alface, cebola, maxixe, batata e macaxeira. Também plantaram ervas utilizadas na medicina tradicional, como babosa, gengibre, hortelã e boldo e outras espécies. Além das experiências novas, as comunidades da Raposa Serra do Sol estão ampliando suas criações. O rebanho bovino é estimado em 40 mil cabeças que, somados a criação de aves e suínos, permitem aos indígenas previsões bastante animadoras: “dentro de cinco anos poderemos abastecer o mercado da cidade de Boa Vista”, prevê Jacir José de Souza.

Ao mesmo tempo em que trabalham para tornar as comunidades autossus-tentáveis, os indígenas reforçam a luta em defesa do território. “Agora que nossa terra está homologada, nós que-remos desenvolver, mas encontramos barreiras como as invasões”, diz Jacir de Souza. Para ele, a exclusão de Uiramutã da área homologada representa um grande problema para o futuro.

O município tem uma área de 806.600 hectares, uma infraestrutura precária, mas que tem atraído pessoas de fora. “Os aposentados, aqueles que recebem a bolsa-família, os professores e agentes de saúde estão indo tudo sacar dinheiro e já gastam dinheiro ali. Então, os comerciantes estão aumen-tando, crescendo bastante lá dentro e agora estão pensando de ampliar a área urbana do municípios”, conta Jacir.

Conselho Indígena de Roraima se reúne sob ameaça ruralistaQuatro anos depois da confirmação pelo Supremo Tribunal Federal – STF – da legalidade do decreto homologatório da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ainda pairam ameaças sobre os povos que ali vivem, bem como sobre outras terras indígenas de Roraima, de acordo com denúncias feitas pelos participantes da 42ª Assembleia do Conselho Indígena de Roraima – CIR. A Assembleia aconteceu de 10 a 15 de março, no Centro de Formação de Caracaranã, no município de Normandia, localizado a 200 quilômetros da capital Boa Vista e reuniu mais de 1.300 participantes, entre indígenas de 153 comunidades e convidados

O avanço sobre os territórios tradicionais indígenas não ficam somente nas intenções. Na prática, vai acontecendo

em todas as terras, demarcadas ou não. Os invasores entram para roubar gado, para vender bebidas alcoólicas, por meio de casamento com indígenas ou aliciando comunidades inteiras

para utilizar seus pastos e outras áreas.

Foto

s: J

.Ros

ha/C

imi R

egio

nal N

orte

I

O avanço sobre os

territórios tradicionais

indígenas não ficam somente nas intenções. Na prática, vai

acontecendo em todas as terras,

demarcadas ou não. Os invasores

entram para roubar gado, para vender

bebidas alcoólicas,

por meio de casamento

com indígenas ou aliciando

comunidades inteiras para utilizar seus

pastos e outras áreas

Page 13: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

13 Março–2013

R

Em 1992 a terra foi demarcada. Mais de 20 anos depois, continua sob ataque de levas de garimpeiros. A Funai tem realizado operações para retirá-los da área, mas muitos acabam retornando para terra indígena

Wapichana foi reeleito coordenador do CIR.

Fiscalização, vigilância e garantir territorial serão a prioridade do CIR nos próximos dois anos. Conforme definido pelas comunidades, a organização vai ter como meta também no próximo biênio o fortalecimento do Centro In-dígena de Formação, Gestão ambiental, efetivação dos Direitos Indígenas e o fortalecimento institucional do CIR e das regiões.

Essas serão as tarefas de Mário Nicácio, um jovem Wapichana que desde os 14 anos de idade participa do movimento indígena em Roraima, como aluno do Centro Indígena de Formação de Surumu. Ele foi reeleito coordenador do CIR para o período de 2013-2015, com 2.615 votos, contra 1.305 de Ival-do André, que permanecerá como vice coordenador. A atual Secretária, Telma Marques, ficará no seu cargo. Ela obteve 2.146 votos.

“Temos que nos empenhar para garantir nossa terra. Vamos levar às comunidades conhecimento sobre di-reito territorial, incentivar a produção e o desenvolvimento sustentável e para isso nós temos três projetos para Rapo-sa Serra do Sol e dois outros na área do lavrado, onde as terras foram demarca-das em ilhas”, diz Mário Nicácio.

No tocante à efetivação dos direitos indígenas, o CIR terá muitos desafios. Se, por um lado, a organização avança na mobilização das comunidades pela garantia da terra, por outro lado o poder público vai deixando lacunas na assistência à saúde e educação, princi-palmente. Os participantes da 42ª As-sembleia do CIR teceram muitas críticas ao atendimento à saúde por causa das deficiências nas instalações de postos de saúde, na ausência de profissionais e na falta de apoio aos doentes. No mesmo tom, denunciaram o abandono na educação, a precariedade das esco-las e outros problemas que afetam as comunidades.

“Além da necessidade de constru-ção, temos maior preocupação nas construções existentes. Nas comuni-dades são utilizados construções e edificações que não tem como finali-dade primordial a educação e tem que ser adaptadas para a prestação desse serviço”, informou o procurador federal Fernando Pacheco, dirigindo-se aos participantes da Assembleia. n

homologação da terra Raposa Serra do Sol. Davi Kopenawa é o líder Yanomami conhecido mundialmente pelas denún-cias contra a invasão de garimpeiros no território do seu povo.

Jacir é um dos líderes mais conheci-dos dos Macuxi. Ele participa da luta do seu povo desde a juventude. Em 1989, participou da criação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazô-nia Brasileira – Coiab, da qual também foi dirigente. A Coiab é formada por 75 organizações indígenas de nove estados brasileiros.

Ele recebeu um feixe de varas, símbolo da união dos povos indígenas na luta pela terra. Jacir conta que a organização dos indígenas começou, efetivamente, a partir de 1987, numa assembleia na região das Serras, onde os participantes adotaram como lema “Não à bebida alcoólica. Sim à comu-nidade”.

O feixe de varas muito foi utilizado nas primeiras assembleias para mostrar que a luta só teria bons frutos se o povo estivesse unido. “Uma vara só é fácil de quebrar, mas quando junta muitas varas e forma o feite, fica quase impossível quebrar”, lembra Jacir.

Davi Kopenawa tornou-se mundial-mente conhecido a partir de 1988, ocasião em que recebeu o prê-mio “Global 500” cocedido pela Organização nas Nações Unidas – ONU, como reco-nhecimento pela luta em defesa de seu povo. Naque-le período, os Ya-nomami sofriam com a presença de mais de 40 mil garimpeiros em suas terras.

Estima-se que os invasores mataram mais de três mil indígenas.

Em 1992 a terra foi demarcada. Mais de 20 anos depois, continua sob ataque de levas de garimpeiros. A Fun-dação Nacional do Índio – Funai, tem realizado operações para retirá-los da área, mas muitos acabam retornando para terra indígena, conforme relata o coordenador do órgão em Roraima, André Vasconcelos.

“Eu estou preocupado com isso. Quando a gente faz um plano de traba-lho como desenvolver as comunidades, aí aparecem esses invasores. Ou seja, a gente é obrigado a parar e lutar pela defesa dos direitos. Por conta disso a gente não está conseguindo desenvol-ver nossas comunidades”, acrescenta Jacir concluindo que “ainda tem a presença do Exército no meio. Tudo isso atrapalha”.

Ao mesmo tempo em que trabalham para tornar as comunidades autossustentáveis, os indígenas reforçam a luta em defesa do território. “Agora que nossa terra está

homologada, nós queremos desenvolver, mas encontramos barreiras como as invasões”, diz Jacir de Souza. Para ele,

a exclusão de Uiramutã da área homologada representa um grande problema para o futuro.

Homenagem às lideranças

Clovis Ambrosio Wapichana, Je-rônimo Pereira, Jacir José de Souza e Davi Kopenawa Yanomami foram homenageados pelos participantes da 42ª Assembleia do CIR. Clovis, Jerônimo e Jacir foram coordenadores da Orga-nização nos anos 90, no período mais conturbado da luta pela demarcação e

Page 14: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

14Março–2013

Na foto de cima, Guarani

Kaiowá do tekoha Laranjeira Nhanderu,

município de Rio Brilhante

(MS). As terras em

disputa possuem

vários processos judiciários

em curso. Na foto abaixo,

indígenas Guarani

Kaiowá de Laranjeira Nhanderu

antes da primeira expulsão

Mato Grosso do Sul

Lideranças indígenas cobram julgamentos de processos pelo STF

Renato Santanade Brasília (DF)

omissão de lideranças Guarani Kaiowá e Terena, povos do Mato Grosso do Sul, estiveram em Brasília (DF) este mês para cobrar

autoridades sobre os processos de demar-cação e homologação de terras indígenas, além de segurança para as comunidades que permanecem em áreas tradicionais retomadas de latifundiários. Porém, é no Supremo Tribunal Federal (STF) que os indígenas dizem estar um dos principais gargalos da questão.

“Existem processos de terras indíge-nas parados lá (STF) há 15 anos. Nesse meio tempo nosso povo morre assassi-nado, alcoólatra e se suicidando. Fora as terras que estão homologadas pela Presidência da República e ainda a gente vê o sangue indígena correr”, afirmou Otoniel Guarani Kaiowá.

No STF encontram-se dez processos envolvendo a questão fundiária de terras indígenas localizadas no Mato Grosso do Sul. Quase a metade é de suspensão de processos administrativos da Funai. O mi-nistro Marco Aurélio Mello responde pela metade do total das relatorias. Há ainda suspensões de decretos presidenciais.

A agenda na Capital Federal contou com reuniões na 6ª Câmara de Coorde-nação Revisão da Procuradoria Geral da República (PGR), Fundação Nacional do Índio (Funai) e com a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann.

Arroio KoráUm dos casos mais emblemáticos é o

da Terra Indígena Arroio Korá, encravada no município de Paranhos (MS), cone sul do estado. Homologada em 21 de dezem-bro de 2009 pelo então presidente Lula, teve liminar – pedindo a suspensão do ato -

deferida pelo ministro Gilmar Mendes oito dias depois, em meio ao recesso do STF.

Desde então o processo encontra-se parado. Por determinação de Mendes, 126 famílias passaram a viver em 700 hectares – de um total de 7205 hectares homologados. No início de setembro do ano passado, cerca de 500 Guarani Kaio-wá e Ñandeva começaram a retomar áreas do tekoha – lugar onde se é – Arroio Korá.

De acordo com os relatos dos indí-genas, um adulto desapareceu e uma criança morreu em decorrência de um dos ataques dos pistoleiros. Numa carta--denúncia divulgada pela comunidade e conselho Aty Guasu, os indígenas relata-ram que o fazendeiro Luiz Bezerra disse, na presença da polícia, que não iria parar de atacar os índios e que derramaria mui-to sangue antes de sair das terras.

Outro caso é o do tekoha Takuara, cujo processo há 15 anos está no STF. Ládio Veron afirmou que a comunidade nunca deixou de ser ameaçada pelos fazendeiros e lembrou-se do pai, Marcos Veron, assassi-nado em 2003. “A cana tem mais valor que a Constituição? Precisamos das nossas terras para parar o sofrimento”, declarou Veron.

Entre os Terena, o processo da Terra Indígena Cachoeirinha, com processo administrativo – realizado em 1982 - sus-

penso, a situação é de confinamento. Em 2011, um ônibus escolar tomado por crian-ças indígenas foi atacado com bombas incendiárias por capangas de fazendeiros. Uma indígena morreu em decorrência das queimaduras, deixando quatro filhos.

A Associação de Juízes para a De-mocracia (AJD) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), por intermédio da campanha Eu Apoio a Causa Indígena!, so-licitaram ao presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, celeridade no julgamen-to destes e dos demais processos.

Na última terça-feira, 12, a presidenta da Funai, Marta Azevedo, se reuniu com Barbosa para fazer o mesmo pedido. Alçada ao cargo no ano passado, Marta herdou, além destes processos, um termo de Ajustamento de Conduta (TAC), de 2007, assinado entre a Funai e o MPF, que determinava a demarcação das terras no MS. Em dezembro de 2012, o TAC perdeu a validade sem ser cumprido.

Apuração dos assassinatos Em 16 de fevereiro deste ano, De-

nílson Barbosa Guarani Kaiowá, de 15 anos, foi assassinado enquanto ia pescar com mais dois outros indígenas. O crime ocorreu em Caarapó (MS) e o fazendeiro Orlandino Gonçalves Carneiro entregou--se para a Polícia Civil como o autor do disparo que matou o jovem.

Entretanto, de acordo com o relato das duas testemunhas, Denílson foi seguro por três homens, que depois de vários xingamentos o executaram. O corpo foi levado para longe da fazenda Santa Helena, latifúndio onde ocorreu o assassinato e que incide sobre o tekoha Pindo Roky. Cerca de 500 indígenas retomaram a área.

Durante encontro com a subprocura-dora-geral da República Gilda Pereira de Carvalho, as lideranças indígenas solicita-ram o deslocamento de competência da investigação da morte de Denílson e de outros assassinatos ainda sem resolução. “Algumas mortes ocorrem na retomada, por isso queremos também segurança”, disse Oriel Benites.

Integrante do Conselho Interconti-nental do Povo Guarani - Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia, Oriel destacou que o povo Guarani e Kaiowá continuará realizando retomadas para garantir os territórios tradicionais. A subprocuradora Gilda garantiu que irá oficiar os órgãos competentes para que respeitem a Cons-tituição e demarquem as terras. n

Grupo Guarani Nhandeva continua na posse de tekoha

Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) mante-ve a posse permanente dos Guarani Nhandeva sobre a Terra Indígena Sombrerito. O colegiado, em decisão unânime,

não acolheu o pedido de proprietário rural que, em mandado de segurança, pretendia o domínio do imóvel rural denominado Fazenda Santa Alice.

As terras, com área superior a 1.275 hectares, estão localiza-das no município de Sete Quedas (MS). Um laudo antropológico afirmou a presença dos Guarani Nhandeva no entorno da área demarcada, e que o grupo teria sido expulso dela.

Segundo o relator ministro Castro Meira, a existência de propriedade não inibe a Funai de investigar e demarcar terras indígenas, caso contrário seria praticamente impossível a de-marcação de novas áreas, pelo menos de maneira contínua, já que boa parte do território nacional já se encontra nas mãos de particulares. (Ruy Sposati)

Homens invadem aldeia Kaiowá em Rio BrilhanteRuy Sposati

de Campo Grande (MS)

Conselho do Aty Guasu (grande assembleia Guarani Kaiowá) relatou que no dia 3 de março um grupo de homens invadiu o

tekoha – território sagrado – Laranjeira Ñanderu, comunidade Kaiowá de Rio Brilhante, região de Dourados (MS).

Segundo relatos de lideranças da aldeia colhi-dos por membros do Aty Guasu, os homens, que não puderam ser identificados, chegaram num trator com os faróis apagados, de propriedade de um fazendeiro vizinho à aldeia, que puxava uma carreta com uma dezena de homens embriagados fazendo ameaças de incendiar uma casa de reza da comunidade.

Desde a reocupação do território, em 2009,

conflitos impulsionados por fazendeiros locais tem sido recorrentes. O mais comum é o fechamento da saída da aldeia com toras de madeira, impossi-bilitando os indígenas de usarem ônibus escolares ambulâncias.

O tekoha de Laranjeira Nhanderu está con-templado no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) estabelecido em 2007 pelo Ministério Público Federal (MPF) com a Fundação Nacional do Índio (Funai). O acordo exige que sejam constituídos grupos técnicos para identificação e delimitação das terras indígenas.

O território, de cerca de 400 hectares, foi retomado em 2009. Em 2010, os indígenas foram expulsos da área, quando se alojaram às margens da estrada, ao lado da entrada de uma das fazendas invasoras. Em 2011, os indígenas fizeram nova retomada e de suas terras não mais saíram.

C

O A

Foto

s: R

enat

o S

anta

na/C

imi

Page 15: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

15 Março–2013

E

Homenagem

José Ribamar Bessa FreireJornalista e professor da UERJ

le nasceu, em 1956, nos Es-tados Unidos. Era americano. Portanto tinha, inapelavelmen-te, que se chamar William ou

John. Ficou John. Mas por ser filho de português, seu destino era ser registra-do como Manuel ou Joaquim. Acabou herdando o Manuel do pai. E foi com esse nome composto - John Manuel - que veio de mala, cuia e Machado para o Brasil, onde criou raízes, filhos, livros e deixou marcas.

Aqui deu aulas, palestras e confe-rências, organizou eventos, iniciou es-tudantes na pesquisa, formou mestres e doutores, fez discípulos, vasculhou arquivos, pesquisou, escreveu, publi-cou, amou e foi amado, apaixonou-se pela história indígena e abrasileirou-se tanto que se transfigurou em negro da terra, termo consagrado em um de seus livros sobre índios e bandeirantes.

Foi ironicamente na Rodovia Ban-deirantes, em Campinas, na terça-feira, 26 de março, que um táxi desgovernado chocou o carro dirigido por John, elimi-nando um dos expoentes da história indígena. Ele morreu no local, aos 56 anos, no auge de sua vida intelectual, vítima da guerra absurda do trânsito, que no Brasil mata anualmente mais do que qualquer guerra civil. Na últi-ma quinta-feira, 28 de março, depois de velado no salão da biblioteca, na Unicamp, foi levado para o Crematório na Vila Alpina, em São Paulo.

Índios e bandeirantesO historiador John Manuel Monteiro

era paulista, mas paulista de Saint Paul, Minnesota, onde nasceu. Lá, muitos moradores descendem de alemães e escandinavos, que migraram para os Estados Unidos no final do século XIX, encurralando a população nativa em reservas indígenas, que hoje sediam cassinos. Quando os portugueses e hispânicos chegaram, os índios já eram minoria discreta, mas capazes ainda de despertar o interesse de um pesquisa-dor sensível e generoso como John, um paulistano de coração.

Desde a graduação em história, no Colorado College (1974-78), ele vinha buscando entender o processo de co-lonização portuguesa nos trópicos, ini-cialmente em Goa, na Índia, e depois no Brasil. No mestrado (1979-1980), focou seu interesse sobre o Brasil Império, no século XIX, e finalmente no Doutorado (1980-1985) na mesma Universidade de

Chicago, debruçou-se sobre a escra-vidão indígena, os bandeirantes e os guarani de São Paulo.

Quando o conheci, em 1992, apre-sentado por Manuela Carneiro da Cunha, ele trabalhava com ela num grande projeto interdisciplinar, de âmbito nacional, que procurava locali-zar, mapear e avaliar a documentação manuscrita sobre índios existente nos arquivos de todo o Brasil. Fui convoca-do para coordenar a equipe do Rio de Janeiro. Com John, entramos em cada um dos 25 grandes arquivos sediados no Rio. No final, ele organizou a publi-cação do Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em Arquivos Brasileiros.

O objetivo do projeto era criar uma ferramenta para combater a cumplici-dade da historiografia brasileira que “erradicou os índios da narrativa his-tórica” ou tentou “torná-los invisíveis”. OGuia foi elaborado por equipes que reuniu mais de cem pesquisadores em todas as capitais do país, coordenados por John Monteiro. Localizou muitos documentos desconhecidos e até então inexplorados, criando as condições

para “repensar, de forma crítica, tanto o passado quanto o futuro dos povos indígenas neste país”.

John Monteiro trazia considerável experiência em pesquisadocumental nos arquivos das Américas, da Europa e da Índia. Publicou, em 1994, o livro se-minal Negros da Terra: Índios e Bandeiran-tes nas Origens de São Paulo. Lá, apoiado em farta documentação, redimensiona o papel dos índios na história de São Paulo e desconstrói a baboseira de que o bandeirante paulista contribuiu para alargar e povoar o território brasileiro. Recoloca na história do Brasil, como sujeito, o negro da terra ou gentio da terra, expressão usada para designar o índio escravizado.

Dança dos númerosAs pesquisas de John Monteiro

fizeram uma revisão profunda do dis-curso sobre a “extinção”, mostrando como as populações indígenas foram afetadas pelo colonialismo. Ele discute não apenas o declínio demográfico, mas também “os processos de recupe-ração e rearranjo das populações e das unidades políticas indígenas” no Brasil

colonial. O artigo que publicou em 1994 - a Dança dos Números: a população indí-gena do Brasil desde 1500 - trabalha com a noção de etnocídio, a qual acrescentou posteriormente a de etnogênese.

Logo após a promulgação, em 2008, da Lei 11.645, que torna obrigatória a temática indígena em sala de aula, John Monteiro publicou o artigo Sangue Na-tivo na Revista de História, abordando a escravização dos índios no Brasil. Contribuiu, dois anos depois, com a produção de documentários “Histórias do Brasil’, exibidos pela TV Brasil. Desta forma, sua produção acadêmica alcan-çou os professores da rede pública e pri-vada de ensino e penetrou nas escolas.

John Monteiro havia assumido re-centemente a direção do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Unicamp. É conhecido, admirado e querido em todo o Brasil, em cujas universidades seus livros são discutidos, mas também no exterior. Orientou e dirigiu pesqui-sas na Escola de Altos Estudos em Ciên-cias Sociais, em Paris, e foi professor em várias universidades americanas - Har-vard, Michigan e North Carolina-Chapel Hill (1985-86), onde nasceu Thomas, seu filho com Maria Helena Machado, pesquisadora da USP e companheira de todas as horas.

No Grupo de Trabalho Índios na História, que John Monteiro articulava, sua morte foi sentida e pranteada. Mensagens de todos os recantos circularam nas redes sociais, expressando sentimento de dor pela perda irreparável. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a As-sociação Nacional de História (ANPUH), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), entre outras, manifestaram o pesar da comunidade acadêmica:

“À sua esposa Helena e aos filhos Álvaro e Thomas, e demais familiares, estendemos nosso conforto e afeto. John será sempre lembrado por nós” - finaliza a nota da ABA, expressando um sentimento generalizado.

Aqui, no Diário do Amazonas, registramos um adeus saudoso a John Monteiro, reproduzindo mensagem do antropólogo Carlos Alberto Dutra, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul:

- Os povos indígenas perderam o his-toriador John Monteiro. Cientista social que sempre soube respeitá-los e traduzir para o mundo, para além das fronteiras da modernidade, suas lutas e seus direi-tos, pelos meandros da academia, seus livros e ensino. Que Ñhanderu o acolha e console seus admiradores pela perda. n

JohN, um negro da terra

Desde a graduação em história, John vinha buscando entender o processo de colonização portuguesa nos trópicos, inicialmente em Goa, na Índia, e depois no Brasil

Foto

: Div

ulga

ção/

Uni

cam

p

As pesquisas de John Monteiro fizeram uma revisão profunda do discurso sobre a “extinção”, mostrando como as populações

indígenas foram afetadas pelo colonialismo. Ele discute não apenas o declínio demográfico, mas também “os processos de recuperação e rearranjo das populações e das unidades

políticas indígenas” no Brasil colonial.

Page 16: Indígenas reagem à ofensiva ruralista - cimi.org.br 353.pdf · Março–2013 2 Dilma Machadão Porantinadas Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada

16Março–2013

APOIADORES

Benedito PreziaHistoriador

conquista do nordeste da Bahia, na região depois chamada de Cerigipe ou Sirigipe (no rio do siri), atual Sergipe, foi bastante violenta, como ocorreu em outras partes do Brasil. Após a morte de Mem de Sá, 3º go-

vernador geral, o rei de Portugal viu que era muito difícil administrar aquela imensa colônia, a partir da vila de Salvador. Assim, em 1572, o Brasil foi dividido em dois Estados: o do Norte, que abrangia um território que ia do Maranhão a Ilhéus, e o do Sul, que ia de Porto Seguro a Paranaguá, no atual estado do Paraná.

Para a parte norte foi nomeado um membro da nobreza, Dom Luís de Brito de Almeida. Empossado em 1573, passou a comandar a colônia com mãos de ferro. Em 1576, a pre-texto de vingar a morte do bispo Dom Pero Sardinha, ocorrida vinte anos antes, realizou uma violenta campanha na região de Sergipe, que resultou na morte e escravização de muitos Tupinambá, chamados de Caeté.

Passado um tempo, refeitos dessa guerra, esses indígenas deci-diram vingar a morte de seus parentes. O movimento de resistência partiu dos indígenas que viviam na região do rio Itaim, hoje rio Real, divisa com a Bahia.

Articularam um plano que pode-ria dar certo. Como não tinham como enfrentar os portugueses na capital, em Salvador, manda-ram um recado ao governador através de mestiços da região, comunicando que estavam dis-postos a aldear-se nas missões dos jesuítas, onde serviriam não só aos padres, como tam-bém aos portugueses. Para isso se propunham ir até a capital para firmar esse acordo, pe-dindo um destacamento de soldados para acompanhá-los e dar-lhes maior proteção nessa viagem.

Tal proposta foi vista pelo então governador o governa-dor Manuel Teles Barreto com bastante reserva, já que os in-dígenas estavam se mostrando muito astutos. Hesitante, no início, o governador se conven-ceu de que era uma boa opor-tunidade de ter mais indígenas nas fazendas do litoral baiano. Assim, em meados de 1586 foi enviado um grupo de 130 sol-

dados portugueses e mamelucos, auxiliados por indígenas das missões, que serviam de carregadores e de tropa auxiliar.

Durante a viagem foi mandado um aviso a esse grupo para que uma delegação Caeté os esperassem às margens do rio Real. Conforme o combinado os portugueses ao chegarem à margem do rio, encontraram um grupo indí-genas, que os levou à aldeia mais importante da região, cujo nome não ficou registrado na história.

Foram muito bem recebidos, com o choro ritual das mulheres e com comida farta: man-dioca, milho, caça e pesca. E para completar a recepção, foram-lhes oferecidas suas mulhe-res, que se instalaram em casas comunitárias especialmente construídas. Este tipo de oferta fazia parte do ritual de boas vindas entre os povos Tupi.

Entusiasmados com tão boa acolhida, acei-taram o convite para visitar outras aldeias da região, acompanhados dos guerreiros Caeté, deixando na aldeia as armas de fogo. Nem imaginavam que as mulheres, com as quais dormiRam, pudessem armar-lhes uma cilada: entupiram “os arcabuzes com pedras e betume, e tomando-lhe a pólvora dos frascos os enche-ram de pó de carvão”, como relata o cronista Fr. Vicente do Salvador.

O retorno foi tranquilo, após alguns dias de andanças pelas aldeias. Ao voltarem, de madrugada, os portugueses foram surpreen-didos com os gritos: “Os inimigos estão aí, os inimigos estão aí!...” Mal despertos, buscaram as armas, mas essas não funcionaram. Logo perceberam que os inimigos anunciados eram os próprios anfitriões.

Nessa cilada, poucos sobreviveram, tendo havido uma verdadeira chacina. Escaparam ape-nas alguns indígenas cristãos, que no meio da confusão, conseguiram se esconder no mato, retornando à capital onde deram a notícia.

Uma expedição foi preparada pelo gover-nador, para punir esses Tupinambá que

desafiaram o poderio português. n

OS CAETÉ DE SERGIPE DÃO O TROCO

A