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Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 1 INFÂNCIA E DISCURSO: PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE O TEMA BARBOSA, Bueno Rosimari (UEM) RODRIGUES, Elaine (Orientadora/UEM) 1. INTRODUÇÃO/JUSTIFICATIVA Apresentar uma proposta para o desenvolvimento de um projeto de mestrado é a finalidade a que me proponho. De acordo com Silva (2005, p.04), um “projeto é uma estratégia que apresenta o tema, demonstra sua importância e aponta um caminho pertinente para a resolução de um problema levantado”. O interesse em desenvolver um estudo sobre o tema “infância e discurso” passou a existir após serem realizadas discussões possibilitadas pelas disciplinas “Fundamentos filosóficos da educação infantil” e também “História da Infância no Brasil”, ministradas no segundo ano do curso de Pedagogia. E essa motivação fez com que me lançasse ao universo da pesquisa, acreditando que isso permitiria a ampliação dos meus conhecimentos. Esse desafio foi concretizado com a realização do Projeto de Iniciação Científica (PIC), desenvolvido no período de agosto de 2009 a agosto de 2010. Para esse estágio de nossos estudos, optamos por fazer um estudo comparativo, a fim de compreender a relação entre a construção do conceito de infância no período da modernidade e as práticas discursivas atuais que reforçam um regime de verdade (Bujes, 2002) sobre o tema, mais especificamente sobre a maneira como concebemos a infância. Selecionamos como fonte para o estudo o Currículo Básico para a escola pública, Paraná: Construindo a escola cidadã, Políticas da SEED-PR: fundamentos e explicitação, Avaliação, sociedade e escola: fundamentos para reflexão e Projeto Pedagógico: 1987-1990, ainda vigentes. Pretendemos identificar como o eu infantil vem sendo forjado no Estado, desde as décadas 1980 -1990, quando da publicação do

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Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011

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INFÂNCIA E DISCURSO: PRIMEIRAS REFLEXÕES

SOBRE O TEMA

BARBOSA, Bueno Rosimari (UEM)

RODRIGUES, Elaine (Orientadora/UEM)

1. INTRODUÇÃO/JUSTIFICATIVA

Apresentar uma proposta para o desenvolvimento de um projeto de mestrado é a

finalidade a que me proponho. De acordo com Silva (2005, p.04), um “projeto é uma

estratégia que apresenta o tema, demonstra sua importância e aponta um caminho

pertinente para a resolução de um problema levantado”.

O interesse em desenvolver um estudo sobre o tema “infância e discurso” passou

a existir após serem realizadas discussões possibilitadas pelas disciplinas “Fundamentos

filosóficos da educação infantil” e também “História da Infância no Brasil”, ministradas

no segundo ano do curso de Pedagogia. E essa motivação fez com que me lançasse ao

universo da pesquisa, acreditando que isso permitiria a ampliação dos meus

conhecimentos. Esse desafio foi concretizado com a realização do Projeto de Iniciação

Científica (PIC), desenvolvido no período de agosto de 2009 a agosto de 2010.

Para esse estágio de nossos estudos, optamos por fazer um estudo comparativo, a

fim de compreender a relação entre a construção do conceito de infância no período da

modernidade e as práticas discursivas atuais que reforçam um regime de verdade

(Bujes, 2002) sobre o tema, mais especificamente sobre a maneira como concebemos a

infância.

Selecionamos como fonte para o estudo o Currículo Básico para a escola

pública, Paraná: Construindo a escola cidadã, Políticas da SEED-PR: fundamentos e

explicitação, Avaliação, sociedade e escola: fundamentos para reflexão e Projeto

Pedagógico: 1987-1990, ainda vigentes. Pretendemos identificar como o eu infantil vem

sendo forjado no Estado, desde as décadas 1980 -1990, quando da publicação do

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referidos documentos. Para alcançar o objetivo proposto, faremos ainda uso de textos

historiográficos de relevância para o tema.

A metodologia adotada será comparativa entre as ideias que cercam a concepção

de infância presente em um livro de um autor da Modernidade e um texto considerado

pós-moderno –Immanuel Kant em seu livro Sobre a Pedagogia e Maria Isabel Bujes

com Infância e Maquinarias –, para que, com base nos estudos feitos, identificar qual

destas concepções, marcadamente distintas, estaria presente nos textos documentais

tomados como fonte.

O ponto inicial do trabalho será compreender como surgiu o conceito de

infância, compreensão essa que se pretende alcançar por meio da leitura do livro

Infância e Maquinarias de Bujes. Nesta obra, a autora dedica-se a estudar as relações

entre infância e poder, argumentando como as crianças são capturadas pelas malhas do

poder, de que maneira ocorreu a fabricação do sujeito infantil moderno e como operam

as “máquinas” que são encarregadas de governar a infância. Bujes (2002) põe em

evidência o modo como as proposições documentais para a infância se constituem em

operações disciplinares que descrevem os rituais de um poder que se investe nos corpos

infantis. Nessa perspectiva, busca o discurso sobre o que é infância para definir o que é

criança, e desta forma instituir as formas de governá-la, pois, segundo a autora, a

fabricação do sujeito infantil ocorre por meio do discurso, que vai instituir a nossa

maneira de concebê-la.

Posteriormente serão descritos e analisados o Currículo Básico para a escola

pública, Paraná: Construindo a escola cidadã, Políticas da SEED-PR: fundamentos e

explicitação, Avaliação, sociedade e escola: fundamentos para reflexão e Projeto

Pedagógico: 1987-1990 - documentos norteadores da prática pedagógica do Estado do

Paraná, sendo no momento de suas publicações os primeiros a tratarem da Educação

Infantil, bem como da sua importância na formação do sujeito infantil. De maneira mais

objetiva, interessa-nos a maneira como o sujeito infantil vem sendo discursivamente

forjado no estado do Paraná desde os anos de 1990.

A metodologia comparativa assenta-se na premissa de que o livro Infância e

maquinarias, de Maria Izabel Bujes, selecionado como representante dos estudos

considerados pós-modernos, é um texto que apresenta ideias inovadoras no trato com o

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conceito de infância. O segundo livro selecionado, Sobre a Pedagogia, foi escrito no

século XVIII por Immanuel Kant, autor considerado um clássico e que dispensa

apresentações.

Este trabalho justifica-se pela importância em compreender qual é a concepção

de criança e de infância vigentes em nosso Estado, uma vez que é por meio dessa

concepção que serão elaborados todos os documentos norteadores das práticas

pedagógicas destinadas as crianças.

2. OBJETIVOS

1) Compreender a maneira como o sujeito infantil vem sendo forjado no estado do

Paraná desde os anos de 1990, período de publicação do Currículo Básico do Paraná, e

de documentos tais como: Currículo Básico para a escola pública, Paraná: Construindo

a escola cidadã, Políticas da SEED-PR: fundamentos e explicitação, Avaliação,

sociedade e escola: fundamentos para reflexão e Projeto Pedagógico: 1987-1990.

2) Estabelecer relações entre a construção do conceito de infância existente no período

da modernidade e as práticas discursivas que, por meio da veiculação dos documentos

citados, criam o “eu” infantil em nosso Estado, é o objetivo que se pretende alcançar.

3. REVISÃO DA LITERATURA: PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE O ATO

DE FORJAR O SUJEITO INFANTIL.

A Modernidade foi um período de grandes transformações na sociedade,

caracterizada pela secularização, a autonomia do pensamento nos domínios da ciência e

da técnica, forte noção de progresso, a transformação do regime industrial clássico em

regime de consumo, surgindo assim a sociedade do consumo. E o ponto de grande

relevância para essa proposta de pesquisa foi o surgimento do moderno sentimento de

infância: nessa época de grandes transformações da sociedade a criança passa a ser vista

como um ser que inspira cuidados especiais, haja vista que será o adulto de amanhã.

Dessa forma, surgem as primeiras literaturas dedicadas a estudar, a ensinar sobre esse

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período da vida do ser humano e, consequentemente, indicar aos pais a melhor maneira

de educar seus filhos.

O livro Sobre a Pedagogia foi escrito no século XVIII, está dividido em três

partes: a Introdução, Sobre a educação física e Sobre a educação prática. Na introdução,

o autor delineia a importância da educação na formação do homem, afirmado o quanto o

ser humano necessita ser educado por outra pessoa e esta deve ser moralmente1 superior

à pessoa que está em formação. Para Kant (2004), somente por meio da educação a

criança se tornará verdadeiramente homem, capaz de fazer uso de sua liberdade. O

projeto educacional do iluminismo,

Representou o fundamento da pedagogia moderna, que até hoje insiste predominantemente na transmissão de conteúdos e na formação social individualista. [...] a educação se dirigiu para a formação do cidadão disciplinado. (GADOTI, 2004, p.90)

É na modernidade que se inaugura um novo discurso sobre o sujeito infantil,

sobretudo a partir do projeto educacional do Iluminismo que depositou um crédito sem

igual na capacidade da educação em retirar o indivíduo da menoridade. A menoridade

intelectual, de acordo com o Iluminismo,2 significa a incapacidade humana de servir-se

da própria razão, requisitando opiniões alheias para a formação dos próprios juízos,

privando-se do próprio direito natural da liberdade, pois esta exige a autonomia plena da

razão perante lógicas externas. Em estado de menoridade, o indivíduo, entendido aqui

como sujeito infantil, encontra-se impedido de pensar por si próprio e ouvir as

recomendações de sua consciência individual, mesmo porque ainda não fora

desenvolvida e esclarecida.

Kant faz toda uma explanação acerca da importância da educação para a

“civilidade do homem”. Para o pensador, ela subdivide-se em física e prática. A Física é 1 O artigo “A educação na ética kantiana”, publicado na revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 447-460, set./dez. 2004, da autoria de Mário Nogueira de Oliveira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trata a questão da Moral nos escritos de Kant sobre educação. Ele afirma que a moral, segundo Kant, consiste em nos capacitar para acolher em nossa vontade, pela via da educação, especificamente, uma “didática ética”, as leis morais em seus princípios, assim como para assegurarmos sua eficácia no nosso mundo social. 2 Os iluministas ou ilustrados eram assim chamados pelo apego à racionalidade e à luta em favor das liberdades individuais. Esses filósofos também eram chamados “enciclopedistas” por serem partidários das ideias liberais expostas na obra monumental publicada sob a direção de Diderot e D’Alembert com o nome A enciclopédia (GADOTI, Moacir. História da Ideias pedagógicas.São Paulo: Ática, 2004. p.87-8)

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a que o homem tem em comum com os animais. Nessa seção, o autor tratará dos

cuidados com o corpo, alimentação, higiene entre outros, pois consistem nos cuidados

materiais prestados as crianças pelos pais ou pelas amas de leite, afirmando que uma

educação rígida fortifica o corpo e que seu lado positivo é a cultura3 para os aspectos da

alma. E a possibilidade de seu aprendizado é que se distingue o homem do animal.

A Educação Prática refere-se à construção da personalidade do homem, ou seja,

a educação moral, que consiste na formação do caráter. No entanto, para alcançar a

moralidade, não se faz necessário que haja a punição física das crianças: basta que

durante toda a vida os valores morais estejam presentes na educação dos pequenos. O

cuidado que devemos ter para com a criança pequena, segundo Kant (2004), é “o da

disciplina e da instrução durante sua formação.”

O autor define como cuidado as preocupações que os pais devem ter para com as

crianças, impedindo-as que façam uso prejudicial de suas forças. Enfatiza que o homem

é a única criatura que, por meio de seus atos, traz o perigo para junto de si, por isso

necessita de alguém que cuide dele, que o proteja. Mas esse cuidar deve ser específico, é

um cuidado que adestrará todos os comportamentos, para que assim possa viver bem em

sociedade. A disciplina é definida, pelo autor, como algo que impede o homem de

desviar-se de seu destino, da sua humanidade, dessa forma, é a disciplina que irá conter

o homem para não se lançar ao perigo.

Disciplina para Kant é a submissão do homem aos preceitos da razão. O sujeito

infantil é aquele que pede um tutor e, portanto, controle alheio; prende-se àquele que

controla suas ações iluminando sua formação, criando amarras que forjarão o seu

pensamento. É a única criatura que precisa ser educada, devendo assim o homem

desenvolver antes de tudo as suas disposições para o bem, “iluminando” sua razão por

meio do aprendizado da ética e da moral, tornando-se um ser civilizado, respeitador das

regras, adequado às exigências sociais. Há necessidade de se impor limites na educação

da criança, a fim de que ela aprenda que nem todos estão às suas ordens e nem tudo lhe

pertence, pois isso faz parte do cuidado e da formação. Ainda segundo Kant, “A

formação compreende a disciplina e a instrução”, e enfatiza que:

3 Entendida como ERUDIÇÃO que, segundo o dicionário Aurélio, significa: Instrução vasta e variada, adquirida sobretudo pela leitura. Uma outra concepção de cultura é apresentada no texto de Roque de Barros Laraia, Cultura um conceito antropológico, publicado pela Zahar em 2007.

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Não há ninguém que, tendo sido abandonado durante a juventude, seria capaz de reconhecer na sua idade madura em que aspectos foi descuidado, se na disciplina, ou na cultura (pois que assim pode ser chamada a instrução). Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem. (KANT, 2004, p.16)

Ainda sobre a questão da disciplina: Disciplinar quer dizer: procurar impedir que a animalidade prejudique o caráter humano, tanto no indivíduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria.” (KANT, 2004 p.25)

Para Kant, é a disciplina que submete o homem as leis da sociedade, por isso é

que as crianças devem ir à escola não é somente para instruir-se, mas fundamentalmente

para que se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e a obedecer tudo o que lhes é

mandado, para que futuramente não sigam cegamente todos os caprichos solicitados por

seu corpo. A disciplina é a moldura do caráter civilizado, do caráter que venceu a

selvageria. Em outras palavras, não é bom para a educação do homem deixá-lo seguir

todas as vontades surgidas na infância e em seguida na juventude, pois ele conservará

um pouco de sua selvageria por toda a vida. O autor classifica como um grave erro na

educação dos jovens o fato de não lhes impor nenhuma resistência durante a juventude.

Para Kant (2004), a falta de disciplina é o pior dos males que o homem pode

sofrer durante sua formação, pois acreditava que o homem é o que a educação faz dele

por meio da disciplina, da didática, da formação moral e da cultura. E caso a criança não

receba a disciplina na idade certa, jamais será remediado, pois homem sem disciplina

torna-se um selvagem.

A concepção de educação disciplinadora, de certa forma, elaborada por Kant no

século XVIII é a também trabalhada e criticada por Bujes (2002) no século XXI.

Segundo a autora, a disciplina atua de duas formas: produz sujeitos e também saberes, e

quando aplicada aos corpos, permite a sua docilização para recepção dos saberes que

agem sobre os sujeitos. Estes, ao serem aplicados ao sujeito, constituem o indivíduo,

construindo o seu eu.

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É no momento histórico das disciplinas que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. (FOUCAULT apud BUJES, 2002, p.119)

As disciplinas respondem pelo papel de fixar a população em crescimento,

aumentar a rentabilidade dos aparelhos de produção e ajustar a correlação entre os dois

processos, os mecanismos que são utilizados para compor as táticas de poder que são

aplicadas para docilizar os agrupamentos humanos que obedecem a três critérios:

primeiro, que o exercício do poder seja o menos custoso; segundo, que seus efeitos

alcancem a intensidade máxima; e terceiro, que este poder leve a um maior rendimento

dos aparelhos onde é exercido. As mesmas visam à paulatina incorporação destas

formas apropriadas de conduzir-se, sutilmente construídas, por meio das táticas que são

empregadas, uma atitude pedagógica. Este processo de autodisciplinamento é operado

pelas instituições como a família, a Igreja, mas à escola cabe o papel de caracterizá-lo,

a invisibilidade e a naturalidade, compreendemos essas instituições como aparelhos,

como maquinarias.

Os mecanismos disciplinares não são exclusivos de um tipo de instituição, não

são redutíveis a um local institucional. Este controle dos corpos não se dá por

mecanismos como a escravidão ou a vassalagem, não subjuga os indivíduos lançando

mão da violência, mas incita-os, conquistando-os. “O mecanismo das tecnologias

disciplinares se traduz por uma apropriação daquilo que o individuo produz, dos

saberes, sentimentos e hábitos”. (Bujes, 2002)

A disciplina não é exercida de forma autoritária, pois não visa unicamente punir

a criança, mas também gratificá-la, assim sendo, ela tem um caráter conquistador: seu

objetivo é treinar as condutas para assim, ajustá-las às regras, funcionando não apenas

como uma forma de penalizar, mas sim estabelecendo um sistema de recompensa, cuja

finalidade é classificar as condutas, conseguindo que os sujeitos sintam-se felizes ao

participarem de forma disciplinada das instituições que compõem o universo que

habitam.

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Kant diz que a ideia de uma educação que desenvolva no homem todas as suas

disposições naturais é uma máxima absoluta, porém com a educação de uma única

geração o homem não atinge plenamente a finalidade de sua existência. Diante disso

faz-se necessário o aperfeiçoamento da educação fazendo dela uma arte.

Talvez a educação se torne sempre melhor e cada uma das gerações futuras dê um passo a mais em direção ao aperfeiçoamento da humanidade, uma vez que o grande segredo da perfeição da natureza humana se esconde no próprio problema da educação. A partir de agora, isto pode acontecer. [...] Isto abre a perspectiva para uma futura felicidade da espécie humana. (KANT, 2004 p. 16-17)

O autor diz que a educação é o maior de todos os problemas que pode ser

propostos ao homem, o conhecimento depende da educação e essa por sua vez depende

do homem. Assim, ela não poderia dar um passo à frente a não ser pouco a pouco.

Desse modo, a disciplina e a instrução tornam-se fundamentais para que o homem possa

ser um bom mestre, pois a falta destas o tornam um mestre ruim, o que romperia a

cadeia do aperfeiçoamento pretendido para as gerações futuras. O homem deve extrair

de si o bem, ou seja, ele deve desenvolver as suas disposições para o bem, pois produzir

em si a moralidade é o seu dever. No entanto, alcançá-la é um tanto quanto difícil, por

isso a educação é o maior problema proposto pelo homem ao próprio homem.

Segundo Kant, os pais deviam educar seus filhos de acordo com um estágio mais

bem pretendido para o mundo e não observando apenas o momento presente. A tarefa

da família é oferecer uma educação mais aprimorada para seus filhos, a fim de que a

humanidade alcance um futuro melhor, assim, uma boa educação é a fonte de todo bem

neste mundo.

Para impedir que a animalidade prejudique o caráter humano, tanto no individual

quanto no coletivo, deve-se domar a selvageria, pois para o autor o homem precisa

adestrar todos os seus comportamentos desde criança, para que ao, tornar-se adulto,

possa viver bem em sociedade. Somente após o disciplinamento/docilização do corpo é

possível instruir o homem.

A educação física proposta por Kant é a educação do corpo, aquela que vai

adestrar todos os comportamentos da criança: as intervenções disciplinares devem ser

feitas desde muito cedo, a educação física depende da prática da disciplina e isso se dá

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sem que a criança precise conhecer nenhuma máxima – é a educação das virtudes, do

bem comportar-se, de como cuidar da criança na tenra idade para que ela possa conviver

em sociedade.

Kant defende a ideia de que a criança precisa trabalhar desde cedo, para que não

tome gosto pelo ócio quando se tornar adulto.

O homem deve permanecer ocupado. [...] Que a criança, portanto, seja habituada ao trabalho. [...] Prejudica-se à criança se acostuma a considerar tudo um divertimento. Ela deve certamente ter seu tempo de recreio, mas também as suas horas de trabalho. (KANT, 2004, p.62)

Ao defender a ideia de que a criança precisa trabalhar, ocupar-se com algo, o

autor não quer dizer que isso deva tomar todo o tempo da criança. Reconhece a

importância do brincar no desenvolvimento infantil, desde que não seja apenas diversão,

mas sim que sejam brincadeiras com objetivos.

Em geral, os melhores jogos são aqueles que, além de desenvolver a habilidade, provocam exercício dos sentidos; por exemplo, o exercício da visão, ao julgar com exatidão a distância, a grandeza e a proporção, ao descobrir posições dos lugares conforme as regiões do céu com a ajuda do sol e assim por diante. [..]O pião é um jogo admirável. Esse tipo de brincadeira infantil dá aos homens ocasiões para reflexões ulteriores e, às vezes, são ocasiões de importantes descobertas. [...] O papagaio é um brinquedo inocentíssimo, desenvolve a habilidade, uma vez que empinar papagaio depende de uma certa posição em relação ao vento.(KANT, 2004 p. 55-57)

Cabe ressaltar que Kant condena as brincadeiras que não possuem um objetivo,

aquelas que apenas servem para passar o tempo ou para molestar quem está próximo à

criança.

As crianças gostam de instrumentos barulhentos, por exemplo, pequenas trombetas, pequenos tambores e outros. Mas tais instrumentos de nada servem, pois, os outros são simplesmente por eles molestados. (Kant, 2004 p. 57).

A criança deve ser levada a obedecer cegamente e não a comandar através de

seus gritos, tornando-se pequenos déspotas. Para que isso não ocorra, os pais jamais

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devem ceder aos gritos das crianças, mesmo na tenra idade, jamais deverão permitir que

as crianças consigam algo mediante o poder de seus gritos ou choros.

Não é natural que ela comande com seus gritos e que o forte obedeça o fraco [...] Muitos filhos, entretanto, obtêm de seus pais tudo o que desejam a mercê de súplicas. Se se permite às crianças tudo obter pelos gritos, tornam-se más; se conseguem tudo por súplicas, elas se tornam suscetíveis. (KANT, 2004 p. 73-74)

Diante disso, a única prejudicada em ter todas as suas vontades atendidas são as

próprias crianças, portanto, quem as educa mal é quem cede as suas vontades ou

desejos. Assim, não se deve socorrer as crianças sempre que gritam, mas somente na

iminência de que haja conseqüências perigosas, nesse caso os pais devem intervir.

Porém, se eles percebem que esse é apenas um jogo da criança, quando almeja algo, e

por tratar-se de birra, deve ser deixada de lado. O filósofo não trabalha com o conceito

de uma infância inocente e pura, ao contrário, diz que a criança que consegue tudo o que

almeja por meio de seus gritos, torna-se um pequeno déspota, não sendo, dessa forma,

nenhum pouco generoso com essa fase da vida humana.

Kant reflete também sobre a educação física: diz que é necessário ao corpo do

ser humano estar condicionado a certos hábitos, atitudes que somente farão bem para o

seu desenvolvimento, pois, quanto mais vícios o homem apresenta, menos livre ele é. A

educação rígida fortifica o corpo afastando o homem das comodidades.

O filósofo condena o uso de instrumentos como bússolas e relógios, pois estes

instrumentos resultam danosos às habilidades inatas do homem, “a noção de espaço e

tempo, que não existem como realidade fora da mente, mas somente como formas para

pensar as coisas apresentadas pelos sentidos”. (GADOTI, 2004. p.90). Percebe-se nessa

fala do autor o quanto defende a importância do homem em manter-se livre de todo e

qualquer vício, de todo e qualquer apêndice que não favoreça o cultivar das capacidades

naturais: ao fazer usos de certos vícios, perde-se a proximidade com a natureza.

Para que a criança tenha seu caráter moral solidificado, deve-se ensinar da

melhor maneira possível, ou seja, por meio de exemplos, com regras e com os deveres a

cumprir. Deveres esses que são divididos em duas partes: uma para consigo mesmo e a

outra com para com os demais.

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Os deveres para consigo devem preservar a dignidade humana em si mesmo,

evitando entregar-se à embriaguez ou a vários vícios, pois essas atitudes colocam o

homem abaixo dos animais. Os deveres para como os demais devem ser inculcados, na

criança, desde muito cedo, pois elas não possuem generosidade inata. Isso não quer

dizer que o ser humano seja bom o mau por natureza, mas sim que precisa ter a

moralidade trabalhada desde muito cedo para que não tenham inclinações e instintos

que o impulsionem negativamente no sentido contrário ao de sua razão, algo que Kant

explica da seguinte forma:

Pergunta: o homem é moralmente bom ou mau por natureza? Não é bom nem mau por natureza, porque não é um ser moral por natureza. Torna-se moral apenas quando eleva a sua razão até aos conceitos do dever e da lei. Pode-se, entretanto, dizer que o homem traz em si tendências originárias para todos os vícios, pois tem inclinações e instintos que o impulsionam para um lado, enquanto sua razão o impulsiona para o contrário. Ele, portanto, poderá se tornar moralmente bom apenas graças à virtude, ou seja, graças a uma força exercida sobre si mesmo, ainda que possa ser inocente na ausência dos estímulos. (KANT, 2004 p. 95)

A criança é vista como um barro a ser moldado, que necessita da intervenção de

um adulto para que isso ocorra da melhor maneira possível, e essa intervenção é

chamada de educação. “Na educação tudo depende de uma coisa: que sejam

estabelecidos bons princípios e que sejam compreendidos e aceitos pelas crianças.”

(KANT, 2004 p.96)

Bujes (2002) também faz um estudo sobre a criança e objetiva romper com essa

forma arraigada e iluminista de pensarmos a educação das crianças. A autora dedica-se

a estudar as relações entre infância e poder, argumentando acerca de como as crianças

são capturadas pelas malhas do poder, sobre a maneira como ocorre a fabricação do

sujeito infantil moderno e como operam as máquinas definidas como sendo todas as

criações ou formas possíveis para manter o discurso moderno, produzido no pelo

iluminismo, acerca da infância.

Bujes (2002) tem por objetivo pôr em evidência o modo como as proposições

existentes nos documentos que regem a prática pedagógica infantil constituem-se em

operações disciplinares que organizam os rituais de um poder que se investe nos corpos

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infantis. Nessa perspectiva, o discurso sobre o que é a infância, que foi produzido e

reproduzido desde a modernidade, instituiu formas de governá-la. A fabricação do

sujeito infantil ocorre por meio de práticas discursivas que pela reprodução acaba por

tornar-se verdade, instituindo a nossa maneira de concebê-la. Os documentos

norteadores da prática pedagógica são uma forma de governamento desta fase da vida,

operando com uma maquinaria, operam dentro das escolas, exercem ações formadoras

da infância.

O termo governamento4 pode ser entendido como a ação sobre o campo de

conduta alheia, é o modo como o poder é exercido para controlar os indivíduos, neste

caso, as crianças. Para Veiga-Netto (2007), o governamento não é a imposição de uma

lei aos homens, mas sim a maneira de dispor as coisas, ou seja, utilizar mais táticas do

que leis. A finalidade “está nas coisas que ele dirige”. Para um bem governar, faz-se

necessário dispor de meios, prever táticas, pôr em ação as estratégias que levem à

consecução de certos fins.

Segundo Veiga-Netto (2007), o governamento revela-se em um conjunto

formado por instituições, procedimentos, arranjos técnicos, conjugação de forças e pela

utilização de instrumentos que possibilitam as diferentes autoridades levarem a efeito

programas de governo que têm por finalidade regular as decisões e as ações individuais,

grupais e institucionais.

Em suas reflexões sobre a questão da governamentalidade5, Bujes (2002) diz que

é possível pensá-la por dois ângulos ou pontos focais. O primeiro considera o indivíduo

que se subjetiva e o segundo as relações de poder que constituem os processos de

subjetivação, o que implica apontar como os dispositivos de subjetivação foram

inventados e mostrar o impacto que têm as práticas de governamento sobre os sujeitos.

(BUJES, 2002, p. 82)

A noção de governamentalidade está associada à constituição do indivíduo, pois

ao constituir-se como sujeito, o indivíduo passa a exercer poder sobre si e sobre os

outros, e do mesmo modo quando tratamos das instituições, comunidade, estado que

4 Faço uso do termo GOVERNAMENTO tomando por base o texto de VEIGA-NETTO, Alfredo. Foucault & a educação. 2 ed. 1 reimp. Belo Horizonte:Autêntica, 2007 5 Ao trabalhar com a categoria Governamento/governamentalidade, a autora está se propondo e nos propondo a discussão de um conceito central na obra de Michel Foucault e implica fazer uma análise das mentalidades, da razão e das práticas políticas que moldam o nosso presente.

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intercambiam relações de poder operando táticas e estratégias discursivas que figuram

no espaço escolar como regras constituidoras do sujeito. (BUJES, 2002, p. 82)

Para Bujes (2002), o governo das crianças é justificado pela necessidade de

proteção e correção destas, e precisa ser exercido desde muito cedo. Dessa forma, é por

meio do governamento da criança que será possível manipular, adestrar, produzindo

nelas os sentimentos de docilidade e de obediência, para que se possa ter o adulto

almejado, tal qual identificamos na moderna concepção de infância, tratada neste texto,

por meio dos inscritos de Kant.

Sendo o conceito de infância que conhecemos hoje uma fabricação da

Modernidade, Bujes (2002) entende que precisamos desconstruí-lo, para que assim

possamos reconstruí-lo novamente, dessa vez de maneira mais condizente com a criança

que temos hoje. Desconstruir para Bujes (2002) está relacionado a não manter o

discurso da modernidade, ao menos não sem questionamento, sem estranhamento. Sua

preocupação é criar uma nova possibilidade discursiva sobre o tema e assim contribuir

para criar uma nova forma de pensar essa fase da vida humana.

Bujes (2002) diz que a categoria criança é algo biológico e a categoria infância é

social. Em qualquer lugar do mundo existe a criança, porém o discurso que se propaga

sobre ela varia conforme a cultura6 em que a criança vive.

Uma discussão mais cultural é a proposta da Bujes (2002), questionando como o

discurso sobre a infância define o que somos e o que a sociedade espera de nós. Bujes,

em seu livro Infância e maquinaria (2002), discute as relações entre infância e poder,

mostrando-nos como o sujeito infantil é fabricado/forjado por meio dos discursos

institucionais, mais especificamente.

Esse forjamento do sujeito infantil teve início no advento da Modernidade, como

foi mostrado por meio do estudo do texto do Kant (2004): o sujeito que precisa ser

tirado do seu estado de menoridade para ser submetido à luz da razão, que precisa ser

adestrado, disciplinado, para que consiga dessa forma produzir o sentimento de

docilidade e obediência, sentimentos esses que permitirão o adestramento do sujeito

infantil. Bujes (2002), por sua vez, discorda dessa maneira moderna, de conceber o

sujeito infantil como algo pronto e acabado, sem questionamento, e desse modo propõe

6 Tomada aqui em seu sentido antropológico.

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a desconstrução desse conceito e a sua reconstrução, de uma maneira mais condizente

com a criança que temos hoje.

O DISCURSO CONTEMPORÂNEO E SUAS RELAÇÕES COM O MODERNO

CONCEITO DE INFÂNCIA

Estabelecer relações entre o conceito de infância dos modernos e o discurso

contemporâneo relativo ao tema é o objetivo deste item. Tomando por base um dos

documentos já citados, selecionamos então o Currículo Básico para a Escola Pública do

Paraná (1990)7.

O Currículo Básico para a Escola Pública do Estado do Paraná (1990) é um

documento norteador das práticas pedagógicas do Estado do Paraná voltado para o

ensino fundamental e infantil, sendo, no momento de sua publicação, um dos primeiros

a tratar da Educação Infantil, bem como da sua importância na formação do sujeito.

O documento analisado foi produzido no ano de 1990: vinte anos se passaram e

inúmeras questões pontuadas dentro do documento, postas como metas, foram

conquistadas – uma delas é a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional),

que no momento em que o presente documento foi finalizado, encontrava-se em trâmite

no Congresso, e RCN/EI (Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil),

que trata da Educação Infantil. Percebe-se que alguns progressos foram alcançados em

relação a então denominada pré-escola da década de 1990.

Até a década de 1990 as propostas curriculares desconsideravam a Educação

Infantil, pois naquele momento a luta política em defesa da escola pública estava

voltada para a expansão do ensino fundamental, bem como para a sua melhoria. Desta

forma, a educação da criança de 0 a 6 anos ficava relegada a um segundo plano, por

isso, o documento Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná apresenta uma

defesa para a implantação da educação pré-escolar no Estado, o que gerou, também, o

7 Selecionamos para este item do projeto apenas o Currículo Básico para a escola pública do Paraná, mas reiteramos nosso interesse em fazer um estudo pormenorizado dos seguintes documentos: Currículo Básico para a escola pública, Paraná: Construindo a escola cidadã, Políticas da SEED-PR: fundamentos e explicitação, Avaliação, sociedade e escola: fundamentos para reflexão e Projeto Pedagógico: 1987-1990

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pedido de formulação de uma política educacional global e coerente para a sua

efetivação.

O Currículo Básico para a Escola Pública do Estado do Paraná é um documento

norteador das práticas pedagógicas voltadas para as crianças paranaenses, práticas essas

que têm por objetivo a constituição de um sujeito crítico que tenha pleno domínio do

saber sistematizado e acumulado ao longo dos séculos. Rodrigues (2010) afirma:

Formar os sujeitos infantis de maneira homogênea, formatar a infância conformando-a a um padrão classe média, ilustrada e meritocrática, atendendo, assim, aos moldes iluministas e ainda pressupor como resultado um sujeito criticamente atuante e fazedor de sua própria história foram objetivos traçados pela proposta curricular para a educação da infância no Paraná. (RODRIGUES, 2010, p.8)

A proposta curricular apresentada pelo documento possibilita o discernimento do

que está sendo selecionado em termos de cultura para o conhecimento dos alunos da

rede pública do Estado do Paraná, dando uma grande ênfase ao sujeito infantil que se

pretende modelar.

O documento em análise tem como fundamentação teórica a Pedagogia

Histórico-crítica formulada pelo professor Dermeval Saviani (1991)8, pedagogia essa

que preza pelo resgate do que se compreende por essencialidade da escola, que seria a

dosagem e a sequenciação do saber sistematizado, do conhecimento científico

acumulado pela humanidade ao longo dos séculos, sendo que o processo de

transmissão-assimilação é que deve nortear a definição dos métodos e processos de

ensino aprendizagem.

Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do saber sistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão-assimilação. Isto implica dosá-lo e seqüenciá-lo de modo que a criança passe do seu não domínio para o seu domínio. (PARANÁ, 1990, p.16)

8 Importante registrar que essa é a Primeira edição do livro intitulado Pedagogia Histórico-critica: primeiras aproximações, que hoje encontra-se na sua 10ª edição. Esclareço, ainda, que durante a década de 1980, os pressupostos desta teoria circulavam nas escolas paranaenses por meio de um periódico pedagógico chamado Jornal da Educação, sua tiragem chegava a atingir 70.000 exemplares. Dados retirados da tese de doutorado – RODRIGUES, Elaine. A invenção da democracia no Paraná -1983 a 1987. São Paulo – UNESP/Assis, 2002.

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O Currículo básico para a escola pública do estado do Paraná (1990) afirma que

um dos fundamentos necessários para uma boa pré-escola deve ser a compreensão

adequada entre o processo de socialização e escolarização da criança pequena. Porém, a

pré-escola tem de preocupar-se mais com o desenvolvimento da criança pequena, do

que com a sua aprendizagem, pois é o desenvolvimento desse período da vida da

criança que possibilitará que ela seja capaz de aprender posteriormente.

Segundo o Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná, cabe à escola a

transmissão do conhecimento que desvele o movimento e a origem da realidade social.

Dessa forma, a escola não pode tomar como ponto de partida, para o seu trabalho, a

realidade do aluno, mas sim a totalidade histórica: é um movimento que vai do todo

para as partes, ou seja, parte-se da realidade global para que se chegue ao particular, de

maneira que a criança perceba a inserção do particular determinado no todo

determinante.

O conhecimento não é uma produção da vida concreta dos homens. A cada período histórico, correspondem determinadas necessidades humanas postas pelo processo de produção coletiva de suas vidas. É a essas necessidades que os conhecimentos historicamente produzidos procuram responder. Entender o papel histórico da escola significa interpretar o movimento de avanço de um determinado momento histórico. (PARANÁ, 1990, p. 28).

Diante disso, cabe questionar qual deve ser o conteúdo escolar na perspectiva da

compreensão das relações sociais, sendo necessário ter-se claro que a transmissão de

conhecimento, ainda em concordância com o documento, deve visar o desvelamento da

realidade? Respondendo à questão diríamos: O Currículo Básico da Escola Pública do

Estado do Paraná 1990 defende uma pré-escola com objetivos claros e específicos para

a formação do sujeito infantil, almeja que o indivíduo, desde a mais tenra infância,

aprenda lições que ensinem os conteúdos acumulados socialmente. A ideia central,

presente no documento, é a de que ao proporcionar ao alunado o contato com a cultura

(erudição) esse deixaria sua condição de marginalizado social e passaria para um estágio

de cidadania, seria capaz de lutar por seus direitos e ser cumpridor de seus deveres. Esta

concepção para formação da infância paranaense atravessou duas décadas. Rodrigues

(2010) afirma:

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O currículo Básico para a escola pública do Paraná mantém, ainda hoje, a mesma fundamentação, a mesma seleção de conteúdos. A tradição inventada na década de 1990 foi soberana na luta para fazer crer que determinada versão de currículo era “boa”. (RODRIGUES, 2010 p.7)

Sobre os conteúdos a serem trabalhados na pré-escola, destacamos a seguinte

sugestão dentro do Currículo Básico para a escola pública:

Os conteúdos a serem trabalhados na faixa etária dos 6 anos encontram-se relacionados nas propostas de cada área de ensino:Alfabetização, Matemática, História, Geografia, Ciências, Educação Artística e Educação Física. O trabalho pedagógico na pré-escola, a partir dos conteúdos, só poderá ser desenvolvido após o estudo da concepção teórica, bem como do encaminhamento metodológico relativo a cada área de conhecimento. (PARANÁ, 1990, p.33) grifo nosso

Citarei mais um excerto que foi escolhido com o intuito de melhor expor a

observação que fiz dos itens relacionados às matérias específicas,

O ensino deve possibilitar à criança a aquisição do conhecimento mais

avançado produzido pela sociedade no atual estágio de desenvolvimento. [...] O

conhecimento a ser trabalhado pedagogicamente na pré-escola é o mesmo que nas séries

iniciais. (PARANÁ, 1990, p. 29-30) grifo nosso

Diante do que expusemos, perguntamos: O Currículo Básico não estaria

apresentando uma nova versão para uma proposta educacional que ampara seus

pressupostos na mesma concepção de infância cunhada na modernidade? Não

seria esse o motivo pelo qual o discurso, pelo documento veiculado, teve

repercussão e desdobramentos aceitos e reeditados nas duas últimas décadas,

chegando a representar-se como verdade única para a educação da infância no

Paraná?

Qualquer discurso se mantém por meio da linguagem, e o discurso sobre a

infância não foge à regra, no entanto, não temos sobre os discursos o controle que

imaginávamos ter. Baladelli (2010) considera que todos os homens nascem num mundo

já tomado pela linguagem que é constitutiva de seus pensamentos. A linguagem não faz

mediação entre o que vemos e o que pensamos, ela constitui o próprio pensamento e é

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por meio dela que os discursos são constituídos e mantidos. Os discursos formam

sistematicamente os objetos sobre os quais falam. Nenhuma forma de diálogo, nenhum

discurso, está imune às relações de poder.

Assim sendo, faz-se necessário entender os objetos do mundo social como

discursivamente construídos, não somente por meio da linguagem, mas sim por meio de

qualquer sistema de representação que permita utilizar símbolos para representar o que

existe no mundo. Desta forma, perceber o papel constitutivo da linguagem tem efeitos

significativos no campo da investigação pedagógica. O poder ilimitado da educação em

constituir indivíduos conscientes, autônomos, esclarecidos passa a ser posto em questão.

(BUJES, 2002, p. 22)

Bujes define o que é o sujeito infantil, buscando em Ariès o fundamento para tal

conceito. No entanto, a autora não se prende somente ao conceito de infância e sua

definição, mas também na forma como este foi instituído pelo discurso.

As análises feitas sobre a infância, que conhecemos pelos textos historiográficos,

nos mostram esse período da vida humana, como algo puro, inocente, sempre com uma

visão idealizadora, porém, alerta para o seu caráter fugidio, de sua complexidade e dos

múltiplos sentidos que a infância adquire em cada contexto, em cada cultura, em cada

época.

Ao discutir como surgiu o conceito de infância e como ele é mantido por meio

do discurso presente nos documentos norteadores das práticas pedagógicas para a

educação infantil, Bujes (2002) diz que é preciso rever a nossa definição de infância, ou

seja, que é preciso fabricar um novo conceito sobre a infância, pois a criança que foi

definida na modernidade não mais atende ao nosso sujeito infantil. Ou seja, temos outra

criança, mas os documentos que norteiam toda a educação voltada para ela trabalham

com a perspectiva da criança moderna. Bujes (2002) diz que, ao discutir as noções

correntes de infância, é certo problematizar o quanto elas correspondem às infâncias

que a prática pedagógica conhece?

Questionar sobre os efeitos de tal modo de significar a infância nas práticas

pedagógicas que organizamos é tarefa de todo professor. Identificar quais são os efeitos

de tais significados na constituição das identidades infantis. Pôr em questão o modo

como o discurso sobre a infância opera na definição de quem somos e como eles servem

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para a tomada de decisões em termos de políticas públicas. Em concordância com a

autora, entendemos como produtivo repensar os modos de conceber a infância, e

descrever como vieram se gestando tais discursos e apontar os locais estratégicos onde

eles continuam encontrando sustentação e como eles servem de justificativa para

intervenção no caos que aí se origina.

A partir dos argumentos expostos, formulam-se as seguintes hipóteses:

1) que a concepção de sujeito infantil com a qual o Currículo Básico para a

Escola Pública do Paraná (1990) propõe-se a trabalhar não está distante do sujeito

infantil descrito por Kant;

2) a proposta paranaense estrutura seus argumentos na concepção de infância da

idade moderna, ainda buscamos formar o homem que, iluminado por uma educação

“civilizadora”, venha a contribuir para uma sociedade melhor, entendendo que nos dias

de hoje uma sociedade melhor pode ser definida pela expectativa registrada no currículo

como sendo transformadora da realidade do aluno retirando-o da marginalidade.

As leituras historiográficas aqui apresentadas tiveram o intuito de esclarecer as

primeiras relações de proximidades e distanciamentos entre as ideias propostas pelos

autores com os quais se trabalhará. Não pretendemos estabelecer posicionamento

favorável ou contrário, mas sim lançar luz às fontes, por meio do procedimento de

problematização, que pressupõe o diálogo entre o pesquisador e seus documentos.

Perguntar, examinar como funcionam e acontecem os discursos e ensaiar alternativas

para que venham funcionar e acontecer de outras maneiras serão as estratégias que

esperamos saber utilizar na tentativa de contribuir para a descoberta de caminhos que

levem à desterritorialização de certezas sobre o conceito que ampara as práticas que

envolvem o sujeito infantil e sua educação.

FONTES

Entende-se por fonte todo e qualquer documento, documento elegido pelo

historiador como fonte de pesquisa, assim sendo, a eleição feita a princípio sugeria o

estudo dos seguintes documentos: Currículo Básico para a escola pública, Paraná:

Construindo a escola cidadã, Políticas da SEED-PR: fundamentos e explicitação,

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Avaliação, sociedade e escola: fundamentos para reflexão e Projeto Pedagógico: 1987-

1990; no entanto ao debruçar sobres tais documentos foi possível perceber que apesar

de serem norteadores das práticas pedagógicas voltada para a educação das crianças

paranaense, pouco se fala sobre a infância, ou pelo menos a concepção de infância

presente nos mesmos, com exceção do Currículo que é o que aprofunda um pouco sobre

o referido tema, no entanto sem definir o que é entendido por criança e infância. Devido

a esse fato, o novo desafio lançado é o de estudar os impressos veiculados no Estado do

Paraná na década de 1980, tendo em vista que não queremos abrir mão do objeto de

estudo que é a infância.

REFERÊNCIAS

BALADELI, Daniella Tizziani. O conceito de infância na historiografia acadêmica: um mapeamento (1991-2008). 2010.f. Dissertação de mestrado. Programa de pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2010.

BUJES, Maria Izabel Edelweis. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

GADOTI, Moacir. História da idéias pedagógicas. São Paulo: Ática, 2004.

KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. 3 ed. Piracicaba: UNIMEP. 1995

RODRIGUES, Elaine. Educando a infância paranaense de 1990. In: História da Infância no Brasil. Maringá: Eduem, 2010.

ROTTERDÃ, Erasmo. A filosofia da educação. In: A civilidade pueril. Tradução, Introdução e Notas de Luiz Feracine. São Paulo: Escala, [s.d]. (Grandes Obras do Pensamento Universal – 22)

VEIGA-NETTO, Alfredo. Foucault & a educação. 2 ed. 1 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

PARANÁ- SEED.CURRÍCULO BÁSICO DA ESCOLA PÚBLICA DO ESTADO DO PARANÁ, 1990.

PARANÁ. Avaliação, sociedade e escola: fundamentos para reflexão. Curitiba: SEED, 1986.

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PARANÁ. Políticas da SEED-PR: fundamentos e explicitação. Curitiba: SEED, ago., 1983.

PARANÁ. Projeto Pedagógico: 1987-1990. Curitiba: SEED, 1987.