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MARCOS AURÉLIO COSTA DE LIMA INFILTRAÇÃO POLICIAL: pensando um modelo Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. Orientador: Prof.Ricardo Luiz Guimarães de Azevedo Rio de Janeiro 2013

Infiltração Policial: pensando um modelo

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Page 1: Infiltração Policial: pensando um modelo

MARCOS AURÉLIO COSTA DE LIMA

INFILTRAÇÃO POLICIAL:

pensando um modelo

Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia

apresentada ao Departamento de Estudos da Escola

Superior de Guerra como requisito à obtenção do

diploma do Curso de Altos Estudos de Política e

Estratégia.

Orientador: Prof.Ricardo Luiz Guimarães de Azevedo

Rio de Janeiro

2013

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C2013 ESG

Este trabalho, nos termos de

legislação que resguarda os direitos autorais,

é considerado propriedade da ESCOLA

SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitida

a transcrição parcial de textos do trabalho, ou

mencioná-los, para comentários e citações,

desde que sem propósitos comerciais e que

seja feita a referência bibliográfica completa.

Os conceitos expressos neste

trabalho são de responsabilidade do autor e

não expressam qualquer orientação

institucional da ESG

____________________________

Assinatura do autor

Biblioteca General Cordeiro de Farias

Lima, Marcos Aurélio Costa de Infiltração Policial: pensando um modelo / Marcos Aurélio Costa de Lima de Rio Rio de Janeiro : ESG,2013.

53 f.: il. Orientador: Professor Ricardo Luiz Guimarães de Azevedo

Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de de

Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE),2013.

1. Infiltração Policial. 2. Ação Encoberta. 3. Polícia Federal.

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Aos meus pais, filhos e esposa, agradeço o simples fato de existirem.

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RESUMO

Com o aumento da criminalidade transnacional, a comunidade internacional voltou suas atenções para a busca de mecanismos mais eficientes de investigação. Nesse contexto, a infiltração, estratagema usado desde a antiguidade no âmbito militar, ganha importância como meio excepcional de investigação criminal, sendo regulamentada em vários países da Europa Ocidental. No Brasil, apesar dos compromissos firmados no campo internacional, a infiltração é usada com bastante parcimônia. Esse trabalho intenciona buscar os motivos do seu pouco uso pelo Departamento de Polícia Federal. Para tanto, passaremos pela origem do instituto, o tratamento legal dado em outros países, a forma como foi inserida no Direito Brasileiro e a estrutura do DPF para lidar com meio de investigação tão complexo, inclusive ouvindo aqueles policiais que infiltraram ou coordenaram trabalhos em que a infiltração foi usada.

Palavras-Chave: infiltração. Ação encoberta. Polícia Federal. Agente infiltrado. Autorização judicial.

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ABSTRACT

With the increase of transnational crime, the international community turned its attention to

the search for more efficient means of research. In this context, the infiltration ploy used

since antiquity in the military, gained exceptional importance as a means of criminal

investigation, being regulated in many countries of Western Europe. In Brazil, despite the

commitments made in the international field, the infiltration is used quite sparingly. This

paper seeks to find the reasons for their low use by the Federal Police Department. To do

so, passing by the origin of the institute, the legal treatment given in other countries, how

has been incorporated into Brazilian law and structure of the DPF to deal with mean of

investigation as complex, including listening to those officers who infiltrated or coordinated

work in the infiltration was used.

Keywords: infiltration. Undercover action. Federal Police. Undercover Agent. Judicial

authorization.

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SUMARIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................... 7

2 A INFILTRAÇÂO POLICIAL................................................................. 10

2.1 ORIGEM................................................................................................ 10

2.2 CONCEITO............................................................................................ 11

2.3 A INFILTRAÇÃO EM ALGUNS PAÍSES................................................ 14

2.3.1 A infiltração na Alemanha................................................................... 15

2.3.2 A infiltração na Espanha..................................................................... 16

3 A INFILTRAÇÃO NO BRASIL.............................................................. 20

3.1 A INFILTRAÇÃO DURANTE OS GOVERNOS MILITARES................. 20

3.2 A INFILTRAÇÃO ATUAL...................................................................... 22

3.2.2 Pressupostos....................................................................................... 23

3.2.3 Limites do infiltrado............................................................................ 26

3.2.4 Valor probante da infiltração.............................................................. 30

3.2.5 Quem pode infiltrar.............................................................................. 31

3.2.6 Duração................................................................................................. 34

4 A INFILTRAÇÃO NA POLÍCIA FEDERAL........................................... 36

4.1 A INFILTRAÇÃO INFORMAL................................................................ 37

4.2 A ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA E A INFILTRAÇÃO................ 38

4.3 VISITANDO ALGUMAS INFILTRAÇÕES............................................. 39

4.3.1 Caso A................................................................................................... 40

4.3.2 Caso B.................................................................................................. 42

4.3.3 Caso C................................................................................................... 43

4.4 PROPONDO UM MODELO PARA A INFILTRAÇÃO NO DPF............. 45

5 CONCLUSÃO........................................................................................ 50

REFERÊNCIAS..................................................................................... 53

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1 INTRODUÇÃO

As aventuras e desventuras dos homens de polícia sempre povoaram o

imaginário das pessoas. Não por outro motivo, muitos são os livros, programas de

televisão e filmes de cinema que retratam a rotina de uma repartição policial.

Nesta linha, é indiscutível que o trabalho de um agente infiltrado-AI, com seus

riscos e ambivalências, fornece um incontável número de oportunidades para o

desenvolvimento de livros e roteiros de filmes.

O sucesso mundial de Os Infiltrados, produção de 2006, dirigida por Martin

Scorsese, onde Leonardo Di Caprio vive Billy Costigarn, um jovem policial que se infiltra

na máfia de Boston comandada pelo gângster Frank Costello, atesta o dito acima. A

peculiaridade do filme é a existência de um infiltrado às avessas, com o ingresso de um

homem da máfia, Collin Sullivan, personagem vivido por Matt Damon, na instituição

policial. No desenrolar da trama fica claro que aqueles dois homens, apesar de papéis

antagônicos, viviam aflições semelhantes, resultantes da vida dupla e da obrigação de

obter informações privilegiadas.

Entretanto, de todas as produções sobre o tema, é induvidoso que Donnie

Brasco, filme de 1997 dirigido por Mike Newell, que retrata aquela que é provavelmente a

mais bem sucedida atuação de um agente infiltrado nos Estados Unidos, é a que melhor

aborda os riscos, complexidade, questionamentos e drama pessoal do agente infiltrado.

Donnie Brasco é o codinome adotado pelo agente do Federal Bureau of

Investigation (FBI), Joseph Pistone, vivido nas telas por Johnny Depp, na operação que

foi batizada de Sun Apple. Pistone, que era formado em Antropologia e depois ingressou

no oficialato da Marinha norte-americana, permaneceu infiltrado por seis anos na família

Bonano, uma das mais importantes e violentas famílias mafiosas de Nova Iorque.

Para obter a confiança da organização criminosa, Pistone se apresentou em Little

Italy em 1976 como sendo um pequeno ladrão de jóias, passando, antes, duas semanas

estudando as peculiaridades de seu novo metiê, os detalhes do passado criado para ele

pelo FBI, bem como as regras da máfia.

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O sucesso da empreitada determinou a extensão da infiltração à família

Colombo, também em Nova Iorque, com igual êxito, culminando com o julgamento de

mais de 200 pessoas.

A operação Sun Apple, que teve lugar nos anos 70, sedimentou junto às

autoridades americanas a importância e a eficácia do agente infiltrado na busca de

informações inacessíveis aos mecanismos ordinários de investigação.

No Brasil, a infiltração teve largo uso durante o regime militar instituído em 64,

quando as instituições policiais, desviadas de seu leito natural, se converteram em braços

armados subsidiários às instituições militares.

Neste quadro, a Polícia Federal desempenhou importante papel na manutenção

daquele status quo, realizando investigações de cunho político nos meandros de

organizações estudantis, sindicais, órgãos públicos, entre outros organismos da

sociedade civil.

Convivendo com colegas que ostentam mais de 30 anos na Polícia Federal, é

comum ouvirmos os relatos sobre trabalhos de infiltração realizados naquele período,

onde se buscava a identificação de focos de resistência ao regime.

Com o retorno do Brasil ao rumo democrático, a infiltração foi caindo em desuso e

com o advento de nossa atual Constituição, ficamos no aguardo de lei que autorizasse e

regulamentasse seu uso, uma vez que configurando meio excepcional de apuração,

potencialmente lesivo a direitos fundamentais dos cidadãos, não estava alcançada pelos

normais poderes de investigação do Estado.

A espera teve fim em 11 de abril de 2001, depois de quase duas décadas de

discussão no Congresso Nacional, com o advento da Lei nº 10.217, que alterou a redação

do artigo 2º, da Lei nº 9.034/95, fruto de compromissos assumidos pelo Brasil frente à

Comunidade Internacional, materializados em acordos como a Convenção Contra o

Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, e a Convenção das

Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, a denominada

Convenção de Palermo.

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Entretanto, são escassas as investigações em que a infiltração foi utilizada no

âmbito da Polícia Federal ao longo destes mais de doze anos de vigência da Lei nº

10.217, mormente quando comparadas às centenas de milhares de interceptações

telefônicas decretadas no mesmo período.

Nossa estranheza se acentua quando sabemos que de 2001 para cá, o

Departamento de Polícia Federal já desencadeou mais de 300 operações, com o

desbaratamento de igual número de organizações criminosas, exatamente o terreno para

o qual o agente infiltrado é vocacionado. Apesar do expressivo número de operações, em

apenas três dos trabalhos temos a notícia do uso de um agente infiltrado.

No último dia 02 de agosto foi promulgada a Lei nº 12.850/2013, dando à

infiltração policial um detalhamento inédito em nosso ordenamento e aproximando o

modelo brasileiro daquele já adotado em países da Europa Ocidental.

Esse trabalho intenciona perquirir os motivos de utilização tão parcimoniosa

desse meio excepcional de investigação. Para tanto, olharemos a origem do instituto,

passaremos pela infiltração na Alemanha, que serviu de modelo para outros países, e

analisaremos, já sob a orientação da nova lei, como a ferramenta foi concebida no Brasil,

e a estrutura policial para lidar com um meio de investigação tão complexo, colhendo

junto àqueles que estiveram infiltrados as dificuldades enfrentadas na implementação da

medida.

Será o pequeno uso da infiltração fruto de um eventual comodismo de nossas

autoridades investigantes? Estaremos preparados para um uso mais freqüente? Será a

infiltração, devido aos riscos que implica - inclusive para direitos fundamentais

constitucionalmente protegidos - destinada a ter uma utilização cada vez mais rara? São

essas perguntas que esperamos responder ao final deste trabalho.

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2 A INFILTRAÇÃO POLICIAL

2.1 ORIGEM

A ideia de se ter um homem de confiança convivendo nas hostes inimigas e de lá

trazendo informações privilegiadas constitui técnica militar das mais antigas, estando

relatada no conhecido Arte da Guerra, escrito por Sun Tzu há mais de 2.500 anos, onde o

antigo general chinês comenta a importância dos espiões para o sucesso nos campos de

batalha.

A figura do delator, cidadão francês que descobria na sociedade inimigos

políticos do Rei da França, especialmente no período de Luiz XV, também é lembrado

como origem do agente infiltrado.

Ainda merece destaque o esquadrão especial irlandês (Special Irish Branch),

criado pela polícia londrina em 1883 para vigiar os revolucionários irlandeses, tendo,

posteriormente, voltado suas atenções para outros estrangeiros1.

Entretanto, o uso sistemático e formal da infiltração, com características próximas

daquelas hoje presentes no agente encoberto, teve inicio na polícia de Paris em meados

do século XVIII.

Segundo Gary T. Marx2, sociólogo americano estudioso das instituições policiais,

em 1770 a polícia de Paris possuía uma bem estruturada unidade de inteligência,

composta por 20 inspetores de polícia, membros do notório bureau de sureté. Esses

policiais desenvolviam investigações sobre a vida pública e privada dos cidadãos em

assuntos políticos e criminais.

Mas enquanto instrumento de apuração de crimes utilizado pela Polícia, coube ao

lendário Eugene François Vidocq papel fundamental na sistematização e divulgação

dessa técnica investigativa.

1 MARX, Gary T.Undercover:Police Surveillance in America. EUA: University of California Press,

1988.p.22 2 MARX, Gary T.Undercover: Police Surveillance in Comparative Perspective. EUA. Kluver

Academic Publishers,1995. p.3

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De acordo com a biografia de Vidocq atribuída a um escritor fantasma, ele vivia às

voltas com pequenos crimes, prostitutas, jogatinas e romances. Após fugir por três vezes

das cadeias francesas, ameaçado por desafetos e cansado de se esconder, procura a

polícia de Paris e se oferece para retornar à prisão em troca do perdão da sua pena. A

proposta foi aceita pelo Chefe de Polícia Jean Henry, sendo, então, reintroduzido na

prisão de Bicêtre em 20 de julho de 1809. Em 28 de outubro ele continuou seu serviço de

informante na La Force Prison.

Vidocq, então, começou a trabalhar como um informante que escutava outros

prisioneiros quando falavam entre eles. Passados doze meses, a polícia arranjou sua fuga

para que ele pudesse trabalhar como informante também fora das grades, fornecendo à

Polícia de Paris informações relevantes sobre crimes até então não resolvidos, resultando

na prisão de centenas de pessoas.

A exitosa experiência de Vidocq o levou ao comando da Divisão de Investigação

Criminal da Polícia de Paris, que sucedeu o bureau de sureté, de 1810 a 1827.

Acreditando firmemente que o crime só podia ser combatido eficazmente por criminosos,

contratava delinquentes para trabalhar para ele, aos quais pagava com fundos secretos.

As inovadoras táticas de Vidocq o conduziram ao submundo de Paris, um mundo

até então inacessível aos chefes de polícia que o haviam antecedido, percebendo com

clareza que as tradicionais formas de atuação da polícia não eram mais suficientes ao

combate à criminalidade urbana.

2.2 CONCEITO

Muitos são os conceitos de agente infiltrado encontrados em livros. Podemos na

doutrina brasileira recorrer à sintética definição de Alberto Silva Franco, citado por Rafael

Pacheco3: “agente infiltrado é um funcionário da polícia que, falseando sua identidade,

penetra no âmago da organização criminosa para obter informações e, dessa forma,

desmantelá-la”.

3 PACHECO, Rafael. Crime Organizado. Medidas de Controle e Infiltração Policial.Curitiba-PR:

Ed. Juruá.2007.p.109

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O legislador espanhol, em adequada opção, estabelece no artigo 282 bis da Ley

de Enjuiciamento Criminal, as condições, requisitos e limites da infiltração, nos permitindo

extrair um conceito do agente infiltrado.

Podemos dizer, lastreado no CPP espanhol, que o agente infiltrado é o servidor

da polícia judiciária, que após permissão do Juiz ou do Ministério Público, infiltra-se em

uma organização criminosa, aparelhado de poderes para adquirir e transportar o produto

e os instrumentos do crime, bem como para retardar a apreensão dos mesmos, quando

outros meios investigativos sejam inviáveis ou se apresentem inúteis.

Do conceito desenhado pela legislação espanhola deflui que o agente infiltrado

deve ser um policial, excluídos, portanto, particulares, militares ou agentes de inteligência.

Policiais que desempenhem funções que não sejam de polícia judiciária também não

podem infiltrar, uma vez que a medida visa à obtenção de provas de um crime para uso

perante a justiça criminal, atribuição própria da polícia judiciária.

A medida precisa ser autorizada pelo juiz, uma vez que invade direitos

fundamentais do investigado. A previsão de autorização pelo MP no modelo espanhol se

deve à estrutura do sistema persecutório adotado naquele país. No Brasil, a autorização

deve necessariamente ser concedida pelo magistrado.

O ambiente propício ao uso do agente encoberto é a organização criminosa,

circunstância que fixa limites e freia um eventual uso desarrazoado deste meio tão

invasivo de investigação.

Temos, entretanto, que coube ao festejado autor espanhol Paz Rubio, citado por

Flávio Pereira, a definição que mais nos agrada. Segundo Rubio,”agente infiltrado é o

membro da polícia judicial especialmente selecionado que, utilizando-se de uma

identidade falsa, atua, passivamente, com sujeição à lei e sob controle do juiz, para

investigar delitos próprios da delinqüência organizada e de difícil averiguação. Isso,

quando já fracassaram outros meios de investigação, ou esses sejam, manifestamente,

insuficientes para seu descobrimento”4.

4 PEREIRA, Flávio Cardoso. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados.

Disponível em: http://www.r2learning.com.br. Acesso em: 10 jun. 2013.

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Vemos que o conceito formulado por Rubio reúne características fundamentais a

uma infiltração compatível com um regime democrático. A primeira a ser destacada é a

condição de policial do infiltrado. Mas não um policial qualquer. Um profissional

especialmente selecionado que detenha condições pessoais que contribuam para o

sucesso da missão e, fundamentalmente, para salvaguarda dos direitos dos investigados

e de terceiros, bem como para a segurança do próprio agente infiltrado.

A identidade falsa também é fundamental para uma correta definição, embora

possamos ter exceções, conforme veremos. A simples ocultação da condição de policial,

sem a assunção de outra identidade, não é suficiente à caracterização da infiltração

profunda (deep cover) aqui tratada.

A atuação passiva referida por Rubio denota que o infiltrado não tem carta branca

para delinqüir. É evidente que a complexidade da operação pode levar o policial a ter a

necessidade de cometer um crime, mas sua função é, inicialmente, a obtenção de

informações privilegiadas que possam dirigir outras diligências ao êxito. Não pode o

infiltrado, portanto, fazer surgir na cabeça do investigado a vontade de delinqüir.

Caso haja a incontornável necessidade de delinqüir, o Direito Penal oferece

soluções para a não penalização do infiltrado, não constituindo proposta deste trabalho se

aprofundar na natureza jurídica desta não responsabilização penal (atipicidade, exclusão

de ilicitude, exclusão de culpabilidade ou excusa absolutória).

Por fim, vemos que o autor espanhol também enxerga na infiltração um caráter

subsidiário, devendo ser utilizada apenas quando outros meios tenham falhado ou se

apresentem inúteis.

Acrescentaríamos ao conceito a voluntariedade do trabalho infiltrado.

Entendemos que o trabalho infiltrado deve ser sempre espontâneo, podendo o policial se

recusar a realizar a ação sem que qualquer sanção administrativa lhe seja imposta. Assim

pensamos porque a infiltração pode se revestir de riscos que superam aqueles que o

policial tem por obrigação arrostar.

Assinalamos, ainda, que ao nosso sentir a decisão por realizar a infiltração deve

ficar a cargo da instituição policial, não podendo o Ministério Público requisitar a medida.

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Isso porque apenas a Polícia reúne condições para aferir se há possibilidade de

implementar a ação com segurança e eficácia, dispondo das condições logísticas para

fornecer os meios necessários à diminuição dos riscos e, claro, se possui um homem com

as qualidades exigíveis de um infiltrado.

A negativa do órgão policial deve, evidentemente, ser devidamente

fundamentada para que possa ser sindicada pelos órgãos de controle. A infiltração,

assentamos mais uma vez, é um meio excepcional de obtenção de prova e essa

extraordinariedade tem várias implicações. Assim, a obrigatória observância da requisição

ministerial pela autoridade policial sofre, aqui, uma mitigação como conseqüência da

especificidade da ação encoberta5.

De uma certa forma, a transformação da requisição ministerial em simples

requerimento que poderá ser desatendido, decorre da possibilidade do policial se negar a

realizar o trabalho infiltrado, sendo a voluntariedade um traço marcante da infiltração.

Do exposto, podemos sintetizar as seguintes características da infiltração policial:

- medida implementada pela polícia judiciária;

- atuação sob falsa identidade;

- atuação, em regra, passiva;

- medida sujeita à autorização prévia do judiciário;

-caráter subsidiário (cabível quando outras medidas falham ou se apresentam

inúteis); e

- voluntariedade do infiltrado.

5 Em interessante artigo intitulado Investigação Preliminar, Polícia Judiciária e Autonomia, assim

se manifestam Luiz Flávio Gomes e Fábio Scliar pela possibilidade da autoridade policial não atender à requisição ministerial: “A possibilidade de o membro do parquet requisitar diligências é limitada pela necessidade de fundamentação de suas manifestações e pela ampla discricionariedade que tem o delegado de polícia na condução do apuratório, tendo plena autonomia técnica e tática na direção da investigação, podendo, por isso mesmo, rejeitar, sempre fundamentadamente, requisições impertinentes, desarrazoadas ou apresentadas a destempo”.

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2.3 A INFILTRAÇÃO EM ALGUNS PAÍSES

Para que possamos bem entender o modelo de infiltração engendrado no Brasil,

se apresenta conveniente que olhemos os sistemas adotados na Alemanha e Espanha,

modelos que serviram de norte a várias legislações que a seguiram.

Aqui cabe uma observação acerca da infiltração nos Estados Unidos. Embora

seja, por razões óbvias, o primeiro modelo que nos vem à mente quando o assunto é

agente encoberto, optamos por passar ao largo do padrão americano em razão das

fundamentais diferenças existentes entre o sistema jurídico dos Estados Unidos - de

tradição anglo-saxã e com uma grande autonomia dos estados, havendo não um, mas

uma plêiade de atos normativos acerca da infiltração – e o sistema romano-germânico a

que o Brasil se alia, onde temos, também, exclusividade da União para legislar sobre

processo penal.

Veremos, então, o exitoso modelo adotado pela Alemanha, inspirador de outros

modelos europeus, e o modelo espanhol, certamente um dos melhores, tido por muitos

como um aperfeiçoamento do sistema germânico.

2.3.1 A infiltração na Alemanha

A infiltração policial foi introduzida na Alemanha pela lei de combate ao tráfico

ilícito de drogas e outras formas de aparição da criminalidade organizada, que alterou o

código de processo penal alemão (StrafprozessOrdnung-StPO).

O modelo germânico optou pela exclusividade da polícia para a realização do

trabalho de infiltração, não sendo a medida passível de ser realizada por militares ou

particulares, conforme taxativa previsão do artigo §110a(2) do StPO. A medida também

deverá ser autorizada por um tempo determinado, nas hipóteses em que a solução por

outra via se apresente impossível ou sumamente dificultoso, o que denota o caráter

subsidiário da medida.

O legislador alemão autorizou a confecção, modificação e utilização dos

documentos que se façam necessários à manutenção da falsa identidade do policial

encoberto. A autorização do artigo §110a(3) do código processual penal germânico não

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detalha, entretanto, quais os documentos alcançados pela autorização legal, tarefa que

coube à doutrina. Segundo Fabrício Guariglia6, são documentos para efeito deste

dispositivo todo aquele comumente utilizado como identidade ou habilitação para dirigir,

excluída, porém, a possibilidade de alterar livros públicos.

O trabalho infiltrado não pode ser usado para apurar todo e qualquer delito. Na

Alemanha, o StPO firmou um flexível rol de crimes onde a medida é possível, lançando

mão de mecanismos que permitem sua utilização em uma vasta gama de delitos. São

esses os pressupostos para a utilização do agente encoberto na Alemanha:

- a prática ou suspeita do cometimento de um dos crimes previstos nos números

1 a 4 do §110a(1) do StPO (1-tráfico de entorpecentes, armas,falsificação de dinheiro ou

de selos. 2-ataque à Segurança Nacional. 3-delito cometido de forma profissional ou

habitual. 4-praticado por quadrilha ou qualquer outro grupo organizado), se revestidos de

considerável significado.

- o esclarecimento de crimes cuja pena mínima cominada seja igual ou superior a

um ano de privação de liberdade, desde que fatos determinados apontem para a

possibilidade de uma reiteração ; e

- o esclarecimento de fatos puníveis com pena privativa de liberdade igual ou

superior a um ano, ainda que sem perigo de reiteração, quando o especial significado do

fato exija a intervenção do agente infiltrado e outras medidas tenham se apresentado

inúteis.

Observa-se que a pequena pena mínima cominada aos crimes que autorizam a

infiltração possibilitaria o seu uso em grande parte dos delitos tipificados na Alemanha.

Entretanto, o legislador estabeleceu condições que tornam a utilização do agente

encoberto um pouco mais restrita. A primeira destas cláusulas limitadoras é a

possibilidade de reiteração calcada em fatos determinados, não podendo ser uma mera

ilação das autoridades investigantes. Se ausente a possibilidade de reiteração, a

infiltração ainda poderá ser usada se o fato se revestir de especial significado ou outras

medidas tenham se apresentado inúteis.

6 GUARIGLIA, Fabricio. El Agente Encubierto. Um Nuevo Protagonista en El Procedimiento

Penal? Disponível em: www.cienciaspenales.org. Acesso em: 08 jun.2013.

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Portanto, o legislador alemão optou, sabiamente, por estabelecer alguns

standards para o uso da infiltração, mas a maneira elástica como foi feito possibilita ao

judiciário o desempenho de um importante papel na análise da medida.

Quanto ao desenvolvimento da ação encoberta, o StPO, em seu artigo §110b,

estabelece que o Ministério Público pode autorizar ou rechaçar a infiltração mas não

reúne poderes para impô-la à Polícia, estando o domínio da medida fundamentalmente

nas mãos da instituição policial, inclusive podendo iniciá-la, sponte propria, sempre que a

decisão do Ministério Público não puder ser obtida a tempo. Nesse caso, a anuência

ministerial deve ser obtida no prazo de 3 dias sob pena de suspensão da medida.

O controle judicial, em regra, ocorre a posteriori, já na fase processual. Portanto,

durante a investigação o controle fica a cargo do Ministério Público.

O StPO também cuidou dos limites da atuação do infiltrado. Poderá o agente

encoberto, sob falsa identidade, praticar todos os atos jurídicos próprios da vida civil

como, por exemplo, fundar uma empresa. Entretanto, não poderá cometer crimes durante

a ação, excluídos, por motivos óbvios, a falsificação de documentos e papeis e o uso

deles. Porém, caso seja obrigado a praticar fatos típicos, em especial nas hipóteses das

chamadas provas de fidelidade, muito comuns nas organizações criminosas do tipo

mafioso, a ação será justificada ou exculpada, conforme o caso.

2.3.2 A infiltração na Espanha

Como em outros países da Europa, a infiltração na Espanha resulta da

Convenção das Nações Unidas contra o tráfico de drogas de 1988, a chamada

Convenção de Viena, que obrigou aos subscritores a punirem a lavagem dos recursos

gerados pelo tráfico de drogas, bem como a adotarem armas eficientes de apuração

como forma de fortalecer o combate ao crime organizado internacional.

Conforme lembrado por Márcia Bonfim7, a novidade foi internalizada no

ordenamento espanhol através da Lei Orgânica nº 5, de janeiro de 1999, que duplicou o

7 BONFIM, Márcia Monassi Mougenot. A Infiltração de Policiais no Direito Espanhol. Revista

Direito e Sociedade. Curitiba, v.3,n.1, jan/jun.2004.

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artigo 282 da Ley de Enjuiciamiento Criminal (LECrim), o código de processo penal

espanhol.

A novo dispositivo da lei espanhola8 estabelece que o agente infiltrado é

necessariamente um homem da polícia judiciária, não havendo a possibilidade de

infiltração de particulares, militares ou policiais que não tenham por fim a arrecadação de

provas para o uso perante a justiça criminal. A autorização é dada pelo juiz ou,

excepcionalmente, pelo Ministério Público, que neste caso deverá comunicar

imediatamente ao juízo a quem caberá chancelar ou não a medida. O infiltrado, ao

ingressar na organização criminosa, o faz com identidade diversa da sua, o que afasta

aquilo que Joaquim Martin9 denomina de agente meramente encoberto, hipótese onde o

policial, apesar de esconder sua condição, não assume uma falsa identidade.

A lei espanhola também explicitou que incumbe ao Ministério do Exterior a

expedição da identidade falsa para o policial infiltrado, que poderá ser usada por um

período de seis meses, que também é o prazo de duração da própria infiltração,

prorrogável por períodos de igual duração. Interessante notar que o policial poderá manter

a falsa identidade ao testemunhar no processo, devendo, para tanto, haver uma decisão

judicial, o que deixa clara a preocupação do legislador com a vida do policial pós-

infiltração.

Questão interessante levanta Márcia Bonfim10, ao lembrar, acertadamente, que a

autorização judicial para a infiltração já contempla implicitamente o engano e o abuso de

confiança, posto que inerentes à medida. Porém, é possível imaginarmos situações em

que a prova a ser colhida não constitua um desdobramento lógico da ação encoberta,

implicando em violação a direitos fundamentais outros. Desta forma, uma escuta

ambiental, por exemplo, para ser possível, deverá ser especificamente autorizada pelo

juiz, não podendo o infiltrado se aproveitar de sua condição para instaurar um dispositivo

de monitoramento.

8ESPANHA. Lei de Enjuiciamiento Criminal. Disponível em:

http://noticias.juridicas.com/basedatos/Penal/lecr.12t3. Acesso em: 16 jun.2013. 9 MARTIN, Joaquin Delgado. Criminalidad Organizada. Barcelona: J.M.Bosch, 2001.p.49

10 BONFIM.Op.cit.

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Acreditamos que neste caso, bem como em todos os outros que escapem à

previsão de isenção estabelecida no artigo 282, bis nº 1, o agente poderá fazer uso das

causas de exclusão de ilicitude ou de culpabilidade, conforme o caso

No artigo 282, bis nº 4, a LECrim construiu um elástico conceito de crime

organizado, elaborando, ainda, um amplo rol de delitos em que a infiltração é possível.

Assim, na Espanha é cabível a infiltração nos delitos de seqüestro de pessoas (artigos

164 a 166 do Código Penal Espanhol); delitos relativos à prostituição (artigos 187 a 189);

delitos contra o patrimônio e contra a ordem sócio-econômica (artigos 237, 243, 244, 248

e 301); delitos relativos à propriedade intelectual e industrial (artigos 270 a 277); delitos

contra os direitos dos trabalhadores (artigos 312 e 313).

Por fim, temos o item 5 do artigo 282 bis, que possibilita a não responsabilização

penal do agente infiltrado se preenchidas três condições: necessidade da medida;

proporcionalidade e que a ação do infiltrado não constitua uma provocação do delito.

Percebe-se, portanto, que o legislador espanhol fez várias opções sensatas,

atento às dificuldades do trabalho infiltrado, tendo cunhado um sistema de proteção ao

profissional que implementa a medida, inclusive explicitando que a infiltração não pode

ser imposta ao policial.

Page 20: Infiltração Policial: pensando um modelo

20

3 A INFILTRAÇÃO NO BRASIL

Depois de uma espera de mais de uma década pela inserção da infiltração no

ordenamento brasileiro, ela veio pela Lei nº 10.217/01, que alterou a Lei nº 9034/95, a

chamada Lei do Crime Organizado. Entretanto, o legislador foi por demais econômico,

não abordando nenhum dos temas tratados em outros países, o que transferia para a

doutrina o preenchimento das lacunas.

A Lei Antidrogas de 2006, ao prever a infiltração como meio investigativo dos

delitos ali previstos, perdeu boa chance de corrigir o erro do legislador de 2001.

Entretanto, a Lei nº 11.343/06 incorreu no mesmo silêncio, não dando boa solução ao

assunto.

No último dia 02 de agosto, entretanto, foi promulgada a Lei 12.850/13 que deu à

infiltração um tratamento mais consentâneo com sua importância como ferramenta de

investigação de organizações criminosas, claramente inspirada pelos modelos alemão e

espanhol.

Assim, vamos aos principais aspectos da infiltração, já sob os auspícios da nova

lei.

3.1 A INFILTRAÇÃO DURANTE OS GOVERNOS MILITARES

O regime instaurado em 31 de março de 1964 converteu as polícias em auxiliares

do poder militar, onde desempenharam papel de relevo na busca dos chamados focos de

subversão.

Para tanto, foi criado em 1969 o Destacamento de Operações de Informações –

Centro de Operações de Defesa Interna, o conhecido e temido DOI-CODI, estabelecido

em boa parte dos estados brasileiros.

Cada DOI reunia, sob uma direção unificada a cargo do CODI, militares das três

Armas e integrantes das polícias militares, polícias civis e Polícia Federal.

Nos inúmeros livros escritos sobre o período, muitas são as passagens acerca de

policiais e militares infiltrados, em especial nos movimentos sindicais e estudantis.

Podemos citar o relato feito por José Dirceu, no livro escrito em parceria com Vladimir

Page 21: Infiltração Policial: pensando um modelo

21

Palmeira, acerca da Operação Heloisa, que consistiu no desmascaramento de uma

policial infiltrada no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, em

1969.

Interessante destacar que a policial descoberta não estava devidamente treinada

para o trabalho, uma vez que se denunciou ao manusear com incomum perícia a arma do

próprio Dirceu11.

Ainda nesta linha, em artigo sobre o Colégio Pedro II durante o governo militar, a

professora Lícia Hauer12 menciona o documento DOPS-S, Nº SP/24, de 06/04/66, que

veicula orientação passada às polícias políticas para infiltrar agentes no congresso da

Associação Metropolitana de Estudantes Secundaristas-AMES.

Desnecessário lembrar que a infiltração existente durante o regime militar não

tinha qualquer previsão, limites ou hipóteses estabelecidos em lei ou em qualquer outro

ato normativo de igual estatura. O conteúdo do trabalho era preenchido com exclusividade

pela autoridade de plantão ao seu alvedrio.

Convém ressaltar, porém, que o uso da infiltração em investigações de cunho

político não constitui exclusividade de regimes ditatoriais. Mesmo em países de forte

tradição democrática, temos registros da utilização de agentes infiltrados em trabalhos

que não guardam relação com a produção de provas para elucidação de crimes

comuns13, fim natural da atividade policial.

Corroborando o dito acima, Gary Marx14 relata que no pós-guerra, o FBI

promoveu pesada infiltração no Partido Comunista e em movimentos sociais, atividade

que foi auxiliada pela presença de ex-militares de inteligência nos departamentos

policiais.

11 DIRCEU, Jose; PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a Ditadura. Rio de Janeiro: Ed. Espaço e Tempo.

2003. P. 130 e 131

12 HAUER, Lícia Maciel. O Colégio Pedro II Durante a Ditadura Militar: o Silêncio Como Estratégia

de Subordinação.Disponível em: www.educação.ufrj.br. Acesso em:18 jul. 2013.

13 Usamos o termo “crimes comuns” em oposição a crimes políticos.

14

MARX. 1995. p.12

Page 22: Infiltração Policial: pensando um modelo

22

Apesar do farto uso da infiltração pelo Regime Militar, temos que ações

encobertas são inteiramente compatíveis com regimes democráticos, quando realizadas

sob o necessário controle, seguindo as hipóteses e limites estabelecidos em lei.

3.2 A INFILTRAÇÃO ATUAL

Com o forte incremento do tráfico de drogas ocorrido no início dos anos 80,

concebida como uma atividade criminosa internacional, os países se deram conta que os

meios tradicionais de investigação não eram suficientes para levar a bom termo o

combate àquele tipo de delinquência fortemente organizada e, não raro, com

representantes inseridos nas instituições do Estado.

Nesse cenário, foi concluída em Viena, Áustria, em dezembro de 1988, a

Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, que

entrou em vigor no âmbito internacional em 11 de novembro de 1990, sendo internalizada

no Brasil pelo Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991.

A Convenção de Viena, apesar de não falar explicitamente em infiltração,

menciona em seu artigo 11 a entrega controlada, um dos meios excepcionais de

investigação, e no artigo 3.6 conclama as partes a usarem todos os meios admitidos no

Direito interno para prevenir e reprimir os delitos nela elencados.

Outro ato normativo internacional que merece destaque é a Convenção da

Organização das Nacões Unidas Contra a Corrupção, que entrou em vigor em 2003, ao

estabelecer no artigo 50 a necessidade das nações subscritoras instituírem técnicas

especiais de investigação, internada em nosso ordenamento pelo Decreto nº 5687/06.

Feitas essas ponderações, não podemos deixar de reconhecer na Convenção

Contra o Crime Organizado Transnacional (CCOT), a chamada Convenção de Palermo,

como o mais completo e abrangente ato normativo da comunidade internacional de

combate às organizações criminosas transnacionais.

Page 23: Infiltração Policial: pensando um modelo

23

Conforme lembra Rodrigo Gomes15, a escolha de Palermo não foi ocasional,

constituindo, ao contrário, homenagem aos magistrados Paolo Borsellino e Giovanni

Falcone, dois baluartes da luta italiana contra o crime organizado e que foram mortos

naquela cidade, em atentados à bomba realizados em 1992, sendo incriminados pelos

fatos Salvatore Riina, capo da família Corlonesi, uma das mais antigas e conhecidas

organizações criminosas transnacionais.

Dito isso, vamos ao modelo em boa hora desenhado pela Lei nº 12.850/13.

3.2.1 Pressupostos

O primeiro ponto que deve ser assinalado é que a infiltração policial, agora

detalhada, tem lugar quando os investigadores se deparam com uma organização

criminosa, definida pela nova lei, em seu artigo 1º, parágrafo 1º, como sendo a

associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela

divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou

indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais

cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter

transnacional.

Portanto, o legislador brasileiro, em decisão adequada, enxergou na infiltração

sua verdadeira vocação que é a investigação de organizações criminosas. Aliás, devemos

destacar que a lei recentemente promulgada, ao definir o que é organização criminosa,

supriu também uma grave omissão da legislação anterior que gerava insegurança e

dificuldade para o sistema persecutório penal.

Assim, não caberá infiltração policial quando estivermos diante de uma quadrilha

de três pessoas, nem quando o crime investigado tiver pequeno potencial lesivo.

Acreditamos que a nova lei caminhou bem, uma vez que a infiltração policial é

uma medida investigativa complexa, drástica, invasiva e que, não raro, põe em riscos

direitos fundamentais do investigado, de terceiros e do próprio agente policial, exigindo

15

GOMES, Rodrigo Carneiro. Investigação Criminal na Convenção de Palermo: Instrumento e Limites. Limites Constitucionais da Investigação. CUNHA,Rogério Sanches; TAQUES, Pedro; GOMES, Luiz Flávio (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009.

Page 24: Infiltração Policial: pensando um modelo

24

uma cautelosa preparação da unidade policial, devendo, portanto, ser utilizada em casos

que realmente ponham em cheque os valores mais caros à sociedade.

Do artigo 10, parágrafo 2º (“Será admitida a infiltração se houver indícios de

infração penal de que trata o art.1º e se a prova não puder ser produzida por outros

meios”), da Lei nº 12.850/2013, podemos extrair dois outros pressupostos para a

utilização da infiltração policial:

O primeiro é a existência de indícios da ocorrência de uma infração penal

determinada, imputada a um grupo de pessoas que já tenha alguns de seus membros

identificados, sendo vedada a chamada infiltração exploratória ou de pesquisa. Se o

investigador nada sabe sobre alguns dos possíveis agentes do delito sob investigação,

muito há a ser feito antes de se partir para a medida.

Para deixarmos claro o que entendemos por infiltração de exploração,

imaginemos que um determinado estabelecimento comercial apresente padrões de

crescimento extraordinários e incompatíveis com outras empresas do mesmo setor.

Havendo seguidas notícias dando conta que o bem sucedido estabelecimento sonega

tributos de diversas ordens, inclusive as contribuições previdenciárias; frauda licitações;

trabalha com mercadorias contrabandeadas ou fruto de roubo de carga; atenta contra

direitos trabalhistas ou, ainda, serve apenas para lavagem de capital ilícito. Caso a

autoridade investigante opte por infiltrar um agente no seio da empresa, deverá saber em

relação à quais delitos há algum início de prova e apontar alguns dos possíveis autores,

não podendo o pedido apresentado ao Judiciário estar alicerçado em meras ilações da

autoridade investigante ou denúncias anônimas. Não pode o agente ser infiltrado para

pesquisar se o repentino sucesso da empresa é ou não fruto de uma atuação criminosa.

Para tanto, há outros meios investigativos que poderão ser usados para amadurecer a

apuração a um ponto que permita o uso do agente encoberto.

Atenta a isso, a Unidade de Operações Encobertas e Sensíveis do FBI, no item

IV.B.1.b16 de seu guia para ações encobertas, estabelece que o pedido de infiltração deve

16

(b) The proposed undercover operation appears to be an effective means of obtaining evidence or necessary information. This finding should include a statement of what prior investigation has been

Page 25: Infiltração Policial: pensando um modelo

25

conter um relatório sobre a investigação até então conduzida, bem como as chances da

infiltração obter as provas necessárias para levar o caso à justiça, deixando claro, a um só

tempo, a preocupação com um uso precipitado da infiltração e com a caracterização da

necessidade da medida.

O segundo está contido na parte final do dispositivo legal, podendo ser

denominado de subsidiariedade da infiltração. Trocando em miúdos: o investigador deve

inicialmente lançar mão dos meios ordinários de apuração, guardando a infiltração para

casos em que a prova não possa ser obtida por outros meios.

O outro pressuposto não está expressamente previsto no texto legal, mas é, ao

nosso sentir, indispensável para uma infiltração concebida em um Estado democrático.

Referimo-nos à proporcionalidade da medida, concebida em suas três dimensões:

adequação, necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito.

O constitucionalista carioca Luiz Roberto Barroso17 resume, seguindo autores

alemães, que adequação é a aptidão da medida para atingir o fim colimado. Necessidade

ou exigibilidade implica na inexistência de medida menos gravosa para atingir o fim

eleito. Já a proporcionalidade em sentido estrito impõe um sopesamento entre o ônus

imposto e o benefício trazido, devendo as vantagens superar os prejuízos.

Trazendo esses conceitos para a infiltração, podemos dizer que a medida será

adequada quando a prova que se busca tiver na ação encoberta a forma de alcançá-la.

Será necessária se não houver um meio de prova menos invasivo para se elucidar o fato

investigado ou que os existentes tenham falhado ou se apresentem inúteis. E será

proporcional em sentido estrito se todos os riscos existentes em uma infiltração forem

superados pela importância de se elucidar aquele fato perquirido, não devendo ser o

agente infiltrado usado para descortinar delitos que não reúnam real importância.

Atentemos, por fim, que o artigo 10, caput, da Lei nº 12.850/13, dispõe que a

infiltração requer uma “circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial.”

conducted and what chance the operation has of obtaining evidence or necessary information concerning the alleged criminal conduct or criminal enterprise. Disponível em: www.usdoj.gov.

17 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. São

Paulo:Editora Saraiva, 2003. p.229.

Page 26: Infiltração Policial: pensando um modelo

26

Acreditamos que a expressão utilizada pelo texto legal não implica uma simples

motivação, condição de validade de todas as decisões judiciais. Temos que a intenção do

legislador, diante da gravidade da medida, foi exigir do magistrado, ao apreciar o caso

concreto, o preenchimento pormenorizado do conteúdo da autorização, devendo constar

prazo, periodicidade da prestação de contas, limites de atuação do infiltrado, entre outros

elementos necessários ao controle de medida tão complexa.

Assim, sintetizando, os pressupostos seriam:

- A existência de indícios de uma infração penal determinada e imputada a uma

organização criminosa;

- que a medida seja proporcional nos termos já expostos no decorrer deste tópico;

- que seja observada a subsidiariedade da medida; e

- que haja uma autorização judicial circunstanciada.

3.2.2 Limites do infiltrado

Os limites da atuação de um agente infiltrado constituem, talvez, o mais delicado

ponto deste meio extraordinário de investigação.

Não são poucos os que sustentam que o Estado não pode, a pretexto de

investigar um crime, incorrer também em condutas criminosas, opinião, por exemplo, que

levou a relatora do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 150/06, que dispunha sobre crime

organizado e outras disposições, Senadora Serys Slhessarenko, a refutar de forma

veemente a infiltração policial. Assim se manifestou a Senadora:

A proposta não hesita, ainda, em suprimir o instituto da “infiltração policial” do direito brasileiro (art. 2º, V, da Lei nº 9.034, de 3 demaio de 1995), porque viola o patamar ético-legal do Estado Democrático de Direito, sendo inconcebível que o Estado-Administração, regido que é pelos princípios da legalidade e da moralidade (art. 37, caput, da CF), admita e determine que seus membros (agentes policiais) pratiquem, como co-autores ou partícipes, atos criminosos, sob o pretexto da formação da prova. Se assim fosse, estaríamos admitindo que o próprio Estado colaborasse, por um momento que seja, com a organização criminosa na execução de suas tarefas,o que inclui até mesmo a prática de crimes hediondos. Muito melhor será que o Estado-Administração, localizando uma organização criminosa, ao invés de infiltrar nela seus agentes, debele essa organização, seja de forma imediata ou retardada (através de ação controlada).

Page 27: Infiltração Policial: pensando um modelo

27

As principais legislações estrangeiras não se descuidaram do assunto, e mesmo

sem exaurir as hipóteses de uma eventual incursão do infiltrado em condutas criminosas,

estabelecem standards importantes para abordagem do tema.

O StPO Alemão explicita, em síntese, que o infiltrado não está autorizado a

cometer delitos durante a intervenção. Entretanto, se for obrigado a praticar um crime,

mormente nas chamadas “provas de fidelidade”, poderá lhe ser reconhecido um estado

de necessidade justificante ou exculpante, conforme o caso.

Na Espanha, o artigo 282, bis,1 da Ley de Enjuiciamiento Criminal estabelece o

que o infiltrado pode fazer. Nas hipóteses que extrapolem a previsão legal, analisado o

caso concreto, poderá o infiltrado ser favorecido por uma causa de exclusão de ilicitude

ou de culpabilidade.

Já na Argentina, o agente infiltrado estará isento de responsabilidade quando for

impelido a cometer um delito em conseqüência de sua intervenção encoberta, desde que

sua conduta não implique em grave sofrimento, perigo de vida ou risco à incolumidade

física ou moral de terceiros.

No Brasil, a lei nº 12.850/13 assim disciplinou o assunto em seu artigo 10,

parágrafo único:

Art. 10. O agente que não guardar, em sua atuação, a devida proporcionalidade com a finalidade da investigação, responderá pelos excessos praticados.

Parágrafo único. Não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa.

O primeiro alerta a ser feito é que o infiltrado não tem um salvo conduto para

delinqüir enquanto estiver no interior do grupo criminoso. Como conseqüência, deve o AI,

sempre que possível, manter uma postura mais contemplativa do que ativa.

Evidente, ainda, que não pode o AI induzir os membros da organização

investigada a agir, fazendo brotar neles o animus de delinqüir, podendo aderir, porém, à

vontade manifestada pelos investigados de forma a preservar sua falsa identidade. Na

Page 28: Infiltração Policial: pensando um modelo

28

feliz expressão de Manuel Valente, a atividade do infiltrado não pode ser formativa do

crime, mas apenas informativa18.

Nesse sentido, o Guia de Operações Encobertas do FBI, ao tratar da preparação

do agente infiltrado explicita que o policial deve ser instruído sobre o propósito da ação

encoberta e que não deverá participar de nenhum ato de violência; iniciar ou instigar

qualquer plano para cometer atos criminosos; usar ilegais técnicas de investigação para

obter informação ou evidência ou se engajar em qualquer conduta que possa violar

restrições constantes no guia da polícia federal americana ou de outro departamento de

polícia. O Guia, ainda, expressa que no caso do FBI ter conhecimento que pessoas

investigadas pretendam praticar um crime violento, qualquer agente encoberto que tenha

conexão com a investigação será instruído a tentar desencorajar a violência19.

Mas e se o agente infiltrado se vê compelido a praticar uma conduta típica? A

solução trata pelo texto legal reside na proporcionalidade que deve revestir a conduta do

policial. A pergunta a ser feita é se a prova a ser obtida e o conseqüente desbaratamento

daquele grupo criminoso justifica que um agente do estado incorra, eventualmente, em

uma conduta descrita como crime20.

Assim, não é aceitável que para elucidar um crime, o agente do estado incorra em

crime ainda mais grave. É tolerável que para se desmantelar uma organização criminosa

dedicada ao contrabando, o agente encoberto participe de uma ação de contrabando.

Não é admissível, porém, que o infiltrado participe da eliminação de um concorrente do

bando.

18

VALENTE. Op.cit. p.510 19

2) Each undercover employee shall be instructed that he or she shall not participate in any act of violence; initiate or instigate any plan to commit criminal acts; use unlawful investigative techniques to obtain information or evidence; or engage in any conduct that would violate restrictions on investigative techniques or FBI conduct contained in the Attorney General's Guidelines or departmental policy; and that, except in an emergency situation as set out in paragraph IV.H.(5)(d), he or she shall not participate in any illegal activity for which authorization has not been obtained under these Guidelines. The undercover employee shall be instructed in the law of entrapment. When an undercover employee learns that persons under investigation intend to commit a violent crime, he or she shal1 try to discourage the violence.

20 Não usamos a expressão “conduta criminosa”, uma vez que o caso concreto tem que ser

analisado para que saibamos se estão presentes os outros elementos, que ao lado da descrição típica, formam o conceito analítico de crime: antijuridicidade e culpabilidade.

Page 29: Infiltração Policial: pensando um modelo

29

O policial deverá aferir se a ação proposta era previsível dentro do cenário de

infiltração apresentado à justiça. Desta forma, aproveitando o exemplo já dado, se a

infiltração se deu dentro de uma organização de contrabandistas, era esperável que em

algum momento o policial encoberto teria que contrabandear. Entretanto, em hipótese

nenhuma estará autorizado a participar da execução de um desafeto do grupo. E o que

fazer se esta situação se apresenta? Temos que é caso de encerramento imediato da

infiltração, devendo a equipe de investigação tomar as medidas necessárias a que a

execução não ocorra. Não será excusável que os investigadores coloquem um eventual

êxito na obtenção da prova à frente de valores tão caros como a vida ou a incolumidade

física.

Por outro lado, se a situação ocorre sem que o policial nada possa fazer,

comprovada a impossibilidade de evitar o resultado, o infiltrado poderá se socorrer do

parágrafo único do artigo 13, ficando excluída a culpabilidade do agente por inexigilidade

de conduta diversa.

Convém ficar assentado, de qualquer sorte, que sempre que houver a

necessidade do infiltrado incorrer em conduta descrita em lei como crime, deve o juiz ser

comunicado de imediato, não podendo o fato ser tratado como um incidente corriqueiro a

ser informado no relatório ordinário. Não é. Constitui incidente importante e que, embora

previsível, deve contar com o imediato controle judicial.

Ressaltamos aqui o papel fundamental que o juiz desempenha na aferição da

razoabilidade da medida requerida. Desta forma, temos como irrazoável a infiltração em

uma organização de matadores de aluguel, posto que a forte possibilidade do policial vir

a ter que matar inviabiliza a ação encoberta. Neste caso, apreciadas suas

especificidades, deve o juiz negar a autorização. A solução de um delito, por mais grave

que seja, não pode estar alicerçada na lógica maquiavélica dos fins justificando os

meios.

Outro limite importante advém do alcance da autorização da infiltração. Ao

permitir a ação encoberta, o Estado concorda com o uso do engodo e do abuso de

confiança como instrumentos de investigação. Não obstante, isso não implica na

abolição dos princípios que regem a busca das provas no processo.

Page 30: Infiltração Policial: pensando um modelo

30

Pelo exposto, sempre que o agente infiltrado precisar ferir um direito do

investigado que não se situe dentro do espectro lógico da decisão judicial que concedeu

a medida, uma nova ordem judicial deverá ser requerida. Nesse sentido, será lícita a

entrada do AI na casa do investigado para participar de uma reunião onde serão

tratados assuntos pertinentes à atuação da organização criminosa. Não será permitido,

porém, que se aproveite do ingresso na casa alheia para recolher documentos ou

implantar dispositivo de escuta ambiental. Para tanto, uma nova ordem judicial será

necessária.

Desta forma, com o fim de preservar a licitude da prova recolhida, entendemos

de todo conveniente que a coordenação da investigação, sempre que haja dúvidas

sobre a lisura da medida, requeira uma autorização judicial específica para a ação que

se deseja.

Do dito acima, vemos que o agente infiltrado precisa reunir uma série de

qualidades pessoais que lhe permitam, em situações de forte estresse, realizar opções e

tomar decisões que se revistam de legalidade e, portanto, justificáveis quando

apresentados à justiça.

Em resumo, então, podemos apontar como limites da atuação do infiltrado:

-O infiltrado não deve incorrer em condutas típicas;

-Se não for possível evitar, o delito perpetrado deverá ser proporcional ao

objetivo da infiltração, não devendo atentar contra bem jurídico mais valioso que aquele

lesionado pela atuação da organização investigada; e

-A infiltração não pode ensejar lesões a direitos fundamentais que não sejam

uma decorrência lógica da ação encoberta.

3.2.4 Valor probante da infiltração

O farto uso da infiltração policial durante a ditadura militar angariou a antipatia

de muitos para esse meio investigativo, que detectam nele características que o

incompatibilizam com um processo penal democrático.

Page 31: Infiltração Policial: pensando um modelo

31

Não vemos assim. É inegável que o agente infiltrado, ao se tornar íntimo dos

investigados, pode tomar conhecimento de fatos próprios de suas vidas privadas e que

não guardem qualquer relação com as condutas perquiridas. Entretanto, temos como

induvidoso que a ação encoberta constitui instrumento fundamental no combate à

criminalidade organizada, fenômeno que tem preocupado fortemente à comunidade

internacional e se tornado, esta sim, uma crescente ameaça aos avanços democráticos

dos estados modernos.

Essa é também a posição do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que

aceita a infiltração se preenchidos alguns requisitos, bem como da ONU, que reconhece

a validade do instrumento e o aborda especificamente em seu Manual de Diretrizes

contra a Corrupção para Promotores e Investigadores 21.

Dito isso, temos que a importância da infiltração como meio de prova requer dois

enfoques: o primeiro é o recolhimento de provas pela equipe de investigação com base

em informações passadas pelo infiltrado. O AI pode, por exemplo, apontar o local onde

se encontram determinados documentos; informar hora e local de um encontro entre

investigados para uma eventual filmagem ou apontar o melhor local para a colocação de

um dispositivo para escuta ambiental. Enfim, o infiltrado pode aumentar a efetividade da

investigação, dirigindo os atos a serem praticados pelo restante da equipe.

O outro aspecto é o testemunho do próprio infiltrado sobre tudo que presenciou

durante o período em que esteve convivendo no seio da organização criminosa. E aqui

temos também duas questões a apreciar: a credibilidade do testemunho do policial e os

riscos advindos da exposição do infiltrado ao depor em juízo.

Muitos sustentam que o policial, por estar umbilicalmente ligado ao caso levado

à Justiça, não teria o necessário distanciamento para depor. Não vemos motivos para

que seja conferido ao depoimento do policial um valor diferente daquele observado às

outras testemunhas. A vítima também tem uma ligação emocional com o fato e, não

raro, tem seu depoimento colhido na Justiça. A prova testemunhal, em razão das

21

United Nations Handbook on Practical Anti-Corruption Measures for Prosecutors and Investigators. Disponível em: www.unodc.org. Acesso em: 10 jul.2013.

Page 32: Infiltração Policial: pensando um modelo

32

conhecidas fraquezas humanas, deve sempre, seja quem for o depoente, ser

devidamente confrontada com os demais elementos constantes dos autos.

Quanto à exposição do infiltrado ao depor em juízo, a novel Lei nº 12.850/13 dá,

mais uma vez, demonstração de estar atenta às dificuldades do trabalho de infiltração

ao elencar entre os direitos do agente infiltrado a preservação do seu nome,

qualificação, sua imagem, sua voz e demais informações pessoais, mesmo durante o

processo criminal22.

3.2.5 Quem pode infiltrar

A infiltração é um meio extraordinário de obtenção de provas acerca de um fato

criminoso e em nosso atual panorama constitucional, como sabemos, incumbe às

polícias judiciárias a investigação de delitos. Portanto, entendemos que apenas os

policiais que exerçam função de policia judiciária podem implementar uma ação

encoberta.

A Lei nº 11.343/06 seguiu essa linha ao estabelecer em seu artigo 53, inciso I,

de forma clara, que o infiltrado deve ser um policial em tarefa de investigação, atribuição

própria das polícias judiciárias23, não abrindo margem para atuação de particulares,

servidores públicos não policiais ou policiais sem função investigativa.

A nova Lei nº 12.850/13 também foi taxativa ao estabelecer em seu artigo 10,

caput, que a infiltração se dará por agentes de polícia em tarefas de investigação.

Alguns argumentam que há situações em que apenas um agente privado reúne

condições de êxito na infiltração. Cita-se o exemplo do criminoso arrependido que se

coloca à disposição da autoridade investigante para voltar à organização e atuar sob a

coordenação da polícia em troca de benefícios penais. Foi a opção, por exemplo, do

22 Art.14,III, da Lei nº 12.850/13.

23 Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei,

são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os

seguintes procedimentos investigatórios: I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos

especializados pertinentes;

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33

legislador português, que no artigo 1º,2, da Lei nº 101/01, autoriza que a infiltração seja

realizada tanto por funcionários de investigação criminal quanto por terceiros atuando

sob o controle da Polícia Judiciária.

O argumento acima não nos convence. A infiltração é um instrumento

investigativo bastante sensível, que em razão dos riscos que encerra exige forte

comprometimento do infiltrado com o serviço, inclusive obediência aos limites legais e

éticos da medida, não podendo ser confiada a um particular. Se não há um policial em

condições de realizar a ação encoberta não é caso de se recorrer a alguém de fora do

aparelho público, mas de simplesmente descartar a medida.

No caso do Inquérito Policial Militar levado a efeito pelas Forças Armadas,

entendemos que os militares que atuam na investigação, ao fazerem às vezes de polícia

judiciária, estão autorizados a lançarem mão da ação encoberta.

Por seu turno, a Lei nº 9034/95, agora expressamente revogada pela Lei nº

12.850/13, trilhava caminho diverso e estabelecia que a infiltração poderia ser realizada

tanto por agentes de polícia, quando por agentes de inteligência.

A opção da Lei de Crime Organizado implicava algumas dificuldades. A primeira

era saber a que agente de inteligência a lei se referia. Seria apenas os servidores da

Agência Brasileira de Inteligência ou estariam alcançados aqueles que trabalham em

outras células de inteligência? Como sabemos, está se tornando cada vez mais comum

a criação de setores de inteligência em órgãos não policiais. O Sistema Brasileiro de

Inteligência-SISBIN tem em sua composição, desenhada pelo Decreto 4376/0224,

órgãos bastante heterogêneos, como Ministério da Saúde e Controladoria Geral da

União. Os homens destes órgãos estariam autorizados a infiltrar? A resposta negativa

se impõe. A infiltração, voltamos a ressaltar, é uma técnica de investigação de crimes e

apuração de delitos é incumbência concedida pela Constituição da República às polícias

judiciárias (Polícia Federal e polícias civis), excetuadas apenas as investigações de

crimes militares.

24

BRASIL, Decreto nº 4376/02. Disponível em:www.presidência.gov.br.Acesso em: 14 jun.2013.

Page 34: Infiltração Policial: pensando um modelo

34

O mesmo argumento do parágrafo acima nos leva a concluir, por coerência, que

nem os agentes da ABIN reúnem atribuição para investigar crimes e, por conseguinte,

também não podem infiltrar.

Esta parece ser também a posição de Pacheco25, que classifica de duvidosa a

constitucionalidade da permissão fornecida pela Lei nº 10.217/01 ao uso de agentes de

inteligência em infiltrações.

Entendemos que, conceitualmente, a infiltração pode ser usada como meio de

investigação de fatos não criminosos. Neste caso, entretanto, a medida deveria estar

prevista em lei própria, provavelmente aquela que versa sobre o Sistema Brasileiro de

Inteligência-SISBIN. O estabelecimento da infiltração de agentes de inteligência em

investigação de crimes não se situa dentro dos limites constitucionais, devendo o

magistrado, em controle difuso de constitucionalidade, refutar o pedido apresentado

nesses termos.

Questão pouco abordada é a possibilidade de um agente policial estrangeiro

realizar infiltração em solo brasileiro. As facilidades que o mundo moderno oferece às

organizações criminosas para transpor suas fronteiras têm preocupado fortemente a

comunidade internacional e ensejou importantes tratados como as Convenções de

Viena e Palermo, onde os países subscritores são instados a promover a maior

integração possível na busca de uma repressão eficaz ao crime transnacional.

Desta forma, entendemos possível, em tese, que um policial estrangeiro realize

uma ação encoberta em território brasileiro, desde que autorizada pela Justiça Brasileira

e com a coordenação da Polícia Federal Brasileira. Essa cooperação entre autoridades

de países distintos está expressamente assentada na Convenção de Palermo, que em

seu artigo 19, prevê investigações conjuntas entre os Estados que a subscrevem,

precedidas de acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais26.

25

PACHECO, Op. cit. p. 168 26 Os Estados Partes considerarão a possibilidade de celebrar acordos ou protocolos bilaterais

ou multilaterais em virtude dos quais, com respeito a matérias que sejam objeto de investigação, processos ou ações judiciais em um ou mais Estados, as autoridades competentes possam estabelecer órgãos mistos de investigação. Na ausência de tais acordos ou protocolos, poderá ser decidida

Page 35: Infiltração Policial: pensando um modelo

35

Entretanto, apesar da Convenção de Palermo estabelecer que mesmo na

ausência de um protocolo ou acordo poderá haver, casuisticamente, uma investigação

conjunta, temos que a assinatura de um acordo entre o Brasil e o país interessado é

indispensável, como forma de submeter os investigadores aos limites estabelecidos na

lei brasileira e circunstanciados na decisão judicial que autorizar a medida.

Em resumo, podemos dizer que a infiltração no Brasil constitui atribuição apenas

dos policiais que trabalham com a investigação de crimes, não sendo possível a

infiltração realizada por particulares, policiais com atribuições outras e servidores

públicos não policiais, incluídos aí os agentes de inteligência.

3.2.6 Duração

Desnecessário mencionar que este era mais um ponto onde prevalecia o vácuo

legislativo, agora suprido pela Lei nº 12.850/13, que de forma clara, em seu artigo 10,

parágrafo 5º, estabelece que a infiltração será autorizada por seis meses, podendo

haver renovações, em caso de comprovada necessidade.

Assim, diante da clareza do texto legal, cai por terra toda discussão que havia

sobre o período que poderia ser autorizado pela Justiça para a medida.

A nova lei não estabeleceu limite para o número de renovações. Portanto, ao

menos em tese, a infiltração poderá permanecer por tempo indeterminado. O elemento

balizador é a persistência da necessidade da medida que deverá estar materializada no

relatório a ser apresentado à Justiça.

O FBI, em seu já citado Guia, deu um tratamento um pouco diferente,

estipulando um período de seis meses para a infiltração, renovável por mais seis meses,

totalizando um ano como período máximo de duração da medida27.

casuisticamente a realização de investigações conjuntas. Os Estados Partes envolvidos agirão de modo a que a soberania do Estado Parte em cujo território decorra a investigação seja plenamente respeitada.

27 (2) Undercover operations may be authorized pursuant to this subsection for up to six months

and continued upon renewal for an additional six-month period, for a total of no more than one year. Undercover operations initiated pursuant to this subsection may not involve the expenditure of more than $40,000 ($100,000 in drug cases of which a maximum of $40,000 is for operational expenses), or such other amount that is set from time to time by the Director, without approval from FBI Headquarters (FBIHQ).

Page 36: Infiltração Policial: pensando um modelo

36

Embora não entendamos conveniente fixar em um ano o prazo máximo de sua

duração, acreditamos que apenas em casos excepcionais a infiltração perdurará por

mais tempo em razão de toda estrutura movimentada para a implementação da ação

encoberta.

Ressalte-se, ainda, que a prestação de contas da equipe de investigação à

Justiça e ao Ministério Público não está adstrita a um eventual pedido de renovação,

podendo ser feita a qualquer tempo.

Page 37: Infiltração Policial: pensando um modelo

37

4. A INFILTRAÇÃO NA POLÍCIA FEDERAL

A infiltração de policiais em estruturas da sociedade civil foi usada fartamente

nos períodos em que nosso país se manteve distante dos ditames democráticos. Com

fortes cores palacianas, a Polícia Federal se incumbiu de investigar entidades sindicais,

grêmios escolares, partidos políticos e até mesmo colônias de pescadores, como já

ouvimos em conversas com colegas com mais de 30 anos de carreira.

As ações encobertas praticadas naqueles anos não constituem objeto deste

trabalho. A infiltração policial, como técnica excepcional de investigação de crimes,

requer um ambiente institucional sólido que possibilite o controle e, se for o caso, a

responsabilização daqueles que incorram em abusos.

O retorno do Brasil à democracia coincidiu com o incremento dos crimes

transnacionais, o fortalecimento da criminalidade organizada e a preocupação dos

países com esse novo perfil do crime e dos criminosos, apontando para a necessidade

do uso de mecanismos menos ortodoxos de investigação.

A partir daqui, depois de vermos como a infiltração é tratada em alguns países e

os seus contornos legais no Brasil, agora com uma legislação que atentou para a

complexidade de meios investigativos mais sofisticados, trataremos da infiltração na

Polícia Federal.

4.1 A INFILTRAÇÃO INFORMAL

Com a redemocratização do Brasil e, fundamentalmente, com o advento da

Constituição de 1988, a infiltração nos moldes das realizadas durante o regime militar se

tornou inconcebível, sendo ilícitas as provas assim obtidas.

Em razão da demora do legislador, a Lei nº 10.217/01 encontrou uma Polícia

Federal desacostumada a submeter a infiltração, nas poucas vezes em que utilizada, ao

controle do Judiciário, mesmo nos anos que se seguiram a 2001, dando ensejo ao que

chamamos de infiltração informal.

Nesse panorama, interessante caso teve lugar no Rio de Janeiro, em 2003. A

Empresa de Correios e Telégrafos comunicou à Polícia Federal constantes furtos de

Page 38: Infiltração Policial: pensando um modelo

38

valores em dinheiro encaminhados em cartas, inclusive do exterior. Apesar de irregular,

o envio de dinheiro em cartas era comum e movimentava valores expressivos.

Com o auxílio dos Correios, três policiais federais passaram a trabalhar no

Terminal de Cargas (TECA) do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, onde era

centralizada a operação de separação, triagem e direcionamento das correspondências

para os endereços de destino.

Em menos de um mês trabalhando como se efetivamente fossem novos

funcionários contratados pela empresa, os policiais conseguiram identificar todos os

empregados que retiravam as cartas com dinheiro e a forma como atuavam.

Seguindo a orientação dos policiais travestidos de carteiros, que constataram

que os implicados saiam do TECA com as cartas com dinheiro em seu poder, foi

realizado o flagrante dos investigados, em um total de 12 pessoas, sendo 10 carteiros, 1

gerente e 1 vigilante .

Percebemos, pois, que no trabalho acima descrito estavam presentes todas as

características de uma infiltração e haveria a necessidade de autorização judicial para o

caso. Para formalização do auto de prisão, ante a impossibilidade dos “infiltrados”

aparecerem, foi usado o velho artifício de imputar a descoberta a uma denúncia

anônima.

Podemos imaginar uma série de complicações que poderiam ter surgido e que a

autorização judicial ajudaria a resolver. Lembramos, com Damásio e Bechara, que seja

qual for o entendimento quanto à natureza jurídica da isenção de responsabilidade penal

do agente infiltrado, ela não dispensa a autorização judicial28. Para angariar a confiança

dos investigados, poderiam os agentes aderir à prática delitiva? E se os investigados,

podemos elocubrar, resolvessem intimidar um supervisor que houvesse descoberto o

esquema, qual seria o comportamento dos infiltrados?

Os riscos para a autoridade investigante são claros e não justificam eventuais

ganhos de tempo e agilidade existentes na medida informal. Ademais, devemos

28

JESUS,Damasio E.de;BECHARA, Fábio Ramazzini. Agente Infiltrado: reflexos penais e processuais. Disponível em: http://jus2.uol.com.br. Acesso em: 10 jun.2013.

Page 39: Infiltração Policial: pensando um modelo

39

ressaltar que o depoimento do infiltrado é de grande importância, uma vez que

conheceu a organização criminosa por dentro, testemunho que não poderá ser prestado

nos casos da infiltração realizada à margem do controle judicial.

Temos, portanto, que a infiltração deve sempre ser realizada com autorização

do judiciário a quem cabe controlar a presença dos pressupostos da medida, devendo

situações como a narrada acima ser evitadas sob pena de invalidação das provas

obtidas e a consequente impunidade dos implicados.

4.2 A ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA E A INFILTRAÇÃO

A Academia Nacional de Polícia é a responsável pela formação e

aperfeiçoamento dos policiais federais, sendo tida e havida como a principal escola de

instrução policial do país, ministrando, inclusive, cursos para policiais do exterior.

No que concerne ao trato da infiltração policial temos, entretanto, muito a

avançar. Em consulta que fizemos à biblioteca da Academia da Policia Federal, fomos

informados que não havia nenhum livro sobre o assunto. É claro que nos livros que

versam sobre crime organizado ou tráfico de drogas certamente haveria comentários

sobre ações encobertas. Entretanto, não havia livros que tratassem da matéria sobre

seu enfoque puramente policial.

Para termos uma ideia do quanto pode ser ampla a abordagem da infiltração em

seu aspecto policial, a biblioteca do FBI possui mais de 15 obras sobre o tema, onde

são abordados assuntos como a administração do estresse do agente infiltrado; a

segurança do policial encoberto; a seleção e treinamento dos policiais infiltrados; além

de livros que relatam a experiência de policiais que realizaram infiltração.29

A infiltração é tratada rapidamente nos cursos de formação de agentes de

Polícia Federal, dentro da disciplina Investigação Policial. Com uma carga de 4 horas, a

disciplina tem por objetivo instrucional permitir que o aluno conceitue infiltração e

descreva os aspectos legais da infiltração.

29

O acervo da biblioteca do FBI sobre ações encobertas pode ser consultado no sítio www.fbilibrary.fbiacademy.edu.

Page 40: Infiltração Policial: pensando um modelo

40

A pequena carga horária destinada à infiltração na formação do policial não nos

preocupa tanto, uma vez que tal medida, em razão de sua complexidade, deve ser

manejada por policiais com uma certa experiência, não sendo os cursos de formação

profissional o momento propício para o aprofundamento do assunto. Portanto,

entendemos mais apropriada a existência de cursos específicos de infiltração voltados a

policiais já experimentados.

A Academia Nacional de Polícia ainda trata a infiltração com parcimônia.

Acreditamos que a abordagem da ação encoberta no curso de formação dos novos

policiais não é a prioridade. Entretanto, temos como importante a realização de cursos

de especialização como forma de aprofundar o conhecimento dos policiais no manejo

dessa ferramenta de investigação e, também, formar um banco detalhado de

profissionais que reúnam características que lhes habilitem para a tarefa.

E o que seria tratado em um eventual curso de infiltração? Acreditamos que por

se tratar de uma forma de produção de prova para uso em juízo, a abordagem de

aspectos jurídicos é inafastável. Entretanto, há muitas questões policiais a serem

cuidadas em um curso sobre o assunto. Poderíamos abordar temas como mecanismos

de introdução em um ambiente criminoso; os diferentes tipos de organizações

criminosas; a administração do estresse; métodos de proteção do agente encoberto; a

relação equipe de investigação-infiltrado; os limites da infiltração; a preparação da saída

do policial infiltrado; a vida pós-infiltração, sendo, ainda, de todo recomendável um

estudo de caso.

Com o advento da nova lei que confere maior segurança jurídica aos policiais,

esperamos que sejam convocados novos cursos acerca dos instrumentos de

investigação mais complexos.

4.3 VISITANDO ALGUMAS INFILTRAÇÕES

Veremos agora três trabalhos de infiltração realizados pela Polícia Federal para

que tenhamos uma visão de como manejamos este instrumento, sendo ocultados os

nomes dos policiais que atuaram nas investigações.

Page 41: Infiltração Policial: pensando um modelo

41

Convém ressaltar que os casos aqui abordados ocorreram em 2006 e 2007, já

tendo sido levados à Justiça, o que nos deixa em uma situação mais confortável para

abordá-los neste trabalho.

No caso A, as informações foram obtidas diretamente com o infiltrado e com a

autoridade policial que coordenou a investigação. No caso B, apenas o Delegado se

manifestou, uma vez que o infiltrado preferiu não depor. Já no caso C apenas o infiltrado

foi ouvido, uma vez que a autoridade policial que coordenou o trabalho se encontra

afastada de suas funções.

Ao final de cada relato, faremos algumas observações e comentários. Qualquer

dos trabalhos que trataremos abaixo poderia servir para um estudo de caso em um

eventual curso desenvolvido pela ANP sobre infiltração policial.

4.3.1 Caso A

Em 2007, a direção do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), que à

época administrava o Parque Nacional da Floresta da Tijuca-PARNATIJUCA, noticiou à

Polícia Federal o desvio de valores relativos à cobrança de ingressos dos turistas que

subiam ao Cristo Redentor, um dos principais pontos turísticos do país.

Sabendo que o esquema contava com a participação dos bilheteiros do parque,

pessoal terceirizado, a Delegacia do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia

Federal no Rio de Janeiro decidiu, com a colaboração do Ibama, infiltrar um agente nas

bilheterias do PARNATIJUCA, travestido de funcionário da autarquia ambiental.

O agente escolhido era um policial com menos de 3 meses de carreira, formado

em Biologia e perfil extrovertido, características decisivas para que a escolha recaísse

sobre ele.

O Ibama forneceu ao agente identidade funcional com nome falso, uniforme e

viatura do instituto e o instruiu com informações sobre o órgão, como o concurso em que

o infiltrado teria sido aprovado; lotação inicial em Brasília; atividades da autarquia

ambiental, além de nomes de pessoas de destaque no órgão ambiental.

Page 42: Infiltração Policial: pensando um modelo

42

Ao chegar ao parque, local sob administração do Ibama mas onde só havia

empregados terceirizados, o agente infiltrado foi recebido naturalmente como alguém

que estava ali para controlar e fiscalizar eventuais desvios, sendo visto com evidente

desconfiança.

Percebendo a situação, o AI logo tentou assumir um papel de servidor público

omisso, que não estava ali para “atrapalhar a vida de ninguém”. Com frequentes

brincadeiras, o policial logo angariou a confiança dos bilheteiros. Como sabiam que

cada dia sem colocar o esquema em funcionamento representava um grande prejuízo

para os envolvidos, um dos vigilantes que integrava o esquema procurou o infiltrado e

perguntou com todas as letras: “você está aqui pra atrapalhar alguém?” O AI respondeu

que ficaria ali por pouco tempo e que não queria criar problemas. Diante da convincente

resposta do policial travestido de servidor do Ibama, o vigilante abriu o esquema,

informando que apenas 10% dos veículos que subiam para visitar o Cristo eram

“bilhetados”, criando um caixa 2 que era dividido entre os bilheteiros, os vigilantes e os

policiais militares que trabalhavam no parque.

Convencido que o novo funcionário não estava ligando para o desvio de

conduta, os bilheteiros escancararam suas práticas criminosas e descortinaram todo

esquema às vistas do infiltrado, envolvendo taxistas e donos de vans, policiais militares

que trabalhavam no lugar e até uma empresa que promovia city tours a bordo de jeeps.

Como forma de sedimentar o pacto de silêncio, o vigilante, que parecia liderar o

esquema, dava ao policial R$ 50,00 ao final do dia, dinheiro que era depositado em juízo

pela coordenação da investigação.

O policial que realizou a infiltração nos disse que se ele não tivesse se

informado sobre o IBAMA, teria sido descoberto logo no início, uma vez que foram feitas

várias perguntas como o concurso em que ele havia passado e o nome do

superintendente no Distrito Federal. Disse também que em nenhum momento se sentiu

ameaçado ou em risco e que desenvolveu uma certa afinidade com as pessoas

envolvidas.

Page 43: Infiltração Policial: pensando um modelo

43

Ainda segundo o infiltrado, encerrada a ação encoberta, veio o momento mais

constrangedor que foi o depoimento em juízo, quando ficou de frente com os seus ex-

colegas de trabalho a quem ajudou a prender.

A autoridade policial que coordenou o trabalho informou que em boa parte do

tempo era mantida uma equipe próxima ao agente infiltrado, que possuía, ainda, um

celular para ser acionado apenas em caso de ameaça e que a ação encoberta foi

decisiva para o sucesso da operação que culminou com a prisão e denúncia de 23

pessoas.

Observamos que este é um trabalho de infiltração típico, onde temos um policial

que assume uma falsa identidade para se integrar a um esquema criminoso, inclusive

recebendo parte do dinheiro ilicitamente auferido, tendo acesso a informações

inacessíveis por outros meios, conhecendo cada um dos implicados, orientando os

passos da investigação e realizando gravações de áudio e vídeo.

A preparação do agente, apesar de superficial, o ajudou a superar alguns testes

a que os investigados o submeteram e também houve critério na escolha do agente que

realizaria o trabalho (biólogo, o que faz sentido em órgão ambiental, e extrovertido),

tendo o policial aceito a incumbência espontaneamente, sendo, porém, pouco

recomendável a escolha de policial tão inexperiente.

Um problema apontado pelo policial eram suas constantes idas à

Superintendência, circunstância que deve ser evitada a todo custo.

Também merece destaque o cuidado da coordenação com a segurança do

infiltrado, sendo colocada uma equipe em condição de socorrê-lo com agilidade.

4.3.2 Caso B

Em uma unidade descentralizada da Polícia Federal havia notícias de corrupção

de policiais, inclusive com a participação do chefe da Delegacia. No inquérito que já

contava com mais de um ano, não havia nada que elucidasse os fatos. A inocuidade das

medidas até então tomadas levaram a coordenação a lançar mão do recurso da

infiltração, para tanto sendo chamado um policial de outro estado.

Page 44: Infiltração Policial: pensando um modelo

44

Segundo o Delegado que coordenou o trabalho, o policial escolhido tinha

razoável experiência e era tido como falastrão e espirituoso, características que, em sua

ótica, facilitariam a ambientação na delegacia investigada. Ao tomar conhecimento da

índole do serviço a ser realizado, o policial resistiu inicialmente mas findou por

concordar.

A decisão judicial que autorizou a medida permitia que o infiltrado

eventualmente delinqüisse, vedados os crimes violentos, devendo, entretanto,

comunicar imediatamente ao juízo.

Durante a infiltração, que durou 3 meses, foram observadas mudanças no

comportamento do policial infiltrado, que foi ficando cada vez mais irritadiço e

manifestava com freqüência a vontade que o trabalho chegasse ao fim.

A medida era renovada a cada 15 dias e segundo a autoridade policial, o Juiz e

o Ministério Público Federal apreciavam os pedidos de renovação com celeridade, não

tendo havido lapsos de continuidade.

O trabalho do infiltrado foi exitoso, tendo sido obtidas provas sobre o esquema

existente na unidade, inclusive sobre alguns fatos que não eram conhecidos até então e

que foram presenciados pelo infiltrado, culminando com a prisão de 34 pessoas,

incluindo o chefe da Delegacia.

O trabalho aqui tratado tem algumas peculiaridades. A primeira é que o

ambiente criminoso é uma delegacia de polícia, o que torna a infiltração ainda mais

sensível, em razão do desconforto que naturalmente surge para o infiltrado, razão pela

qual a convocação de um profissional lotado em outro estado é fundamental. A segunda

é o fato dos investigados saberem o nome e a condição de policial do AI, circunstância

que era inevitável no caso, mas que pode despertar no infiltrado receios relativos à sua

vida pós-infiltração, tendo os policiais sob apuração ligado para a lotação original do

Agente para recolher informações sobre ele.

É de se supor que a infiltração em um ambiente policial se torne ainda mais

complexa, em razão das habilidades que os policiais acabam por desenvolver ao longo

da vida profissional, circunstância que exige do infiltrado atenção e perspicácia ainda

Page 45: Infiltração Policial: pensando um modelo

45

maiores. Ademais é mais fácil desenvolver laços de afinidade com quem já tem um traço

comum forte como é o caso da atuação profissional.

Pelo visto, constata-se que embora o uso de falsa identidade integre o conceito

de infiltração, excepcionalmente podemos ter um infiltrado atuando com o seu nome e

condição verdadeiros.

4.3.3 Caso C

Em 2007, dois policiais federais, sendo uma mulher, sobem a bordo de um

opulento iate pertencente ao contador do megamilionário russo Roman Abramovich,

proprietário do Chelsea, clube da primeira divisão inglesa de futebol e acusado pela

Interpol de integrar a máfia russa, com o fim de realizar os procedimentos relativos à

imigração.

Atraído pela beleza da policial, o comandante alemão do barco convidou a

ambos para integrar a equipe de vigilância enquanto a embarcação permanecesse no

Brasil, acrescentando que já havia contado com a participação de policiais federais e

policiais rodoviários federais na proteção ao iate.

Um dos policiais havia participado da Operação Perestroika que apurou a

suposta participação da máfia russa no aporte de dinheiro no Corinthians ocorrido em

2005, o que o levou a ligar para o coordenador da citada investigação. Ao ser

contactado, o Delegado viu no convite a possibilidade de infiltração e dias depois os dois

policiais subiam a bordo acobertados por uma decisão judicial que autorizava a medida.

A orientação dos infiltrados era registrar a presença no iate de pessoas ligadas

à MSI, empresa que investia no Corinhthians, como Kia Joorobchian e Boris Berezovski,

magnata russo proibido de entrar no Brasil e tido como o verdadeiro proprietário da MSI.

Ainda nos primeiros dias, a policial precisou deixar a missão, ficando o outro

policial sozinho. A embarcação estava ancorada em Parati quando no heliporto desceu

um helicóptero para pegar a família do proprietário do iate. Quando conversavam com o

piloto, o comandante do barco repreendeu severamente o piloto em alemão,

interrompendo a conversa aos gritos e deixando o infiltrado intrigado.

Page 46: Infiltração Policial: pensando um modelo

46

No dia seguinte, o barco retoma viagem com destino a Santos, jornada que

demoraria apenas uma noite. Ao acordar de manhã, entretanto, o AI percebeu que o

barco ainda se encontrava em alto mar, o que o deixou bastante preocupado, uma vez

que corria boatos que aquela tripulação já havia jogado um tripulante asiático no mar.

Horas depois, a tripulação comunicou ao policial a mudança de planos e que o barco iria

para o Chile, com escala em Florianópolis onde ele poderia desembarcar, o que de fato

aconteceu.

Os resultados não foram muito proveitosos para a investigação, tendo sido

obtidas apenas fotos que comprovavam o relacionamento existente entre algumas

pessoas investigadas.

Estamos diante de mais uma infiltração em que a condição dos policiais era

sabida por todos, sendo desconhecido apenas o real intuito da presença a bordo. Um

aspecto facilitador neste trabalho é que os próprios investigados promoveram a

introdução dos agentes no ambiente criminoso, o que desonera os policiais de criarem

um argumento para serem aceitos pela organização criminosa. Também não houve a

necessidade de se criar a chamada “estória cobertura”, que sempre é um fator

complicador.

Observamos, entretanto, que a infiltração foi feita de forma irrefletida, sem o

devido planejamento, sendo o agente infiltrado deixado à própria sorte. O ambiente

criminoso era pouco conhecido e o fato de ser um barco aumenta enormemente os

riscos e as dificuldades logísticas da empreitada. Não havia qualquer mecanismo de

rastreamento ou comunicação com o agente, nem, é claro, de resgate em caso de

emergência.

Outro complicador é que o policial infiltrado havia participado das investigações

da Operação Perestroika, o que poderia ser levantado pelos investigados, uma vez que

não houve mudança de nomes, colocando o APF em risco e contribuindo para o

aumento do estresse.

Sabemos todos que o risco é parte integrante da atividade policial e a infiltração

apresenta especificidades que acentuam o perigo. Entretanto, deve a Administração

Page 47: Infiltração Policial: pensando um modelo

47

tomar as medidas necessárias para manter os riscos dentro de patamares aceitáveis, o

que não ocorreu neste caso.

A oportunidade era única e poderia não se repetir, o que é compreensível.

Temos, porém, que nenhum trabalho, por mais relevante que seja, supera a importância

do zelo pela segurança dos profissionais envolvidos.

4.4 PROPONDO UM MODELO PARA A INFILTRAÇÃO NO DPF

Com o advento da Lei nº 12.850/13 é necessário que as polícias judiciárias

brasileiras melhor se preparem para o uso dos meios mais elaborados de obtenção de

provas.

A Polícia Federal tem, embora timidamente, voltado suas atenções para a

infiltração. Acreditamos, porém, que é necessário que a instituição se estruture

adequadamente para fazer uso do agente infiltrado quando a situação exigir.

O primeiro passo, ao nosso sentir, é a criação de uma unidade de ações

encobertas, nos moldes da existente no FBI, que poderia ficar inserida na Divisão de

Inteligência Policial, tendo necessariamente expressões nas superintendências

regionais, sendo responsável pelo estudo; regulamentação da medida no âmbito da

Polícia Federal seleção e treinamento de potenciais infiltrados e, fundamentalmente,

supervisão das medidas em execução e avaliação daquelas já encerradas.

Sabemos que a doutrina policial é cunhada com a experiência do dia a dia de

profissionais do mundo inteiro, erros e acertos que após estudados fornecem um padrão

de atuação para os homens de polícia

Com a infiltração não é diferente, havendo boa literatura, especialmente em

inglês, que enfoca os aspectos policiais do assunto. Temas como estresse; perfil do

policial; métodos de retirada; vida pós-infiltração; surgimento de afinidade entre

investigado e infiltrado; são tratados com profundidade.

Diante da ausência de doutrina brasileira sobre a infiltração em seu viés policial,

caberia à unidade de ações encobertas estudar a experiência estrangeira, analisar

criticamente os nossos trabalhos e, então, cunhar normas de comportamento

Page 48: Infiltração Policial: pensando um modelo

48

profissional a serem seguidas em trabalhos futuros, que teria sua divulgação facilitada

pela existência de uma unidade especializada.

Não olvidamos que constitui anseio das autoridades policiais a criação de

mecanismos de proteção do Delegado na condução dos inquéritos policiais, como forma

de garantir sua autonomia técnica. Não obstante, em se tratando de infiltração, temos

que é razoável, diante dos riscos envolvidos, um controle mais próximo, não podendo

ficar nas mãos apenas do Delegado responsável pelo inquérito a decisão de lançar mão

da medida.

Pode-se argumentar que de qualquer forma haveria um controle do Judiciário e

do Ministério Público, o que colocaria freios em uma eventual precipitação. Não vemos

como suficiente. O Parquet e o Judiciário apreciam questões jurídicas. Há um lado

técnico-policial que apenas a polícia é capaz de avaliar adequadamente. É a instituição

policial, por exemplo, que tem condições de saber se possui os meios materiais e

humanos para dar proteção ao AI, inclusive resgatando-o se necessário.

Não é difícil imaginarmos um Delegado recém empossado, movido pelas

melhores intenções, que decide infiltrar um jovem policial, igualmente empolgado, em

uma quadrilha de traficantes de armas ou de drogas. As chances de um trabalho deste

tipo acabar mal não são desprezíveis.

No modelo que propomos, a unidade junto à Diretoria de Inteligência Policial ou

às células de inteligência nas Superintendências Regionais seriam comunicadas pelo

Delegado do feito, antes da apresentação do pleito à justiça e, a partir daí, avaliaria a

presença das condições para a empreitada, inclusive acerca do profissional escolhido, e

então, concordaria ou não com a medida, de forma definitiva.

O que pode parecer um cerceamento à liberdade da autoridade policial, implica,

na verdade, em uma consultoria técnica a ser fornecida por profissionais com real

conhecimento sobre o assunto, diminuindo a margem de erros.

Ademais, nos acostumamos em nosso dia a dia a realizar diligências em

condições longe das ideais. Em uma infiltração devemos ter o suporte necessário ao

trabalho ou ela deve ser descartada. Ao dividir nossa decisão com a unidade de ações

Page 49: Infiltração Policial: pensando um modelo

49

encobertas, estamos também dividindo a responsabilidade por resultados indesejados

que decorram de nossos problemas de estrutura.

Alguns argumentarão que mais pessoas sabendo aumentam as chances de

vazamento, o que colocaria o agente infiltrado em risco. Não vemos assim. As chances

de vazamento sempre existirão, inclusive fora da polícia, uma vez que o pedido tramita

também em outros órgãos. Os desvios deverão ter a reprimenda devida, mas os ganhos

superam, ao nosso sentir, os contrapontos.

Outra conveniência em se ter uma unidade nos moldes propostos é a seleção e

treinamento de potenciais agentes para o trabalho infiltrado. A escolha acertada é

essencial para o sucesso da infiltração. A escolha errada coloca em risco a vida do

policial, direitos dos investigados e a credibilidade das instituições.

A formação de um banco de policiais com perfil apropriado permite um

treinamento adequado e periódico, além de facilitar um acompanhamento dos

escolhidos. Um policial, por exemplo, que é selecionado para integrar o banco e após se

torna uma pessoa extremamente religiosa, deve ter seu nome descartado.

Walter Maierovitch cita ilustrativo episódio onde dois policiais militares paulistas

foram executados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), delatados por seus

próprios hábitos, posto que vestiam sempre meias de cor marrom e usavam

frequentemente os termos “elemento” e “positivo.”30

O fato trazido por Maierovitch denota o despreparo dos policiais militares

indicados para o trabalho, mas que poderia ocorrer com qualquer instituição policial

brasileira, todas dadas a vícios de linguagem. Podemos conceber, por exemplo, um

policial federal infiltrado que perguntado sobre a placa de um veículo venha a responder

papa, alfa, kilo, segundo, primeiro, quarto, quinto, ao invés de PAK 2145. Equívocos

deste tipo costumam ser fatais - às vezes para o trabalho, às vezes para o infiltrado - e

podem ser evitados com seleção criteriosa e treinamento.

30

MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. Os riscos da espionagem. Disponível em: www.viaseg.com.br. São Paulo, 2007. Acesso em: 01 jul.2013.

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50

Com tantos cuidados a serem observados, temos como necessária a elaboração

de uma instrução normativa que conceda compulsoriedade ao cumprimento das

premissas técnicas elaboradas pelo órgão central.

Pensamos que o ato normativo, antes de cercear o comportamento da

autoridade investigante, fornece padronização, orientação e segurança para a atuação

dos profissionais de polícia.

Portanto, a construção de um modelo para o adequado trato da infiltração no

âmbito da Polícia Federal passa, ao nosso sentir, pela criação de uma unidade

especializada em ações deste tipo, a quem incumbirá:

- criar unidades regionais junto aos serviços de inteligência existentes nas

Superintendências Regionais com o fim de implementar o entendimento da Polícia

Federal acerca da infiltração;

- desenvolvimento de uma doutrina brasileira sobre técnicas policiais no manejo

da infiltração;

- assessoria ao Diretor Geral na confecção de uma Instrução Normativa sobre o

assunto;

- selecionar os profissionais com perfil adequado para o trabalho infiltrado;

- promover cursos de treinamento dos policiais escolhidos, onde deverão ser

tratados necessariamente temas como a seleção e treinamento dos policiais infiltrados;

formas de inserção do infiltrado no ambiente criminoso; o estresse do infiltrado; a

relação do infiltrado com a autoridade policial e com o restante da equipe; encerramento

típico e atípico da infiltração policial, inclusive o resgate; segurança do agente; vida pós-

infiltração; limites do infiltrado; incidentes previsíveis durante o trabalho encoberto,

dentre outros;

- autorização da infiltração, através da unidade regional, quando deverá

observar se o proponente reúne condições de realizar o trabalho com níveis aceitáveis

de segurança; e

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51

- análise dos trabalhos já encerrados visando o aperfeiçoamento de nossas

práticas.

Não somos ingênuos em imaginar que a simples criação de uma unidade

solucionaria nossos problemas, mas acreditamos que seria um passo importante para a

melhoria das condições para o uso do agente infiltrado em nossas investigações que

requeiram tal medida.

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52

5 CONCLUSÃO

Com o incremento da criminalidade internacional, a busca de mecanismos de

investigação mais eficazes, que possam fazer frente à nova organização dos grupos

criminosos, se tornou uma constante na pauta de discussões das nações.

Sucessivos acordos internacionais refletiram essa preocupação, podendo ser

citadas a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias

Psicotrópicas (Convenção de Viena) e a Convenção das Nações Unidas Contra a

Criminalidade Organizada Transnacional, a denominada Convenção de Palermo.

Nesse contexto, a infiltração - estratagema usado desde antiguidade no campo

militar e há mais de duzentos anos nas investigações criminais – teve sua importância

resgatada e seu uso regulamentado em vários países da Europa Ocidental.

No Brasil, o instituto foi introduzido em nosso ordenamento apenas em 2001,

mas de forma inteiramente lacunosa, sem fornecer tratamento normativo adequado a

várias questões importantes ao seu manejo.

No último dia 02 de agosto, finalmente o legislador brasileiro, ao elaborar a Lei

nº 12.850, forneceu às autoridades persecutórias uma lei que parametriza

adequadamente a infiltração policial, dando resposta à boa parte das questões que

antes ficavam a cargo da doutrina.

O advento da nova lei faz surgir para as instituições policiais a obrigatoriedade

de olhar para a infiltração como uma possibilidade investigativa real e potencialmente

eficaz, que vai muito além das ficções do cinema americano, desde que utilizadas em

situações que realmente a demandem, por policiais com a necessária expertise, e sob o

controle estreito da própria instituição policial e dos demais participantes do aparelho

persecutório.

Até aqui a Polícia Federal, apesar do grande número de investigações que

redundaram no desmantelamento de um expressivo número de organizações

criminosas, utilizou de forma bastante acanhada a infiltração.

Acreditamos que a deficiência da lei anterior tenha contribuído fortemente para

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53

tanto. A lacunosidade legal deixava a cargo da autoridade judiciária o preenchimento

dos pontos mais sensíveis da medida, criando para os policiais uma insegurança que

findava por contraindicar o uso do agente encoberto.

Não acreditamos que a Lei nº 12.850/2013 irá fazer da infiltração uma medida

investigativa ordinária a ser usada na apuração de toda e qualquer organização

criminosa. Ela não tem esse condão. A infiltração, sabemos todos, é uma forma de

investigação bastante invasiva, que põe em risco valores muito caros às sociedades

democráticas, devendo ser usada com cuidado, critério e controle.

Portanto, é normal que tenhamos a ação encoberta usada em pequena escala,

sendo desejável que permaneça sendo usada com extremo cuidado pelas autoridades

investigantes e apenas quando realmente necessária, com observância da

subsidiariedade que a caracteriza.

Apesar disso, não vemos, como sustentam alguns, incompatibilidade entre a

infiltração policial e um estado democrático, sendo absolutamente possível sua

harmonização com um processo penal moderno e garantidor das liberdades individuais

dos investigados. Ressalte-se que países com sólida democracia, como aqueles da

Europa Ocidental e os Estados Unidos, lançam mão da infiltração, instituto reconhecido

também pela Organização das Nações Unidas.

Todavia, temo que a nova lei, apesar dos avanços que veicula, encontrará uma

estrutura policial federal ainda deficiente, que faz uso da infiltração com o conhecimento

empírico ou adquirido em filmes e livros policiais, sendo este, a nosso ver, outro motivo

do pequeno número de trabalhos realizados pela Polícia Federal em que houve uso da

infiltração.

Ao identificar a necessidade de infiltrar um policial na organização criminosa, a

autoridade investigante se depara com tantas dificuldades que logo a tentação de fazer

uso de uma ferramenta menos eficiente, mas certamente de mais fácil manejo,

prevalece.

Apesar de alguns passos tímidos na busca de um conhecimento mais sólido

sobre os aspectos policiais inerentes à infiltração, os seminários intitulados “Infiltração e

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54

o Controle de Fontes”, realizados com alguma frequência pela Polícia Federal, apontam

nesse sentido, é necessário que estudemos a experiência das polícias estrangeiras,

criticá-la e submetê-la a realidade brasileira, para que tenhamos nossa própria doutrina

a ser passada para os policiais.

O uso de estratagemas como o pagamento de informante, que transforma, à

grosso modo, o criminoso em um agente infiltrado, embora útil e de manejo bem mais

simples, apresenta sérios questionamentos éticos de difícil superação e não substitui a

infiltração propriamente dita.

A interceptação telefônica, tão usada em várias de nossas operações, já

começa a demonstrar um certo esgotamento, o que impõe aos policiais o uso de outros

mecanismos menos ortodoxos de investigação, como escuta ambiental, entrega

controlada e infiltração, todos autorizados por nosso ordenamento jurídico, e que, se

usados com as cautelas necessárias e o conhecimento exigível de um profissional de

polícia, podem representar importante instrumento de combate à criminalidade

organizada.

Esperamos, por fim, que a Lei nº 12.850/2013 seja um marco na utilização das

medidas investigativas mais sofisticadas e que sirva como um chamado, uma

convocação às polícias judiciárias para que realmente se preparem para o adequado

manejo das ferramentas que a nova lei colocou a sua disposição.

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REFERÊNCIAS

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California Press, 1988.

2 MARX, Gary T.Undercover: police surveillance in comparative perspective. EUA.

Kluver Academic Publishers,1995.

3 PACHECO, Rafael. Crime Organizado. medidas de controle e infiltração

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4 PEREIRA, Flávio Cardoso. A investigação criminal realizada por agentes

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jun.2013.

5 GUARIGLIA, Fabricio. El Agente Encubierto. Um Nuevo Protagonista en El

Procedimiento Penal? Equador. Disponível em: www.cienciaspenales.org. Acesso em:

8 jun.2013.

6 BONFIM, Márcia Monassi Mougenot. A Infiltração de Policiais no Direito Espanhol.

Revista Direito e Sociedade, Curitiba, v.3,n.1, jan/ jun.2004.

7 MARTIN, Joaquin Delgado. Criminalidad Organizada,Barcelona: J.M.Bosch, 2001.

8 DIRCEU, Jose; PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a Ditadura. Rio de Janeiro: Ed. Espaço

e Tempo, 2003. p. 130-131

9 HAUER, Lícia Maciel. O Colégio Pedro II Durante a Ditadura Militar: o silêncio

como estratégia de subordinação. Rio de Janeiro. Disponível em: www.educação.ufrj.br.

Acesso em: 18 jul.2013.

10 GOMES, Rodrigo Carneiro. Investigação Criminal na Convenção de Palermo:

instrumentos e limites. limites constitucionais da investigação. In: CUNHA,Rogério

Sanches; TAQUES, Pedro; GOMES, Luiz Flávio (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 2009.

11 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. ed. São

Paulo:Editora Saraiva, 2003.

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12 VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Processo Penal. 2.ed. Portugal: Almedina,

2009. Tomo 1.

13 JESUS, Damasio E.de;BECHARA, Fábio Ramazzini. Agente Infiltrado: reflexos

penais e processuais. São Paulo.Disponível em: http://jus2.uol.com.br. Acesso em: 16

jun.2013.

14 MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. Os riscos da espionagem. São Paulo.

Disponível em: www.viaseg.com.br. Acesso em: 01 jul. 2013.