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INFÂNCIA INVISÍVEL: CRIANÇAS “LATCHKEY”
Maria Amélia Azevedo
Pedagoga/FEUSP Advogada/FDUSP
Doutora em Educação/FEUSP Livre Docente e Titular/IPUSP
1.0 – Introdução
Crianças sempre existiram desde que o mundo é mundo: já a infância é uma invenção
Moderna, remontando à emergência do SENTIMENTO de INFÂNCIA (séculos XV –
XVI).
Infelizmente porém, ainda hoje, nos quatro cantos do mundo, há crianças a quem a
infância foi negada, seja devido a violências domésticas, seja devido a violências
extradomésticas.
“Infância é uma das descobertas mais
importantes da IDADE DAS DESCOBERTAS
(séculos XV – XVI)”.
(Azevedo, M. A. e Guerra, V. N. de A. [2005] –
A longa jornada da domesticação ao
protagonismo infanto-juvenil, in Portal
RECRIA (www.recriaprojetos.com.br) Nuvem
de Estudos.
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2.0 - Crianças “LATCHKEY”: INFÂNCIA INVISÍVEL Ao lado da infância vitimada por violências espetaculares como GUERRAS,
SEQUESTROS, EXPLORAÇÃO MIDIÁTICA, etc, etc, etc... há uma outra condição negadora do ser
criança e que ocorre, sobretudo, em famílias de classe trabalhadora, configurando a INFÂNCIA
INVISÍVEL das chamadas CRIANÇAS “LATCHKEY”. Infância invisível porque se trata de uma
adultificação precoce de crianças e adolescentes.
Os excertos a seguir permitem compreender a fabricação social de Crianças
“LATCHKEY” em países anglo-saxões, num passado relativamente recente.
CRIANÇAS “LATCHKEY1”
“LATCHKEY” é um termo usado para descrever crianças em idade escolar de pais
trabalhadores, que cuidam de si mesmas e seus irmãos antes e depois da escola e durante as
férias. Estas crianças são às vezes referidas como crianças em regime de autocuidado. Estima-
se que dois a quatro milhões de crianças retornam da escola para lares vazios. Ainda mais
alarmante – vinte a cinquenta mil pré-escolares – são deixados em regime de autocuidado
enquanto os pais estão no trabalho.
Enquanto alguns jovens parecem fazer um trabalho adequado de cuidar deles mesmos,
especialistas estão começando a questionar o impacto dessa experiência nas crianças e
famílias. Seguem alguns exemplos de típicos problemas do regime de autocuidado:
Em Boston duas crianças, de 11 e 8 anos de idade, esperam em casa sozinhas todas as
tardes. Elas foram instruídas a não saírem, a não abrir a porta, ou permitir alguém dentro de
casa. As crianças se sentem isoladas e temerosas e ficam grandemente aliviadas quando seus
pais retornam para casa.
Em Atlanta uma mãe solteira manda seu filho de 7 anos de idade para escola com
reclamações de dor de estomago. Ela cruza os dedos e espera que ele não fique doente e seja
enviado para casa. Ela não tem alguém que cuide da criança e não pode solicitar outro dia de
folga do trabalho.
____________________________ 1 Palavra que significa “trancado a chave”.
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Em Seattle uma garota de 12 anos de idade chega em casa às 15h30min para gastar o
restante da tarde sozinha. Assim que ela abre a porta de entrada, ela se depara com um roubo
acontecendo. Felizmente, o ladrão a ouve se aproximar e sai pela porta dos fundos. A garota fica
assustada pelo incidente e apreensiva por semanas, depois de voltar para uma casa vazia.
Em Terre Haute, Indiana, uma jovem mãe trabalha em uma fábrica local, enquanto seu
filho de 9 anos de idade está na escola. Todos os dias aproximadamente às 15 horas, seu nível de
ansiedade começa a crescer. Ela fica aliviada apenas pela ligação do garoto, informando a ela
que está bem em casa. A produtividade dela no trabalho está sofrendo.
Em San Antonio, Texas, lojistas em um Shopping da vizinhança estão chateados por ver
crianças da escola primária aparecerem no Shopping, toda tarde aproximadamente às 15 horas.
Os jovens não são supervisionados e selecionaram o local como moradia até que seus pais
retornem para casa, muitas horas depois.
Incidentes como esses ocorrem todos os dias nas comunidades, urbanas e rurais, nos
Estados Unidos. Enquanto poucas pesquisas foram feitas sobre as medidas adequadas de
autocuidado infantil, existe evidência de que crianças Latchkey estão correndo riscos de danos
(psicológicos e a sua segurança). Um estudo recente indicou que um em cada seis chamados
feitos ao corpo de bombeiros de uma grande cidade envolve crianças em regime de autocuidado.
Em uma pesquisa com crianças de Ensino Fundamental do centro da cidade e de zonas
suburbanas em Washington, D.C., Thomas Long descobriu que muitas das crianças
experimentaram medo significativo e isolamento quando em regime de autocuidado. Crianças
não supervisionadas são também mais propensas a se tornarem vítimas de crime e abuso sexual.
Trabalho e Família
O ambiente de trabalho americano mudou notavelmente [ao longo dos anos 80 do século
XX]. Esta mudança é o resultado de certo número de forças sociais, a mais importante das quais,
aumento da feminização da força de trabalho. Em 1947 apenas 32 por cento de todos os adultos
do sexo feminino estavam na força de trabalho; por volta de 1980 este percentual aumentou
para 52. Concomitantemente houve um aumento dramático nos números de mães
trabalhadoras. Enquanto menos de uma em cada cinco mulheres com crianças abaixo de 18
anos estavam trabalhando em 1947, por volta de 1980 perto de três em cada cinco estavam
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empregadas. A participação na força de trabalho de mães de crianças pré-escolares mostrou até
mesmo um aumento maior. Mulheres com crianças abaixo de cinco de idade agora representam
o segmento de maior crescimento da população trabalhadora.
Esse grande influxo de mães jovens para a força de trabalho apresenta implicações
tremendas para as crianças. A maioria das crianças americanas dos anos 80 – mais de vinte e
dois milhões delas – cresceram em lares onde ambos os pais, ou o único pai/mãe, estão
empregados fora de casa. A mudança do padrão de família tradicional das décadas de 40 e 50
com um pai trabalhador e uma mãe cuidadora, significou uma mudança na estrutura básica
da família. Agora existe certo número de tipos de famílias com pais trabalhadores, e cada um
tem diferentes necessidades e recursos. A seguir estão quatro tipos básicos.
- Família Homem ganha-pão – Esta é a família tradicional. O pai trabalha fora, e a mãe
permanece em casa e cuida das crianças. O tipo Homem ganha-pão agora representa apenas
catorze por cento de todas as famílias nos Estados Unidos.
- Família de Dois salários – Aqui ambos os pais, frequentemente operários, casal de classe
trabalhadora, estão empregados. Frequentemente ambos precisam trabalhar para pagar as
despesas comuns de criar uma família.
- Família de Dupla carreira – Ambos os pais, frequentemente com nível universitário,
casal da classe média, estão empregados. Enquanto suas necessidades econômicas não são tão
grandes como aquelas do casal de Dois salários, outras necessidades surgem quando duas
carreiras separadas e exigentes estão envolvidas.
- Família Monoparental – Esta família depende de um pai/mãe para gerenciar todas as
responsabilidades do emprego e paternidade/maternidade. Neste caso, frequentemente temos
u’a mãe trabalhadora com rendimentos muito baixos.
O crescimento na participação dos pais na força de trabalho trouxe consigo um aumento
no nível de estresse vivenciado por pais trabalhadores e seus filhos. É difícil para os pais lidar
com as responsabilidades de ser ao mesmo tempo pai e trabalhador. A necessidade por cuidado
adequado para bebês e crianças mais novas, a existência de um número maior de crianças mais
velhas Latchkey (crianças que cuidam de si mesmas enquanto os pais estão no trabalho), as
pressões de acomodar as horas de trabalho para atender as necessidades da família, o problema
de cuidar de crianças doentes, quando ambos os pais ou o único pai/mãe está trabalhando, a
ausência dos pais de casa, a pressão de realocação enfrentada por muitas famílias, e a tremenda
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drenagem de energia vivenciada por muitos pais empregados respondem pelo estresse
encontrado nestes pais e seus filhos.
Estresse do ambiente de trabalho não é distribuído uniformemente ou da mesma forma
entre as famílias. A família tipo Homem ganha-pão, por exemplo, tem uma solução pronta para o
cuidado infantil, mas pode enfrentar outros problemas devido ao potencial de isolamento da
esposa cuidadora. O casal tipo Dupla carreira frequentemente é capaz de comprar cuidado
infantil de alta qualidade, mas pode ser muito mais suscetível ao estresse de manter duas
carreiras exigentes além da responsabilidades de criação das crianças. O casal tipo Dois salários
pode ter dificuldade em encontrar cuidado infantil adequado e pode ter que recorrer às pressões
de trabalhar em dois diferentes turnos para atender às necessidades do trabalho e da família. E
o pai/mãe solteiro provavelmente experimenta um pesado fardo econômico, bem como um alto
nível de estresse para acomodar as necessidades do ambiente de trabalho e da casa. Quaisquer
soluções aos problemas de pais que trabalham devem levar em consideração os diferentes tipos
de estresse e as fontes disponíveis para as famílias envolvidas.
Fonte: Coolsen, P. [1986] – Strengthening families through the workplace. Chicago: National
Committee for Prevention of Child Abuse. Traduzido por André de Freitas Jesus, farmacêutico
e professor de inglês.
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Pais trabalhadores: Estado, Sociedade e Crianças ‘LATCHKEY’
Na realidade americana a “necessidade que mais tem pressionado os pais trabalhadores
de crianças novas é encontrar um cuidado infantil de alta qualidade e acessível. O tremendo
aumento de mães trabalhadoras com crianças pré-escolares produziu a necessidade por cuidado
infantil que ultrapassa grandemente os recursos disponíveis...
As creches são insuficientes, forçando os pais trabalhadores a recorrer a um parente,
vizinho, babá...
Nos últimos anos, empregadores vem desenvolvendo formas de ajudar trabalhadores
jovens em suas necessidades de cuidado infantil...
Qualquer que seja a assistência que os empregadores ofereçam, esta precisa ser
construída e deve colaborar em vez de competir, com a rede de serviços já disponível na
comunidade. Além disso, cuidado infantil promovido pelo empregador deve ser acessível e
também fornecer o mesmo tipo de serviço orientado profissionalmente e de alta qualidade que
aqueles desenvolvidos pelo setor não lucrativo.” (Cf. Coolsen, P. [1986], art. cit.).
Nesse contexto difícil, as CRIANÇAS “LATCHKEY” tem sido vistas como uma solução
caseira e barata de cuidado infantil. Infelizmente, porém, as crianças “LATCHKEY”
representam um enorme desafio para ESTADO e SOCIEDADE: sua vulnerabilidade a violências
domésticas e extradomésticas é grande. Os efeitos da adultidificação precoce “variam com
cada criança e são dependentes de certo número de fatores, incluindo a idade de crianças e o
nível de maturidade, acesso aos pais e disponibilidade dos mesmos, nível de comunicação entre
os pais e a criança, recursos disponíveis na vizinhança, e o nível no qual a família está integrada
ou isolada socialmente. A melhor solução para maioria dessas crianças seria envolver supervisão
de um adulto”. (Cf. Coolsen, P. [1986], art. cit.).
A literatura internacional, trata de famílias absolutamente negligentes, nas quais
irmãos mais velhos são forçados a funcionar como pais substitutos de irmãos menores, com
consequências tóxicas que podem chegar até incesto irmão-irmã...
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3.0 - O que podemos aprender com CRIANÇAS ‘LATCHKEY’
As crianças “LATCHKEY” são um caso particular de CRIANÇAS CUIDADORAS.
A existência destas últimas, deita raízes no “mundo de ontem”, das sociedades ditas
‘tradicionais’ e de ‘pequena escala’, com pequena densidade populacional, subsistindo com a
caça-coleta, agricultura ou criação de rebanhos. Estudando 39 dessas sociedades na África,
Austrália, Eurasia, Américas do Norte e do Sul, Jared Diamond documentou como , em
determinadas sociedades, ditas de pequena escala, “os adolescentes, ao se tornarem pais, já
terão tomado conta de crianças, durante vários anos” (Cf. Diamond, J. [2012] – O mundo até
ontem / O que podemos aprender com as sociedades tradicionais? R. Janeiro: Record, p. 253).
Fonte: Diamond, J. [2012] ob.cit.
Os estudos de Diamond mostram que a experiência das CRIANÇAS CUIDADORAS não
precisa necessariamente ser deletéria: o contexto social inclusivo pode minimizar os danos e
até garantir ganhos.
Fig.6 O transporte tradicional de crianças geralmente as põe em contato físico direto com a cuidadora, verticalmente eretas, olhando para a frente e partilhando com ela o mesmo campo de visão. Este é um bebê pume da Venezuela sendo carregado por uma irmã mais velha. (Russel D. Greaves e Karen Kremer)
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Mas, esse mesmo contexto pode também arruinar a infância dessas crianças, como
mostrou Bertolt Brecht (1898-1956), no famoso poema sobre órfãos da Segunda Guerra,
intitulado A CRUZADA DAS CRIANÇAS.
Como afirmou Mariana Ianelli, “onde quer que haja guerra, há uma cruzada de crianças
em busca de pão e paz”. (Ianelli, M. O destino de pequenos e miseráveis peregrinos in O
Estado de S. Paulo/Poesia, 17/02/2015, p. C5).
E onde há uma cruzada de crianças, certamente haverá também CRIANÇAS
CUIDADORAS...
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4.0 - Crianças “LATCHKEY” e o Brasil
Sabemos que as CRIANÇAS LATCHKEY existem no Brasil, como sugere a foto de
Sebastião Salgado.
Infelizmente, não estamos ainda em
condições de responder às seguintes perguntas: 1 – Quantas são essas CRIANÇAS, hoje? 2 – Como se distribuem na população brasileira: mais na assim chamada NOVA CLASSE TRABALHADORA ou mais na CLASSE dos EXCLUÍDOS por EXCELÊNCIA; a triste RALÉ? (Cf. Souza, I. [2012] - Os batalhadores brasileiros, Nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte, Editora UFMG).
3 – Que respostas – Estado e Sociedade – têm oferecido para enfrentar o processo de fabricação de crianças “LATCHKEY”, enquanto protagonistas silenciosas de uma vida sem infância?
...
Fig. 8 Acampamento de sem-terra na
Fazenda Cuiabá no sertão do Xingó. Sergipe, Brasil, 1996
Fonte: Salgado, S. [2000]
Retratos de Crianças do Êxodo – S. Paulo: Companhia das Letras, p. 98.
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Cuidar de CRIANÇAS LATCHKEY pode ser uma forma de prevenção especialmente da
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA contra Crianças e Adolescentes (VDCA).
E isto pode ser também uma responsabilidade das EMPRESAS, como bem lembrou
Oded Grajew: “Nas empresas esta questão pode entrar na pauta... As empresas podem ter um
papel educativo, primeiro com seus funcionários...” (Cf. Azevedo, Mª Amélia e Guerra, Viviane
N. de A. [2011]. Violência Doméstica na Infância e na Adolescência / Uma nova Cultura de
Prevenção. S. Paulo: Editora Plêiade / Apoio FAPESP, p. 338.).