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INFORMAÇÕES E TEXTOS DA COORDENADORIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL Secretaria de Estado da Cultura do Paraná - Coordenadoria do Patrimônio Cultural –http://www.patrimoniocultural.pr.gov.br/ PATRIMÔNIOS NATURAIS E VALORES Organização das informações: Celso Fernando de Azambuja Gomes Carneiro PATRIMÔNIOS NATURAIS E VALORES NATURAL HERITAGE AND VALUES Celso Fernando de Azambuja GOMES CARNEIRO Resumo Este texto procura preliminarmente explorar o processo de constituição de patrimônios naturais – as paisagens notáveis, como produto de processo de valoração de aspectos da natureza. Palavras Chave: natureza, patrimônio, valores. Abstract This essay focuses in the natural heritage’s – landscapes and natural areas of outstanding value, natural monuments – constitution process as a product of valoration of some of the nature´s aspects. Key words: nature, heritage, values. 1 INTRODUÇÃO Compreender a constituição de Patrimônios Culturais Naturais – os monumentos da natureza, as paisagens notáveis, os sítios de beleza singular – como produto de um processo de valoração de aspectos da natureza, é a intenção que orientou as reflexões que seguem. Esta iniciativa pretende subsidiar um esforço para compreender as práticas de proteção ao patrimônio natural na região litorânea do Paraná, especialmente a respeito do tombamento da Serra do Mar. Trata-se, de fato, de um bosquejo muito preliminar, apoiado em algumas idéias de Ademar Heemann quando em seu, O Corpo que Pensa (2001), sistematiza elementos e propõe uma forma de abordar o nascimento e a legitimação de valores. Engenheiro Civil da Coordenadoria do Patrimônio Cultural da Secretaria de Estado da Cultura do Estado do Paraná, Doutorando em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná.

INFORMAÇÕES E TEXTOS DA COORDENADORIA DO PATRIMÔNIO ... CPC/2006... · 1 Sobre o tema, a mesma Choay, em seu muito interessante A alegoria do patrimônio, menciona que: “Os

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PATRIMÔNIOS NATURAIS E VALORES

Organização das informações: Celso Fernando de Azambuja Gomes Carneiro

PATRIMÔNIOS NATURAIS E VALORESNATURAL HERITAGE AND VALUES

Celso Fernando de Azambuja GOMES CARNEIRO∗

ResumoEste texto procura preliminarmente explorar o processo de constituição de patrimônios naturais – as paisagensnotáveis, como produto de processo de valoração de aspectos da natureza.Palavras Chave: natureza, patrimônio, valores.

AbstractThis essay focuses in the natural heritage’s – landscapes and natural areas of outstandingvalue, natural monuments – constitution process as a product of valoration of some of thenature´s aspects.Key words: nature, heritage, values.

1 INTRODUÇÃO

Compreender a constituição de Patrimônios Culturais Naturais – os monumentos da

natureza, as paisagens notáveis, os sítios de beleza singular – como produto de um

processo de valoração de aspectos da natureza, é a intenção que orientou as reflexões que

seguem.

Esta iniciativa pretende subsidiar um esforço para compreender as práticas de

proteção ao patrimônio natural na região litorânea do Paraná, especialmente a respeito do

tombamento da Serra do Mar.

Trata-se, de fato, de um bosquejo muito preliminar, apoiado em algumas idéias de

Ademar Heemann quando em seu, O Corpo que Pensa (2001), sistematiza elementos e

propõe uma forma de abordar o nascimento e a legitimação de valores.

∗ Engenheiro Civil da Coordenadoria do Patrimônio Cultural da Secretaria de Estado da Cultura do Estado doParaná, Doutorando em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná.

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A abordagem adotada pretende uma aproximação naturalística. Isto quer dizer que

“tem como ponto de partida a teoria evolucionária” ou seja, seu pressuposto é a

“sobreposição do funcional pelo axiológico”, o que somente emergiu no mundo “após o

surgimento do sujeito valorizante” (HEEMANN, 2001-A p. 45).

Posto desta forma, o “ponto de vista natural” requer, então, que a compreensão do ato

moral leve em conta concomitantemente suas “bases biológicas” e seus “elementos

cognitivos” (HEEMANN, 2001 p. 11).

A Serra do Mar, designação corrente do extenso conjunto de montanhas do Maciço

Atlântico que se estende pelo litoral brasileiro desde o Espírito Santo até o norte do Rio

Grande do Sul, constitui-se num acidente geográfico notável no contexto do sul sudeste do

Brasil.

Isso se dá quer em decorrência de sua dimensão, quer pela sua situação –

interpondo-se entre o litoral e o planalto – quer por abrigar, em decorrência de sua

topografia, parcelas expressivas da parte mais conservada da Floresta Atlântica.

Paisagem notável, a Grande Cordilheira Marinha, como a chamavam os primeiros

viajantes da terra, percebida como barreira a ser transposta, como obstáculo à ocupação do

interior (PARANÁ, 1987 p. 13), passou a ser vista, mais contemporaneamente, como recurso

paisagístico a ser protegido, constituindo-se – pelas suas matas, pelos conjuntos históricos e

pré-históricos que abriga, pela sua fauna - num patrimônio natural, sendo tombada na

maioria dos estados em que se encontra.

A Serra do Mar é, pois, patrimônio cultural dos brasileiros, constituindo-se num objeto

com atributos especiais, que deve ser protegido de forma a ser legado para os pósteros.

Patrimônio cultural, no caso específico, patrimônio natural, é uma condição a que um

aspecto da natureza é alçado em dado momento, em decorrência de um valor que se dá a

esse objeto.

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Encontrar elementos para a melhor compreensão teórica deste processo de valoração

de um objeto da natureza, revestido de um ritual técnico no âmbito do aparelho de estado, é

a preocupação principal deste trabalho.

Para discutir o tema, inicialmente faz-se uma aproximação genérica à questão do

patrimônio cultural, mostrando a evolução desse conceito e também sua acepção corrente no

plano normativo.

Na seqüência discute-se o modo como um objeto se constitui em patrimônio,

procurando entendê-lo como um processo de valoração e tomando como referência o

julgamento moral para, depois, procurar inferir, desta aproximação, elementos para uma

sistemática de estudo de processos de tombamento específicos.

Finalmente comenta-se alguns olhares a respeito da questão do patrimônio natural,

especialmente relacionados ao tombamento da Serra do Mar no Paraná.

2 PATRIMÔNIO NATURAL

A noção de patrimônio, idéia datada que remete à modernidade e mais

especificamente “produzida, assim como a idéia de nação no final do século XVIII” refere-se,

originalmente, à construção de uma coleção de coisas que teriam um valor nacional, que se

fundaria no “pertencimento a uma comunidade, no caso a nação”. Esta coleção teria a

virtude de “objetivar, conferir realidade e também legitimar essa comunidade imaginada”

(FONSECA, 1997 p.31).

Embora como emergência na esfera normativa, o patrimônio seja uma instituição

moderna, sua origem, como referência a símbolo e com sentido de bem comum a todos a ser

guardado e admirado, relaciona-se, assinala a mesma autora, ao sentimento religioso de

apego às relíquias que se desenvolveu na Europa durante o medievo (1997, p.53).

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O desenvolvimento dessa noção tem, também no renascimento, um momento

importante, pois é aí que o monumento – do latim monere advertir, recordar – histórico, como

produto da paulatina autonomização dos conceitos de arte e história 1, passa a se constituir

em objeto de interesse e, pela sua natureza, de preservação. Assim surge a noção de

monumento histórico – aquele que se torna monumento com a história e não é produto de

uma ação intencional – o que pressupõe a alteridade de uma civilização em relação a outra

ou seja, uma “constituição a posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do

amador que o selecionam” (CHOAY, 2000 p.22).

A noção de monumento – patrimônio cultural se consolida e assume configuração de

norma jurídica, com os correspondentes procedimentos administrativos no âmbito do Estado,

nos fins do século XVIII e no correr do século XIX.

É na França e na Inglaterra, cujos monumentos se encontravam ameaçados - na

primeira em virtude das convulsões das revoluções e na segunda pelos transtornos da

urbanização decorrente da revolução industrial – que surgem as primeiras iniciativas nesse

sentido (FONSECA, 1997).

Mais para os fins do século XIX, a intenção da proteção de monumentos como

representativos da identidade nacional também se desenvolve nos Estados Unidos 2, lá,

contudo, a ocupação recente do território, associa a idéia de monumento e identidade

1 Sobre o tema, a mesma Choay, em seu muito interessante A alegoria do patrimônio, menciona que: “Oshistoriadores e os historiadores de arte que se dedicaram aos movimentos artísticos e intelectuais que sedesenvolveram na Itália no Quattrocento identificaram e distinguiram no século XIV duas atitudes originais,características, respectivamente, dos humanistas e artistas. Estas duas atitudes contribuíram para uma primeiraconceptualização da história enquanto disciplina e da arte enquanto actividade autônoma. Assim elas sãotambém uma condição necessária para que se constitua o objecto que nós designamos monumento histórico eque está ligado às duas noções de história e de arte por meio de uma relação generativa” (2000, p.39).

2 Uma abrangente síntese da percepção de natureza nos Estados Unidos nesta época encontra-se nadissertação de mestrado de Pinheiro, Da Imensidão Selvagem às Áreas Protegidas: inventando natureza,criando lugares. Neste trabalho encontra-se uma ampla discussão das diversas percepções da natureza naAmérica do Norte pela literatura, poesia, pintura e fotografia no correr dos séculos XVIII e XIX, ilustra comdetalhe a vinculação das noções de terra prometida e de afirmação da nacionalidade aos movimentos quederam origem aos primeiros parques nacionais (s.d.).

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nacional às paisagens naturais. Paisagens que representariam a um só tempo “lugares de

significado sagrado para a nação”, bem como a possibilidade de preservação do mundo, um

“antídoto para os venenos da sociedade industrial” (SCHAMA, 1996 p. 17).

Já nas primeiras décadas do século XX vê-se com clareza a preocupação com a

necessidade de proteção dos monumentos – paisagens e edificações – das ameaças da

urbanização e do industrialismo. Interessante testemunho desta atitude é a Carta de Atenas,

de 1933, produto do Primeiro Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, quando se

atribuiu a paisagem urbana personalidade e alma 3, bem como valores histórico, plástico e

sentimental (IPHAN, 2000 p. 52).

Por fim, desde os meados do século XX a idéia de patrimônio passa a estar associada

à de bem cultural – obra de arte, sítio arqueológico, paisagem, espécime da flora ou da

fauna, edificação, artefato – coisas que se vinculam à produção intelectual, à tradição e ao

passado, como estabelece a Carta aprovada na 15ª sessão da Conferência Geral da

UNESCO de 1968 (IPHAN, 2000, p. 122).

Nesta mesma época, na Conferência de 1962, assinala-se a necessidade de proteção

de bens naturais, paisagens e sítios rurais ou urbanos, salvaguardando a sua beleza e seu

interesse cultural ou estético, consideradas aí as obras da natureza e do homem (IPHAN,

2000, p. 83).

Mais para o fim do século, na 17ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, o

conceito de patrimônio cultural e natural toma seus contornos contemporâneos, embora

3 A Carta de Atenas refere-se ao tema assim: A vida de uma cidade é um acontecimento contínuo, que semanifesta ao longo dos séculos por obras materiais, traçados ou construções que conferem sua personalidadeprópria e dos quais emana pouco a pouco a sua alma. São testemunhos preciosos do passado que serãorespeitados, a princípio por seu valor histórico ou sentimental, depois porque alguns trazem uma virtude plásticana qual se incorporou o mais alto grau de intensidade do gênio humano. Eles fazem parte do patrimôniohumano e aqueles que os detêm ou são encarregados de sua proteção têm a responsabilidade e a obrigaçãode fazer tudo o que é lícito para transmitir intacta para os séculos futuros essa nobre herança (IPHAN, 2000 p.52).

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ainda bastante vinculado à noção de objeto de caráter excepcional. Finalmente acrescenta-

se à noção salvaguarda de bens culturais – objetos, coisas materiais – a intenção de

proteger as manifestações das culturas populares e tradicionais – 25ª Conferência Geral da

UNESCO – (IPHAN, 2000, p. 293), surgindo em decorrência a idéia de patrimônio imaterial

ou intangível.

O tema alargou-se de tal maneira que sugeriu inclusive abordagens de maior

abrangência como a de Damatta, mencionada por Kersten, que define patrimônio “como

dinâmicas dramatizações da experiência coletiva, sobre a qual cada grupo social manifesta o

que deseja situar como perene” (2000 p. 15, 16.) .

Dentre estas diversas definições é relevante precisar as características normativas do

conceito de patrimônio natural. Este, segundo a legislação brasileira, de âmbito federal,

sobre o tema – Decreto Lei 25 de 1937 – é composto por “monumentos naturais”, bem como

por “sítios e paisagens” cuja conservação seja necessária em decorrência da “feição notável”

com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pelo homem (PARANÁ, 1990

p.17).

Já do ponto de vista internacional 4 entende-se patrimônio natural associado às

noções de monumento, espécimes naturais e sítios que detenham valor universal,

considerando aspectos estéticos, científicos, da conservação ou da beleza natural.

Patrimônio natural será, então, tudo aquilo que, na natureza, é monumental, possui

feição notável – quer esta decorra da natureza ou da ação humana – tem valor universal, é

4 Na convenção sobre o patrimônio mundial cultural e natural (Conferência Geral da Unesco – 17a sessão) de1972, tem-se a seguinte definição de patrimônio natural: ”os monumentos naturais constituídos por formaçõesfísicas e biológicas ou por grupos de tais formações, que tenham valor universal excepcional do ponto de vistaestético ou científico; as formações geológicas e fisiográficas e as zonas nitidamente delimitadas queconstituam o habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas e que tenham valor universal excepcional doponto de vista da ciência ou da conservação; os sítios naturais ou as zonas naturais estritamente delimitadas,que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural”(IPHAN, 2000 p.179).

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belo, proporciona prazer estético, é de importância científica, é raro ou ameaçado, que refere

à representação de identidade e, por fim, que deve ser protegido para as gerações

vindouras.

Paisagem 5 que é monumento, porque bela e singular, porque remete ao natural e -

pelo menos na origem das iniciativas de preservação - ao intocado e que deve ser

preservado. Uma noção que é essencialmente cultural, que remete ao ponto de vista do

homem a respeito da natureza.

Trata-se de um conceito amplo e complexo no qual convivem o local associado ao

universal, a beleza cênica com ciência, noções de valor de abrangência universal, que

permite destacar partes da natureza mais valiosas que as demais, para exemplificar.

Na busca da compreensão deste conceito que se imbrica concomitantemente com

diversas áreas do conhecimento, pode-se empreender duas linhas de discussão que, de

certa forma estão relacionadas e se entretecem mutuamente.

De um lado procura-se uma aproximação do entendimento do processo de

constituição de um objeto em patrimônio natural, como decorrência de um processo de

percepção e valoração da natureza. Por outro, discute-se a idéia de natureza que se associa

ao patrimônio natural.

3 PATRIMÔNIO NATURAL E VALORAÇÃO

5 A idéia de paisagem será aliás será sempre cultural como sugere repetidamente Schama em seu magníficoPaisagem e Memória: Em inglês landscape, tem origem no holandês, landschaft, que se relaciona a “umaunidade de ocupação humana” ou coisa que pode ser “objeto de pintura”. Ou no italiano, originalmente,parerga, cena “pastoril de riachos e colinas cobertas com trigais”. Porque vivemos num mundo onde osecossistemas foram modificados pela cultura num processo que remonta à “ascendência do Homo sapiens”pois “esse mundo irreversivelmente modificado, das calotas polares às florestas equatoriais, é toda a natureza

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Na prática, a constituição de patrimônios envolve um grupo de agentes que a partir de

um conjunto de técnicas e normas e instrumentos jurídicos e, pelo menos supostamente,

atendendo a uma demanda social, delimitam determinados bens no espaço público.

Tem-se, portanto, um processo no qual um sujeito percebe um determinado objeto na

natureza, atribui a ele certos valores. Valores estes que, após serem submetidos à

verificação de um processo institucionalizado, passam a ser considerados como parte deste

objeto, o qual é, então, separado dos demais objetos da mesma natureza, passando a ser

apropriado de acordo com um conjunto específico de normas.

Pensado na sua essência o ato de constituição de patrimônios é o produto de um

julgamento sobre uma coisa. Nesse sentido seria útil para sua compreensão adotar uma

abordagem similar a que pode ser empregada para compreender a gênese da valoração nos

atos morais? Esta questão pode ser explorada preliminarmente pelo cotejamento das

características de ambos os processos.

Tem-se, no que se descreveu acima, o que pode ser designado um procedimento

judicativo que se encontraria, como propõe Heemann, no “plano normativo”, ou seja, aquele

que regula a convivência em sociedade, que se expressa como imposição – “imperativos e

sanções” – incluindo manifestações com o trato social, o direito, a moral, aspectos da religião

(2001, p.12)

Ora, a constituição de patrimônios supõe um sujeito que julga, com base em um

conjunto de critérios que, embora vinculados a uma norma codificada, se assenta sobre um

conjunto de valores cuja subjetividade é evidente – beleza, notabilidade, monumentalidade –

e cuja utilização será sempre variável de sujeito para sujeito, aproximando-se, assim, do

campo da moralidade.

que temos”. Paisagem, então, para esse autor é sempre produto do homem de seu olhar e intervenção sobre anatureza, tratando-se de “um constructo da imaginação projetado” sobre os objetos naturais (1996).

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Por outro lado, a moral, do conjunto das esferas do plano normativo é a mais

abrangente, podendo “as condutas de outras esferas (jurídica, política, econômica, estética)”

ser “qualificadas do ponto de vista da moral” (HEEMANN, 2001, p.13), o que, de uma certa

forma lhe dá um caráter de generalidade neste campo. Esta abrangência se deve,

certamente, ao fato de que – aliás, como se verá – produto de um processo ao mesmo

tempo biológico e cultural, ela se referencia e é referência, reproduz e se reproduz na relação

com estas outras instâncias.

Evidentemente, deverá haver homogeneidade entre ambas as coisas, para que se

possa considerar o ato de constituir patrimônio a partir do ponto de vista utilizado para

compreender o ato moral. Isso implica em aceitar o isomorfismo 6 entre elas, ou seja, de que

suas partes e o padrão de relação entre elas apresentam, uma à uma, similaridade.

O ato moral, de uma perspectiva naturalística 7, como explica Heemann, implica uma

escolha baseada nas preferências do “sujeito que valora” com base num “sistema de

referências”, que prefere o mais valioso. Tal valoração é um ato que pode incluir muitos

valores a um só tempo – religiosos, éticos, estéticos. Surgindo, dessa relação entre o sujeito

e a coisa, “bens ou valores que não seriam propriedades inerentes às coisas, mas

predicados a elas atribuídos” (2001, p.14).

A constituição de patrimônios, por outro lado, é como afirma Fonseca, uma questão de

valor, pois trata-se de um conjunto de práticas e atores que “atribuem a determinados bens

valor enquanto patrimônio” estando a possibilidade de compreensão do “modo como são

6 Isomorfismo: “Termo empregado em lógica e matemática para indicar a relação entre relações homogêneasde dois ou mais termos, que consiste na correspondência de termo a termo entre os termos da relação”(ABBAGNANO, 2000 p.586), no caso por extensão do conceito.7 Naturalística, do ponto de vista do autor mencionado, em oposição a uma concepção de valor de tradiçãoclássica que os considera inerentes à natureza, ou existentes em um “reino de valores não construído e pré-existente ao homem” (2001, p.14). Também no sentido de um pensamento que “tem como ponto de partida ateoria evolucionária” (2001-A, p. 45), de uma concepção de natureza “de cunho naturalista e teleonômico, ouseja sem finalismo imanente”; cujas “leis são funcionais, fatuais e não denotam valores”; na qual os “conteúdos

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progressivamente construídos os patrimônios”, vinculada aos processos de atribuição de

valor (1997, p.29).

Aliás, esta mesma autora chama atenção para o fato de que o patrimônio é: coisa à

qual se relaciona valor. Valor este que é muitas vezes “naturalizado, sendo considerado

como sua propriedade intrínseca, acessível apenas ao olhar qualificado” (1997, p. 30).

Por outro lado, considerando o sujeito que valora tem-se, nos dois casos, pelo menos

num primeiro olhar, uma diferença substancial, pois o sujeito do ato moral tende a ser

pensado como um indivíduo e o do ato patrimonial um ator social 8.

No ato moral, o sujeito valora com base num processo que, embora cognitivo, “não é

apenas uma operação da racionalidade”, pois nele o componente emotivo ocupa o primeiro

plano, sendo, este, de fato, seguido de “lampejos de racionalidade”. Nestas circunstâncias,

este sujeito será um indivíduo cujas valorações e percepções – julgamentos morais – se

explicam também a partir de “estados emocionais” de “seus reflexos neurovegetativos e

respostas motoras associadas” (HEEMANN, 2001 p. 18).

procedem de vários campos que se ancoram no paradigma científico” e, por fim cujas “hipóteses eespeculações se alicerçam na teoria evolucionária sintética” (2001-A, p.85).8 No caso do patrimônio o sujeito que valora será um “ator coletivo” – ou “socialmente definido” – configurando-se como um “movimento social” no seu afã de se “apossar dos ‘valores’, das orientações culturais de umasociedade, opondo-se à ação de um adversário ao qual está ligado por relações de poder” (TOURAINE, 1994,p. 253).

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Desenvolvido a partir do que sugere HEEMANN (2001)

FIGURA 1 - ATO MORAL: 1ª CONCEPÇÃO

Nestas circunstâncias ter-se-ia o ato moral – produto do sentimento moral - como algo

situado entre o biológico e o cultural, na interseção entre a história natural da vida

(filogenético: escala de tempo geológico) e a história natural de uma vida (ontogenético:

período de um ciclo geracional) (HEEMANN, 2001, p. 24). Esta interpretação sugere o

diagrama acima.

Contudo, quando se considera a história da vida e sua relação com a gênese do

sentimento moral – o que está na base do ato moral – tem-se que esta se vincula a uma

percepção do processo de evolução da estrutura cerebral e da aquisição da possibilidade de

julgar no decorrer do processo de hominização 9.

9 Para Morin, “a evolução biológica e a evolução cultural são dois aspectos, dois pólos de desenvolvimentointer-relacionados e interferentes do fenômeno total da hominização”. Há uma fase inicial em que se desenvolveuma práxis que “devia conduzir a constituição de uma tecnologia, de um novo tipo de sociedade, de umembrião de cultura”, esta é seguida do “desenvolvimento da complexidade sócio cultural” que faz pressão nosentido da “juvenilização” e da “cerebralização”, as quais pressionam no sentido do desenvolvimento da“complexidade sócio cultural”, a sociedade então se comporta como “um ecossistema social organizador eorganizado, fazendo pressão selectiva e integrativa sobre os desenvolvimentos ontogenéticos e sobre asmutações genéticas” (1988, p. 87).

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Assim o sujeito que julga, julga a partir de um cérebro que concilia impulsos naturais

com imposições da vida em sociedade – o já dito plano normativo. Este cérebro, composto

de três partes que correspondem a três momentos que se referem à nossa evolução,

contém, na concepção de Mac Lean, como citado por Wright, um “cerne réptil (a sede de

nossos impulsos básicos), envolto por um cérebro ‘paleomamífero’ (que dotou nossos

antepassados, entre outras coisas, de afeição pela prole), por sua vez envolto por um

cérebro neomamífero” que “serve para raciocinar, justificar e dar expressão verbal às partes

proto-répteis e límbicas (paleomamíferas) de nosso cérebro (1996, p. 280).

Tem-se, então que a capacidade de julgar – de decidir entre o bem e o mal, entre o

certo e o errado – vincula-se a um processo evolutivo que remeteria à história natural do

planeta.

Nesse campo, aliás, há indicações que apontam para um imbricamento entre ética e

história natural de caráter mais profundo, Wright sugere que “teorias firmemente baseadas

na lógica e nos fatos” – as teorias do altruísmo recíproco e da seleção de parentesco -

colocam “simpatia, empatia, compaixão, consciência, culpa, remorso, o próprio senso de

justiça” vistos como “vestígios da história orgânica de determinado planeta” (1996, p. 287).

Mas esse cérebro, que já se apresenta triuno nos mamíferos superiores, como sugere

Morin também apoiado em Mac Lean, “tem como coroação a enorme massa neocortical do

sapiens “ (1988, p. 125), é aquele que no processo de hominização adquire os contornos

finais que lhe darão as características judicativas com que, hoje, se apresenta.

Esse processo de hominização que, como muito bem descreve Morin em seu O

Paradigma Perdido, envolve um longo caminho que se estende desde o bipedismo, à

oponência do polegar, passando pelo regime carnívoro e a caça, pela fabricação de

utensílios, pelo prolongamento da infância e juvenilização da espécie, pela organização

social complexa e diferenciada, para chegar na paleocultura e na páleo-linguagem, num

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processo que tem a cerebralização como ponto crucial. Essa “morfogênese hominizante”

equivale então a “dizer que aquilo que chamamos homem deve ser encarado como um

sistema genético, cérebro, sócio cultural” cujos constituintes são “a sociedade, a espécie e o

indivíduo”, termos que se referem mutuamente, não sendo possível, “pensar-se ou conceber-

se qualquer deles como o fim do outro” (MORIN, 1988, p. 88, 89.).

FIGURA 2 - O SUJEITO

Este é o sujeito – o homem – que só o é na sua condição triuna, ou seja na e como

produto da relação entre estes três aspectos, os quais não podem ser pensados

isoladamente, pois cada um deles constitui-se numa contribuição generativa e necessária

para a existência e reprodução da outra. Uma representação gráfica dessa situação pode ser

vista na figura acima.

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Este homem que, ainda segundo Morin, nasce sapiens atingido pelo problema da

morte, se fazendo concomitantemente sujeito em oposição a um objeto, se separando de seu

destino natural 10 (1988, p. 96), este, é o mesmo sujeito que valora, o sujeito do ato moral.

Com essa percepção do homem – espécie, sociedade, indivíduo – como um conjunto

indissociável de aspectos que não podem ser pensados separadamente, tem-se, então, uma

nova forma de pensar o ato moral, este, se produto do senso moral do homem, poderia ser

pensado como sistema resultante destes três termos.

Assim o ato moral incluiria a história da vida – da espécie, a filogênese - a história do

indivíduo – a ontogênese – e a história da sociedade em que este está inserido – a

sociogênese.

A compreensão do senso moral, e do ato que a ele se liga, resulta assim, ampliada,

permitindo a percepção da dimensão cultural e tornando mais presentes as relações com as

dimensões culturais, históricas e políticas que a ele se relacionam. Seria então possível

representar o ato moral como produto da interseção destes três aspectos, como sugere a

figura 3 a seguir.

10 Para ilustrar, e pelo estimulante vigor sintético, vale a pena a transcrição integral: “Assim, entre a visãoobjectiva e a visão subjectiva existe, pois, uma brecha, que a morte abre até a dilaceração, e que é preenchidapelos mitos, pelos ritos da sobrevivência que, finalmente, integram a morte. Portanto, com o sapiens nasce adualidade do sujeito e do objecto, laço inquebrável, ruptura intransponível, que, posteriormente, todas asreligiões e filosofias vão procurar, de mil maneiras, transpor ou aprofundar. O homem já dissocia efectivamenteo seu destino do destino natural, embora esteja legitimamente persuadido de que a sua sobrevivência obedeceàs leis naturais do desdobramento e da metamorfose.” (MORIN, 1988 p.96).

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FIGURA 3 – ATO MORAL 2a CONCEPÇÃO

Esta forma de compreender supera a dificuldade que a noção de sujeito contraposta a

noção de ator social 11, poderia trazer à intenção de considerar o ato de constituir patrimônios

por meio de um olhar semelhante ao utilizado para considerar o ato moral.

Nesse sentido pode-se afirmar, então, que como todos os seus critérios técnicos,

normas, convenções internacionais, o ato de constituição de patrimônios guarda uma

semelhança com aquele procedimento que, no cotidiano, nos leva a julgar os aspectos mais

triviais da vida.

11 Sujeito aliás, que nesses tempos, aproxima-se cada vez mais do indivíduo: “a noção de sujeito substitui tantoa idéia de cidadania, própria do nosso passado recente, quanto a de sanidade, própria das religiões desalvação, como o que dá sentido a vida. O sujeito não é mais exterior, não é mais a sociedade ideal. A utopiaera o culto da sociedade. Hoje, nosso ideal é o da libertação do sujeito pessoal dos constrangimentos impostospelo poder econômico e as novas tecnologias, pelas mudanças incessantes da vida profissional e do emprego”(TOURAINE, KHOSROKHAVAR, 2004 p.33).

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Uma afirmação dessa natureza pode parecer demérito para as práticas patrimoniais,

não é isso que se quer sugerir, ao contrário o que se tentou demonstrar foi a natureza

complexa, abrangente e, todavia, similar que envolve ambos os procedimentos, que são, a

um só tempo, individuais, coletivos e próprios do humano.

PARA COMPREENDER O PATRIMÔNIO NATURAL

Trata-se pois de compreender a constituição de patrimônios naturais como produto de

uma ação judicativa, um objeto complexo, pelo menos no que a complexidade significa de

oposição à simplificação, pois se tem algo que é uno, porém que surge do diverso e que só

pode ser compreendido através das relações entre estas partes.

Por ser um objeto complexo 12, pensá-lo e interpretá-lo requer a aceitação de alguns

atributos que caracterizam esse peculiar estatuto. Certamente, como indica Edgar Morin –

para quem a noção de sistema é requisito para abordar a complexidade - isso implica em

aceitar a necessidade de procurar compreender o que é complexo de um ponto de vista

relacional, considerando sua “relação não só com o meio, mas com outros sistemas, com o

tempo, com o observador-conceptor” (1977 p.138).

Para compreender este ato judicativo que transforma as coisas da natureza em

patrimônio, como indicado acima, inicia-se pela explicitação seus elementos componentes,

12 A discussão do que é complexidade, requer um espaço de reflexão bastante amplo, por hora, preferiu-se umaabordagem que enfatiza mais os requisitos para a consideração de um objeto, ou sistema, complexo. Sobre otema, todavia, Jean-Louis Le Moigne, propõe uma interessante discussão. Para este autor “a complexidadesurpreende pela irrealidade, ou mais do que isso pela invisibilidade de seu conteúdo [...] ao contrário dacomplicação, que se caracteriza facilmente por sua visibilidade”. Afirma também que, talvez, a complexidadenão tenha “realidade ontológica”, asseverando, contudo que o “artifício [...] da complexidade permitetransformar o ininteligível percebido em um potencialmente inteligível concebido”. Assim “será complexo o quecertamente não é totalmente previsível e cuja ocorrência, no entanto, é inteligível e, talvez, espacialmenteantecipável” (1999, p.50).

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pela indicação das fases pelas quais passa esse processo e, pela análise das inter-relações

entre essas partes nestas distintas fases.

No que se refere aos componentes, tem-se o sujeito – este que é a um só tempo

espécie, indivíduo e sociedade – um objeto valorado e um processo de constituição - um

ritual e um conjunto de requisitos -.

Estes componentes estabelecem um padrão de relações entre si, que caracterizam os

diversos momentos do processo de constituição. Heemann propõe para o ato moral um

conjunto de elementos e fases que caracteriza a sua estrutura, eles compreendem: a)

motivos; b) fins; c) decisão; d) meios; e) resultados (2001, p.20). Essas mesmas fases – que

configuram os momentos de análise/síntese - devidamente adequadas podem, ser levadas

em conta no estudo da constituição de patrimônios.

A primeira fase refere-se ao estudo da motivação, a atenção deve estar voltada para a

identificação do móvel da a ação, ou seja, o que põe o sujeito em movimento com o objetivo

de considerar a possibilidade de que determinado objeto venha a ser constituído em

patrimônio.

Depois se segue a investigação dos fins, a suposição é de que os fins implícitos não

coincidem necessariamente com a finalidade explicita do ato – que seria a de proteger para o

bem comum. Cabe nesse caso o reconhecimento dos diversos agentes, seus discursos e

padrões de organização. Suas práticas usuais de mobilização e seus instrumentos. Nesse

último caso surge a questão dos fins que, há que se considerar, estão ligados aos meios de

tal forma que talvez convenha considerá-los em um só bloco.

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Na etapa relativa à decisão serão estudados os mecanismos, utilizados para tanto, o

caráter público ou privado destes, os acordos estabelecidos entre os diversos agentes

envolvidos, a natureza da decisão final vis a vis as propostas originais.

Por fim devem ser considerados os resultados obtidos, as relações entre

conseqüências do ato, suas finalidades, declaradas ou não, e meios utilizados.

Há, pois, um conjunto de instâncias, que se relacionam a dados momentos analíticos,

nos quais estes objetos e suas relações podem ser analisados, o que permitiria conceber os

campos em que a descrição do ato em análise poderia se dar.

As inter-relações que podem ser consideradas, para os momentos analíticos

mencionados, encontram-se ilustradas na figura 4, estes campos de discussão conceitual

dizem, então, respeito à caracterização:

a) Dos componentes do sistema patrimônio (SP) envolvendo o sujeito que

valora (SV), o objeto valorado (OV), o processo de constituição (PC);

b) Das inter-relações (R1) entre os componentes deste mesmo sistema,

discutindo as interações possíveis entre estas partes qual sejam: SV/OV,

SV/PC, OV/PC;

c) Da relação (R2) entre o patrimônio constituído, o SP, isto quer dizer entre

suas partes componentes a cada momento, e o sistema cultural (SC) que o

contém;

d) Das dinâmicas internas ao sistema cultural que, embora não tenham origem

nas interações SP/SV, interferem na dinâmica do SP (R3);

e) Das relações entre o sistema cultural SC e o meio que o contém.

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FIGURA 4 – INTER-RELAÇÕES E CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO

Das diversas possibilidades de especulação que a sistemática acima propõe, pode-se,

para os efeitos deste trabalho, explorar mais detidamente uma delas, qual seja das relações

entre o sujeito que valora e o objeto valorado – no caso a natureza.

Estas relações podem ser pensadas de dois pontos de vista: a) das percepções –

resposta imediata - a respeito da natureza, b) das atitudes – que indicam ação e resposta e,

por fim, c) das interpretações – as explicações a posteriori a respeito da mesma.

O termo percepção 13 é adotado aqui conforme o ponto de vista de Tuan, isto é,

vinculado ao mecanismo de recepção, resposta e registro de estímulos externos,

13 Para Tuan percepção “é tanto a resposta dos sentidos aos estímulos externos, como a atividade proposital,na qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem à sombra e são

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envolvendo, concomitantemente aspectos culturais e orgânicos, porém, no seu sentido

estrito 14, com um caráter de instantâneidade – não havendo diferença temporal entre a

sensação e sua interpretação (1980).

Dialogando com Heemann e sua descrição do fenômeno moral pode-se dizer que a

percepção se assemelha à primeira das instâncias do julgamento moral, aquele que se

manifesta instantaneamente, que é interior, que envolve sentimentos, intuição e “lampejos de

racionalidade” (2001, p. 17).

Os aspectos biológicos determinam, como já comentado o ato perceptivo, quer no que

concerne à definição de padrões, derivados do aspecto comum dos órgãos perceptivos

característicos da espécie, quer no que se refere às características individuais, reflexo das

peculiaridades bioquímicas e fisiológicas de cada indivíduo (TUAN, 1980 p. 52).

A percepção, além de influências biológicas, pode ser diferente como decorrência do

gênero - da distinção do papel dos sexos em certas culturas –, da origem local ou não local

do observador, da natureza do objeto observado – montanhas, mares, desertos -, da

identidade cultural, da posição relativa na paisagem – centro ou periferia, vertical ou

horizontal -, para mencionar algumas das muitas possibilidades comentadas por Tuan em

sua já citada Topofilia.

Já as atitudes, são essencialmente culturais, indicam uma posição frente ao mundo,

são, também como entende Tuan, mais estáveis, resultam de uma seqüência de percepções,

bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a sobrevivência biológica e para propiciarsatisfações que estão enraizadas na cultura” (1980, p. 4). Sobre a importância dos aspectos não culturais omesmo autor lembra que “por mais diversas que sejam as nossas percepções do meio ambiente, comomembros de uma mesma espécie, estamos limitados a ver as coisas de uma certa maneira. Todos os sereshumanos compartilham percepções comuns, um mundo comum, em virtude de possuírem órgãos similares”(1980 p.6).

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que conformam uma experiência, implicando em valores e interesses mais definidos (1980 p.

5).

Percepções e atitudes têm, então, uma relação bem próxima, sendo que a primeira é

o elemento básico que determina a construção da segunda no correr da existência individual,

uma parcela das atitudes certamente estará vinculada àquela dimensão emotiva do

comportamento moral que como sugere Heemann encontra-se cicatrizada no substrato

neural (2001 p. 47 e seguintes).

Por outro, lado as interpretações – “reflexões do bom senso ‘refinado’ ”- encontram-se

mais próximo da racionalização, baseiam-se em abstrações, podem ou não refletir as

atitudes, e se apoiam em concepções ditas éticas (2001, p.17).

Estas interpretações se apresentam com um discurso sofisticado e por vezes com

características técnico-científicas, aparecem com freqüência no discurso patrimonial,

identificá-las pode ser um interessante instrumento para melhor compreender o ato de

constituição de patrimônios.

São, pois, discursos que traduzem uma concepção de natureza, para descrevê-los

pode ser bastante útil a forma proposta por Heemann (2001-A, p.85), que os separa em de

cunho materialista e teleonômico ou, de cunho metafísico, essencialista e teleológico.

Enfim, estas interpretações valorizantes da natureza - as noções do que é belo ou

bom, magnífico ou relevante - que se encontram na base da argumentação em prol da

constituição de patrimônios, referem-se a uma outra natureza da natureza cuja essência é

14 “Quando não há lapso de tempo entre a sensação e a sua interpretação [...] se pode falar em percepção nosentido estrito. Quando há lapso de tempo se podem formar conceitos; uma pessoa pode parar e interpretar osindícios perceptivos de maneiras diferentes, como um exercício de racionalidade” (TUAN, 1980, p. 70).

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apenas percebida pelo olhar do especialista iniciado 15, de um hermeneuta, portanto? Ou, ao

contrário, correspondem à leis, que se apóiam em fatos, com conteúdos originados dos

diversos campos da ciência, referenciadas na teoria evolucionária?

A noção de que há valor intrínseco à natureza, de que há na sua essência um

princípio ordenador que se aplica também ao homem, encontra-se no pensamento clássico

idealista. Nele a idéia da physis, essência última, é associada à noção de que na natureza há

virtude: pois ela, a natureza, se associa à razão – própria da natureza humana – em

oposição à paixão, contrária à razão, e portanto à natureza. Assim, o certo, estaria em viver

de acordo com a natureza, e, decorrentemente, a ética fundada. (HEEMANN, 2000).

Evidentemente esta forma de pensar sofisticou-se com o passar do tempo, adquirindo

contornos variados e se manifestando em discursos diversos, com graus muito variáveis de

complexidade e de aderência à vários campos da ciência.

Todavia sempre será possível identificar sua origem se levada em conta a “interdição

da lógica formal” a essa tentativa de deduzir do plano natural - aquilo que é – algo do plano

normativo – dever ser. Essa interdição é, como menciona Heemann, a falácia naturalista 16

proposta por David Hume em 1740. Pois ao inferir do é, não outro é mas um dever ser, tem-

se um silogismo inválido, uma vez que, mesmo que suas premissas sejam válidas, apresenta

conclusões que não decorrem das suposições enunciadas nas premissas, ou seja, as

conclusões extrapolam as condições das premissas (2000, p. 73).

15 Sobre o tema há referência à tendência usual de naturalização do valor que se dá ao bem patrimonial,principalmente entre os profissionais envolvidos na sua conservação, valor esse que, além de ser julgadointrínseco ao bem protegido, seria apenas acessível ao olhar do especialista (FONSECA, 1997 p.30).16 Heemann recorre, por exemplo, às premissas (a) A natureza é amor. (b) O homem é da natureza. Paraapontar a inferência válida: O homem é amoroso; em contraposição à inferência inválida: O homem deve amar.Esta última seria a inferência típica do pensamento que procura extrair a norma ética, um dever ser, “necessáriae logicamente da natureza” (2000 , p.72).

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Os discursos patrimoniais também, e com uma grande freqüência se apóiam numa

argumentação cuja força de persuasão emana do plano emocional. A esta forma de

argumentação Heemann chama de falácia informal. Ela toma como ponto de partida algumas

idéias com “grande força de convencimento”, natureza, ética, dignidade e “valores

desejáveis” como solidariedade, continuidade da espécie, responsabilidade com os

descendentes, e constrói uma ética pretensamente fundada. A questão que fica, não se

relaciona com a conveniência de aceitar este ponto de vista, mas da possibilidade de aceitá-

lo do ponto de vista naturalista como “fundamento da ética sob o argumento de que se trata

de uma derivação da natureza” (2000, p. 77).

Ainda discutindo os discursos éticos e sua relação com a natureza, Heemann

identifica uma outra forma, que designa falácia contranaturalista, que pode ser útil na

compreensão dos discursos que se articulam para justificar a constituição de patrimônios.

Esta refere-se às tentativas de “condicionar a justificativa dos princípios éticos e a garantia

dos direitos de igualdade política e social á verificabilidade dos fatos da natureza”,

principalmente no que se refere à “explicação dos comportamentos humanos”. Neste caso

deslocar-se-ia para o âmbito da natureza, e das ciências da natureza, aspectos que

deveriam ser discutidos nos campos do direito e da ideologia (2000, p. 78).

5 OLHANDO O PATRIMÔNIO NATURAL: A SERRA DO MAR E A FLORESTA

ATLÂNTICA

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Portadores de grande importância ambiental e forte referência à identidade a Serra do

Mar e a Mata Atlântica são patrimônio nacional – devem ser protegidos e conservados para o

futuro - por dispositivo constitucional (Brasil, 1988 p.147).

Já antes do advento da norma constitucional, estes dois objetos da natureza foram,

por várias vezes objeto de medidas de proteção, de natureza diversa: encontram-se

protegidos, em diversos segmentos, por praticamente todas as categorias de unidades de

conservação, foram tombados conjuntamente em quase todos os estados de ocorrência da

Serra do Mar, partes substanciais de seus remanescentes foram parcialmente inscritos como

reserva da biosfera e patrimônio da humanidade.

É sabido que eles não há uma vinculação necessária entre a Serra do Mar e a Mata

Atlântica, mas são nas encostas desta serra onde se encontram as áreas mais conservadas

daquilo que restou da floresta original. Esta associação, então, é imediata.

Sob o ponto de vista exclusivamente patrimonial, sem levar em conta as demais

iniciativas de proteção, construiu-se um amplo e diversificado discurso que visa sustentar a

importância destes dois objetos como patrimônio natural.

Esses argumentos podem ser analisados na sua condição de sistematizações de

pontos de vista morais a respeito da natureza, visando compreender as percepções e noções

de natureza neles veiculadas, a partir das considerações, a respeito, anteriormente

desenvolvidas.

Com base no discurso que se desenvolveu em torno do tombamento da Serra do Mar

pelo Estado do Paraná, procedeu-se um ensaio para verificar se neste se encontram as

noções de natureza e os padrões de argumentação identificados anteriormente.

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Para tanto se tomou como referência alguns documentos chave do processo de

tombamento – o conjunto de documentos e trâmites que compuseram o procedimento que

constituiu a Serra em patrimônio – estes se referem aos dois momentos mais importantes: a)

o da abertura do processo quando o estado manifesta à comunidade e aos proprietários sua

intenção de, cumpridos estudos e formalidades, tombar o objeto; e b) o da inscrição do bem

no Livro do Tombo I: Arqueológico, Iconográfico e Paisagístico.

Ambos os documentos apresentam referências à natureza que se baseiam ora em

apelos emotivos, ora em generalizações a respeito de prováveis processos de caráter físico

ou biológico, ora numa visão que humaniza processos naturais.

No Termo de Abertura do tombamento (PARANÁ 1987), são, por exemplo, freqüentes

as expressões, em que os processos de caráter físico e biológico são representados como

manifestação de intenção e vontade: florestas que protegem, que alimentam, animais que

são moradores da serra, matas que acolhem, mangues que asseguram a vida.

Este modo de argumentação, que pela identificação dos processos naturais aos

padrões de ação humana tendem humanizar a natureza, justamente em funções de caráter

materno – acolher, abrigar, assegurar a vida - caracterizam-se facilmente como apelos

emotivos.

Também são da mesma ordem, porém vinculados a um discurso de caráter identitário

(a identidade que se constrói na relação, mesmo que imaginada, com o outro), a referência

que se faz a Demétrio Fernando da Cruz e a sua observação, já em 1865, de que devido à

“devastação florestal, em período muito próximo, desaparecerão do litoral estas matas

virgens que fazem o orgulho da natureza do Brasil e a admiração do estrangeiro” (PARANÀ,

1987, p.15).

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Deste conjunto de assertivas, faz-se uma inferência generalizante a respeito da

dinâmica de toda uma extensa área – eram então de mais de 420.000 ha. - de caráter muito

diversificado, qual seja a de que se trata de um “sistema de interdependências delicado” que

deve ser objeto da “preocupação permanente do Estado”.

Tem-se portanto, uma argumentação em que a exigência – o dever – é inferido a

partir de um conjunto de idéias, de forte apelo emotivo, de validade indiscutível do ponto de

vista da conveniência para a sociedade, mas que se apóia numa noção natureza que,

embora incorpore elementos do discurso técnico científico, não se constitui como ciência,

aproximando-se em muito do que se definiu como falácia informal.

As referências à natureza no caso da inscrição no Livro do Tombo I Arqueológico,

Etnográfico e Paisagístico (PARANÁ, 1986 p. 17) são de outra ordem: como monumento,

como fonte de recursos, como portadora de vocações apenas identificáveis por especialistas,

como elemento que se perturbado representa risco para o homem.

A condição de monumento, atribuída à Serra do Mar nesse documento, decorre

parcialmente de um raciocínio de caráter tautológico, pois a mesma: “Configura paisagem

notável” por ser parte da “monumental” escarpa tropical. Essa condição também decorreria

de sua singularidade: seria “referência planetária” por ser a “mais importante” do “cinturão de

terras úmidas” do planeta (PARANÁ, 1986).

A argumentação que se vê na inscrição no Livro do Tombo, também se vincula a

ponto de vista que define a natureza como fonte de recursos, a serra nesse sentido:

“apresenta biomassa vegetal relativamente bem preservada”; é o “maior banco genético do

remanescente da natureza tropical atlântica”; abrange “inúmeras espécies de flora e fauna

ameaçadas de extinção” (1986).

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Este mesmo espaço, todavia não pode ser ocupado, pois, aos olhos do especialista:

“É um espaço ecológico que não admite manipulações antrópicas diretas ou indiretas” pois:

“não possui vocação agrária” não oferece condições para “sítios urbanizáveis” não pode

“servir como sítio industrial” (PARANÁ, 1986). A natureza tem vocações, portanto finalidades,

que são perceptíveis ao observador especializado. Trata-se de uma percepção do espaço de

caráter nitidamente cultural, pois certamente muitas civilizações se desenvolveram em

cadeias de montanhas mais íngremes e menos dotadas de recursos.

Também se encontra a idéia de que existe uma natureza intangível que se tocada pelo

homem dará origem à catástrofes pois trata-se de: “tecidos ecológicos e coberturas vegetais

intocáveis” que se submetidos a ações podem “desencadear movimentos de massa”

perigosos para as “instalações humanas situadas no piemonte baixadas e estuários”

(PARANÁ, 1986).

Aparece aí a noção de risco, porém na medida em que se tratam de 386.000 ha.,

certamente trata-se de uma generalização. Podendo ser considerada como um interessante

uso de um linguajar de caráter científico para recompor modernamente uma referência às

potencias míticas e destrutivas da natureza, configurando-se como um apelo emotivo.

Por fim, afirma-se: “Por estas razões” [...] “é que se coloca a necessidade de

preservação deste que é um dos mais significativos monumentos paisagísticos do Estado do

Paraná” (PARANÁ, 1986). Novamente, tem-se uma inferência de dever, no caso o dever de

proteger, apoiada num discurso que, como se viu, reúne argumentos de ordem diversa –

emotivos, técnico científicos – e com base numa noção de que a decisão do que é correto no

plano normativo é questão da ciência, uma mistura da falácia informal com a falácia

contranaturalista.

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