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Informativo 946-STF (14/08/2019) – Márcio André Lopes Cavalcante | 1 Informativo comentado: Informativo 946-STF Márcio André Lopes Cavalcante Processos excluídos deste informativo pelo fato de não terem sido ainda concluídos em virtude de pedidos de vista ou de adiamento. Serão comentados assim que chegarem ao fim: ADI 5359 MC/SC; HC 157007/SP. ÍNDICE DIREITO CONSTITUCIONAL COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS Lei estadual não pode proibir que as concessionárias de energia elétrica cobrem um valor do consumidor para a religação do serviço que foi suspenso por inadimplemento. MEDIDAS PROVISÓRIAS A CF/88 prevê expressamente que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada. DIREITO ADMINISTRATIVO FUNDAÇÕES A fundação instituída pelo Estado pode estar sujeita ao regime público ou privado, a depender do estatuto da fundação e das atividades por ela prestadas. FUNDAÇÕES / SERVIDORES PÚBLICOS A estabilidade especial do art. 19 do ADCT não se aplica para empregados das fundações públicas de direito privado (abrange apenas os servidores das pessoas jurídicas de direito público). ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE RECOLHIMENTO COMPULSÓRIO DE CRIANÇAS São constitucionais os dispositivos do ECA que proíbem o recolhimento compulsório de crianças e adolescentes, mesmo que estejam perambulando nas ruas. DIREITO PROCESSUAL PENAL EXECUÇÃO PENAL STF decide que Lula deve permanecer cumprindo pena na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. DIREITO INTERNACIONAL EXTRADIÇÃO Não se deve conceder a extradição se, na época do fato, a conduta imputada ao extraditando não era punida como crime no Brasil. Não se deve conceder a extradição se a conduta do extraditando de financiar grupo terrorista que pretendia tomar o poder caracteriza-se como crime político. Não se deve conceder a extradição se o país requerente vem enfrentando um quadro de instabilidade política.

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Márcio André Lopes Cavalcante Processos excluídos deste informativo pelo fato de não terem sido ainda concluídos em virtude de pedidos de vista ou de adiamento. Serão comentados assim que chegarem ao fim: ADI 5359 MC/SC; HC 157007/SP.

ÍNDICE DIREITO CONSTITUCIONAL

COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS Lei estadual não pode proibir que as concessionárias de energia elétrica cobrem um valor do consumidor para a

religação do serviço que foi suspenso por inadimplemento. MEDIDAS PROVISÓRIAS A CF/88 prevê expressamente que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que

tenha sido rejeitada.

DIREITO ADMINISTRATIVO

FUNDAÇÕES A fundação instituída pelo Estado pode estar sujeita ao regime público ou privado, a depender do estatuto da

fundação e das atividades por ela prestadas. FUNDAÇÕES / SERVIDORES PÚBLICOS A estabilidade especial do art. 19 do ADCT não se aplica para empregados das fundações públicas de direito privado

(abrange apenas os servidores das pessoas jurídicas de direito público).

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

RECOLHIMENTO COMPULSÓRIO DE CRIANÇAS São constitucionais os dispositivos do ECA que proíbem o recolhimento compulsório de crianças e adolescentes,

mesmo que estejam perambulando nas ruas.

DIREITO PROCESSUAL PENAL

EXECUÇÃO PENAL STF decide que Lula deve permanecer cumprindo pena na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba.

DIREITO INTERNACIONAL

EXTRADIÇÃO Não se deve conceder a extradição se, na época do fato, a conduta imputada ao extraditando não era punida como

crime no Brasil. Não se deve conceder a extradição se a conduta do extraditando de financiar grupo terrorista que pretendia tomar

o poder caracteriza-se como crime político. Não se deve conceder a extradição se o país requerente vem enfrentando um quadro de instabilidade política.

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DIREITO CONSTITUCIONAL

COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS Lei estadual não pode proibir que as concessionárias de energia elétrica cobrem um valor do

consumidor para a religação do serviço que havia sido suspenso por inadimplemento

Importante!!!

É inconstitucional lei estadual que proíbe que as empresas concessionárias cobrem “taxa” de religação no caso de corte de fornecimento de energia por atraso no pagamento.

Essa lei estadual invadiu a competência privativa da União para dispor sobre energia, violando, assim, o art. 22, IV, da CF/88. Além disso, também interferiu na prestação de um serviço público federal, considerando que o serviço de energia elétrica é de competência da União, nos termos do art. 21, XII, “b”, da CF/88.

Ex: concessionária havia “cortado” (suspendido) o serviço de energia elétrica em razão de inadimplemento; o consumidor regularizou a situação, quitando os débitos; a concessionária pode exigir do cliente o pagamento de uma tarifa para efetuar o religamento do serviço; lei estadual não pode proibir que a concessionária cobre esse valor.

STF. Plenário. ADI 5610/BA, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 8/8/2019 (Info 946).

Lei estadual proibindo cobrança por religação de energia elétrica A Bahia editou a Lei estadual nº 13.578/2016, proibindo a cobrança de taxa de religação de energia elétrica em caso de corte de fornecimento por falta de pagamento. Veja a redação:

Art. 1º Fica proibida a cobrança, por parte das empresas concessionárias de fornecimento de energia elétrica do Estado da Bahia, da taxa de religação no caso de corte de fornecimento de energia por atraso no pagamento da fatura relativa ao fornecimento de energia elétrica. Art. 2º No caso de corte de fornecimento, por atraso no pagamento do débito que originou o corte, a concessionária tem que, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, restabelecer o fornecimento de energia elétrica sem qualquer ônus ao consumidor.

Essa lei foi impugnada no STF mediante ADI, tendo o Estado da Bahia alegado que se trata de norma voltada à defesa do consumidor, sendo, portanto, de competência concorrente, nos termos do art. 24, V, da CF/88. A referida lei é constitucional? NÃO.

É inconstitucional lei estadual que proíbe que as empresas concessionárias cobrem “taxa” de religação no caso de corte de fornecimento de energia por atraso no pagamento. STF. Plenário. ADI 5610/BA, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 8/8/2019 (Info 946).

Essa lei estadual invadiu a competência privativa da União para dispor sobre energia, violando, assim, o art. 22, IV, da CF/88:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

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Além disso, essa lei estadual também interferiu na prestação de um serviço público federal, considerando que o serviço de energia elétrica é de competência da União, nos termos do art. 21, XII, “b”, da CF/88:

Art. 21. Compete à União: (...) XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...) b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

A lei estadual, ao proibir a cobrança de um valor para a religação do serviço, contrariou as normas técnicas editadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) para o setor. Direito do consumidor O direito do consumidor, à mercê de abarcar competência concorrente dos Estados-membros, não pode conduzir à frustração da teleologia das normas que estabelecem as competências legislativa e administrativa privativas da União. Em outras palavras, não se pode invocar a competência concorrente para legislar sobre direito do consumidor como forma de burlar ou contrariar as competências legislativa e administrativa privativas da União. Os prazos e valores do fornecimento de energia elétrica estão normatizados em legislação própria e se submetem à homologação da ANEEL. Portanto, não há espaço para atuação do legislador estadual com o pretexto de conferir maior proteção ao consumidor. Não confundir Vale a pena relembrar outro julgado sobre competência legislativa e energia elétrica para você não confundir no momento da prova:

É constitucional lei estadual que proíbe que as empresas concessionárias façam o corte do fornecimento de água e luz por falta de pagamento, em determinados dias. Ex: lei do Estado do Paraná proíbe concessionárias de serviços públicos de água e luz de cortarem o fornecimento residencial de seus serviços por falta de pagamento de contas às sextas-feiras, sábados, domingos, feriados e no último dia útil anterior a feriado. Também estabelece que o consumidor que tiver suspenso o fornecimento nesses dias passa a ter o direito de acionar juridicamente a concessionária por perdas e danos, além de ficar desobrigado do pagamento do débito que originou o corte. STF. Plenário. ADI 5961/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, red. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgado em 19/12/2018 (Info 928).

MEDIDAS PROVISÓRIAS A CF/88 prevê expressamente que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa,

de medida provisória que tenha sido rejeitada

O STF declarou inconstitucional dispositivo da MP 886/2019, que transferia para o Ministério da Agricultura a competência para realizar a demarcação de terras indígenas. Essa disposição foi declarada inconstitucional porque o Congresso Nacional já havia rejeitado uma outra proposta, com esse mesmo teor, prevista em outra medida provisória (MP 870), editada no mesmo ano/sessão legislativa (2019).

Assim, o STF entendeu que houve a reedição, na mesma sessão legislativa, de proposta que já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional, o que violou o § 10 do art. 62 da CF/88:

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§ 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32/2001)

Nos termos expressos da Constituição Federal, é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada.

STF. Plenário. ADI 6062 MC-Ref/DF, ADI 6172 MC-Ref/DF, ADI 6173 MC-Ref/DF, ADI 6174 MC-Ref/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 1º/8/2019 (Info 946).

A situação concreta foi a seguinte: O Presidente da República Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019. Essa MP tratou sobre a competência de diversos órgãos e entidades da administração pública federal. Um dos temas disciplinados era a competência para demarcação das terras indígenas. O art. 21, § 2º da MP 870/2019 transferia da FUNAI para o Ministério da Agricultura a competência para demarcação das terras indígenas. Essa MP foi parcialmente aprovada pelo Congresso Nacional e se tornou a Lei nº 13.844/2019, publicada no dia 18/06/2019. Um dos pontos rejeitados pelo Parlamento foi a transferência da competência da demarcação das terras indígenas para o Ministério da Agricultura. O Congresso Nacional rejeitou esse dispositivo que, portanto, não virou lei. Assim que a Lei nº 13.844/2019 foi publicada, o Presidente da República editou uma nova medida provisória, a MP 886/2019, que teve como objetivo alterar diversos dispositivos da recém-publicada Lei nº 13.844/2019. Até aí, tudo bem. O problema foi que essa MP 886/2019 trouxe novamente um dispositivo transferindo para o Ministério da Agricultura a competência para a demarcação das terras indígenas. Recapitulando: • MP 870/2019: previa, dentre outros assuntos, a transferência para o Ministério da Agricultura da competência para a demarcação das terras indígenas. • Congresso Nacional rejeitou esse dispositivo da MP 870/2019. • No mesmo ano, o Presidente editou a MP 886/2019 prevendo, novamente, a transferência para o Ministério da Agricultura da competência para a demarcação das terras indígenas. ADI Antes mesmo que a MP 886/2019 fosse analisada pelo Congresso Nacional, alguns partidos políticos ajuizaram ADI no STF afirmando que esse dispositivo da MP que transfere a competência é inconstitucional, por violar o art. 62, § 10, da CF/88. O STF, ao apreciar o pedido de medida cautelar, concordou com os autores da ADI? A MP 886/2019, neste ponto, é inconstitucional? SIM. A CF/88 prevê, expressamente, que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada:

Art. 62 (...) § 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32/2001)

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Pela lógica da separação de Poderes, ao se admitir, diante da rejeição do Congresso, a possibilidade de edição de nova MP com a mesma matéria anteriormente rejeitada, haveria uma sucessão infindável de atos normativos. Além disso, a última palavra, no momento de conversão de projeto de lei em lei, é do Congresso Nacional. O Presidente da República tem apenas o poder de veto. Seria possível, em tese, o Presidente “tentar de novo” em 2020 Interpretando o art. 62, § 10, a contrario sensu, é possível a reedição, em outra sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. Logo, o Presidente da República poderia ter editado MP prevendo a transferência dessa competência para o Ministério da Agricultura, mas desde que não fosse em 2019. Se fosse em 2020, por exemplo, não teria, em princípio, vedação. Não haveria violação ao art. 62, § 10, da CF/88. Sessão legislativa Quando o § 10 do art. 62 fala em “sessão legislativa”, está se referindo à sessão legislativa ordinária. Sessão legislativa é o período anual de trabalho ordinário dos parlamentares no Congresso Nacional. Inicia-se em 02 de fevereiro, é interrompido em 17 de julho para o recesso do meio do ano e recomeça em 1º de agosto, indo até 22 de dezembro. Desse modo, a sessão legislativa ordinária vai de 02 de fevereiro até 22 de dezembro, com uma pausa (intervalo) entre 18 de julho até 31 de julho. Obs: fala-se em sessão legislativa ordinária porque é possível a convocação dos parlamentares para deliberações extraordinárias. É a chamada convocação extraordinária, prevista no art. 57, § 7º:

Art. 57 (...) § 7º Na sessão legislativa extraordinária, o Congresso Nacional somente deliberará sobre a matéria para a qual foi convocado, ressalvada a hipótese do § 8º deste artigo, vedado o pagamento de parcela indenizatória, em razão da convocação.

Em suma:

O STF declarou inconstitucional dispositivo da MP 886/2019, que transferia para o Ministério da Agricultura a competência para realizar a demarcação de terras indígenas. Essa disposição foi declarada inconstitucional porque o Congresso Nacional já havia rejeitado uma outra proposta, com esse mesmo teor, prevista em outra medida provisória (MP 870), editada no mesmo ano/sessão legislativa (2019). Assim, o STF entendeu que houve a reedição, na mesma sessão legislativa, de proposta que já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional, o que violou o § 10 do art. 62 da CF/88: § 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32/2001) Nos termos expressos da Constituição Federal, é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada. STF. Plenário. ADI 6062 MC-Ref/DF, ADI 6172 MC-Ref/DF, ADI 6173 MC-Ref/DF, ADI 6174 MC-Ref/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 1º/8/2019 (Info 946).

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DIREITO ADMINISTRATIVO

FUNDAÇÕES A fundação instituída pelo Estado pode estar sujeita ao regime público ou privado,

a depender do estatuto da fundação e das atividades por ela prestadas

Importante!!!

A qualificação de uma fundação instituída pelo Estado como sujeita ao regime público ou privado depende:

i) do estatuto de sua criação ou autorização e

ii) das atividades por ela prestadas.

As atividades de conteúdo econômico e as passíveis de delegação, quando definidas como objetos de dada fundação, ainda que essa seja instituída ou mantida pelo poder público, podem se submeter ao regime jurídico de direito privado.

STF. Plenário. RE 716378/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 1º e 7/8/2019 (repercussão geral) (Info 946).

O que é uma fundação? Em termos gerais, fundação é um patrimônio afetado (destinado) à realização de um fim, possuindo, por essa razão, personalidade jurídica própria distinta de seu instituidor. Desse modo, o instituidor da fundação separa (destaca) um determinado patrimônio (dinheiro, imóveis, créditos etc.) declarando que esses bens serão utilizados para a realização de um objetivo específico. Depois de instituída, a fundação ganha personalidade própria (“vida própria”), sendo, portanto, uma pessoa jurídica distinta da pessoa (física ou jurídica) que a criou. A fundação é um instituto disciplinado originalmente pelo Direito Civil. Isso porque as primeiras fundações foram criadas por particulares. Ocorre que, posteriormente, o Poder Público passou a também instituir fundações, razão pela qual esse tema também é estudado em Direito Administrativo. Gustavo Scatolino e João Trindade explicam muito bem esse tema:

“Originalmente, ao final do século XIX, as fundações foram concebidas como entidades (pessoas jurídicas), para que pessoas físicas ou jurídicas pudessem destinar parte de seus recursos a um objetivo de caráter social, até mesmo para o patrimônio pessoal não se misturar com o patrimônio destinado à execução de atividades sociais. Normalmente, a pessoa destinava parte do seu capital a essa finalidade e constituía uma fundação. O termo fundação origina-se de “fundos” como sinônimo de recursos financeiros ou patrimoniais. Desde então, a fundação veio a ser entendida como um conjunto de recursos destinados a uma finalidade social, a quem a lei atribuía personalidade jurídica. Com isso, surgiram as fundações privadas, criadas por testamentos, quando o instituidor pretendia instituir a fundação após sua morte; ou por escritura pública, quando o instituidor pretendia instituir a fundação ainda em vida. Também surgiram as fundações criadas por pessoas jurídicas, que, diferentemente das pessoas físicas, sempre instituem fundações por meio de escritura pública. Entre as fundações privadas, podemos citar como exemplos: Fundação Roberto Marinho, Fundação Bradesco, Fundação Perseu Abramo etc. Tais fundações existem e continuam sendo criadas; todavia, não fazem parte de nosso estudo, pois, sendo instituídas e mantidas por pessoas privadas (físicas ou jurídicas) não integram a Administração Pública Indireta. Essas entidades são disciplinadas pelo Código Civil.

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Ocorre que o Estado passou a criar fundações, isto é, destinar recursos públicos para fins sociais, criando uma pessoa jurídica para cal fim. Logo surgiu a dúvida sobre se tais pessoas — as fundações criadas e mantidas pelo Estado - eram de direito público ou privado.” (Manual Didático de Direito Administrativo. 6ª ed., Salvador: Juspodivm, 2018, p. 175-176).

Como podemos conceituar as fundações públicas (fundações instituídas pelo Poder Público)? - Fundação pública é a pessoa jurídica de direito público ou privado - cuja criação foi autorizada por lei - sendo composta por um patrimônio - que foi reservado pelo instituidor para a realização de uma finalidade específica de interesse social, - como, por exemplo, atividades educacionais, culturais, de pesquisas científicas, de assistência social etc. Qual é o regime jurídico (regramento) aplicável às fundações instituídas pelo Poder Público? Elas estão sujeitas ao regime jurídico de direito público ou de direito privado? Depende. A fundação instituída pelo Estado pode estar sujeita ao regime público ou privado, a depender do estatuto da fundação e das atividades por ela prestadas. O STF definiu a seguinte tese:

A qualificação de uma fundação instituída pelo Estado como sujeita ao regime público ou privado depende: i) do estatuto de sua criação ou autorização e ii) das atividades por ela prestadas. As atividades de conteúdo econômico e as passíveis de delegação, quando definidas como objetos de dada fundação, ainda que essa seja instituída ou mantida pelo poder público, podem se submeter ao regime jurídico de direito privado. STF. Plenário. RE 716378/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 1º e 7/8/2019 (repercussão geral) (Info 946).

Assim, podemos identificar duas espécies de fundação pública (fundação instituída pelo Estado):

Fundação pública de direito PÚBLICO Fundação pública de direito PRIVADO

Estão sujeitas ao regime público. Estão sujeitas ao regime privado.

São criadas por lei específica (são uma espécie de autarquia, por isso também chamadas de “fundações autárquicas”).

Deve ser editada uma lei específica autorizando que o Poder Público crie a fundação. Em seguida, será necessário fazer a inscrição do estatuto dessa fundação no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, quando, então, ela adquire personalidade jurídica.

FUNDAÇÕES / SERVIDORES PÚBLICOS A estabilidade especial do art. 19 do ADCT não se aplica para empregados das fundações públicas de

direito privado (abrange apenas os servidores das pessoas jurídicas de direito público)

Importante!!!

A estabilidade especial do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) não se estende aos empregados das fundações públicas de direito privado, aplicando-se tão somente aos servidores das pessoas jurídicas de direito público.

O termo “fundações públicas”, utilizado pelo art. 19 do ADCT, deve ser compreendido como fundações autárquicas, sujeitas ao regime jurídico de direito público.

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Ex: empregados da Fundação Padre Anchieta não gozam dessa estabilidade do art. 19 do ADCT em razão de se tratar de uma fundação pública de direito privado.

STF. Plenário. RE 716378/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 1º e 7/8/2019 (repercussão geral) (Info 946).

Art. 19 do ADCT da CF/88 O ADCT da CF/88 previu que os servidores públicos que estavam em exercício há pelo menos 5 anos quando a Constituição Federal foi promulgada deveriam ser considerados estáveis, mesmo que não tivessem sido admitidos por meio de concurso público. Desse modo, quem ingressou no serviço público, sem concurso, até 05/10/1983 (5 anos antes da CF/88) e assim permaneceu, de forma continuada, tornou-se estável com a edição da CF/88. Trata-se, contudo, de regra excepcional e que somente vigorou para esses casos. Veja a redação do dispositivo:

Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público. (...) § 2º O disposto neste artigo não se aplica aos ocupantes de cargos, funções e empregos de confiança ou em comissão, nem aos que a lei declare de livre exoneração, cujo tempo de serviço não será computado para os fins do "caput" deste artigo, exceto se se tratar de servidor. § 3º O disposto neste artigo não se aplica aos professores de nível superior, nos termos da lei.

A estabilidade do art. 19 do ADCT é aplicável aos empregados das fundações públicas? Fundações públicas de direito público: SIM. Fundações públicas de direito privado: NÃO. A qualificação de uma fundação instituída pelo Estado como sujeita ao regime público ou privado depende: i) do estatuto de sua criação ou autorização e ii) das atividades por ela prestadas. Assim, podemos identificar duas espécies de fundação pública (fundação instituída pelo Estado):

Fundação pública de direito PÚBLICO Fundação pública de direito PRIVADO

Estão sujeitas ao regime público. Estão sujeitas ao regime privado.

São criadas por lei específica (são uma espécie de autarquia).

Deve ser editada uma lei específica autorizando que o Poder Público crie a fundação. Em seguida, será necessário fazer a inscrição do estatuto dessa fundação no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, quando, então, ela adquire personalidade jurídica.

Seus empregados gozam da estabilidade prevista no art. 19 do ADCT.

Seus empregados NÃO gozam da estabilidade prevista no art. 19 do ADCT.

O STF fixou a seguinte tese sobre o tema:

A estabilidade especial do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) não se estende aos empregados das fundações públicas de direito privado, aplicando-se tão somente aos servidores das pessoas jurídicas de direito público. STF. Plenário. RE 716378/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 1º e 7/8/2019 (repercussão geral) (Info 946).

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Caso concreto apreciado pelo STF: José foi contratado, em 1981, para trabalhar na Fundação Padre Anchieta – Centro Paulista de Rádio e TV Educativas (FPA). A Padre Anchieta é uma fundação instituída em 1967 pelo Estado de São Paulo para realizar atividades de radiodifusão educativa e cultural (é ela que mantém a TV Cultura). Em 1995, José se aposentou, mas continuou trabalhando, de forma ininterrupta, na Fundação Padre Anchieta. Assim, a aposentadoria não extinguiu o vínculo empregatício de José com a Fundação. Em 2005, José foi despedido, sem justa causa. Ação de reintegração Logo em seguida, José ajuizou, na Justiça do Trabalho, ação de reintegração contra a Fundação. O autor alegou que ele preencheu os requisitos do art. 19 do ADCT e, portanto, gozava de estabilidade. Logo, não poderia ter sido demitido sem justa causa. Pediu a reintegração ao emprego. O pedido de José foi acolhido pelo STF? NÃO. Aposentadoria espontânea não extingue, por si só, o vínculo empregatício Inicialmente, deve-se ressaltar um ponto interessante: A aposentadoria espontânea somente dá causa à extinção do contrato de trabalho se ocorrer o encerramento da relação empregatícia. Assim, mesmo tendo se aposentado, como José continuou trabalhando, o vínculo com a Fundação não foi extinto. O STF possui diversos julgados nesse sentido:

A aposentadoria espontânea não extingue, por si só, o contrato de trabalho. Havendo continuidade do trabalho mesmo após a aposentadoria voluntária, não há que falar em ruptura do vínculo empregatício. STF. 1ª Turma. ARE 931326 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 28/10/2016.

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI 1.770/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, e da ADI 1.721/DF, Rel. Min. Ayres Britto, declarou inconstitucionais o § 1º e o § 2º do art. 453 da CLT, sob o fundamento de que a mera concessão da aposentadoria voluntária ao trabalhador não tem por efeito extinguir, instantânea e automaticamente, o seu vínculo de emprego. A contrario sensu, pode-se afirmar, então, que é permitido ao empregado público requerer a aposentadoria voluntária no Regime Geral de Previdenciária Social e continuar trabalhando e, consequentemente, recebendo a respectiva remuneração. Isso porque em tais situações não há acumulação vedada pela Constituição Federal. STF. Plenário. Rcl 9762 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 16/05/2013.

Fundação Padre Anchieta (FPA) é uma fundação pública de direito privado A FPA sujeita-se ao regime de direito privado. Assim, o seu regime jurídico se assemelha mais ao das empresas públicas e das sociedades de economia mista do que ao das autarquias. Justamente por isso, a lei estadual autorizou a sua instituição e definiu que seu regime de pessoal seria o celetista. FPA não exerce atividade estatal típica A Fundação Padre Anchieta tem como finalidade institucional a exploração de atividades de rádio e televisão com objetivos educacionais e culturais. Percebe-se, assim, que ela não exerce atividade estatal típica. Tanto no atual regime constitucional quanto no anterior, a exploração dos serviços de telecomunicação pelo Estado pode se dar diretamente ou por meio de concessão pública.

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Vale ressaltar, no entanto, que, apesar de ser possível que o Poder Público preste diretamente serviços de telecomunicação, isso não se caracteriza como serviço público próprio, até porque, apesar da alta relevância social, não implica exercício de poder de polícia, tendente à limitação das liberdades dos cidadãos. Logo, é perfeitamente possível a instituição de uma fundação de natureza privada (como é o caso da Fundação Padre Anchieta) para a exploração desses serviços. Isso porque não se está transferindo para uma pessoa jurídica de direito privado o exercício de atividades típicas do Estado. Art. 19 do ADCT não se aplica para empregados de pessoas jurídicas de direito privado A estabilidade do art. 19 do ADCT possui abrangência limitada aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas. Logo, esse dispositivo não abrange: • empregados de fundações públicas de direito privado; • empregados de empresas públicas; e • empregados de sociedades de economia mista. A estabilidade excepcional do art. 19 do ADCT não se harmoniza com os direitos e deveres previstos na legislação trabalhista, notadamente o regime de proteção definido pelo FGTS, consagrado no art. 7º, III, da CF/88. Assim, o art. 19 do ADCT só se aplica aos servidores de pessoas jurídicas de direito público. Fundações públicas do art. 19 do ADCT = fundações públicas de direito público Para o STF, o termo “fundações públicas”, utilizado pelo art. 19 do ADCT, deve ser compreendido como fundações autárquicas, sujeitas ao regime jurídico de direito público. O preceito não incide em relação aos empregados das fundações públicas de direito privado. Como o autor não tinha direito à estabilidade do art. 19 do ADCT, era perfeitamente possível sim a sua demissão sem justa causa.

ECA

RECOLHIMENTO COMPULSÓRIO DE CRIANÇAS São constitucionais os dispositivos do ECA que proíbem o recolhimento compulsório de crianças

e adolescentes, mesmo que estejam perambulando nas ruas

São constitucionais o art. 16, I, o art. 105, o art. 122, II e III, o art. 136, I, o art. 138 e o art. 230 do ECA.

Tais dispositivos estão de acordo com o art. 5º, caput e incisos XXXV, LIV, LXI e com o art. 227 da CF/88.

Além disso, são compatíveis com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a Convenção sobre os Direitos da Criança, as Regras de Pequim para a Administração da Justiça de Menores e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

STF. Plenário. ADI 3446/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 7 e 8/8/2019 (Info 946).

A situação concreta foi a seguinte: O Partido Social Liberal (PSL) ajuizou ADI no STF contra os arts. 16, I; 105; 122, II e III; 136, I; 138; e 230 do ECA.

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O pedido do autor era para que fosse feita uma interpretação conforme desses artigos e que o STF declarasse que é possível a apreensão de crianças e adolescentes para averiguação, ou por motivo de perambulação, desde que determinada por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária. Em outras palavras, o partido queria que o STF dissesse que o juiz pode autorizar que os agentes de segurança façam a apreensão de crianças e adolescentes que estejam perambulando nas ruas. Veja os dispositivos do ECA que foram objeto da ADI:

Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;

Art. 105. Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101.

Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando: (...) II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.

Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar: I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII;

Art. 138. Aplica-se ao Conselho Tutelar a regra de competência constante do art. 147.

Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente: Pena - detenção de seis meses a dois anos. Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais.

O STF acolheu o pedido do autor? NÃO. O STF julgou improcedente o pedido formulado na ação, ou seja, não aceitou dar a interpretação que era requerida pelo partido político. Constituição Federal veda a interpretação pretendida pelo autor da ADI As normas impugnadas estão de acordo e devem ser analisadas à luz do que preveem os arts. 5º, caput e incisos XXXV, LIV, LXI, e 227 da CF/88:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (...) LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (...) LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

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Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Convenções internacionais Além disso, essas normas do ECA possuem íntima ligação com regras • da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH); • da Convenção sobre os Direitos da Criança; • das Regras de Pequim para a Administração da Justiça de Menores e • da Convenção Americana de Direitos Humanos. Liberdade de locomoção e doutrina da proteção integral O art. 16, I, do ECA consagra a liberdade de locomoção da criança e do adolescente, “ressalvadas as restrições legais”, e está de acordo com a doutrina da proteção integral positivada no art. 227 da CF/88, que assegura o direito à dignidade, ao respeito e à liberdade das pessoas em desenvolvimento, proibindo toda e qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. Dessa forma, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade no direito de liberdade – de ir e vir – previsto no art. 16, I, da Lei nº 8.069/90. Vale ressaltar, inclusive, que esse direito de ir e vir constitui cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, IV, da CF/88, e não pode nem sequer ser suprimido ou indevidamente restringido mediante proposta de emenda constitucional. Ademais, conforme já dito, o art. 16, I, do ECA está também em consonância com vários diplomas internacionais, dentre eles: • o direito à liberdade e a proibição à discriminação, previstos nos arts. 1º e 2º da DUDH; • a proibição contra interferências ilegítimas e arbitrárias na vida particular das crianças, prevista no art. 16 da Convenção sobre Menores da ONU; • a norma de proteção integral estabelecida no art. 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos; e • as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores. Ao contrário do que defendido pelos autores da ação, a exclusão do art. 16, I, do ECA do ordenamento jurídico poderia acarretar violações aos direitos humanos e fundamentais das crianças e dos adolescentes, agravando a situação de extrema privação de direitos a que já são submetidos, em especial para aqueles que vivem em condição de rua. Não se deve retomar a “doutrina menorista” As privações sofridas e a condição de rua desses menores não podem ser corrigidas com novas restrições a direitos e o restabelecimento da doutrina menorista que encarava essas pessoas enquanto meros objetos da intervenção estatal. Liberdade das crianças e adolescentes não é absoluta É certo que a liberdade das crianças e adolescentes não é absoluta, admitindo restrições legalmente estabelecidas e compatíveis com suas condições de pessoas em desenvolvimento, conforme a parte final do art. 16, I, do ECA. Nesse sentido, a capacidade de exercício de direitos pode ser limitada, em razão da imaturidade. No entanto, o pedido formulado na ação buscava eliminar completamente o direito de liberdade dos menores, o núcleo essencial, indo além dos limites imanentes ou “limites dos limites” desse direito

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fundamental, restabelecendo a já extinta “prisão para averiguações”, que viola a norma do art. 5º, LXI, da CF/88. Não declaração de inconstitucionalidade do crime do art. 230 do ECA Também foi rejeitado o pedido para declaração de inconstitucionalidade do art. 230 do ECA. Segundo o STF, isso representaria verdadeiro cheque em branco para que detenções arbitrárias, restrições indevidas à liberdade dos menores e violências de todo tipo pudessem ser livremente praticadas, o que não pode ser admitido. Aliás, o crime em questão é sancionado com pena de detenção de seis meses a dois anos, tratando-se, dessa forma, de infração penal de menor potencial ofensivo. Portanto, o tipo penal se aproxima mais da proibição de proteção deficiente que da inconstitucionalidade por excesso de criminalização. Ademais, a existência da referida norma não impede a apreensão em flagrante de menores pela prática de atos análogos a crimes. Constitucionalidade dos arts. 105, 136 e 138 do ECA Afastou-se também a alegada inconstitucionalidade dos arts. 105, 136 e 138 do ECA. Tais dispositivos preveem que a criança que pratica ato infracional não recebe medida socioeducativa, mas apenas medidas protetivas. O tratamento adequado para a criança infratora é um desafio para a sociedade. A decisão do legislador de não aplicar medidas mais severas para a criança infratora está em harmonia com a percepção de que a criança é um ser em desenvolvimento que precisa, acima de tudo, de proteção e educação, ou seja, trata-se de uma distinção compatível com a condição de maior vulnerabilidade e de pessoa em desenvolvimento, quando comparada a adolescentes e pessoas adultas. O legislador dispõe de considerável margem de discricionariedade para definir o tratamento adequado à criança em situação de risco criada por seu próprio comportamento. A opção pela exclusividade das medidas protetivas não é desproporcional; ao contrário, alinha-se com as normas constitucionais e internacionais. A atuação do conselho tutelar nesses casos de atos infracionais praticados por crianças não representa qualquer ofensa à Constituição nem viola a garantia da inafastabilidade da jurisdição. Nesse sentido, cumpre ressaltar que o conselho tutelar é um colegiado de leigos, assim como o tribunal do júri, previsto no inciso XXXVIII do art. 5º da CF/88. Trata-se de órgão que permite a participação direta da sociedade na implementação das políticas públicas definidas no art. 227 da CF/88, voltadas para a promoção e proteção da infância, em consonância com as mais atuais teorias de justiça, democracia e participação popular direta. A atuação do conselho tutelar não exclui a apreciação de eventuais demandas ou lides pelo Poder Judiciário, inexistindo, portanto, a alegada ofensa ao art. 5º, XXXV, da CF/88. Constitucionalidade do art. 122, II e III, do ECA O autor afirmava que o legislador violou a proporcionalidade ao prever no art. 122, II e III, do ECA, hipóteses muito restritas de internação. O STF afastou a apontada inconstitucionalidade. O espaço de conformação do legislador é amplo. Existe, assim, uma margem larga de discricionariedade conferida ao legislador para estabelecer as medidas aplicáveis ao adolescente infrator. As infrações violentas podem, desde logo, corresponder à internação (inciso I). O objetivo de prevenção é especialmente resguardado nos casos em que a integridade física das vítimas é posta em risco. Fora isso, a lei evita ao máximo conferir ao magistrado o poder de aplicar a internação. Tem-se ,aí, uma opção perfeitamente proporcional do legislador, em razão do caráter estigmatizante e traumatizante da internação de uma pessoa em desenvolvimento. Isso sem falar da precária situação das entidades de acolhida.

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A referida opção legislativa encontra-se de acordo com as normas constitucionais e internacionais que impõem a utilização das medidas de internação como último recurso, privilegiando os princípios da excepcionalidade, brevidade e proporcionalidade das medidas restritivas da liberdade. Em suma:

São constitucionais o art. 16, I, o art. 105, o art. 122, II e III, o art. 136, I, o art. 138 e o art. 230 do ECA. Tais dispositivos estão de acordo com o art. 5º, caput e incisos XXXV, LIV, LXI e com o art. 227 da CF/88. Além disso, são compatíveis com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a Convenção sobre os Direitos da Criança, as Regras de Pequim para a Administração da Justiça de Menores e a Convenção Americana de Direitos Humanos. STF. Plenário. ADI 3446/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 7 e 8/8/2019 (Info 946).

DIREITO PROCESSUAL PENAL

EXECUÇÃO PENAL STF decide que Lula deve permanecer cumprindo pena

na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba

A Justiça Federal de Curitiba determinou a transferência do ex-Presidente Lula para que ele cumprisse pena em um estabelecimento de São Paulo (SP), deixando, assim, a sede da Superintendência da Polícia Federal de Curitiba (PR), onde se encontra preso.

A Justiça de São Paulo, ao receber essa decisão, determinou que Lula cumprisse a pena no presídio de Tremembé, interior do Estado.

O STF, contudo, deferiu liminar para:

a) suspender a eficácia das decisões proferidas pelos Juízos da 12ª Vara Federal de Curitiba/PR e pela Vara de Execução Criminal de São Paulo, que autorizaram a transferência do ex-Presidente das dependências da Superintendência da Polícia Federal no Paraná;

b) assegurar ao ex-Presidente Lula, até ulterior deliberação, o direito de permanecer custodiado na sala reservada, instalada na referida Superintendência da Polícia Federal no Paraná, na qual atualmente se encontra.

STF. Plenário. Pet 8312/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 7/8/2019 (Info 946).

A situação concreta foi a seguinte: Como é do conhecimento geral, o ex-Presidente Lula encontra-se preso na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba (PR). O ex-Presidente foi condenado por corrupção passiva (art. 317 do CP) e lavagem de dinheiro (art. 1º, caput, inciso V, da Lei nº 9.613/98). A condenação foi proferida pelo Juiz Federal de 1ª instância e mantida pelo TRF da 4ª Região e pelo STJ que, no entanto, reduziu a pena para 8 anos, 10 meses e 20 dias de reclusão. Atualmente, não houve o trânsito em julgado porque ainda falta o julgamento de um recurso extraordinário pelo STF. Por que Lula está preso se ainda não houve o trânsito em julgado da condenação? Ele está preso por conta da execução provisória da pena. Execução provisória da pena significa o réu cumprir a pena imposta na decisão condenatória mesmo sendo ainda uma decisão provisória (ainda sujeita a recursos).

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Execução provisória da pena é, portanto, o início do cumprimento da pena imposta, mesmo que a decisão condenatória ainda não tenha transitado em julgado. Conforme o entendimento atual do STF, é possível iniciar a execução da pena se o réu condenado somente está esperando o julgamento dos recursos especial e extraordinário. Isso porque tais recursos não gozam de efeito suspensivo. Nesse sentido: STF. Plenário. HC 126292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17/02/2016 (Info 814). Assim, Lula está preso cumprindo provisoriamente a pena porque somente resta o julgamento de um recurso extraordinário, que não possui efeito suspensivo. Logo, a condenação já está produzindo efeitos, não sendo isso obstado pelo recurso. Local onde Lula cumpre a pena Desde 07/04/2018, Lula cumpre a pena, ou seja, está preso em um dormitório de 3m por 5m, localizado dentro da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, local que anteriormente servia para hospedar profissionais da corporação de outras regiões que estavam de passagem pela cidade. Pedido da Superintendência para transferência de Lula A Superintendência Regional da Polícia Federal no Paraná formulou requerimento ao juízo federal da 12ª Vara Federal de Curitiba pedindo a remoção de Lula do prédio. No pedido se alega diversos argumentos que justificariam a transferência, dentre eles, que: • a aglomeração de pessoas ao redor do prédio compromete a segurança; • as dependências de custódia de presos da unidade policial são muito limitadas e não se destinam à execução de penas ou mesmo à permanência regular de presos; • há comprometimento de parte relevante do efetivo da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba/PR, movimentado para a composição de escalas de reforço na segurança da sede e de seu entorno; • reiterados pedidos de visitas e inspeções mobilizam a estrutura da administração regional para o atendimento a pedidos de reuniões. Decisão da Juíza Federal Em 07/08/2019, a Juíza Federal Carolina Lebbos proferiu decisão concordando com o pedido e autorizando a transferência de Lula para um estabelecimento localizado no Estado de São Paulo/SP. Na decisão, a magistrada afirmou que não tinha competência para definir, em São Paulo, o local exato onde o ex-Presidente deveria ficar preso. Assim, ela afirmou que caberia ao juízo da execução penal de São Paulo indicar o estabelecimento onde Lula deveria permanecer recolhido. O Juiz de Direito Paulo Eduardo de Almeida Sorci, da Justiça estadual de São Paulo, ao receber os autos, determinou que o ex-Presidente deveria cumprir a pena (ou seja, ficar preso) no presídio de Tremembé, no interior paulista. Pedido ao STF A defesa de Lula não concordou e ingressou com pedido no STF para suspender a referida transferência. Por que o pedido foi feito diretamente ao STF? Porque existe um habeas corpus impetrado pela defesa de Lula e que está pendente de julgamento pelo STF. Neste writ se discute a liberdade do ex-Presidente. Logo, a defesa entendeu que o pedido para Lula não ser transferido estava abrangido pela situação discutida no HC, de forma que caberia, desde já, ao próprio STF decidir a questão. Haveria, no caso, conexão entre o pedido feito no HC com o requerimento formulado agora para impedir a sua transferência.

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O STF concordou com o pedido da defesa de Lula para impedir a sua transferência? SIM. O STF suspendeu a eficácia das decisões prolatadas pela 12ª Vara Federal Criminal de Curitiba e pela Vara de Execução Penal de São Paulo, que determinaram a transferência de Lula da sede da Superintendência da Polícia Federal do Paraná para presídio em São Paulo. Para o STF, o requerimento da defesa está conectado com o princípio constitucional que assegura a todos o julgamento e o cumprimento de pena perante o juiz natural. Nesse sentido, foram invocados os arts. 66, VI, e 67 da Lei de Execução Penal:

Art. 66. Compete ao Juiz da execução: (...) VI - zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança;

Art. 67. O Ministério Público fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução.

Para a PGR, a transferência do preso à sua revelia para outro local diferente daquele no qual a pena foi imposta contraria esse princípio, argumento que foi acolhido pelo Tribunal. Assim, o STF deferiu liminar para: a) suspender, até o julgamento definitivo, a eficácia das decisões proferidas pelos Juízos da 12ª Vara Federal de Curitiba/PR e pela Vara de Execução Criminal de São Paulo, que autorizaram a transferência do requerente das dependências da Superintendência da Polícia Federal no Paraná; b) assegurar ao ex-Presidente Lula, até ulterior deliberação, o direito de permanecer custodiado na sala reservada, instalada na referida Superintendência da Polícia Federal no Paraná, na qual atualmente se encontra. STF. Plenário. Pet 8312/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 7/8/2019 (Info 946).

DIREITO INTERNACIONAL

EXTRADIÇÃO Não se deve conceder a extradição se, na época do fato, a conduta imputada ao extraditando

não era punida como crime no Brasil Não se deve conceder a extradição se a conduta do extraditando de financiar grupo terrorista

que pretendia tomar o poder caracteriza-se como crime político Não se deve conceder a extradição se o país requerente vem enfrentando um quadro de

instabilidade política

Importante!!!

Não se deve conceder a extradição se, na época do fato, a conduta imputada ao extraditando não era punida como crime no Brasil

Não se deve conceder a extradição se, na época do fato, a conduta imputada ao extraditando não era punida como crime no Brasil, ainda que, no momento do pedido de extradição, já exista lei tipificando como infração penal. Isso porque seria uma ofensa à irretroatividade da lei penal brasileira.

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Ex: extraditando financiou grupo terrorista em 2013; ocorre que a Lei de Terrorismo somente foi editada em 2016 (Lei nº 13.260/2016).

STF. 2ª Turma. Ext 1578/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 6/8/2019 (Info 946).

Não se deve conceder a extradição se a conduta do extraditando de financiar grupo terrorista que pretendia tomar o poder caracteriza-se como crime político

Não se deve conceder a extradição se a conduta do extraditando de financiar grupo terrorista que pretendia tomar o poder caracteriza-se como crime político, tendo em vista a vedação prevista no art. 5º, LII, da CF/88.

STF. 2ª Turma. Ext 1578/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 6/8/2019 (Info 946).

Não se deve conceder a extradição se o país requerente vem enfrentando um quadro de instabilidade política

Não se deve conceder a extradição se o país requerente vem enfrentando um quadro de instabilidade política, tendo ocorrido a demissão de juízes e a prisão de opositores do governo. Isso porque, neste caso, haveria o risco de o extraditando ser submetido a um tribunal ou juízo de exceção (art. 82, VIII, da Lei nº 13.445/2017).

STF. 2ª Turma. Ext 1578/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 6/8/2019 (Info 946).

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte: Em 2013, Aslan, nacional turco, teria dado dinheiro para uma organização terrorista que tentou tomar o poder por meio de um golpe armado contra o Presidente da Turquia. Logo em seguida, Aslan vem morar no Brasil e, em 2018, ele adquire nacionalidade brasileira. Ocorre que as autoridades turcas descobriram a sua participação no delito e ele passou a ser processado na Turquia pelo crime de financiamento ao terrorismo. O governo turco pediu, então, ao Brasil a extradição de Aslan, a fim de que ele responda, na Turquia, pelo crime que supostamente praticou. O fato de Aslan ser brasileiro impede a sua extradição? NÃO. Isso porque Aslan é brasileiro naturalizado e a conduta a ele imputada foi praticada antes da naturalização. Logo, a situação se amolda à exceção prevista art. 5º, LI, da CF/88:

Art. 5º (...) LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;

O pedido de extradição foi deferido pelo STF? NÃO. Primeiro obstáculo: ausência de dupla tipicidade Para que haja a extradição, o fato deve ser considerado crime no Estado estrangeiro de origem e também aqui no Brasil. Trata-se do chamado requisito da “dupla tipicidade” que, atualmente, está previsto no art. 82, II, da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração):

Art. 82. Não se concederá a extradição quando: (...) II - o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente;

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O financiamento de grupos terroristas é conduta tipificada no Brasil pela Lei nº 13.260/2016 (Lei de Terrorismo). O “problema” é que a conduta praticada por Aslan foi em 2013 e a lei que passou a punir atos de terrorismo no Brasil só foi editada em 2016. Logo, não é possível aplicar a Lei nº 13.260/2016 ao presente caso, tendo em vista a irretroatividade da lei penal brasileira. Portanto, a extradição é inviável, uma vez que, ao tempo da prática da conduta imputada, não havia tipificação em nossa legislação penal comum. Segundo obstáculo: crime político O segundo impedimento à concessão está no fato de que a conduta do extraditando caracteriza-se, em tese, como crime político e a CF/88 veda a concessão de extradição em caso de crimes políticos:

Art. 5º (...) LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião;

Como não existe uma lei que defina expressamente essa categoria, o STF entende que os crimes políticos são aqueles previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83). O STF entendeu que a conduta praticada por Aslan seria assemelhada aos tipos penais da Lei nº 7.170/83, de sorte que poderia se dizer que se tratou de crime político, hipótese na qual a extradição é proibida. Obs: o Min. Celso de Mello registrou que a previsão que veda a extradição em caso de crimes políticos não pode ser invocada caso tenham sido praticados atos criminosos de natureza terrorista. Terceiro obstáculo: quadro de instabilidade do Estado requerente O terceiro empecilho ao deferimento está no fato de que o país requerente vem enfrentando um quadro de instabilidade política, tendo ocorrido a demissão de juízes e a prisão de opositores do governo. Há notícia de que o Parlamento europeu condenou o aumento do controle exercido pelo Executivo naquele país e a pressão política no trabalho dos juízes e magistrados. Em tais circunstâncias, há, no mínimo, uma justificada dúvida quanto às garantias de que o extraditando será efetivamente submetido a um tribunal independente e imparcial, o que se imporia num quadro de normalidade institucional. Desse modo, em tais situações, a extradição é vedada porque o extraditando, ao ser mandado para o país requerente, estaria submetido a um julgamento conduzido por um tribunal ou juízo de exceção, conforme prevê o art. 82, VIII, da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017):

Art. 82. Não se concederá a extradição quando: (...) VIII - o extraditando tiver de responder, no Estado requerente, perante tribunal ou juízo de exceção; ou

Essa expressão deve ser apreendida como garantia a um julgamento justo e ao devido processo legal. Em outras palavras, não se extradita o indivíduo se houver risco de que ele não terá (ou não teve) um julgamento justo e no qual foi respeitado o devido processo legal. Nesse contexto, como forma e proteção das liberdades individuais, também foi negado o pedido, pois não se pode denotar com certeza que o extraditando terá respeitada a garantia de julgamento isento de acordo com as franquias constitucionais. Em suma:

Não se deve conceder a extradição se, na época do fato, a conduta imputada ao extraditando não era punida como crime no Brasil, ainda que, no momento do pedido de extradição, já exista lei tipificando como infração penal. Isso porque seria uma ofensa à irretroatividade da lei penal brasileira.

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Ex: extraditando financiou grupo terrorista em 2013; ocorre que a Lei de Terrorismo somente foi editada em 2016 (Lei nº 13.260/2016). Não se deve conceder a extradição se a conduta do extraditando de financiar grupo terrorista que pretendia tomar o poder caracteriza-se como crime político, tendo em vista a vedação prevista no art. 5º, LII, da CF/88. Não se deve conceder a extradição se o país requerente vem enfrentando um quadro de instabilidade política, tendo ocorrido a demissão de juízes e a prisão de opositores do governo. Isso porque, neste caso, haveria o risco de o extraditando ser submetido a um tribunal ou juízo de exceção (art. 82, VIII, da Lei nº 13.445/2017). STF. 2ª Turma. Ext 1578/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 6/8/2019 (Info 946).

EXERCÍCIOS Julgue os itens a seguir: 1) É inconstitucional lei estadual que proíbe que as empresas concessionárias cobrem “taxa” de religação

no caso de corte de fornecimento de energia por atraso no pagamento. ( ) 2) Nos termos expressos da Constituição Federal, é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de

medida provisória que tenha sido rejeitada. ( ) 3) A qualificação de uma fundação instituída pelo Estado como sujeita ao regime público ou privado

depende: i) do estatuto de sua criação ou autorização e ii) das atividades por ela prestadas. ( ) 4) (Juiz TJ/CE 2018 CESPE) A instituição de fundação pública de direito público, diferentemente das

autarquias, cuja criação se dá por meio de edição de lei, exige, além de previsão legal, a inscrição de seu ato constitutivo junto ao registro civil das pessoas jurídicas. ( )

5) A estabilidade especial do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estende-se aos empregados das fundações públicas de direito privado. ( )

6) A estabilidade especial do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) aplica-se tão somente aos servidores das pessoas jurídicas de direito público. ( )

7) Não se deve conceder a extradição se, na época do fato, a conduta imputada ao extraditando não era punida como crime no Brasil, ainda, que, no momento do pedido de extradição, já exista lei tipificando como infração penal. Isso porque seria uma ofensa à irretroatividade da lei penal brasileira. ( )

8) Não se deve conceder a extradição se a conduta do extraditando de financiar grupo terrorista que pretendia tomar o poder caracteriza-se como crime político, tendo em vista a vedação prevista no art. 5º, LII, da CF/88. ( )

9) Não se deve conceder a extradição se o país requerente vem enfrentando um quadro de instabilidade política, tendo ocorrido a demissão de juízes e a prisão de opositores do governo. ( )

10) (Delegado PC/GO 2018) É possível, segundo a Constituição (CRFB) e o Supremo Tribunal Federal (STF), a extradição de brasileiro naturalizado em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, mas o brasileiro nato nunca poderá ser entregue pelo Brasil a outro país. ( )

Gabarito

1. C 2. C 3. C 4. E 5. E 6. C 7. C 8. C 9. C 10. C

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Informativo 946-STF (14/08/2019) – Márcio André Lopes Cavalcante | 20

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Em curso Finalizados

Pleno 07.08.2019 01.08.2019,

07.08.2019 e

08.08.2019

2 11 38

1ª Turma 06.08.2019 — 3 4 63

2ª Turma 06.08.2019 — 1 1 15

* Emenda Regimental 52/2019-STF. Sessão virtual de 2 a 8 de agosto de 2019.

INOVAÇÕES LEGISLATIVAS 1º A 9 DE AGOSTO DE 2019

Lei nº 13.853, de 8.7.2019 - Altera a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, para dispor sobre a proteção de dados

pessoais e para criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados; e dá outras providências. Publicado no DOU em

09.07.2019 Seção 1, Edição 130, p. 1. Lei nº 13.865, de 8.8.2019 - Altera a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), para dispensar o habite-se na averbação de construção residencial urbana unifamiliar de um só pavimento finalizada há mais de 5 (cinco) anos em área ocupada predominantemente por população de baixa renda. Publicado no DOU em 09.08.2019, Seção 1, Edição 153, p. 2.

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