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"INIMIGO DA MORAL E BONS COSTUMES": A ATUAÇÃO DA CENSURA SOBRE A OBRA DE ODAIR JOSÉ (DÉCADA DE 1970) EDER APARECIDO FERREIRA SEDANO* 1 Em 13 de dezembro de 1968 o Marechal, Artur da Costa e Silva, então presidente da republica, decretou o Ato Institucional Número 5 (AI5), que além de institucionalizar a prática da tortura como instrumento do Estado, perseguiu e caçou o mandato de diversos políticos, reprimiu e censurou jornalistas, intelectuais e artistas. Entre os perseguidos, muitos não sobraram para contar história, sendo covardemente executados pelos órgãos repressivos militares. Já os sobreviventes trazem marcas indeléveis de violência e tortura ou as memórias do exilio em outros países, até o momento que puderam retornar com a transição democrática ao final da década de 1980 (RIDENTI, 2000: 40) Uma parte expressiva das vitimas de violências causadas pelos órgãos repressores era ligada aos grupos de esquerda (como a AP, o Polop, a ALN de Mariguela e a VPR de Lamarca, entre outros), o combate a esses grupos teve inicio já em 1964, quando ocorreu o Golpe militar, mas se acirrou com a decretação do AI5, devido a adesão à luta armada por parte de seus componentes. (RIDENTI, 2000: 145-185) A partir de 1968, inspirados nos ideais de liberdade, nas manifestações da contracultura e nas lutas populares juvenis (que se espalharam pelo mundo neste período), somadas às experiências guerrilheiras bem sucedidas na América Latina, como o caso de Cuba, os grupos de esquerda brasileiros decidiram aliar a teoria a práxis. Resolveram partir para a luta armada através da guerrilha, o modelo a ser seguido era o cubano, de inspiração maoísta, que se pautava na insurreição popular do campo para a cidade. (RIDENTI, 2000: 41) Neste momento, cidadãos brasileiros dotados de consciência politica e coragem passaram a combater os desmandos dos órgãos repressores, seja através da luta armada no campo social, seja através do combate intelectual travado no campo cultural. Entre os * Doutorando do Programa de Pós- Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bolsista do programa CAPES.

INIMIGO DA MORAL E BONS COSTUMES: A ATUAÇÃO DA …

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"INIMIGO DA MORAL E BONS COSTUMES": A ATUAÇÃO DA CENSURA

SOBRE A OBRA DE ODAIR JOSÉ (DÉCADA DE 1970)

EDER APARECIDO FERREIRA SEDANO*1

Em 13 de dezembro de 1968 o Marechal, Artur da Costa e Silva, então presidente da

republica, decretou o Ato Institucional Número 5 (AI5), que além de institucionalizar a

prática da tortura como instrumento do Estado, perseguiu e caçou o mandato de diversos

políticos, reprimiu e censurou jornalistas, intelectuais e artistas. Entre os perseguidos, muitos

não sobraram para contar história, sendo covardemente executados pelos órgãos repressivos

militares. Já os sobreviventes trazem marcas indeléveis de violência e tortura ou as memórias

do exilio em outros países, até o momento que puderam retornar com a transição democrática

ao final da década de 1980 (RIDENTI, 2000: 40)

Uma parte expressiva das vitimas de violências causadas pelos órgãos repressores era

ligada aos grupos de esquerda (como a AP, o Polop, a ALN de Mariguela e a VPR de

Lamarca, entre outros), o combate a esses grupos teve inicio já em 1964, quando ocorreu o

Golpe militar, mas se acirrou com a decretação do AI5, devido a adesão à luta armada por

parte de seus componentes. (RIDENTI, 2000: 145-185)

A partir de 1968, inspirados nos ideais de liberdade, nas manifestações da

contracultura e nas lutas populares juvenis (que se espalharam pelo mundo neste período),

somadas às experiências guerrilheiras bem sucedidas na América Latina, como o caso de

Cuba, os grupos de esquerda brasileiros decidiram aliar a teoria a práxis. Resolveram partir

para a luta armada através da guerrilha, o modelo a ser seguido era o cubano, de inspiração

maoísta, que se pautava na insurreição popular do campo para a cidade. (RIDENTI, 2000:

41)

Neste momento, cidadãos brasileiros dotados de consciência politica e coragem

passaram a combater os desmandos dos órgãos repressores, seja através da luta armada no

campo social, seja através do combate intelectual travado no campo cultural. Entre os

* Doutorando do Programa de Pós- Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

bolsista do programa CAPES.

2

“guerrilheiros culturais” muitos foram ligados aos partidos e grupos de esquerda, foram os

casos de Dias Gomes (romancista e dramaturgo), Ferreira Gullar (escritor e poeta),

Gianfrancesco Guarnieri (ator, diretor, dramaturgo), Vianinha (ator, diretor, dramaturgo) e os

músicos Rildo Hora, Sidney Miller, José Carlos Capinam, Gonzaguinha, Paulinho da Viola,

Tom Zé, Jorge Goulart e Nora Ney (todos foram filiados ao PCB durante algum período de

suas carreiras), além dos artistas e músicos que não eram diretamente ligados a partidos e

grupos de esquerda, mas que eram críticos ao governo militar, como Chico Buarque de

Holanda, Gilberto Gil e Caetano Veloso (no caso dos dois últimos, foram ligados ao CPC de

Salvador, mas não militaram em partidos ou grupos políticos).

O destino dos militantes deste período variou, alguns foram brutalmente assassinados,

outros torturados, outros conseguiram se exilar, retornando para o país quando foi iniciada a

reabertura democrática conjugada da Anistia. Entre os artistas, muitos tiveram suas obras

censuradas e proibidas de serem veiculadas, geralmente porque faziam criticas ao governo e à

repressão, como aconteceu com Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré, Milton

Nascimento, Gonzaguinha entre outros. As canções da chamada MPB eram consideradas

“politizadas” e criticas em relação ao contexto político-social, por isso era apreciada por um

publico mais intelectualizado, estudantes universitários ou pessoas com formação superior.

Mas curiosamente, outro tipo de produção musical chamada de “cafona ou brega”, julgada

como despolitizada e acrítica também foi alvo de censura e proibições. Mas neste caso a

perseguição se deu por outro motivo, geralmente por tratarem de temas considerados

inapropriados em relação a moral e aos costumes tradicionais. (ARAUJO, 2015: 54)

Tanto a moralidade, quanto a castidade são pilares fundamentais das religiões cristãs,

tanto do catolicismo quanto do protestantismo em suas diferenciadas vertentes. Nosso país foi

colonizado por portugueses católicos, que junto da conquista territorial tinham como

preocupação difundir o cristianismo e seus valores. Por essa razão, a população brasileira

sempre foi muito ligada aos valores familiares e morais, que acabaram penetrando em nossa

cultura, costumes e em nossa constituição. (VIEIRA, 2005)

A partir da promulgação do AI5, além do âmbito comportamental, os valores morais e

familiares passaram a ser impostos pelo Estado:

3

Por exemplo, em 1972, o ministro das comunicações, Higyno Corsetti, passou a

ditar as normas de programação das TVs, defendendo a proibição de programas

que exaltassem direta ou indiretamente o erotismo, o alcoolismo e as inversões

sexuais. Enquadrado no último item, o costureiro Clodovil foi retirado do júri da

Discoteca do Chacrinha, na TV Globo. O Programa Silvio Santos também enfrentou

barreira semelhante. “Eu tinha um homossexual no júri, e o coronel Erasmo Dias-

acho que foi ele- ligou para mim e falou que eu estava dando mau exemplo. Tirei o

jurado do ar”, afirma o apresentador. (ARAUJO, 2015: 55)

Pode-se afirmar que no período em que vigorou o AI5, sobretudo durante o governo

Médici (1969- 1974), a repressão moral foi tão exercida pelos militares quanto a repressão

politica:

A referência explicita à sexualidade era identificada como um ato de subversão. E

além de programas de TV, diversos filmes, livros, revistas, canções e até obras de

gênios da pintura foram proibidos ou mutilados pela censura. Em 1973, foi

impedido de circular no Brasil um álbum com a reprodução de 347 gravuras

eróticas de Picasso. Como enfatiza o general Antônio Bandeira, que na época

dirigia a Polícia Federal, “a nossa preocupação era moral. Mulher pelada não

podia”. (ARAUJO, 2015: 55)

Ao gravar a canção “Revista Proibida2”, Odair José traz a representação da proibição

aos conteúdos pornográficos, ou que simplesmente expusessem o nu artístico para exibição

midiática durante os governos militares:

Eu comprei uma revista proibida

Uma revista só pra homens

Eu não pensei em nada

Eu só comprei pra ver

Uma revista que falava tanta coisa

Sobre coisas de mulheres

E na primeira página

Eu encontrei você

Eu encontrei você

Eu encontrei você

Eu encontrei você

Uma foto simplesmente toda nua

Deitada a beira da piscina

Seu corpo estava exposto

Pra quem quisesse ver

De repente uma saudade tão antiga

2 Odair José (Comp.). Revista Proibida. LP “Odair José”. Lado 2, Faixa 1. Polydor, 1973.

4

Trouxe de volta o meu passado

Momentos de ternuras

Vividos com você

Momentos com você

Momentos com você

Momentos com você

Momentos com você

Quando você foi embora

Não quis me dizer

Vendo você na revista

Eu começo a entender

Nesta canção, o cantor e compositor Odair José, através de uma narrativa em primeira

pessoa assume o personagem de um homem apaixonado. Ele afirma que tempos depois de ser

abandonado pela mulher amada resolveu comprar uma revista masculina, ele cita essa revista

como uma “revista proibida”, (em alusão a censura) por conter assuntos sobre mulheres, além

de fotos de mulheres nuas. Em uma das fotos da revista encontra nua a mulher amada que o

havia abandonado. Apesar do cunho romântico, a canção “Revista Proibida” evidencia a

questão da repressão moral sobre as artes e a imprensa, que vigorou durante todo o período

de governos militares, sobretudo a partir do AI5 e do governo Médici.

Deve-se ressaltar que grande parte dos músicos categorizados de forma discriminatória

como “bregas ou cafonas3” sofreram com a repressão moral sobre suas obras. Ao tratar de

temas como o sexo livre, prostituição, adultério, divórcio, homossexualidade, alcoolismo,

drogas, entre outros, esses artistas tornaram-se visados e perseguidos pelas autoridades

militares. Entre eles, um dos mais perseguidos, tendo muitas canções (aproximadamente 40) e

discos censurados ou modificados pelos censores foi Odair José. (CAVALCANTI, 2015: 121)

Odair foi classificado por críticos musicais e outros profissionais da imprensa como cantor

brega, termo que rejeita, assim como recusa a denominação de cantor romântico:

3 No Brasil cristalizou-se uma memória musical que privilegia a obra de um grupo de cantores/ compositores

preferido das elites, sendo deixada de lado a obra de artistas populares. No Brasil o termo cafona foi

popularizado pelo jornalista Carlos Imperial, atualmente ele representa um sinônimo do termo “brega”, que

segundo a Enciclopédia da Música Brasileira significa “coisa barata, descuidada e malfeita e a música mais

banal, óbivia, sentimental e rotineira”. (ARAUJO, 2015: 20)

5

O goiano Odair José não gosta, nem admite ser enquadrado na categoria de cantor

brega. Tampouco considera que canções como Uma Vida (Pare de tomar a pílula),

ou Eu vou tirar você deste lugar sejam bregas: “As pessoas não conhecem o Odair

José, que não agrada aos conservadores. Eles vão a um show do Odair José

achando que vão ver uma cópia do Roberto Carlos, ou anunciam que eu sou cantor

brega. Eu sou o pior cantor brega do país, porque o que eu menos faço no show é

aquilo que o cara que vai ver o show de brega quer ver. Eu digo aos contratantes

que não me levem pra esses projetos, porque vão quebrar a cara”. (TELES, 2016)

Para Odair, o termo “brega” é considerado preconceituoso, utilizado na tentativa de

enquadrar em um mesmo estilo, gêneros e artistas diferentes. Em sua opinião, essa

generalização tentava desqualificar e reter o alto número de discos vendidos por estes

músicos. A discriminação também se estendia em relação à falta de criticidade de suas

canções (consideradas despolitizadas e alienantes), mas ao contrário do que era apontado,

além dos temas românticos, os cantores bregas trataram de questões politicas e sociais (leis

trabalhistas, desigualdades, fé, religião...) além de temas considerados imorais

Em suas canções, Odair tratou de várias temáticas que incomodavam as autoridades

militares, por isso passou a ser considerado um “um imoral, um péssimo exemplo para a

juventude”. a DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas), vinculada aos órgãos

repressores dos governos militares, fez circular entre as gravadoras do país uma

recomendação para que evitassem gravar as canções de Odair.

Entre as temáticas de que tratava Odair que mais incomodavam os militares estava a

alusão ao sexo. Ele tratou por diversas vezes e de diferentes formas do assunto. Uma dessas

canções foi “Noites de desejo”4, gravada em 1974. Composta inicialmente com o título de “A

primeira noite de um homem”, seu intuito era relatar detalhadamente a primeira relação

sexual de um homem. A canção foi considerada imoral pelos censores, que se justificaram

afirmando que ela incitava a juventude à prática do sexo livre, fora do casamento, sem o

objetivo da formação familiar. Alguns meses depois da proibição, a canção foi liberada sem

cortes. (CAVALCANTI, 2015: 88-89) Odair diverte-se ao afirmar que conseguiu ludibriar os

censores comandados pelo general Golbery (famoso por sua austeridade), apenas trocando

alguns trechos e o título da canção:

4 Odair José (Comp.) Noite de desejos. LP “Lembranças”, Odair José. Lado 1, Faixa 2. Polydor, 1974.

6

Liberada sem cortes – os censores imaginaram tratar-se uma outra ideia – “Noite

de desejos” ocupou a vaga deixada por “A primeira noite de um homem” naquele

mesmo LP de 1974. “Eu enganei o general”, exulta hoje Odair José. E se isto é um

fato, quem mais, na história brasileira, conseguiu enganar o astuto general

Golbery, que na concepção de Glauber Rocha era um “gênio da raça”? (ARAUJO,

2015: 59)

Outra canção gravada por Odair com temática sexual, com o título de “Em qualquer

lugar”5, foi barrada pelos censores no ano de 1973, e ao contrário do que ocorreu com “A

primeira noite de um homem”, ela não foi liberada, mesmo com a ação jurídica da gravadora.

Os censores alegaram que ao descrever relações sexuais realizadas em diversos locais (no

chuveiro, na praça, no carro), ela instigava a prática sexual sem pudor em ambientes públicos.

(CAVALCANTI, 2015: 108)

Outra temática relacionada ao sexo que afrontava os militares por ser considerada

imoral, era a prostituição. Alguns músicos denominados bregas trataram de prostituição em

suas canções, isso se deve, entre outras coisas, à proximidade com o cotidiano da noite (a

maior parte dos cantores bregas iniciou a carreira cantando em boates e prostíbulos). Cabe

lembrar os exemplos de Waldick Soriano (que se apaixonou por uma prostituta de Belém do

Pará) e Nelson Ned (que se envolveu com uma garota de programa e para ela compôs a

canção “Quando eu estiver chorando”). (ASSUNÇÃO; BONFIM, 2011: 7)

Odair tratou da temática da prostituição em seu primeiro grande sucesso, “Vou tirar

você deste lugar”6 no ano de 1972. O disco no qual estava inserida (com o mesmo título,

“Vou tirar você deste lugar”) se manteve entre os mais vendidos do país, chegando a um

milhão de cópias comercializadas. Considerada uma das mais tocadas na história do rádio

brasileiro, na canção homônima, o personagem-narrador diz a uma prostituta pela qual se

apaixonou que irá tirá-la do prostíbulo e assumir uma relação amorosa com ela, mesmo

enfrentando as críticas de familiares e amigos:

Olha...

A primeira vez que eu estive aqui

Foi só para me distrair

5 Odair José (Comp.). Em qualquer lugar. LP “Odair José, Odair José. Lado 2, Faixa 13. Polydor, 1973. 6 Odair José (Comp.). Vou tirar você desse lugar. LP “Vou tirar você desse lugar”. Compacto simples. CBS,

1972.

7

Eu vim em busca do amor

Olha...

Foi então que eu lhe conheci

Naquela noite fria

Em seus braços meus problemas esqueci

Olha...

A segunda vez que eu estive aqui

Já não foi pra distrair

Eu senti saudade de você

Olha...

Eu precisei do seu carinho

Eu me sentia tão sozinho

Que já não podia mais te esquecer

Eu vou tirar você deste lugar

Eu vou levar você pra ficar comigo

E não interessa o que os outros vão pensar (2x)

Eu sei...

Que você tem medo de não dar certo

Pensa que o passado vai estar sempre perto

E que um dia eu possa me arrepender

Eu quero...

Que você não pense em nada triste

Pois quando o amor existe

Não existe tempo pra sofrer

Eu vou tirar você deste lugar

Eu vou levar você pra ficar comigo

E não interessa o que os outros vão pensar7

Com “Vou tirar você deste lugar”, Odair foi primeiro cantor e compositor a tratar de

prostituição de forma explicita. Seguindo o exemplo de Odair, outros artistas passaram a

abordar o assunto desta forma, entre eles pode-se destacar Totó e McDonald (canção “Flor da

noite”), Claudio Fontana (canção “Menina da Noite”), Antonio Carlos e Othon Russo (com

“Mulher de Ninguém”), Sobreira e Da Costa, (canção “Maria Pureza”) e Lindomar Castilho

(canção “Maria Esperança”). (ARAUJO, 2015: 151) A canção “Vou tirar você desse lugar”

conseguiu passar pelos censores em um primeiro momento, tendo sido lançada em compacto

de 1972, depois disto, Odair foi chamado para dar explicações:

“Meu primeiro encontro com a censura foi assim que “Vou tirar você desse lugar”

alcançou enorme sucesso nacional em 1972. Tive que comparecer a um prédio que

7 Odair José (Comp.). Vou tirar você desse lugar. LP “Vou tirar você desse lugar”. Compacto simples. CBS,

1972.

8

ficava próximo aos Arcos da Lapa, no Rio, e ouvir que o refrão da música não era

apropriado para o momento e que as minhas próximas músicas, antes de serem

gravadas , deveriam ser enviadas para uma liberação ou não. Começaram aí as

minhas dificuldades com a censura do governo militar.” (OLIVEIRA, 2020)

Depois desta conversa, o desfecho de “Vou tirar você deste lugar” acabou tomando

outro rumo, ela foi proibida de ser regravada no disco seguinte, como havia sido planejado

pelos produtores, devido ao grande sucesso alcançado.

Mesmo com as inúmeras intimidações dos censores, Odair jamais recuou, ao contrário

disso continuou tratando de temas polêmicos, que incomodavam as autoridades pelo teor

considerado “imoral”. Temas como a defesa do divórcio e a banalização do casamento, em

que estavam pautadas algumas de suas canções, eram os que mais motivavam as ações dos

censores sobre sua obra, vinculando-se aos parâmetros tradicionais do casamento como

instituição de formação da família de fidelidade conjugal e o “amor eterno”. (DEL PRIORI,

2001) Essas representações marcavam o âmbito religioso e jurídico, até o ano de 1977

(quando o Divórcio foi permitido por lei), as pessoas que se separassem através do “desquite”,

não podiam legalmente se casar novamente, mantendo relacionamentos não oficializados pela

justiça. (BERQUÓ, 1998: 410-438)

O casamento não formal, conhecido popularmente como amásio (a prática de morar

junto, sem se casar oficialmente) era criticada e desqualificada socialmente, ela cresceu no

Brasil entre as décadas de 1960 e 1970, sobretudo a partir das mudanças comportamentais

inspiradas em movimentos contraculturais, como o feminista, os hippies entre outros. Como

sujeito do seu tempo, Odair percebeu as mudanças latentes, por isso, algumas de suas canções

apresentavam o cotidiano de casais que já não se amavam e continuavam juntos com medo de

sofrer pressões sociais. Em “Na minha opinião”8, o compositor (Odair), interpreta o

personagem de um homem apaixonado que propunha a mulher amada que se amasiasse com

ele. Para justificar seu pedido, afirmava que muitos cônjuges já não se amavam e

continuavam juntos apenas para manter a aparência.

8 Odair José, Maxine (Comp.) Na minha opinião. LP “Odair”, Odair José. Lado 2, Faixa 12. Polydor, 1975.

9

Em outra canção, voltada para a relativização do casamento legal “Vou morar com

ela” 9, o personagem de um jovem propõe à namorada que se amasiem, para ficarem mais

tempo juntos. Já em 1978, quando o divórcio já havia sido aprovado10, Odair lançou uma

canção com o título de “O Divórcio”11, que teve de ser trocado para “Agora sou livre”, por

exigência dos censores. Nela o personagem diz à mulher amada, (separada, como ele) que

enfim eles poderiam se casar novamente por vias legais, pois o divórcio já havia sido

aprovado.

Entre as canções do repertório de Odair que causaram maior rejeição entre os

conservadores podem-se citar “Forma de sentir” e “A Viagem”. Em “Forma de Sentir”12,

gravada em 1978, Odair inseriu a temática da homossexualidade, defendendo abertamente o

relacionamento entre pessoas do mesmo gênero.

Já em “Viagem”13, de 1975, utilizando-se de metáforas, Odair defendeu o uso da

maconha, narrando “a viagem” que a maconha proporcionava, difundindo ideias partilhadas

pelos movimentos de contracultura como o movimento hippie. (CIDREIRA, 2008: 36) A

canção não foi barrada pelos censores por que eles não conseguiram associar o termo

“viagem”, com o uso da cannabis, deve-se ressaltar que além de trazer à tona a difusão do

consumo da droga, Odair também falava de si, pois sabe-se que em seu passado, chegou a

utilizar essa e outras drogas. (CAVALCANTI, 2015: 75)

Famoso pelo seu passado boêmio, o cantor Odair José admite que já usou todos os

tipos de drogas na juventude. “Tudo o que eu podia fazer, eu fazia. Foi uma época

boa, mas percebi que não era o foco. Experimentava tudo o que aparecia: maconha,

cocaína e outras drogas. Também bebia muito. Era jovem e louco. Perdi tempo com

isso, mas me diverti bastante. Se eu não parasse, seria mais um para as estatísticas

de morte de overdose”, disse em entrevista ao “Programa do Jô” desta quinta-feira

(13) [...] (UOL, 2015)

9 Odair José, Rossini Pinto (Comp.) Vou morar com ela. LP “As 14 Mais, Vol. XXV”, Odair José. Lado 2,

Faixa 13. CBS, 1971. 10 A legalização do divórcio no Brasil foi aprovada em 1977 pela câmara dos deputados, antes disto as pessoas

que se separavam só podiam se desquitar e não tinham a possibilidade de se casar de novo via meios legais ou

religiosos, por isso tinham que recorrer a relacionamentos não oficializados como o amasio. (BERQUÓ, 1998:

410-438) 11 Odair José, Maxine (Comp.) Agora sou livre (O Divórcio). LP “Coisas simples”, Odair José. Lado 1, Faixa 6.

RCA Victor, 1978. 12 José Messias, Donizete (Comp.) Forma de sentir. LP “Coisas simples”, Odair José. Lado 2, Faixa 7. RCA

Victor, 1978. 13 Odair José (Comp.) Viagem. LP “Odair”, Odair José. Lado 1, Faixa 3. Polydor, 1975.

10

Durante toda sua carreira, Odair sofreu censuras, criticas e perseguições, mas a maior

delas ocorreu com o lançamento do LP “O Filho de José e Maria”14. Entre outras questões,

esse disco causou o rompimento com a gravadora Phonogram (Polydor), que o acompanhou

boa parte da carreira de sucesso, uma parceria que rendeu recordes de discos vendidos na

década e 1970.

O conflito com a gravadora se deu porque os diretores André Midani e Guilherme

Araújo (pai do cantor Cazuza) não concordaram com as canções que compunham o LP. No

geral as canções criticavam o autoritarismo de setores conservadores da Igreja Católica, a

cobrança do dízimo, o casamento e os padrões de comportamento. Mas o que mais

incomodou a gravadora foram os personagens das canções, que se tratavam de nomes

sagrados do evangelho cristão, tanto para católicos como para protestantes. Os personagens

Jesus15, José e Maria são citados em mais de uma canção do disco, e ao contrário da descrição

religiosa, Odair os caracteriza em condições idênticas aos demais seres humanos, passiveis de

erros e suscetíveis aos prazeres carnais. Na canção “O Filho de José e Maria”16, por exemplo,

Jesus é descrito como um jovem rebelde, com problemas comportamentais ocasionados pela

separação dos pais (representando a condição de muitas famílias na década de 1970), já na

faixa “Nunca Mais17”, o filho de José e Maria (Jesus) é apresentado como homossexual.

Os diretores da Polydor sugeriram a Odair que desistisse da obra e voltasse a gravar

crónicas românticas, evitando assuntos polêmicos que ocasionaram censuras e desgastes com

os militares e membros da Igreja. Odair rejeitou as sugestões, obstinado no projeto rompeu

com a Polydor e em seguida assinou contrato com a gravadora RCA (que aceitou lançar o LP

e promove-lo, com apenas dez músicas das vinte e quatro faixas pretendidas). No mesmo ano

14 LP “O Filho de José e Maria”, Odair José. RCA Victor, 1977. 15 Lembrando que o nome de Jesus não aparece literalmente no disco, ela apenas aparece como “O filho de José

e Maria”. 16 Odair José (Comp.) O Filho de José e Maria. LP “O Filho de José e Maria”, Odair José. Lado 2, Faixa 7.

RCA Victor, 1977. 17 Odair José (Comp.) Nunca mais. LP “O Filho de José e Maria”, Odair José. Lado 1, Faixa 1. RCA Victor,

1977.

11

de 1977, Odair lançou a obra com as canções polêmicas e os arranjos melódicos que queria,

diversos do que estava acostumado, sendo mais próximos do Rock and Roll psicodélico .

Ele promoveu essa obra como Ópera Rock, tocando nas principais casas de espetáculo

do país, mas foi massacrado pelos críticos musicais e pelo público conservador. Foi um

fracasso de vendas e durante um tempo Odair não voltou a alcançar o mesmo sucesso e,

também foi duramente criticado pela Igreja Católica, sendo ameaçado de excomunhão.

Tentando recuperar seu prestigio, Odair voltou a gravar canções canções românticas,

deixando de lado os temas políticos e sua veia contestadora.

Só a partir de 2013, em um show de muito sucesso na Virada Cultural de São Paulo

(CAVALCANTI, 2015: 121) Odair teve sua obra revalorizada, sobretudo por jovens e

intelectuais, que passaram a lhe categorizar como cult (ALVES, 2016, p.11) e reconhecer a

qualidade da obra “O filho de José e Maria”.

É interessante notar que Odair José retoma sua veia contestadora e critica no mesmo

momento em que o Brasil assiste a uma retomada dos ideais conservadores moralistas,

pautados na repressão sexual e de comportamento, assim como no crescimento de

movimentos que favoráveis ao retorno dos governos militares e do AI5. Assistimos a um

retorno dos anseios antidemocráticos e felizmente a um consequente retorno da

combatividade artística, pelo menos por parte de Odair José. Só nos resta saber se o desfecho

será o mesmo, mas isso é assunto para o futuro que está por vir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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12

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0406-1.pdf>. Acesso em: 05/04/2020.

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