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Inúmeras,nomardaeternidade,Asgeraçõeshumanasvãocaindo;

SobreelasvailançandooesquecimentoApesadamortalha.

DaagitaçãoestérilemqueasforçasConsumiramdavida,raroapenasUmecochegaaosséculosremotos,

Eomesmotempooapaga.MachadodeAssis,“Americanas”,1875

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INTRODUÇÃO

1.URUBUS

2.UMVAZIO

3.ESCÂNDALO

4.ACRUZ

5.NASSUASMÃOS

6.FARDADOS

7.COVEIRO

8.AMARCHA

9.TRINCHEIRAS

10.CAMINHOGRANDE

11.IRREVERSÍVEL

12.CICATRIZ

13.COMOSEFOSSEUMNEGATIVO

14.ESTEBELOPAÍS

15.INFAMANTE

16.OGRITO

17.PERSONANONGRATA

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18.OSSOSEPENAS

19.“OUTROTIPODELUTA”

20.DEPORTADOS

21.UMMOINHOFEROZ

22.AESPINHA

23.LEVANTE

24.ASOCIEDADE

25.APALAVRA

26.UMGOSTOAMARGO

27.PISTOLEIROAVÁ

EPÍLOGO(TALVEZUMAVITÓRIA)

CADERNODEIMAGENS

AGRADECIMENTOS

ENTREVISTADOSELOCAISDASENTREVISTAS

NOTAS

CRÉDITOSDASIMAGENS

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INTRODUÇÃO

QUANDO UM GRUPO DE OFICIAIS MILITARES, APOIADO PORDIVERSOSsetorescivis,derrubouopresidenteJoãoGoulartpormeiodeumgolpedeEstadoem1964,ogovernonemsabiaaocertoquantosíndioshavianopaís.Estimava entre 70mil e 110mil o número de “aldeados”, isto é, os queviviamemterrasdemarcadassobjurisdiçãoecontroledaUnião.Alcançadosaolongo de séculos por atividades predatórias, comogarimpos e desmatamentos,oupelosprojetosoficiaisdedesenvolvimentoeconômicoedeocupaçãodosolo,esses grupos de índios já haviam decidido fazer as pazes com o homemautodenominado “civilizado”, vencidos pelos massacres, pelas doenças e pelafome, acabando por reconhecer sua inferioridade numérica e a inutilidade desuasbordunas,seusarcoseflechasdiantedearmasdefogo,porfimaceitandoaderrota para tentar sobreviver em um novo mundo com novas regras. Mas onúmerorealdeíndiosnopaíseramuitomaior.Haviamilharesdeleshabitandoas matas, com contatos nulos ou intermitentes com ribeirinhos, caçadores deanimais,desmatadores.Vezououtraesses índios“arredios”ou“hostis”, comoentãoeramdenominados,davamascaras,atacandooureagindoaoassédiodosnão índios que se posicionavam nas franjas do desenvolvimento e invadiamterrassabidamentededomínioindígena.Emreaçãoaessasrusgasemassacres,as forças políticas locais costumavam recorrer à ajuda dos “amansadores” deíndios,osservidoresdoServiçodeProteçãoaosÍndios(SPI)edesuasucessora,aFundaçãoNacionaldoÍndio(Funai),paraqueoperassemapaz,localizandoeconvencendo os índios a largar suas armas. Enquanto os índios não fossem“pacificados”,osfazendeiros,garimpeirosemadeireirossemprepodiamrecorreràs“correrias”,verdadeirascaçadashumanasnasmatas,muitasvezesresultando

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emcovardesmassacres.Nessesentido,aoagircontraabárbaraatividade,oSPIea Funai exerceram o nobre papel de impedir o genocídio. 1 Os “arredios”representavamumenormedesafioparaoEstado.Eranecessáriodecidirquandoe com que meios contatá-los a fim de alcançar o objetivo maior do governomilitar,queeraaintegraçãodoíndioàsociedadenacional.

Segundo a ótica oficial da época, os indígenas conhecidos representavamentre 0,08% e 0,13% da população geral brasileira estimada pelo InstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística(IBGE)em1964.2Obaixoregistrooficialnãopodeexplicaremuitomenosjustificarolimboaquefoilançadoointeressearespeitodecomoaditaduratratouosindígenasaolongode21anosdepoder.Atépoucotempoatrás,eraminexistentesasreferênciasaoassuntonasaçõesdopalácio do Planalto sobre o período. Os governos de José Sarney (1985-90),Fernando Collor (1990-2) e Itamar Franco (1992-5) nem sequer abordaram otópico.NodeFernandoHenriqueCardoso(1995-2003),leisecomissõescriadaspara conceder indenizações a perseguidos, mortos e desaparecidos políticosnuncaestabeleceramapossibilidadedeestendersuaatençãoparaosindígenas.Em2007,nogovernoLuizInácioLuladaSilva(2003-11),apublicaçãoDireitoà memória e à verdade , da Secretaria Especial dos Direitos Humanos daPresidência da República, não trouxe uma única referência às violações dedireitosdosíndiosemsuas502páginas.Emdezembrode2014,orelatóriofinalda Comissão Nacional da Verdade (CNV ), instalada pela presidente DilmaRousseff (2011-6), incluiu um capítulo sobre os indígenas. Embora atrasado ecomfalhas,tratou-sedepioneiroesforçoestatalparajogaralgumaluzsobreoseventos. Todavia, o desdobramento do relatório foi nulo. Por exemplo, umamedida de fácil execução indicada no documento, o mero pedido público dedesculpas da União pelos erros cometidos, não havia saído do papel até aconclusãodeste livroemjaneirode2017.Sóem2014aComissãodeAnistia,vinculadaaoMinistériodaJustiça,autorizouaprimeiraindenizaçãoaumgrupodeíndios,osSuruídoPará.Houveoutrasindenizaçõesecompensaçõespontuaisaolongodosanos,massempreadvindasdeaçõesjudiciaismovidastantopeloMinistério Público quanto por organizações não governamentais em conjuntocomosíndios,nãoporiniciativadopodercentralemBrasília.

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Também são poucos os livros que tiveram por foco específico a relaçãoentre índios emilitaresnoperíodo1964-85,destacando-seVítimasdomilagre(1978),deSheltonH.Davis,eNossosíndios,nossosmortos(1978),deEdilsonMartins, além do fascinante Die If You Must (2003), de John Hemming.Ressalte-se que as duas primeiras obras—assim comouma ampla e vibranteprodução jornalística da época — foram escritas ainda no calor dosacontecimentosequeolivrodeHemmingtratadatrajetóriadosíndiosaolongode todooséculopassado.Nenhumadelas teveacessoaosdocumentosescritossobsigilopelosmilitaresequesócomeçaramaserliberadosàpesquisanosanos2000. Antropólogos, indigenistas e acadêmicos produziram inúmeros eimpressionantes trabalhos de fôlego sobre diversas etnias, mas os textoscostumam se estender por toda a trajetória do grupo, não se fixandonos anosmilitares.

Asprincipaisnarrativasarespeitodogolpeedoperíodomilitarnãotiveramo índio como foco principal, o que poderia dar a impressão de que a políticarepressivaadotadaemdiversosmomentospelosmilitarespassouembranconasaldeias indígenas.Narealidade,poucosgruposhumanosnopaísdependiamdeformatãodiretadapolíticadosmilitaresparagarantirsuasobrevivênciaquantoosíndios.Asleisemvigorestabeleciamatutelaespecialsobreoíndio,exercidapelosinspetoresdoSPI,entãosubordinadoaoMinistériodaAgricultura.Umaleide1962diziaqueos índioseram“incapazes, relativamenteacertosatos,ouàmaneira de os exercer”. O SPI enfrentava grandes dificuldades para se fazerpresente.Naépocadogolpe,oórgãocontavacomapenasoitocentosservidorespúblicos espalhados entre 105 ou 126 postos indígenas, na sede central e nasrepresentaçõesdoSPInascapitaisdosestados.3

DescrevercomooEstadobrasileirosobcomandomilitardeucabodesuasduas tarefas básicas (cuidar do índio aldeado e contatar o “arredio”) é apreocupaçãocentraldestelivro.Aoampliarabibliografiadotema,elepretendecolaborarparaareflexãosobreosanosdechumbo.

Este livro, apurado e escrito entre outubro de 2013 e setembro de 2015, étambémoresultadodaexperiênciaedashistóriaspormimacumuladasaolongo

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de26anosdereportagemparajornaisdeSãoPaulo,MatoGrossodoSuleMatoGrosso,períodoemqueconhecicercadetrintaterrasindígenas,dentreasquaisyanomami, terena,guarani,nambikwara, tapirapéexavante.Conhecium índiopelaprimeiravezmuitoantesdevirar jornalista, aosdozeanos, em1982,nosestertoresdaditadura,quandopasseiamorarcomminhafamíliaemDourados,emMatoGrossodoSul, a cercadecincoquilômetrosdamaior terra indígenaurbanadopaís.Osíndiosguaranierampartedocotidianodacidade.Numerosasfamíliassaíamdaaldeiaemcarroçascarregadassobretudodemilhoemandioca,quase sempre acompanhadas de um esquálido cachorro de estimação. Cedobatiam palmas nas casas dos douradenses, procurando fazer comércio.Algunspediamesmolaoupãoparacomer.Aofinaldodia,iniciavamseulentoregressoà aldeia, a pé, debicicleta ou emdezenasde carroçaspela avenidaPresidenteVargas.No começo dasmanhãs, ao caminhar para a escola, não raramente euencontrava pelo caminho um índio caído, derrubado pelo álcool da noiteanterior.Impressionavamasbebedeiras,ascondiçõesinsalubresemqueviviam,adesnutriçãoeasdificuldadesdesobrevivênciadessesíndios,maselestambémnos davam uma lição de humildade e persistência. Eram a expressão de ummodo de vida tão diferente quanto desafiador. Que atraía todo tipo depreconceito, imprecações e comentários negativos dos moradores locais, mastambématosdesolidariedadeetolerância.Essemododevidaestariaaindamaisdeslocado num país comandado por oficiais militares criados sob as rígidasregrasdacaserna.Comandantesmilitarespropugnavamqueocaminhonaturaldos índios seria a integração à “civilização”— ou seja, esperavam que elessimplesmentedeixassemdeseríndios.

Como repórter a partir de 1989, voltei à terra de Dourados e estive emmuitas outras aldeias.Nessas viagens, algumas histórias da época da ditadura,contadas aqui e ali, me desafiavam a uma pesquisa mais aprofundada. Essapossibilidade enfim apareceu entre 2013 e 2014, quando percorri terrasindígenasemdezestadosbrasileiroseentrevisteimaisdeoitentapessoas,entreíndios, sertanistas, indigenistas, antropólogos emissionários. As apurações decampo foram reforçadas com a leitura demilhares de páginas de documentoscujo sigilo foi desclassificado em especial a partir de 2008. Na Coordenação

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RegionaldoArquivoNacionaldeBrasília,copieieliumtotalde11786páginas,fotografadasumaauma,queformamumacervode187dossiêsproduzidospelobraço do Serviço Nacional de Informações (SNI ) na Funai sobre pessoas,instituiçõese assuntos.NosarquivosdoNúcleodeDocumentação (Nudoc)doDepartamentodeProteçãoTerritorial(DPT)edoServiçodeGestãoDocumental(Sedoc)dasededaFunai,emBrasília,copieieconsulteipertode6milpáginasqueformaminúmerosprocessosdedemarcaçãodeterrasindígenasnopaís.Tiveacesso adocumentosdoMuseudo Índio, noRio, daprelaziadeSãoFélixdoAraguaia, emMatoGrosso, daUniversidadeFederal daGrandeDourados, doArquivoPúblicodeCuiabáedoInstitutoSocioambiental(ISA),deSãoPaulo.

A pesquisa descortinou um quadro desolador. Páginas de documentosoficiais, por décadas sigilosas e enfim deixadas ao alcance dos pesquisadores,revelam desfechos cruéis para operações do governo. Sua leitura levantoutambémindagaçõessobreascontradiçõesdeumEstadoque,soboargumentodeproteger,acaboumatandoedestruindo.Mastambémalgumasvezesevitandooetnocídio.

Se a trajetória dos povos indígenas na ditadura fosse considerada apenas umaterradorcasosobrevidasdesperdiçadas,creioqueseriaumbomresumo.Maselaémuitomaiscomplexadoqueisso.Repletadetragédias,derrotasetambémvitórias,éumadasjornadasmaissurpreendentesedramáticasdoséculopassadonopaís.Éahistóriadecomopequenosgruposhumanosenfrentaram,àsvezescomviolência, às vezes comestoicismo, uma força dominantemais poderosa,que pretendeu, com esforço calculado, subjugá-los e empobrecê-los sob apromessa de umavidamelhor.É tambémanarrativa de comoumaporçãodeindígenas, servidores públicos, missionários e antropólogos, muitas vezes emdesafioabertoàditadura,correusériosriscosparapôremdúvidaesepossívelinterromper um avanço econômico que não considerasse as ricas nuances deculturasehomensdiferentesdamaioriadapopulação,afimdepreservá-losdaextinção.Porfim,éadescriçãodecomooEstadobrasileiro,comsuasimensasdificuldades,tambémconseguiusalvarindígenasdoextermínio,aindaquenesseprocesso tenha manifestado uma incúria e um menosprezo notáveis, que

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acabaramporceifarcentenasdepreciosasvidas.

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1.URUBUS

ANTONIO COTRIM SOARES SERIA DAS PESSOAS MAISIMPROVÁVEISa trabalharparaogovernodosmilitaresquehaviamdepostoJoãoGoulart.Em1964,eleeraumjovemestudantedeMaceióenvolvidocomaorganizaçãodasLigasCamponesas,gruposdetrabalhadoresruraisquelevaramotemadareformaagráriaàagendapolíticanacional.Emborafilhodeumbemsituadocomerciante localesemfiliaçãopartidária,dizia ter“ideiassocialistas,deesquerda”esesentia“ligadocomoscarasdoPartidoComunista”.Ajudavaaplanejar uma grande invasão “de mais de sessenta fazendas” de um ricoproprietário de usinas de açúcar, o deputado federal e homem de televisãoRubensBerardoCarneirodaCunha.AsLigasinfiltrarampeõesremuneradosnasfazendaspara“conversarcomaspessoasemontarasbases”.1Cotrimalgumasvezes também serviu de motorista do líder Francisco Julião quando esteapareceu em Maceió. Nada mais distante, portanto, das fardas e botas quemarcharamsobreBrasília.

Comogolpe,osambiciososplanosdeCotrimeseusaliadosruíram.EleseescondeunumapartamentoatéapoeirabaixareopessoaldasLigassedispersar.Reunidos semanas depois, falaram emorganizar luta armada e resistir.Cotrimnãogostoudaconversa,achouqueestavamtodosdesorientados.Chegou-lheainformaçãodequeumgrupodeperuanosestavaorganizandoguerrilhaspertodafronteira comoBrasil.Decidiu rumar para lá para se juntar aos guerrilheiros.Sua ideiaeraseguiremcaronasdeavião,massóconseguiuchegaratéBelém.Lá, descobriu que seu contato na cidade, um trotskista, estava desaparecidodesde o golpe. Sem dinheiro para pagar a pensão em que se enfiou, CotrimdesistiudoPeruecomeçouaprocurarempregoparasobreviver.Viunumjornal

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o anúncio de que um certo Serviço de Proteção aos Índios estava procurandopessoalparatrabalhar.CotrimfoiaoendereçoindicadoparasaberoqueeraeoquefaziaaqueleSPI.Afinaldecontas,elenuncahaviavistoumíndionavida.

NoescritóriolocaldoSPI,CotrimconheceuossertanistasTelésforoMartinsFonteseseufilho,OsmundoAntôniodosAnjos.Osmundocontou-lhequeiriacomandar uma expedição para contatar índios “hostis” na região de Porto deMoz, no Pará, na beira do rio Xingu e perto da divisa com o Amapá, queestavam em conflito com moradores locais. Ali viviam grupos de indígenasconhecidoscomoKararaô.

Tratava-sedeumsubgrupodaetniakayapó,queprotagonizavachoquesemoutraáreadoestado.Emumaentrevistaconcedidanosanos1970,osertanistaFranciscoMeireles diria que em1964osCaiapóda regiãodeAltamira “eramconsiderados terríveis pela população”. Eram “índios perigosos, matavam oscivilizadoseaprisionavamasmulherese,inclusive,váriasmoçasforamraptadastãocedoqueacabaramporseintegrarnavidadatribo.Quandoláchegueielestinhammatadodezesseteseringueiros”.2

Cotrim ouviu que “o SPI não tinha dinheiro e que o governador do Pará,JarbasPassarinho,iafinanciaraexpedição”.Emjunhode1964,aditadurahaviaderrubadoogovernadordoestado,AuréliodoCarmo,eempossadoemseulugaroentãotenente-coronelPassarinho.3

Telésforoexplicouqueaexpediçãoerapobreeestavacomdificuldadesparapagar salários. O alagoano aceitou ser um “voluntário”, sem remuneração.Telésforo aprovou a ideia, pois viu que Cotrim, além de saber datilografia,tambémgostavado escritor JorgeAmado, seu conterrâneo.Elequeriaque, naviagem, o jovem aproveitasse para ensinar ao seu filho quem era o granderomancistabaiano.

Cotrim tinhaumproblema:nãopodia sairdapensão sempagarosquinzediasdehospedagemquedevia.Suaspossesseresumiamaumsacodeviagem,duasmudasderoupaealgunslivros.Pararesolveroproblema,opessoaldoSPIsimulouaprisãodele.OescritórioporacasotinhaumaRural,omesmomodelodecarrousadopelapolícia.Conformecombinado,omotoristaParouocarronafrentedapensãoegritouparaadonadolocalqueohóspedeestavapresoetinha

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que sair com todos os seus pertences imediatamente. Ordem cumprida, daliseguiram direto para o porto, de onde sairia a expedição de barco. PartiramOsmundo,Cotrim, o sertanistaAfonsoAlvesdaCruz, que se tornaria umdosmaisconhecidosnahistóriadaFunai,oíndioxikrinItakaiúnaeumtelegrafista.

Ométodo adotado pela expedição era omesmo das outras feitas no paísdesde os tempos do marechal Cândido Rondon (1865-1958). Criava-se umafrentedeatração,quefuncionavaassim:ossertanistasdistribuíampresentesaosíndios;esperava-sequeestespassassemaretribuirospresentes,nafasechamadadenamoro;na terceirafase,os índiosconvidavamossertanistasparaconhecersuasmalocas;aquarta fase,deconsolidaçãode“pacificação”,constituía-senoestabelecimento de um acordo pelo qual, em resumo, “civilizados” e índiosconcordavamemnãomatarmaisunsaosoutros(muitasvezesessediálogonãoera feito às claras, pois os índios praticamente se entregavam aos benefíciosrepresentados pelos presentes dos “civilizados” do SPI ); por último, os índios“pacificados”eramentãoagregadoseentreguesaoscuidadosdefuncionáriosdeumposto,queseencarregavadedaraelesatendimentodesaúdeealimentaçãoeensinar-lhes métodos de agricultura dos “civilizados”. Assim, os índiosdeixariamdeatacarematarvizinhosoutrabalhadoresquepassavampelaregião.Estavacriadoumnovopostoindígenaparaíndiosaldeados.

NamargemdoGuajará,umafluentedorioTapajós,aexpediçãoencontrouumgrupodeKararaô,queosrecebeusemhostilidade.AdenominaçãoKararaô“éaplicadaaumadivisãodoskayapósetentrionais”quesedistancioudonúcleoprincipal da etnia, conhecido como Gorotire. No século passado, os KararaôdesceramorioXinguesedetiveramentreoIririeseuafluenteCuruá.Depoiscindiram-se em dois grupos, um dos quais, “por volta de 1950, foi quasedizimado”porumaexpediçãoorganizadaporumseringalista.OsKararaôpoucofalavamoportuguês,usavamarcos,flechasebordunasepintavamocorpocomjenipapo, carvãoeurucummisturadocomóleodebabaçu.Oshomensadultosusavamumbatoquedemadeiranolábioinferior.4

OcontatodosíndioscomaexpediçãodaqualCotrimparticipavaocorreunoano de 1965, sendo assim o primeiro do gênero do regime militar. Suaconsequênciafoidramática.

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Quase cinquenta anos depois, em 2013, Cotrim, nascido em março de 1941,continuavaumhomemde excelente saúde, comumapertodemãovigoroso ememóriaperfeita.Éumhomemformaledetalhista.Eleaindausaumamáquinadeescreverparasecomunicaràdistância.Aoresponderaopedidodeentrevistaparaestelivro,datilografouarespostaepediuàfilhaquefotografasseafolhadepapeleaenviasseanexadaaume-mail.NalanchonetedeumhotelemMaceió,Cotrim descreveu os eventos com uma franqueza notável, que outrosentrevistados poderiam dispensar. Ao contrário do que se poderia esperar dealguém que viveu tantos perigos, ele não oferece a visão romantizada dasaventurasnaselva,massimadescriçãoamargaecruadefatosquecontinuamaassombrá-lo, tantos anosmais tarde. Ele se recordou da primeira tragédia quepresenciouemsuaagitadavidadesertanista.Elogonaprimeiramissão.“Eram48 índios kararaô, fizemos contato. Morreram quase todos. Esse grupodesapareceu. Se teve sobreviventes, foram quatro ou cinco. Foi a primeiraexperiênciaquetive.”

“Masmorreramcomo?”,euquissaber.“Degripe!Nãofoilevadomedicamento.”Para Cotrim, o transmissor involuntário da doença foi um membro da

expedição,Itakaiúna,queestavacomgripe“nomomentodocontato”.Ele temcerteza de que não existia doença entre aqueles índios antes da chegada daexpedição.Assimquehouveocontato,OsmundoregressouaBelémparaobtermedicamentosealimentação.Passadosmaisdevintedias,quandoregressouaolocal, nãohaviamais como socorreros índios. “Telésforonãoestavamais emBelém.Belémnãomandoumaisnada,odinheirodaexpedição tinhaacabado.Era aquela esculhambação, não enviaram remédio. Deixaram a operaçãoabandonada.” O SPI chegou a mandar um enfermeiro, mas na percepção deCotrim isso pode ter agravado o problema, pois ele “pegava a agulha e nãoesterilizavadireito,entãoaprópriaagulha[contaminava]”.

Acrisesanitáriaseagravoucomafaltadecomida.OsKararaônãotinhamreservasdealimentose,debilitados,nãoconseguirammaiscaçar,pescarenemmesmo pegar madeira seca no mato para fazer fogo. Cotrim viu um índioquebrarseusprópriosarcoseflechasparafazerumafogueira.

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Muitosíndios,doentes,seembrenharamnamata,oquesópiorouasituação.Pela superstição deles, o problema estava naquele local, não em seus corpos,então a decisão mais correta, acreditavam, era se afastar do acampamento.Distantes da expedição, não receberam os poucos medicamentos disponíveis.Cotrimajudouaenterrar“quatroouseiscorpos”,orestanteficouespalhadopelamataefoisepultadodepoisoupelosprópriosíndiosoupeloscompanheirosdaexpedição.Eleestimouquarentamortosnaepidemia.

O pessoal da expedição ficou commedo de uma retaliação, pois o índioxikrin foi flagrado explicando aos índios que os “civilizados” é que haviamlevado a doença.Mas osKararaô não tinhammais nem força física para umavingança,segundoCotrim.Compoucomaisde24anosnaépoca,eledissenãoimaginarqueaquilopoderiaacontecerdeformatãorápidaepediuexplicaçõesaosertanistaAfonsoCruz.Omaisexperienteprocurouacalmá-lo.“OAfonsinhomedisse: ‘Issoaquiécomum.Nocontato talmorreramtantos, láemtal lugartambémmorreu’.”

Embora incapaz de justificar a trágica decisão da ditadura de incentivar umaexpedição semremédiosemédicos, a informaçãodeAfonsinhoé verdadeira eexemplos semelhantes não faltam.Apenas cinco anos antes, no governo JânioQuadros (1960-1),umgrupode índiosdaetniapacaá-novo,hojechamadosdeWari, vivia intensas escaramuças com “civilizados”, morrendo mas tambématacando e matando nas proximidades da cidade de Guajará-Mirim, emRondônia.AspreocupantesnotíciaschegaramaobispoFranciscoXavierRey,daprelaziada região, quepediuprovidências aogovernodo territóriopara evitarum massacre de índios. Seu braço direito, o padre Luiz Roberto Gomes deArruda, relatou anos depois que seringalistas “organizavam expedições para omassacredealdeamentosinteiros”.“Haviaemmédiacinquentaacemíndiosporaldeia e a ordem era exterminar até o último, não devendo ficar sequer umacriança.”5

Começou-seaprepararumaexpediçãocomoobjetivodecontatarosPacaá-Novo e trazê-los para junto de outro grupo damesma etnia que já havia sidocontatado nos anos 1950 — grupo esse, aliás, que já estava “morrendo de

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tuberculose, além da gripe, enfraquecidos, desesperados de fome”. 6 Aexpedição foimontada com recursos fornecidos pelo governador do território,Abelardo Alvarenga Mafra, pela prefeitura local e pela prelazia. Em abril, ojornalAProvínciadoParáanunciouque “oprópriopresidente JânioQuadrosdeterminouaodiretor-geraldoSPI,TassoVillardeAquino,apacificação”,poisosPacaá-Novohaviamsetornado“oterrordaquelaregião”.7

AexpediçãopartiudeGuajará-Mirimem20demaiode1961.Passadoummês,osíndiosdesfecharamumataquecontraoacampamentodos“civilizados”,deixando um trabalhador ferido. Dias depois, dez guerreiros aparecerampacificamenteedecidirampassaranoitenoacampamento,nabeiradorioOcaia.Preocupado,ArrudapediuàequipeautorizaçãopararegressaraGuajará-Mirimafimdeadquirirmedicamentos—noorganismodeumíndiorecém-contatado,uma simples gripe pode matar em poucos dias ou mesmo horas; sertanistasexperientesdaFunaipresenciaramumagripeevoluirparaumapneumoniafatalemapenas24ou48horas.8

Opadre fez umabusca por remédios na cidade,masnão tinhao dinheironecessário e as farmácias não eram equipadas a contento. Recorreu aogovernador,emPortoVelho,masobteve“apenasembrulhosderemédiosmuitoescassos”.QuandoconseguiuretornaraorioOcaia,jásehaviapassadomaisdeummês.Opadre encontrouumcenáriodesesperador.Os antigosmembrosdaexpedição haviam abandonado o local, pois não recebiam pagamento. Asmalocasestavamvazias“eosdoentesesparramadospelomato”.Emumaaldeia,opadrereuniu39“doentesesqueléticos,completamenteprostrados”.Emoutra,contou49,algunsjácompneumonia.Comaajudadosíndiossadios,carregouereuniucercadenoventaenfermos.Contoupelomenosdoismortos.

Nesse momento crítico, disse o padre, o agente do SPI José Fernando daCruz,quechefiavaaexpedição,saiuparaseencontrarcomumseringalistaquehavialheprometido“umarecepçãotriunfalcommuitacachaçaecerveja”.Antesde ir, deu ao padre uma carta “nomeando-o chefe supremo do setor todo dePacaás-Novos”.Opadreeosíndioslutaramporvintediascontraaepidemia,atéque Cruz reapareceu, ordenando-lhe que regressasse para Guajará-Mirim.Quandoopadrevoltouaorio,semanasdepois,“aepidemiagrassavanovamente

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entre os índios, tendomorrido vários”. Levados a encontrar “civilizados” sempreparo, sem medicamentos e sem alimentação suficientes, eles, na prática,tinhamsidoatraídosparaopróprioextermínio.

ApalavradopadrefoiconfrontadacomadodiretordoSPIMoacyrRibeiroCoelho,emacareaçãofeitaporumaComissãoParlamentardeInquérito(CPI)doCongresso Nacional em agosto de 1963. Coelho defendeu-se dizendo,corretamente, que a expedição começou antes do governo Goulart, então emvigor,eemnenhummomentodesmentiuasmortes.Mesesdepoisdaacareação,enviouumofícioaoministrodaAgricultura,noqualconfirmouatragédiaquedesabou sobre os índios, citando como causas “imprevisão e inépcia dos queordenaram,organizaramedirigiram”aexpedição.

Eodesastrecontinuouapósocontato.Entresetembroedezembrode1962,pouco tempo depois da expedição, o sertanista Francisco Meireles esteve naregiãoporordemdeCoelho.Atébempouco tempoantes temidosguerreirosehábeiscaçadores,osWariagorabrigavamporcomidanochão.

Ofatoéqueogrupodeíndiospacaás-novos,oúltimoaseratraído,estavaempéssimascondiçõesassistenciais,enfrentandooproblemadafome,poiscomoestavamempenhadosemtrabalhosdelavoura,longedesuasaldeias,nãotinhammaiscomquesealimentar.Quandonossostropeirosprocederamà distribuição de ração aos cavalos, foi com tristeza que presenciamos osíndiosdisputandoraçõesdemilhocomosanimais.9

UmdosparceirosdeCotrimnocontatocomosKararaô,AfonsoAlvesdaCruz,commenosde1,60metro, temestatura inversamenteproporcional ao respeitoque construiu ao longo de décadas de trabalho no SPI e na Funai. Homemsimples,descritopeloscolegascomoíntegro,amigodosíndiosecomunicativo,queganhougrande famaentre seuspares, ele épraticamente anônimo foradaFunai. Aposentado a partir de 2009, sofreu um derrame que lhe dificultou osmovimentosdo ladodireitodocorpo,masconservouboamemóriaparadatas,pessoas e fatos. Perto de completar oitenta anos em 2014, tinha a locomoçãoprejudicadaecaminhavacompequenospulos,muitodiferentedohomemativoque levou flechadas e atravessou algumas das regiões mais inclementes da

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Amazônia. Pelas suas contas, suportou a malária 26 vezes e viu um amigomorrerdefebreamarelaaoseulado.Foram42anosdeserviçosprestadosaoSPIeàFunai.

A fonsinho nasceu em 1935 numa área rodeada de índios, onde hoje selocalizaomunicípiodeSãoFélixdoXingu,noPará.Seuspaiseramagricultorese tiveramsetefilhos.Quandoopaimorreu,afamíliasemudouparaAltamira,no Pará. O pequeno Afonso deixou a escola no terceiro ano primário paratrabalhareajudara família.Nãomaisvoltouaestudar.Umcunhado,Estêvão,trabalhavanoSPIearrumou-lheumempregoem1955.Afonsinhofoideslocadopara um posto caiapó, com a tarefa de ensinar os índios a plantar. Durantecatorze anos viveu na área, tornando-se um conhecedor dos índios e dosmistériosda floresta.Umdoscontatosocorreupertodo rio Iriri.Apóscatorzediasdecaminhadanamata,aexpediçãoencontrouosíndiosem7desetembrode 1958. A expedição, disse Afonso, contava com 23 pessoas, mas os índioseram mais de seiscentos. 10 Estes, se quisessem, poderiam massacrar os“civilizados”comfacilidade,masdeixaramqueelesficassempertodasmalocaspornovedias.

Mesesdepoisdogolpede1964,AfonsofoitransferidoparaPortodeMoz,para trabalhar no contato com os Kararaô na expedição de que Cotrimparticipou,lideradaporOsmundo.Apósmuitocaminharemnamata,Afonsoviuumgrupodeíndiosescondidosecomeçouafalaremcaiapó.Elesestavamnusearmadosdearcoeflecha.Oúnicoadornoqueusavameraumtecidonobraço.SegundoAfonso,omesmogrupohaviamassacrado três“civilizados”semanasantes, o que foi a gota d’água para o tenente-coronel Passarinho bancar aexpedição.EmrespostaaosgritosdeAfonsinho,osíndiosindagaramquemeleera. O sertanista disse ser “um cristão”. Como conhecia outros Kararaô quehaviamsidocontatadosnosanos1950,passoucitarseusnomesemvozalta,oquepodeterconvencidoosíndiosdequeaexpediçãovinhaempaz.AequipedoSPIpassouadistribuirpresentes,comofacões,machadosemiçangas.

A fonsinho disse que dias após o contato as coisas começaram a sair docontrole.UmKararaôdenomeBoraibrincavacomumaarmadefogoquando,poracidente, feriuumtrabalhadordabase.Como“castigo”,ochefesubstituto

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daFunainaáreadecidiulevá-loparaumranchoqueficavarioabaixo.Maselenãosabiaquenoranchohaviasarampo.Oíndio,semsaberqueestavadoente,conseguiudepoisvoltarporcontaprópriaparaamalocadosKararaô,emumacanoa emprestada de um colono. “E o sarampo matou eles todinhos. Os queestavam lá, morreu tudo. […] Quando ele voltou, apareceu o sarampo. Elesestavamsozinhos.OchefequetomavacontaestavaaquiemAltamira.”

Assim,AfonsinhoconfirmouodesfechodocontatonarradoporCotrim—que apenas qualificou de gripe o que teria sido sarampo e apontou outro focotransmissor.

No início da epidemia, Afonsinho se encontrava em Altamira quandocomeçaram a chegar as notícias de que os índios estavam morrendo. O SPIarrumouumaviãoparaosertanistasobrevoarasmalocas.Eleasviudesertas.Devolta à cidade, procurou FranciscoMeireles para lhe dar a notícia de que osíndios ou tinham ido embora ou haviam morrido. Estavam em AltamiraAfonsinho,Meireles,osertanistaOrlandoVillasBôas,quevieradoParquedoXingu,eoservidordoSPIqueeraoresponsávelpelabasedeatração,citadoporAfonsocomosendoJoaquimGama.Ogrupofoidebarcoàregião,maseratardedemais.

“Quandochegamoslá,opessoalestavamorto.OsKararaô.”“Osenhorchegouaveroscorpos?”,indaguei.“Vi. Sei que eram 48. Estavam sendo enterrados dentro de casa. Eles

cavaramessassepulturasdentrodecasamesmo,nãofora.Nãotinhamcondiçõesdecaminhar,defazernada.”

“Eramquantosmortos?”“Eleseram48,morreutudoos48,ficousósete[vivos]dos48,queestavam

em Porto deMoz.” O cálculo de Afonso, de 41mortos, é quase igual ao deCotrim,quehaviacontadoquarenta.“Morreutudo.Osqueestavamlámorreramtudo.Sóumqueescapoueosoutrossaírampromato,morreramnomato.Urubucomeu.Ourubufoiquecomeueles,ocorpodeles.”

***

Eu disse tanto a Afonsinho quanto a Cotrim que não havia localizado nos

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arquivos da Funai relatório algum de Osmundo ou deMeireles que indicasseessenúmerodemortosporepidemiasentreosKararaô.Afonsoexplicouentãooqueocorreunamesmatardeemqueassepulturasdosíndiosforamencontradas,expondoumsegredodemuitasdécadas.

Oresponsável[encarregadodaoperação]eraoGama.OVillasBôaschegoua ver as sepulturas. O sr. Orlando disse que não fez [relatório] porque iaprejudicaroseuMeireles.FalouláquenãoiafazerporqueiaprejudicaroMeireles.Faloulá,assim,paratodomundover.

Emboranãotivessenenhumaculpadiretapelasmortes,Meireles,segundoacompreensão de Afonsinho naquele momento, era o responsável geral pelaoperaçãodeatraçãodosKararaô,comovinhafazendodesdeosanos1950comoutrosgruposkayapó.MeirelestambémeraochefedaInspetoriadoSPInoParánaépocadaepidemia—cargoqueexerceudesetembrode1964anovembrode1967.11

OaltocargoocupadoporMeirelesexplicariaanoçãodeOrlandodequeumrelatórionegativopoderiacriarproblemasparaosertanistajuntoàdireçãodoSPI. Meireles, que segundo Afonsinho se tornara alvo de críticas de setores doórgão, de fato acabaria sofrendo uma prisão administrativa, como veremosadiante.Muitosanosdepois,ofilhodeMeireles,Apoena,tambémrelatouqueopaiquasefoipresopelosmilitareslogoapósogolpede1964,tendosidosalvopelainterferênciadosirmãosVillasBôas.12

Pessoas que conviveram com Meireles o descrevem como um ardorosodefensordosíndios,quededicousuavidaaeles,enfrentoucondiçõesdasmaisadversasemorreunapobreza.AsmortesdosKararaôforamfrutodascondiçõesgeraisdetrabalhodoSPI,dacarênciadedinheiro,depessoal,demedicamentosedealimentos.Masnuncaforamregistradasemdocumento,segundoAfonsinho,emrespeitoàcarreiradeMeireleseporordemdeOrlando.

Osprincipais estudos sobreogrupodeKararaôdePortodeMoz foram feitospelopesquisadorExpeditoCoelhoArnaud(1916-92)aindanadécadade1970.Emseustrabalhos,eletambémnãofazreferênciadiretaanenhumdocumentodo

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SPIoudaFunaiquetenharelatadoasquarentamortes,masconfirmaaepidemiae as perdas humanas.Como pesquisadores doMuseuGoeldi, Expedito eAnaRitaAlves,ambosentãobolsistasdoConselhoNacionaldePesquisas,oCNPq,tiveram acesso aos relatórios produzidos pela 2a Inspetoria do SPI /Funai efizeram“entrevistas comsertanistas e comváriosoutros servidoresdoórgão”,seus“informantes”.

Naentrevistaparaestelivro,Afonsinhonarrouque,juntocomaequipequesaiude Porto deMoz comMeireles e Villas Bôas, seguiram no barco três índioskararaôdomesmogrupoqueanteshaviasidodeslocadoparaAltamira.Quandochegaramaolocaldaepidemia,“chorarammuito”.

“Masnãodisseramnada,nãoculparamos‘civilizados’?”,euquissaber.“Nãodisseramnada,não.Deixarampralá.Sófizeramchorarmesmo.”“Edosqueescaparam,háalgumvivo?”“Seacabou.EmBacajámorreramtodos.”

Cotrimdissetersedadocontadequeoscontatoscommortesporepidemiasmalcontroladas não eram uma raridade do SPI , na verdade eram muito comuns.Ficou abalado, mas, em vez de desistir, achou que deveria permanecer notrabalho indigenista porque “esse sistema tem que mudar”. Ele nem erafuncionáriodoSPI,masapartirdalidecidiuque,assimqueretornasseaBelém,tentariasercontratado.Nacapitalparaense,CotrimpassouafrequentaroMuseuGoeldi,paralertodotipodemonografiaserelatóriosdoSPIquefalassemsobrecontatose“pacificação”deíndios.Queriacompreenderasrazõesdohorrorquepresenciara.Históriassemelhantessucediamaolongodosanos.

A região de Bacajá foi palco de outro contato do qual participaramAfonsinho e Meireles. Os índios depois seriam definidos como xikrin, outrosubgrupo kayapó. Eles haviam atacado seringueiros perto de Altamira e ogoverno pediu queAfonsinho eMeireles fossem para lá. A data exata dessesfatosnãoéprecisanamemóriadeAfonso—oraeleasituanofinaldosanos1950,ora“comcerteza”naépocadaditadura.Aequipetinhatrezeparticipantes,incluindo cinco Kayapó. Após uma caminhada de vários dias, seguindo uma

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picadadeixadapelos índios,aexpediçãoosencontrou.Devidoaumproblemana perna, causado pela queda de um cavalo, que o obrigava a manquitolar,Meirelesfoidebarco,pelorio.Afonsocontou155índiosnoprimeirocontato.Poucodepois,segundoele,aequipedoSPIpegoucincodessesíndioseoslevouparaAltamira.Quando regressaramàaldeia,estavam todosdoentesdegripeecontaminaramtodoogrupo,quesedispersoupelamataeimpediuumtrabalhodecombateàepidemia.

“Aí,pronto,aímorreu[gente].Ficaramsó95.”“Entãomorreramsessentaíndiosxikrin?”,indaguei.“Morreram.Issoaíeuvi.Tevediaqueamanheciadois,trêsmortos.Euvilá

noBacajá. […]Não tinhamedicamentos,morreu quase todomundo.Quando[Meireles]mandoubuscarremédio,eratarde.Altamiramandouenfermeiro,masjátinhammorrido.[…]Eusepulteiquasetodomundo.”

“Enessecasofoifeitoumrelatório?”“Não,quemfazia[relatório]eraoutrocolega,oCosta.Nãosei[seelefez].

Nãosefazia,não.”“Porquenãosefaziarelatório?”,euquisnovamentesaber.“Morria e o pessoal não dava atenção. […] Não existe documento sobre

isso.”

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2.UMVAZIO

A MAIS DE 1600 QUILÔMETROS DE PORTO DE MOZ, OUTRODRAMA COMEÇOU a se desenrolar, de novo desconhecido da opiniãopúblicaequesóveioàtonaemtodaasuadimensãomuitotempodepois.Corria1966, dois anos depois do golpe militar, e os proprietários de uma fazendapróximaàcidadedeSãoFélixdoAraguaia,emMatoGrosso,estavamàsvoltascom um grupo de índios xavante que viviam ali — como foi fartamentecomprovado—muitoantesdeos“civilizados”chegarem.

OdestinodessesXavantecomeçouasertraçadoemjulhode1965,quandoogovernomilitar anuncioupela imprensaqueopresidente,ogeneralCastelloBranco, enviaria no mês seguinte ao Congresso um amplo programa dereformulaçãodapolíticade“valorizaçãoeconômicadaAmazônia”.1

Castello Branco conhecia a região. No final dos anos 1950, era ocomandante militar da Amazônia, em Manaus, quando pôs em prática umagrande manobra militar que envolveu “deslocamentos fluviais, operações naselva, reconhecimentos de fronteiras, transporte de toneladas de cargas emunições”.Ogeneralempessoavisitoucadaguarniçãodaregião.2

AtesedequeoExércitodeverialiderarumesforçonacionalde“ocupação”da Amazônia era recorrente entre os militares desde, pelo menos, o final doséculoXIX,quandooprimeiropresidentedaRepública,omarechalDeodorodaFonseca,pregoua“fundaçãodecolôniasnacionais”novastoterritóriodoatualestadodoAmapá,deformaautilizar“terrenosférteis,hojeinteiramenteinertes,para a formação da riqueza nacional”. Nesse processo, caberia ao índio,consideradoum“estorvo”,opapeldetrabalhadorbraçal.

Muito recomendável é também a catequese das tribos indígenas que em

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grande número vagueiam pelas nossas regiões desertas, e que, nãoraramente, invadem terras cultivadas, devastam-nas e assim estorvam otrabalho agrícola da população civilizada. Cumpre envidar esforços paraabrandar-lhes os costumes selvagens e, quanto possível, atraí-las aotrabalho.3

***

AhistóriadarelaçãodosmilitaresbrasileiroscomosindígenasnaAmazôniafoi,desdeocomeço,marcadaporgrandesincompreensões,tensõeseviolência.Umherói do Exército, o português Pedro Teixeira, nascido em 1587, é celebradoaindahojeentreosmilitarescomoumsímboloda lutapelasoberanianacionalpor ter combatido a invasão de europeus na Amazônia. Mas ele tambémparticipou de expedições de guerra contra os Tupinambá, deixando algumasaldeias “em cinzas”, e comandou ataques a índios para transformá-los emescravos. Amissão geral das expedições militares de então era “amansar” osíndios. As tribos que resistissem “eram consideradas tão inimigas quanto osingleses,holandesesoufranceses”.4

Poroutrolado,deve-seaumgrupodemilitares,encabeçadopelomarechalRondon,mato-grossensedeMimosoformadopeloExércitonoRio,aintroduçãodeumavisãomaishumanísticaesolidária,derespeitoaosíndios.OSPI surgiuem 1910 como um orgulho da parte da oficialidade brasileira ligada aopositivismo e foi dirigido em vários momentos de sua história por militares,alguns ex-colaboradores da Comissão Rondon, criada para construir as linhastelegráficasqueligariamMatoGrossoaoAmazonas.

RondonresumiunumafraseaquiloqueosfuncionáriosdoSPIdeviamseguiràriscanocontatocomosíndios:“Morrerseprecisofor,matarnunca”.Olemamoldouumaconsciênciaqueestimulougeraçõesdeheroicoshomensemulheresa trocar o conforto das cidades pela vida ao lado dos índios em regiõesinsalubres e perigosas. Muitos morreram pelas mãos dos próprios índios quedefendiam. A história de 57 anos do SPI é farta em arriscadas aventuras emassacresdegruposinteirosdefuncionáriosqueserecusaramaatirarcontraosíndios,pagandocomaprópriavidaolemadeRondon.

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OSPI,porém,viviaumacontradiçãodesdeonascimento.Foicriadocomoobjetivo de proteger os índios, porém ao mesmo tempo prepará-los para setornarem parte da “comunhão nacional”, ou seja, virarem trabalhadores ouprodutores rurais. Ao agir assim, operava contra a cultura, a história e aorganizaçãodessesgrupos.OprimeironomedoSPI,aliás,foiSPILTN,ServiçodeProteçãoaos ÍndioseLocalizaçãodeTrabalhadoresNacionais.Paranãohaverdúvidassobreoespaçoquecabiaaoíndionesseplanogovernamental,oórgãoeravinculadoaoMinistériodaAgricultura.

Depoistidacomoburlescaesemsentido,avisãodequeoíndiopoderiasetornarumagricultor“produtivo”porumasimplesdecisãodos“civilizados”naépoca de criação do SPI representava, a rigor, um avanço em relação a umpassado próximo. Cem anos antes, o então príncipe d. João VI havia emitidocartasrégiasquedeclaravamguerratotaleescravizaçãodosíndiosbotocudosdeMinasGeraisedos“bugres”deSãoPauloedeGoiás.Essespapéis,deautoriainquestionável,sãoaprovadocumentaldeumapolíticadeextermínioque,umséculodepois,setornariainconcebívelparaospadrõesdoSPI.

Apósogolpede1964,osmilitaresretomaramantigasideiasde“ocupação”daAmazônia,muitasvezes semdeixarclaroqual seriaopapeldo índionessecenário.EmsuaGeopolíticadoBrasil,escritanosanos1960,ogeneralGolberydo Couto e Silva, um dos protagonistas do golpe de 1964 e criador do SNI ,definia a larga porção “a oeste”, incluindo a Amazônia — que chamou de“desertoverde”—,como“osimplesdomínio,oBrasilmarginal,inexploradoemsuamaiorparte,desvitalizadopelafaltadegenteedeenergiacriadora,eoqualnoscumpreincorporarrealmenteànação”.

Resumindosua“ideiademanobrageopolíticapara integraçãodo territórionacional”,Golberypropunha três linhasde ação: ligar oNordeste e oSul “aonúcleo central do país”; “impulsionar o avanço para noroeste da ondacolonizadora,apartirdaplataformacentral”;e“inundardecivilizaçãoahileiaamazônica,acobertodosnódulos fronteiriços,partindodeumabaseavançadaconstituídanoCentro-Oeste”.5

Comogolpe, osmilitares tinhammeiosparapôr empráticaumplanode“ocupação” demaior fôlego. Havia no ar várias ideias. Amais absurda era a

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criaçãodeumcerto“GrandeLagoAmazônico”,quepreviaaconstruçãodeumabarragemnorioAmazonasparainundarmilharesdehectares“deterrasbaixas”,criando “um verdadeiro mar amazônico, permitindo uma navegação em largaescala”. Nada menos que 29 cidades desapareceriam, incluindo Manaus eSantarém.6Amacabrapropostaficoucomoumdelírio.

Em dezembro de 1966, Castello Branco reuniu em Belém boa parte dacúpula do governo, empresários e industriais para anunciar a “OperaçãoAmazônia”, um conjunto de medidas que pretendia criar “condições para opovoamento” da região, que se tornou nada menos que “um imperativo daprópriasegurançanacional”.7

Da série de medidas anunciadas, três se destacavam: a criação daSuperintendênciadoDesenvolvimentodaAmazônia(Sudam)emsubstituiçãoàSuperintendênciadoPlanodeValorizaçãoEconômicadaAmazônia(SPVEA),aabertura de linhas de financiamento nas áreas de agropecuária e serviços e aformaçãodeumFundodeValorizaçãoEconômicadaAmazôniamantido comreceitastributáriasdaUnião,estadosemunicípios.Noanoseguinte,surgiuumcomponenteaindamaisatraenteparaosempresários:umgenerosoesquemadeabatimentonoImpostodeRenda.SistemasemelhantejáexistiadesdeogovernoGoulart para a região Nordeste. Os militares o ampliaram para a regiãoamazônica,permitindooabatimento,paraosdezesseisanosseguintes,de50%dos impostosparaosempreendimentosque jáestavaminstaladose100%paraosquese instalassematéofimdoexercíciofinanceirode1971.8Asmedidasvaliam para uma vasta região que englobava os estados do Acre, Pará eAmazonas,osterritóriosdoAmapá,RoraimaeRondôniaepartedosestadosdeMato Grosso e Goiás. 9 Mais tarde o alcance do programa seria ampliado,atingindo cerca de 5milhões de quilômetros quadrados, ou 60% do territórionacional.Emjunhode1969,emumapalestraàEscolaSuperiordeGuerra(ESG), o entãoministro do Interior, Costa Cavalcanti, declarou que a ocupação daAmazônia teria que ser feita “demaneira racional e duradoura, do Sul para oNorte,partindodeMatoGrosso”.10

Atentativade“ocupar”aregiãoestavaemconsonânciacomoultrassecretoConceitoEstratégicoNacional,elaboradopelaSecretaria-GeraldoConselhode

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SegurançaNacional(CSN)eentregueemmarçode1969pelogeneraldebrigadaJayme Portella deMello ao então chefe do SNI , o general de divisão EmílioGarrastazuMédici,quesetornariapresidentedaRepúblicaemoutubrodaqueleano. O documento, que permaneceu sigiloso na Presidência da República até2006, apresenta o conjunto de diretrizes que deveriam nortear as ações daditadura.Estipuloucomoumadasmetaso

desenvolvimento de uma política ordenada de expansão e distribuiçãoespacialdapopulação,orientadaedirigidaparaaexploraçãodopotencialderecursosnaturaisdopaís,emsetoresprioritáriosouemregiõesselecionadas,bemcomoparaaocupaçãoracionaleefetivadoterritórionacional.11

Aolongodas45páginasdodocumento,nãohápalavrasobreosíndios.O programa de incentivos atraiu a atenção de empresários do Sul e do

Sudeste.Paratirarosprojetosdopapel,porém,ossulistasprecisavamdeterrasboasebaratas,equempossuía títulosdealgumasdessaspropriedadeseramoscolonizadores mais antigos, que haviam chegado antes da ditadura. Um dosprincipaisemMatoGrossoeraAriostodaRiva,nascidoemAgudos(SP ),queajudou a fundar inúmeras cidades do estado, como Naviraí, Alta Floresta,Apiacás e Paranaíta. No início dos anos 1960, Riva também havia adquiridoporçõesdeterrapertodeSãoFélixdoAraguaia,quesomavam690milhectaresbanhadosporquatrorios.12OgrupoempresarialdafamíliadeorigemitalianaOmetto, do interior paulista, associou-se a Riva para montar na região umaimensa fazenda de gado, batizada de Suiá-Missu, em referência a um rio. Oempreendimento recebeu forte apoio da Sudam, tornando-se, em extensão, omaior dos projetos apoiados pela superintendência e o segundo em valoresnominaisdeincentivosfiscais.13

OGrupoOmettoamplioucomrapidezasderrubadasdematanaregião.14Nessa época, havia duas aldeias na área da fazenda, uma com 180Xavante eoutra de nome Marãiwetsede, com 130 índios. Os dois grupos acabaramunificadosnumaaldeiapertodasededafazenda,quejáviviaumaagitadarotinacom mais de setecentos trabalhadores rurais atuando em destocamento econstruçãodeumapistadepouso.15

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Um dos funcionários do Grupo Ometto era um jovem paulista chamadoDarioCarneiro,quedesdepequeno“sonhavaemconhecerumavidaselvagem,conheceroíndio,liamuitotodososlivrosdabiblioteca”.15Elese tornarianofuturoumapeçafundamentalparaacompreensãodahistória.

Porvoltademarçode1966,aos23anos,Dariochegoudeaviãoàfazenda.NenhumXavantefalavaportuguês,algunsandavamnuseoutrosusavamcalção,eninguémda fazenda falavaoxavante.Dario se tornoupróximodos índios eaprendeuafalaralínguadeles.Osadministradoresdafazendalhederamatarefadelidarcomtodosos“problemas”queenvolvessemosíndios.Elesestavamalihaviamuitosanos,segundoDario,“jáeramosúnicoshabitantesdaregião,atéaserradoRoncador,antesqueoutraspessoasláchegassem”.17

Aprincípioeraboaarelaçãoentreosíndioseaadministraçãodafazenda.Mas em determinado momento houve a decisão de afastá-los da sede dapropriedade. Eles foram levados para perto do rio Tapirapé, a cerca de vintequilômetrosdasede.Dariopassouafrequentarolocal,“prestandoassistência”.

AsituaçãodosXavantecomeçouapreocuparospadresdaMissãoSalesianadeSãoMarcos,ematividadedesde1918nasproximidadesdacidadedeBarrado Garças e a cerca de seiscentos quilômetros de Suiá-Missu. Um deles eraBartolomeoGiaccaria,outroeraPedroSbardelotto,ambositalianos.Oprimeirocontoudepoisqueos índiosnaverdadeestavamnuma regiãode“varjões […]semcondiçõesde sobrevivência, inundadasnas épocasde chuva”, e semáguapotável.“Osíndiosforamacometidosdeváriasdoenças,chegandoamorrerdedezadozeadultosemumano.”18

EssamortalidadejamaisfoireveladapeloSPInaépoca,sendoumdostantossegredos da ditadura no campo indígena. O órgão, que deveria proteger osíndios, simplesmente inexistia naquela região.Os donos da fazenda decidiramentão convencer os índios, os padres salesianos e o SPI a providenciar umatransferência de todo o grupo para São Marcos. Remoção semelhante seriaimpensávelnumambientedemocráticoecommelhorespráticasindigenistasemvigorapósofimdaditadura,quepreveemamanutençãodosgruposindígenasemseusespaçosimemoriais,comaconsequentedemarcaçãodassuasterras.Em1966, contudo, amudançados índios foi tratadacomoalgo tãonaturalquanto

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uma viagem turística. Para não restarem dúvidas sobre o caráter oficial daremoção,oSPIfezumaautorizaçãoporescrito.

Pelapresente,ficaautorizadaaMissãoSalesianaSãoMarcosa transportaríndios xavantes da aldeia próxima a São Félix, Mato Grosso, até aquelamissão,desdequeosmesmosassimodesejem,ficandoapermanênciadosreferidosíndioscondicionadaàvontadedosmesmos.19

Opapel,de11dejulhode1966,foiassinadonãoporumsimplesagentedoSPInaregião,massimporNiloOliveiraVellozo,ochefedaSassi,principalsetordeassistênciaaoíndiodoSPIemBrasília.

Temposdepois,oantropólogoDarcyRibeiroqualificouessaremoçãocomo“umaespéciedepogrom”.20

AautorizaçãodoSPIeranapráticaumchequeembrancoaosfazendeiros,poisligava os índios a decisões que eles não tinham capacidade de tomar, já queintegravam um grupo de contato recente, que mal falava o português, comoconfirmouDario.Elessevirampresasfáceisdepromessasmirabolantesdeumfuturo glorioso.Umdos trunfos da fazenda para a transferência foi convencerumXavante,Tibúrcio,caciquedaaldeiaIre’Pa,dequeos índioscorriamriscode extinção se continuassem nos varjões. Dessas conversas participou oproeminente sertanista Orlando Villas Bôas, que também manifestavapreocupaçãocomasmorteseofuturodogrupo.

Não é de estranhar a presença de Villas Bôas nessas negociações. Ele e seuirmão Cláudio haviam feito transferências de outras etnias para o Parque doXingu e também consideravam que, para preservar um grupo de um riscoiminente,paraevitarmortes,deveriamserfeitasremoções.Namesmaépocadacrise com osXavante,Orlando estava de olho nas condições de um grupo deíndios ikpeng, também chamado de “txicão”. O sertanista havia localizado osíndios após um sobrevoo realizado em outubro de 1964, portanto já sob aditadura. Os Ikpeng foram vistos rondando roças de duas aldeias de índiossituadasdentrodoParquedoXingu,mashabitavamumaáreaao longodo rio

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Jatobá, fora dos limites do parque.Após um contato em que correram riscos,OrlandoeCláudiodecidiramtransferirosIkpeng.Elesatestaramquegruposdegarimpeiros seaproximaramdos índios,pondo-osemperigo.“Asolução,paranãoassistiraodesaparecimentodemaisumanaçãoindígena,foiplanejarqueseinternassemna área do parque, trazê-los para dentro do posto. Ficariam sob anossaguardaevigilância.”21

Em1966,OrlandoadotouamesmaestratégiaderemoçãodosíndioskayabiquehabitavamasmargensdosriosTelesPiresedosPeixes.Elessofriamcomasdoenças e ataques de seringueiros e fazendeiros. “Vinte anos atrás teve umadoençamuitoforte,quechamasarampo.Elaacaboucomquatroaldeiasenessaépocanãotinhamédiconemmonitor[desaúde].Daíeuperdiminhamãeemeuirmão.Nósperdemos130pessoas.Issoémuitotristeepoucagentesobreviveu”,escreveu Aturi Kayabi em 1990 para uma pesquisa da Universidade de SãoPaulo(USP).22SabinoKayabi,nascidoporvoltade1925,narrouque“dentrodeduassemanas,morreram198pessoas”.

Oambientedoentornodasaldeiaseradeextremoperigo.Sabinonarrouquetrês seringueiros assediaram sexualmente índias, incluindo suamulher, quandoumgrupodeKayabipassouumanoitenoacampamentodelesnaregião.Aoserinformadosobreaacusação,ochefedosseringueiros,Bernardino,pediunodiaseguintequeoshomens“quemexeramcomasíndias”seapresentassem.SobamiradeumrevólvereaoladodeSabino,Bernardinolevouostrêsparaaselvaeosobrigouacavar trêsburacos.Apósabriremsuasprópriassepulturas,os trêsforammortoscom tirosnacabeça,na frentedo índio.Umrecebeuum tironatestaquandoaindafaziaosinaldacruz.BernardinopediuqueSabinorelatasseoquesepassouparatodososKayabiesuamulher.23

Segundoos índios,osVillasBôas foramacionadosporumpadre,preocupadocomodestinodogrupo.CanísioKayabiescreveuemabrilde1981queprimeiroumgrupodedezíndioskayabi,dentreosquaisolíderPrepori,chegouaoParquedo Xingu. 24 Após consultá-los, os Villas Bôas decidiram trazer as outrasfamílias e, para isso, pediram ajuda a Brasília, que enviou uma equipe daAeronáutica.Osmilitares abrirampicadas e umapista depousoperto deuma

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trilha,abertaantespelossertanistas,quedavaacessoàsaldeiaskayabi.OsdezKayabieosVillasBôasconvenceramosoutrosíndiosasemudar.Sabinoesuafamíliaforamapé,comPreporicarregandoumacriançanascostas.Nomeiodocaminho passaram “mal de fome, comida nós não encontrávamos nada”. Emseguidavieramoutrasfamílias.UmapartedosíndiosdoriodosPeixes,contudo,decidiuficar.

Os Xavante de Marãiwetsede agora também estavam prestes a serremovidos. Outro padre salesiano de São Marcos, Mario Ottorino Panziera,reconstituiuanosdepois todooprocessodadecisãogovernamental.Seu relatodemonstramaisumavezqueaoperaçãopassouporaltosescalõesdogoverno,nãose tratandodeumaatitudevoluntaristadealgumservidor.PanzieraesteveemconversasfrequentescomoempresárioHermínioOmettoeambosdecidiramrecorrer à ajuda de aviões da ForçaAéreaBrasileira (FAB ). Foram aoRio deJaneiro, onde falaram com ninguém menos que o ministro da Aeronáutica,brigadeiro Eduardo Gomes, que consultou sua assessoria e autorizou otransporte.Naprimeiraviagem,oaviãodaFABlevou54índios,entreadultosecrianças.Osíndios“foram‘aglomerados’eosargentopassouemvoltadelesumúnicocinto”,25disseopadre.Asdemaisviagensocorreramentreumasemanaedezdiasdepoisdaprimeira.

Mesesapósatransferência,DarioCarneirofoiprocuradocomurgênciapelaadministração da fazenda. A ordem era ir na mesma hora para São Marcos.Dariotestemunhouumatragédia.

Osíndiosquetinhammudadoparalá,quevieramdeSuiá,deMarãiwetsede,estavamtodosdoentes,todosdeitados,ocupandoáreasdaigreja,daescola,da missão, deitados no chão, forrado com folha de palmeira, mulheres,crianças,peleeosso,muitomagros.Tinhadadoumaepidemiadesarampoenosdiasqueeupasseicomelesali,numasemanamorreramsetenta.26

OsXavantedeSãoMarcosforammobilizadospelospadresparatentarcontrolara epidemia. Um deles era Pio, que disse ter 85 anos em 2015, quando oentrevistei durante umaviagemque fez aBrasília. Filhodo caciqueErebê’uá,Pio afirmou que eram tantos corpos que foi necessário transportá-los em uma

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carreta puxada por um trator e despejá-los numa cova comum. Ele ajudou acavaroburaco.

“Quantosíndiosmorreramatéofinaldaepidemia?”,euquissaber.“Parecequecem.Juntocomcriançatambém.”Pio disse que o surto começou por volta de cinco semanas depois da

chegadadosíndiosdeMarãiwetsede.Eleacreditaqueelesnãoforamvacinados,emboraSãoMarcosjátivessesidofocodeoutrosurtodamesmadoença,anosantes. “Eu não esqueço. Eu tenho muita dor no coração. Coitados. Por quesarampofazerassim?Tudocriança.Bebê,coitado,morreumuito.”27

O número correto de mortes talvez jamais seja conhecido, mas é certo queatingiu várias dezenas. Dario testemunhou setenta em apenas uma semana. OpadrePanzieraafirmouqueadoençasealastrouporXavantesdeSãoMarcos,matando“cercade20%dapopulaçãoxavanteláexistente,tantodosquevieramdafazendaSuiá-MissucomoosquejáseencontravamemSãoMarcos”.28Elecalculou em quinhentos ou seiscentosXavante namissão e cerca de duzentosoriundos de Suiá-Missu, o que indica de 140 a 160 mortos na epidemia.GiaccariadissequevieramdeSuiá-Missu trezentos índios, que “poucodepoisforamacometidospelosarampo,causandoamortedecercadecemdeles”.29OmédicoNoelNutels, emdepoimentonoCongressoNacional em1968, relatouquenosdoisprimeirosmeses“morreramnoventaíndiosdesarampo”.30JáumrelatórioassinadopelaantropólogaIsaMariaPachecoRogedo,diretorainterinadaDiretoriadeAssuntosFundiáriosdaFunai,datadode1992,indicouumtotalde “83mortos”. 31 Ela citou como fonte de referência um livro de 1977, deautoria de Shelton Davis, diretor do Centro de Pesquisas Antropológicas emCambridge, Massachusetts, nos Estados Unidos, que por sua vez referedocumento produzido pelo bispo dom Pedro Casaldáliga, da prelazia de SãoFélixdoAraguaia.

Opai do caciqueDamiãoParidzanémorreu na epidemia.Nos anos 1990,DamiãoconfirmouàsantropólogasdaFunaiPatríciadeMendonçaRodrigueseIaraFerrazqueeramtantoscorposqueamissãoprecisoudaajudadeumtratorparatransportá-losatéocemitério.Naconfusão,quatrocriançasxavanteforam

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dadascomodesaparecidaspelospais,comasuspeitadequetenhamsidodadasa“civilizados”. “Cento e sessenta [mortos].OpadrePedro falou cento e pouco;mestreMáriofalouemCuiabátambémquefoi150.Meupai,logoquechegou,pegouadoençaeficousofrendodoisdias.[…]Morreudoisdiasdepois.”32

Combasenesses registros, épossível calcularquede setentaa160 índiosxavante pereceram em decorrência de uma transferência mal planejada,autorizadamas não acompanhada pelo SPI , que não levou em conta e não sepreveniu de modo adequado sobre o risco da epidemia. A vacina contra osarampojáexistiaemoutraspartesdomundo,massófoiintroduzidanoBrasil“no final da década de 1960 (1967-8), porém sua utilização era de formadescontínua”. 33Mas a transferência emmassa, a aglomeração de índios nosmesmos espaços e os novos contatos do grupo de Suiá-Missu com diversos“civilizados”,comoa tripulaçãodosaviões,podem terdisparadoeagravadoaepidemia.

Não há sinal, nos principais jornais da época, de que o SPI tenha dadopublicidadeaessasmortes.UmanotacurtanojornalOGlobode12desetembrode 1966 fala apenas que um “surto infeccioso” atingiu índios xavante naslocalidades de São Marcos e Sangradouro e que o governo federal enviouremédiosparaaregião.

Passada a epidemia, os sobreviventes tentaram várias vezes regressar aMarãiwatsede,semsucesso.UmgrupochegouacaminharatéSuiá-MissuparapediroapoiodeDario.Elelevouopedidoàdireçãodafazenda,que,contudo,disse não ser mais possível o retorno dos índios, uma vez que haviam“concordado”emirembora.

Na ausência dos índios, Marãiwetsede foi toda repartida. Dois centrosurbanosnasceram,primeiroacidadedeAltoBoaVista,depoisaviladePostodaMata.Amadeira foi retirada em larga escala e os posseiros permaneceramnaregião,naexpectativadeconseguirumpedaçodeterra.

Temposdepois,oantropólogoMércioGomesdissequeatransferênciadosXavante foi “uma prova explícita, com a conivência do órgão indigenista, deusurpaçãodeterrasindígenas”.34

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OsXavantenãoofereceramresistência,masoregimemilitarassistiu,naquelesmesmosdias,àirrupçãodeumarebeliãoentreosíndiosmaxacalinadivisaentreMinasGerais eBahia, que os jornais logo chamaramde “guerra”.Emmeio auma crise de alimentos, os índios começaram a atacar e matar o gado defazendas vizinhas. Também questionaram os baixos preços pagos pelosarrendatários de suas terras. Por fim, insurgiram-se contra uma tentativa defazendeiros de, por meios judiciais, reduzir a área indígena da aldeia doPradinho. 35 Cerca de 350 guerreiros fabricaram arcos, tacapes e “flechasenvenenadas”,segundorelatouumengenheiroagrônomo.36

OSPIeraincapazdefazerfrenteàcrise.AajudânciaemMinasGeraishaviasidocriadaemjaneirode1966,masatémaiofuncionou“provisoriamente”numhoteldeTeófiloOtoni(MG),oRex.Depoisdereclamar,ochefeconseguiuumlugar emprestado pela prefeitura, “uma pequena sala demadeira compensada,seminstalaçãosanitária,semágua,emprédiovelhoecondenado,semmóveiseutensílios”. O SPI não tinha nenhum funcionário, com exceção do chefe, quedirigiaasipróprionasfunçõesde“datilógrafo,escrevente,motorista,contínuoeservente”.Aajudânciaeraresponsávelporumavastaáreadedoisestados,ondefuncionavamquatropostosindígenasmaxacali,pataxóekrenak.37

O quadro era terrível nesses postos.NoMariano deOliveira, que atendia269 índios, “não houve produção” alguma no começo de 1966, gerando“escassez de gêneros alimentícios” e constantes denúncias de que os índiosatacavamematavamogadodosprodutoresvizinhos.Emnovembro,elesforamatingidospor“umafortegripe”,alémdeterhavidomuitoscasosdeverminose.Emmarçode 1967, os índios das aldeiasPradinho eÁguaBoa entraram“emchoquesangrento”,ocasionando“quatromortosedoisferidos”.Oencarregadodo posto disse que os índios “continuam promovendo desordens, atacando eroubando gado e plantações dos arrendatários e vizinhos. Alegam estar comfome”.38Emabril,“todososservidores”dopostoMarianodeOliveira“foramatacadospelosíndios”.39

O enfrentamento do levante indígena primeiro ficou sob os cuidados dogeneral de exército Dióscoro Gonçalves Vale, comandante do ID /4, a sedemilitardoExércitoemBeloHorizonte,quedepoisenviouàregiãoocapitãoda

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PolíciaMilitar deMinasGeraisManoel dos Santos Pinheiro.Este reconheceuhaverumquadro“decompletoabandono”nopostodoSPI.

Os índios semassistência e umclimade apreensãodevido a bebedeiras eassaltos praticados pelos mesmos; os índios roubavam e assaltavampremidospela fomeemiséria;não tinhamcondiçõesde trabalhodevidoaseus péssimos estados de saúde, pela falta de ferramentas, sementes,sobretudo,pelaespoliaçãodesuasterras,arrendadasapreçosvis.40

Uma unidade da Polícia Militar de Minas, a Polícia Rural, “assumiu ocontroledaadministraçãodopostoindígena”,configurandoumaintervençãonoineficazSPI.41Oatendimentoaosíndiosmelhoroueatensãodiminuiu.

Passado pouco mais de um ano da rebelião, o coronel Hamilton Castro,diretordoSPI,dissequeoórgãoinvestigouoassuntoeconcluiuqueosvalorespagos aos índios pelos arrendamentos eram de fato “irrisórios”. “Essaagressividadedosindígenas,segundoficouverificado,eradevidaàsituaçãodefome em que se encontravam, alegando que todas as terras haviam sidoarrendadas,porpreçosínfimos.”42

Tensão semelhante se instalou na região de Vilhena, no antigo territóriofederal de Rondônia. Em março de 1965, um grupo de índios cinta-larga daregiãodoRiozinho,acercadesessentaquilômetrosdeVilhena,seaproximoudeumavilalocalizadaatrêsquilômetrosdeumdestacamentodaFAB.Umsargentoe um motorista foram agarrados por eles, que, após liberá-los em seguida,voltaram para a mata. 43Nilo Vellozo, chefe do principal setor do SPI , queautorizara a remoção dos Xavante em Marãiwetsede, disse à imprensa queenviaria uma equipe para manter contato com os índios. Em maio de 1966,contudo, um grupo de indígenas retornou ao destacamento e dessa vez oresultado foi sangrento. Eles mataram a flechadas um funcionário doDepartamentodeCorreioseTelégrafoseferiramoutrasduaspessoas.Alegandoque os Cinta-Larga comiam carne humana, os moradores da vila teriamestendido o corpo nomeio da vila como “isca” para atraí-los e perpetrar umavingança, mas foram demovidos do plano por um militar do 5o Batalhão deEngenharia e Construção. 44 O Exército e a Aeronáutica “deslocaram

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contingentes”paraaregião.45Temendoummassacre,oSPIenviouàregiãoumagente.Ocontatooficialcomessegrupode índiossóseriaefetivadotrêsanosdepois.

A crise dos Maxacali, a fatídica transferência dos Xavante, as remoções dosIkpengeKayabiparaoParquedoXingu,osatritossemsoluçãocomosCinta-Larga:tudoissoconcorriaparaasensaçãodequeoSPI,apósogolpemilitarde1964, poucomudara em relação ao antigo SPI . Havia vários sinais de que osíndios aldeados continuavam “vegetando”, na expressão do coronel MoacyrCoelho,quedirigiuoórgãode1961a1963.Emagonia,oSPIcaminhavaparaaimplosão.

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3.ESCÂNDALO

UMAJUSTIFICATIVADOSCONSPIRADORESQUEDEFLAGRARAMOGOLPE de 1964 era a alegada necessidade de moralizar a administração,reforçando a acusação de que os civis seriam incapazes de gerir a máquinapública.Oartigo8odoAtoInstitucionalno1,de9deabrildaqueleano,baixadopeloscomandantesdastrêsForças(ogeneralArthurdaCostaeSilva,otenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello e o vice-almirante AugustoRademakerGrünewald),comparavaocrimecontraoEstadoouseupatrimônioàdeflagraçãode“atosdeguerrarevolucionária”.

Logo após a deposição de Goulart, a ditadura mandou abrir inúmerosinquéritos,chamadosdeInquéritosPoliciaisMilitares(IPMs),emváriossetoresdaadministraçãofederal.TantooSPIquantooseuórgãosuperior,oMinistérioda Agricultura, foram alvo de investigações semelhantes. Estranhamente,contudo,nenhum resultado sobreoSPI foi tornado público até 1967.Todos osprincipaisagentesdoserviçoinvestigadosemumaCPIdoÍndiopró-fazendeirosde 1963, aberta no Congresso Nacional, continuaram influentes e ocupandocargosdechefianoSPI.OagentedoSPIquehaviasidoacusadopela igrejadeGuajará-Mirim,emRondônia,deomissãonatrágicaepidemiadosíndiospacaá-novotornou-seumdosnoveinspetoresdoórgãonopaís.

Ministro da Agricultura do primeiro governo militar, o general e ex-governador do Paraná Ney Braga chegou a anunciar uma comissão para“reorganizar”oSPIemudaralegislaçãoaelerelativa,masnadasaiudopapel.1Oquesóseriaconhecidodepoiséqueopróprioministrodeuasuaparceladecolaboração para a desmoralização do órgão. Em junho de 1966, o entãogovernadordeMatoGrosso,PedroPedrossian,enviouumacartaaBragapara

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formalizarnegociaçõesquevinhamsendofeitasentreogovernodoestadoeoministério. Pedrossian queria obter, pelos “interesses do desenvolvimento” doestado,35milhectaresdototalde65mildaáreadestinadaaosíndiosbororonaColôniaTeresaCristina.Ogovernadoralegouqueseriaumaformade“proteger”a colônia, que abrigava163 índios.Em troca, explicou, o estadodoaria aoSPIexatamente “um trator de pneus, com os respectivos implementos de arrasto”,cemnovilhasedeztourosreprodutores.Alémdisso,dariaassistênciamédicaaosíndios,mas apenas “no que estiver ao alcance dos órgãos do estado deMatoGrosso”.2

AterraindígenaTeresaCristinahaviasidodemarcadapeloprópriomarechalRondon no ano de 1895 3 e as terras estavam incorporadas ao SPI desde suacriação, em 1910. A partir de 1952, contudo, o governo estadual passou aconceder títulos de propriedade para colonos dentro da área indígena— sobprotestosdoSPI,queajuizoucontraoestadoumaaçãoparaanularostítulos.Oprocurador do estado propôs uma suspensão do processo judicial por sessentadias, período em que Pedrossian “tentaria uma composição de ordemadministrativa,quepossasatisfazeraspartes”.4

De fato, o acordo entre governo e ministério, que ganhou a eufemísticadenominação de “convênio”, foi assinado nos exatos termos propostos porPedrossian.Comumasócanetada,osíndiosperderammaisdametadedassuasterrasemtrocademigalhasepromessas.Otermodo“convênio”saiupublicadonoDiárioOficialdeMatoGrossocomosnomesdeBragaePedrossianem20julho de 1966. Rapidamente, em agosto, a Assembleia Legislativa de MatoGrosso decretou, e o governador sancionou, a ratificação do “convênio”, aomesmo tempo que tornou definitivos todos os títulos de propriedade ruralexpedidospeloestadoequeincidiamnaterradosBororo.5Oacordo tambémteveachanceladoTribunaldeContasdaUnião,emBrasília.

OqueacartadePedrossianeostermosdoconvênionãodeixaramclaroéquenaverdadeaáreajáestavainvadidaporcolonosecomoapoiodeclaradodogovernoestadual,queemitiatítulosqueincidiamsobreosdireitosdosíndios.Oacordo entre estado e ministério, portanto, procurava acomodar juridicamenteumfatoconsumadoeilegal.

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DesdeoanoanterioroSPIlocalvinhaalertandoadireçãodoórgãosobreainvasão na terra bororo. Depois de passar quatro dias percorrendo os postosindígenasdaárea,umacomissãodoSPI“constatouaveracidadedaocupaçãodasterras,emgrandeatividade”deinvasores.Acomissãocalculouumtotaldemaisde70milhectaresemtítulosjáemitidospelogovernodoestadonaregião,boapartedosquaisincidindosobreaáreaindígena.

A pressão era grande na região contra o SPI e os índios. O noticiário daRádio AVoz D’Oeste, segundo uma transcrição feita pelo órgão, dizia que onúmerodeíndiosera“inferioracem”equeseria“comumvê-losembriagadospelas ruas deRondonópolis, o que demonstra falta de assistência por parte darepartição[SPI]”.Arádioconclamavaque“aRevoluçãodemarço,cujoshomenspropuseram por uma série de coisas nos devidos lugares, deveriam olharatentamenteparaoproblemadosfazendeirosdovaledoSãoLourenço”.6

Exatamentecomopediaaemissoraderádio,como“convênio”ogovernodos militares dera um golpe violento no território dos Bororo. Em favor dosfazendeiros.Partedasterrassóseriarecuperadapelosíndiosmuitosanosdepois,comapoiodossalesianos.

***

DiretordoSPIde1964a1966,omajordaAeronáuticaLuísVinhasNevespelomenosumavezadmitiupublicamentequeoórgão“nãoestavaatingindoosseusobjetivos”. Em abril de 1966, tomou posse o coronel da Polícia Militar doParanáHamiltondeOliveiraCastro.DepoiselediriaqueencontrouoSPI “emsituaçãoquasequecalamitosa”.

Emmarçode1967,ogeneralCastelloBrancoperdeuadisputainternapelopoder e passou a faixa presidencial ao general linha-dura Arthur da Costa eSilva.Aotomarposse,onovopresidenteanunciouumareformaministerial,naqualoSPIpassouparaoâmbitodoMinistériodoInterior,apósterficadoquasetrintaanossobocontroledaAgricultura.TambémhouvetrocanoMinistériodoInterior,agoraocupadoporumativoparticipantedogolpe,ogeneraldedivisãodoExércitoAfonsoAugustodeAlbuquerqueLima,quenofinaldosanos1960setornariaum“líderdalinhadura”eumdosmaiorescríticosdeCostaeSilva,

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sendocandidatoàsuasucessão—foiderrotadoporGarrastazuMédici.Albuquerque Lima era um militar com a cabeça voltada para obras de

engenharia, transportes e desenvolvimento nacional. Tanto que, após o golpe,seu primeiro cargo foi o de interventor da Rede Ferroviária Federal, ondeconduziuum inquérito“sobre subversão”eafastou26 funcionáriosdaEstradadeFerroLeopoldina.7Daferroviária,ogeneral foiparaaDiretoriadeViaseTransportedoExército.Naposse,disseque trabalhavanosassuntos“relativosaodesenvolvimento econômicodaNação”.Em1966, esteve à frentedeobrasque o Exército vinha fazendo no Norte, “incluindo vários trechos da BR -29,rodoviaBrasília-Acre”.8

Na cerimônia em que tomou posse como ministro, Albuquerque Limaprometeu “impulsionar os órgãos regionais de desenvolvimento”. Sobre aAmazônia,afirmouquearegião“apresentaumproblemadegraveenvergadura,ligada à integridade nacional, qual seja da ocupação por brasileiros de suasvastaseriquíssimasáreasedeusoapropriadodesuasterras”.9

Nomêsseguinte,oministroanunciouestardispostoalançarumacampanha“demobilizaçãonacionalparaaefetivaocupaçãodaAmazônia”,queconsistiriana “incentivação de migrações para regiões do Amazonas que o ministro doInteriorprocurarádesenvolver”.10

Doismesesdepoisdapossedoministro,oDiáriodoCongressoNacionaltrouxeuma estranha publicação, um resumodos trabalhos de uma curtaCPI do Índiorealizada quatro anos antes, em 1963. Como a comissão não concluíra seustrabalhos dentro do prazo estipulado, fora extinta por força de disposto noRegimento Interno da Câmara.Mas não restou esclarecido omotivo de tantoatraso na publicação dos resultados.De qualquer forma, a partir disso aCasaCivil fez uma comunicação aoMinistério do Interior com “os resultados dasinvestigações e conclusões daquela CPI ”. 11 Foi assim que começou ainvestigaçãoqueculminarianaextinçãodoSPI.

Partedosfatosjáforainvestigadaporumacomissãoinstaladapelotenente-coronel Heleno Nunes. Albuquerque Lima decidiu extinguir a primeiracomissão, que tinha um escopo mais tímido, e criou um segundo grupo de

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investigação. Para chefiá-lo, trouxe servidores de fora dos quadros do SPI .Instituído por portaria publicada em julho de 1967, o grupo era chefiado peloprocurador doEstado Jáder de FigueiredoCorreia. Jáder tinha comopadrinhopolítico o ex-governador do Ceará Virgílio Távora (1919-88), de quem forasecretáriodeEducação12quandootenente-coronel,apoiadordogolpede1964e líder daUniãoDemocráticaNacional (UDN) , governou o estado, de 1962 a1966.Apósdeixar o governo,Távora elegeu-sedeputado federal pelaAliançaRenovadora Nacional (Arena), o partido que dava apoio aos militares. Jádertambémerairmãodoex-deputadoestadualdoCearáJoaquimCorreia,que,nosanos1970,setornoudeputadofederalpeloMovimentoDemocráticoBrasileiro(MDB).

Além de procurador do Departamento Nacional de Obras contra a Seca,JádereraprofessordepedagogiadoInstitutodeEducaçãodoCeará.Ouseja,atéentãonãotinhanenhumarelaçãocomotemadainvestigação,comoreconheceudepois: “Eunãoconheciaoproblema indígena, anão serpor leituras esparsascomo, acredito, qualquer brasileiro”. 13 O que poderia ser um problema,contudo, revelou-se uma virtude, pois ele passou a olhar com perplexidadeprocedimentosquejáhaviamsetornadoumarotinanoSPI.

Jáder atuou em sintonia não apenas com o Ministério do Interior, mastambémcomoserviçodeinteligênciacriadopelosgeneraislogoapósogolpe,oSNI.Opróprioprocuradorrevelouque“durantetodoonossotrabalho,desdequeo iniciamos em Brasília, fomos muito auxiliados pelo SNI . Verdadeiramente,fomos acompanhados em todos os momentos por elementos do SNI que seprestaramacolaborarconoscoenosajudaramdemais”.14

Suas ligações com Távora e o SNI devem ser ressaltadas para prevenir aeventual interpretação de que o procurador se “rebelou” contra a ditadura.Narealidade,seutrabalhofoitodoamparadoeacompanhadopelosmilitares.Talvezseusapoiadoresnãocontassemcomarepercussãodoresultadofinaldotrabalho,masJáderestavalongedeserumopositordogoverno.

Sua comissão, por exemplo, jamais interrogou qualquer pessoa sobre atransferênciadosXavantedeMarãiwetsede,quehaviaocorridoapenasumanoanteseprovocadoimpressionantemortalidade.Tambémnadafalouarespeitoda

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catástrofekararaônemcontestouasdecisõesdoSPIdetransferirosíndiosikpenge kayabi para dentro do Xingu. Em relação à chamada renda indígena, acomissãosepreocupoucomodescontroleeavendadopatrimônio,masjamaiscontestouofatodequeodinheirodosíndioserarevertidoparaumfundosobocontrole da União e não direto para as comunidades indígenas. O procuradortampouco contestou as decisões dos militares de abrir estradas e picadas naAmazônia sem antes fazer um completo e correto levantamento dos índiosisolados, para prevenir as doenças e mortes que vinham ocorrendo comfrequênciaassustadoranasúltimasdécadas.

Jádertinhaumavisãocontraditóriasobreoíndio.Conformereclamariaemdepoimento àCPIdo Índio em1968, disse que o SPI “não estava integrando oíndio à civilização” e que o índio brasileiro “não foi orientado no sentido detrabalhar”.Afirmounãoterdúvida:“Considerooíndioigualaonossocaboclo.Éapenasquestãodeeducação.Eduque-seoíndioeteremosumtrabalhadorcomoaqueledoPostodePaulinodeAlmeida”.

Sobre a terra kadiwéu, em Mato Grosso, que ele chamou de “fazenda”,repetiu os clichês e a visãopreconcebidadequeo índionãoprecisa demuitaterraparaviver.AopresidentedaCPI,atestou:

DevodizeraV.Exa.queafazendaéenorme.Foicalculadoqueelatemde700 [mil] a 800mil hectares de terra.Nãohánecessidadede ser toda elareservada para o índio trabalhar. Boa parte dela podia realmente serarrendada.Aoutraparteficariacomosíndios.

Aomesmotempo,porém,disse“queapolíticaqueaFunai[sucedâneadoSPI]desejaseguiréestadedarao índiocondiçõessuficientesparaqueelepossa irvivendobemno seuhabitat, comseuscostumes, à suaprópria custa, assistidopelogovernounicamentenoqueforimprescindível”.

Por falta de tempo e de recursos, a comissão de Jáder também nãoconseguiuvisitar“muitoslocais”,conformeelereconheceuàCPI.Nãovisitouos“130postosdoSPI , e simapenasunspoucosdaAmazônia”.Não foi aGoiásnem ao Pará, onde havia “muitas irregularidades”. Jáder calculou que ostrabalhoschegaramaapenasumterçodonecessário.

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Todas essas limitações, entretanto, estão longe de tornar o RelatórioFigueiredo uma peça descartável ou desinteressante. 15 A comissão tinha amissãodeapurardesviosecomportamentosreprováveisdosfuncionáriosdoSPIe,seguindoessatrilha,produziuumdocumentodevastador.Acomissãoatacouhábitosnocivoshaviamuito tempoenraizadosnoSPI ,mas relativizados pelaschefias.Issopareceterincomodadomuitosservidores.Oprocuradorrelatouterrecebido “32 ameaças, umas de morte” ao longo dos trabalhos. Por isso, osmembrosdacomissãoreceberamportedearma—JáderpassouaandarcomumrevólverTauruscalibre32.16

O procurador coletou documentos preciosos, como os diversos relatóriosentregues à comissão pelo ex-chefe da 6a Inspetoria do SPI , José BaptistaFerreiraFilho.ElesdescortinaramumquadrochocanteentreosBororodeMatoGrosso.PelomenostrintaíndioseíndiashaviamsidoentreguesporfuncionáriosdopróprioSPInãosóafamíliasde“civilizados”,mastambémaprostíbulos.

Em agosto de 1964, Ferreira Filho escreveu ao coronel Eber Teixeira,encarregadodo IPMnoSPI , para informar que estava “arrecadando os [índios]queestãofora,nacasadeparticulares”.EleencontrouaíndiacajabinacasadeumdesembargadordoTribunalde Justiça.Havia índias“emoutrosestadosdaUnião,[de]ondeforamtiradassemlevarememcontaossentimentoshumanosdessascreaturas”. Ferreira Filho enviou uma relação nominal dos índios quehaviamsidoretiradosdospostos“atítulodecastigo”.Escreveuquehavia“umaquadrilha” no SPI e que um dos servidores, Flávio de Abreu, mantinha “seteíndios euma índia, retidospara trabalhosde lavoura”17emumapropriedadeque possuía em Cuiabá. Segundo Ferreira Filho, as famílias estavam semnotíciassobreoparadeirodosparentes,emalgunscasoshaviamaisdetrêsanos.

Osbanimentosocorreramentre1962e1963,masseestenderamaté1964eforamcomunicadosaosresponsáveispelo IPMdoSPI jánogovernomilitar.OsrelatóriosdemonstramqueaalegadamoralizaçãoqueosmilitaresprometiamnoSPIficousónodiscursopormaisdetrêsanos.OsfatoschegaramàdireçãodoSPIem1964,masnadafoifeito,naspalavrasdopróprioFerreiraFilho:“Onúmerodeíndiaseíndiosforadospostoseraalarmante.Infelizmenteadiretorianãodeuamínimaimportância”.

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Emnovembrode1964,eleescreveuaNiloVellozo,dasededoSPI:

[Na] verdade o que existia aqui [era] um verdadeiro tráfico humano. Sealgumdiaadiretoriaquiserverificar in loco,oqueescrevinestaspáginastomará conhecimento de páginas bem mais negras. E você sabeperfeitamente que os fatos relatados por mim são repetições de outroslugares,vocêmesmopresenciouatrocidadeseseidasuarevoltanaocasião.18

Episódio igualmente degradante viveu a índia bororo Rosa. SegundodepoimentoscoletadospelacomissãodeJáder,elafoi“entregue”porFláviodeAbreuaumvizinho“civilizado”,Seabra.Emtroca,Seabraconstruiuumfogãode barro na fazenda Santa Terezinha, que pertenceria ao servidor do SPI . AmulherdeFerreiraFilho,Juracy, tambémservidoradoposto,contouqueRosafoi escolhida “por meio de uma seleção feita entre as meninas índias quefrequentavam”aescoladoposto.Fláviomandouqueas índiasficassemempénumasaladeaula,eSeabrafezaescolha.Apósaentrega,opaidameninateriafeitoreclamaçõesaFlávio,queporissolheordenou“umasurra”,aplicadapelosíndiosOtavianoAiepaeCojiba.DepoisqueSeabraconcluiuofogão,devolveuaíndia.

AochegarcomomaridoaopostoindígenaCoutodeMagalhães,em1961,Juracy disse ter achado estranha a “inexistência de crianças índias” e que amortalidade infantil fosse tão“grande”.ForamapurarascausaseouviramqueAbreu “obrigava as mulheres índias ao cumprimento de tarefas rurais,impossibilitandoasmesmasdecuidaremdeseusfilhosrecém-nascidos;asmãesnão dispunhamde tempo sequer para amamentar seus filhos”.Os índios eramalimentados apenas com “grãos de milho seco e mamão verde cortado empedaços”, embora produzissem “grande quantidade de farinha de mandioca”,que era vendida e controlada pelos servidores do SPI . Como comiam mal,problemasde saúdeeram frequentes.Emcertaocasião,disse Juracy,um índiobororo contraiu tuberculose. O chefe do posto então o obrigou a usar umchocalhonopescoçoeumalatapertodaboca“paranãocontaminarafamília”do servidor. “Proibindo que se prestasse qualquer assistência ao índio doente,

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inclusive o alimentasse; esse índio veio a falecer dias após, em completainanição.”

As índias mais jovens eram “examinadas” por um homem do SPI , sobalegaçãodequeprocurava“doençasvenéreas”,massempreànoite,nasalado“serviçomédico”doórgão.Emoutroposto,oFraternidadeIndígena,umgarotodaetniaumutinachamadoLalicoresolveuromperasregrasdoSPIevendeuporconta própria, no comércio de Barra do Bugres, cinco quilos de ipecacuanha,umaplanta tambémconhecida como raiz-do-brasil.Omeninousouodinheiropara “comprar gêneros para suamãe”, segundo Juracy.Ao descobrir o fato, ochefe do posto, João Batista Correia, “espancou o referido garoto índio,pendurando-opelospolegaresdurantetodoodia”.

Oespancamentoéconfirmadoemdetalhesporumacartaenviadaaochefeda inspetoriaem25demarçode1964peloservidordoSPIEduardoRios, queafirmouterpresenciadoacena.Correiaprimeiroprendeuogaroto“numaprisão,queéumquartofeitopara[guardar]motor”,masoíndiofugiuecorreuparasuacasa. Foi descoberto por Correia no dia seguinte, embaixo de uma cama. Oencarregadoentão“pegouomenorpeloscabelosesaiupuxandoportaaforaatéo posto”.Correia “apanhouo freio com rédea e começou a espancar omenoríndio”.Ogaroto,parasedefender,segurouarédea.“FoiquandooJoãopassouarédea no pescoço do índio com a finalidade de enforcá-lo.Vendo omenor emdesespero,interferi,dizendo‘João,nãofaçaisso’.Foientãoquefuiatingidopelapontadarédea.”

Omenino foi amarrado comos braços estendidos e “os pés suspensos dochão”.Oepisódiopoderiaterresultadonummassacre,poisváriosíndiosadultosse armaram e cercaram o posto para resgatar o garoto. Correia pôs doisservidoresdopostoemposiçãodetiro,ordenando,segundoRios,queatirassemnos índiosemcasode invasão.Oclimasó foidesanuviadoquandodenovoogarotoconseguiuescapar.

JuracynarrouaindaqueochefedopostoFraternidadeIndígenacastigavaosíndios“comumapalmatória,entreguepelochefedaIR-6[inspetoriadoSPI]deentão em reunião da diretoria ao major Neves, perante todos os autos [altos]dignitáriosdoSPI”.Aservidoracontouqueochefedeoutroposto indígena,o

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CaciqueDoble,dosíndioskainganguenoRioGrandedoSul,“mandoupenduraroíndioNarcizinhopelospolegareseespancá-loatéamorte”.

Diversos pontos das declarações de Juracy foram confirmados por outrastestemunhas ouvidas pela comissão de Jáder. Na antessala do gabinete doministro do Interior, a comissão tomou o depoimento da bororo Adalgisa,nascida e criada no posto Couto Magalhães. Ela disse “se recordar bem” doepisódio da “doação” da índiaRosa, pois estava na escola no dia da visita deSeabraeconfirmouqueopaideRosafoiespancadoapósreclamar.Umacartaescrita pela ex-professora do posto indígena, Violeta Ribeiro Tocantins,confirmouqueochefe“tornou-seumverdadeiroditador,éumapessoairritávele intratável. Ele com frequência interrompia as aulas para ordenar às criançasquefossemàlavoura,fazerdeterminada‘tarefadeadulto’”.

O Kaingangue Alcindo Nascimento disse aos membros da comissão, emNonoai(RS),queemtrêsgestõesanterioresdoposto“haviauminstrumentodesuplício denominado ‘tronco’” e que um índio “teve a perna fraturada”. Jáderexplicou àCPI no que consistia o instrumento de tortura: “Dois paus enfiadosnumburaco,amarradosdemodoaformarumânguloagudoeligadosporumaroldana. Colocavam ali o tornozelo do supliciado e iam puxando a corda,apertandoospaus”.

OusodascelaseraoutrocapítulonasdescobertasdoSPI .Quase todosospostosvisitadosou tinhamou jáhaviam tidocelasparaprisãodos índios.Emalgumas aldeias, os próprios caciques cobravam do chefe do SPI uma puniçãocontra índiosquehaviamcometidoalgumaimpropriedade,paradaroexemploaosdemaisíndios.

As condições dessas celas eramdesumanas. EmNonoai (RS) , o chefe dopostomandou desativar uma prisão de apenas ummetro quadrado, na qual oíndio ficavaempéoudecócoraso tempo todo.Oenfermeiroauxiliareentãoencarregado do posto Cacique Doble encontrou o local “na pior situaçãopossível eemcompletadesorganização;os indígenasdopostonão recebiamamínimaassistênciasejasanitáriaousocial”.Elecontouser“umavozgeral”queo antigo encarregado “mandava surrar” os índios. Ao tomar posse no cargo,“constatouaexistênciadeduasprisões(cárceres),umadasquaisconstituíauma

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câmaraescura”.EmNonoai,oencarregadodopostoindígena,aotomarpossenocargo,no

iníciode1967,encontrouumaprisão“construídadentrodoestábulo”,medindoapenasdoismetrosquadrados,semiluminação,semventilação,“sofrendoomaucheirodapodridãodosestábulosedacavalariça”.19

AcomissãodeJádertampoucoenfrentouotemadasaúdedosíndiosaldeados.Não foi feito nenhum tipo de levantamento ou sistematização de dados sobreóbitos, doenças e nutrição. Seria uma oportunidade ímpar para apurar quantasvidascustouadegradaçãodosserviçosdoSPI.Épossível,porém,vislumbraroquadroapartirdedeterminadas informaçõesquesurgemesparsasao longodoprocesso. Uma das mais dramáticas consta do depoimento de GuilherminaBorges de Medeiros — que, aliás, era artífice de manutenção nível 6, masexercia as funções de “auxiliar de enfermagem”. Lotada no posto indígenaGuarita,nomunicípiodeTenentePortela(RS),ela testemunhouqueapenasdejaneiroa15denovembrode1967 jáhaviammorrido“cercade trinta índios”,por“sarampo,coquelucheepneumonia”.Guilherminalamentouque“nãoexisteestoquedemedicamentosnaenfermaria”doposto.Quandoacontecia“dechegarumíndiodoente”,elapreparava“umarelaçãoderemédiosquesãonecessáriosàcura dos índios” e entregava ao encarregado do posto, que ia adquiri-los nocomércio local.Em1974, viviam sob jurisdição do postoGuarita 1340 índioskaingangue e guarani. 20 O número de 1967 deveria ser inferior, mas,considerandoapenasonúmerode1974,teriaentãomorrido2,2%dapopulaçãoindígenadopostoemapenasumano.Atítulodecomparação,nomunicípiodeSãoPaulomorreram ao todo 42834 pessoas no ano de 1967.21 Se a taxa demortalidadedeGuaritafosseestendidaparaSãoPaulo,teriammorrido129milpessoas,istoé,trêsvezesmaisdoqueoconsideradonormal.22

Outroecosobreasituaçãodasaúdeentreosíndios—este,umverdadeirogrito—é encontrado emumacarta escrita em tomdesesperador pelo coronelHamilton Castro, o principal chefe do SPI , ao então ministro da Agricultura,SeveroGomes.Opapel édatadode5de setembrode1966, portantomaisdedois anos depois da tomada do poder pelos militares. Essa carta nunca foi

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abordada pela imprensa na época, mas é possível imaginar o impacto quecausaria,casotivessevindoapúblico.Denovo,nãosetratadeumadversáriodogoverno,masoprópriogovernofalandoemextermínio.

Sr. ministro, não fantasio e nem exagero os fatos. O índio brasileiro estámorrendoàmíngua.A fome, adoença, a faltadehigienee aganânciademausbrasileirosestádizimandotribosinteiras.Édeprimenteeatévexatóriaa situação de nossos silvícolas. Salvo pequenas exceções, os postosindígenas se encontram na mais completa miséria, onde a falta dealimentaçãoadequada,atuberculose,agripe,osarampoetc.minamasaúdedosaldeados,abebidaeaprostituiçãocombalemasuamoral.23

Castropediumedidasdecurtoprazo,urgentes. “Sr.ministro.Énecessáriofazeralgo.Seráatodehumanidade.”

Emumacartaabertadivulgadaem1967,oservidorHélioJorgeBucker,quefoi chefe da 6a Inspetoria até fevereiro daquele ano, confirmou que asinspetorias e os postos indígenas “jamais tiveram em seus quadros médicos,agrônomosoumesmoenfermeirosparatodasasunidades”.

Todososservidoresacusadosdesevíciasemaus-tratos,incluindoFláviodeAbreu, negaram as afirmações dos índios. Seus advogados exploraramcontradiçõesentreosdepoimentoseausênciademaisprovasparadizerquetudoerabaseadoem“dissemedisse”.

AsprimeirasconclusõesdacomissãodeJáderchegaramàspáginasdosjornaisnosegundosemestrede1967,oquelevouogovernoatomarumatodeforça.ComordensassinadaspeloministroAlbuquerqueLimaepeloseusubstituto,aPolícia Federal prendeu administrativamente, por trinta dias, dezesseteservidoresdoSPI .Outros31 foramdemitidos. JáderdisseàCPIqueo totaldedispensas atingiu trezentos funcionários.Amaior parte dos presos, porém, eraacusadadeproblemasnaprestaçãodecontasdegastoseacabousoltaassimqueconseguiuquitarosdébitos.24

NamesmaépocaemqueoescândaloestourouemBrasília, índiosdoParáatraíramaatençãodosmilitares.Emjunhode1967,umgrupodeíndiosisolados

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hojeconhecidoscomoPanará,masquenaépocaeramchamadosdediferentesnomes, como “gigantes”, Krenakarore, Kreen-akore, Kraim-akoro ou Kreen-akarore, aproximou-se da pista de pouso do destacamento da FAB na serra doCachimbo.

Avisitafoimalinterpretadapelosmilitares—seisanosantes,em1961,osíndios haviammatado a flechadas, perto da base, o explorador inglêsRichardMason.Aoavistaremosíndiosdenovopertodapista,soldadosacreditaramqueabaseestavasendoalvodeumataque.Porradiograma,pediramajudaurgente.Nos escalões superiores daAeronáutica o alarme soou, transformando a visitados índios num problema de grande escala. Há suspeitas de que o alerta foi“afetado por informações relativas a guerrilhas” e até “à possível presença doguerrilheiro Che Guevara”. 25 Os militares suspeitavam que os índiosestivessem “mancomunados com guerrilheiros”. 26 Em 1966, Che GuevarapassoupeloterritóriobrasileiroeentrounaBolíviacomoobjetivodecriarumambiciosofocoguerrilheiroquedeveriaseespalharpelaAméricaLatina.

FoienviadoaCachimboumaviãoturboéliceC-47comdezesseissoldadosarmados,ummédico,doisoficiais,quatrotripulantes,oservidordoSPIAfonsoAlvesdaSilvaeoíndiokayapóBegororothyBetan.Aaeronavedovoo2068daFABdecolouporvoltadas catorzehorasdodia15de junhodaBaseAéreadeBelém e parou em Jacareacanga (PA ) para reabastecimento. A tripulaçãodetectouavariaemumequipamentodeauxílioànavegação.Comoerainíciodanoite, pediu por rádio a Belém autorização para pernoitar em Jacareacanga eretomar o voo no dia seguinte pela manhã. Mas “a resposta foi clara: adecolagem,emfacedanaturezadamissão,deveriaserimediata!”.27

No ar, o problema voltou a ocorrer, dessa vez deixando a tripulaçãodesorientada em plena noite no céu da Amazônia. Após inúmeras tentativasfrustradas de localizar as pistas de Cachimbo ou de Jacareacanga, o aviãocirculouatéacabaragasolina.Porfimtentouumpousoforçadonamataàs3h55do dia 16 de junho, perto da localidade de Jubará (PA) . Com o impacto nasárvores, sobreviveram apenas sete dos 25 homens no avião — o índio e oservidor do SPI estavam entre os mortos. Sem condições de caminhar, ossobreviventes resolveram esperar o socorro perto da fuselagem. Outros dois

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militares, feridosnaqueda,morreramantesdachegadado resgate.Apresençade um grande grupo de urubus a sobrevoar o local do acidente, atraído pelosvintecorpos, acabouajudandoaequipedebusca.Devidoàmata fechada,quedificultavaopousodehelicópteros,oscincosobreviventessóforamretiradosdolocalem29dejunho,doisdiasapósalocalizaçãodosdestroçosetrezedepoisdoacidente.Osmilitaressobreviveramcomendoaspoucassalsichasenlatadas,pastilhasdoces,açúcar,cháecaféquehaviamencontradonacabinedoavião.28

Temposdepoisdoacidente,omajor-brigadeirodoarPedroFrazãoM.Lima,na época comandante da Base Aérea de Belém, listou uma série de infelizescoincidênciasparaexplicaraquedadoavião,acomeçardoalarmeequivocadosobreo“ataquedeíndios”quenuncaaconteceu.OefetivododestacamentodeCachimbo havia sido substituído, pouco tempo antes, por “gente nova einexperientenaAmazônia”,quedesconheciaque

osíndios,naquelaépocadoano,costumavamatravessarachapadadaserradoCachimbo em busca demelhores áreas de caça e pesca. Por acaso, osíndios,emseutrajetonaqueledia,passaramporumadascabeceirasdapistadepousoe,curiososcomoqueavistaram,puseram-seaobservardelongeasinstalações.29

Depoisdoacidente,oSPIenviouparaCachimbodoissertanistas,umdosquaiseraAntonioCotrim,quehaviapresenciadooquaseextermíniokararaô.Quandoo avião pousou, Cotrim encontrou “um clima de guerra, os caras [militares]todosdemetralhadora”.Eleconfirmouqueoaparecimentodos índiosnabasefoi umgrandemal-entendidoque começarameses antes, quandoumgrupodeparaquedistasdoExércitofezumtreinamentodeguerrapertodeCachimbo,poishaviarumoresdequeCheGuevaraestavanoBrasil.Ogrupotevecomoguiasocacique Raoni e outros Txucarramãe. Os militares, segundo Cotrim, abriramumapicadaqueiadaserradoCachimboànascentedorioIriri,eempreenderamuma caminhada que durou mais de quarenta dias. Nesse período, Raoni teriapercebidoque índios isolados,mais tarde identificadoscomosendoosPanará,seguiam o grupo à distância. Para mostrar que vinham em paz, os militaresforam deixando pelo caminho alguns brindes, como facões e machados. A

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caminhadaacabousemproblemas.Contudo,osPanarágostaramdosbrindese,como a picada fora aberta, em 1967 resolveram segui-la para receber maispresentesnabasedeCachimbo.

O trabalho deCotrimna região tambémacabou sem encontrar osPanará.Semanasdepois,eleesuaequipeforaminformadosdequedeveriamregressaraBrasília de imediato e se apresentar a seus superiores. O SPI acabara de serextinto.

Nofinaldeoutubrode1967,emmeioaoescândalodacomissãodeinquéritodoSPI , oministro interino daAgricultura Porto Sobrinho entregou ao presidenteCostaeSilvaumprojetodeleiquepreviaacriaçãodeumaFundaçãoNacionaldoÍndio,aFunai,resultadodafusãodoSPI,doParquedoXinguedoConselhoNacionaldeProteçãoaoÍndio.Onovoórgãofoiinstituídoem5dedezembrode1967.Emlinhasgerais,mantinhaosmesmosobjetivoseregrasdoSPI ,apenasdeixandomaisclaroqueopatrimôniodafundaçãoseriaformadoemparte“pelodízimo da renda líquida anual do Patrimônio Indígena”. 30 Na exposição demotivos enviada ao presidente Costa e Silva, Albuquerque Lima admitiu afalênciadoSPI,masprocuroudividiraculpacomtodososgovernosanteriores.“Ficouclaramentedemonstradoque,duranteos56anosdeexistênciadoSPI,sódispôsoserviçodeverbasuficientedurantedezanos.”31

Segundooanúnciodoministro,aFunaitambémcontinuariasubordinadaaoInterior, em um flagrante conflito de interesses: o ministro que pregava odesenvolvimento e a ocupação da Amazônia era o mesmo que deveria zelarpelos direitos dos índios que lá viviam, acossados pelos projetos agropastorisquecomeçavamasairdopapel.

Albuquerque Lima nomeou para o cargo de primeiro presidente da Funainão um militar, como vinha ocorrendo desde 1964 no SPI , mas um civil, ojornalista José de Queirós Campos. Por outro lado, espalhou militares pelaschefiasdasinspetorias,chamadasde“delegacias”,edasajudâncias.Dessesonzecargos de alto escalão no órgão, oito passaram a ser ocupados por eles.32Amedida gerou objeções de indigenistas mais experientes. Em sessão noCongressonoanoseguinte,ÁlvaroVillasBôascriticou:

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Foram admitidos muitos elementos militares, geralmente das políciasestaduaisealgunsoficiaisreformadosdoExército.Issocriouumproblemamuito sério dentro da fundação, porque não podemos contar commuitoselementos antigos, afastados pelo inquérito [de Jáder]. De fato, eramelementosquemereciamserdispensados,masessesmilitaresqueentraramnãotêmmuitavivênciadoproblema.33

José deQueirósCampos era funcionário daCâmara dosDeputados desde195734eirmãodeWilsondeQueirósCampos,quefoifiliadoàUDN,deputadofederal, senador por Pernambuco e presidente da Federação do Comércio doestadonosanos1960.Nosanos1950,escreveutextosparadiversosjornaisdoRio,comoOGlobo,efoicorrespondentedaTribunadeSantos.35Emtermospolíticos, definia-se como nacionalista e conservador. Não há registro denenhumaparticipaçãodireta suanogolpede1964.Naépocaeleeravereador,pelaUDN,nointeriordeMinasGerais.36

Queirós Campos assumiu em meio à intensa repercussão sobre asdescobertas da comissão de Jáder. O governo procurava demonstrar que nãohaveria impunidade.Emabril,AlbuquerqueLima envioudois avisos ao entãoministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, para pedir a abertura deinquéritos na Polícia Federal sobre as suspeitas que pairavam sobre VinhasNeveseRibeiroCoelho—oprimeiro,diretordoSPInaépocadosmilitares,osegundo, no governo Goulart. Vinhas era acusado de 29 irregularidades eCoelho, de 41. 37 Os outros acusados no inquérito de Jáder já haviam sidoliberadosdasprisõesadministrativaseatéapareciamcomotestemunhasaseremouvidaspelapolíciasobreasacusaçõescontraosex-diretores.

Diantedapossibilidadedeasdenúnciasviremaser tratadasnumareuniãoda Organização Internacional do Trabalho (OIT ), no México, o ministro doTrabalho, coronel Jarbas Passarinho, recebeu um dossiê sobre o assunto paramuniciar a delegação brasileira. O governo procurava dizer que os problemaseram dos governos anteriores. Uma entrevista feita pela imprensa com orenomado antropólogo Egon Schaden corroborou que o problema vinha delonge.EledissequeoSPIaolongodosanosvirou“umdepartamentopolítico”,

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cujos diretores e chefes de postos eram “escolhidos por serem do agrado dechefespolíticos,nuncaseinquirindoseentendiamounãodeíndios”.“Osaláriopagoaoschefesdepostoseratambémtãobaixoquenãosepodiaexigiralguémcompetente.”38

NumaparadaemLisboaacaminhodoMéxico,Passarinho foi interpeladopor jornalistas sobre as denúncias de “genocídio” indígena.Ele respondeu: “Éverdadequeexisteesseproblema,criadopelanossaprópriaimprensa,massãocoisasjáultrapassadasnotempo”.39

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4.ACRUZ

NOS SEUS PRIMEIROS PASSOS, A FUNAI MANTEVE uma parceriaestratégica com missionários religiosos. A posição do governo brasileiro emrelação a eles foi ambígua a longo de todo o século. Ao mesmo tempo quealimentava suspeitas, em especial sobre espionagem devido à presença dosestrangeiros nas missões, também as considerava auxiliares aceitáveis nastentativas de integração do índio à sociedade dos “civilizados”. Em julho de1962, o então secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN ), ogeneral de divisãoAmauryKruel, quemenos de dois anos depois teria papelproeminentenogolpecontraGoulart,emofícioreservadoaodiretordoSPIdissequedesde1957asatividadesdosmissionáriosestrangeirosjuntoaosíndiosnasáreasdefronteiranaAmazôniavinhampreocupandooCSN,poisopovoamentodessas regiões e “a mais rápida assimilação das tribos indígenas” seriam“problemasdealtointeresseparaasegurançanacional”.ElenarrouqueGoularthavia acolhido a sugestão do CSN de manter os missionários “afastados” dasfronteiras até que o SPI os investigasse melhor. Ao mesmo tempo, porém,ressalvouque

há toda a vantagem, portanto, em que se aproveite, ao máximo, acooperação voluntariamente oferecida por missionários de diversas seitasreligiosas,desdeque,evidentemente,talcooperaçãonãovenhaaconstituir,elaprópria,emproblemaparaasegurançanacional.1

OentãodiretordoSPI,MoacyrCoelho,constatouquenaAmazôniahaviatrêsmissõesevangélicassediadasnosEstadosUnidosecomautorizaçãodoSPIparafuncionarnoBrasil:oSummerInstituteofLinguistics(SIL),nopaísdesde

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1956,comdozecasaiseseisequipesdelinguistassolteirosemdezesseteetnias;aMissão Novas Tribos do Brasil (MNTB) , dotada de grandes recursos, comoaviõesenavio,com28missionáriosesuasfamílias,atuandoemdezetnias;eaCruzada de EvangelizaçãoMundial, que atuava em quatro tribos desde 1961.Apósuma apuração,Coelho concluiuque as acusações contra osmissionárioseram“inconsistentes,levianasemmuitoscasos”.

O trabalho dos missionários é científico, desinteressado, honesto e,sobretudo,domáximointeresseparaoSPIeparaoseututelado—oíndio.Os missionários devem ser considerados como pessoas de bem, voltadaspara um ideal religioso, verdadeira mística, que leva pessoas instruídas ainternarem-seespontaneamentenasselvas,vivendocomassuas famíliasamais rude existência que se possa imaginar; sofrendo com o índio,espontaneamente,privaçõesemisériasdetodaasorte.2

Muito antes da criação da Funai, ao longo de décadas inúmeras missõesreligiosas, tanto católicas quanto evangélicas, atuavam nas aldeias indígenas,muitasvezesprestandoumtipodeassistênciamédicaesocialqueoEstadoeraincapaz de proporcionar. Essa atividade foi cercada de polêmica em algunsmomentosdo séculoXX , pois osmissionários tinham como objetivomaior, enão escondiam isso das autoridades que deveriam fiscalizá-los, catequizar osíndios na fé cristã. Nos confins da Amazônia, havia também o risco dosurgimento de líderes messiânicos que poderiam manejar tribos inteiras. EmTabatinga (AM ), a Irmandade da Cruz, fundada pelo líder José da Cruz,brasileiro que passou pelo Peru e pela Colômbia, arrastou milhares de índiostikunaparaoscultosqueexigiamroupasbrancasefrequentesdoaçõesdebens.UmsertanistadaFunaipresenciounaépocaumíndioarrancarastelhasdapróriacasaparadoaràigreja.3

Os missionários responderam às expectativas da Funai, e por extensão dosmilitares,aoprocurarumenvolvimentomaisdiretonasoperaçõesdeprimeiroscontatos com grupos indígenas isolados. Em 1968, duas expedições foramlançadas,ambaslideradasporreligiososecomapoiodoórgão.Amaioremais

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importante era a do padre italiano João (Giovanni) Calleri. Era um homemagitado e controvertido, que havia tido atritos com a Igreja na Itália por suaíndoleindependente,“donodeumapersonalidadeexuberante,daqueletipoqueos norte-americanos costumam chamar de flamboyant, à qual era impossívelficar indiferente” e “bonito, muito alto, extremamente forte, espirituoso,extrovertido”.4

CallerieramembrodaMissãoConsolatadeRoraima.DepoisquechegouaoBrasil,em1965,passoumesesemestudossobreoíndionoMuseuGoeldi,emBelém.LáconheceuosertanistaCotrimeoconvidouairaBoaVistaajudá-loatrabalharcomosíndios,convidando-oatomarpartenumaviagemexploratóriacomoobjetivodelocalizarosWaimiri-Atroari,noterritóriofederaldeRoraima.Nãoduroumuitooentendimento.Poucosmesesdepois,CotrimconseguiuumacaronaeretornouparaManaus.“Nãotinhacondiçõesdecomunicaçãocomele.Era autoritário, eu vi que não ia dar certo.Arbitrariedades, individualismo.Oalimento de qualidade melhor era para ele, separado do grupo, aqueladiscriminaçãodeeuropeu.”5

Callerihaviaparticipadodecontatoscomíndiosyanomamieajudadoacriaro chamado “BancoCatrimani”, namissão homônima. Esse sistema procuravamostrar ao índio o valor do dinheiro. Os índios que trabalhavam na missãorecebiam fichas que ficavam guardadas em uma caixa no barracão. Quandoprecisavamadquiriralgumacoisadamissão,como“facas, terçados,objetosdeutilidade,linha,machado”,retiravamospapéisdodepósitoeosapresentavamao“gerentedobanco”.6

OitalianoestavamuitointeressadoempôrempráticaoplanodecontatarosWaimiri-Atroari,oquevinhaaoencontrodosobjetivosdosmilitares.Osíndiosestavambemno caminhodo ambiciosoprojetode construçãodeuma rodoviaque ligaria Manaus a Caracaraí, em Roraima, num total de 640 quilômetroscortandoaselvaamazônica.AprincípiotocadapeloDepartamentoNacionaldeEstradas de Rodagem (DNER ), órgão federal, a operação de contato com osíndiospassouasermanobradaeestimuladapeloDepartamentodeEstradasdeRodagem(DER),ligadoaogovernoamazonense.

ConformerelatórioenviadoporCallerinaqueleanoaoministrodoInterior,

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asituaçãoeramuitoconflagradaentreosWaimiri-Atroarieos“civilizados”quedesenvolviamatividadesdiversasna região.Opadrecalculounadamenosque1300 ou 1400mortos “nos últimos duzentos anos” em “ambos os lados” dosconflitos.Ele citou comoumadas prioridades do seu trabalho a “pacificação”daquelesíndios.7

Otraçadodarodoviaeraadesgraçadosíndios.OentãopresidentedaFunai,José deQueirósCampos, tempos depois reconheceu: “E o caminho temeráriocortava, rigorosamente pelo meio, algumas malocas dos índios waimiris eatroaris.Apesardisso,nenhumcomunicadosefezàFunai”.8

Os Waimiri-Atroari habitavam uma extensa região a cerca de quarentaquilômetrosdeManaus,aolongodetodaamargemesquerdadorioNegro,dorio Urubu até o rio Jauaperi. Eram fortes, tinham entre 1,60 e 1,80metro dealtura,manejavamarcose flechascompontasdemadeira,deossoedemetal,construíam suas próprias canoas, ou ubás, feitas de troncos de árvores, eproduziaminstrumentosmusicais,comoummaracáeumaflautarudimentardetabocacomcercadecinquentacentímetrosecincoouseisfuros.Alimentavam-sedecaçaepesca,mas tambémpequenas roçasdemandioca, cana-de-açúcar,bananaebatata.9

Essesíndioshaviamatravessadoquasecemanoseminúmerosconflitoscom“civilizados”, uma longa trajetória demassacres, sequestros, incompreensão eintolerância.Em1873,atacaramumvilarejochamadoMoura,oqueresultounamortedeumbebêedeuorigemauma“guerradeextermínio”contraosíndios.Em 1874,militares de um destacamento na região teriammatado à bala “200índios”.Em1926,osíndiosmassacraramaequipedeumaempresacoletoradecastanha.Emrepresália,colegasdafirmasequestrarameespancaramumagentedoSPIlocal,quemorreudepoiscomoresultadodasagressões.Em1942e1944,os índios voltaram a matar “civilizados”, incluindo dois militares norte-americanosquefaziampesquisasnaregião.TodosessesembatesdificultavamosjáprecáriosesforçosdoSPIdealdearosWaimiri-Atroari.Atéque,em1968,ogovernomilitar resolveu deflagrar a grande e arriscada obra de construção darodovia,rasgandooterritórioindígena.

Em junho de 1968, quando os índios começaram a aparecer perto dos

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canteirosdaobra,alarmandoosoperários,odiretordoDERdeManaus,coronelManoel Carijó, foi ao Rio pedir ajuda a Queirós Campos. O órgão entãodesignouumsertanistaparacuidardoassunto,GilbertoPintoFigueiredo.Poucotempo depois,Carijó procurou a imprensa local para dizer que Figueiredo fezumsobrevoodehelicópteros,aterrissouechegouaconversarcomofilhodeumcacique. Mas a Funai não organizou nenhuma expedição mais longa. Nessesentido, Calleri surgiu como a solução mais rápida para os problemas doapressadoDERdeManaus.

Muitos anos depois, o sertanista João Américo Peret contou tertestemunhado, por volta de 1966, uma dura conversa entre Carijó e um dosdiretores do SPI , José Maria da Gama Malcher. Carijó, segundo Peret, ficoualarmadoquando,duranteumsobrevoo,viuasdiversasmalocaswaimiri-atroaribem no traçado da rodovia. Um índio teria até flechado o avião em que seencontrava o coronel. Este teria dito que os índios eram chefiados por“traficantes” e pediu providências urgentes do SPI . Alegou ainda que a“Operação Amazônia” não poderia ser interrompida por índios “preguiçosos,sujos”. De acordo com Peret, Malcher reagiu às “insinuações” de Carijó edefendeuodireitodosíndiosdeficaremnaregião.10

Em6deagostode1968,oDiárioOficialdaUniãopublicouaautorizaçãodo presidente da Funai para Calleri “promover a aproximação, o contato e oaldeamento”dos índios.Aautorizaçãoexigiaduasprovidências:queaviagemfosse fluvial e que houvesse mulheres na expedição. Queirós Campos alegoudepoisqueapresençadelasiriaacalmarosíndios,aosupostamenteindicarqueos “civilizados” vinham em paz.Citou em seu favor duas expedições em queFranciscoMeirelestambémhavialevadomulheres.Sobreorio,aideiaeraevitarpassar uma ideia de “invasão de territórios tribais” — como se um rio nãofizessepartedeumaterraindígena.

AexpediçãoCallerieraformadaporoitohomenseduasmulheres.ElessereuniramemumacampamentonalocalidadedeSantoAntôniodoAbonariedalipartiramembarcos,peloriodemesmonome,emdireçãoaostemidosíndiosem22deoutubrode1968.Naquelanoite,Callerienviouaprimeiramensagemviarádioparainformarque,comoiníciodaviagem,“todasasequipesdaBR-174

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deixaramaregião.Estamossós”.11No dia 23, o padre viu “oito compridas ubás [canoas] silenciosas e bem

alinhadas” paradas num varadouro. Ele mandou dar “oito tiros ao alvo[possivelmente quis dizeralto ] para assinalar aos índios nossa presença”.Namanhã seguinte, mandou dar “outros quatro tiros ao alvo, mas ninguémcompareceu ou quis comparecer”. Eles circularam por cerca de quarentaquilômetrosnumigarapé,um“labirinto”,semencontrarnenhumíndio.Nesseenodiaseguinte,ogrupoenfrentou“pântanosechavascais,embaixodechuvasininterruptas”.Atéqueacampouacercade“milmetrosdaprimeiramalocadosAtroari”, que batizou de “Esperança”.No dia 26, o padre informou aManausumagrandevitória:seugrupoconseguiraacampar“comosAtroaris”namaloca.

Os índios, a princípio “medrosos e desconfiados”, acabaram oferecendobananasebeijus.Houvetensãoquandoelesviramasmercadoriasempoderdaexpedição.Calleri disse pelo rádioque “nada foi permitido”, ou seja, quenãodeixou os índios pegarem os utensílios. Nesse trecho da mensagem, o padredemonstrouumaconcepçãoalarmantearespeitodopensamentodoíndiosobreos “civilizados”. “O índio bem sabe que isso está no nosso direito de gentesuperior.Sótentaperturbar,paraconseguir.”

A seguir, ele cometeu outro ato questionável: permitir que os “índiosmesmos”descarregassemacanoa,“transportarameajeitaramtodaamercadoria,limparamumaáreademato”,depois“construíramparanósumbombarracão”,instalaram a antena de rádio e puseram para funcionar um gerador elétrico.Findoo trabalho,“todomundodosAtroarisestavasuando”.Ouseja, serviramdemãodeobragratuitaparaotrabalhopesado.Opadrediziahaverumalógicana estratégia. Entendia que toda essa atividade “acalmaria” os índios, pelocansaço,etambémserviriapararealizarcoisasqueaexpedição“tinhamedodefazer”.Naprimeiradistribuiçãodosbrindes,opadremanejouparaqueaescolhados presentes fosse da sua equipe, e não deles. Havia dezenas de índios nasimediações.Callericontou“centoemaisredes”namaloca,queseriavisitadanodiaseguinte.“QueDeusnosajude”,escreveu.

Nodia31deoutubro,opadremandouumamensagembemmaistensadoque as anteriores. 12 Estava tendo dificuldade para incutir nos índios um

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“critério de justa recompensa e não a doação” pura e simples dos brindes.Achavaquetinhamsidomal-acostumadospor“civilizados”quepassavamnorioUatumã e lhes davam “tudo quanto era pedido”. Calleri relatou que os índiospassavam“comextrema facilidade […]do sorriso aos gestosmais violentos”.Ouseja,nãoestavamgostandodocritérioadotadoporele.Tambémrevelou,semexplicaromotivo,queumdeseus“melhoreshomens”abandonaraaexpedição.“Senãovoaremas flechas, sóégraçasàbondadedeDeus,paide todos,eaonossoesforçoextremodevigilânciaereflexão.[…]Nóscontinuamosfirmesnonossoprincípio:disciplina,comjustarecompensa.”

Entãoumlongosilênciobaixounosistemaderádio.Maisdeduassemanasjá haviam se passado sem nenhum contato de Calleri quando, em 20 denovembro, opadreSilvanoSabatini telefonouparaopresidentedaFunai paralhedizerquetinhacertezadequeopiorocorreracomseuamigo.OsjornaisdeManaus, Rio e São Paulo passaram a noticiar o terrível destino da expediçãoCalleri. O governo lançou uma operação de busca, mobilizando aviões ehelicópterosdaFAB,paraquedistas,homensdoExércitoesertanistasdaFunai.No dia 25 de novembro, surgiu a primeira notícia de que fora localizado umsobrevivente, o mateiro Álvaro Paulo da Silva. Semanas depois, ele foientrevistadopelosertanistaJoãoPeret.13Elefoiaúnicapessoaqueescapoudasflechasedasbordunas.

Álvaro contou que foramvisitados pelo cacique, ou tuxaua,Maroaga, umlendáriolíderindígenanaquelaregião.Umíndiotrouxeumcaldodebanana,dequeMaroaga tomouumpouco e repassouparaCalleri, que tambémbebeu.Opadre havia dito que os membros da expedição nada deveriam recusar dosíndios.Todoscomeramjacaré,macacoepapagaiomoqueados,mandioca,caráebatatacozida.Depoisqueoacampamento foimontado,elecomeçoua fazero“pagamento” aos índios, mas “não havia interesse em trocas”. Alguns serecusaram a receber “uma ou duas caixas de fósforos, querendo pegar todo omaço”.Opadre acabounão lhes dandonenhuma.Dizia que, se um índio nãoqueria determinado presente, ele o daria a outro. “O prejudicadomostrava-seaborrecido, estalando os dentes e batendo nas nádegas, ‘cortava gíria’ com osoutros”,contouomateiro.

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Álvaro ficou admirado com a aparente ausência de medo do padre. Esteafagavaos índiose sorriabastante: “Nossamelhorarmaéo sorriso”,disse.Otruque parecia dar certo. Numa preleção aos membros da expedição, Calleridisseestarsatisfeitocomosprogressoseorientou-osanãodarnadaaosíndios,nem uma simples bolacha, pois eles teriam “que compreender que somossuperioresesóeupossopremiá-los”.

Nodia26,o tuxauachegoucedocomarcos e flechaspara trocar,masdenovonadafoiaceito.Amesmatentativadetrocasocorreunodiaseguinte,comigual resultado. No dia 29, um barco da expedição subiu com doisWaimiri-AtroariatéumpostodoDER-AMparabuscarcombustível,masdemorouavoltar.Osíndiosqueestavamnamalocaficaramcontrariadoscomademora.Oquadrofoi se deteriorando. Uma das mulheres da expedição notou que os índiosestavamfurtandopratosecolhereseavisouopadre.Numsegundofurto,Calleriaproximou-se do índio e lhe disse que “Padre aqui,marupá . Índio roubando,padreaquipegaespingardaepom…pom.Índiomorre”.

Álvaro relatouqueopadrecometeuumgraveerroaoameaçaro índiodemorte e mencionar a palavra “marupá”, que significaria “mau” na línguawaimiri-atroari.Calleriindagou-lheseestavacommedo.Omateiroreconheceuquesim.Correuatéotuxauaeseu“secretário”paratentarcontornarasituação.Ambosnãoquiseramvoltar,disseram“cachorromarupá”,estalaramosdedosebaterampalmas,olhandoparaopadre.Álvarooalertoudequeumataqueeraiminente.

No dia 31, os membros da expedição foram à aldeia, mas Álvaropermaneceu no acampamento. Ele se pôs a construir uma balsa, concluída aofinaldodia.Foidormirlongedoacampamento“pormedidadesegurança”.Noalvorecer do dia seguinte, os companheiros ainda não haviam voltado.Álvarosaiudoesconderijoecaminhouatéoacampamento.Foiquandoviu“umcorpoque jazia por terra, tendo a camisa entreaberta ligeiramente”. Em seguida viuoutro cadáver, caído junto a uma bananeira.Refugiou-se então nomato, ondeficouatéescurecer.Depoisvoltouaoacampamento,pegoualimentoseempurrouabalsacomumavaraparaorio.SeguiuatéorioUatumã,ondeencontroudoiscaçadores e pediu ajuda. Só dias depois soube que seus nove companheiros

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estavam mortos — Calleri, Manoel Mariano Ferreira, João Geraldo GouveiaMartins,ManoelNascimento,BenjaminRibeiroMeneses,EduardoFranciscodeOliveira, Aragão Rodrigues de Oliveira, Marina Pinto da Silva e MariaMercedes Salles. Os restos mortais dos membros da expedição foram depoisresgatadosemostradosàimprensa.

Emboraaexpediçãoestivessecomváriascarabinaserevólveres,nãohánenhumregistro de que algum índio tenha sido assassinado. Calleri e sua equipeseguiram o ideal deRondon de atémorrer pelasmãos dos índios,mas nuncamatá-los. Sobre a natureza da expedição, ele não fezmuita coisa diferente doqueerafeitopeloEstadobrasileirohaviatempos,desdeRondon,passandoporVillasBôas,Meireles e tantos outros, ou seja, tentar proteger o índio,mas aomesmo tempo impedir que ele atrapalhasse os planos desenvolvimentistas dos“civilizados”.Aexemplodosdemaissertanistasdopassado,CallerisediziaumhomemgenuinamentepreocupadocomodestinodosWaimiri-Atroari.Emumacarta que dirigiu ao presidente da Funai, afirmou que os “nossos irmãos daselva”haviampassadoporinúmeras“imprudênciasemortandades”nosúltimos150anos.

NamesmaépocadaexpediçãoCalleri,aFunaidesencadeououtraoperaçãodecontato.Commaisdesetecentosquilômetrosdeextensão,orioArinoséumdosformadores do Juruena, no norte deMatoGrosso.Nasmargens viviam índiosconfrontadospelapresençacadavezmaiordos“civilizados”.Eramchamadosde“beiços-de-pau” pelos habitantes da região, já que inseriam uma rodela demadeirano lábio inferior.Depois ficaramdefinidoscomo“Tapayuna”,emboraseautodenominassemKajkwakratxi.Desdeadécadade1930haviaregistrosdemortes de ambos os lados do conflito, incluindo o uso de veneno na comidapresenteadaaosíndios.

Em1964,umaturmadeempreiteiroscomeçouaabrirumaestradaentreosriosArinosedoSangue,quando“cortouumtrilhodosTapayuna”.Elesreagiramflechando quatro trabalhadores e dois burros. Dois anos depois, os índiosatacaram e destruíram o acampamento dos operários da rodovia. Em julho de

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1966,aFunaiautorizoureligiososdaprelaziadeDiamantino(MT)aretomaremtentativasdecontatoquevinhamfazendodesdeofinaldadécadaanterior.Em1969,QueirósCamposenfimdeuasprimeirasinformaçõesoficiaisdequeumaexpediçãoexclusivadoórgão,lideradapelosertanistaJoãoAméricoPeret,tinhaconseguido“pacificar”osíndios.AFunaientãoresolveupromoveradivulgaçãodosucessodaoperação—umadecisãoquemarcariaparasempreahistóriadosTapayuna.

Em 16 de junho de 1969, a revista O Cruzeiro publicou uma longareportagem do jornalista Francisco Nélson e do fotógrafo Ronaldo Câmara.Intitulada “Na terra onde o tempo não para”, narra uma “viagem do homembrancoaoencontrodosbeiços-de-pau—osantropófagosdosconfinsdeMatoGrosso”.AreportagemcomparavaaexpediçãodaFunaiaopousodohomemnaLua. Nélson descreveu a viagem de um grupo de jornalistas, feita comautorizaçãoeapoiologísticodaFunai,atéopostoondeosíndios,àquelaaltura,já estavam reunidos.Alémdaduplada revista, seguiramo francês JeanPérié,“meiofotógrafo,meioaventureiro”,TarcísioBaltareRubensBarbosa,doJornaldoBrasil,eHedylValleJr.eWalterFirmo,darevistaFatoseFotos,daeditoraBloch.

Ogruposaiunodia18demaiode1969deumportonorioClaro.Nélsonescreveu que no barco a umidade era “terrível” e pela manhã estava “todomundoencharcadocomosehouvessedormidodentrod’água”.Umdiadepois,jánaaldeia,eleconstatouqueojornalistaHedylficaradoente.Nélsonescreveunasuareportagem:

Hedylpegouumresfriadofortíssimo.Seelenãoforisoladoimediatamente,nossamatériasetransformaráem:“Comoexterminamososbeiços-de-pau”.Uma epidemia de gripe entre eles seria um verdadeiro massacre. Se nãomelhorar,teremosqueconstruirumacabanaparaeledooutroladodorio.Obarcoirálevar-lhecomidaebuscá-loànoite,quandoosíndiostiveremidodormir.

AFatoseFotosdividiuareportagemdeHedylemduaspartes,nasediçõesdemaioe junhode1969.14Emboranogeral simpáticoaos índios, seu relato

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expressaavisãoporvezesjocosadeum“civilizado”descoladoporcompletodomundo que acabava de conhecer. Sobre um índio, que ele apelidou de“Maharishi”porseparecer“comoguru[indiano]dosBeatles”,Hedylconcluiu:“Comer, no final das contas, revelou-se o seu forte. Só parava para dormir e,roncando, a rodela do beiço tremia”. Ou então: “Entre eles […] falavamguturalmente, fazendo muita força, quase como animais. Parece que a tribocomeçouafalarhámuitopoucotempo”.Reconheceuqueeles“trabalhammuito,àsvezesatésemnecessidade”.Índiosreceberamapelidosde“Beição”e“BomPai”.

Notextodeumadesuasreportagens,opróprioHedylconfirmouterficado“fortementegripado”,atribuindoadoençaaofatordeterdormido“aorelentonobarco,[onde]aumidadeeraquaseabsoluta”.

OproblemadesaúdedeHedylfoideinteiroconhecimentodosmembrosdaexpedição,quepassarama“debater”oseucaso.Contudo,emvezdeserretiradode imediato do local, como não só a técnica indigenistamas o próprio sensocomumrecomendariam,Hedylfoi“trancadonumbarracoqueserviadedepósitodearrozegasolina”.Isso,porém,sóocorreuapósoalmoçododia21,enquantoHedyl detectara a gripe no dia 20. Na manhã do dia 21, por exemplo, elemantevecontato“comdoiscasaiscomduascrianças”.

Esseprocedimentocontrariavaapráticadeoutrasfrentesdeatração.Certavez,OrlandoVillasBôasrelatouquenumaáreadeatraçãotodososíndioseramexaminadosporummédico.Sealgumcasodegripeouqualquertipodeinfecçãofossedetectado,odoenteeraafastadodali“nuncamenosdecincoquilômetros”.15

O suposto isolamento de Hedyl teve pouca eficácia. Na reportagem dejunho,elecontouqueosíndiosficaramcuriososcomasuasituaçãoetentaramentrar no barraco. Por isso, foi transferido para uma choça.Um índio que eleapelidoude“Cicatriz” resolveu“divertir-se”àsuacusta,“esfregavaodedononarizeimitavaobarulho,rindomuito.Todososíndiospassaramafazerissoeagripe virou galhofa”. Logo o isolamento deixou de existir na prática. Hedylescreveu que à noite “brincamos de roda” com “velhos, crianças, adultos,mulheres”.Eletambémcortoubatatasparaojantar.

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Por fim, o jornalista também confirma em seu texto que seis dias após oinício de sua gripe dois índios ficaram gripados, “Traidor” e “Cicatriz”. Deformacontraditória,numparágrafoHedyldizque“Cicatriz”pareciarecuperar-se“comfacilidade”equea“ameaçadagripe,pelomenos,diminui”.Logoemseguida, porém, afirma: “O dia mais tedioso, inclusive para os índios, aindatraumatizadosecomeçandoacontrairagripe”.

À permanência do jornalista no local veio se somar outra falha. Hedylnarrouque“alguémselembroudasvacinas[contragripe],duzentasdoses”quetrouxeramdoRio,transportadas“degeladeiraemgeladeira”.Porém,ogelodoisoportinhavirado“águaquente”.SegundoHedyl,tambémhaveriadificuldadede“convencerumíndioàpicadadeinjeção”.Parapiorarocenário,elenarranareportagemqueumgrupodecolonosquepassavanumbarco—portanto,semnenhumcontroledaFunaisobreoseuestadodesaúde—parouparaconhecerosíndiosechegouamatarumboiparafazerumchurrasco,comidaqueosíndiosrecusaram.

ArelaçãodecausaeefeitoentreoresfriadodeHedyleaepidemianãopodeser afirmada demaneira direta, pela ausência de relatóriosmédicos da época,mas sabe-se que muitas mortes começaram a ocorrer entre os Tapayunaexatamenteapósasaídadosjornalistas,queocorreunodia28demaio.

Mais de 44 anos depois, o repórter fotográficoWalter Firmo, nascido noPará em junho de 1937, que se tornou um dos principais profissionais de suaáreanopaís, confirmou tervisto índioscaíremdoentesdepoisdachegadadosjornalistasaolocal.ElesedissesurpresoquandopercebeuqueaFunainãohaviaprovidenciado nenhum socorro médico para uma eventual emergência. “Nãohavianada.Éramossónós.Nãohaviaummédiconaequipe.Só jornalistas.Oque podíamos fazer naquela altura? Eu acho que mesmo que o Hedylconseguissetervoltado,omaljáestavafeito.Eramuitoisolado[olocal].”16

Firmo disse que Hedyl ficou “de quarentena” a cerca de cem metros dogrupoprincipal,numachoupana,maselemesmoentendeuqueamedidaseriadepoucaeficácia.Firmodissequeaequipe“nãoconseguiasairdali.Aimpressãoque eu tenho é que o barco que nos deixou só voltou para nos recolher emdeterminadodia”.

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O jornalista viu quando os índios “começaram a tossir” e cair doentes.SegundoFirmo,atéasaídadosjornalistasdaárea,porém,nenhumíndiohaviamorrido.

Aprimeiranotíciadequeumdesastreatingiuos índiosdatade16dejulhode1969.OJornaldoBrasilanunciouquea“gripematouemdoismesesmaisdevinteíndiosnasaldeiasbeiços-de-pau”.Nãohaviaregistrodemortesporgripeantesdachegadadosjornalistas.Assim,seadoençacomeçousessentadiasantesdapublicaçãodanotícia,entãofoi logodepoisdofinaldemaio,mesmaépocaemqueosvisitantesdeixaramopostodaFunai.

AsdatasenúmerossãoatribuídosnareportagemdoJBaosertanistaPeret.Eleteriaditoaindaqueosíndiosquemorreramhaviamestadono“acampamentoda expedição da Funai”, ou seja, no mesmo local visitado em maio pelosjornalistas. Peret cita que entre os mortos estão “Beição”, “Bom Pai” e“Scarface”, o nome em inglês de “Cicatriz”, que era o apelido dado pelosjornalistasaoíndioquefezabrincadeiracomobarulhodosespirrosdeHedyl.TodosessesíndiossãocitadosnasreportagensdeHedyl.OJornaldoBrasilnãofaz alusão à gripe do repórter, que já havia sidomencionada pelas revistasOCruzeiroeFatoseFotosdoismesesantes.Areportagemtambémnãoesclarecea opinião de Peret sobre a origem da gripe, dizendo apenas que os índiospegaramadoença“nosseuscontatoscomoscivilizados”.Agripecomeçounoposto e se espalhou para outras malocas. Na visita a uma delas, o sertanistaencontrou “cadáveres” e “crianças mamando no seio de suas mães mortas”.Depois do anúncio dePeret, o surto prosseguiu, inclemente, a julgar por duasreportagensposteriorespublicadaspelojornalOGloboemsetembroeoutubro.Ambasdizemqueforam“44osselvagensmortos”.17Ainformaçãoéatribuídagenericamenteà5aDelegaciadaFunai,emCuiabá.

Os números oficiais da Funai em relatórios da época são simplesmenteinexistentes, a exemplo dos casos dos Kararaô e dos Xavante. Esse silênciolevanta a suspeita de uma ação deliberada do Estado brasileiro para ocultar aperda de tantas vidas.As escassasmenções em documentos da Funai sobre aetnia tapayuna, porém, em nenhum momento desdizem a epidemia. Pelo

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contrário,elaécitadadiversasvezes.Umrelatóriodatadode1982,porexemplo,reconhecequeosTapayuna“foramexpostos semconsideraçãoàsdoençasdos‘civilizados’,eaminoriasobreviventefoitransportadaparajuntodeseusirmãosseparados” no Parque do Xingu — o relatório reproduz uma conclusão doantropólogo francês Patrick Menget. O documento também confirma que em1969 houve “uma perda populacional [que] destruiu a organização social dosbeiços-de-pau”.18OutrodocumentodizqueosTapayunaforamenvenenadoseatingidos “por agentes viróticos letais” e aponta como total de sobreviventes“umgrupodepauperadode41pessoas”.19

Pelomenos uma vez o presidente da Funai,QueirósCampos, abordou depúblicooassunto,masapenasanosdepois, já foradocargo.Elerelatouqueosertanista Peret “parece que não se conduziu muito bem” no contato com osTapayuna.

Peret,numadessas suas incursõesnaquele território, elecomo funcionárioda Funai, levou repórteres para fazer uma célebre reportagem: o homemchegando àLua e o homemda pedra lascada lá nos “beiços-de-pau”. Foisemmeu consentimento. Fez isso ao seu alvedrio, depois eu o afastei daFunai.Saiuumabela reportagem,masumdos rapazesestavacomgripeequasedizimouaquelapopulação.20

Campos fez essas declarações em plena CPI instalada no Congresso, masPeretnuncafoichamadoaprestardepoimento.

AlémdetrabalharnarevistaFatoseFotos,HedylValleJr.foiredator-chefenoJornal doBrasile editor doGlobo Esporte e doEsporte Espetacular , da TVGlobo.Nascidoem1945,morreuemnovembrode1993,aos48anos,vítimadeumaisquemiacerebral.21NosanosseguintesàsmortesdosTapayuna,WalterFirmoprocuravanãotocarnoassuntoquandoconversavacomocolega.

Eu evitava falar porque o Hedyl ficou muito passado. Ele ficou muitodesgostoso, ficou umhomem comum sentimento de culpa,meuDeus docéu.Amargo,amargo.[…]Nósevitávamosfalarnisso,paranãomagoá-lo,masagentesabiaqueele tinhaconsciênciadeque, semquerer…Elenão

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podiafazernada.Elenãopodiasairnadandodecostas,voltarparaolugarondenósteríamosumbarco.Esemterumavisoparaumcaminhãodeixá-loem Cuiabá. Marcou muito ele. Ele mudou. Ele era muito alegre, muitocomunicativo.22

Olhandoemretrospecto,FirmodiznãoterdúvidasobreafaltadeprecauçãodaFunaiquandodecidiulevarosjornalistasaumgruporecém-contatado.

Eu achei muito estranho que nós tivéssemos, cada um dentro do seutrabalho, da companhia em que trabalhava, ido até lá semmedicamentos,sem um apoio, uma logística. De colocar “civilizados” no meio daquelaempreitada,pelaprimeiravezserelacionandocomumíndio.Eagentesabiaque eles tinham esse problemamesmo. Se alguém estivesse gripado, elesestavam ferrados.Nós tínhamos essa consciência.De que aquilo ali tinhasidomuitomalengendrado,dequemteveaideiadenosconvidar.Nãotevea intenção, realmente. Foi notável a intenção de, fotograficamente, pôr acivilizaçãoapardaquelecontato.Masdiscriminoafaltadecritériodenãocolocarummedicamento,umaatitudedequepodíamosteridolá,mascomremédioserecursosprimáriosdamedicinaparaqueissonãoacontecesse.

Após o contato da Funai, em 1969, religiosos da prelazia de Diamantinoreceberam informações sobre um grande número de Tapayuna mortos. Ementrevista para este livro, o padre Antônio Iasi Júnior (1920-2015) disse terencontrado“sepulturasrecém-formadas”eesqueletos.Elecalculouemduzentoso total de índios no momento do contato, número que havia baixado paraquarentaquandochegouàaldeia.

“Então o senhor acha que mais de cem morreram?”, eu quis saber.“Provavelmente”,respondeuIasi,queculpou“orapazdaFunai”porterlevadoaolocal“jornalistascontagiadospelagripe”.

Vimos como os “civilizados” narraram a epidemia de gripe que quasedizimouosTapayuna.Opontodevistadosíndios,contudo,sóseriamaisbemdocumentado muitos anos depois. Em julho de 2011, a pesquisadora daUniversidade de Brasília (UnB) Daniela Batista de Lima foi à aldeia

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kawêrêtxikô,noXingu,ondepassaramaviverosremanescentesdorioArinos.DurantedozediaselagravouodepoimentodeumaTapayunaanciã,Ngejwotxi.Depois obteve cópia do depoimento de outra idosa, Khôkhôtxi, coletado em2009pelapesquisadoraMarcelaCoelhodeSouza.Asduasíndiastinhamentre23 e 25 anos quando chegaram ao Parque Indígena doXingu.Amemória deambasdescortinouacatástrofe.

Emboraelasnãosaibamdizercomprecisãoasdataseosnomescorretosdos“civilizados” com os quais mantinham contato na época — um padre, porexemplo, é chamadoapenasde “Tahati”—,confirmaramqueadoençamatougruposdeváriasmalocas,enãoapenasosqueestavamnopostodaFunai.

Segundoas índias,váriosTapayunadoentes arrancavamcascasdeárvorespara passar pelo corpo, achando que assim se livrariam da gripe. Tambémapelavamaospajés,chamadoswajanga,impotentesparalidarcomadoença.Acertaalturadaepidemia,osíndiosencontraramcriançasórfãsnamata,chorandopelospaismortos.Osoutros índiosnãoconseguiramajudarospequenos,poistambém estavam fracos e incapacitados.Era uma escolha dramática acerca dequemiriasobreviver.AíndiaNgejwotxicontouodesespero:

Obebêchupavaopeitodamãemorta,chorando,cheiadeabelhanorosto,nos olhos, entrando no nariz. E esses meninos e meninas de cinco anosacima, eles seguiram, mas não chegaram na aldeia, não alcançaram opessoal e foram morrendo no caminho. […] Aquelas crianças pequenasficarampor lámesmo,ninguémcuidavaporque tinhamuitascriançassempaiemãe.Meninasemeninosdetrêsequatroanos,elesficarampralásemdormir,chamando“pai,mãe,[a]ondevocêsforam?”.23

Enfraquecidos, os índios do grupo de Ngejwotxi enfim chegaram a umacampamento,“famintos,quasedesmaiando”.

Essadoençaqueopessoalpegoumatarápido.Antesdetodomundomorreros outros parentes ajudavam a enterrar o pessoal. Enterraram, cavaram oburaco.Quandotodomundopegouessadoença,ninguémmaiscuidavadosoutros. Os outros ficaram lá sozinhos gritando, morrendo. “Por que essa

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doençafezissocomagente?”Todomundogritava.Ninguémescapava.

Depoisdagripe,odramadosTapayunanãoacabara.OpadreIasidissequeogruposofreuumsurtodesarampo,trazidotambémporvisitantes.Semajudamédicaeficiente,Iasidissetervistopelomenosumacriançaíndiamorrer,comtalvezonzeanos.

Emjulhode1969,PeretdecidiuviajaraoRiodeJaneiroacompanhadodedois jovens tapayuna que tinham, segundo a imprensa, treze e dezessete anos.Peret os levou “à presença do ministro [do Interior] Costa Cavalcanti, nogabinete”,como“provadosresultadosdapacificaçãorealizadapelaequipe”daFunai.24

Peretmorreuem2011semdeixarumtextopúblicoesclarecendodetalhesdaepidemia de gripe.Nascido emRioBranco (AC ) em 1926, ele se tornou umimportantesertanistadoSPI,ondeingressouem1947,edaFunai,tendoatuadoeminúmerasexpediçõesnaAmazônia,comoaque localizouos restosmortaisdaexpediçãoCalleri.Escreveuvárioslivros,dentreelesumquetratoudemitoselendasdosíndioskarajá.Em2005,contouquecertavezopresidentedaFunailhefezumapropostadeganharem100milhõesdecruzeirospelaexploraçãodeterras indígenas. Peret disse que ficou “muito decepcionado” e “denunciou apropostaindecenteàsautoridades”.Elenãorevelouonomedesseex-presidente.25

O que não foi tornado público na época e agora é possível aferir, com aliberaçãodospapéisproduzidospeladitadura,équeasaçõesdePeretnocasoTapayuna não só foram investigadas pela Funai como ele acabou punido porelas. Estrategicamente, porém, o governomanteve a opinião pública longe doquepoderiatersidoumescândalointernacional.

Em agosto de 1969, o então diretor do Departamento de Assistência daFunai,DarcyMesquita da Silva, averiguou tudo o que se passou em torno daepidemia,ouviuPereteconcluiu:

“Lamentavelmente constata-se agora com a leitura deste relatório e pelosdepoimentos verbais do referido servidor [Peret] que foram cometidas falhasgravíssimas, culminando com a perda irreparável de preciosas vidas”. 26

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Dizendo-se“convencidoda irresponsabilidade reveladaporPeret”,SilvapediuaopresidentedaFunaiqueafastasseosertanistadoórgão.

Outro documento confirmaquemeses depoisPeret de fato foi retiradodaFunai, sendodevolvidoaoDepartamentodeProteçãodos ÍndiosdoEstadodaGuanabara,seuórgãodeorigem,pormeiodeumaportariadatadade3deabrilde1970,assinadapelopresidentedaFunai.27

Peret recorreu da manifestação de Silva. No documento, defendeu suacompetência e procurou culpar o próprio diretor de Assistência. Disse quecaberia ao colega fornecer osmeios para cumprir o seu despacho exarado noPlanoOrçamentário”, “salvaguardar aHigiene dos Índios” e que não seria daalçadadosertanista“sairporaícontratandomédicos,enfermeiros,laboratoristas,assistentessociaisetc.”.Alegouquetentouporváriasvezesreceberascondiçõesnecessáriasparagarantirasaúdedosíndios.28

Peretescreveuque“nãoseriapossível”removerojornalistagripadoequetomouasprovidênciasindicadasparaocaso,“oisolamento”.Disseaindaqueosíndios estavam mantendo contatos com outros “civilizados” numa frente de“centenasdequilômetros,quenãotínhamoscondiçõesdepoliciar”.

Peret tambémafirmouqueonúmerocorretode índiosmortosnãoeraumdado “indispensável”. A dúvida ocorreu porque o diretor de AssistênciapercebeuquehaviaumacontradiçãoentreonúmerodevítimasfataisfornecidoporPeretduranteumaentrevistacoletivanoRio—teriamsidoapenas“quatromortos” — e um relatório interno do sertanista que falava em “inúmerasvítimas”. Peret deixou claro que estava preocupado com a repercussão doassunto na imprensa: “Está claro que aminha única intenção foi alertar vossasenhoriacontraapossívelexploraçãojornalísticasobreamatéria”.

Odocumentoconfirmaumaantigahistóriacontadaporsertanistasmasnãoregistrada nos principais jornais da época ou em outros relatórios disponíveisparaconsulta.Kairá,umdosdoisadolescentesbeiço-de-pautrazidosparaoRiode Janeiro para o encontro com o ministro do Interior (o outro era Tariri),efetivamentemorreulogodepois,emdecorrênciadeumadoençanãoinformada.Kairá veio ao Rio em julho de 1969 e o relatório de Peret é de outubro domesmo ano—o garoto, portanto,morreu em algummomento dos trêsmeses

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depoisdesuaidaaoRiodeJaneiro.Osertanistaexplicouquetomouadecisãode viajar com os dois índios porque a epidemia havia matado “todos” os“parenteseamigos”dos jovens tapayuna, incluindoamãedeKairáeopaideTariri. Segundo Peret, sair da região era “uma questão de sobrevivência, paraevitarqueadquirissemamesmamoléstia”.

O encontro dos jovens tapayuna com o ministro do Interior no Rio deJaneiroocorreu356anosdepoisqueseteTupinambásforamlevadosdoBrasilaParisparaseencontrarcomoreifrancêsLuísXIII.NachegadaàEuropa,porém,quatronãoresistiramaofrioemorreram.29

Dos dois Tapayuna que se impressionaram com o mar e queriam caçarpombos na praça da Candelária, um morreu. O outro, Tariri, acompanhou osertanistaAntônio de Souza Campinas em umamissão de reconhecimento daantiga terra tapayuna em novembro de 1971. Dois anos depois, a Funaideterminou que ele regressasse ao local para saber se ainda havia índiossobreviventes,talvezescondidosnamata.PertodorioArinos,CampinaseTaririencontraram uma aldeia queimada e invadida por capim e outras duas em pécom “ossos de vários cadáveres de índios tapiuras [tapayunas] e muitosartesanatos,assimcomoarcoseflechas”.NoantigopostodaFunai,encontraramuma tábua num velho rancho abandonado, na qual jornalistas teriam escritosobreoiníciodaepidemia.30

Campinas chegou à amarga conclusão de que “não existe mais” índiotapayunadentrodaáreainterditadaparaocontato.Enquantocaminhavam,TariricontouaCampinasqueumapartedosíndiosdoentesquehaviamconseguidosesalvardaprimeiraondadaepidemiafoiseembrenharnomatoenãoquistomaros remédios oferecidos pelos “civilizados” no início de 1971. Eles tambémmorreram,disse o índio.De repente,Tariri parou.À sua frente havia diversosossos humanos espalhados. Tariri sentou-se, “pôs as duas mãos na cabeça,depois bateu com a mão direita em cima do coração e nesta altura já estavachorando,olhandoparaosossostodosfuçadospelosporcosdamata,lembrandoquenomeiodaquelesossosestavamosossosdamoçaque iasersuaesposa”.SegundoCampinas,o índio lhedisseem língua tapayuna:“Vocês ‘civilizados’mataramtodos.Tudoacabado”.

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5.NASSUASMÃOS

NO FINAL DOS ANOS 1960, A FUNAI PROCURAVA NOTÍCIASPOSITIVASparadivulgareasencontroucomumadupladeativossertanistas,pai e filho, cujas histórias se confundem com a de várias etnias. Um dosorgulhosdoSPIeumdosmaioressertanistasdopaís,FranciscoFurtadoSoaresdeMeireles1nasceuem1908nacidadedeGameleira(PE),filhodeFranciscoRibeiroSoares deMeirelles, que foi senador daRepública porPernambuco.2Aindamuitojovem,transferiu-separaoRiodeJaneiro,ondeestudounocolégiosalesiano de Santa Rosa, em Niterói. Tinha catorze anos quando estourou arevolta dos jovens oficiais em julho de 1922 no Rio— parte do movimentotenentista,queafrontouatradiçãodaRepúblicaVelhaaoenfrentaropoderdasoligarquias regionais, defender a queda das profundas desigualdades sociais epropor acabar com o analfabetismo —, em que atuou como “estafeta dosrevolucionários”,masacabou“nãoincomodadopelapolícia”,emborapassasseaser vigiado. 3 Seu irmão Silo, então segundo-tenente do Exército, teveparticipação ativa na revolta que ocorreu na EscolaMilitar do Realengo. Foipresoecondenadoaumanoequatromesesdeprisão,saiudacadeiaem1927,regressou ao Recife, onde escreveu para jornais e depois participou das“articulações que desembocariam na Revolução de 30”. 4 Meireles, quecontinuavanoRio,tambémseagregouaosrevoltosos.Dessavezacaboupreso“noquarteldaguardacivilpor28dias”.5TambémseenvolveunaRevoluçãoComunistaem1935,noRecife,ondefoipresocomosirmãosSilo,RosaeIvo,cumprindo um total de três anos de cárcere. Após deixar a prisão, MeirelesprocurouogeneralManoelRabelo,que“conseguiuparaeleumavaga”noSPI ,em1942,emPortoVelho,segundoafamília.6UmacertidãodoSPI ,contudo,

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mostraqueelejáatuavanoórgãodesdesetembrode1940.Nos anos 1960, Meireles confirmou ter participado “do Movimento

Comunistanamocidade”,masdisseterseafastadodoassunto“completamenteehoje se dedica exclusivamente à política indianista”. 7 Outros comunistasbuscaramtrabalhonoSPI.EneuPaula,quemorreriadoentenafrentedeatraçãodosCinta-Larga,participoudarevoltacomunistaem1935naPraiaVermelha,noRio.8AgentedoSPInosanos1960,JoãoLopesVelosodeOliveirafoipresoem1936“comocomunista”,massedeclaroudepois“nãopropriamentecomunista,simplesmenteumjovemsemorientaçãoeaformaçãonecessárias”.9

Meirelespassou172diasnopostodeatraçãoemPortoVelho,dali saindoem1943paraaatraçãodosPacaá-NovoemGuajará-Mirim,ondeficou640dias.Em1944seguiuparaoMatoGrosso,“afimdeorganizaredirigirostrabalhosda turma volante que opera no rio dasMortes”. Permaneceu ali 456 dias.De1946 a 1953, venceu o grande desafio pelo qual é mais lembrado, a“pacificação” dos índios xavante, num total de 1884 dias de trabalho. 10 De1954emdiante, trabalhoucomgruposdeKararaôeemfrentesdeatraçãodosíndioskayapó,panará,cinta-largaesuruí,dentreoutros.

Meireles viveu situações de extremo perigo e empreendeu longas earriscadasexpedições—emborativesselimitaçãofísica,poismancavadeumadas pernas.Em entrevista à jornalistaElianaLucena,Meireles disse que certavezseviucercadoporuns“trezentosíndiosarmados”daetniaxavante.Ordenouquesuaequipeestourassefogosdeartifício,oqueafugentouosíndios.Depoisarrumou um alto-falante e mandou que se tocasse sanfona. O namoro seestendeu de janeiro de 1945 a agosto de 1946, quando enfim “houve aconfraternização”entreíndioseSPI.11

PortudoqueMeirelesrepresentavaparaahistóriadoSPI,causousurpresater sido ele um dos presos em decorrência dos processosmovidos a partir doRelatório Figueiredo em outubro de 1967. Meireles reagiu com indignação àprisão, atribuindo-a sobretudo a um desafeto do SPI , José Maria da GamaMalcher. 12 Este não escondia sua opinião a respeito dele. “[É] mestre em‘químicas’, isto é, em manipulação de verbas, adulteração e enxertos dedocumentosemprestaçõesdecontas.”13

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As principais acusações eram falta de comprovantes de gastos e uso deverbaemprogramadiversodoplanejado—masnãofurtodedinheiropúblicoemuitomenosmaus-tratosaos índios.Meireleseradescritopor seusapoiadoresno SPI como um homem desligado das obrigações burocráticas, de poucasposses,cujasroupasepertencescaberiamnumaúnicamaleta.Sertanistasqueoconheceramdisseramqueeledistribuíadinheiroaíndiosecaboclosequeusavaoprópriosalárioparaatenderaemergênciasdospostosindígenas.

Diasdepoisdaprisão,acomissãodeJáderreconheceu“atenuantes—pelomenos de ordemmoral— para o sr. FranciscoMeireles”. 14O sertanista foilibertadoelogoautorizadoaorganizarumanovafrentedeatraçãolançadapelogoverno. Dessa vez, incumbido pelo coronel Hermogêneo Encarnação,secretário-executivo da Funai, empreenderia esforços para localizar os Cinta-Larga deRondônia.Não se sabia até então,mas diversos índios consideradospertencentes a essa etnia na verdade eram suruí. A confusão se dava porqueamboscostumavamusarnabarrigaumcintofeitodecascasdeárvores.

Em sobrevoo num avião cedido pelo governo de Mato Grosso, Meirelesavistou21malocas,sendovintedos“Cinta-Larga”eumadosNambikwara.EmcontatocomoinspetordaFunainaregião,soubequefazendeiroseseringalistasestavam“dispostosacooperar”comopessoaldoórgãoindigenista,poishaviam“empregado avultadas quantias na região” e estavam “sensivelmenteprejudicados pelas constantes incursões dos ‘Cinta-Larga’, ferindo e matandoseustrabalhadores,flechando,inclusive,gado,atacandotropeirosecomboiosdemercadeiros destinadas ao aviamento dos seringais”. Meireles apoiou comentusiasmoaparceria,acrescentandoqueodinheiroestavacondicionadoàsuapresença na região. Mais uma vez, a exemplo do SPI , a Funai atuava como“amansadora”deíndios,demodoaabrirespaçosparaoempresariado.Meirelesescreveu:

Estavam,portanto,osmaioraisda indústria extrativaedemais fazendeirosdispostosaefetuaremumadiantamentofinanceiroparafazerfaceaoiníciodenossostrabalhos,enquantonãofossemliberadososrecursosnecessários,pelaFunai,edesdequeeufossemantidoàfrentedostrabalhosdeatração,

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confiançaessaquemuitomehonraesensibiliza.15

Meirelesconcordoucom“aaceitaçãodaqueleoferecimento”.EmPortoVelho,obteve ajuda do coronel Aloysio Webber, comandante do 5o Batalhão deEngenharia eConstrução (BEC ), que providenciou comida, hospedagem e umcaminhão.Emagostode1968,aexpedição,queincluíaíndiosgavião,penetrouna mata pela margem direita do igarapé conhecido como Riozinho, a 25quilômetrosdacidadedePimentaBueno.Aregiãoera,segundoMeireles,aquemaisregistravaataquesporcontera“principalfontedeabastecimentodecaça,peixe e frutas silvestres dosCinta-Larga”.A equipe caminhoupor capoeiras elugarejos abandonados, outrora ocupados por seringueiros, arrancando com asmãos mato, cipós, arbustos e árvores caídas. Após percorrer cerca de 120quilômetrosem37dias,chegouaumigarapéealimontouopostodeatração.Comoera7desetembro,assimforambatizadosopostoeoveiodeágua.Paraofertar brindes aos índios, a expedição havia levado três dúzias demachados,três dúzias de facas, duas dúzias de foices e duas dúzias de facões.As peçasforam deixadas em vertentes percorridas pelos Cinta-Larga e em um tapirilocalizadopertodoposto.Osíndiosretribuíram,deixandonolocalalimentose“flechas,cocares,cestinhaseoutrosartefatos”.ParafacilitarotrabalhodaFunai,o governo interditou toda a região, depois reduzida e batizada de Parque doAripuanã,“áreadeextensãomaiorqueoestadodeSãoPaulo”,comocomparouMeireles.QueirósCampos foi empessoa conhecer o posto Sete de Setembro.Preocupado com o que ocorreria com os índios depois do contato, Meirelespediu“medidaseficazes”para“evitaroesbulhoeaespoliaçãodequetemsidovítimaamaioriadas tribos indígenas”. “Umavezatraídos énecessárioqueosatuaismagnatasdapropriedadeda terranão se apossemde suasglebas, comocostumamfazercomacumplicidade,oupelomenoscomatácitaaprovaçãooumesmofriaindiferençadecertosgovernantes.”

Meirelesdissequeem1953haviadenunciado“pessoalmenteaopresidente[Getúlio]Vargasepublicamente,ementrevistaaovespertinoOGlobo”,queasterras xavante “estavam sendo invadidas e vendidas pelo governador deMatoGrosso”,masporissofora“punidocomasuspensãoportrintadiasenenhuma

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medida foi realmente tomada para salvaguardar as referidas terras”.Agora elenãoestavasozinhoemsualuta:tinhaacompanhiadecisivadeseufilho.

Desdeoprincípio—epelavidatoda—,JoséApoenaSoaresdeMeirelesesteveligadoàquestãoindígena.Nasceuemumaáreaindígenaem1949pertodoriodasMortes,nopostoPimentelBarbosa,emMatoGrosso.Opaiescolheuonomedacriançaemhomenagemaumimportantecaciquexavantedaépocadocontatoporeleconcluídonosanos1940.Afamíliadiziaqueonomesignificava“aquelequeenxergalonge”.16Apoenaévistonas imagensantigassempredechapéu,magro,comumbigodefinoesembarba.

Em 1969, com apenas vinte anos, Apoena foi empossado no cargo desertanistadaFunai.SeuprimeiropapelderelevofoiaoperaçãoCinta-Larga.17No dia do contato, em junho de 1969, Francisco não estava na área.O velhosertanistadepoisescreveu,cheiodeorgulho,àdireçãodaFunai:

OservidorJoséApoenadeMeireles,chefesubstitutodaexpedição, foiaoencontro dos mesmos [índios] quando apareceram na margem oposta doigarapéSete deSetembro. […]Atravésdegestos, pediammais presentes,ocasiãoemque,numdesprendimento raro,o servidorApoena,despidodequalquer arma, dirigiu-se ao encontro dos temíveis “Cintas-largas”, dandoensejoàconfraternização.18

Claroquenãofoi tãosimplesassim.Dezanosdepois,opróprioFranciscocontouquetantoApoenaquantoocacique“estavammorrendodemedo”umdooutro.19

Umdosprincipaisdocumentaristasdahistóriadoindigenismonopaís,Jescovon Puttkamer, que acompanhou tanto os Meireles, dos quais foi homem deconfiança,quantooutrossertanistasemdiversasoperaçõesdecontatocometniasindígenas dos anos 1940 aos 1970, deixou um diário de campo da época docontatoemRondônia,masseuacessohojeécontroladopeloInstitutoGoianodePré-HistóriaeAntropologiadaPontifíciaUniversidadeCatólica(PUC)deGoiás.Apóstentativasdeacessoaomaterialparaestelivro,oinstitutoinformouqueoscadernos e anotações de Jesco passavam por um processo de escaneamento,trabalhoquedeveriademorarpelomenosaté2016.

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Em2005,contudo,umlivroemhomenagemaJescoreproduziutrechosdeseusdiários.NotextosobreosSuruí,apesquisadoraAnaLigabueafirmouqueosarampo chegou aos índios por volta de outubro de 1971, “propagando-serapidamente”,oqueoslevouabuscarajudamédicadeApoenaedaFunai.Elacita “mais de quatrocentas mortes até 1973”, sem no entanto atribuir ainformaçãodiretamenteaoscadernosdeJesco.Apesquisadorainformaqueeleescreveuemseusdiários:

Ésempreomesmoquadro:primeirochegaaestrada,depoisanecessidadede contatos amigáveis. Os índios têm contato descontrolado com osforasteiros,pegamdoençascontagiosas.[…]Logodepois,colonosinvademsuasterraseogovernoostransfereparaalgumoutrolocal[…],sempredepior qualidade. Os irmãos Villas Bôas costumavam dizer que os índioscedemlugaraogado.20

Em uma reportagem sobre os Cinta-Larga, Jesco escreveu que a Funai“procuramanterasdoençasdacivilizaçãodistantesatéqueosíndiospossamserimunizados”.21NopostodeatraçãodaFunai,ondeelepassoumeses,amalária“eraumacoisaséria,eumdosnossoshomensmorreudisso”.AcrescentouqueopessoaldaFunaiouvirafalarqueumagripechegouaosCinta-Larga,emboranãosoubesseadimensãodoproblema.Havia“equipesmédicasdeprontidão,massópodemosagirquandoconvidados”.

Antes da publicação, o texto da reportagem foi submetido em caráterconfidencial pela integrante da pesquisa editorial da National GeographicMagazine,deWashington,JudithBrown,aogeneralOscarJerônimoBandeirade Mello, então presidente da Funai. Judith pediu-lhe que confirmasse averacidade de diversos dados contidos no texto. Jesco escreveu, por exemplo,queaBR-364foraabertaem1967,ouseja,duranteoregimemilitar,e“atingiuasáreasdecaça”dosíndios.AFunaidisseàrevistaqueaestrada“foiabertanocomeçodosanos1960”eque“nãocruzouasáreasdecaçadosCinta-Larga”.Aprimeira observação é correta,mas a segunda, controversa.O limite ao sul deumadasáreascinta-largadepoisdemarcadaspelogoverno,aRoosevelt, ficaapoucos quilômetros dos limites dosmunicípios deCacoal e Ji-Paraná, ligados

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pelarodovia.AprópriaFunaisugeriuàrevistanaépoca:“Useapalavra‘perto’(atingiupertodeseuscampos…)”.22

Naversãopublicadanarevista,otextoterminacomaseguintefrase:“Nada[pode ser feito], exceto orar para que não sejamuito tarde, que a intrusão dacivilizaçãojánãotenhacondenadoàextinçãooutropovoprimitivo”.NaversãoenviadaporJesco,otrechoapareciacomo:“[…]quenãosejamuitotarde,queporintermédiodenossainvasãonavidadelesnósjánãotenhamoscondenadoàextinção outro magnífico povo primitivo”. Uma sutil diferença, porémreveladora:paraJesco,otrabalhodaFunaiseconfundiacomaprópriadesgraçadosíndios.

ÉforadedúvidaaocorrênciadeviolentossurtosentreosCinta-LargaeosSuruídeRondônia após o contato,mas a documentação produzida pelos agentes daFunai na época, disponível até o momento, também não é clara o suficientesobreotamanhodoimpactodaepidemianaquelesmomentoscruciais.23

Testemunhos posteriores, contudo, dão a certeza de que o contatorepresentouumdesastreimpressionanteparaosíndios.QuandopartedosdiáriosdeApoenafoipublicadaapósasuamorte,em2004,soube-sequeeleescreveuem 25 de maio de 1973 sobre mortes de Suruí na região do posto Sete deSetembro.Elefezumapenitênciaeumapromessa.Pareciabematribuladocomosurto,apontodeimaginarserassassinadopelosíndios.

Nãopossoaceitarseroveículodeextermíniodenossosíndiossemdar-lheschance deme destruírem, arrebentaremminha cabeça,meu interior feridopela cacetada de suas bordunas, e então, emmeio aomeu próprio sangueainda pedirei perdão pelas vidas indígenas desaparecidas após contatá-las.JamaisesquecereiosurtodesaramponosSuruído[postoindígena]SetedeSetembro, edesejopor issoquepossaumdiamorrer lutandoao ladodosíndios ou sermorto por eles. Paramim, não existe diferença, tudo o quefizeraindaserápouco.24

Apoenaescreveusobreuma“lembrançadistante”quevoltavaàsuamente,certos“temporaispassadosevencidos”.

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Surgem diante de mim as imagens de índios atacados de sarampo e quedesapareciam entre minhas mãos, escorregavam pelo meu corpo edesapareciam terra adentro. […]Que infelicidade éumhomemamar seusfilhosevê-losmorrernassuasmãos,querendopartircomelessempoder,poissabequeomomentoaindanãoéchegado.NofimdetudoaFunaiemnota oficial disse que ainda não tinha morrido nenhum índio! Que raiva,quantonojosintoporcertotipodehomens.

Apoena foi específico sobre uma operação de acobertamento deinformações. Porém, não foi claro sobre a data e o número de mortos daepidemia.Deacordocomosautoresdolivrocomseusdiários,queentrevistaramApoena, ele “estava se lembrando do terrível surto de sarampo que dizimoucentenasdeSuruís”.

Oquadromais amplocomeçoua surgirnos trabalhosdoetnólogo francêsJean Chiappino, membro do Grupo de Trabalho Internacional para AssuntosIndígenas (International Work Group for Indigenous Affairs, IWGIA ),organizaçãonãogovernamentalfundadaporantropólogoseativistasdedireitoshumanoseuropeusem1968,comsedenaDinamarca.

Chiappino chegou à região habitada pelos Suruí Paiter em 1972, portantodepoisdocontato—quealiáseleestabeleceucomosendooanode1971,enão1968, ao contrário do que indicam alguns documentos da Funai.Na época dachegada do etnólogo, tanto os Suruí quanto os Cinta-Larga, num total quevariavade1,5mila5milíndios,haviamsidoreunidospelaFunainumaregiãointerditadaquerecebeuonomedeParqueIndígenadoAripuanã,umatentativadogovernomilitarderepetiraexperiência,consideradapositiva,doParquedoXingu.

Chiappino viveu três meses entre os Suruí. Ele recolheu informações epresencioucenasqueajudamaentenderaslamentaçõesfeitasporApoenaanosdepois.Ofrancêsdissequeoestadodosíndiosera“desastroso”equeocontatofora realizado de forma “muito rápida e sem a ajuda de qualquer assistênciamédica”. Contou que uma ajuda por helicóptero chegou a ser organizada porApoena,mas apenas “revelou a inconsistência e a inutilidade de tal decisão”,

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tendosidoum“fracassototal”.Chiappinodissequedosparticipantesdamissão,incluindo Jesco, a quem identificou como“fotógrafodaFunai”, ele conseguiuapenas recolher detalhes “folclóricos” e “comentários maldosos” sobre ocomportamento dos índios. Observou também que não havia remédios nafarmáciadopostoSetedeSetembro.Por sua insistência,umanovamissão foiorganizadacomopessoalmédicodaFunai,mastudonãopassoude“umnúmerodepropagandapara impressionar”oetnólogo.As injeções,commedicamentosinapropriados, não “eram o que a emergência exigia”. Logo a equipe saiu daregião, deixando Chiappino “sozinho e com o pouco que restava dos meuspróprios remédios”.Numaocasião,ele“tevequecarregarum jovem índionaspróprias costas” até o posto. O resultado desse abandono não demorou aaparecer.“Aepidemiaatingiu todasas faixasetárias,comasmortesocorrendodoismesesdepoisdoaparecimentodeuma tosse rouca,que seespalhavapelaflorestaaofinaldatarde.”25

Segundo Chiappino, a doença atingiu 60% da população total, que elecalculouentrequatrocentosequinhentosíndios.Narrouterconfirmadoamortede vinte pessoas que conheceu “ou pelo nome ou pelo parentesco”. A médiainicialeradeumamorteporsemana,masemnovembroeladobrou.“Depoiseusoube que a epidemia continuou, com 45% de mortalidade para o grupo quefrequentementevisitaopostoindígenaSetedeSetembro.”

O documento produzido por Chiappino tornou-se uma potente denúnciasobre a política indigenista brasileira, seusmétodos e resultados danosos. Elequestionoucom firmezaa ideiadas frentesdeatraçãodaFunai, esforçoqueaseu ver consistia em distribuir “iscas” na forma de presentes, para depoisabandonarosíndios“semresistência”.

Essetrabalhodeproteçãoétãodesagradávelparacertaspessoasousignificaumapolíticadeliberada?Osilêncioemqueémantidonãorevelaquecertaspessoas estão bem informadas sobre o que estão promovendo? E nãotemamosumapalavra:issonãoégenocídio?

O etnólogo revelou que antes de entrar na área indígena teve que assinarumadeclaraçãoapresentadapelaFunai,ecomonomedopresidentedoórgão,

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segundo a qual ele deveria reconhecer os “esforços da Funai” na área deassistênciamédica,masqueosíndios“ferozmenteseopõemaessesesforços”.Chiappino escreveu que na realidade “não observou tais fatos”— nem apoiomédico da entidade nem a recusa firme dos índios, que, para ele, podiam serconvencidoscompoucotrabalho.

Sob a cobertura do nacionalismo, decreta-se uma política chamada aprincípiode“integração”,masquenoníveldarealidadeconcretanãoénadaalémdoqueumgenocídio.EssegenocídioqueoBrasilserecusaaadmitirdeveriaserdesmascaradopelaatualpolíticaindigenistaseguidapelaFunai.

Chiappino esteve entre os Suruí no ano de 1972, período em que disse teremocorridopelomenosvintemortes.Porém,duasoutrastestemunhasocularesdodramadessesíndioschegaramaumacontamuitíssimomaisalta.

O SIL foi fundado nos anos 1930 pelo missionário protestante norte-americano William Cameron Townsend, conhecido como “Tio Cam”. Apóstrabalhar com povos indígenas na Guatemala, ele chegou à conclusão de quepoderiaevangelizaros índioscommaisrapidezseconseguisseantes traduziraBíblia para a língua de cada grupo. O SIL passou então a gravar em áudio,transcreveretraduzirparaoinglêseoportuguêslínguasdasdiversasetniasdaAmérica Latina. Embora apresentasse uma roupagem “científico-cultural”, amotivaçãodoinstitutoera“espiritual”.26

OSILeramantidoporumgrupobatistaapoiadopelafamíliaRockefeller—Nelson se tornaria vice-presidente dos Estados Unidos nos anos 1970. Umafazendade417milhectaresadquiridapelafamílianosuldeMatoGrossoserviudebaseaosprimeirostrabalhosdogruponoBrasil,emmeadosdosanos1950,naevangelizaçãodosíndiosterena.27Surpreendentemente,umgrandeapoioàinstalaçãodoSILnoBrasilpartiudoprincipalantropólogoligadoaJoãoGoulart,DarcyRibeiro.Estejustificousuaposiçãodizendoqueamissãodoinstitutoerafundamental para compreensão e preservação das línguas indígenas. Escreveumaistardequeera“umabobagem”das“esquerdas,emsuahabitualestupidez”,relacionaroSILaotrabalhodaCIA,acentraldeinteligênciadoEstadosUnidos.“Eles[SIL] láestãoparaprepararachegadadonovoCristo.Essaéaverdade,

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meioinverossímil,masverdadeiríssima.”28O SIL entrou em terras indígenas do Brasil em 1956, mas só em 1969,

duranteaditadura, tevesuaatividaderegulamentadapormeiodeumconvênioassinadocomaFunaieoMinistériodoInterior.Noanode1970, trabalhavampelo SIL no Brasil 153 pessoas, todas estrangeiras, com exceção doadministrador, um brasileiro. Desse total, 99 eram “linguistas ou linguistas-antropólogos”.29

Osmissionários estavam espalhados por várias áreas indígenas em que aatividade da Funai era inexistente, o que os levava a atuar, na prática, comoprofissionais de saúde. De maneira conveniente, essa dupla função foireferendada pelo órgão indigenista em 1971, que dois anos depois renovou oconvênio. O SIL disse à Funai ter em seus quadros um médico e dezoitoenfermeiroseauxiliaresdeenfermagemqueiriam“cuidartambémdaassistênciamédica nas aldeias onde estivessem trabalhando”. A Funai ajudaria commedicamentos“essenciaiseemquantidadessuficientes”.30

Havia pelomenos um problema nesse acerto.Osmembros do SIL tinhamcomoobjetivoprincipaloestudodalíngua,oqueosobrigavaadeixaraaldeiadetemposemtempospara“aperfeiçoamentodasanálises”domaterialcoletadoe preparação “de material de ensino”. Além disso, os missionários tambémprecisavam recuperar sua própria saúde, abalada pelas “precárias condiçõessanitáriasnasaldeias”.Nessasausências,aFunaideveriacomparecercomsuasequipesvolantesdesaúde.Ouseja,oatendimentoaoíndiopeloSILeraapenasumremendoincentivadopelogoverno.31

Os missionários do instituto funcionavam para a Funai como fontes deinformação bem posicionadas em áreas inóspitas do país. Em 1971, porexemplo, o SIL informou ao órgão que “a situação do contato interétnico éextremamente grave na área do rio Tapaua”, um afluente do rio Purus, regiãohabitadaporíndiosapurinã,katukina,yamamadi,paumariedeni,dentreoutros.Os índios da região se viam presas do sistema de “barracão”, modalidade detrabalho escravo emqueos contratatos sempre ficamdevendo aospatrõesporalimentação, abrigo e roupas. “Há uma quase total falta de autoridade nessasregiões […].Autoridades ou funcionários tanto do SPI quanto da Funai nunca

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visitaramorioCunhuaparasabercomoestãoaquelesquevivemnaregião.”32Aumgrupode trabalhomontadopelaFunaiparaaveriguaroconvêniodo

SIL,adireçãodestenãoescondeuointeressemaiordesuaatividadenoBrasil.Segundo o instituto, 30% das publicações usadas nos seus programaseducacionais nas aldeias indígenas brasileiras eram “religiosas” e 70% “nãoreligiosas”. Os livros ensinados aos índios incluíam umGênesis abreviado ,HistóriasdoVelhoTestamento,oNovoTestamentoeLivrosdecantos.33

Nos anos 1970, dois dos mais ativos missionários do SIL no Brasil eram oholandêsWillem Bontkes, nascido em 1933, e suamulher, a norte-americanaCarolyn Bontkes, nascida em 1940. 34O casal começou a atuar na área dosSuruíPaiter em julhode1970.Emagosto,Willemcaiudoentedemaláriaeocasaltevequesairdaregiãocomapoiodeumtáxi-aéreo.Duranteumano,entreoutubro de 1970 e outubro de 1971, o casal ficou fora do Brasil, lecionandofonéticaelinguísticaemumaescoladeDakotadoNortevinculadaaoSIL.Nesseinterregno, ocorreu uma grande epidemia entre os Suruí, de acordo com osregistros entregues pelo casal Bontkes à Funai e guardados nos arquivos doórgão indigenista em Brasília por mais de quarenta anos. Os missionáriosinformaram,porémsemcitarafonte,que“váriascentenas”deSuruímorreramentre julho e setembro de 1971.De volta à área suruí, o casal testemunhou amorte de outros 65 índios de abril de 1972 a 15 de novembro de 1974 —portanto,maisdetrêsvezesonúmeroparcialtestemunhadoporJeanChiappino.

OsregistrosdocasalBontkesrevelamaausênciadeinfraestruturadaFunai,como aviões ou helicópteros, para reduzir ou debelar as epidemias entre osSuruí.OúnicoaviãoàdisposiçãoeraodopróprioSIL,usadoemoutraspartesdopaís.Ocasaltinhaquecaminharporatésetediasnamataparachegaraumaaldeiaemedicaros índios.Noúltimo trimestrede1972,por exemplo,ocasalanotou: “Muita doença entre os índios. Pelomenos dezSuruímorreramnesseperíodo.Bill foicaçarcomos índiosváriasvezes.Escassezdecomidaparaosíndiosdoposto”.35

Emmaiode1974,ocasalBontkesfoiprocuradopelodelegadodaFunainaregião,queentregouaosseuscuidados,doente,umaindiazinhadecatorzemeses

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deidadechamadaYaricujopaihaviamorridonodia6defevereiroeamãe,nodia2deabril.Doisanosdepois,ocasaldeuinícioaoprocessodeadoçãodeYarinocartórioderegistrocivil.

Para complicar o cenário, os Suruí também viviam em escaramuças comuma tribo chamada pelos Bontkes de “cabeças secas”. Em 1974, três índiosforammortospelosinimigosaapenastrêshorasdecaminhadadoposto.

Chiappinodisse ter testemunhadovintemortes.OcasalBontkes,primeiro“váriascentenas”edepois,65.Emsetembrode1980,outroestudosobreocasoapontou pelo menos duzentas mortes entre 1971 e 1973 de “sarampo, gripe,tuberculose”, o que teria correspondido a “um terço do grupo” de seiscentaspessoasaprincípiocontatadasduranteaditadura.36

ApalavraqueChiappinodissequedeveriaserpronunciadasemhesitação,“genocídio”, era a última que osmilitares queriam ouvir. Após o relatório dacomissão Jáder, o governo foi alvo de diversas reportagens no exterior quequestionavam a capacidade da Funai e denunciavam o extermínio de aldeiasinteiras.Amaioria dos artigos confundia uma data, sugerindo que omassacredosíndioscinta-larganoParaleloOnze,quehaviaocorridoem1963,fosseobradaditadura.Mas,naessência,asmatériasexpressavamasprincipaisconclusõesdochamado“RelatórioFigueiredo”.

Emresposta,aditaduraagiuparaobterumachancela internacionaldequetratavabemosíndiosbrasileiros.QuandoaCruzVermelhaInternacional(CV)seofereceu para fazer uma expedição para aferir a saúde dos índios no país, aditadura prontamente aceitou. A CV veio com uma equipe de apenas trêsmédicos, para uma viagem de maio a julho de 1970 que passou por postosindígenas na ilha doBananal, nos territórios federais deRondônia eAmapá enosestadosdeMatoGrosso,ParáeAmazonas.Otrabalhofoibastanterestrito,sem Sudeste e Sul: conheceram vinte tribos em cerca de trinta aldeias, o querepresentava somente “quase um terço da população indígena da regiãoamazônicabrasileira”.37

O roteiro foi acertado previamente com a Funai, que discutiu os detalhescoma seçãobrasileiradaCV .38Um representante daFunai, um antropólogoindicadopeloórgãoeumjornalistadoMinistériodo Interioracompanharama

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equipedaCV.AlogísticaficouacargodaFAB,deorgãoseconômicosregionaisedoExército,queforneceramaviões,lanchasehospedagem.ACVpagariapordiáriasealimentaçãoemhotéis,ondefossepossível.

O relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha foi divulgado emGenebra em outubro de 1970. 39Das setenta páginas do relatório, a ditadurapinçouedeugrandedestaqueadoispontos.Primeiro,orelatóriodissequeaCVteve “completa liberdade demovimentos”. Depois, afirmou que “ao longo detoda amissão, emnenhum lugar foi vistaqualquer evidênciademassacresouqualquer sinal de maus-tratos físicos a tribos ou indivíduos indígenas”. Orelatório fez recomendações bastante questionáveis do ponto de vistaantropológicoedodireitodosíndios,ehojecompletamentesuperadas.Sugeriu,por exemplo, a transferência dos índios para áreas de “menor interesseeconômico”, reservas onde a “aculturação poderia ocorrer sob condiçõescontroladas”.

Orelatóriocompleto,porém,estálongedeserumatestadodebonsserviçosdaditadura.Amissãoencontrouepidemiasdemalária,conjuntiviteetuberculoseemdiversosgrupos.NopostodePirigara,emMatoGrosso,constatou-sequeaFunai“nãomaisassiste”umgrupobororo,quesofriade“anemiasevera”.Sobreumgruponambikwara,deSerraAzul,aCVapontouquea“mortalidadeinfantilaparentemente é muito alta”. Em Capitão Pedro, os Nambikwara viviam “emsituaçãorealmentedesesperadoraesenenhumaassistênciaforprovidenciadanofuturopróximo,avilaprovavelmentevaimorrercompletamente”.NopostodosPacaá-Novo, sete índios haviam morrido e outros vinte foram infectados nasúltimas três semanas em uma epidemia de sarampo. No Parque Nacional deTumucumaque, onde viviam cerca de 220 índios tirió, a CV encontrou umaepidemiadegripe,“quejáhaviacausadoamortedetrêspessoas”,setecasosdebroncopneumoniaetuberculoseativa.NoPará,nopostodosGaviãodaaldeiadeMãeMaria,parecianãohaveralimentoalgumparaos índios, comexceçãodefarinhademandioca.

Aofinaldostrabalhos,aCVsugeriuuma“rápidaação”comacriaçãodeumprogramadesaúdeapartirdeumconvêniocomaFunai.Porém,asduaspartespassaram mais de dois anos apenas na fase de estudo das bases do acordo.

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Quando foi assinado, no início de 1974, anunciou-se que o programa atuariasomente na região dos rios Juruá e Purus, onde viviam entre 5 mil e 10 milíndios— ou seja, de 5% a 10% da população total no país. Os recursos doprogramaerampífios,sendoestimadosem1milhãodedólares,levantadospormeiodedoaçõesdegovernosecidadãoseuropeus.

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6.FARDADOS

ALÉM DO MASSACRE DA EXPEDIÇÃO CALLERI, A GESTÃO DOPRIMEIRO presidente da Funai foi marcada por outra polêmica. QueirósCampos pôs em prática uma controversa Guarda Rural Indígena, a Grin. Emseguida, abriu espaço para a abertura de um “reformatório” indígena, umeufemismo para prisão, denominada Krenak, em Resplendor (MG ). Essasmedidas foram um reflexo do episódio da rebelião dos Maxacali de MinasGerais,queem1966,comovimos,atacarampropriedades rurais.OcapitãodaPolíciaMilitarManuel dos Santos Pinheiro, chefe da Grin, era omesmo quehaviasidoenviadopelaFunaiparaconterosdistúrbiospromovidosporíndios,movidospelafomeepeloabandono,segundoasconclusõesdoprópriopolicial.Anosdepois,eleadmitiuarelaçãoentrearebeliãoeaGrin:

FuieuquemcriouaGrineidealizouKrenak.[…]Trateilogodeprenderosíndios que lideravam o movimento [maxacali] e fui pouco a poucorestabelecendo a paz no local. Meu trabalho foi considerado excelente eassimfuiconvidadopelapresidênciadaFunaiparatrabalharcomosíndiosdeMinasGerais.1

AGrineraumambiciosoprojetodeQueirósCampos.Elepretendiareunir“maisde3milíndios”comoobjetivode“defenderaldeamentoscontraabusoseimpedir que os silvícolas também pratiquem desmandos”. Ou seja, era umaoperação de contenção dos índios, tanto nos problemas internos quanto nosataques a “civilizados”. Em público, o capitão Pinheiro também afirmava queumadasfunçõesdaGrinerapermitiraosíndios“sedefenderemdosataquesdosmauscivilizados”queinvadiamterritóriosindígenas.2

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OsíndiosdaGrinforamtreinadosnoBatalhãoEscoladaPolíciaMilitardeBelo Horizonte. Os primeiros 57 alunos, índios kraô, xerente e maxacali,chegaramaolocalemnovembrode1969.RecebiamdaPolíciaMilitar“noçõesdeinstruçãomilitar,instruçãopolicialeinstruçãoespecializada,relacionadacomordem-unida,educaçãomoralecívica,equitação,ataqueedefesa,armamentoetiro”, dentre outros tópicos. Em suma, o índio era treinado a se tornar um“soldadobranco”,comodisseumareportagemdaépoca.3

No ano de 2012 surgiu a evidência de que, no treinamento, os índiostambém recebiam aulas de tortura física. Imagens feitas pelo documentaristaJesco von Puttkamer de 5 fevereiro de 1970 4 mostram dois índios da Grincarregando, durante uma parada militar, um índio pendurado em um pau dearara, tortura muito usada pela repressão para destruir a resistência física demilitantes da esquerda armada nas cidades. O desfile ocorreu na presença doentãoministro do Interior, JoséCostaCavalcanti, e deQueirósCampos, entreoutras autoridades. 5A solenidade marcou a formatura da primeira turma denoventa soldados daGrin. Elesmarcharam e fizeram o juramento à bandeira,com amão direita estendida.Vestiam fardas “com calças verdes, iguais às doExército,camisaamarelo-laranja,bonébicodepatoebotinaspretas”.6

Emjaneirode1970,umgrupodequatroíndiosdaGrinjáatuavanaregiãoda ilhadoBananal,naaldeiadosKarajá.Noprimeiro trimestredoano, foraminstaladosquatrogrupos—osprimeiroseúnicos,aliás:xerenteemTocantínia,kraô em Craolândia, karajá na ilha do Bananal e maxacali no vale doJequitinhonha.

Não demoraram, porém, a aparecer as primeiras denúncias de“espancamento, arbitrariedades e insubordinação” cometidos pela Grin. EmGoiás, um“caboclo residentenasproximidadesdoAraguaia” sedisse alvode“arbitrariedades”;emMinasGerais,“umvaqueirodaFunai[…]reagiuàprisãoe lutou contra os grins , ficando ferido juntamente com alguns membros daguarda”. 7 Mais tarde veio a informação de que o vaqueiro fora “preso,espancadoeterminouemumhospital”porquederaumafestadeaniversárionaqual um Karajá, convidado, acabou bebendo aguardente. Surgiu ainda adenúnciadeque“umvelhopescador”dailhadoBananalfoiobrigado“aandar

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cinco quilômetros até uma cadeia, sob bordoadas” depois que os guardasencontraramemsuacanoaumagarrafadeaguardente,paraconsumopróprio.8

NaterradosKraô,aexperiênciatambémfoiumdesastre.Porvoltade1967,os índios somavam cerca de seiscentos indivíduos. Desse total, 28 foramtransformadosemgrins.Apartirdaí,aproduçãodealimentos foi reduzidanaárea, pois os guardas, suas mulheres e familiares deixaram de se dedicar aatividades agrícolas, passando a viver dos salários da Grin. Para alimentar aguarda, aFunai instalouumacantinana área indígena, ondeos índiospodiamcomprar produtos industrializados. Isso também provocou a redução daproduçãoagrícolaeasatividadesdecaça.OutroproblemafoiqueaGrinpassoua controlar a saída dos índios para núcleos urbanos, tolhendo a liberdade detodosnaárea.Em1973,jásediscutiaadesativaçãodaguarda.9

Ao criar em 1969 a prisão Krenak, chamada eufemisticamente de“reformatório”, na área do posto indígena GuidoMarlière, às margens do rioDoce,nomunicípiodeResplendor (MG),QueirósCamposdisse tersebaseadonaresoluçãono5484,de1928,quepreviaorecolhimentodosíndios“acolôniascorrecionaisouestabelecimentosindustriaisdedisciplina”.AleideixavaacargodoEstadodeterminarquanto tempoo índiodeveria ficarpreso,desdequenãopassasse de cinco anos. Queirós Campos disse que o tempo de prisão seria onecessário para que o índio fosse “capaz de entender o alcance do ilícitopraticado”. “Essa segregação tribal, com vistas à recuperação, parece-me bemmaishumanadoqueaexecuçãocapitaloucertaspenasinfamantesquealgunsantropólogosjustificam.”100

Em1973,quandoassumiuachefiadaAjudânciadeMinasGeraiseBahia,oservidor da Funai João Geraldo Itatuitim Ruas calculou que pelo menos cemíndios haviam passado pela Krenak, dos quais “80% não tinham nenhumdocumento nem a causa” da punição. Documentos trazidos à tona em 2013confirmamaprisãode índiosacusadosdebebedeiraepelomenosumcasode“víciodepederastiaefurtos”.Emtelegrama,ocapitãoPinheirorecomendouqueesse índio fosse “isolado dos demais elementos”. Em outro episódio, o índioconhecido como João Bugre foi preso por ter ingerido bebida alcoólica.

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Localizado décadas depois pelo jornalista André Campos, Bugre disse queapenas “tomouumapinga”, o que lhe custou “quase umano, novemeses” naprisão.11

Assim como a Grin, a experiência da prisão Krenak não durou muito. Seusefeitos,contudo,permanecerampordécadasnamemóriadosseusprisioneiros.Ashistóriasqueelescontamnãorevelamapenasdramaspessoais,mastambémcomo uma política de Estado afetou o curso da história de grupos indígenasinteiros.

OsKrenakeramoutroraumdeváriosgruposindígenasquehabitavamumavasta região entre os estados de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo e quereceberam a denominação genérica de botocudos , devido ao botoque, umpedaçodemadeiraemformacircularqueusavamnoslábiosounasorelhas.Foicontraosbotocudos,guerreirosetemidos,queaCoroaportuguesadecretounoBrasil,pormeiodeumasériedecartasrégias,umapolíticadeguerra,cativeiroeescravizaçãonoiníciodoséculoXIX.12Essadeterminação levouàcriaçãodesetedivisõese33quartéismilitaresnaregiãodorioDoce,duasdivisõesedozequartéis em Jequitinhonha, duas divisões e quatro quartéis emMucuri, quatroquartéisemItanhémouJucurucu,quatroquartéisemPrado,quatroquartéisemSãoMateus e “outros 26 quartéis espalhados emoutros rios demenor porte”.Apósmuitaresistência,mortes,epidemiasederrotas,incluindoosequestropor“civilizados”decriançasindígenas,queeramdivididascomomercadoriasentrefamílias poderosas da região, os índios passaram a viver aldeados perto dasunidadesmilitares.NoiníciodoséculoXX,oSPIcrioualgunspostosindígenas,incluindo oEme, onde ficaram osKrenak.13Mais tarde o local foi batizadocomo posto indígena Guido Marlière, em homenagem a um militar francêsenviado para a região em 1819 para continuar a política de atração e“pacificação”dosbotocudos.14

O Krenak José Alfredo nasceu em 1945 no posto Marlière. Ele diz ainda selembrardaprimeira transferênciado seugrupodeterminadapelogoverno,porvoltade1958,paraoposto indígenaMaxacali, pertodacidadedeMachacalis

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(MG) , distante nada menos que 450 quilômetros por rodovia. Também foi aprimeiravezqueosKrenakviramocapitãoPinheiro.

Houve uma época que jogaram uma bomba na casa do chefe do posto, onomedeleeraAmérico,nãomataramporqueeleestavaemResplendor.Aíocapitão Pinheiro veio para cá com a [Polícia] Florestal, disse que iadescobrirquemera[autor],aí tirouos índiosdaquie levouparaMaxacali.Eu estava com doze anos. Botaram num carro e soltaram a gente lá emMaxacali.15

Omotivodabomba,segundoJoséAlfredo,foiarevoltadosíndioscontraosistemadoSPIdeseapropriardepartedaproduçãodeles,emcafé,milhoearroz.Eraafamosa“rendaindígena”tãodenunciadanaépocadoRelatórioFigueiredo.

Onovolareraestranhoehostil.SôniaKrenakdisse,anosdepois,quehaviauma“baratinha”quesemultiplicavanocapime“comiaagentefeitocão,feitosarna”.Vários índios não suportaram, comodeclarou a índia JuliaKrenak em1989:“Chegou,adoeceu.MorreuEugêniodeMariazinha.Queláéfrio.MorreuChica.OfilhodaChicamorreu.Morreuadulto.DoisfilhosdePedrim.Morreuamãe,morreuairmã”.16

OsKrenakserebelaramepartiramparasuasegundalongaviagem.ComooSPInãoquisajudá-los,foramapé.VinteaceitaramacaminhadadevoltaaopostoMarlière, que durou cerca de 95 dias, nas contas de JoséAlfredo,mas algunsficaram entre os Maxacali ou seguiram para outras regiões. Pelo menos umgrupofoiforçadopeloórgãoasedirigirparaointeriordeSãoPaulo,paravivercomosKainganguenopostoVanuíre.17

QuandochegaramaoMarlière,osKrenakdescobriramqueasterrasestavamtodasarrendadas.Passaramentãoatrabalhar“ameiaparaotomadordeconta”,segundo José Alfredo, ou seja, tornaram-se na prática arrendatários defazendeirosque,porsuavez,haviamarrendadoas terrasdoSPI .Anosdepois,Pinheiro anunciou a criação do “reformatório” Krenak. Para os índios que jáhabitavamolugar,amaiorsurpresafoiqueelestambémpassaramasertratadosconforme as regras impostas aos presos que vinham de outros estados. OsKrenaksetornaram,emamargaironia,prisioneirosemsuasprópriasterras.Para

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entrarousairdolocal,precisavamdeautorizaçãodaGrin.Amesmaregravaliaparaatravessiadorio,decanoa.Certodia,JoséAlfredodesrespeitouanormae,porisso,ficoudezessetediaspreso.Dediaerasoltoparatrabalharnaroça,sobavigilância dos guardas armados, mas à noite era trancafiado. Ele presenciouespancamentosepelomenosumatorturaporafogamento.

Uma vez fugiu um índio. Quando pegaram ele, botaram dentro da águaaté…Eleeraurubu,agentechamavadeVascuru.Euvi,foinocórrego.Elesbatiam pra caramba. Afogaram ele um bocado, bateram nele e depoislevaram.Nósnãosabíamosoqueeletinhafeito.18

Em 1972, os Krenak foram forçados pela Funai ao seu terceirodeslocamento.AgorairiamparaumlocalconhecidocomoFazendaGuarani,nomunicípiodeCarmésia,acercade350quilômetrospor rodovia.Tratava-sedeumapropriedadedaPolíciaMilitardeMinas.OcomandodaFunaidecidiupelatransferênciapara liberaraáreadosKrenakaos fazendeirosda região.Alegouqueestavafazendoumatrocadeterras.Emvezderetirarosfazendeiros,retirouosíndios.JoséAlfredoviuquandoseuamigoJoaquimGrande,aoserecusarafazeramudança,foialgemadoejogadonumcarro.OsKrenakforamexpulsospelasegundavez.Todososprisioneirostambémforamtransferidos.

Em Guarani, os Krenak descobriram que o local era habitado por váriospoliciaiseíndiosdeoutrasetnias.Partedelesnãoquisficaredecidiurumarparaoutrascidadesdaregião.SóseteanosdepoisosKrenakvoltariamemdefinitivopara a terra em Resplendor, também a contragosto da Funai. Um tio de JoséAlfredofoiparaailhadoBananal,umirmãoficouemColatina(ES)eoutroemConselheiroPena(MG).“Foiumgrandeatrasonavidadoíndio,[indo]paraláepara cá, acabou com a nossa saúde.Meu pai adoeceu emorreu. […]Morreudepois que voltaram de Maxacali. Foi atraso e desunião, porque disparou osíndiosparatodocanto.”

Anosdepois,emumareuniãodeservidoresdaFunai,o indigenistaRafaelJoséMenezesBastosfezumbalançodesalentadordasituação.

Os índios krenak já são praticamente extintos, estão reduzidos a dez ou

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quinzepessoas.[Bastos]faloutambémquenoiníciodoséculoexistiam10mil índios e agora dez ou quinze índios. Falou também do problema dosbotocudos, que o problema deles também é a terra, falta de terra, faloutambémdegenocídioecitoucomoexemploosjudeusealemães,porqueosalemãesmatavamosjudeussimplesmenteporseremjudeus,eopovoestámatandoosbotocudossimplesmenteporserembotocudos.19

***

AsprisõesdeMinasGerais impactaramoutrosgrupos, jáque índiosdeváriaspartes do país eram transferidos pela Grin. Um deles era um Pankararu dePernambuco. No início dos anos 1970, segundo Cleonice Pankararu, seu avôAntônioparticipoudeumlevanteindígenacontraproprietáriosruraisnaregiãodeBrejodosPadreseporissoacaboupresopelaguarda.AntônioprimeiroficounaprisãoKrenakedepoisseguiuparaaFazendaGuarani.Oseventosmexeramcomtodaa família.“Minhamãenãoquis ficarmaisnaaldeia, [disse] ‘euvouatrás do meu pai’. Nessas andanças, fomos parar em Brasília, e o pessoalrecomendouqueelanãofosse[paraResplendor],estavacomváriosmeninos,egrávida.”20

OfilhodeAntôniofoicontratadopelaFunai.AfamíliaviveuemdiferentesáreasindígenasatéquereuniucondiçõesparairparaaFazendaGuarani.Depoisqueasduasprisõesforamdesativadas,Antôniofoisolto.QuandotentouvoltarparaPernambuco, no entanto, “o lugar não eramaisdele.Erada família,maspessoasjáestavamtomandocontadolugar.Nóstambémnãovoltamosmais,jánãotinhamaisespaço”.

Antônio, que fora preso ao brigar por terras para os Pankararu emPernambuco, morreu e foi sepultado na terra dos Krenak. Outros índios daBahia, da etnia pataxó, chegaram à área da PM em Carmésia, que logo ficoupequenaparatodomundo.

De oito famílias, passou para quinze, trinta, quarenta, foram casando eformandofamílias,quandochegouummomento,nãotinhamaislugarparaopessoal. […]Houveosuicídiodeduas liderançaspataxó,eramparentes

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ligados a nós. O pai de Baiara, que hoje tem outra aldeia, sogro demeuirmão, se suicidou.Acho que foi essa questão de não ter alternativa.Nósfizemos várias tentativas, e todas as vezes não dava certo. Acho que eleficouagoniado.

DocumentosguardadosnosarquivosdaFunaiconfirmamqueasprisõesKrenakeGuaranitambémforamusadasparaprenderíndiosquereivindicavampossedeterraseincomodavamaditaduraouosfazendeiros.

ApresençadosPataxóHã-Hã-Hãeno sul daBahia édocumentadadesde,pelomenos,1610.Apósum longoperíododeextermíniodos índiosduranteoavançodasfrentesdeexpansão,em1926ogovernadorbaianoFranciscodeGóisCalmonaldeouosHã-Hã-Hãe,comremanescentesdaetniabaenã,numaáreade50milhectares.Dezanosdepois,elafoireduzidapara36milhectares,apósogovernador Juracy Magalhães autorizar o desmantelamento de uma suposta“célula comunista” liderada pelo chefe do posto indígena do SPI TelésforoMartinsFontes,comoreflexodacaçaàsbruxasposterioràrevoltacomunistade1935. Uma expedição formada por policiais e jagunços de fazendas vizinhasatacouareservaindígena,provocando“grandenúmerodemortosentreosíndioseosnacionais”.21Anosmaistarde,TelésforocontouaumcolegadaFunaiqueconseguiuescapardoataqueedenunciou,emvão,a“manobradosfazendeirosparaafastá-lodaregião”.AsarmasencontradasempossedosíndioslheshaviamsidodadaspelodelegadoregionaldapolíciadaBahiaparaquedefendessemaintegridade do território. Mas o mesmo delegado denunciou Telésforo aogoverno,alegandoqueasarmaseramusadasparaumarevoluçãocomunista.22

Osfazendeiroscontavamoutrahistória.Paraeles,“nuncahouve índio”naregiãoaté1930,poisoclimaera“inóspito,commuitachuvaegrandevariedadededoenças”.Telésforoéqueteriatrazidodeoutrasregiõesíndios“capturadosnamata,ànoite”eobrigadosa“vestiremummacacãoparanãofugirem”.Sobre“oplano de cunho comunista”, para os fazendeiros não havia dúvida de suaexistência,poisTelésforoeosíndioschegaramarenderumapatrulhadapolícia,oqueprecedeuoataqueaoposto.23AFunainuncaaceitouessadescriçãodosfatos, ao frisar que a origem do conflito foi uma decisão de Telésforo de

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apreender instrumentos usados por “engenheiros e posseiros invasores” quefaziammediçõesem terras indígenassemconsentimentodoSPI .Depois dessaapreensãoéquehouveaprisão,amandodeTelésforo,dapatrulhapolicial,oqueresultou no ataque ao posto. A Funai apontou que todo o episódio era umadisputaporterras,semrelaçãocomcomunismo.24

ApósaquedadeTelésforo,duranteanovademarcaçãodareserva,em1936,oSPIcriouumsegundoposto,denominadoParaguassu.Comopassardotempo,apressãode fazendeirosvizinhos intensificou-se sobreos índios,muitasvezes“ludibriados” em relação ao direito que tinham às terras. Houve “ameaças àsegurança, muitas vezes concretizadas em assassinatos, incêndio de casas,destruiçãodaspropriedadesebens,invasãodasroçasporjagunços”.OspostosdaFunaiacabaramdesativados,“entregandoosíndiosàprópriasorte”.25

Opontoculminantedoataqueàsterrasdosíndiosdeu-senadécadade1950,quandonadamenosqueaprópriasededopostoParaguassu—marcodominantedaterraindígena—foiapropriadapelo“coronelLiberatodeCarvalho,[…]quea transfereparaoutroarrendatário”.Em1957,umPataxóéassassinadoesuas“terras são tomadas por não índios”. O outro posto, Caramuru, foi tambémarrendado,em1958,emborahouvesse32índiosnasproximidades.Onúmerodearrendatáriosatingiu780namesmaépoca.26Emdadomomento,as terrasdeCaramuru passaram a ser arrendadas pelo “influente deputado estadual e ricopecuaristadaregião,dr.AzizMaron”.

Na ditadura, a Funai começou um cínico processo de redução, em seuscontroles internos, do número de índios na região. A cada corte, a entidadeenviavamenosrecursosàajudânciadaregiãoemenosgênerosalimentíciosaosíndios.Poroutrolado,menosíndioscontribuíamparaa“rendaindígena”,oquelogolevariaàfalênciaeconômicadopostoindígena.

OentãoresponsávelpelaFunainaregiãoeraocapitãoPinheiro,omesmoqueparticiparadacriaçãodaGrin.Apósumavisitadeleàregião,emjaneirode1968, o número de índios foi “arbitrariamente reduzido de trinta para dez,ficando, portanto, vinte totalmente abandonados à própria sorte”. A medidaforçouapartidadeíndiosparaoutraspartesdaBahiaelevouàprostituiçãopelomenosquatroíndias.Emagostodomesmoano,aajudânciareduziuonúmerode

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índios para cinco.No final do ano, um coronel do SPIchegou a sugerir que oórgãodevolvessedeumavez as terras ao estadodaBahia, o que implicaria apassagemautomáticadetodososarrendamentosparaasmãosdos“civilizados”.EmBrasília, o SPI impediu amanobra. Em1969, por fim, a Funai demitiu osúltimos dois trabalhadores do órgão que ainda cuidavam de uma horta nascercaniasdoposto.O longoprocessode tomadados36milhectaresde terrasindígenasforaconcretizadoapóstrintaanosdeomissãodoEstado.27

Em1976, a situaçãochegouaumponto emqueaFunai seviu forçada a“verificar‘inloco’aexistênciaounãodeíndiosnaregião”.Foramencontrados“311 indivíduos e mais a indicação de 162 chefes de família, parentespróximos”.28

OPataxóSamadoviviacomafamílianaáreadopostoindígenaCaramuru,nosuldaBahia,emconstanteatritocomfazendeirosdaregião.Elechegouàregiãona década de 1920, conduzido ao posto Paraguassu 29 pelo lendário etnólogoCurt Unckel ou Unkel (1883-1945), nascido na Alemanha e naturalizadobrasileirocomoCurtNimuendajú,nomedadopelosGuarani,quesignificaalgocomo“arranjarparasiumlugar”.Nimuendajú,queviveumaisdequarentaanosentreosíndiosdeinúmerasetniasnoBrasil,eraumdefensorveementedelesefaziadenúnciaspúblicascontraguerrasdeextermíniolançadaspor“civilizados”.30Os textos queCurt deixou são vibrantes emuitas vezes ricos em detalhes,lembrandograndesreportagensjornalísticas.

Em1947,asterrasdeSamadoforaminvadidas,oqueoobrigouadeixarolocal, junto com sua família. Ele se instalou em outro ponto da área, mas osproblemas continuaram. 31 No final da década de 1950, o Ministério daAgriculturadeterminouaoSPI ,porofício,uma“urgente reintegraçãodeposseaoíndioSamadonasterrasdesuapropriedadeequeseachamocupadas”porum“civilizado”.32Emnovembrode1967,Samadoe seu filhoDiógenesFerreiradosSantosprocuraramoDepartamentodeAssistênciadaFunaipara informarque continuavam sendo “ameaçados e pressionados por invasores das suasterras”. 33 Dois anos depois, Samado e o filho voltaram a procurar odepartamento,comamesmaqueixa.34

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Emalgummomento,ocapitãoPinheirovoltou-secontraoPataxó.AFunaireconheceu em documento interno que, após “outras expulsões de pequenasglebas”,houve“aprisãopelasuapersistênciaempermanecernaárea”.35OutrodocumentooficialdaFunaiémaisdireto:

Em1969,SamadofoipresonoCrenak[Krenak]devidosuapersistênciaemlutarparapermanecernaregiãodo“Toucinho”.Após libertado,foi jogadopara uma gleba de 16,6 hectares conhecida por “Panelão”. Ainda sofreuséria oposição ao direito de permanecer na área, já que a terra teria sidonegociadaarbitráriaeilegalmente.36

Como reflexo de uma “política de arrendamento” estatal, em meados dadécada de 1970 toda a área já havia sido fracionada em “aproximadamentesetecentas glebas nas mãos de quatrocentos arrendatários”, com os quaisestavam “trezentos remanescentes indígenas trabalhando em péssimascondições”. 37 Esses arrendamentos haviam sido autorizados pelo postoindígena do SPI , mas com o Estatuto do Índio, de 1973, todos se tornaramilegais,conformeapresidênciadaFunaireconheceuporofícioàPolíciaFederal.38

Mesmodepoisdeser libertadodeKrenak,Samadocontinuousemoapoioda Funai.Quando o delegado regional do órgão foi visitá-lo, afirmou que ele“temfeitopermutasdesuasterrasecomasquaistemsidoinfeliz”.Odelegadoreclamouque só aFunai poderia permitir aSamado “fazer negociatas de suasterras”.39Emalgumascomunicações,a11aDelegaciausouo termo“supostoíndio” em referência a Samado, o que gerou uma pronta reação da chefe daFunaiemBrasília,LaiaMattareRodrigues,quepediuumadefiniçãodoórgão:“Quemdedireito,nocasoopróprioDGO[DepartamentoGeraldeOperações]ouoDGPC [DepartamentoGeral de PlanejamentoComunitário], tire as aspas e opseudoedigaqueméSamadodosSantosperantealeideamparoaoíndio”.

Essas dúvidas levaram a antropóloga Maria Hilda Baqueiro Paraíso aconfirmaràFunaiqueSamadoeradefatodescendentedeíndiosqueviveramnoRecôncavo Baiano até 1834 e sofreram “feroz perseguição dos ‘nacionais’”,terminandoporserexpulsosdas terras.Elacontou terestudadocomatençãoo

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caso de Samado, devido às insistentes denúncias que fazia, e concluiu que naverdade ele foi “até bastante comedido na narração dos seusmales”, pois nãoteriareferido“constantesagressõesquevinhasofrendoporpartedefamiliares”da fazendeira vizinha, plantadora de cacau. Uma das filhas dele havia sido“atropelada propositalmente por um cavalo montado por um dos filhos destasenhora”.As ameaças ocorriam para “forçar a saída de Samado a fim de queessasterraspossamserincorporadasdefinitivamenteàgrandefazendadecacau”etambémparaminara“sualiderançasobreosdemaisremanescentes”.

Maria Hilda também confirmou que a prisão de Samado em Krenak foideterminadaporfuncionáriosdoórgãoindigenistaequeelesófoisoltograças“à interferência” do ex-diretor do SPI JoséMaria daGamaMalcher “junto aodelegadoregionaldeentão,ocapitãoPinheiro”.40

Em uma declaração protocolada no Departamento Geral de PatrimônioIndígena(DGPI)daFunaiem1972,Samadodescreveuoataqueàsuafilha,queteria “deslocado a junta” damão de Elita. No papel, ele não faz referência àprisão de Krenak, o que indica que pode ter sido preso depois de 1972. Noentanto,eledescreveumasegundaprisão.DissequeestavatrabalhandoemumaterracompermissãodaFunai,mascertodiafoiabordadoportrêspoliciais,quelhederamvozdeprisão,dizendo serumaordemdocapitãoPinheiro.O índiorelatouquefoiacusadodeser“criminoso,ladrão,desordeiroeintrigadoatécomapolíciade todooestado”equeficou“dozediaspresonadelegaciadeSantaRosa”.Aosair,recebeuordemdePinheiroparaocuparumasegundaárea,massurgiramnovaspressões.Samadoimplorouporumasolução:“Oqueeuqueroéuma área para morar com minha família e plantar minhas roças e ter meusanimais,paraqueeupossaviverempaz”.41

Foi um longo processo até que os Pataxó Hã-Hã-Hãe tivessem algumasvitórias na longa luta pela demarcação de suas terras. Anos depois, Samadodeclarouempúblico:“Eumesmotenhotrintaanosdeluta,tenhoroçasperdidastomadaspelosbandidos.[…]Desde1947euvenhosofrendo”.42

AsinvestigaçõesdaantropólogaMariaHildanaBahiaem1976revelaramoutraprisãode indígenaordenadapelaFunai.Dessavez,porém,o índionuncamais

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foi visto após ter sido levado para o “reformatório” emMinasGerais. Ele sechamavaDedéeeraumdosfilhosda“uniãointertribaldopataxóItáticocomabaenã Rosalina”, sendo irmão de Milton, Tiarramin e José Bute. “DedédesapareceudurantesuaprisãonoCrenak[Krenak]”,escreveuMariaHildaemrelatórioenviadoàFunaiemBrasília.43

Naregião,entreíndiose“civilizados”,asuspeitaeraqueDedé“haviasidomortonaprisão,jáquetinhaumgêniomuitoviolentoenãoaceitavaasituaçãoem que viviam então os índios dentro das terras que lhes deveriam ter sidogarantidaspeloSPI”.

MariaHildadisseterouvidodochefedaFunainaregião,JoséBrasileirodaSilva, que Dedé , “quando não estava embriagado, caracterizava-se pelomutismo,esquivançae tristeza”.Diasantesdesuaprisão,o índiopassarauma“descompostura” no capitão Pinheiro, durante uma viagem que o PM fez àregião.

AcadeiadaterrakrenaknãoresistiuaumaenchentedorioDoce,ocorridaem1979, e hoje restam apenas escombros do teto e das paredes. Mas a celadesativadadaFazendaGuarani,emCarmésia,quevisiteiemdezembrode2013,resistiu ao tempo.Era umcubículo de cerca de quatrometros quadrados, sembanheiro, nos fundos de um sobrado que funcionava como sede do posto daFunai.Noprimeiroandar,oscômodoscomseteamplasjanelasquedãoparaaruaprincipaldaantigavilamilitareramamoradiadosfuncionáriosdaFunai.Notérreo funcionava o escritório do posto, que se comunicava por rádio com aajudância em Teófilo Otoni. Em frente ao prédio há um pequeno pátio dealvenariaeumpúlpitocomsetedegrausemque,segundoosíndios,naépocadaditadura era hasteada a Bandeira Nacional quase todo dia, ao som do HinoNacional. Com a saída dosmilitares, os degraus foram pintados commotivosindígenas. O mastro de metal também permanece, meio torto. Mas os índiosnuncamaishastearamabandeira.44

A derrocada da Grin ainda não havia ocorrido quando começou a primeiratransição da presidência daFunai.QueirósCampos durou poucomais de dois

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anos no cargo, sendo substituído durante um período de turbulências tanto noMinistério do Interior quanto na Presidência da República. O ministroAlbuquerqueLima,queohavianomeado,foisubstituídoemjaneirode1969porJosé Costa Cavalcanti. Em agosto do mesmo ano, Costa e Silva deixou apresidência, que passou a ser ocupada em outubro pelo general GarrastazuMédici.

Poucoantesde sair, emumbalançode suagestão,QueirósCamposdisseque a prisão Krenak só abrigava índios “aldeados, mesmo aculturados” e“quandodelinquentes”,comvistasase tornarem“tratoristas,vaqueiros,peões,horticultores e lavradores”. Segundo ele, o lugar abrigava “dois Carajáassassinos, umFulni-ô preso sete vezes por tráfico demaconha naGuanabara[…], três Caiuás homicidas e alguns Maxacali e Krenak, que promoveramdistúrbiosemsuasaldeias”.45

ParaQueirósCampos, “umdosmaisgravesproblemasdaFunai”eramas“andançascontínuasdeíndiostribalizados[…]aculturados”.Elessedirigiamàscidades, segundo ele, por diversos motivos, dentre os quais “a vocação paramendicância” e “reclamação às autoridades, com entrevistas a jornais eexibições na televisão”. Por isso, a Funai decidiu criar “casas do índio” emalgumas capitais. No mesmo balanço, Queirós Campos admitiu apenas vintemortosdeumtotalde2milíndiosatingidosporcinco“epidemiasdesarampo,gripes e varíola”. Ele não explicou o contexto nem citou as etnias em que asmortesocorreram.

QueirósCamposvoltou a ressaltar que aFunai, passados três anosde suacriação,continuava“semrecursos”paracontrataretnólogos,dispunhadeapenastrêsantropólogosenenhumlinguista.Oórgãocontinuavacom“poucosrecursosparaotrabalho”.Em1968,gastou4,833milhõesdecruzeirosnovos,dosquais2,7milhões em pessoal, contra 8,2 milhões no ano seguinte (4,5milhões empessoal).

***

A gota d’água para a saída de Queirós Campos da Funai foi mais banal. Elehavianomeadoparaocargodeassistenteespecialdapresidênciadoórgãosua

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própria irmã, a jornalistaCecília, servidora da prefeitura doDistrito Federal àdisposiçãodogabinetedoprimeiro-secretáriodaCâmaradosDeputados.46ElafoiinstruídaaadministraracantinadeumentrepostocomercialcontroladopelaFunainailhadoBananal,queatendiaíndios,funcionáriosdoórgãoepessoaldaFAB,“compoderesparaadquirirasmercadoriasquesefizeremnecessárias”.47Cecília também organizava viagens do presidente, em especial eventos parapromover, juntoà imprensa,aGrineseusíndiossoldados.Umadenúncia,queQueirósCamposatribuiuao“entãodiretordoDepartamentodeAssistênciadaFunai”,48surgiunaimprensasobre,entreoutrospontos,ousoderecursosforadafinalidadeprevista.Emsuadefesa,Cecíliadissequeasdespesasquestionadas“foram efetuadas com o transporte de índios, jornalistas e convidados para osestadosdeMaranhão,PernambucoeGoiás,sempreacompanhandoosíndiosdaGrinquenaqueleslugaresforamseapresentar”.49Acrescentouestarmagoadacomascobranças,poisaFunainão reconheciaquesuacasaeado irmão,emBrasília,haviamsetransformado“emverdadeirashospedarias”defuncionárioseíndiosemtrânsito,semqueainstituiçãoosremunerasse.Apósumaapuraçãoque ouviu 25 servidores, o Ministério do Interior concluiu pela inocência deCecíliaedeQueirósCamposeordenouoarquivamentodoprocesso.Eladeixouocargo,apedido,emjunhode1970.QueirósCampossaiudaFunainamesmaépoca.

Como última consequência de uma série de mudanças no governo, apresidênciadaFunaifoientãoassumidapelogeneraldedivisãoOscarJerônimoBandeira deMello, em junho de 1970. Ele foi o primeiromilitar a presidir aentidade.

Nascidoem1910noRiodeJaneiro,BandeiradeMellograduou-seem1933naEscolaMilitarnoRio,foiinstrutordaEscoladeComandoeEstado-MaiordoExércitoechefedoEstado-Maiorda1aRegiãoMilitar.Antesdogolpede1964,elenãotinhanenhumaligaçãocomaquestãoindígena.Sóem1969foitrabalharno Ministério do Interior, na função estratégica de diretor da Divisão deSegurança e Informação (DSI ). Também havia sido chefe da DSI de Minas eEnergia.AsDSIseram,nosministérios,osbraçosdoSNI,órgãocriadoedirigidologoapósogolpepelogeneralGolberydoCoutoeSilva.LigadasàsDSIshavia

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as Assessorias de Segurança e Informação (ASI s), a ponta do esquema deespionagemmontadopeladitadura.AsinformaçõesproduzidaspelasASIseramanalisadaspelasDSIseseguiamparaoSNI.Atéofimdaditadura,essepolvo,quecontavacomumaASIempelomenos248órgãosfederais,deministériosaautarquias, de estatais a universidades, iria produzir 308 mil prontuários depessoaseinstituições,segundodadosde2008.

A criação de uma ASI na Funai, aliás, foi uma das primeiras medidastomadasporBandeiradeMelloàfrentedoórgão.Asmissõesdaassessoriaeramvariadas: acompanhar o noticiário da imprensa, emitir certificados acerca dopassado de candidatos a cargos, acompanhar seminários sobre indigenismo,investigar possíveis desvios de conduta ou de recursos na Funai e denunciar“infiltrações”comunistasnosquadrosdoórgãoenasaldeias.

Bandeira de Mello também tinha muita afinidade com empresas demineração.Em1966,havia sidoassessor técnicodoSindicatodeMineradorasdoEstadodoRiodeJaneiro.DepoisquedeixouaFunai,em1974,elesetornoudiretorvice-presidentedaEmpresadeMineraçãoBadinLtda.,diretor-presidenteda Cia. Mineradora Piracema S.A. e diretor-presidente da Sociedade deMineraçãoApoloS.A.50

NoDiadaIndependênciade1969,ogovernodivulgouumtextodogeneralDaleCoutinho,comandanteda2aRegiãoMilitar,sediadaemSãoPaulo,quetratavada“integraçãodaAmazôniaedoOeste”.Ogenerallembrouqueosesforçosdeabrir longas rodovias amazônicas, iniciados na década de 1950 durante ogovernodeGetúlioVargas,haviamsidoretomadosem1965,umanodepoisdogolpe.OExércitocriaradoisBatalhõesdeEngenhariaeConstrução,o5oe6o ,emPortoVelhoeBoaVista.Masnãohánolongotexto,queocupoutrêspáginasnaFolhadeS.Paulo , uma únicamenção a indígenas e o que seria feito comeles.51A fala deDaleCoutinho, porém, antecipou em um ano um tema quetomariacontadogoverno.Sobocomandodeumgeneral ligadoàespionageminterna e àmineração, aFunai estaria àsvoltas comomais ambiciosoprojetodosmilitaresnaAmazônia.Bemnomeiodele,osíndios.

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7.COVEIRO

EM JUNHO DE 1970, NOS MESMOS DIAS EM QUE A SELEÇÃOBRASILEIRAvenceunoMéxicoasua terceiraCopadoMundo,o flagelodaseca atingiu 1 milhão de moradores do Nordeste, conforme um ministro dogoverno calculou para a imprensa na época. O desastre humanitário obrigouMédici e seus ministros da Fazenda, da Agricultura, do Planejamento, dosTransportesedoInterioravisitaremaregião.NumaparadaemRecife,paraumareunião do conselho deliberativo da Superintendência deDesenvolvimento doNordeste (Sudene),àqualcompareceramgovernadores,políticosemilitares,opresidente fez um discurso contundente e emocionado. Longos trechos de suafala foram reproduzidos pelos jornais no dia seguinte. Médici afirmou teratravessado, em sua viagem, regiões com “plantações perdidas” e “lugarejosmortos”, nos quais homens comiam apenas “feijão e farinha”. No caminho,“criançasdesassistidas”.“Nada,em todaaminhavida,mechocouassimemefezemocionaredesafiarminhavontade.”

Médici anunciou que apoiaria a agricultura do Nordeste e fomentaria “acolonização em zonas úmidas do Nordeste, doMaranhão, do sul do Pará, noPlanalto Central”. Poucos dias depois, a imprensa estampou a notícia de que5200homense520milhõesdecruzeirosseriamempenhadosde imediatoparaaquiloqueaFolhadeS.Paulochamouemmanchetedaediçãode“ocupaçãodaAmazônia”. O Estado de S. Paulo também comemorou: “Transamazônicapovoará a selva”. Para abrir os primeiros 3 mil quilômetros de estradas, asempreiteirasforamdivididasemloteseseriambeneficiadascomumsistemaderenúncia do Imposto de Renda. A mão de obra viria dos flagelados da secanordestina. Coube ao ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, anunciar a

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decisão sobre a obra aos empreiteiros, em um encontro em Brasília ocorridoapenasdezdiasdepoisdodiscursodeMédicinoRecife.1

A Transamazônica teria nascido, assim, do gesto emotivo de um ditador.Porém, essa versão da história não é amais precisa—como tantas outras daditadura, ela se complica quando examinada de perto. A fome dos flageladospode até ter comovido Médici, mas havia muito tempo o governo militarplanejava uma “estrada de penetração” na Amazônia, que rasgaria a selva doNordeste ao Acre. À luz de tudo o que haveria de ocorrer com os gruposindígenas que habitavam regiões ao longo do traçado da rodovia, convémressaltarqueoregimetevetempodesobraparaseprepararparaasobras.

Jáem1967ogovernohaviacriadoum“GrupodeTrabalhoparaIntegraçãodaAmazônia”,formadopelosprincipaisministérios,alémdoCSNedoEstado-MaiordasForçasArmadas.2Odecretoquecriouogrupopropugnavaa“efetivaocupaçãodosespaçosvaziospelacolonizaçãoepovoamentoorientado”.

Notíciasespecíficassobreoprojetodaestradademaisde4milquilômetrosrasgandoaAmazôniadelesteparaoesteapareceramnaimprensaumanoantesda viagem de Médici. Em junho de 1969, o então ministro dos Transportes,MárioAndreazza,apresentou,numapalestranaEscolaSuperiordeGuerra,umplano nacional viário com ênfase em uma “grande vereda”, uma “grandetransversal” que cortaria a Amazônia para ligar o Nordeste ao Acre. Citandoestudos do Ministério dos Transportes, O Estado de S. Paulo informou namesma reportagem que a rodovia— já chamada de “transamazônica”— iriafacilitarachegadade“grandescontingentescolonizadoresparaaAmazônia”.3

Em março de 1970, isto é, quatro meses antes da viagem de Médici aoNordeste,aimprensanoticioutambémcomdestaqueadecisãodoDNERdetirardopapelváriaselongasrodoviasnoNordesteenoCentro-Oeste.Aprimeiraera“adenominadaTransamazônica,quepartedeRecifeouJoãoPessoae terminaemBenjaminConstant[noAmazonas],nafronteiracomoPeru,numaextensãototalde5milquilômetros”.

Mesmocomaideiadagrandeestradaemplenagestaçãonogovernomilitar,nenhumpassofoidadopararesponderàsperguntasquedefatoimportavamparao destino das etnias indígenas espalhadas ao longo do trajeto: elas seriam

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contatadasquantotempoantesdasobras?Ondeexatamenteestavamosíndios?Quantosseriamosmédicoseosmedicamentosnecessáriosparaessescontatos?Quaiseramosrecursos,alogísticaeosindigenistasmobilizadospelaFunai?

AFunaieoMinistériodoInterior tinhamplenascondiçõesdese informarde antemão sobre a presença de índios isolados ou semi-isolados nas vastasregiõesqueseriamcortadaspelaTransamazônica.Bastariaouviralgunsdeseusmais destacados sertanistas, comoFranciscoMeireles, que calculou, em junhode1970,umtotal“de6[mil]a8milsilvícolas”vivendonocursodarodovia.Elecitou“gruposdeindígenasarredios”dastribosJuruna,Krenakarore,Asurini,Parakanã,Rikbaktsa,Suruí,KarajáeKayabi.Porém,referindo-seaoavalqueomarechalCândidoRondonderaaoutrasrodovias,comoaRoncador-Xingunosanos 1940,Meireles apostou que o pai domoderno indigenismo brasileiro, sevivofosse,nãofariaobjeçõesàobra.MeirelesfoicitadoemOGloboafirmandoque“aconstruçãodarodovianãorepresentaperigonemparaosíndiosnemparaoscivilizados”.4

Anos mais tarde, o Congresso Nacional jogou algumas luzes sobre acompletaignorânciaemqueaFunaifoideixadaàsvésperasdagrandeobra.Aofalardodesastrequeseabateusobreumadasetnias,osertanistaOrlandoVillasBôasasseverou:“ATransamazônicafoiprojetadaenãoseconsultouaninguém[daFunai]”.5

OdeputadoAirtonSoares,dooposicionistaMDB , percebendoagravidadedainformação,passouaatacaresseponto.

“Vossa Senhoria está me dando um depoimento muito importante. ATransamazônica foi projetada e não se consultaram os interesses indígenas daárea?”

“Tenhoconhecimentodequenão”,respondeuVillasBôas.Mas quando o deputado insistiu no tema, o sertanista contemporizou,

dizendoqueoparlamentarnãodeveria“generalizar”e,alémdisso,haveriaqueseobservarque“osDepartamentosdeEstradas—vamosserjustos—nãotêmobrigaçãodesaberseláháounãoíndios”.

Soaresrebateu:“Masogovernotem”.

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A demora do governo em planejar o atendimento aos índios nunca foireconhecidapelosmilitares.OgeneralBandeiradeMello alegoudepoisqueaFunai“entrouemaçãoantecipadamente”.Paraele,amissãodaFunaieramuitoespecífica: “proteger os trabalhos de construção da rodovia e evitar possíveischoquesentre trabalhadorese indígenas”.Ogeneralgostoumuitodoresultadofinal:“Graçasàatuaçãoprogramada,oportunaeeficazdaFunai,atéadatadofinaldaminhagestão,nenhumaocorrêncianefastafoiverificadaentreíndiosetrabalhadores”.6

Em agosto de 1970, Bandeira de Mello reuniu-se em Brasília comrepresentantes das quatro empreiteiras para, segundoO Estado de S. Paulo ,esclareceroquedeveriaserfeito“paraimpedirqueas29tribosatrapalhemostrabalhos da região ”. A prioridade era evitar conflitos entre índios etrabalhadores, e portanto atrasos inoportunos.Amesmaorientação foi passadapessoalmenteaumgrupodefuncionáriosdaFunaiporumenviadopeladireçãodo órgão de Brasília à região da Transamazônica. Anos depois, um sertanistarememorouareunião:“Oqueelequeriaeraqueagentefizesseocontatoparaevitar atritos entreopessoaldaestrada, engenheiros,opessoaldas firmasqueestavamabrindoaestradaeosíndios”.7

Nadasefalavanaimprensasobreprevençãoàsdoençasqueasempreiteirase o próprio pessoal daFunai poderiam levar a grupos indígenas semproteçãoimunológicacontradoençasdos“civilizados”quepelaprimeiravezpassariamafrequentaraqueleslugaresermos.

AfaltadediscussãopréviacomaFunaitevecomoresultadoumplanofeitoàspressas,quesófoielaboradoapartirdareaçãodealgunsservidoresdaentidade,dentre os quais o sertanista Antonio Cotrim Soares, que na época estava emBrasíliaapósterpresenciadoodesastrecomosKararaôeserecusadoatrabalharcomopadreCalleri.

Poucoantesdeseranunciada,aTransamazônicafoitemadeumapalestranaCâmara feita pelo ministro do Interior, Costa Cavalcanti. Preocupado com odiscurso, Cotrim procurou um economista da Funai, Edson Ramalho. OsertanistacomeçouatrabalharcomRamalhoeocartógrafoValdênioLopesem

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umplanoemergencial—ninguémdocomandodoórgãohaviapedidoacriaçãodetalgrupo.ElestiveramoapoiodecisivodeumcivilbemcolocadonaFunai,PauloMonteirodosSantos,entãodiretordoDepartamentoGeraldeEstudosePesquisas(DGEP).Otriofoimarcandonomapaoslocaisondeachavaquehaviaindígenas.Muitos erampuro chute, disseCotrim, “masdepois acabouque eraaquilomesmo”.

CostaCavalcanticomeçouaserquestionadopelaimprensasobreapresençade índios no traçado da rodovia. Segundo Cotrim, oministro então telefonouparaogeneralBandeiradeMelloparasaberoqueresponder.Quandoadireçãoda Funai pediu internamente algo concreto, o grupo de Cotrim apresentou oestudo.

AprioridadedecontatorecaíasobreosParakanã,osAsurinieosArara.Afrente daFunai tinhaque se antecipar à chegadada estrada.Para tentar evitarepidemias como as registradas no passado recente, o grupo de Cotrimestabeleceuumalistadenecessidades,dolevantamentosobreahistóriadaáreaindígena aomaterial a ser adquirido.Cada equipe de atração contaria comnomínimo dez pessoas, incluindo um coordenador sertanista, trêsmateiros e umauxiliar de enfermagem. Todo o pessoal selecionado seria vacinado contrasarampo, tifo, varíola, febre amarela e tétano. Os índios recém-contatadostambém seriam vacinados. A Funai deveria instalar placas de proibição decirculação na área ocupada por eles e exercer um “controle rigoroso” sobre aentrada de “civilizados” ali, incluindo jornalistas, exigindo-lhes atestados devacinação.8

Oplanotambémpreviaaantigaprática,desdeostemposdoSPI,deutilizaríndioscomointérpretesemãodeobradas turmasdeatração.OsinspetoresdaFunaiemváriosestadosforamorientadosacontratá-los.AinformaçãoatraiuumjovemdecercadevinteanosqueosíndiosconheciamcomoBep’kororoti,masbatizadoporummissionáriocomoPaulinhoPaiakan.Nascidonosanos1950naaldeia kayapó de Kubenkankrei, no Pará, ele crescera ouvindo as aventurascontadas pelos mais velhos e decidiu que também queria viver suas própriasexperiênciasnomundoforadaaldeia.HouveumareuniãonaaldeiaparadiscutiropedidodaFunai.Aprioridadeeraacolherosmaisvelhoseo rapaz ficoude

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escanteio. Porém, quando se soube que uma das tribos a serem contatadas“comia gente”, faltaram candidatos. Paulinho foi contar ao pai que queria sejuntar ao pessoal da Funai. Ele hesitou, mas por fim autorizou a viagem dePaulinho,quealiásnemsabiaqualeraosalárioprevistopelotrabalho.“AFunaipagavaeeupegavarefrigeranteparabeberebalinhaparachupar.Eunemsabiaovalordodinheiro.”9

***

Bandeira de Mello adotou o plano de Cotrim apenas em parte. Previa-se ainstalação de nove bases de atração de índios isolados no traçado daTransamazônica.Dessas,apenasduassaíramdopapel.Oestudotambémexigiaarealizaçãodeváriossobrevoosaolongodotraçadodarodoviaparaadetecçãodemalocas e grupos cuja presença ainda não havia sido rastreada pela Funai.Essa parte fundamental do plano também nunca ocorreu, por alegada falta derecursosnaFunai—muitoemboraboapartedesuasatividadesno traçadodarodoviapassasseasercusteadacomrecursosdapoderosaSudam.

OsmilitareshaviamcriadonaFunaiumaunidadeespecíficaparatrabalharassuntosdaTransamazônica,aCoordenaçãodasOperaçõesdaTransamazônica(Cotz), chefiada pelo general de exército Ismarth de Araújo Oliveira. Elatambémestavasubordinadaàrecém-criadaCoordenaçãodaAmazônia(Coama),que, na prática, se transformou numa Funai paralela, também chefiada pormilitares.

“Os sobrevoos não ocorreram porque o dinheiro estava pulverizado. […]Era muito dinheiro, e começaram a desviar”, contou Cotrim. Em certo dia,segundo ele, faltou botijão de gás em Belém e o coronel da Funai na regiãofretouumaviãoCessnasóparabuscaroprodutoemoutracidade.OsertanistadissequeogovernoacaboucriandoumaestruturaatémaiorqueadaFunai,mascheiadepessoassemfunção.

Quandodeuma“inspeção”notraçadodarodovia,BandeiradeMellopartiunumaviãoturboélicejuntocomCotrimeoutrosdiretoresdaFunai,enquantooministroCostaCavalcanti seguiu em outra aeronave. Ficaram hospedados nosmelhoreshotéisdaregião.“Tudocorriaporcontadasempreiteiras,daMendes

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Júnior”,contouosertanista,quecondenavaagastança.Certanoite,depoisdojantar,acomitivadaFunai,incluindoseupresidente,

foi levadapara uma “recepção”na granja de umdeputado—naverdade, umconviteàpromiscuidadebancadopelasempreiteiras.

Cheio de mulher de programa, que eles pegam. E os cabras todosembriagados. […] Eu lá olhando aquilo. Um engenheiro lá, de umaconstrutora,parecequedaMendesJúnior,medisse:“Não,ésua.Estátudopago”.[…]Umaesculhambação.Acorrupção,éassimquecomeça.

Correndo contra o tempo, a Funaimontou as frentes de atração na selva, quepassaram a operar simultaneamente. Elas também podiam funcionar como“frentes de penetração”, à medida que abrissem picadas atrás dos índiosisolados.Estavamsubordinadasabases logísticasmontadasemzonasurbanas,encarregadas de fornecer material, efetuar pagamentos e fazer a coordenaçãogeral.

As quatro frentes de atração voltadas para os índios parakanã ficaramsubordinadasàbase instaladaa67quilômetrosdacidadedeTucuruí,noPará,numa localidadechamadaPucuruí, comcercademilhabitantes.Comexceçãoda pista de aviação, o únicomeio de ligação era a estrada de ferroTocantins,pela qual passava apenas um trem por semana. Para chefiar a base, a FunaidesignouocoroneldaAeronáuticaClodomiroBloise,queemBrasíliaocuparaocargo de assessor adjunto da presidência do órgão. Ele chegou à base emsetembrode1970eseusinformeseramenviadosparaaFunaideBelém.10

Asfrentesdestinadasaosíndiosasuriniegaviãoficaramsobacoordenaçãode uma base chamada Kararaô, na cidade de Altamira (PA ), e chefiada pelotambémcoronelPedrodaSilvaRondon,netodomarechalRondon.11UmadasfrentesdabaseeradestinadaaacompanharaturmadetopografiadaempreiteiraQueirozGalvão.Outra,dePucuruí,davaapoioàempreiteiraMendesJúnior.

Cada uma das quatro frentes subordinadas a Pucuruí contava com dezpessoas, sendo “um sertanista, dois atendentes, quatro trabalhadores braçais etrêsintérpretes”—estes,índiosdeoutrasetniasquenaverdadefaziamtrabalhobraçal como todos os demais caboclos. Elas eram chefiadas pelos sertanistas

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Telésforo Martins Fontes, Jayme Sena Pimentel, Mariano de Souza e JoãoEvangelistadeCarvalho.OgrupodeFontesseguiuparaorioRepartimento,emapoio às turmas de topógrafos da obra da rodovia. Os sertanistas Pimentel eSouzaforamparaascabeceirasdosriosAndorinhaeBacajá,poronderodarampor28diassemlocalizar índios.Ocoronelentãotrocouaschefiasdessesdoisgrupos pelos sertanistas Felipe Passinho Santiago e Osmundo Antônio dosAnjos.Em12denovembrode1970,naregiãodorioLontra,enfimumgrupodaFunaifoiabordadoporcercade150índios“altos,algunscomcavanhaque,rostoliso,cabeçaraspadanafrenteepintadadevermelho,cabeloscortadosbembaixoe completamente nus, cobrindo a glande existia uma proteção de palha emformaldededal”.12Aosaberdocontato,ocoronelBloisedeterminouqueasfrenteslideradaspelossertanistasOsmundoeCarvalhoreforçassemaposiçãodeSantiagocomcomida,remédios,equipamentoseroupas.

Dezoitodiasdepois, umgrupoparakanã cercouduas frentesdaFunai.Osintérpretes,aoentenderqueosíndiosdisseramqueiriammatartodos,tentaramfugir correndo para a mata. Contidos por João Carvalho, foram orientados aexplicaraosParakanãqueogrupovinhaempaze traziapresentes.PorfimosParakanãaceitaramosbrindeseforamembora.

Em 22 de dezembro, Bloise autorizou e participou de uma viagem paraproduzir o que chamou de “grande reportagem (inédita) da pacificação” dosíndiosdorioLontra—quedepoisfoitransmitidapelaTVMarajoara,deBelém.AviagemfoifeitanumhelicópterodaempresademineraçãoMeridional,juntocom o presidente da companhia, “Mr. [Arthur W.] Ruff”, duas filhas dele,“etnólogas”, o cinegrafista Rubens Onetti, o jornalista Mário Palmério e odelegadodaFunaiemBelém,majorBahia.

O aparelho pousou na clareira aberta no acampamento do sertanistaCarvalho.Ogrupofoiobservarumamalocae roças formadaspelos índiosnasimediações. Para dificultar a invasão damaloca, os Parakanã construíram, noacesso principal, barreiras feitas de paus e folhas de coqueiro e também umaespéciedeguaritanascopasdasárvores,camufladacomfolhagens.Asguaritastinham aberturas para o lançamento de flechas. Em seu relatório, o coronelBloisefezumaobservaçãoquemaisadianteganhariaextremarelevância:“Não

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existedoença”.Na manhã seguinte, um grupo estimado em trezentos índios cercou o

acampamento, com“gritos,pulos,gargalhadas, correrias”.Bloiseescreveuquetodos eram “fortes e sadios”. A três índios, o coronel ofereceu um saco defarinha,maselesserecusaramapegar,entregritos.Umíndiointérpretesocorreuo coronel, orientando-o a rasgar e provar o conteúdo do saco. Os Parakanãdesconfiavamqueacomidaestavaenvenenada.Depoisqueeleprovouafarinha,os índios levaramosacoembora.Apósapartidados índios,omineradorRuffdesobedeceu a uma ordem do coronel e mandou que quatro trabalhadoresajudassem a derrubar árvores que estariam atrapalhando a pista de pouso.Minutos depois, os índios cercaram o grupo e impediram a continuidade daderrubada.

Noencontro seguinte, com150Parakanã,houveumatrasonachegadadebrindes à frente. Frustrados, os índios chamaram o pessoal da Funai de“mentiroso”.Acabaramlevandotudooqueexistianoacampamento,deixandoaexpedição sem comida e sem redes. Osmundo pegou uma carona para pedirsocorroemPucuruí.

Em Brasília, dois pontos dos relatórios de Bloise preocuparam oantropólogoGeorge deCerqueiraLeiteZarur: o problema comos brindes e aparticipaçãodeumamineradoranoscontatos.

Tais fatos […] são inaceitáveis para a Funai como detentora do poder depolícia nas áreas indígenas e, tratando-se no caso de um estrangeiro queinterfere e dá ordens que contrariam a de um representante do governobrasileiro,ofatoéinaceitáveltambémparaasegurançanacional.13

Emmarço de 1971, o sertanistaCarvalho enviou uma carta aBloise paranarrar um bom avanço nas relações com os Parakanã, já que dessa vez eleschegaramàbaseacompanhadosdeváriasmulheres,emsinaldeconfiança.Osíndiosdançarame cantaram.Carvalhoentoou“umasvintevezes”umacançãoqueaprenderacomosíndiosasurini.Apósduashoras,quandoentraramnomatoparairembora,osParakanãjácantarolavamamesmamúsica.

A base de Pucuruí enfrentou diversos problemas no primeiro trimestre de

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1971. O salário de dezembro e o 13o salário não haviam sido pagos, faltavaefetivo e não existia equipamento de rádio para contato com as frentes.Problemas de saúde que haviam acometido o pessoal da base, como “terçãmaligna, desinteria, febre e vômitos”, já haviam passado, mas a coquelucheatacavacriançasdaviladePucuruí,ondenãohaviavacina.

Emmarçode1971,osplanosdaFunaisofreramumsolavanco.Umgrupode índios atacou uma turma de trabalhadores da firma Cortasa Ltda., queprestava serviços de topografia e desmatamento da Transamazônica para asempreiteirasMendesJúnior,EITeQueirozGalvão.Noquilômetro64,pertodorioAnapu,cincooperários foramsurpreendidosporcercade trinta índios,quelevaram todos os seus pertences, deixando-os apenas de calção. No jogo deempurraqueseseguiunaFunai,concluiu-sequeBrasíliahaviaautorizadoabaseKararaô a retirar da região a equipe da Funai responsável por atuar com aMendes Júnior, sob alegação de que pesadas chuvas haviam interrompido asobrasdarodovia.

AFunaideBrasíliaenviouao localPauloMonteirodosSantos,diretordoDGEP . Em relatório de abril de 1971, ele informou que eram quatrocentos osParakanã na região e “faz-se necessária uma grande quantidade demedicamentos específicos contra gripe e diarreia, bem como vacinas contracoqueluche,cataporaesarampo”.14

Em julho de 1971, Bloise anunciou com orgulho ao general Bandeira deMello que fora concretizada a “pacificação” dos Parakanã da região do rioLontra.Àquelaaltura,aFunaijásabiaqueolíderdogrupoindígenasechamavaArakitáequeestavaemguerracontraoutrogrupoparakanã.Ocoronelcalculouqueonzeíndiostinhammorridohaviapouco,talvezdevidoaconfrontosentreosdoisgrupos.

Em visita à maloca do rio Lontra, Bloise contou “123 índiosaproximadamente, em plena harmonia”. Eles cozinhavam em potes de barro,moqueavam a caça no espeto e comiam muita batata-doce e cará cozidos.Fabricavamflechascompontade taboca,demadeiraedeosso,compenasdeurubuegavião.Osíndiostinhamorelhasfuradas,nasquaisprendiamdentesdequeixada.Tambémfuravamolábioinferior,preenchendo-ocompedrabrancaou

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cascadecajá.Índioseíndiastinhamacabeçapeladaeassobrancelhasraspadasearrancavam todopelonocorpoassimquecrescia.Dormiamemredese,nasnoitesfrias,punhambrasaembaixodasredes.QuandoJoãoCarvalhoosensinouausarcobertores,“gostaramdemasiadamente”.15

Sobreasaúdedos índios,Bloiseafirmouque“sãosadiosenãosofremnomomento [julhode1971]denenhumadoençacontagiosanemepidêmica”.Noespaço de seismeses desde o primeiro contato com a Funai, haviammorridoduas crianças com menos de quatro anos. Bloise pediu com urgênciamedicamentospara“gripe,tosse,catarro,febre,corizaefortificantes”.Aopassara noite com os índios, ele notou que umamulher índia, por quatro vezes, aolongo da noite, substituiu a brasa embaixo da rede para aquecer os visitantes,numgestosolidárioqueosurpreendeu.Logoaoclareardodia,todososíndios,homens,mulheresecrianças,acordarame foramparaa roça, levandoatéumacriança de cerca de seis meses de idade. O coronel ficou “alarmado com aresistência física” de uma índia que carregava ao mesmo tempo seu filhopequenoe“maisdetrintaquilos”demaniva,otalodopédemandioca.Contouque o trabalho na roça ocupou os índios até o meio-dia, sem descanso. Nocaminhodevoltaparaamaloca,opajéaindafoicaçarnamataeumaíndiaveiocolhendo cocos. Depois do almoço, os homens foram pescar até o início danoite,quandotodospassaramacantaredançaratécaíremnosono,exaustos.

Essasobservaçõesdeum“civilizado”,aindaporcimaalguémformadosobas rígidas regras militares, ajudam a destruir a imagem de que índios sãoindolentes ou pouco afeitos ao trabalho. Bloise também ficou surpreso aodescobrirquequandoumpresentedaFunaieradistribuídocomarecomendaçãodechegaradeterminadoíndioausente,aentregaerafeitademaneiracorreta.Elesemostrouentusiasmadocomograudeorganizaçãodatribo,dadistribuiçãodastarefasedavidaemcoletividade.Disse,emseusrelatórios,quetribosisoladaseram organizações sociais com regras e noções de vestuário e higiene quepoderiamnãoagradara todosos“civilizados”—porexemplo,andavamtodosnusedefecavampertodasmalocas—,masnofundoerambastantesofisticadasefraternas.EmofícioaopresidentedaFunai,Bloisepediuquefossedadatodaaassistência médica e social “a esses brasileiros que somente agora

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compreenderam que existe um outro mundo, civilizado, olhando-os eprotegendo-os de todos os males que porventura possam advir”. “A pureza eingenuidadedessesnossosirmãosnoscalamprofundamenteemnossoscorações—merecem toda a nossa proteção, pois são realmente os donos absolutos donosso‘InfernoVerde’.”

Masosmales, para infelicidadedos índios, chegarambem rápido, e pelasmãos da própria Funai, que manteve tudo em sigilo, de modo que a opiniãopúblicanãosoubesseoquesepassavano“acampamentoparakanã”.Sómaisdequarentaanosdepois,quandoogovernofederalliberouparaconsulta,em2008,ascaixasdedocumentosdoórgão,arealidadeseapresentouemdetalhes.

Primeiro houvedenúncias internas, feitas emnovembrode 1971, portantoapenas cinco meses depois da “pacificação” dos Parakanã. O atendentehospitalar Francisco da Silva Brito apresentou à Funai suspeitas depromiscuidadesexualentremembrosdafrentedeatraçãoeindígenas.Oórgãoindigenistaabriuumasindicância,concluiuquetudonãopassavade“dissemedisse”earquivouaapuração.Logoemseguida,porém,novasdenúnciasforamfeitaspelosirmãosWalterSancheseMariadaConceiçãoSanches,servidoresdaFunai.Aentidadevoltou-secontraeles,dizendoqueeraminexperientes.Emboradescredenciasseosdenunciantes, ede formacontraditória, aFunai aospoucoscomeçou a reconhecer os problemas, ainda que de maneira indireta, e seminformação alguma à imprensa. O coronel da reserva do Exército AntônioAugustoNogueira,que tambémhaviacoordenadoabaseKararaô,achincalhouos denunciantes,mas reconheceu em seu relatório conclusivo que “propaladasdoenças […] infelizmente ceifaram a vida de algumas crianças parakanã”,emboranãoexplicasseonúmerodemortos.16Orelatório,datadodefevereirode 1972, foi além, ao atribuir a contaminação diretamente a um servidor daFunai,umauxiliardeserviçosquesabiaserportadorde“blenorragia”,masnãocomunicara o fato ao chefe da base. Em situação idêntica havia um índiocontratado pelo órgão que também atuou no acampamento dos Parakanã. Ocoronel concluiu que “realmente, certas medidas sanitárias e profiláticas nãoforamadotadasdesdeosprimeiroscontatoscomosíndiosparakanãs,visandooresguardobiológicodosseusorganismosindefesos”.Asprovascoletadasporele

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confirmaramumaomissãoestarrecedoradaFunai.

Quandodaformaçãodasprimeirasfrentes,porrazõesquedesconhecemos,não foi procedido e nem exigido exame de saúde de seus componentes,permitindo assim que um deles, portador de ameba histolística ,contaminasse todaa aldeia e causasse aquele surtodedesinteria.De igualmodo, foi transmitida a sarna, a gripe e por último, a oftalmia purulenta,doençasessascomprovadasemlaboratório.

Ocoroneltambémreproduziuumaopiniãodochefedaequipedesaúdequeinvestigouascontaminações,AntônioFernandesMedeiros,segundooqual

tudo leva a crer que essa transmissão se deveu aos servidores da Funaicontaminados (integrantes das frentes), não afastando a hipótese de outrafonte de contaminação, uma vez que soube no acampamento que osreferidosíndiostiveramcontatoscomoscivilizadosdaconstrutoraMendesJúniorS.A.

EssereconhecimentoexpressodaculpadaFunainuncafoitornadopúblico.Pelocontrário,ocoronelsolicitouumapuniçãoaosservidoresquehaviamfeitoasdenúncias.ElepediuumareprimendaparaBritoeosirmãosSanches,alémdatransferênciadedoisdelesparaumadelegaciadaFunai.Poroutrolado,sugeriuuma advertência ao sertanista João de Carvalho “pela inobservância dasindispensáveis medidas sanitárias quando da implantação do acampamentoparakanã”.Osoutrosdoisservidoresdoentesdeveriamserdispensados.

OchefedaCotz,generalIsmarth,concordoucomtodasassugestões.Pediuaindaaadoçãode“medidassanitáriasnoacampamentoparakanã”.17

OdespachodeIsmarthédatadodemarçode1972.Nessamesmaépoca,outrodrama se desenrolava bem perto da área dos Parakanã. O sertanista CotrimchefiavaumadasfrentesdeatraçãodabaseKararaô.Perplexocomorumodosacontecimentos,eleestavaprestesaexplodir.Desdeasegundametadede1970,estavaenfronhadonamataatrásdeumcontatocomosíndiosasurinidaregiãodorioXingu, tambémna rotadaTransamazônica.Enquanto isso,outra frente,

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liderada pelos irmãos Anton e Karl Lukesch, procurava os mesmos índios.Nascidos na Áustria, eles eram missionários da Igreja católica — Anton,monsenhor, e Karl, padre. Dessa forma, a Funai reeditava parcerias comreligiosos, a exemplo da expedição Calleri. Os Lukesch tinham recebidoautorização prévia do presidente da Funai, Bandeira de Mello, e tambémcontavam com “a assistência valorosa e importantíssima” dos aviões dacompanhia de mineração Meridional, de Arthur Ruff, o mesmo que haviavisitado a aldeia dos Parakanã. Os irmãos argumentaram que a abertura daTransamazônicatornava“urgentíssimaatarefadeestabelecercontatospacíficoscomosíndios”.18

Os missionários montaram uma base em São Félix do Xingu, ondeamontoaram, além de remédios e outros materiais, os 150 facões, setentamachados, cinquenta ferros de cova, 120 facas, vinte quilos demiçangas e 25metros de tabaco de corda que iriam dar de presente aos índios na fase donamoro. Com um bimotor da Meridional, conseguiram realizar sete voos dereconhecimento. Em 15 de abril de 1971, os Lukesch enfim visualizaramprimeiro pequenas roças, depois uma “ampla aldeia commuitas casas e umagrandemalocaemconstrução”,pertodorioIpiaçaba.19DevoltaaSãoFélix,partiramdebarcoparaaregião.

Depoisdeumlongotrabalhodedistribuiçãodepresentesemlocaisqueosíndiospoderiamfrequentar,osLukesch,acompanhadosdequatrotrabalhadores,por fimencontraramumapicadaque levavaaumaaldeiaasurini.Acinquentametros da primeira maloca, tiveram que parar. Um índio, com arco esticado,apareceu gritando e fazendo sinais para que fossem embora. Sons e chorosvieram da maloca. Outro índio apareceu, forte e aparentando trinta anos. Eletambém esticou o arco e fez sinal aos “civilizados” para que retrocedessem.Usando “todas as palavras em línguas indígenas” que conhecia, Anton tentoudizerqueogrupovinhaempazemostrouquenãoestavaarmado.Karlordenouque todos da equipe deixassem no chão as mercadorias que carregavam. Osmissionáriosentãosederamcontadequeestavam“completamentecercadosporíndios, que se escondiam atrás de árvores e arbustos, com arcos e flechas,prontosparamatar-nos”.AcercadedezpassosdeAnton,oíndiosentou-seno

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chão.Emumgestorápido,omonsenhorcorreuemsuadireçãoesentou-seemumtronconasuafrente.Emseguidaentregou-lhedoisfacõesdepresente.Entãooíndiocomeçouarir,rompendooclimadetensão.EleconduziuAntonparasuaaldeia, enquanto Karl foi pegar mais presentes. Nesse momento uma pesadachuvacaiueocaciqueconvidoutodosdaexpediçãoaseabrigaremsobotetodeumamaloca.Aofinaldodia,osíndiospermitiramqueaequipepassasseanoiteali.Os irmãosdisseramqueelesos trataram“comumverdadeirocarinho”,deforma “agradável, gentil e hospitaleira”, oferecendo várias vezes “comida,mingau, jabuti, mutum e jacu cozidos oumoqueados, batata-doce, macaxeira,milhoebeijudemandioca”.20

Diasdepois,osLukeschconvenceramogrupodeíndiosalevá-losàmalocamaior. Após uma caminhada de sete horas na mata, Anton calculou quepoderiam caber mais de duzentos índios na aldeia maior. De volta à aldeiamenor,ospadrespediramqueosíndiososacompanhassematéoacampamentoquehaviammontadoquilômetrosantes.Maisde trinta índiosos seguiram.Nodia 16 de maio, Anton celebrou uma missa dentro do barracão. Os índios“assistiram com curiosidade, mas com respeito, em pleno silêncio”. À noite,dançarametocaramflautasdetaquaraedetaquaruçu.

AntonficouimpressionadocomarotinadeatividadesdosAsurini,umpovo“verdadeiramente trabalhador”. “Oshomens levantam-sedemadrugadapara irtrabalhar,easmulherescozinhameexecutamassuasatividadesdomésticasatétardedanoite.”

OgrupoemcontatodiretocomosLukescherade74pessoas,sendotrintahomens,41mulherese seiscrianças.Onúmero total,porém,eramuitomaior,poishaviaosmoradoresdaaldeiamaior.Os irmãosdeixaramregistradoqueoestado de saúde dos índios “era excelente”, com exceção de alguns dentescariados e três índios com sintomas de malária. Medicados, os três serecuperaram. Na hora da despedida, os índios “sopraram a fumaça de seusgrandescharutos”emdireçãoaospadres,“paralivrardasdesgraçasetormentosquecausamespíritosmauseparatornaranossaviagemfeliz”.

ComavoltadosLukeschaSãoFélix,osertanistaCotrimsoubedosdetalhesdo

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contato,incluindoainformaçãodequetrêsíndioshaviamcontraídomalária.Elecomunicou-se com a base da Funai emAltamira para alertar o coronel PedroRondonsobreoriscodeasituaçãodosíndiosseagravar,umavezquejáhaviaocorrido até confraternização com “civilizados”. Rondon ordenou que Cotrimfosseparaaregião.

OsertanistaatéentãooperavacomsuaequipenaregiãodorioIpixuna.Emmaiode1971,suaequipeconseguiuchegaraumaaldeiacomtrezemalocasdeíndiosisoladoseaindanãoidentificados.Olocalestavavazio.QuandoCotrimcomeçou a percorrer a trilha dos índios, dois apareceram. Os intérpretes daequipe, um Xipaia e um Tembé, tentaram comunicação, sem sucesso. Osertanista procurou o restante dos índios, caminhando por dois dias na mata.Enfim um grupo de mais de quarenta índios se aproximou. Nesse momento,Cotrim tomou uma decisão contrária à orientação geral da Funai. Preocupadocomapossibilidadedeumaepidemia,resolveudeixá-losempazenãoprolongarocontato.“Oprojetonãoeramesmocontatar,erafazeraproteção,demarcaraterra.”21

NorelatórioqueenviouaocoronelRondon,Cotrimconfirmousuaposição:“A intensificação de nossa presença entre eles é desaconselhável, até quetenhamoscondiçõesdediálogo.Casonesseperíodosurjaalgumsurtodedoençadificilmente teremoscondiçõesdedebelarouadotarmedidaspreventivasentreeles”.22

No caso dos Asurini, Cotrim pouco podia fazer para evitar novos contatos.Àquelaaltura,osíndiosjádesciamorioecobravammaisbrindes.Elechegouaogrupoindígenanodia13dejunhode1971,portantoummêsdepoisdocontatodos Lukesch. Ao chegar, mandou expulsar três “civilizados” da região “queestavamláquerendoatrairasíndiasparacontatosexual”.

O sertanista encontrou diversos índios com sinais de doenças. DisparoupedidosurgentesdemedicamentosparaabasedeAltamira.Envioudebarcoumfuncionáriodaequipe,Ricarte,juntocomumacartapessoalaocoronelRondon.Porém, o socorro demorou a chegar e, quando veio, era insuficiente. RondonexplicouaCotrimquehouveraentravesburocráticostantoemBelémquantoem

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Brasília.OpercursodeAltamiraaopontodeatração,segundoCotrim,poderiaser feito em no máximo dez dias. A viagem dos medicamentos, contudo,demorou29dias.Quandoospacotes foramabertos,osertanistadescobriuquecorrespondiamaapenasuns10%dototalsolicitado.EleescreveuàFunaique,sejuntassetudooquechegou,poderiatratarcorretamenteapenasumíndio.Deexpectorantes,poderiamserdadasduascolheresacadaíndio,enadamais.

Cotrim escreveu uma carta desesperada para o coronel Rondon, na qualrevelavapelaprimeiravezonúmerodemortosnaepidemia.

Lamentamos que vossas últimas palavras nos tenham chegado tarde; osmortosnadaescutam,paraelesaretaguardajánãoexiste.[…]

Hoje lamentamosaperdade12 (doze)vidashumanas, amanhã, serãodezenas, caso a retaguarda permaneça letárgica; quando despertar já nãohaverá necessidade, pois não existirá razão de existir, já que não haveráíndios.[…]

À sua passividade [da Funai], seu conformismo diante do funesto,aumenta em nossa consciência o sentimento de culpabilidade. Será querealmentefomosnósosresponsáveis?Decerto!Nãodeveremosescolherospadres para queimá-los como bruxas; tivemos condições de extirpar osmales, se assim não procedemos porque nos faltaram meios, osmedicamentosforaminsuficientesemquantidadeeineficazesemqualidade.

Cotrimironizouachegadaacontentodealgunsdeseuspedidos,miçangaseenxadasparadistribuiraosíndios.Elasagorateriamoutraserventia.“Aomenosos corpos seriam paramentados, enfeitados como pierrots , e enxadas quefacilitariamatarefadosepultamento.Tristeironiadodestino,transformaram-meinvoluntariamente em coveiro de índio.” Cotrim disse que só lhe restava ser“administrador de um cemitério indígena”. “Eis o epílogo desta situação decontato;povocondenadopelo fatalismoaodesaparecimento.Quemnãoestavapreparadoparaocontato,nósoueles?”

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OsegundorelatóriogeralsobreasituaçãofoienviadoporCotrimemoutubrode1971.Elecontinuaadescreverumdesastre.

É necessário descrever alguns acontecimentos que antecederam as nossasatividades, tendo comoconsequência a contaminaçãodogrupo, grassandonestacomunidadeumaviolentaepidemiadegripeemalária,resultandoem13 (treze) mortos e longo período de convalescença que atingiuindiscriminadamentetodoogrupo.23

Cotrim disse que “nenhuma medida preventiva foi adotada por nossosantecessores”, mas também reconheceu que em sua equipe houve “umrelaxamento de tais medidas”. Acrescentou que, apesar de tardia, houve umareaçãodaequipeàepidemia,oqueteriareduzidoseusefeitos.Onúmerorealdemortospoderiaseraindamaior,poisváriosíndiosdoentesfugiramparaamataepodiamlátermorrido.

Quarenta anos depois, ele tem certeza de que o número total de mortespassou de três dezenas, o que representava quase a metade de todo o grupo,levando em conta o cálculo de 74 pessoas feito pelos Lukesch quando docontato,emmaio.“Doze,não,eramuitomais.Dáuns36”,afirmouCotrim.24

NaequipedosertanistaestavaojovemPaulinhoPaiakan,quehaviadeixadosuaaldeia kayapópara conhecer osmistérios domundo “civilizado” . Quando elechegou à aldeia dos Asurini, disse que foi muito bem recebido. Uma famíliacuidavadele “como se fosse um filho”.Aprimeira fase agudada epidemia jáhaviaacabado,masaindaassimelepresencioumortes.

Depoisqueeuestavalá,lembroquetinhammorridoquatro.Euacompanheio enterro.Lá édiferentedenós [kayapó], que temumaárea separada.Lánão,dentrodacasamesmoéenterrado.Porexemplo,semorreomarido,aesposa, a família pode enterrar embaixo da cama e faz cama em cima,dormiaemcima,numarede.Elesusamrededelinhadealgodão,paneladebarroeumbanquinhodemadeira.

PaiakanconfirmouqueCotrimficou“muitorevoltado,elepediaapoiopara

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aFunai”.

Umavez eledisse: “Paiakan, eu tô indopara a cidade,mas talvez eunãovolte mais. Quero que você continue assim, fazendo amizade com essesíndios, eles estão gostando de vocês e espero que você os ajude”.Ele foiembora.Oqueaconteceu?EutambémquasemorridemaláriajuntocomosAsurini. Eu não estava lembrandomais nada, estava em coma.OCotrimtinhameensinadocomousarainjeção.Depoiseumelhoreiumpouco.25

Após escapar da malária, Paiakan também deixou o posto de atração.Naquelaaltura,segundoele,asdoençashaviamcessado.

Cotrimsaiudopostoenãovoltoumais.MandouumacartaparaoamigoPauloMonteiro, da Funai em Brasília, que havia apoiado o estudo prévio sobre oscontatoscom índiosnaTransamazônica.Osertanista sedisse“deprimido”porter testemunhado “tão lamentáveis acontecimentos”. Pediu que a Funai agissecom profissionalismo nos contatos com tribos isoladas. Antes de as frentescomeçarem a operar, acrescentou, a Funai deveria comprar material emedicamentos a partir de recomendações “técnico-científicas” de médicos,etnólogos, farmacólogos, dentre outros. Disse ainda que fazia o alerta por“exigência”dasuaprópriaconsciência.

Do modo como agimos atualmente as perspectivas são pessimistas; osentraves burocráticos, desperdício de recursos, desvio das atividades-fins,métodos de trabalho empíricos e outros conduzirão essas frentes aparticiparem de um desastre que a história jamais nos perdoará, tendosemprecomosuaprincipalvítimaoíndio—alémdodramadeconsciênciadaqueles que participarem desse triste epílogo que enodoa a imagem donossopaísanteomundo.26

CotrimentregouàFunaideAltamiraem3demaiode1972ummemorandoemqueanunciou seu“afastamentodefinitivo”dopostoasurini, jábatizadodeKoatinemo, e tambémda baseKararaô, e que o pedido de demissão daFunaiseriaapresentadoporelepróprioemBrasília.27

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Na conversa com um chefe substituto em Altamira, declarou que estavasaindo da Funai por três motivos: a decisão da sindicância que havia punidoMaria da Conceição Sanches, uma das denunciantes das mortes entre osParakanã;osproblemasnoParqueIndígenadoAripuanã;asameaçasaoParquedoXingu;etambém“nãoseconformarcomoprojetodoEstatutodoÍndio,oraemtramitaçãonoCongressoNacional”.

As primeiras denúncias deCotrim explodiramna imprensa em20demaio de1972.EledisseaoJornaldoBrasilque deixou aFunai porquenão queria ser“coveirodeíndios”.Chamouoórgãode“blefeàopiniãopública”.Declarouqueumaepidemiadegripemataradezesseisdos76índios“jandeavis”,outronomepeloqualosAsurinieramconhecidosnaépoca,equeosmedicamentosqueelepedira àFunai demoraram48diaspara chegar.Denunciou aindaquequarentaParakanã haviam morrido, além de oito terem ficado cegos, por “doençasvenéreastransmitidaspelosprópriosfuncionáriosdafundação”.

Nomesmodiaemqueareportagemfoipublicada,aASIdaFunaiemitiuum“Pedido de Busca” confidencial a vários setores do órgão para saber tudo arespeitodasdenúnciasdeCotrim.Arespostaconfirmouquedeabrilde1971amarço de 1972 a base Kararaô, responsável pelo atendimento aos Asurini,receberaapenasumavisitadasequipesvolantesdesaúde,nodia2demarçode1972,muitoemboraopicodaepidemiativessesedadonosegundosemestredoanoanterior.28

Osegundoefeitodopedidofoiumarespostaformalenviadanodia31demaiopelogeneralAntônioAugustoNogueira,delegadodaFunaideBelém.Eleeraochefe do coronel Rondon, que por sua vez era o chefe de Cotrim. Emboramovido pela tentativa de amenizar as denúncias do sertanista, o documento éuma das maiores evidências documentais do desastre que abateu a etniaparakanã.Ogeneralafirma:

QuantoaocitadonúmerodeíndiosmortosentreosParakanãspordoenças,éexagerado, pois as informações do sertanista João Carvalho e do dr.Medeiros,médicoda2aDR,ambosfazemreferênciaadezesseteonúmero

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de falecidos.Quanto à cegueira, apenas dois estão com a visão perdida equatrotiveramosolhosafetados.29

Acândidaexplicaçãodogeneral—comosedezessetevidasperdidasnãodevessem ser objeto de preocupação — não chegou aos jornais. A respostarecebeu carimbos de “confidencial”. Nela, o delegado contemporizou com oserrosdaFunaiedissequeomaiorcontatocomCotrimnãoerafeitoporele,maspelabaseKararaôepelaCotz.

HádeseconsiderarqueaFunaicomasuacomplexidade,seusencargos,adiversidadede suasatribuiçõesaliadasà localizaçãode suasunidades, e avariedadedosgruposindígenas,émuitovulnerávelàquelesquesededicamaencontrarsuasfaltaseseuserros,particularmentenomodoetratocomosindígenas.

Cotrimnuncahavialidoorelatóriosobreasdezessetemorteseosdoiscasosdecegueira, até saber de sua existência pelo autor deste livro. O papel estavaarquivadonapasta sigilosadeoutro servidor,Apoena, enãonadele. “Eunãosabia que eles tinham confirmado. Demorou tanto tempo… Imagina isso[divulgado] na época, o que não provocaria. Eu tinha certeza do que estavafalando.”

Ao longo dos anos, surgiram evidências de que o número de ParakanãmortosultrapassouosquarentanoticiadosporCotrimepostosemdúvidapelogeneral.OsantropólogosNoraldinoVieiraCruvinel,daFunai,eAntonioCarlosMagalhães Lourenço dos Santos, coordenador do Projeto Parakanã, criado nofinal dos anos 1970, contratado pela própria presidência da Funai, apontaramque o grupo parakanã inicialmente contatado somava “de 180 a duzentaspessoas, conforme relatos dos sertanistas encarregados”. Ao final do primeiroano pós-contato, porém, o número “não eramaior do que 92 pessoas”, o queindicariacercadenoventamortesnahipótesemaisotimista.Noanoseguinte,onúmero de vivos baixou para 82. 30Outro estudo deMagalhães apontou umnúmero inferior de mortos, setenta, mas de qualquer forma altíssimo. Entrenascidosemortos,oantropólogocalculouumapopulaçãode86índiosaofinal

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de 1972. “Desse modo, pode-se observar que em pouco mais de um ano decontato efetivo, os Parakanã sofreram uma drástica redução populacional naordemde54%,resultantede108mortes.”31

Magalhãesinformouaindaque

ummédicodeBelémaovisitá-losencontrou35mulheres[indígenas]edoisfuncionários daquele órgão contaminados com doenças venéreas. Talsituaçãoconcorreuparaqueoitocriançasnascessemcomcegueiraparcial,provocada por conjuntivite blenorrágica, além da contaminação em duasmulheresadultas.

Segundo o antropólogo, o médico referiu que “havia um quadro depromiscuidadeentreíndiosegentedefora”.

Hojeépossívelsaberquedesdemaiode1972aFunaitinhaplenascondiçõesdesaberquepelomenosdezesseteParakanãmorreramedoisficaramcegos.Masessas informações foram cuidadosamente ocultadas pelo general Bandeira deMelloquandocompareceuàCPIdoCongressoNacional em1977.OdeputadoLauro Rodrigues lhe perguntou sobre as “quarenta mortes” denunciadas porCotrim anos antes. “Inverdade”, retrucou o general. Ante a insistência dodeputado,eledenovodespistou:

Bom, quarenta.Não houve essasmortes.VossaExcelência pode inclusiverequisitar da Funai fotografias do atendimento.Quem chefiou, juntamentecomo JoãodeCarvalho, foiocoronelClodomiroBloise,daAeronáutica,quedeu todoo apoio.Essa tribonãodeuomenor trabalhonaquestãodaatração.

O sertanista responsável pelo contato com os Parakanã, João Evangelista deCarvalho,tambémmuitodepoisreconheceuóbitosapósocontato.“Deabrilemdiante,elescomeçaramavirnormalmente,diariamente,atévieram,mudaramoacampamento já mais para próximo, aí pegaram uma epidemia de diarreia,morreu umaporção de crianças e eu fiquei comesses índios até dezembro de1971.”32

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Carvalhonãoexplicouoquesignificava“porção”emnúmeros.Eleafirmouque“nessaépoca teveumafaltaderecursos tremenda”.Eram“maisoumenosquatrocentos índios” naquela época. Sobre o contágio, procurou justificar:“Sabe, todo contato nosso a gente sempre, por mais que as pessoas estejamaparentemente sadias, nós sempre temos os vírus que eles não têm anticorpospararesistir.Entãooqueaconteceéisso,pormaisqueagentefaçaoscuidados[…]”.

Nascido em 1922, Carvalho era um experiente sertanista, que haviatrabalhado desde os anos 1940 com inúmeras etnias. Quando, em 2005, foiprocurado por umpesquisador doMuseu do Índio para umnovo depoimento,soube-sequehaviamorrido.33

Em1976,osParakanãsofreramoutroimpacto.LogoapósaconclusãodasobrasdaTransamazônicanaregião,porvoltade1973,ogovernocomeçouapôrempráticaoprojetodahidrelétricadeTucuruí.Em1976,houveocontatocomoutrogrupoparakanã,pertodorioAnapu,nasproximidadesdeAltamira.Elesforamtransferidos para a “reserva parakanã” e também sofreram contaminação.“Segundo apuramos junto a esta comunidade, os índios não estavamcontaminadosesóposteriormenteaoencontrocomos funcionáriosdaFunaiéqueamaláriafoidisseminadaentreeles.”34

Ogrupo do rioAnapu que era formado atémarço de 1976 por “quarentaindivíduos chegou ao posto indígena Pucuruí com um total de 29, o querepresenta 27,5% de perdas para o grupo”. Haviam perecido onze índios,restando cinco homens, oitomulheres e dezesseis criançasmenores de quinzeanos.Em1979,maisquatro índiosmorreramdemalária,emumgrupode113índiosparakanãdoantigo“grupodoLontra”.35

ConsiderandoorelatóriodaFunaide1972,asdenúnciasdeCotrimeasdiversasavaliaçõesposteriores,onúmerodosParakanãmortosapósocontatoosciladedezessete a noventa, além de dois a oito casos de cegueira. Em relação aosAsurini, a conta tambémfoi elevadíssima.Cotrimcalculou36Asurinimortos,emboraosseusrelatóriosqueresistiramaotempoapontemtreze.

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AantropólogaReginaAparecidaPoloMüller desenvolveu e coordenou, apartir de 1978, um projeto de recuperação dos Asurini. Ela passou longosperíodos com os indígenas, revisou os dados documentais e chegou a númeroparecidocomomaiorcitadoporCotrim.Noatodocontato,segundoosregistrosverificados por Regina, foi estimada pelos sertanistas uma população de cemíndios.36Quandoosertanistachegouaolocal,contou76índios.Logodepois,apopulaçãofoireduzidapara63—ouseja,amortede37índiosemrelaçãoaogrupo inicial, apenas um acima dos 36 apontados por ele. 37 “As causas doviolento decréscimo populacional pós-contato foi a contaminação do grupo,segundo a mesma fonte [Cotrim], grassando na população uma epidemia degripeemalária”,escreveuRegina.38Seisanosdepois,apopulaçãoasurinicaiupara55.“Asmortesemsuamaioria,senãoemsuatotalidade,foramprovocadaspordoençastransmitidaspelosbrancos.”

Emumdocumentointernoproduzidoem1982,aFunaireconheceuqueem1971 a populaçãodosAsurini era de “aproximadamente cem índios; em1974eramestimadosem58”.39Ouseja,emtrêsanos,42%dogrupofoidizimado—umíndicenadamenosqueespantoso.

Anosdepois,osertanistaCarvalhotambémreconheceuqueaepidemiadoquechamoude“conjuntivite”deixoucegosíndiosparakanã.Adoença,queopessoaldaFunaicombateuapenascomcolírioepomada—“agentecolocaumavez,melhora um pouquinho, não fica curado”—, transformava os olhos em “umapostadesangue”.Chamou-lheaatençãoocasodeumaParakanãdoente,idosa,quepediuàneta,demaisoumenosseisanos,quefizesseumapontafinaemumtalodebabaçupara,comisso,tentarretiraraquiloqueaincomodavanosolhos.“Eladizia‘éespinhoquetemnosmeusolhos’.Aílevouparaomato,nãoteveotratamentonecessárioeosolhosestouraram.”40

No início de 1972, Cotrim começou a preparar uma declaração pública àimprensa sobre a morte dos Parakanã e Asurini. Em plena ditadura, foi oprimeiroservidordaFunaiaassociarasaçõesdoórgãoàmortalidadedeíndiosnoeixodaTransamazônica.Doiníciodemaio,quandopediudemissão,atéodia

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20,elesereuniuemBrasíliacomApoenaeoutrosfuncionáriosdaFunaiparaseprepararsobreoqueiriafazer.

Eunãopodia esconder isso, havia índios cegos.Asoutras coisas que iamacumulando. A estrutura da Funai não tinha condições. Com aquelesmilitares, com o general Bandeira… A tendência era piorar. O própriopessoaldaFunaiiameabastecendodeinformação.41

Nesse meio-tempo, as informações sobre cegueira entre os ParakanãchegaramàjornalistaElianaLucena,dojornalOEstadodeS.Paulo.Duranteuma entrevista coletiva concedida em Brasília por Bandeira deMello, Elianaindagouseeraverdadequeíndios“estariamcegos,atacadosdedoençavenéreatransmitidaportrabalhadoresqueestãonaárea”daTransamazônica.“Issoéumainverdade”,rebateuogeneral,assegurandoqueosoperáriosdoentesteriamsidobarradospelaFunai antes de chegar à área.Alémdisso, “suspeitar dosnossossertanistas seria absurdo, pois o pessoal da Funai passa por exames médicosperiódicose,alémdisso,porprincípionãoprocurariamíndiasparakaman[sic].Issoseriadesumano”.

O general então ameaçou a jornalista “de ser investigada pelo SNI ”, por“estarmuitobeminformadasobreoquesepassadentrodaFunai”.Oassuntofoipararnaprimeirapáginadojornalde30demarço,comotítulo:“Funaiameaçajornalista”.

ApósaliberaçãodosdocumentossigilososdaFunai,épossívelconcluirqueareaçãodeBandeiradeMellorepresentoupuradesinformação.Mesmosabendoque as denúncias deCotrim tinham fundo verdadeiro, o regimemilitar seguiunegandoquaisquerirregularidadesnoscontatoscomosParakanãeAsurini.

OsertanistavoltouparaMaceió,ondedepoistevequedarexplicaçõesparaa Polícia Federal. Ele nunca mais voltou a atuar com órgãos indigenistas doEstadobrasileiro.Retornouaocomércioatacadistadepisosecerâmicas,negócioqueseupaihaviafundadodécadasantes.

Cotrimdeixouoórgão“decepcionadoefrustrado”,comaconvicçãodequefoiumapeçausadaemplanospolíticosnosquaisnão tevepoderpara intervir.Quarentaanosdepois,continuoualidarcomosfantasmasdopassadocomuma

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amargaesinceraconclusão.

Depois que eu vi a mortandade… Eu sabia que aquela mortandade iacontinuar, podia até ser pior. E eu sendo cada vez mais responsável. Euprevia na região diversos grupos. Eu sairia dali daquele grupo asurini evoltaria a contatar outros grupos. E os resultados seriam os mesmos:desastrososparaosíndiosemuitasvezesserefletindonaminhaconsciênciacomoumcorresponsável dos acontecimentos.No fim, eu era cúmplicedetudo o que estava acontecendo. Havia cumplicidade de minha parte. Euaceitei.42

“Ehojevocêfariadenovotudooquefez?”,indagueiaCotrim,numhotelemMaceióem2013.

“Eusó fariaasdenúnciasdenovo.Agora, ametodologiade trabalho,nãofariadeformanenhuma.OmétodocorretoéoqueaFunaicrioueadotou[anosdepois],demanteros índiosafastados, isolados,criandoequipesparamanteraáreaafastadadeinvasores.”

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8.AMARCHA

A MORTANDADE DOS ASURINI E PARAKANÃ EM MOMENTOALGUM paralisou o avanço da Transamazônica. Até meados da década de1970, outras etnias prosseguiam despistando ou recusando o contato com os“civilizados” na mesma região, enquanto as obras passavam perto de aldeiasantes isoladas. Os Araweté, os Arara e outros grupos de Parakanã e KararaôeramospróximosfocosdeatençãodosmilitaresdaFunai.Essetrabalhoestavanas mãos tanto de sertanistas mais antigos, como Afonso Cruz, como dosnovatoscontratadosapartirde1970apropósitodaconstruçãodaestrada.

Um deles era Benigno PessoaMarques, que entrou na Funai com apenasvinteanos—edaqualsósairiaapósquarentaanosdeserviçosprestados.AssimcomoAfonso,Benignoeraligadoàselvadesdecriança.Elenasceuem1949emumseringalàsmargensdorioIriri,noPará,acercadeduzentosquilômetrosdaatual cidade de Altamira. Seu pai, Alonso, é um dos tantos anônimos quesofreram e foram moldados pelos efeitos da Segunda Guerra Mundial semjamais ter pisado na Europa. Em 1942, Alonso chegou ao Iriri dentro doprogramacriadopelogovernoparadeslocarenormescontingentesdoNordesteafimdeaumentaraproduçãodelátexnaAmazôniaesuprirosExércitosaliados.Nordestino do Ceará, era um “soldado da borracha”, vivendo em condiçõesadversas no meio da selva amazônica, tão diferente da caatinga nordestina.Benigno, ainda criança, foi impactado pela tragédia, ao perder dois irmãospequenos, com sarampo.Outra ameaça eramos índiosda região, habitadapordiversasetnias.Porvoltade1957,segundoBenigno,umgrupokayapóatacouematou “civilizados” que viviam em um seringal perto do rio Novo. Ele serecordadequandoos seringalistas subiramo riopara exibir aosmoradoresda

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regiãoasarmasqueosíndiosdeixaramparatrás,comoflechasebordunas.Na adolescência, nos anos 1950, Benigno presenciou reuniões que os

seringueiros costumavam fazer para organizar expedições com o objetivo dematar e espantar os índios.Quantomaior o seringal,mais gente o seringueirocediaparaaspenetraçõesnamata.Haviaseringaiscomsetenta,oitenta“facas”,queeraoapelidodadoaostrabalhadoresbraçais.Quantomaisfacascontrolava,maisforteeraoseringueiroemaisgenteeledeveriacederparaasexpedições.No linguajar local, chamavamde “botar para correr”os índios.As “correrias”poderiam durar semanas. Quando eles encontravam os índios na mata, disseBenigno,atiravamparamatar.

Quem se destacouno trabalhode selecionar e organizar as “correrias” foium homem chamado João Rogério.Muitos anos depois, quando já estava naFunai,BenignolocalizouRogérioepediuqueelefalassesobreaquelaépoca.

Elesfizerammuitosataques.NoXingu,naturmadoBaú[kayapó].Morreumuito índio na época. Eles brigavam com borduna e flecha, enquanto osseringueiros vinham com espingarda. Naquele tempo se usava um riflecalibre44,chamadode“papoamarelo”.Houveummassacreno“riozinhodoAnfrísio”comopovokararaô.Ossobreviventesíndiosmecontaram.1

Mais tardeBenignodisse ter compreendidoqueos ataquesdos índios aosseringueiros não tinham relação com a posse da terra, mas apenas com anecessidade de sobrevivência. Havia na região grupos indígenas imensos queprecisavam de roças grandes e muitas caçadas para se alimentar. Quandoperceberam a utilidade das peças trazidas pelos “civilizados”, como foices emachados, os índios passaram a aparecer nos seringais para pegar taisinstrumentos de corte. “Mas quando eles vinham falar com os brancos, osbrancos não entendiam e ofereciam era chumbo para o índio. A maiordificuldade de contato, inclusive da Funai, foi a língua. Quando os índiosrecebiamumaferramenta,eraamaioralegriadomundo.”

Em1961,opaideBenignovirougarimpeiroemandouofilhoparaaescola,emAltamira. Benigno passou a trabalhar com a prelazia da igreja do Xingu.Trabalhou na oficina mecânica da prelazia e aprendeu a projetar filmes no

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pequenocinemaqueospadreshaviammontadonacidade.Passarampelassuasmãosmuitasfitasdeaventuraebangue-bangue—quasecomoosdavidarealqueelesabiaexistirapoucosquilômetrosdali.

EntãoveioaTransamazônicaeogovernoanunciouqueestavacontratando,em caráter urgente, pessoal para as frentes de atração da Funai. Um parentedistantenoórgão,osertanistaJulioReinaldodeMorais,oCamiranga,convidouBenigno para a atividade de auxiliar de enfermagem, que ele também haviaaprendidocomospadres.Benignoachouquehaveriaalgumcursopreparatório,algum treinamento,mas poucas semanas se passaram e ele já estava na selvaatrásdeíndiosisolados.

Na primeira expedição, Benigno foi acompanhado de Camiranga , trêsfuncionáriosdaFunaiequatroíndios,dentreosquaisKamayurá.Apósdezdiasdebarco,entraramacaminharnamataatrásdeíndiosqueseriamumgrupodosKararaô.Emcertoponto,Kamayuráfezummovimentobruscoqueacabouporenterrar sua própria faca, que estava na cintura, em uma das suas pernas.Benignocorreuparaestancarosangueedarinjeçãoparaevitarumahemorragia.MontaramumacampamentoparadescansareBenignofoicaçarcommaisdoisíndios.Viramrastrosnamataevestígiosdecastanhasquehaviamacabadodeserlimpascomumapedra.Namanhãseguinte,umjacu,avedaregião,começouapiarfortepertodeumigarapé.Benignocorreue,aoveroanimalespetadoporumaflechaeaspegadasdosíndiosnalama,resolveramrecuar.

Nodiaseguinte,ogruporetomouacaminhadaatéchegaraumaroçafeitapelos índios. Na mata, estes começaram a cantar. Camiranga reconheceu ocanto, que repetiu em voz alta. Após um momento de silêncio, os índiosapareceram.Foiamúsicaqueaproximoudoisgruposhumanostãoincrivelmentedistintos.

Benignocontou29índios,entreadultos,mulheresecrianças.Todostinhamacabeçaraspada.Umaidosaveiocaminhandoapoiadanumpedaçodepau.Eladissequeeramopovokararaô.Ogrupoestavacomótimasaúde,naavaliaçãodeBenigno.

AFunaimelhoroueampliouapicadaqueligavaaaldeiaatéabeiradorio.Mas o órgão logo deixou esses índios à própria sorte, cortando o canal de

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diálogoquehaviasidoaberto.Benignoeoutrosforamdeslocadosparaatuaremoutraaldeia,dosXikrin.Ofatonovoéqueasfrentesdecolonizaçãoeasobrasda estrada se aproximaram do grupo kararaô. Poucos anos depois, Benignovoltou ao lugar. “Eles tinham adoecido, tinham morrido, no período em queficaramabandonados.Nossotrabalho,danossaequipe,eracontatarealdearosíndios,efoioquefizemos.”

Paraoenfermeiro,aFunaideveriaterlevadootrabalhoadiante,depoisdocontato,masnadarealizaraembenefíciodosíndios.Estes,revoltados,pormuitopouco nãomataramBenigno e seu colegaAfonso quando do reencontro. Porsorte, eles haviam levado muitos brindes, como ferramentas e roupas, quepassaram a distribuir. Houve um racha no grupo dos índios, e a maior partedeclarou não querermais viver ali. Reunido emAltamira, o pessoal da Funaidecidiuporumatransferênciadelesparapertodeoutroigarapé.Nessecaminho,osíndiosfizeramcontatocom“civilizados”quetraziamovírusdagripe.“Nessamudança morreram dois índios. Uma velha e um índio chamado Priquê.Morreram de gripe, pneumonia, algo assim. Eu fui aplicando as injeções.Atéquechegamospertodo[rio]Xingu.Fomosabrindoumaaldeia.Aímorreumaisumíndio.”

Benignoporfim“abriuaaldeia”,ouseja,ajudouamontarmalocas,cultivara roçaecriarumaclareiraeumapistadepousoparaemergências.Paraele,osaldodetrêsmortesfoialto,masaindaassimpequeno,secomparadocomoqueestavaprestesaacontecernamesmaregião.Tratou-se,paraoutropovoindígena,deumaverdadeiracatástrofe,hojequasequeperdidanamemórianacional.

***

Atéoiníciodosanos1970,aFunaitinhapoucasinformaçõessobreogrupodeíndios que depois ficaria conhecido como araweté. Havia registro de que um“gateiro”,comosãochamadosnaregiãooscaçadoresdefelinos,JoséDarwich,encontraraumgrupode índiosdesconhecidosem1969epoucomaisque isso.No plano feito às pressas em 1970 por iniciativa do sertanista Cotrim, doeconomista Edson Ramalho e do cartógrafoValdênio Lopes, hámenção a 39etniasindígenas,masnadasobreosAraweté.2Essesimplesfatodáadimensão

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da ignorância do governomilitar a respeito dos habitantes da imensa área emqueoperoucommáquinas,operáriosebarcosparalevaracaboaconstruçãodaTransamazônicaeoutrasestradasvicinais.

Por volta de agosto de 1974, Benigno emais seis funcionários da Funai,dentre os quais Afonso, deixaram a cidade de Altamira com o objetivo dereforçar os trabalhos que o órgão desenvolvia na região para contatar osAraweté.AFunaihavialocalizadoalgumasaldeiasaraweténaregiãodeIpixunae montado acampamento nas imediações, mas não conseguia estabelecer ocontato. Benigno e equipe resolveram ir por terra, pela trilha aberta pelospróprios índios. Com facões, foram ampliando e melhorando a passagem. Acaminhada durou dois dias. Deram de cara com uma grande roça de banana,batataemamão.Derepente,umaflechafoilançadadamataecaiunomeiodaroça,masaexpediçãoseguiuadiante.Benignocalculatercaminhadoapenas1,5quilômetroquandochegouaumadasaldeias,queestavavazia.Aequipedeixoualiváriospresentesquehavialevado,comomachados,facões,facas,miçangaseespelhos.Montaramumacampamentoem localmaisafastadoedormiram.Nodiaseguinte,umgrupodecercadevinte índiosapareceu,gritandoecantando.Embora fossem guerreiros, estavam sem armas. “Peguei um pacote cheio defacõesetenteidarparaum,masoutroveioepegou.Eaíforamescondendonomatotudoquepegaramdagente,numarapidezdanada.Escondiamevoltavam,assimfoiváriasvezes.”

Benignoe seuscolegasnãoentendiamnadadoqueos índios falavam.OsArawetécomeçaramafalarpertodoouvidodosvisitantes,que,claro,sópodiamestarsurdospornãoentenderoquediziam.UmíndiopegouobraçodeBenignoe o convidou para dar uma volta. Após atravessarem um igarapé, os doistoparamcomoutrogrupo, commulheres e crianças.Elesqueriamsaberoqueeramossinaisdesanguequehaviamencontrado.OpessoaldaFunaihavia,diasantes,matado e charqueado uma anta no local, entãoBenigno tentou imitar oanimal. Os índios deram risada. Mostrando que queriam vê-lo usar suaespingardacalibre22,apontaramparaumaarara.Nahoradotiro,espremeram-se atrás dele, para ver o que ele tanto olhava pela mira. Com os empurrões,Benignoerrouodisparo.Aseguirchamouquatroíndioseoslevouatéumbarco

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daFunai paradaremumpasseiopelo rio.Queriademonstrar queoórgãonãoqueria lhes fazermal.O contato acabou sendomuito positivo, no entender dopessoaldaFunai.Nenhumíndioficoudoente.

BenignosedisseimpressionadocomacapacidadedetrabalhodosAraweté.Alémdas roças“grandes, limpas,onde tinhade tudo”,ouseja,alémdeserem“ótimosagricultores”,os índiosdominavamaartedafiação,usandooalgodãoque elesmesmos plantavam. Com o fio, faziam redes e roupas. Benigno nãopoderiapreverquedesenvolveriaumaintensarelaçãocomessegrupo,vivendocomelenadamenosqueoitoanossucessivos,aprendendosualínguaeouvindodetalhesdetodaasualongahistórianaAmazônia.Masissosóaconteceriamaistarde.Antes,osArawetéenfrentariamamorte.

Logoapósocontato,BenignodissetersugeridoàFunaiqueaproveitasseomomentoe“aldeasse”osAraweté,ouseja, fixasseaetnianumpontoúnico,aser abastecido e acompanhado pela entidade. Mas a ideia não prosperou.Aconteceu exatamente o contrário. Como já havia feito com outras etnias, aFunaiseafastoudepoisdecontatá-los,largandoosíndiosàprópriasorte.

AsconsequênciasdessaaçãodúbiadaFunaierammuitas:expunhaosíndiosàsdoençascom“civilizados”,porémosdeixavasozinhossemosmedicamentosadequados;apresentavaosbonsinstrumentosparaaagricultura,noentantonãoaparecia com novas ferramentas; por fim, criava um clima de enormedesconfiançaentreosíndios,quepoderiamsesentirtraídoscomoabandono.

No caso dos Araweté, a equipe de Benigno foi deslocada para outrosafazeres.Eos índiosficaramsemcontatocomoórgãoporcercadedoisanos.Nesse intervalo, um grupo de índios inimigos dos Araweté, os Parakanã,desencadeouumterrívelataque.Benignoreconstituiuoeventocomo

uma guerra. Os Parakanã já vinham corrido dos Kayapó, dos Xikrin doBacajá. E da colonização, que vinha empurrando eles também. ElesatravessaramoBacajáe foramà roçadosKayapópara tirarmantimentos.Só que os Kayapó se reuniram e mataram uns 27 Parakanã, fora os queforammorrendopor aí.No aperreio, osParakanã acionaramemcimadosAraweté, meteram flecha, foi aquela confusão. Os Araweté tiveram que

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fugir.

Fugindo do ataque dos Parakanã, por volta demaio de 1976 os ArawetéirromperamnabeiradorioXingu.SegundoBenigno,elesabordaramumbarcodevendedoresfluviais,atrásdemantimentos.Osíndiostinhamfome.Anotíciachegou a Altamira e a Funai foi acionada. O sertanista João Evangelista deCarvalho, que havia trabalhado comosParakanã, integrou a equipe enviada àregião.AssimcomoBenigno,CarvalhotambémerafilhodeumseringueirodaAmazônia.Nasceuem1922naregiãodePurus,habitadapor índiospaumarieapurinã.Aos23anos,aceitouumconviteparatrabalharnoSPI.Elesóestudouatéaquartasérieprimária,masconheciabemamataeosrios,tendotrabalhadocomtransportefretadodemercadorias.Enfrentoumalária“desdequenasceu”eváriosperigosnaselva.Desde1970CarvalhofaziapartedasturmasdeatraçãomontadaspelaFunaiapropósitodaaberturadaTransamazônica.3

Quando Carvalho chegou à beira do Xingu, em 1976, havia 48 Araweté.Muitosestavamdoentes,comconjuntivite,maláriaefebre.Osíndiosaprincípioserecusavamareceberasinjeções,chegandoasubirnasárvores,commedodoatendentedeenfermagemAntônioLisboaDutra,quechamavamdeManoVelho. Depois que os índios melhoraram, servidores da Funai deram início a umamarchapelaselva,comoobjetivodelevá-losàregiãodorioIpixuna.Benignonãoestavanaregiãonemparticipoudadecisãodacaminhada,massoubeoqueaFunaiplanejava.Em tese,nãoeramá ideia. “Qual eraonossoprojeto?Voltarcomeles, já tinha lavoura,mandioca, já tinhauma estrutura ali.Oprojeto eraesse.Acheiqueiadarcerto.”

Acaminhadacomeçouemjulhode1976.OsertanistaRaimundoAlves,oRaimundinho,eoauxiliarFranciscodeAssisMonteiroforamosúnicoshomensdaFunaiaacompanharosíndios.Raimundinhofoi“autorizadoeinstruídopelochefedaajudânciadaFunaiemAltamira,SalomãoSantos”,conformeconcluiu,anos depois, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que viveu entre osíndiosporcincoperíodosdiferentesentre1981e1992eentrevistouíndioseopessoal da Funai. Ele calculou que a caminhada foi “de mais oumenos cemquilômetros”.4OsertanistaCarvalhotambémfoiparaoIpixuna,masdebarco.

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Ele chegou mais cedo e ficou aguardando os índios. Benigno estimou que amarchaduroulongosepenososdezessetediasnaselva.Tudodeumuitoerrado.

EmentrevistaqueconcedeuaViveirosdeCastro,Assiscontouque,emborahouvessecasosdegripe,adoençaquemaisatingiuosíndiosfoiaconjuntivite,que havia sido contraída lá atrás, de uma família de “civilizados” na beira doXingu. Essa doença acarretou outro problema. “[Os índios] ficavam para trásporquenãoenxergavammais,a‘dord’olhos’trancavaavistadeles.”5

Assis iapuxandoa fila,abrindoocaminho,eRaimundinhovinhaatrásdoúltimo índio. Os primeiros doentes apareceram logo no segundo dia dacaminhada.Diasdepois,oproblemaseagravou.

Começoutodomundoaadoecer,aítudomundojácomeçouaficarpratrás,pratrás,pratrás,aí tinhavezqueeuaindaconseguiavoltar,chamaroqueestavamaismelhorecontinuavaprafrente.Quandofoinosdezdias,aí jáestavafaltandomuitos.[…]Decincodiasemdiantequenósconseguimosviajar,jáfoificandoametade,metade.

“Ficarpara trás”significavamorrer.Os índiossimplesmentecomeçaramaperecer, caindo como moscas pelo caminho. Alguns chegaram a armar suasredes,deitaramenãomaislevantaram.6

NotrechodaconversatranscritonolivrodeViveirosdeCastro,Assisnadadizsobrefaltadealimentação,atribuindoasmortesàsdoenças.MasBenignosetornouamigodoauxiliar,dequemouviuumaexplicaçãomaisdetalhada.Houveum grave problema de logística, pois a Funai não estocou nem carregoumantimentossuficientesparatodomundo.

Conversei muito com o Assis. […] Eleme disse o seguinte. Não tinhamnada [para comer].Noprimeiro dia, o rancho acabou.Eles passarama sealimentar de nada. E furando a mata para chegar logo. Eles sabiam quechegandolá[noIpixuna],tinhadetudo,tinharoça,davaparafazerfarinha.Masos índios foram jádoentesdabarrancado rio.Elesparavam,oAssisvoltava para pegar. Ele carregava criança no colo, porque a mãe nãoaguentavamais.7

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“Masporqueacabouacomida,foierrodeplanejamento?”,euquissaber.“Foierrodeplanejamentoedetudo.Nãoeraparater tiradoosíndiosdali

[doXingu].Eraparaterabertoumaáreaetertrabalhadocomelesalimesmo.”

AexplicaçãoqueAssisdeuaBenignonãodesmenteanarrativafeitaporeleaViveiros.Épossívelqueumacoisatenhalevadoaoutra:doentes,osíndiosnãoconseguiam mais caçar. Sem comida, cada vez mais fracos, definharam atémorrer.

Muitos anos depois, João Carvalho reconheceu a falta de mantimentos,embora procurasse justificar a necessidade da caminhada. A entrevista foiconcedida em 1992 ao pesquisador Carlos Alberto Ricardo, do CentroEcumênicodeDocumentaçãoeInformação(Cedi).RicardodisseaCarvalhoterouvidodeRaimundinhoquenãohaviarancho.Osertanistaconfirmou:“É,nãotinha nadamesmo”. Porém, ele defendeu a decisão de empreender a marcha,poisnabeiradorioelesestavam“sujeitosaoutrascontaminações,ejáqueelestinhamsaradodaquela,eramaisviávellevá-los”.Julgaramquenamatahaveria“muitojabuti”paracomer.

Embora sejanecessário frisarqueasdecisõesnunca foram individuais,deCarvalho,deRaimundinhooudeAssis,maspercorreramaburocraciadaFunaieforamapoiadaspeloseurepresentantenaregião,asexplicaçõesdaentidadesãoinsustentáveis.Alémdeterconfiadodemaisemumasupostaabundânciadecaçanamata,aFunaideveriaterconsideradoqueumhomemdoenteeenfraquecido,sejaíndio,seja“civilizado”,temdificuldadestremendasparaextrairdanaturezao seu sustento. Ao jogar com a sorte, jogou com a vida dos índios. Se estescorriam risco demorrer de fome na beira doXingu, a respostamais lógica eimediata seria alimentá-los e criar condições para que desenvolvessem suasroças. Caso fosse indispensável a transferência, ela só deveria ter sidodesencadeada após um amplo planejamento que garantisse comida emedicamentossuficientesaolongodetodaaretirada.

Carvalho estava no posto da Funai em Ipixuna, ao qual chegou de barco,aguardandoachegadadosíndios.Elesapareceramláemagosto.Eraumgrupo

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“de índios doentes, arrasados com conjuntivite até onde não podia mais”. Jáchegaramdizendoquemuitosoutrosficarampelocaminhoeaguardavamajudaurgente. Carvalho ficou num dilema: ou ajudava os que haviam chegado oucorriaparaverosoutros.Eletevequeenfrentarsozinhoessecaos.Nomomentodessa operação de tamanho risco, o atendente de enfermagem que a Funaimantinha no local simplesmente estava de folga. Carvalho optou por ficar naaldeia,ondenadamenosque120pessoasaguardavamatendimento.8

Depois que a situaçãomelhorou— o que não impediu novasmortes e acegueiradeumdosolhosdetrêsíndias—,sóporvoltadenovembroCarvalhodecidiurefazerocaminhodosArawetéparasaberoquehaviaacontecidocomosqueficaramparatrás.Carvalhomantinhaumdiáriopessoal.Anosdepois,omaço de anotações foi entregue ao Centro Ecumênico de Documentação eInformação (Cedi), embrião do Instituto Socioambiental (ISA ), que no futuroajudariaademarcaraterraindígenaaraweté.OISAescaneouearquivouodiáriodeCarvalho.São152páginasmanuscritasemqueeledescrevetodososeventosquepresenciouequejulgoudealguminteresseentremaiode1976enovembrode1977.Aleituradescortinaumcenáriodehorrorquelembraumfilme—paradesgraçadosAraweté,incrivelmenteverdadeiro.

A ideia de refazer a trilha surgiu por insistência de um velho Araweté,Meanô.JáhaviamsepassadotrêsmesesdesdeachegadadosíndiosaopostodeIpixunaeopessoaldaFunaicontinuavalidandocomváriosproblemasdesaúdeentre os índios, como malária e febre. Meanô dizia estar passando fome e,mesmo“aleijadodoquadrildireito”,queriavoltarparaumacampamentoondeteriadeixadováriosobjetospessoais.Carvalhoporfimconcordouemfazerumaexpedição.Emnovembrode1976,osertanistareuniuMeanô,o índioToudi,aíndia Apiter e dois servidores da Funai, Assis e o ex-gateiro José Darwich,aquelemesmoquehaviaencontradoosArawetéem1969—aFunaidepoisocontratoucomomateiro.Partiriamnodia5.Nofinaldatarde,duasíndiaseumacriança de cinco anos vieram do posto para ter com Carvalho. Queriam irtambém,“paratrazermaridos,poisambassãoviúvas”.

Depoisdealgunsdiasdecaminhada,ogrupoconfioudemaisnapalavradomateiro e acabou se perdendo. A comida dava para quatro dias, e eles já

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caminhavam havia uma semana.No décimo dia, encontraram o acampamentoondeMeanôhaviadeixadosuascoisas,“umamaladeenfeitesdovelhoeoutrosobjetosdele edas filhas”.Oscupins jáhaviamdevoradoquase tudo.Ogrupodecidiuvoltar,masantespassouumdiadescansando.Mataramumaqueixadaemoquearamacarneparaaviagemdevolta.

A partir daí, Carvalho começou a encontrar os vestígios da tragédia quedesabousobreosAraweté.PrimeirovisualizouocrâniodeumacriançaqueosíndiosdisseramserdomeninoAdjuruiatú,queduranteacaminhadamorreraetivera o corpo comido por uma onça. Logo adiante viu um corpo amarrado apalhas de babaçu emais à frente outro esqueleto. Seguindo amesma direção,Carvalhoviuoutraossadaemaisdoiscorposcobertoscomaspalhasdetapirisque os índios haviam montado. Ele tentou ver uma explicação para algunscorposestaremcobertoseoutrosnão.“Pelojeito,quandoocamaradamorria,osoutros derrubavam o tapiri sobre o corpo e se mandavam. Os que ficavamdesenterrados,achoqueficavamsempoderandar,faziamumfogoedeixavamjuntoaoigarapéedepoisvinhamaperecer,talvezdefome.”

Carvalhochegouàprimeiracontagemdecorpos.“Paraencurtar,passamoshoje por dezesseis cadáveres, isto é esqueletos, uns cobertos, a maioriadescobertos. Acho que quandomorriam não tinham nem o que urubu comer,poisosesqueletosnãoforamnempuxados[mexidos].”

Nodiaseguinte,18denovembro,osachadosmacabroscontinuaram.

Hojedesdecedocomeçamosaencontrarossadaseoutroscobertoscomaspalhasdotapiri,depoisemumatapiriencontramosduasredesarmadas,eoscorpospróximos.Osíndiosnosinformaramqueeramduasmulheres.Maisadiante, dentrodeumassaizal uma rede armada, a informaçãoque eradeuma mocinha e cujo esqueleto encontrava-se nas proximidades. Maisesqueletos e sepulturas, perfazendo um total hoje na beira do caminho dedez homens e cincomulheres.As crianças continuam em segundo,mas aideiaque tenhoéqueonúmeroébemmaiorquedosadultos.Hoje fiqueiimensamente entristecido com o quadro que a cada momento vamosdescobrindo.

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Nos dias seguintes, Carvalho achou mais corpos de crianças, mulheres ehomens. Em algum momento, ele compreendeu que índios morreram já bempróximosdopostodaFunai, a umacaminhada estimada emdezdiasde ida evolta.Escreveuqueemagostoumaíndia,Tapaiahí,defatohaviainsistidoparaque ele fosse ajudar seu pai, que segundo ela estava perto do posto.Contraditoriamente, Carvalho escreveu que não conseguia sair do posto, mastambémsugeriuquenãoacreditavanoquea índiadizia.Concluiuquede fatoalgunsíndiosquemorrerammaispertodopostopoderiamtersidosalvos.

Emseudiário,Carvalhoanotouoimpressionantenúmerototaldeesqueletosque encontrou nomeio do caminho: 41, incluindo o crânio da indiazinha.AoregressaraopostodaFunai,pareciaassombradopeloqueviu.Eleescreveu:

Agoraestoumesentindo satisfeitoporquenão temosproblemasde saúde.Entretanto, quando vejo todos os índios alegres e satisfeitos brincandoconosco,ficopensativo,porquedomesmojeitopoderiamestarosdonosdosesqueletos,setivéssemossabidodoocorridoetivéssemossocorrido.

OAno-NovochegouehouvecomemoraçãonopostodaFunai.Navirada,Carvalhoeseupessoalderam“alguns tirosdeespingarda”paraoaltoeforamdormiràsduasdamadrugada.Nodia2dejaneirode1977,Carvalhoescreveu,emtommelancólico:

Fuiàaldeia,masemviagemencontreiquasetodososíndios.Elessouberamquecorteialgumasflechasetodosqueriam.Mascomonãochegamavinte,não pude satisfazer a todos. Mas prometi de ir cortar outras. Os índiosqueriamsaberquemplantouemedisseramqueosArawetéjáseacabaramequeorestanteserviudecomerparaosurubus(Iribú-miú).Paranós,éumatristezaouvirelesfalaremassim.Masaculpanãoéminha.

Há uma controvérsia sobre o número correto de índios que pereceram nacaminhada.Issoseexplicaempartepeloseguinte:depoisqueoprimeirogrupodeixouamargemdoXingu,umsegundogrupodeArawetétambémsedeslocouparaopostodaFunainoAlto Ipixuna.Assim,nãohácerteza sobreonúmerototal de índios que empreenderam a marcha. Carvalho diz que encontrou 41

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esqueletos,masissonãoquerdizerqueessessejamtodososmortos.Oprópriosertanistamencionou48,naentrevistaaoCedi.Contudo,muitosoutroscorposdevem ter sido levados por animais, caído em igarapés ou simplesmente nãoforamvistosporeleemsuacurtaecomplicadaexpedição.

Após ouvir os índios sobreviventes e consultar as fontes humanas edocumentaisdoepisódio,ViveirosdeCastroapontouumnúmerode66mortosnamarcha. Somando osmortos por doenças àmargemdoXingu e osmortosdepois do final da marcha, como consequência dela, o número de mortosapontadopeloantropólogonãoéinferiora73.Issorepresentounadamenosque36,5%da população araweté na época, estimada tambémpor ele emduzentaspessoas.Ouseja,umterçodeumaetniainteirapereceunumintervalodepoucosmeses. Se o mesmo ocorresse numa cidade como São Paulo, por exemplo, oefeito seria similar à detonação de uma bomba nuclear, com a perda de 4,2milhõesdepessoas.9

***

Seosdocumentos,depoimentoserelatóriosdopessoaldaFunainaépocajánãofossem suficientes para confirmar o que se passou em julho de 1976, há amemóriadosíndiosqueviveramatragédia.

EncontreiumgrupodeseisArawetéemfevereirode2014nasededaFunaina cidade de Altamira, no Pará, à beira do Xingu. O prédio fica no terrenocomumdo campus daUniversidadeFederal doPará, compequenas e simplesconstruções de um pavimento. Na parede da frente, alguém pintou ummuralcontrário à construção da usina hidrelétrica Belo Monte, a principal obra naregiãodosgovernosLulaeDilmaRousseff.Nomeiododesenho,umamulhercontorce o rosto àmaneira do quadroOgrito , de EdvardMunch, e faz umaindagação:“Eagora,oqueserádenósedorioXingu?”.

OsAraweté tinhamsaídode suaaldeiadebarcoparavir à cidadepedir àFunai anzóis, gêneros alimentícios e qualquer outra ajuda. Eles armaram suasredesnavarandadoprédioealijáhaviamdormidoporcinconoites.Quandomeaproximei, uma jovemamamentava seubebê, ambosaoque tudo indicavaemótimo estado de saúde, assim como os outros quatro homens. Receberam-me

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com sorrisos e certa curiosidade sobre um “civilizado” aparecer falando arespeitodefatosdopassadoqueelesconheciamtãobem,poissempreosouviamdos mais velhos. Porém um dos quatro homens, que os índios disseram sechamarIrabi’tô,10nãotinhaapenasouvido,tambémhaviacaminhado.Elenãosoubedizerquandonasceu,masaparentavasessentaanos,oqueodeixaria,naépoca damarcha, commais oumenos dezoito. Irabi’tô não entende nem falaportuguês, com exceção de poucas palavras. Ele contou o episódio em sualíngua,sendotraduzidopeloArawetéquedissesechamarTorotirô.

Quando indaguei sobre o número de mortos na caminhada, Irabi’tôrespondeu,estendendoosbraçosparacima:

“Ih,muito,muiiiito.”“Eeleviuosíndiosmorrerem?”,euquissaber.“Amulherdelemorreu”,respondeuTorotirô.“Ecomoelasechamava?”“Torotihi.”Irabi’tô contou que o pessoal da Funai deu medicação aos índios, mas

“mesmoassimmorreumuito”.Parailustraroqueaconteceu,oíndiofingiaumatossecomprida.PergunteiquemeraofuncionáriodaFunaiquesocorreucomosremédios.Irabi’tôrespondeu,masTorotirônãosoubetraduzirdireito.“Manoel,Marroél,seilá,nãoentendi”,disseTorotirô.

Irabi’tôpercebeuaconfusãodoamigoecorrigiu:“Manové!”.Também fiquei em dúvida, pois não tinha ouvido falar de nenhum

funcionário da Funai que se chamasse Manoel na região. Essa suposta falhapoderiapôremdúvidaahistóriadeIrabi’tô.

Já em Brasília, quando voltei a consultar os documentos, percebi que naépoca os índios chamavam exatamente de Mano Velho , ou Manoveio , oatendentedeenfermagemAntônioLisboaDutra,quetrabalhoucomosíndiosnoXingu e os socorreu em Ipixuna. Assim, a memória de Irabi’tô se mostrouexcelentetambémnessepormenor.

Indaguei a Irabi’tô sobre o motivo da morte de sua mulher. Torotirôtraduziu:

“Foinacaminhada.Morreudegripe,catarro.”

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Equemmaismorreu?“Morrerammaisdevintepelocaminho.”Quandoaconversaacabou,fiqueisabendoqueumcasalparakanãestavaem

umaredeamenosdecincometrosdosArawetéeouviratudo.Ohomementãose levantou, veio em minha direção e confirmou a história do ataque aosAraweté,oqueos levouàbeiradoXingue,de lá,para a fatídica caminhada.Outroraferrenhosinimigos,hojeParakanãeArawetéconvivempacificamenteechegamasorrirquandoselembramdasviolentasbrigasdopassado.

Os Araweté, segundo Benigno, eram índios pacíficos em relação aos“civilizados”enãoreagiramcomviolênciaaocontato.Mashaviaoutraetnianaregião que não era assim. Entre os quilômetros 70 e 110 da rodoviaTransamazônica,nomunicípiodeAltamira,criou-seumfocodegrandeatençãodacúpulamilitardaFunai.Ossertanistassabiamquehaviamuitasdécadasumgrupo de índios vivia naquela região mantendo contatos esporádicos com“civilizados”.Os primeiros registros datavam de 1853.Na década seguinte, ogrupofoiestimadoem343adultos.

Os índios conhecidos como Arara tinham estatura de média para alta—cercade1,75metro,emmédia—,andavamnuscompinturascorporaisàbasede jenipapo e urucum e eram fortes emorenos claros.Usavam arco e flecha,plantavamalgodão,batata,banana,mandioca,mamão,abacaxiepésdepimenta,caçavam,pescavameviviamemhabitaçõescomparedesdepalha,forradascomcascasdejatobá.Ascasaspodiamatingir25metrosdecomprimentopornovedelargura. Também gostavam de fazer e tocar flautas de madeira. 11 Elescostumavamfurarasorelhas,assimcomooseptonasal,porondepassavamumavaretademadeira.Oscabelosdoshomenserammantidoscurtos,emformadecuia. Usavam braçadeiras de algodão nos braços, e nos colares costumavamexibirdentesdemacacos.12

O relacionamento entre Arara e “civilizados” foi marcado por atos deviolência seguidos por períodos de paz. Em 1942, os índios mantinham umrelacionamentoamigávelcomummoradorchamadoAntônioCassiano.Porém,depois que extratores de óleo de copaíba atacaram e mataram dois deles, os

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ArararevidarammatandoCassiano.Nosanos1950,osíndiosseinstalaramnascabeceiras do rio Jaraucu. Em 1961, feriram o cão de ummorador local. Emrepresália,oprefeitodeAltamiradeterminouoenviodeumaforçapolicialparadarcaçaaosíndios.Apolíciaencontroueapreendeuobjetosutilizadosporeles,masnãoháregistrooficialdemortes.13

Em1964,umnovoencontrodeixou“mortoseferidosemambasaspartes”,segundoumregistro feitopelaFunai,quenão forneceosnúmerosenvolvidos.Noanoseguinte,oentãoSPIorganizouumaexpediçãoparalocalizarosKararaô,amesmaqueresultarianamortedosíndiosapósumagrandeepidemia.Ogrupoera formado por diversos funcionários do SPI , dentre os quais o sertanistaAfonso Alves da Cruz. Perto do rio Penetecau, a equipe encontrou diversasmalocasdeíndiosarara,masnãoconseguiuocontato.Em1967,aprefeituradeAltamira abria apicadadeumaestradaquandodenovoosArara apareceram.Umdosfuncionáriosfoiflechadoemorto.Afonsofoidestacadopararecolherocorpoeverificaras razõesdoconflito.NovamenteoSPI sóencontroumalocasabandonadas.Em1969,deu-seoconfrontomaisgravedequese tinhanotícia.Gateiros “atacaram e mataram alguns índios, além de deixarem açúcarenvenenado”,segundoumrelatóriodeAfonso.OutrorelatóriodaFunaiémaisespecífico,mencionandooassassinatodedozeíndiosararaatirosdeespingarda.14

Em 1970, com a Transamazônica, a Funai estabeleceu como uma dasprioridadeslocalizare“pacificar”osArara.Anosdepois,emdocumentooficial,aentidadeapontouqueaestradapassoua“aproximadamentetrêsquilômetrosdaaldeiaarara”.15Comisso,osíndiosabandonaramolocal.AFunaiconcluiuqueasituaçãoficouaindamaisdramáticaparaosíndioscomachegadadoInstitutoNacionaldeColonizaçãoeReformaAgrária(Incra)àregião,porvoltade1973,poisa“distribuiçãode lotes[aoscolonos]feitapeloIncraatingiumuitasroçasdosíndios,inclusiveváriosbananais,comissoobrigandoosíndiosairmaisparaointeriordamataelevarumavidaaindamaisnômade”.16

Entre1970e1973,AfonsoesuaequipemantiveramvárioscontatosfugazescomosArara,aocabodosquaisosíndiossempreabandonavamsuasmalocasefugiam para o mato. Com ajuda de um intérprete trazido do Xingu, o índio

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Anunu,Afonsoentendeuqueosíndiosdiziamparatodosirememboraedeixá-losempaz.Emsetembrode1973,osíndiosflecharamtrês“civilizados”,umdosquaismorreu.Aoolharaspontasdasflechas,nohospital,Afonsoconcluiuqueeramflechasarara.17

Aomesmo tempo que a estrada era aberta namata, a ditadura procuravaencontraroportunidadesdenegócioparaatrair empresasemãodeobraparaaregiãodeinfluênciadaTransamazônica.Emmeadosdosanos1970,osmilitaresenviaram para a região equipes de prospecção da Companhia de Pesquisa deRecursosMinerais (CPRM) , criada por eles em agosto de 1969 e vinculada aoMinistériodasMinaseEnergia,comoobjetivode“estimularodescobrimentoeintensificaroaproveitamentodosrecursosmineraisehídricosdoBrasil”,alémde“suplementarainiciativaprivada”naáreadepesquisas.18PertodeAltamira,aCPRMpesquisavaaincidênciademineraisdesulfeto,masnãohaviafeitoumacomunicação formalàFunai sobreas suasatividades.19A empresa dizia nãooperar em área demarcada, conforme depois a socorreu o comando da Funai,porém estava em uma área de domínio dosArara, que resistiam aos contatoscoma“civilização”.

Em fevereiro de 1976, amais oumenos dezoito quilômetros deAltamira,umgrupodeAraraatacouematoua flechadas três funcionáriosdaCPRM . 20José Ribamar Pereira, José Ubiraci do Egito e Benedito Ferreira da Silvatrabalhavamemumacampamentomontadopelaempresaoitoquilômetrosaosuldarodovia,notrechoentreAltamiraeItaituba.21OgeneralIsmarthalegouqueoataqueocorreu“emregiãonãoindígena”.22Comessasafirmações,ochefedaCotz desinformava a opinião pública. Como vimos, depois a própria Funaideixouclaroqueotraçadodarodoviapassouaapenastrêsquilômetrosdeumadas aldeias dosArara.Odiretor doParque doXingu,OlympioSerra, por suavez,culpouaCPRM : “Essas incursões sópodemser feitascomautorizaçãodaFunai.Normalmente,quandoháautorização,umsertanistaacompanhaogrupo”.23

O fato é que a Funai ficou contra a parede. Segundo disse à imprensa osertanista Apoena Meireles, que decerto aqui falou apenas pela ótica dos“civilizados”, aquele “foi o primeiro incidente ocorrido na região da

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Transamazônica”.24A Funai acelerou as tentativas demanter contato com os Arara. Benigno

Marques foi retiradodeondeestava,naáreadosAsurini,paracomporanovaequipemontadapelosertanistaAfonso.

Era muita pressão porque eles [do governo] estavam assentando acolonização. Tinha estradas vicinais que para uma aldeia não dava dez,quinze quilômetros. Naquele tempo foi um corre-corre. O cara pegava afazenda,mediaosquatropontos ederrubava todaamata, fazia apistadepouso e tudo. Havia uma fazenda do dr. Francisco que ficava a dezquilômetrosdaaldeia.Apressãoeraque“tinhaquealdearos índios, tinhaquefazerocontato”.25

AFunaimontouumpostode atração comequipamentode rádio, pista depouso e mantimentos. Afonso, Benigno e sua turma abriram uma picada,montaram um tapiri e deixaram brindes para os índios, iniciando o namoro.Comonãodeucerto,ecom“maispressãodaFunai”,depoisdealgunsdiaselesdecidiram caminhar até a aldeia. Quando lá chegaram, tudo havia sidoabandonadopelosíndiosumpoucoantes.Afonsoentrounumamalocapequenae descobriu um túmulo.Eles decidiram cavá-lo.Acharamo esqueleto de umacriança enrolado numa rede. No teto do barraco, Benigno viu um cesto quepareciaguardarobjetoseopegou.Aoabri-lo,levouumsusto.Dentrohaviatrêscrânioshumanos.Umestavapintadoecomumpedaçodemadeiraenfiadonaboca.Nacavidadedosolhos,osíndioshaviamaplicadomeldeabelha.Osíndiosusavamoscrânioscomopartedeumritual,concluiuBenigno.

A equipe da Funai logo entendeu que as cabeças pertenciam aosfuncionários da CPRM . O governo havia ocultado o detalhe, ao informar àimprensa sobre omassacre, de que os três corpos encontrados logo depois doataquehaviamsidodecapitados.Eestavamsemospéstambém.Masopessoalda Funai sabia disso.Assustada com a descoberta, a equipe resolveu que nãodormiria na aldeia e seguiu para outro acampamento que a entidade já haviamontadonasimediações.Levaramjuntooscrânios.

Nodia seguinte, a equipe, agoracomdozehomens, chegouaoutra aldeia

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arara,estahabitada.Dividiram-seemdoisgrupos,umcomAfonso,outrocomBenigno,ecombinaramqueemtrintaminutosambosentrariamjuntos,cadaumporumladodiferentedaaldeia.Aestratégiaerapegarosíndiosdesprevenidos,paraquenãoreagissem.Benignoentroueviu“muitasmulheres”eumacriançacarregando ummacaco. Em seguida começou uma chuva de flechas.Benignoachouquedessavez“nãoiadar”.Dooutrolado,ogrupodeAfonsotambémfoirecebidoaflechadas.TodosdaFunaicorreramparaseesconderatrásdeárvoresderrubadas.Oataquesóparouquandoumintegrantedaequipeempunhouumaespingardacalibre22edeutirosparaoar.

Os índios se espalharam pela mata para cercar o grupo de Benigno,impedindo-odefugirpelatrilha.Poucodepois,ogrupodeAfonsoconseguiudara volta e se unir a ele. Agora todos procuravam um jeito de retroceder semvítimas.Naespera,beberamáguaecomerampedaçosdeumagoiabada.Tinhamduas opções: regressar pela mesma picada da vinda ou tentar um caminhodiverso,queacarretariamuitosquilômetrosamaisdecaminhadaatéabasedaFunai. A primeira saída foi a escolhida pela maioria. O experiente servidorMilton Lucas do Nascimento, que havia trabalhado com Benigno junto aosKararaô,seofereceuparapuxarafila.

Natrilhahaviaumespessoamontadodecipós.Paraatravessá-lo,eraprecisose abaixar e às vezes engatinhar.Mas o pessoal não sabia que, do outro lado,haviaquatroíndiosàsuaesperacomarcoseflechas,queatéhaviamlimpadoomatoqueatrapalhavaavisãodasaídadoscipós.Quandoogruposaiu,maisumaonda de flechas. Benigno se arrastou até um toco de madeira. Depois, elescontaram27flechaspelochão.

MiltonLucastevemenossorte.Atingidoporumaflechanopeito,àdireita,elecaiucomasmãosnacabeça.Umíndiooviudesabare seaproximoucomuma borduna namão, para umgolpe que seria fatal.Benigno percebeu que ocolega ia morrer e reagiu. “Saquei o revólver e dei dois tiros para cima. FoiquandooíndiocorreuedeixouoMilton.”

Com mais tiros para cima, os índios recuaram. A flecha que atingiu oservidor era serrilhada, feita de osso demacaco.QuandoBenigno a arrancou,Milton desmaiou de dor.Benigno eAfonso chegaram a procurar uma vela na

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mochilaparaacenderaoladodocorpo,pensandoqueelehaviamorrido.Maselemexeuospésecomeçouaarfar.Benignofezumcurativoeimprovisouataduras.A equipe decidiu que só retomaria a caminhada à noite, o que dificultaria umnovo ataque dos índios. Quando o sol se pôs, o grupo partiu, comMilton aprincípiocaminhando,amparadopeloscolegas,edepoiscarregadoemumarede.Durante toda a noite, Benigno ouviu ao longe gritos dos índios que osacompanhavamescondidosnamata.Acaminhadaduroucercadeumdiaemeio.Milton foi socorrido no hospital de Altamira, mas o atendimento, segundoBenigno,cometeuumerro.“TinhamqueterabertoopeitodoMiltonparatirartodo aquele sangue que estava no pulmão, mas não fizeram. Ele ficou umapessoa inutilizada, doente, para o resto da vida.” Milton morreu quatro anosdepois.ParaBenigno,foiemconsequênciadoferimentomaltratado.

O ataque que feriuMilton ocorreu em setembro de 1977.O acampamento daFunaisofreumaisdoisnosmesesseguintes,segundoBenigno.Emexpediente,osertanista Afonso reconheceu a persistência dos índios: “Os índios arara sãomuito violentos e não aceitam a paz facilmente”. 26 A explicação para abelicosidadedelesestavanasprofundastransformaçõesquearegiãocomeçaraaviver com a Transamazônica e com a chegada de colonos transferidos peladitadura, invasores de terras e gateiros.Ao contrário do que a Funai divulgoupela imprensa na época, osArara não eram um grupo “nômade”.27Benignotestemunhouque

osAraratinhamsofridodemais.ATransamazônicaentroubemnomeiodaaldeia deles. Dividiu um grupo nomeio, cada um ficou para um lado daestrada.Emáquinaetratorcomendo.EaFunaidelinhadefrenteemtudo.Na beira do rio, um caramatou dois índios.A Funai foi lá, encontrou osossos. Em75, encontramosmais de vinte cápsulas no chão depois de umataquequeosíndiossofreram.Tudoissofoiseacumulando.

A invasãonodomínio indígena tambémaparecedocumentadaporAfonsoemrelatórioqueseguiuparaocomandodaFunai,emBrasília.Aoinvestigaramorte de um gateiro pelosArara, o sertanista encontrou “os ossos, faltando a

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cabeça”, além de pedaços de flechas e “trincheiras” criadas pelos índios. Eletambéminformouque“prosseguindoaviagem,encontramosestradadegateirosindicando que estavam penetrando na área dos índios, [e] mais adiante umacampamentoadoisquilômetrosdaestradadosíndios”.28

Paracomplicarasituação,aditadura,pormeiodoIncra,haviacedidoterraspúblicaseassinadoumcontratocomumacolonizadorasediadaemPortoAlegre,a Cooperativa Tritícola Serrana Ltda. (Cotrijuí), para assentar famílias decolonos num prazo máximo de cinco anos numa área de 396 mil hectaresabrangidospelaTransamazônica.ACotrijuíanunciouqueparaazona ruraldeAltamirairiamcercade2milfamílias.OgeneralIsmarthcorreuparainformarao governo que uma parte das terras incidia sobre o território dos Arara econseguiu uma interdição provisória dos lotes, até que os índios fossem“pacificados”.Mesesapósainterdição,aCotrijuídenuncioufrequentesinvasõesnasterrasloteadasparaseuuso.Aempresaalegouqueissoprejudicavatantoaempresaquantoosíndios,queviamseuterritórioservilipendiado.Até1978,aCotrijuílocalizou93famíliasinvasorasnumaáreade12milhectares.29

Assim, a pressão sobre a Funai e os Arara só aumentou. No primeirosemestrede1979,a frenteno local resolveu investirmaisumaveznaatração,abrindopicadasemdireçãoàsaldeias.Nanovainvestidaatuaram,dentreoutros,AfonsoeosertanistaCarvalho,omesmoquehaviadescobertoosesqueletosdosíndiosaraweté.Elescriaramumnovoacampamentoa trêshorasdeviagemdabasejáerguidapelaFunainoquilômetro143daTransamazônica,acercadeumahoradecaminhadaderoçadosdosAraraeaoitoquilômetrosdeumaaldeia.Alio pessoal da Funai fez seu próprio roçado e também passou a depositar, emtapiris,osbrindesparaosíndios,emumanovatentativadenamoro.

Em junho,Afonso eCarvalho estavam commais sete pessoas acampadasperto do roçado dosArara. Poucas semanas antes, haviamdeixado num tapiripanelas, facõesemachados.Quandocaminharamatéo localpara substituirosbrindes, começouoataque. “Uma flechapegounaminhaclavículaesquerdaevarou nas costas, A outra pegou nas costelas do lado direito, entrou e ficou.Outraflechapassouqueimandomeuolho,eumeabaixeinahora.Alieupenseiqueiamorrer.”30

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Carvalhotambémfoiatingido.Osdoissertanistascaíram.Nochão,Afonsoviu que os Arara vinham correndo com bordunas para matá-los a cacetadas.Nesseinstante,umíndioquehaviasidotrazidopelaFunaidoParquedoXingupara ajudar na atração empunhou uma espingarda calibre 20 e disparou trêsvezes para o alto, o que levou os Arara a recuar. Outro servidor da Funai,AntônioFerreiraBarbosa,tambémficouferido,massemgravidade.31

Afonso e Carvalho foram carregados pelos companheiros até oacampamento,queficavaacercadeduzentosmetrosdotapiri.Afonsoquebrouum pedaço das flechas, mas não conseguiu arrancá-las. Uma impressionantefotografiadaépocaomostraamparadoporfuncionáriosdaFunai,caminhandocomospedaçosdasduasflechasnocorpocomcercadevintecentímetroscadaum. Por rádio, o órgão indigenista foi acionado e enviou um helicóptero. Osferidos foram levados atéAltamira e de lá seguiram num avião pequeno paraBelém.Os índios permaneceram nas proximidades do acampamento,mas nãoatacaram.Namanhãseguinte,todoopessoaldaFunaifoiretiradoporterra.32

Nohospital,otóraxdeAfonsofoiabertoparaaretiradadasduaspontasdeflecha. Ele ficoumais de um ano afastado do trabalho.Mais tarde, chegou aconhecero índioque lhe acertara a flechanopeito, chamadoTimim. “ElemedissequepensavaqueagentedaFunaiéqueiamatareles,por issoatacaram.Dissequenãosabiaoquenósqueríamoscomeles,nãoentendiamoqueagenteestavafazendoali.”Masessaconversasóocorreuanosdepois,quandoosAraraporfimaceitaramocontatodaFunai.Nãosemoutroscadáveres,comoveremosadiante.

Os Arara permaneceram, com suas trincheiras, flechas e bordunas, como aúltimaetniaaresistiràpassagemdaTransamazônica.Outrosgruposindígenas,porém,sofreramimpactocomaobramesmosemesboçarresistência.DepoisdeItaituba, no Pará, onde viviam os Arara, as obras de abertura da rodoviaprosseguiramaoestepor1094quilômetros,entrandopeloestadodoAmazonas,até a cidade de Humaitá. Esse trecho foi inaugurado pelo general GarrastazuMédici em 30 de janeiro de 1974. O trecho anterior, até Itaituba, havia sidoinauguradoporeleemsetembrode1972.Nãoerauma rodoviaasfaltada,mas

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sim “uma estrada de terra de terceira categoria, com vinte centímetros decascalho, […] centenas de pontes de madeira”. As empreiteiras tiveram quefazer tantosaterrosemalgunstrechosqueumjornalistaassociouapaisagema“umtobogã”.33

Amaisde120quilômetrosdacidadedeHumaitá,noAmazonas,epróximosao traçado da Transamazônica, viviam pelo menos quatro grupos indígenas,todos ligados àmesma denominação de povo kawahiva. Eram três grupos deíndiostenharimeumgrupodeíndiosjiahui.OsTenharimviviamemtrêsaldeiasdiferentes,amaiorpertodorioMarmelos.

No passado, os Kawahiva foram também conhecidos como Parintintim,“pacificados” na década de 1920 pelo etnólogo alemãoCurtNimuendajú. Eleescreveu que a primeira notícia documentada de um ataque dos Parintintimdatavade1852,quandoumgrupomatou trêsextratoresdeóleodecopaíba.OataqueocorreujustamentenorioMarmelos,regiãoemqueviviamosTenharimquandodapassagemdaTransamazônica.Masaviolência,noséculoXIX , nãopartia apenas dos índios, como frisou Nimuendajú. Os “civilizados”desencadearamumasangrentarepresália.

Uma guerrilha cruel e traiçoeira começou e se arrastou durante longosdecênios.Nas suas correrias anuais os Parintintim derramavamo terror, amorte,osaqueeo incêndionomeiodoscivilizados,edasrepresáliasqueestes costumavam tomar nenhuma melhora resultou, pois nelas oscivilizados,asmaisdasvezes,secomportarampiorqueosseusadversáriosselvagens. Bradou-se por medidas enérgicas: exigiu-se o extermínio datribo, e osmoradores do sertão contribuíramomais que foi possível paraeste fim, fazendo fogo sobre qualquer Parintintim, onde quer que ele seapresentasse.34

Nimuendajúconseguiua“pacificação”noanode1922.Maistardeteriaditoa umpesquisador que se arrependeu, pois em seguida osParintintim sofreramuma grave desagregação cultural e quase foram extintos. O etnólogo teriaafirmado:“Nuncamais,disse,ajudareia‘pacificar’umatribo”.35

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Em 1950, os Tenharim que viviam às margens do rio Marmelos foramlocalizadosecontatadosporseringalistas,dentreosquaisDelfimBentodaSilva,queresolveuvivercomos índios, tendocasadoeconstituídofamíliacomumaíndia.Delfimpassouafazerosíndios“trabalharparaele,coletandocastanha-do-pará,produzindofarinhademandiocaesorva”,alémdeintermediarocomérciode “produção indígena”. Quando os tratores da Transamazônica chegaram àregião, por volta de 1971, um funcionário local da Funai conseguiu, “com acolaboração de Delfim”, “a remoção dos Tenharim para a beira da estrada”.Alémdisso, o órgão contatououtrogrupo tenharim, quevivia numaaldeia nalocalidadedeSãoJosé,eabriuumcampodepouso,fazendocomqueocontatodosTenharimcom“civilizados”se tornassefrequente.36Idênticoprocessodeaproximaçãocom“civilizados”naépocadaobraviveuaetniajiahui.

Queaobratenhacruzadoterritóriotenharimnãohádúvida.Masoquenãose divulgou à época, e que só veio à tona muitos anos depois, por meio dedepoimentos recolhidos por antropólogos e pelo Ministério Público Federal(MPF) no Amazonas, foi que a obra passou por cima de casas, roças e até“algumas sepulturas” dos Tenharim. Os próprios índios foram arregimentadospara trabalhar com “machados e terçados pequenos” no desmatamento e naaberturadeumapistadepouso,“quefoicompactadamanualmente”.Pelomenosummenino tenharim, JoãoBosco, de “dez ou doze anos na época”, trabalhoupara preparar a alimentação das turmas. Não houve remuneração; no final, ochefedaParanapanema—aempresaresponsávelpelaTransamazônica,queaomesmo tempo iria obter autorização do governo para desenvolver projetos deextraçãomineralnaregião—quecoordenavaaturmadosíndiosentregou-lhesapenas“umacaixacheiadebonecasparaascrianças”.MacedoTenharimdisseaoMPFque“trabalhamostipoescravidão”.AíndiaMariaKururu’ilembrouqueumaterro feitoparaaestradaquase fez secarum trechodo rioMarmelos,eaáguaficousujadelamaeóleo.37

Issonãofoitudo:opiorveiocomasdoenças.Em1974,umaepidemiadesarampo atingiu os índios. Maria Kururu’i afirmou ao MPF que viu umrepresentante da empreiteira chamar um gerente da firma perto da aldeiaMarmelos e lhe dizer que “os índios estão morrendo tudo, tem que avisar o

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governo”.FelipeTenharim,quetrabalhounaobra,contoutercontraídosarampo,varicela e catapora. Agostinho Tenharim disse que “quase toda a população”estava acometida por sarampo. Os índios jiahui, na época com apenas seisfamílias,tambémforamatingidos.MariaMadalena,cujonomeindígenaéErea’ie tinha73anosem2013,declarouaoMinistérioPúblicoqueaestradaestánaorigemdemuitasdoençastambémentreosJiahui.

O impacto exato das doenças sobre o número de Tenharim e Jiahui éimpreciso. Como eram etnias já em contato frequente com “civilizados”, aimprensanaépocalhesdeupoucaounenhumaatenção.38Tambémnãohavianenhumsertanista famosonaárea,comoApoenaeos irmãosVillasBôas,quepudesse atrair os holofotes da mídia ou gerar relatórios mais extensos edetalhados na Funai. Os Tenharim e Jiahui, que não reagiram nem mataram“civilizados” quando da abertura da rodovia, caíram em relativo ostracismojustamente porque não se encaixavam na figura estereotipada que se fazia doíndio“arredio”e“hostil”.Até1979, aprópriaexistênciadesses índiospareciadesconhecida.Quando a Igreja denunciou a invasão do território tenharimporserrarias,observouquenemaprelaziadeHumaitánemoDepartamentoGeralde Patrimônio Indígena da Funai, em Brasília, “possuem em seus arquivosqualquerreferênciaaosíndiostenharim”.39

Onúmeroexatode índiosqueviviamnaregião tambémnãoéexplicitadoemdocumentosdaFunai.Sabe-sequeentre1983e1984havia250Tenharim.40Em1994,aFunaicontou301indígenas,númeroquesubiupara393noanode2004.Massobrearealidadeem1971,quandoaestradapassou,nãoseencontrouregistroespecífico.

Há indíciosdequeosproblemasdesaúdecontinuarampor todaadécada.Em 29 de julho de 1980, uma equipe deOEstado de S. Paulo encontrou naaldeiadosTenharimumíndioque“morriadetuberculose,cercadodesilêncioemulheres tristes”. O tuxaua Alexandre informou que no mês anterior haviammorridoquatrocrianças,masfoicontestadoporumafuncionáriadaFunai.41

Restaamemóriados índiosquesobreviveramàsdoenças.Considerandooque ocorreu com outras etnias, com epidemias documentadas que devastaramsuaspopulações,essalembrançanãodeveserdescartadacomomeraimaginação

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—pelocontrário,ajulgarpelosantecedenteséperfeitamenteveraz.UmaequipedaIgrejaregistrouemvídeoumencontrorealizadonaaldeiatenharimem2013,para gerar subsídios para os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.Olhandoparaacâmera,MadalenaTenharimdissequetinhacercadeoitoanosquantoaTransamazônicachegou.

Quandochegouessaspessoasquebotouaestrada,nuncapassoupelanossacabeça passar essa estrada por aqui. Nem aquele barulho, nem aqueledevastamentoquepassou.[…]Nósnãoparadeestaremlutopelamortedonosso povo. Porque eu vi criança, recém-nascido, todos mortos pelacausação dessa estrada.E quemmandou?Governo.Governo quemandounósguerrear.Foielequejogouvenenoemnós.42

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9.TRINCHEIRAS

DESDEQUEOSÍNDIOSPANARÁAPARECERAMNABASEDAFABnaserradoCachimboem1967,dando inícioàoperaçãomilitarqueculminounaquedadoaviãoturboéliceC-47,atarefadecontatá-lossurgiucomoumfocodeatenção da ditadura. Sucessivas expedições foram lançadas pelo governo emdireção aos indígenas, com pelo menos oito anos de insucessos. Essasexpediçõesdespertarama imaginaçãodosbrasileiros, convidadospor jornaiserevistas a conhecer a saga dos furiosos e hostis índios “gigantes” que serecusavam a dialogar. O apelido surgiu depois que os irmãos Villas Bôasencontraram, nos anos 1950, um Panará com 2,03 metros vivendo entre osTxucarramãenoXingu—depoisseconcluiuqueapenasalgunsíndiosdaetniaeramaltos.

AexistênciadosíndiosnaregiãodorioIririfoiverificadapelosVillasBôasno final dos anos1940, quandoda construçãodabasedeCachimbo.Nenhumcontatodiretofoi realizado.Em1961,esses índios teriamsidoos responsáveispeloataquequematouoexpedicionárioinglêsRichardMason,quepesquisavaaregião do Iriri. Seu corpo foi encontrado numa trilha para a qualMason teriasido atraído por eles. Recebeu oito flechadas e o crânio e as pernas foramesmagadosagolpesdeborduna.Anosdepois,OrlandoVillasBôasnarrouesseepisódio com irritação, chamando os estrangeiros de “delirantes para aventuranasselvasbrasileiras”.1Afirmouqueemumareuniãopréviacommembrosdaexpediçãocondenaraoroteiro,porpassarem“áreadeíndiosarredios”.Aversãodivergeda contadapelomembroda expedição JohnHemming, canadensequetempos depois se tornaria um dos principais pesquisadores da história dosindígenas naAmérica Latina e ativo integrante daONG Survival International.

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Hemming confirmouo alerta deOrlando sobre áreas kayapó,mas o sertanistatambémteriaditoquenenhumíndioforavistopertodabasedeCachimboeatéseoferecerapara“lideraraexpedição,seelafosseadiadaparaoanoseguinte”.2

Em1965,aditaduradivulgouà imprensaqueocontatocomos índioseraiminente. O diretor do SPI , Luís Vinhas, anunciou uma expedição com onzehomense radiotransmissores,“grandequantidadedebrindeseoutrosmateriaisnecessários”.3Em1967,oSPIconfirmouàimprensaconfrontosentreKayapóePanará,comvintemortoseraptosdequatrocrianças.4Oataquefoireencenadoem1970pelosprópriosKayapócomconhecimentodosertanistaCláudioVillasBôasparaafilmagemdodocumentárioTheTribethatHidesfromMan (1970),deAdrianCowell.5

Aexpediçãode1965nãodeuo resultadoesperadopelogoverno.Oplanofoi retomado em1968, após um alerta deOrlando.Em carta ao presidente daFunai, ele advertiu que as turmas de operários da construção da rodovia queligaria Cuiabá a Santarém (PA ), a BR -165, passariam “a operar em áreas deíndios arredios kranhacarore” e quis “lembrar” à presidência do órgão “aconveniênciadesereiniciarostrabalhosdeatraçãodaquelesíndios”.6Nacarta,osertanistaexplicouqueogeneralAlbuquerqueLimaempessoalhetransferiraa incumbência da “pacificação”. Em resposta, Queirós Campos disse queOrlando estava autorizado a “iniciar a tomada de contato com os índiosarredios”.7Porém,depoisdecincomeses,emjaneirode1969,aexpediçãofoiencerradasemsucesso.8

Oplanofoimaisumavezretomadoem1972.Aocontráriodamaioriadasoperaçõesdecontatocom índios isolados lançadasatéentão,aorganizaçãodaempreitadaparalocalizarosPanaráfoimuitobemdocumentada.Umofício,porexemplo,ajudaadissolveroprincipalargumentousadonaépocaparajustificaro contato com etnias isoladas, o de que esses índios precisavam ser salvos deconflitos com “civilizados” ou de doenças. No caso dos Panará, os motivosexpressosporescritopeloministrodoInterior,CostaCavalcanti,aopresidentedaRepública,generalGarrastazuMédici,nadatinhamavercomosíndios,massimcomobjetivoseconômicosegeopolíticosestabelecidospeladitadura.

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Diretrizes básicas do governo, a integração e o desenvolvimento do paísfazemcomqueaFundaçãoNacionaldoÍndioexerçaatividadesdeatraçãode grupos indígenas arredios da sociedade nacional, muito especialmenteaqueleslocalizadosnaAmazôniaLegal.9

Outro ofício, assinado por Bandeira de Mello, explica que o contato eranecessário,tendoemvistaqueasobrasdeduasrodovias,aCuiabá-Santarém(BR-165)eaXavantina-Cachimbo(BR-080),seaproximavamdosíndiosaomesmotempo.AFunai“tevedeacelerarostrabalhos”.10

Anos mais tarde, Orlando disse que a preocupação “era fazer a atraçãourgente, correndo, do índio.Eramanter o índio longeda estrada e sepossívelmais perto das aldeias”. Afirmou que havia “mais de 2 mil” “civilizados”querendoentrarnorioPeixotodeAzevedoporqueeleeraricoemdiamanteseouro.11

AequipedeatraçãodaFunai trabalhava juntocomas turmasdeoperáriosdas empreiteiras e dos batalhões de engenharia e construção do Exércitoresponsáveis pela obra da Cuiabá-Santarém. Em junho, Orlando avisou àentidadequeseuirmãoCláudioeoperáriosdo9oBECabriramumaclareiraparareceber lançamentos de produtos e pousos de helicópteros. 12 Voos rasantesfeitosnaregiãoporcausadaobraassustaramosíndios,quenacorrerialargaram“armas e cesto de alimentação esparramados”. O traçado da rodovia passavamuitopertodaaldeiadosPanará,aapenasquatrooucincoquilômetros.Porisso,osíndiosvinhammantendo“constantevigilância”sobreaturmadetopografia.

Pouco demorou para que houvesse o primeiro choque entre índios etrabalhadores.OoperárioAurelianoBispodeOliveiracaminhavanumapicadaquandodeudecara,numacurva, com“dozeaquinze índios”,queoatacaramcom flechas, atingindo-o na virilha direita e abaixo de um dos braços. Emresposta, ele atirou comuma carabina e “ouviu, emato contínuo, umgrito deíndioferido”.13

Orlandodescobriunolocalobjetosquepareciam“destinadosapresentes”erastrosdecrianças,oquesegundoeleseriaincomumnumataquedeguerreiros,sugerindo que o operário podia ter atirado antes de as flechas voarem. O

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sertanista disse queBispo era “um sertanejo da classe daqueles que veemnosíndiosuminimigonaturaleirreconciliável”.Ooperárioconfirmouajornalistaster baleado um índio: “Deimais dois tiros, ouvi um grito e vi um índio cair.Acertei,masnãoseiemquelugar”.

Os enviados especiais deO Globo que cobriam a expedição narraram apartirdaí“umclimatensoentre trabalhadoresdo9oBEC”.“Trincheiras foramcavadasemtornodasbarracas.Receberamalgunsrifles,muniçãoebombasdegás lacrimogêneo, com ordem para usar somente em caso de extremanecessidade.”14

Em junho, o 9o BEC informou a Orlando que de novo os índios seaproximaramdoacampamentodaobraemais tirosforamdisparadosporpartedo “pessoal do 9o BEC ”. Os índios fugiram, abandonando arcos, flechas ebordunas. Porém, “duas flechas postadas no caminho revelam possivelmenteintençõespacíficas”.15Diasdepois,aassessoriaderelaçõespúblicasdaFunai,emBrasília,anunciouuma“novatática”na“pacificação”dosPanará.OsVillasBôasagorairiamdescerorioPeixotonadireçãosul,“destemodoaoencontrodos índios”, nãomais os aguardando no acampamentomontado pelo órgão aapenas“cincoquilômetrosdaaldeiamaior”deles.16

AssimfoiCláudioemdireçãoaos índios,primeiroabrindoumapicadanamata e depois descendo o rio Peixoto. O trabalho, porém, teve que serinterrompido em dezembro de 1972 porque um surto de gripe atingiu oacampamento da frente de atração, contaminando um grupo estimado emquarenta índios de inúmeras etnias recrutados pela Funai para trabalhar naexpedição.

No iníciode1973,agripe foi superadaeCláudio retomouseus trabalhos.EledesceudenovoorioPeixoto,atéencontrarumgrupodePanaránabeiradorio.Emumacanoacomtrabalhadoresíndios,osertanistaiaevinhanatravessiado rio, tentando obter permissão para se aproximar. Os Panará faziam gestosparaquetodosfossemembora.AtéqueCláudioteveaideiadefingirquehaviamachucadoopé.Comessaartimanha,conseguiuaproximaracanoadamargemdorio.17OsPanaráenfimoreceberambem,emmeioatentativasdediálogoeabraços.Emfevereirode1973,aFunaianunciouafinalquecercade150índios

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mantiveramcontatoamistosocomaturmadeCláudio.18OsVillasBôas então informaramaos jornalistasqueaquela seria aúltima

frentedeatraçãoquetocariamnafundação.Emabril,Orlandoanunciouquejápedira seu afastamento da base de atração. Ele foi substituído por ApoenaMeirelesepassouaresponderpelachefiadoParqueIndígenadoXingu.

ApoenalevoucomeleseteXavanteparaajudá-lonafrente,jáqueoscercadequarentaíndiosrecrutadospelosVillasBôasregressaramaoParquedoXingulogoapósasaídadossertanistas.19Seusmodos incomodaramseuchefemaisimediato,ocoronelOlavoDuarteMendes,entãochefeda2aDelegaciaRegionalda Funai. O militar reclamou a seus superiores por escrito que o sertanistagastavamuitocomvoos,contratadospelaFunai,daentidademissionáriaSILoudoExército,ecomacompradebrindesparaosíndios.Outropontodediscórdiaera o pedido de Apoena para o órgão providenciar “quarenta homens” paraconstruirumapistadepousonaregião.Ocoronelachouqueasaídaeramuitomaissimples:bastavausarosíndioscomomãodeobrabarata.

OsprópriosKreen-Akarorespoderiamserutilizadosnaaberturadocampo,mediante brindes, farinha, roupas etc., após suficientemente motivados epreparadospelossertanistas.Oscincoíndiosxavantes,sobadireçãodeumdossertanistas,queorientariaostrabalhos,construiriamocampo.20

O uso de índios comomão de obra gratuita e fácil foi uma constante nahistóriadoSPIedaFunai, desdea épocadeRondon,daaberturadepicadas efrentesdeatraçãoaofuncionamentodospostosindígenas.Namesmaépocadoepisódio dos Panará, por exemplo, o chefe do posto indígena Perigara, JoséCarlosBarbosa,informouàFunaique,paramontarumalavouradearroz,feijãoemilho,utilizariadezindígenasadezcruzeirospordia,“sendodeduzidosdestemontanteaquantiaqueserágastaemalimentação”.21

Nosanos1980,mesmodepoisdaditadura,oExércitoeaFunaiutilizaramíndiosyanomamiparaaconstruçãodeumaeródromona regiãodeSurucucus,emRoraima.Eles receberiamoequivalente a “meio saláriomínimo”.Nãoemespécie.“Comrelaçãoaopagamentodos trabalhosprestadospelos índios,estásendofeitocommaterialdeutilidadeparaeles,especialmente ferramentas.No

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dia5demaiohouveoprimeiropagamento.”Nemascriançaserampoupadas,remuneradas a preço vil. “De abril a junho foram prestadas 8237 horas detrabalhopelosíndiosadultos,sendoqueascriançastrabalhavamapenasporumagratificação.”22

Logoapósofimdaditadura,em1985,aoanalisarosGruposdeTrabalhocriadospelaFunaiparafinsdedemarcação,doisantropólogosapontaramqueoórgão costumava usar os índios nesses trabalhos tão somente em “atividadessecundárias e complementares”, sempre braçais. “Os relatórios mencionam aparticipação dos índios na condição de guias, caçadores, mateiros, oumesmotrabalhadores braçais, todos eles constituindo-se apenas em mão de obra quevemaserutilizadapeloGTparaocumprimentodesuastarefas.”23

ApoenaficoupoucosmesesnafrentedeatraçãodosPanará,sendosubstituídopor Antônio Campinas, que logo enfrentou problemas para alimentá-los. Naconfusãoqueseestabeleceuapósocontato,osíndioshaviamabandonadosuasroças,passandoasealimentar“exclusivamentedepeixeecaça”.24

AFunaiformouduasfrentesdetrabalhonaregião.Uma,comsetepessoas,localizada namargem esquerda do rio Peixoto. Havia ali 35 Panará. A outra,com três homens, foi armada no posto Arrastão, acampamento montado peloBatalhão de Engenharia do Exército à margem da rodovia BR -165 nocruzamentocomarodoviaBR-080.Tambémchamadade“postodevigilância”,abase tinhaporobjetivos“acolherecontrolaros índiosquesaemnaestrada”,atuarcomo“intermediário”entreíndios,operáriosefazendeirosedarassistênciade saúde aos índios que estavam tanto na estrada quanto numa aldeia recém-formada,adozequilômetrosdali.Nessaaldeiahavia38Panará.25

Entre novembro e dezembro de 1973, portantomais de dezmeses após ocontato entre índios e Villas Bôas, o indigenista da Funai Ezequias PauloHeringerFilho,conhecidocomoXará,recebeuaincumbênciadeatuaraolongodaCuiabá-Santarém“coma finalidadede impedirquenovosgruposde índiosafluíssem à estrada”. 26 Por dia, cerca de dez índios eram vistos na estrada,segundo o cálculo deXará , sendo alimentados, “festejados e até escondidospelosestradeiros,paraquefujamàaçãodaFunai”.Aconvivênciaentreíndios,

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trabalhadoresemilitareseraintensa“eessasrelaçõesseintensificamnamedidaemqueficammaisíntimas”.

Xarámanifestavapreocupaçãocomosriscosdealcoolismo,prostituiçãoedoenças.Emvisita à aldeia perto da estrada, ele e sua equipe encontraram35índios “todos gripados”. O indigenista e outro colega resolveram dormir naaldeiaparaacompanharaevoluçãodotratamentodesaúde.Ànoite,porém,ascoisassecomplicaram.“Parasurpresanossa,oshomensdatribodecidiramqueiriam manter relações homossexuais conosco, e nisso insistiram de maneiraexaltada.”27

O indigenista conseguiu conter o assédio. No dia seguinte, foi conversarcom um índio respeitado no grupo para entender o que acontecera. Falando“pausada e repetidamente”, o Panará pediu a Xará que, com sua espingarda,“atirasse no sr. Antônio Campinas”. Passados alguns dias, omesmo Panará oprocurouparadizerque“Pará”,oapelidodeCampinas, teriamantidorelaçõessexuaiscomumaíndia.

Em relatório aos seus superiores, Xará pediu uma investigação. Nodocumento, ele não associou Campinas diretamente ao episódio em que osíndiosqueriamsexoetambémnãooacusoudetermantidorelaçõessexuaiscommulheres, apenas reproduziuas falasdo índio.Quandoo relatório foipararnaimprensa,surgiucomoacusaçãodequeCampinasteria“levadoosKranhacaroreàpráticadohomossexualismo”.28

Em repercussão à notícia,Orlando disse aos jornalistas queCampinas era“incompetenteparaastarefasquelheforamconfiadas”.Assegurouaindaqueohomossexualismo era uma “prática desconhecida pelos índios” e que, casoconstatada a “perversão”, os índios deveriam passar por um trabalho de“catequesemoral”.29

Comoescândaloestampadonosjornais,aFunaimandouabriruminquérito.30OauxiliarNiloNogueiracontouqueoíndioNansurilhedissequeCampinas“haviamantidorelações”comumaíndiadedozeanosecomoutra,adulta.Poroutro lado, disse que “os índios têm o hábito de dormirem em uma posiçãodeterminadaemqueocorpodeum‘esquenta’ocorpodooutro,nãoobservandonenhuma‘maldade’nesteprocedimento”.Osíndiostambémtinhamohábitode

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saudarum“civilizado”balançandoopêniscontraabarriga,“nãoemestadodeereção,semsignificarqualquerconvite,masnaverdadecomaintençãodefazerbarulho”.Niloestavapreocupadocomofatode“ostrabalhadoresdaestrada165nãolevaremasérioasmulheresíndias,numaatitudedesrespeitosa”.

Outro funcionário da Funai, José Felisberto Cupodonepá, disse queCampinaspassou a ingerir bebidas alcoólicas no acampamento, “transformadoque foi em bagunça”. Para o radiotelegrafista Raimundo Barbosa Filho, aassistênciaprestadaaosíndiosera“deficiente”enaquelemesmodiahaviasidonegada alimentação “aos índios que pediam comida”. Denunciou ainda queíndios xavante trazidos à região pela Funai estavam fazendo sexo com índiaspanará,oqueconturbavaavidanasaldeias.

Noseudepoimento,Xarárevelouquepartiudeleainiciativadeentregaràimprensa uma cópia do seu relatório, tendo em vista “a inoperosidade” daCoama em resolver os problemas. Ouvido nomesmo inquérito, Apoena dissequeCampinasnãotinhacondiçõesdeconduzirumpostodeatração,porfaltade“conhecimento,liderançaeautoridade”.

O sertanista sob suspeita, de 36 anos, negou termantido relações sexuaiscom índias e disse que só bebia fora da área do posto, nunca em serviço.Atribuiu as denúncias de seus subordinados a “espírito mesquinho” e “merasconjeturas”. Também negou ter estimulado ou presenciado homossexualismoentre os Panará. Em defesa escrita, disse que “lamentavelmente está sendoacusadodeatosquenuncapraticou”.

Quatromesesdepois,acomissãode inquéritoconcluiuque“grandeparte”dasafirmaçõesdeXaráforabaseada“emdeduçõesdeindíciosmalinterpretadose que não poderiam ser tidos como conclusivos”, mas pediu a punição deCampinaspor“faltadeautoridade”nachefiadopostoepor ter“deixado […]que comentários e suspeitas tivessem curso entre os indígenas sobre suasintimidadescomíndias”.

AProcuradoria Jurídica da Funaimanifestou todo o seu incômodo comotrabalhoda imprensa,sugerindoqueosservidoresque levaramas informaçõesaos jornalistas fossem “admoestados, no sentido de não denunciar mais fatosdessa natureza, por simples ilações pessoais, […] causando prejuízos não só

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moraiscomofinanceirosàadministraçãodaentidade”.Campinasfoidesligadodoórgãoporordemdoseupresidente.

Nessemeio-tempo, o quadro de saúde dos índios só piorou. Em fevereiro de1974,afrentedeatraçãodosPanaráfoiassumidapelosertanistaFiorelloParise.Aantropólogae irmãdeFiorello,Valéria,observouquea regiãoerapobreemcaçaequeosíndiostinhamdificuldadesdealimentação,ficandoquasequeporcompletodependentesdos“civilizados”.OpostoArrastãosetransformounum“ponto turístico, atraindo oficiais do 9oBEC e fazendeiros à FazendaAzul, osquaischegavamcomgrandequantidadedecomida,peixe,farinhaefrutasparaconquistaraamizade,poderfazerfotografiaseobterpeçasdeartesanato”.

Omaisimportantenomedosíndiosna“aldeianova”,Iakil,estavatambém“bastante doente”.Voltando-separaValéria, Iakil “implorouque trouxéssemoscomida para as crianças, o que nos impressionou bastante. Além disso,encontramososíndiostodosgripados”.31

Em meados de 1974, uma turma de terraplanagem com cerca de trintahomensdoBECmontouumacampamentonabeiradorioPeixoto.IssoatraiuunsquarentaPanará.Outrogruposeguiuvivendonumaaldeiaamaisoumenosvintequilômetrosdorio.32

Aolongode1974,asituaçãodosíndiosatingiucontornosdramáticos.UmrelatóriodeFiorellodatadode17de janeirode1975descortinaumalarmantenúmero demortes no períodode apenas umano. “Desde […]que assumimosessaFA[frentedeatração],registramos23falecimentos,dosquaisseisforampormorte violenta e um por acidente (afogamento). Sendo que treze óbitosocorreram nas aldeias, sem o conhecimento de nossa parte.” 33 Fiorello nãoexplica a causa de dezesseismortes,mas indica que teriam sido causadas pordoenças,sem“adevidaassistêncianecessárianomomento,comaqualteríamossalvopelomenosalgunsdeles”.Anosmaistarde,eleconfirmou:

Amaioriadasmortesqueocorreramlá,mesmonaminhaépoca,agentesótinha conhecimento depois do acontecido. Eles iam na estrada, contraíamumagripe, iampara as aldeias,morriam.Edepois quandovinhampara o

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acampamento,[alguémdizia]:“Olha,Fulanomorreu”.Agentenãotinhaumcontrole,né.34

Em dezembro de 1974, um “grave surto de gripe” atingiu os índios na aldeiakorocokó. “Na fase final, os doismais graves forammortos a bordunas pelosdemais.”

Ogrupolocalizadonaestradamudou-separaoentroncamento,àesperadeumsocorroporavião,em20dedezembro.Doisdiasdepois,umnovosurtode“gripeviolentoediarreia”abateuosíndios.Pariseentãosolicitouajudaao9oBEC, que, no entanto, “não pôde atender”. Omotivo: “as festividades do Natal eAno-Novo, que causaram a debandada geral dos trabalhadores dessa unidademilitar”.ParisepediucomurgênciaoapoiodeumaequipevolantedesaúdedaFunai.Nodia26,morreuumdos índios.O surto só seria controladoem4dejaneirode1975.

Restaram então vivos 82 índios panará, dos quais três foram enviados paraatendimento médico em Cuiabá e 79 seguiram para o Parque do Xingu.Considerandoos23mortosindicadosporParise,apenasumanoantesosPanarásomavam105pessoas.Amortalidadeacumuladaemdozemesesatingiuentãooaltíssimoíndicede21,9%dototaldapopulação.

SeconsideradoonúmeronaépocadocontatocomVillasBôas,noentanto,oíndiceficaaindamaisalto.Emumdepoimentodadoem1995,Orlandodisseque no momento do contato existiam duas centenas de Panará. “Quando nósestávamosnoXinguéquechegouanotíciadequedosduzentos,dosqua…dosduzentosíndiosquenóshavíamosatraído,estavamreduzidosanoventa,eudigo:‘Mas então precisa socorrer essa gente’.” 35 Em outro depoimento, Orlandoafirmouqueeram240índios.36Assim,amortalidade teriaosciladode34%a41%dogrupooriginalpanará—ouseja,de117a157índiosmortos.

Emtrabalhorealizadonosanos1980,oantropólogoStephanSchwartzmancalculou um total de 248mortos na região do rio Peixoto, “antes e depois docontato”.Eledisseque recolheuosnomesdosmortos juntoa três informantespanará(Pe’ti,KrempieKyarasàr).37

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A situação dos Panará era crítica. Os jornais passaram a denunciar a penúria,incluindo fotografias de índios pedindo esmolas aosmotoristas que passavampela rodovia. Emmeio às denúncias, o general Ismarth telefonou para Parise,comoelerecordouanosdepois.

OIsmarthfalouclaramente:“Vocêvêlá,vêseconseguetiraros índiosdainfluência da rodovia, vê se recupera eles em termos de saúde e se vocêacharqueelestêmcondiçõesdepermanecerlá,tudobem,elespermanecem.Mas se você me dá um sinal verde, de que você não tem condição depermanência, de retirar da rodovia, eu vou começar o processo detransferência”.38

IsmartheraocoordenadordaCoamaparaatransferência.Todaoperaçãodogênero, de acordo com o Estatuto do Índio, só poderia ocorrer medianteautorizaçãodopresidentedaRepública.Ogeneraldepoisrecordouterpassadoporcimadaordemlegal:

Eu estava vendo índio morrer em contato com a estrada, com ostrabalhadoresdaestrada.Eudigo:“Voufazerumexpedienteburocráticodefazer uma solicitação ao ministro, o ministro estudar e mandar para opresidenteparasairumdecretoquetransfiraumgrupoindígenadeumlugarpara outro, eles vão acabar com todo o resto do índio que estava lá naestrada?”.Eudigo: “Transfere”.OOrlando transferiu e nãodeuproblemanenhum. […] Ali era caso de emergência, de necessidade, que não podeestarsubordinadaaumaburocracia.39

OmomentodatransferênciadosPanaráparaoXingufoitestemunhadoporumjovemindigenistaquehaviaentradonaFunaiem1971,masqueconheciaosíndios desde criança. Odenir Pinto de Oliveira nasceu em 1948 no postoindígenadoSPISimõesLopes,daetniabakairi,emMatoGrosso.Seupai,PedroVanni,forachefedopostoeseuavô,OtavianoCalmon,forainspetordeíndiosdo SPI e havia trabalhado ao lado do major Estigarríbia, um dos principaisauxiliares do marechal Rondon. Os pais de Odenir passaram a vida inteiratrabalhando com indígenas.Quando Pedromorreu, aos 53 anos, foi enterrado

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numaaldeiaxavanteemParanatinga(MT).Em Cuiabá, Odenir se candidatou a uma vaga como aluno de um dos

primeiros cursos de indigenismo oferecidos pela Funai e passou.O curso, umesforçodaditaduraparaprofissionalizarosseusquadrosdefuncionários, tinhaduasdiretrizesbásicas.Umaerafornecerconceitosmínimosdeantropologia,oquepoucoacrescentava aOdenir, tendoelenascido e crescido entre índios.Asegundapartedocurso,contudo,eramaispreocupante.

Agrandeideiadocursoerafazerumafalaçãoeumadoutrinaçãodequeoposto indígena deveria funcionar como uma unidade de defesa nacional,vamos dizer assim. […]Tivemuita dificuldade nessa doutrinação, porquetodo indigenista, todo chefe de posto, deveria ser uma espécie derepresentação,nomeiodafloresta,dosinteressesdaditadura.Vocêeraumaáreade fiscalização,você tinhaque informar semprequempassava,quemdescia o rio, quem subia, quer dizer, era uma espécie de informante nãooficial.40

AprimeiramissãoconfiadaaOdenirfoichefiaropostodorioAutazes,dosíndiosmura.Odenirencontrouosíndiostotalmentedependentesdos“regatões”,donos de barcos que funcionavam como intermediários e cobravam valoresextorsivos na venda de produtos diversos. As terras não eram demarcadas. OchefedeOdenireraogeneralAntônioEstevesCoutinho,daFunaiemManaus.Os dois se estranharam. Odenir considerou “absurdas” as exigênciasapresentadas pelo general em relação a índices de “produtividade” que a áreaindígenadeveriater.Eraaretomadadovelhoconceitoda“rendaindígena”quetanto escândalo gerara na época do SPI . Segundo Odenir, naquela região aditadura adotou como tática registrar muitos nordestinos como índios, dandocarteirasdeidentidadeedetrabalho.Emtroca,elesrecebiamaincumbênciadetrabalhar, nas áreas indígenas, na coleta de sorva, balata e castanha, tudo sobcontroledaFunai.

Nessaépoca, liderançasxavantehaviamrompidocomosagentesdaFunaiemSãoMarcoseSangradouro,emMatoGrosso.ComoOdenireraorigináriodoestado, foi enviadopara a regiãopara amenizar a tensão.De lá foi transferido

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para o trabalho com os índios panará. Ele circulava entre a aldeia e o postocriado pelo Exército em apoio às turmas de operários de abertura da Cuiabá-Santarém. Certo dia, ouviu dizer que um homem da Funai de Brasília haviachegadoemontadoacampamentonoposto.Odenirnãohaviarecebidonenhumacomunicaçãoprévia,emborafalassecomfrequênciacomaentidadeemCuiabá.

Na barraca, Odenir encontrou o sertanista enviado pela Funai. Indagou omotivoda suapresençaeouviuemrespostaquehaviaumaordemdeBrasíliapara transferir os índios para o Parque do Xingu. Odenir não queria atransferência. No seu entender, o pior já havia passado, a situação dos índiosestavasenormalizando.

Odenirdisseterregressadoàaldeiaeprocuradoosprincipaislíderespanaráparaalertá-lossobreoqueiriaocorrer.

Osíndiosnãoacreditaram.Nacabeçadeles,nãocabequealguémvaitirarvocêdoseuterritório.Esseníveldemaldadeelesnãoentendem.Eupassavaa noite [dizendo]: “Eles não vão voltar com vocês”. E eles respondiam:“Denía,nósvamospassear,vamosconhecer[oXingu]”.Eudiziaquenãoerapasseio.[…]Osíndiosconheciamosertanistaeconfiaram.Eleslevaramosíndiosdizendoqueiampassear.

Nahoradoembarque,nenhumíndioreagiu.AFunaimobilizoudoisaviõesparaotransportedosíndios.“Eles[índios]medisseramquenãoiamlevarnadaparaaviagem,jáqueeraumpasseio.Deixaramtudoparatrás.”

Odenir e sua equipe ficaram por alguns dias na antiga aldeia panará,completamente vazia. Uma semana depois, foram embora. O lar dos Panarádesapareceudanoiteparaodia.

O grupo de 79 Panará chegou no início de 1975 ao Xingu, cerca de 250quilômetros ao sul da área tradicional dos índios. A princípio eles foramcolocados na aldeia dosKayabi, a dez quilômetros do posto deDiauarum, nonortedoparque.Emfevereiro,oantropólogoRichardHeelas,daUniversidadedeOxford,conseguiuchegaràaldeiaapósesperarummêsporumacaronadebarco,nopostoLeonardodoXingu.Oquadroqueeleencontroueradevastador.

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OestadodesaúdedosKA[Kreen-Akarore]eraruim,comvirtualmentetodasaspessoassofrendodeumacombinaçãodemalária,gripeepneumonia.[…]Nos dois primeiros meses em sua nova aldeia, cinco índios morreram, eagoraogrupocontacomumtotalde74pessoas.41

Heelas atribuiu a crise a dois fatores: havia apenas um enfermeiro kayabi nolocal, “semosmeios necessários para aplicar injeções”, e as visitas da equipemédica deSãoPaulo e de outro enfermeiro daFunai, deDiauarum, não eramfrequentes.

QuandochegouàaldeiaumaequipedoórgãoquehaviaatendidoosPanaráemPeixoto,asituaçãodasaúdemelhorou.Masnãoadaalimentação,“quesetornou crítica”. A roça não era suficiente para sete dezenas de pessoas. Umanovatransferênciadogrupo“eraindubitavelmentenecessária”.42Onovolocaldeveriaseramplo,comcaçaepescaabundantes,eaFunaiconcluiuqueonovolardosPanaráseriaaaldeiaKretire,pertencentelogoaosseusterríveisinimigos,os Kayapó. “As notícias dessa transferência chegaram como um choqueadicional para os Panará, já quemuitasmulheresmais velhas tinham perdidomaridosoufilhosnoataquekayapóde1967.”43

Atransferênciacompletou-seem31demarçode1975—porironia,o11oaniversário do golpe militar. Os índios chegaram num estado de “extremadepressão”, segundoHeelas.Deu-se inícioaumprocessode“integração [comosKayapó] e perturbação cultural”, queveio acompanhadodemais “doenças,depressãoeapatiaentreosPanarás”.44

UmanovaepidemiadegripeatingiuosPanaráedenovoaFunaiagiuparatransferi-los.Atéoutubrode1975,quandoosíndiosforamremovidosparaumaaldeiadeíndiossuyá,maiscincoPanarájáhaviammorridodedoençasnaaldeiaKretire. O grupo perdeu outros sete adolescentes, que decidiram permanecerentreosKayapó.45Assim,dogrupooriginalde79Panaráquehaviamchegadoao Xingu, restaram 62. Na aldeia suyá, as mortes cessaram e os índioscomeçaramentãoumlentoprocessoderecuperação.46

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LogoapósatransferênciadosPanarádoIriri,ogovernomilitaragiuparatomarpossedoamploterritórioantesocupadopelostemidos“gigantes”.Paraatrairecontatarosíndios,osirmãosVillasBôashaviamsolicitadoainterdiçãodeumaamplaregiãopertodorioPeixoto.Aditaduraconcedeuainterdiçãoemmarçode1973.OsPanaráforamlevadosaoXinguemjaneirode1975.Poucassemanasdepois, o presidente da Funai, general Ismarth, oficiou ao então ministro doInterior,MaurícioRangelReis,para informarquea interdiçãodaáreanãoeramaisnecessária.Nessacomunicação,emmomentodesupremoescárnio,omaisaltointegrantedoórgãoindigenistachegouaculpara“curiosidade”dosíndiospelassuasprópriasmortes.

Evidenciou-se após referida tarefa [atração] a inconveniência damanutenção daqueles índios em seu habitat original, por isso que sofreinfluência da estrada BR 165/Cuiabá/Santarém, cuja curiosidade delaacarretou, inclusive, a perda de preciosas vidas uma vez que a Funai nãopodecontrolarasdissimuladasvisitasdeles.47

Comonãohaviamaisíndiosnaregião,disseIsmarth,oministroestavalivrepara retomaras terraspara“odomínioplenodaUnião”.Nesseponto,oofíciocontém uma afirmação impossível de ser comprovada. Alega o general, semanexar nenhuma carta, fita gravada ou outro tipo de prova, que os índios“aquiesceram”comaperdadopróprio território.Oargumentonãoapareceuàtoa.Ocorrequeoartigo21doEstatutodoÍndio—tambémcitadopelogeneral—previaqueapenasas terras “espontâneaedefinitivamenteabandonadasporcomunidade indígena ou grupo tribal” poderiam ser revertidas ao domínio daUnião. Como vimos, os índios panará nem saíram espontaneamente e muitomenos “abandonaram definitivamente” suas terras: foram dela retirados numaoperaçãoemergencialpostaempráticapeladitadura.

Mas entendimentos diversos estavam longede preocupar a cúpulamilitar,queseassenhoreoudasterrasantesinterditadaseasreverteuparaoprogramadereforma agrária.A partir de 1978, diversas firmas colonizadorasmanifestaramintençãodeexplorarasterras.ACooperativaAgrícoladeCamposBorgesLtda.,porexemplo,obteveumavaldopresidentedoIncra,LourençoVieiradaSilva,

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para teracessoa211milhectaresna regiãoantesocupadapelosPanará.Silvadisse que “a própria Funai sugeriu o aproveitamento da área para oreassentamentodoscolonosqueentãoocupavamáreasindígenaslocalizadasnosestadosdoParaná,SantaCatarinaeRioGrandedoSul”.

UmestudofeitopelaassessoriadoMinistériodoInteriorem1976indicouque as terras dos Panará poderiam receber 1512 famílias de colonos, ou 8426pessoas, a serem retiradas de áreas indígenas ocupadas de forma irregular nosestados do Sul do país. Esses números foram obtidos a partir de umlevantamento feito pelo governo nas terras indígenas de Nonoai, Guarita,CaciqueDoble,Ligeiro, Inhacorá,CarreteiroeVotouro.Juntas,elasocupariam151milhectaresemMatoGrosso.48

Oconjuntodasterrasrecebeuonomede“GlebaIriri”,escrituradaemnomedaUniãoemoutubrode1980,comsuperfícietotalde473milhectares.Apartirdofinaldosanos1970,cidadesinteirasnasceramsobreaantigaterraindígena.

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10.CAMINHOGRANDE

NAMESMAÉPOCADASOBRASQUERASGARAMOTERRITÓRIOPANARÁ,aditaduraestavaàsvoltascomoutraartériaquejulgavaimportanteparaoanunciadoplanodeocupaçãodaAmazônia.ArodoviaBR-174conectariaManausàfronteiracomaVenezuela,passandoporBoaVista,emRoraima.Aosul, após ter a denominação mudada para BR -319, a rodovia também ligariaManausaPortoVelho,emRondônia.Nocaminho,haviaumaintersecçãocomarodovia Transamazônica. À direita, após passar por Rorainópolis, a BR -174tambémseconectavacomaPerimetralNorte,quevinhadelesteparaoesteemparaleloàTransamazônica.

Até o final dos anos 1960, as obras daBR -174 andavam a passos lentos,comoreflexodiretodomassacredaexpediçãoCalleri,ocorridoem1968.Cincomesesapósadesastradaação,noentanto,aditaduradeufôlegoàobrapormeiode dois convênios entre oDNER e o 6oBEC do Exército, assinados por EliseuResende,entãodiretor-geraldoDNER,epelogeneraldebrigadaAyrtonPereiraTourinho,chefedaDivisãodeViasdeTransportedoExército.Arodoviaseriafeita com recursos do DNER, e um dos convênios concedeu ao batalhãoresponsabilidadesobretodaaobra.1O6oBECexistianopapeldesde1963,massó na ditadura recebeu uma sede física, em 1968, a princípio na cidade deManaus.Noanoseguinte,foitransferidoparaBoaVista.Amissãodobatalhãoeraabrirumtotalde1200quilômetrosdeestrada.2

OExércitoagiu.Até1973, todootrechonortedarodoviafoicompletado,ligando Roraima à Venezuela. Em fevereiro, o generalMédici e o presidentevenezuelano, Rafael Caldera, participaram do ato de inauguração do primeirotrecho.Faltava,contudo,apartemaissensível,queligariaBoaVistaaorestodo

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Brasil. Pelos planos do Exército, a rodovia cortaria mais de 120 quilômetrosdentrodeumaáreahabitadapelosWaimiri-Atroari.

Paraanovatentativade“pacificar”osíndios,aFunaidestacouosertanistaGilbertoPintoFigueiredo.Ele vivia uma situação bastante delicada: precisavaconvenceros índiosdequeos“civilizados”vinhamempaz, aomesmo tempoqueos índiosviamdezenasdemáquinasecentenasdeoperáriosdevastaremamata,afugentaremacaçaeatraíremnovosmoradoresparaaregião.

AFunaiabriutrêspostosdeatração,chamadosdeCamanaú,SantoAntôniodoAbonarieAlalaú,edoissubpostos,emAbonarieAlalaú,todosvinculadosàCotz.PartindodeManaus,asequipesdafundaçãopodiamchegaraesseslocaisde barco a motor, em viagens que variavam de vinte a 120 horas, ou dehidroavião,emviagensqueduravamdesetentaminutosaduashorasemeia.Porterra, levava-se48horasatéopostodeAbonari.Paradificultar aindamaisostrabalhos,eraumaregiãocomchuvasfrequentes.3

Gilbertoconseguiuretomarcontatoscomosíndios.Nãoraroeraconvidadoavisitarasmalocas,ondecomiapeixesmoqueados,beijusebananasetrocavafacas,facõeseoutrosbrindesporarcos,flechas,bordunaseartigosdecerâmica.Era autorizado a tirar fotografias.Nelas vemos o sertanista emembros de suaequipeabraçadoscomosíndios,trocandopresentesouposandoparafotos.

Masasimagenseramenganosas.Essescontatosnarealidadeeramcercadosdetensão,conformeexpressamosrelatóriosproduzidosporGilberto.Osíndiosestavam vendo suamata ser devastada.Acuados, podiammudar de humor deuma hora para outra. E como não haviam sido “pacificados”, segundo osconceitos da Funai, a desconfiança era recíproca. Em julho de 1972, porexemplo, Gilberto promovia uma troca de presentes com os índios quandoorientou um auxiliar, Paulino Rondon, a “despistadamente” fazer a guarda dogrupo,poissedeucontadequeestavaamenosdetrezentosmetrosdolocaldachacinadaexpediçãoCalleri.Atrocadebenseraummomentofundamentalnapolíticadecontatos.SeopessoaldaFunainãosoubesseatendertodososíndiosdeformamaisoumenosequânimeouseospresentesacabassemantesdofinaldastrocas,oresultadopoderiasermuitoruim.4

Acadatrêsmeses,Gilbertoesuaequipevisitavamasaldeiasmaispróximas

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dotraçadodarodovia,procurandoconvencerosíndiosanãoatacaremoperáriose turmas de topografia. Ele desenvolveu boas relações com pelo menos doislíderes indígenas, os caciquesMaroaga e Pedro.Em1972, viajou de barco aolado do segundo.“Explicamos que esta estrada (caminho grande) da margemdireitavaiparaManauseadooutroladovaiparaoAlalaú,Jauaperi,AnuáeRioBranco. Ele não demonstrou nenhuma admiração e assim continuamos aviagem.”5

A falta de expressão do caciquePedro poderia significar tudo e nada.ElesimplesmentepoderianãoterentendidooqueopessoaldaFunaiquiseradizer,dadasasdificuldadesdalíngua.OitorelatóriosproduzidosporGilbertode1972a 1974 demonstram um grande vazio de comunicação entre índios e Funai.Trocas, viagens de barco e incursões na mata substituíam conversas maisdetalhadassobreosimpactosdaestradanavidadosíndios.Emnenhumtrechonos relatóriosdo sertanistaexistealgumsinal clarodos índiosdequeestavamconcordandocomaestrada.Pelocontrário,háindicaçõesdecondenaçãodaobraedequeocomportamentodepelomenosumempreiteiroestavadesagradandoaosíndios.

Gilberto,umhomemexperientenotratocomosíndios,detectouoproblemaaindaemoutubrode1972,quandovisitouostrêspostosdeatraçãoeinaugurouum subposto no rio Alalaú. Por acaso, ele se aproximou de uma maloca nomesmo momento em que dois líderes waimiri-atroari, Maroaga e Comprido,chegavamjuntosparaparticipardeumafesta.Maroagaconvidou-oadormirnamaloca,oquefoiaceito.Nodiaseguinte,opessoaldaFunaidistribuiubrindes.Aofinaldastrocas,cercadopor“120índios”,Gilbertotocounopontosensívelda obra da estrada. “Procurei então,mais uma vez, explicar sobre o ‘caminhogrande’. […]Osmaisentendidos,entreelesCompridoeMina,diziamsemprequeAtroarimarupá,istoé,ruim,eapontavamdisfarçadamenteparaosAtroarispresentes.”6

Após deixar a maloca, Gilberto se reuniu com um empreiteiro chamadoCelsoMaia,subcontratadopelosmilitaresdo6oBECparaforneceroranchoparaasturmasdedesmatamento.MaiaqueriaalertaraFunaiarespeitodeumaturmade topografia, sob supervisão de um sargento do Exército, ter encontrado um

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caminho aberto pelos índios. As obras iriam atravessar a picada e o Exércitoestavareceososobrecomoproceder.Gilbertocontouqueprocuravaevitarqueosíndios atrapalhassemo andamentodas obras, “acostumando-os coma ideia daestradaedapresençadostrabalhadores”.Antesdeseguirparaolocal,eleteveque resolver um surto de malária entre os servidores da Funai, com trêsacamadoseumcuspindosangue.

Gilbertopediuporrádioqueaviõesdespejassemnascercaniasdasmalocasmais próximas dez pacotes com “camisas, fósforos, anzóis, linhas de pesca,arameparaanzóisepulseirasdealumínio”.Feitoisso,eleeequipepuseram-seacaminho.Foram46quilômetrosdeselvaatéolocalemqueasobrasdaestradacortavamaveredafeitapelosWaimiri-Atroari.Umsobrevoocalculouqueduasgrandes malocas dos índios estavam apenas a três e a seis quilômetros doacampamento da turma da topografia.Ao chegar à encruzilhada,Gilberto, emumdostantosepisódiosdecoragemquemarcamassagasdesertanistas,decidiutomar o caminho dos índios, indo direto à primeira aldeia mais próxima,acompanhadodeoutroempreiteiro,AndréMoreiraNunes.Comumtiroparaoar, a equipe anunciou sua aproximação.O local estava deserto, pois os índioshaviam se dirigido a outra aldeia. Para lá seguiuGilberto emmais umdia decaminhada.Paraseualívio,ochefedogrupoeraseuamigoMaroaga,quelogomandou trazer bananas e ofereceu descanso em sua maloca. Havia entretrezentose350índiosapenasnesselugar,segundoele.

Apósdoisdiasde confraternizações, emqueos índios atépermitiramqueAndré gravasse em áudio seus cânticos,Gilberto se disse tranquilo e aliviadocom o andamento dos contatos. Ele considerou ter demonstrado a André eoperáriosqueopessoaldaFunaicultivava“umaboaamizade”comosíndiosequedaliemdiante“tudodependerá”doempreiteiroedeseuscontratados.

Diasdepois,opessoaldaFunaiencontroudescendoembarcopelorioumgrupodenoveíndioswai-waioriundosdaGuianaparaumavisitadecortesiaaosWaimiri-Atroari.AcompanhadosatéamalocaporGilbertoeequipe,osWai-Waitrocaram arcos e flechas, comeram, caçaram e dormiram com os índiosbrasileiros. Na hora de ir embora, o sertanista convidou o líder wai-wai a irjunto,maselerespondeuqueestavabem,queosWaimiri-Atroarierammaré,ou

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“muitobons”nalínguawai-wai,equeiriampermanecernamalocaparaajudaraabrir um roçado. Gilberto descobriu que era a segunda vez que Wai-Waichegavamaoterritóriowaimiri-atroari.EsseepisódioajudaaafastarafalsaideiadequeosWaimiri-Atroarieramhomensferozesqueviviamentocadosnomatodispostosamatarqualquerumqueaparecesse.

Antes de voltar aManaus, Gilberto deu ordens expressas aos homens daFunai na região que impedissem a entrada de Celso Maia, descrito comofuncionáriodoempreiteiroAndré,emqualquermaloca.Osertanistacontouqueemjulhode1972,aosubirorioAlalaú,Maiaencontraraumgrupodeíndiosàbeiradorio.Foibemrecebido,mas“abusoudahospitalidade”.Osíndiostinhamocostumedeprenderopêniscomumapalha.Alémdeficarnu,Maiateriafeitoomesmocomseupênis.Nahoradedançar comas índias, “pegounas tangasdelas, tudo feitocommuitamalícia”.Maisadiante,comoutrogrupo indígena,Maia teria feito sinais “de que queria copular” e pedido aos índios quetrouxessem mulheres para ele. “Os índios ficaram desconfiados, estranhandoessa atitude tão diferente dos outros ‘cariuás’ [“civilizados”] que estão emcontato com eles há bastante tempo.” Gilberto disse que com suas “infantisatitudes e obscenos gestos”,Maia poderia fazer com que “todo o trabalho decontatoeatraçãováporáguaabaixo”.

Naprática,otrânsitodeoperários,desmatadores,topógrafoseempreiteirosnaregiãojáhaviasaídodocontroledaFunai.Aorientaçãoeraqueoempreiteiroque encontrasse dificuldades com índios deveria aguardar a chegada de umaequipedoórgão.Como issopoderiademorardiasousemanas,a tendênciaeraqueosempreiteirosprocurassemseacertardiretocomosíndios.

FoioquefezoempreiteiroAndré,segundorecordou,maisdequarentaanosdepois,otrabalhadorbraçalRobertodaSilvaAguiar,oRobertinho.Nascidoem1940nacidadedeAraguaína,emGoiás,elefixouresidêncianoiníciodosanos1970 em Santo Antônio do Abonari, a poucos metros do começo do atualterritóriowaimiri-atroari,ondeoautordeste livroo localizoueentrevistou,noiníciode2014.

Ex-garimpeiroeex-caçadordefelinos,RobertinhofoicontratadoporAndréparatrabalharnodesmatamento,aprincípiofeitocommachados,dotraçadoda

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estrada.ComAndrétrabalhavam350homens.RobertinhoviacomfrequênciaosWaimiri-Atroariobservandodelongeostrabalhosdosoperários.Certodia,umgrupo de índios chegou ao acampamento. Um deles encontrou Robertinhocortando o cabelo de um trabalhador e pediu que fizesse o mesmo com ele.“Quandotermineicomum,sentouooutro.Fiqueiodiainteirocortandocabelodeíndio.”7Diasdepois,osíndiosvoltaramaoacampamento,agoracarregandocachosdebananaparaofereceraosoperários.

Em outra oportunidade, disse Robertinho , os índios cercaram oacampamentoepareceramameaçarumataque.

O André ligou o rádio para falar com o comandante em Boa Vista. Ocoronel perguntou quantos índios havia. O André respondeu queaproximadamente “6mil índios nos cercando”.Nósnãopodíamos sair doacampamento,elestomaramtudo.Masnãoabusaramdagente.

Ànoite,os índiosforamembora.OempreiteiroAndrédecidiuiràmalocapara tentar um acordo direto com eles. Indagou aos operários quem eravoluntário, quem tinha “a coragem de morrer junto com ele”. “Em um deudiarreia,outrotevemalárianahora,outroparecequedesmaiou.Ninguémqueriair.Eumeapresentei:‘SeuAndré,euvoucomosenhor’.”

E lá se foi o grupo com quatro pessoas lideradas por André. Quandochegarampertodaaldeia,Robertinhopercebeuqueíndiososseguiameavisouogrupo.

O seu André disse assim: “Se ocês souberem de alguma coisa que ocêsacreditam,souberemdealgumaoraçãoparaajudar,podemusar,porquenóstamoquasecercadospelos índios”.Aí todomundoficoudestinadoeaíeudigo:“Não,játamoperto,nãovamovoltar,não.Osenhornoschamouparamorrerjunto,entãovamomorrerjunto”.

Quando chegaram àmaloca, viram dezenas de índios. “Tava saindo índiodessamaloca…Tipocasadeformiga.Todomundoarmado,bemarmado.”

“Eeramquantosíndios?”,indaguei.“Aí, não sei. O medo era tão grande que não dava pra gente fazer nem

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comparaçãocomnada.Eraummedodessesmedossertanejosmesmo.”Ocaciqueveioconversar.AequipedeAndréestavatodacercada,osíndios

comarcosesticados,eocaciquecomeçouabaterospésnochão.Andrémandoudistribuirbolachas,óculos,canetaseatéasroupasqueusavam.Quandoacabou,aequipeestavasódecuecas.SegundoRobertinho,oempreiteiroprocuroufalaraos índios sobre os “benefícios da estrada”, gesticulando e dizendo algumaspalavras indígenas que havia aprendido. A equipe pediu para ir embora e osíndiospermitiram.Trêsdiasdepois,parasurpresadetodos,elesapareceramnoacampamento levando cana-de-açúcar, banana, pupunha e cará. Os índiospediammaiá-maiás,oufacões,elimasparaprepararaspontasdeflechas.Pelobarulhoqueproduziam,osíndioschamavamaslimasdecri-cri.

Em depoimento gravado muitos anos depois, André narrou uma históriamuito semelhante à deRobertinho , acrescentando o relevante dado de que aexcursão foi aprovada, embora com receio, pelo tenente-coronel JoséAlmeidade Oliveira, comandante do 6o BEC , após um pedido feito pelo próprioempreiteiroemBoaVista.Andrérelatouque,aochegaremàmalocaapósdoisdiasdecaminhadanaselva,parasuasurpresatodosforam“muitobemrecebidospelosíndios”.

Eu tinha levado comigo umaparelho de rádio a bateria e pude fazer umagravação lá de dentro damaloca dos índios chamando o quartel em BoaVista. […]Eles não falavamportuguês,mas tinhamuma facilidademuitogrande de repetir o que a gente dizia. Então eu dizia as palavras e elesrepetiampelo rádio.Depoisdeos índios conversaremcomocomandante,nósdemosporencerradaamissão.8

Esses eventos que ocorreram à revelia da Funai não são citados nosrelatórios deGilberto.Emum livro publicado no início da década de 1980, 9outro indigenista referencial na história do território waimiri-atroari confirmaqueos índios visitaram“várias vezes os acampamentos de trabalho”,mas nãomencionaaexcursãodeAndréeastrocasdepresentes.

A paz entre índios e o empreiteiro parecia consolidada, pois os primeirosteriam “permitido” que a obra fosse retomada. No início de 1973, porém, a

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tensão voltou com toda a força. Em 17 de janeiro, um grupo de vinte índiosatacou o posto deAlalaú ematou os servidores da FunaiAltamirCardoso deAguiar, Ernesto Nascimento e Rafael Fonseca Padilha. O quarto membro daequipe, o Saterê LuizHumbertoApolinárioDuarte, conseguiu escapar porqueviu os índios se preparando para o ataque e trancou-se no posto. Para oobrigaremasair,osíndiosbotaramfogonotelhado,masaslabaredasatingiramgalões de óleo ali estocados, causando uma fumaça espessa que permitiu aoSaterê fugir para o rio. Ele levou onze dias para chegar a Manaus. Emdepoimentoàimprensanacapital,atribuiuoataqueaumavingançadosíndiospelocomportamentodeCelsoMaia—omesmoepisódiodescritoporGilbertoemseurelatório,mesesantesdoataque.10

AacusaçãogerouumasurpreendenterespostadoExército.EmnotaoficialpublicadaemjornaisdeManaus,ogeneraldebrigadaOtávioFerreiraQueiroz,comandantedo2oGrupamentodeEngenharia eConstrução, aoqual o6oBECestava vinculado, fez a defesa pública deMaia, “em nome do bom senso, dajustiçaedaverdade”.Anotatambémdestacao“trabalhocooperativodeCelso”e“comprovaasualisura”.11

A defesa tinha o evidente propósito de eximir o Exército de culpa pelomassacredos servidoresdaFunai.Opresidentedoórgão,generalBandeiradeMello, reagiu por meio de um ofício confidencial encaminhado ao ministroCostaCavalcanti.O general revelou que em novembro de 1972, portanto trêsmeses antes da chacina, o delegado da 1a DR da Funai havia passado umainformação secreta à ASI , que a repassou à DSI do ministério, de que oempreiteiroMaiaestavasobamirados indígenas.“Ébomquesedigaqueosíndios, revoltadoscomatitudeprecipitadado transportadordecargas,disseramque‘iriammatá-lo’.”12

Oofício tambémrevelaqueosobreviventeLuizDuarte informouàFunaiquenodiadachacinaosíndios“demonstraramdesprezoerevolta”aosaberemqueMaianãoestavanoacampamento,indicandoqueeleeraoalvo.Ogeneralprometeu ainda encaminhar fitas gravadas com outro mateiro que haviapresenciadoo“indecorosocomportamento”deMaianapresençadosíndios.

Assim, sabedor de tudo isso, Bandeira de Mello se disse “surpreendido”

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comanotado2oGrupamentofavorávelaMaia.Ogeneralviuuma“subversãodosprincípiosdaautoridadeedisciplina”.

AFundaçãoNacional do Índio temparticipado intensamenteda arrancadadoatualgovernorevolucionárionosentidode,comaaberturadeestradas,buscar a ocupação dos espaços vários do território brasileiro econsequentementegerarodesenvolvimentosocioeconômiconacional.

AchacinanãomudounenhumplanodoExército.Em7de janeirode1974,omajordoExércitoBalbinoManueldeMoraesFilhoedoismilitaresprocurarama1aDelegacia da Funai para “comunicar que o 6oBEC pretendia atravessar oigarapé Santo Antônio do Abonari e, como se tratava da reserva indígenawaimiri-atroari, pedia apoio e instruções de como se comportar junto aosíndios”.13Enfim,aobraatingiaoseupontocrítico.Apartirdaqueleigarapé—e como ficou sendo após a demarcação da reserva—, os operários estariamentrandonaterrapropriamenteditadeposseimemorialdosWaimiri-Atroari.Omajor pediu que a Funai “colocasse funcionários junto aos trabalhadores daestrada”,masoórgãorespondeuquenãotinharecursosnempessoalsuficientes,“emvista das inúmeras e constantes desistências e substituições no quadro defuncionários da frente de atração”, além do baixo salário “para os riscos eperigosaqueestãoexpostos”.OórgãodissequecederiaapenasdoisservidoresparaatuaçãodiretanosacampamentosdoBEC.

ParalevantaremapontesobreorioAbonari,asempreiteirasfizeramescorasde madeira nas margens do rio. Os índios podem ter entendido que elas nãoseriammaisretiradas,oqueiriaafetarapescanaregião.AFunaientãorecebeuinformaçõesdequeosíndiosiriamatacardenovoasposiçõesdoórgãonorioAlalaú.14

Namanhãde30desetembro,noescritóriodaentidadeemManaus,Gilbertochamou por rádio, como era costume, os cinco postos e subpostos na terraindígena. No subposto Alalaú II , três servidores, Faustino Cruz, AdãoVasconcelos e Odoncil Virgínio dos Santos, informaram estar aguardando achegadadeumbarcocommaistrêshomensdaFunai:JoãoDioníziodoNorte,PauloRamoseLuizPereiraBraga.EleshaviamsaídodeAlalaúIparalevarao

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subpostomantimentosparaoscolegasebrindesparaosíndios.Nofinaldodiaseguinte,contudo,aequipeaindanãohaviachegado.Masapareceuumgrupodetreze índios, junto com o tuxaua Comprido. Pelo rádio, Gilberto disse aVasconcelos que a demora do grupo de Dionízio era preocupante e que“tivessembastante cuidado, ficando atentos a qualquermovimento dos índios,sem despertar suspeitas”. Vasconcelos respondeu que “tudo estava normal,inclusiveosíndiosestãoouvindonossaconversa”.15

Gilberto fez uma série de recomendações a Vasconcelos, incluindo ofornecimentodealimentaçãoatodososíndios.OservidordaFunaiexplicouquenaquela manhã já tinha ido à roça cortar cana-de-açúcar junto com eles. Nocaminhodevolta,passaramporumbarracousadonodesmatamentodaBR-174.Os índios disseram que ali havia “civilizados”.Vasconcelos achou no barracoduas redes e alguns objetos. Gilberto recomendou-lhe que no dia seguintevoltasse ao barraco para avisar aos ocupantes que saíssem da área. Elescombinaramdeconversardenovonamanhãdodiaseguinte,2deoutubro.

Nahoracombinada,porém,ninguématendeuaoschamadosdeGilberto.Àtarde, o sertanista informou ao subcoordenador da Coama, José PorfírioFonteneledeCarvalho,queninguémrespondiaaorádiotambémnoAlalaúI.Nodia3,oencarregadodopostodeAbonariinformoupelorádioqueocorreraumataquedeíndiosnopostoAlalaúII.Umsobrevivente,EsmeraldoMiguelNeto,haviaconseguidochegaraoacampamentodoempreiteiroAndré.

GilbertoeCarvalhoforamaocomandodo6oBECparadarasnotíciase,delá,decolaramnumhidroavião rumoao localdoataque, semsaberoque iriamencontrar.ComodisseCarvalhotemposdepois,foi“ahoradaverdade”.Duranteovoo,osdoisescreverambilhetesdedespedidaeosdeixaramcomopilotoparaque fossem entregues às suas famílias, caso tudo desse errado. “Eu fiz umbilhetecurto: ‘Àminha família, aosmeus irmãos, aomeupai—eunão tinhamaismãe—,aosmeusamigos.Avidavaleuapena’”,rememorouCarvalho.16

Carvalho nasceu emGranja, noCeará, na véspera doNatal de 1946, filho deagricultores. Estudou em Brasília e no Piauí, onde participou do movimentoestudantil, o que lhe valeu uma rápida detenção após o golpe de 1964.Ele se

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dizia desiludido coma falta de reação dos brasileiros emgeral à ditadura.Nafaculdade, conheceu um professor de contabilidade que também trabalhavacomo auditor na recém-criada Funai e defendia o governo nos debatesacadêmicos.Quandoafundaçãoanunciouumconcursoparacontratarauxiliaresdeindigenismo,Carvalhosecandidatoumas,segundoele,apenasparaprovaraoprofessor que a ditadura vetaria seu ingresso no órgão por razões ideológicas.Após passar no concurso, ele informou que não iria aceitar o cargo. Parademovê-loda ideia, oprofessoro convidouparaumaviagemauma frentedeatraçãodaFunaiemRondônia.AliCarvalhoviuumíndiopelaprimeiravez,umSuruí,quepassoucaminhandonuecomarcoeflechanamão.Atéentão,tudooqueCarvalho sabia sobre índios era o que via nos filmes deHollywood. “Eupensei:‘Quediaboéisso?’Eunãoimaginavaqueexistiaíndioqueaindaviviaassim.”

Nodia seguinte,Carvalho informouaoprofessorque tomara adecisãodeentrar na Funai. Largou tudo, a faculdade e um emprego numa firma decontabilidade,enuncamaissaiudavidadeindigenista.

O hidroavião pousou nomeio do rioAlalaú.Gilberto e Carvalho saltaram naáguaeforamnadandoatéamargem.Emterra,paraescapardeeventuaisflechas,correramemzigue-zague,umpeladireitaeoutropelaesquerda, atéacasadosubposto. Eles temiam que os índios estivessem lá dentro, à espera. Gilbertoentroupela frente.Carvalho foipelos fundose tomouumsustoaoencontraracabeçadecepadadeFaustinonoaltodaportadeacessoàcozinha.Semencontrarmais sinal de vida, os sertanistas foram se abrigar no barranco do rio, pararetomar as buscas na manhã seguinte. Ali passaram a noite, sem conseguirdormir.Anosdepois,Carvalhosoubepelos índiosqueestesestiveramotempotodonamata,observandoosmovimentosdadupla.SegundoCarvalho,quandohojeemdiaalguémperguntaaos índiosporquenãoomataramnaquelanoite,elesbrincam,dizendo:“Aindanão”.

De manhã, os dois inspecionaram as redondezas, mas não encontraramcorpos.Ohidroaviãoveiopegá-los,juntocomacabeçadeFaustino,pelamanhã.Daliseguiramparaocampodepousodo6oBEC,ondeencontraramEsmeraldo.

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Osobreviventecontouquenamanhãdomassacretudoparecianormal,tantoqueeleeoservidorEvaristoforamcaçarcomtrêsíndios.NacasadopostoficaramFaustino,VasconceloseOdoncil.Namata,Esmeraldoouviutiros.Eleeoamigoquiseramvoltar,masosíndioslhesdisseramparaprosseguir.Aochegaremaumigarapé,Esmeraldoouviu“estalosdearcos”,ouseja,flechassendodisparadas.Elesnãoconseguiramseprotegeratempo.Esmeraldofoiatingidoemumombroe uma perna, enquanto Evaristo foi flechado nas costas, perto dos rins. Elesatiraram com as espingardas “para o alto”, mas os índios não recuaram.Esmeraldofezmençãodesacarumrevólver,oqueteriaassustadoosíndios,quepararamdepersegui-los.

Caminharam pela mata até Evaristo dizer que não conseguia mais andar.CombinaramqueEsmeraldo, emmelhores condições, correria até o campodepousodoExércitoparapedirajuda.Horasdepois,eleencontroutrêsoperáriosnaestrada e regressou para resgatar o companheiro, mas não mais o encontrou.Evaristo só foi localizado, com vida, seis dias depois. Contou ter visto umamovimentação na mata e pensou que fossem os índios— na verdade, era aequipe reunida por Esmeraldo. Evaristo embrenhou-se na mata e acabou seperdendo.Alimentou-secomumpedaçodecharquequeencontrouabandonadonumtapiri.Oferimentoacaboucausandosuamortesemanasdepois,noHospitalGetúlioVargas,emManaus.17

Doisdiasdepoisdoataque,outrosobrevivente,AdãoVasconcelos,chegoucaminhando a um acampamento dos operários da rodovia com um corteprofundo no braço esquerdo. Ele contou que, namanhã do ataque, não notounada diferente. Atendendo a uma orientação de Gilberto, chegou a ir com ocaciqueCompridoatéobarracodostrabalhadoresparadizerqueelesdeveriamsairdelá.Oencontrofoitranquilo,comexceçãodomomentoemqueumíndiopediuumafacaaumdostrabalhadoreseohomemserecusouadá-la,dizendoseraúnicaquepossuía.Nocafédamanhã,índioseopessoaldaFunaitomaramjuntosachocolatadoNescauesucodeburiti.EsmeraldoeEvaristosaíramparacaçar com três índios.Vasconcelosdisseque iriapescar, enquanto ficariamnoposto os servidores Faustino e Odoncil. Antes de sair, porém, Vasconcelosresolveu costurar um pedaço de pano para fechar um buraco na sua calça.

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Algunsíndios,dizendoqueiamtrabalharnaroça,pegaramterçadosqueestavamencostadosnaparede.Nessemomento,umdos índiospassouamãonacabeçadeVasconcelos.Comaoutra,virouoterçadonadireçãodele,paraatingi-lonacabeça.Vasconcelosaparouogolpecomobraçoesquerdo.Vendoqueo índiopreparavaumsegundogolpe,saiucorrendoparaoportoemergulhounorio.18

Odonciltambémcorreueconseguiusejogarnaságuas.Osíndiossaíramnoencalçodeles, disparando flechasdasbarrancasdo rio.Outrogrupode índios,que incluía Comprido, pegou uma canoa, na qual “remava com fúria” e davatiros de espingarda. Vasconcelos gritou para que não o matassem. A súplicafuncionou. A canoa foi desviada em direção a Odoncil, masVasconcelos nãoconseguiuverodesfecho.Elesaiudorio,seescondeunamataecaminhouatéchegar ao acampamento da obra.Às nove horas do dia seguinte, o pessoal daFunai encontrou o corpo de Odoncil boiando no rio Alalaú, com marcas degolpesdeterçadonacabeça,noolhoesquerdoenobraçoesquerdoeumaflechaenterradanoladodireitodopeito.

NosubpostoAlalaú IItinhammorridoFaustinoeOdoncil.RestavasaberodestinodosoutrostrêsservidoresquesaíramdoAlalaúIemdireçãoaosubpostoelánuncachegaram.Apóscincodiasdebuscas,asequipesdaFunaiviramumgrupodeurubusvoandobaixo,numacurvadorioacercadeseisquilômetrosdoposto.Ostrêscorposestavamnumatrilhanamataaapenascemmetrosdeumaantigamaloca.

Nessemeio-tempo,outratragédiacomeçouasedesenharnaFunai.Enquantoasbuscas continuavam, Carvalho teve que voltar a Manaus para tocar outrosassuntos sob sua responsabilidade.Um temaera a situaçãodePalmérioSousaVieiraVeloso,19um jovem estudante de odontologia noMaranhão que haviadecidido trabalhar na entidade. Por causa das operações daTransamazônica, aFunai fez uma seleção de pessoal e Palmério foi escolhido para atuar noAmazonassobachefiadeCarvalho.Oindigenistaconsiderouqueorapazestavanolugarerrado,poisnãosuportavalongasesolitáriasmissõesnaselva.

Palmério era muito frágil, muito jovem, uns 23 anos. Ele tinha medo damata, e por isso tinha que trabalhar num local já consolidado, não numa

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frentedeatração.Aturmaatébrincava,dizendoqueeleerabicha,maselenãoerabicha,não.Eraumapessoasensível.

Carvalho foi falar com o delegado da Funai, o general Antônio EstevesCoutinho.“Ogeneraldisse:‘Mandalogoessefeladaputaembora’.”

O sertanista procurou contemporizar, explicando quePalmério poderia seraproveitado em outro lugar, pois era um bom funcionário. O dinheiro queconseguia economizar, enviava para a mãe no Maranhão. Resolveu-se que orapaz iria tentar ingressarnumcursode indigenista, cargode remuneraçãoumpoucomais alta.Antes, porém, precisava passar por um teste psicotécnico—Carvalhoemprestouodinheiroparao teste.Poucodepoisdoexame,omédicoda Funai, que também fazia as vezes de psicólogo, chamou Carvalho paraconversar.“Omédicomedisse:‘Elenãotemcondiçãodetrabalharnomato.Eleestá no limiar do suicídio’.” O sertanista conversou sobre o assunto com ogeneral,masesteteriarespondidoqueolugardePalmérioera“naaldeia”.

Nessemomento, explodiu a notícia da chacina noAlalaú II , que exigia apresençadeCarvalhonaárea.Antesdeviajar,oindigenistadisseaomédicopara“segurar” uma eventual intenção do general de mandar Palmério de volta àselva.Ficoucombinadoqueomédicoemúltimocasodariaumalicençaparaorapaz, até o retorno de Carvalho. Porém, tudo saiu dos eixos quando umasegunda emergência estourou na Funai, uma epidemia entre índios do postoindígenaNhamundá.Omédicodoórgãotevequeseguirparalá.Antes,chamouPalmérioedissequeelenãopoderiaserdeslocadoparanenhumaáreaindígena.Porenormecoincidência,osdoisprotetoresdojovemtiveramqueseausentaraomesmotempo.

Apósaviagemdomédico,ogeneralseencontrouporacasocomPalmérionasededaFunai.Aovê-loali,enãoemumaaldeia,determinouqueeleseguissenoprimeirobarcoparaobaixorioAmazonas,comdestinoaumpostoindígenasaterê-mauê.Ogeneralterialhereveladooresultadodotestepsicotécnico,queaté ali o rapaz desconhecia, segundoCarvalho.Após a conversa, Palmério foivistochorandonocorredordaFunai.Eleteriacomentadocomumafuncionáriadaentidadequepensavaemsematar.

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Informadoporrádiosobreoqueocorrera,Carvalhoorientouatripulaçãodobarco a impedir que Palmério fosse deixado em algum posto indígena. Arecomendaçãoeraqueelefosseevoltassenomesmobarco.Nessemeio-tempo,osertanistajáestariadevoltaaManauseiriaseentendercomogeneral.Porém,aochegaraopostodosSaterê-Mauê,Palmériodissequeestavatudobemequeiriaficarporali,convencendoopessoaldaFunaiairembora.

Após a partida do barco, Palmério deixou umbilhete paraCarvalho. “Eleescreveumais oumenos assim: ‘Carvalho, a vida não vale nada.A Funaimematou.Dáumabraçonaminhamãe,pedeperdãoaelapormim.Eunãopossomaisviver’.Eramaisoumenosassim.Escreveunumpapeldeembrulho,deixouemcimadamesa.”

Emseguida,PalmériopegouotanquecheiodegasolinaquehaviatrazidodeManausparaomotordepopadobarcodoposto,despejousobreoprópriocorpo,ateou fogo e saiu correndo pela aldeia.Os índios tentaram apagar as chamas,maseratarde.Palmériomorreucarbonizado.

Carvalho começou a elaborar uma denúncia interna sobre o suicídio docolega,aorevelaroconteúdodacartadomédicoquedesautorizavao trabalhodele emárea indígena.Ogeneral, porém,nãodeixoubarato a insubordinação.Nofinaldaquelemesmoano,Carvalhoseriadespachadoparaoutralocalidade.

Na áreawaimiri-atroari, a perda dos cinco servidores daFunai numúnico diacausougrande tensãonos canteiros de obras da rodovia.Epoucomais de ummês após a chacina, os índios voltaram a atacar. Dessa vez, mataram trêsfuncionários sob a responsabilidade do empreiteiro André, ou seja, pessoalsubcontratadopeloExército.OmaranhenseRaimundoPereiradaSilva,nascidoem1944,eraumdosoperáriosdaestradaefoiescaladopararesgataroscorposnamata.Nolocal,encontroumuitosangueeoscorpos“muitoflechados”.Umdosmortosseguravacomfirmezaumfacãonamão.Umsobreviventeconseguiuchegaraoacampamento.Foisalvoporumadiarreia,lembrouRaimundo.“Esseque escapou tinha ido nomato para fazer precisão.Quando ele viu os índios,saiu correndo e veio parar no acampamento.” Robertinho disse que tambémconheceu osmortos. Eles integravamumgrupo vindo doAcre e costumavam

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dizer,segundoele,queatirariamnosíndioscasofossematacados.OataqueprovocouumareaçãoimediatadoExército.Foiaprimeiravezque

operáriosdarodovia,sobresponsabilidadediretadosmilitaresdo6oBEC,forammortospelosíndios.Oataqueaoacampamentoocorreunodia20denovembrode 1974. 20Um dia depois, o oficial mais graduado encarregado da obra, ogeneral de brigada Gentil Nogueira Paes, comandante do 2o Grupamento deEngenharia e Construção do Exército, ao qual estava vinculado o 6o BEC ,reuniu-se no quilômetro 220 da rodovia BR -174 com dois outros chefes naFunai:odelegadoregionalFranciscoMont’alvernePireseodiretordaDivisãoAmazôniadoórgão,majordaAeronáuticaSaulCarvalhoLopes.21

Comoresultadodareunião,ogeneralGentilassinouumofícioconfidencialpeloqualordenouque“ostrabalhosdeimplantaçãodaBR -174nãopodemserinterrompidos”.Eleorientouqueasturmasdedesmatamentomanualpassassema ter um mínimo de quinze pessoas, sempre acompanhadas por “elementosespecializados da Funai”. A partir de então, todas as “visitas amigáveis dosíndios” deveriam ser consideradas “como um aviso de futuro ataque”. Paraexpulsarosíndios,todasasturmasdeveriamreceber“foguetesebombasdotipo‘junina’— para afugentar os índios, devendo esses artifícios pirotécnicos serutilizadoscomparcimônia,paraqueproduzamresultados”.22

Ogeneralordenouacriaçãodeum“GrupodeSegurança,comandadoporoficial,comefetivoacritériodessecomando”,cujatarefaseriadarsegurançaàsturmasde trabalhoeaosoficiaisesargentoschefesde turma.Ogrupodeveriaagir em “caso de indícios de agressão”, podendo “utilizar todos os meios depersuasãopossíveis,sósevalendodousodaforçanoscasosdelegítimadefesaprópria ou de outrem”. Determinou ainda que os acampamentos fossemprotegidospor“cercasdeoitofiosdearamefarpado”.Alémdisso,napartemaisesdrúxula e temerária do ofício confidencial, o general ordenou que “essecomando,casohajavisitasdosíndios,realizepequenasdemonstraçõesdeforça,mostrandoaosmesmososefeitosdeuma rajadademetralhadora,degranadasdefensivasedadestruiçãopelousodedinamite”.Porescrito,oExércitodeixavaregistradaumapolíticadeopressãoarmadasobreosíndios.

Aomesmotempo,arelaçãodosmilitarescomosdoisprincipaisservidores

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daFunai de ação direta comos índios,Gilberto eCarvalho, entrou em francadeterioração. Em relatório,Gilberto informou aos seus superiores que um doschefes militares da região, major Balbino, perguntou se não era “melhor tersoldadosarmadosdeguardaouentãoaumentarmosonúmerodefuncionáriosdaFunai em operação na estrada, para dar melhor cobertura”. Gilberto teriarechaçado a proposta. Também enviou uma carta a um amigo emBrasília emquenarrouosproblemasderelacionamentoentreCarvalhoeogeneralCoutinho,emManaus.

AquiestáumafofocadoCarvalhocomogeneralenósfuncionáriosficamosentreacruzea espadaaguardandoosacontecimentos.AgoramesmoestáaquiemManausopresidente[daFunai]eumoutroqueéchefedeumsetordaí.Sabemosquevãoacertarospassosdosdoisaqui,esperamosquetudofiquenasantapazdoSenhor.23

Quarentaanosdepois,CarvalhorevelouaoautorquenaverdadeasdivergênciasentreosmilitareseGilbertoeeleerammuitomaisprofundasdoqueonoticiárioda época ou os relatórios oficiais da época deixam vislumbrar. O indigenistacontou que ele e Gilberto haviam feito um pacto secreto para postergar oumesmoimpedira“pacificação”dosWaimiri-Atroari.Osdoisconheciambemasepidemiasedesastresquequasehaviamdizimadogruposinteirosanteseduranteaditadura.

Aordemda nação era a integração dos índios à comunhão nacional.Masnós—eu,FranciscoMeireleseGilberto—nãopensávamosassim…Nossaideiaeraprotegê-los.Ecomo?Informaraelesqueevitassemocontatocomo “branco”, que não tentassem sair damata para a cidade, não tentassemcriaramizadecomo“branco”.Nossaposiçãonãoera“pacificar”osíndios.Nósfazíamosotrabalhocomosefosse[isso],masnãofazíamosisso.Nóséramos rebeldes. Mas não demonstrávamos isso aos militares. Elesestranhavamporquenósnãotrazíamososíndiosparaoconvívio.24

Aosaberdoenviodesoldadosarmadosparaaárea,CarvalhoeGilbertopediramuma audiência como generalGentil, para entregar-lhe emmãos umofício no

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qualpediamasuspensãoimediatadaobraatéqueospostosdeatraçãodaFunai“fossemrecompostos”,jáqueasduasbasesnorioAlalaúhaviamsidodizimadaspelos índios.O resultado da conversa foimuito ruim, segundoCarvalho. “Elefalouqueaordemque tinhadadoparaosmilitareseraque, sevissemomatomexer,eraparaatirar.Nãocoloqueinomeu livrocomessedetalhe,masestoudizendoaqui.Ogeneralmedisseisso.”

No livro,escritonosanos1980,Carvalhodissequeogeneralafirmou,napresençadeoutrosoficiais:“Aestradatemqueficarpronta,mesmoqueparaistotenhamosqueabrir fogocontraesses índiosassassinos.Eles jánosdesafiarammuito e estão atrapalhando nossos trabalhos. Temos um compromisso deentregarestaestradapronta”.25

A partir daí, segundo Carvalho, houve “praticamente uma intervenção doExército”nocomandodaFunaideManaus.ChegouanotíciadequeGilbertoseria afastado do comando das frentes de atração e substituído pelo sertanistaSebastiãoAmânciodaCosta.OExércitodeixoude lado asmedidas sanitáriaspreconizadaspeloórgãoparaingressonaáreawaimiri-atroari.Bastava,apartirde então, umaautorizaçãodo2oGrupamentodeEngenharia eConstrução.Osservidores da Funai que atuassem na área passariam a receber umacomplementaçãosalarialdoExército.

Gilberto foi informado de que seu pedido de aposentadoria já havia sidoaprovado—aportariadoGabinetedoMinistroqueoaposentouédatadade17de dezembro. 26Carvalho, também como repercussão dos seus atritos com ogeneralCoutinho,estavaprestesadeixarManauseotrabalhocomosWaimiri-Atroari.EleseriatransferidoparaAltamira,noPará.Nofinalde1974,aduplade servidores da Funai estava se desfazendo. O ambiente de final de anopermitiu a Carvalhomarcar seu casamento com sua primeira e únicamulher,MariaJosé,nodia28dedezembro.Gilbertofoiseupadrinho.

Poucos dias antes, Carvalho disse ter sonhado que caminhava ao lado deGilberto em direção ao posto indígena Abonari, quando percebeu índiosescondidos no mato e índias sentadas numa esteira. Ao chegarem ao posto,Carvalho indaga a Gilberto sobre a razão de os índios se esconderem,mas o

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sertanistadizquenãoviunada.Emseguida,osdoissãocercadospelosíndiosemortoscomváriaspauladas.CarvalhocontouosonhoaGilberto.Esteponderouqueocolegaaindadeveriaestar traumatizadocomoseventosdoAlalaú. “Eleprocuroumeacalmar:‘Vamosagorapensarnoseucasamento’.”

Nodia27,vésperadocasamento,GilbertofoiprocuradopelaFunaiparairàárea waimiri-atroari, pois três funcionários da entidade no posto em Abonaripediam, pelo rádio, a sua presença ali. Havia também informações, inclusivepublicadas em jornais deManaus, de que os índios estavam insatisfeitos comalgo não definido. Segundo Carvalho, ele retrucou dizendo que já tinha sidoaposentadopelopróprioórgão.Gilberto havia de fato apresentado seupedido,mesesantes,maspretendiapermanecernafrentedeatração.AFunaiaproveitouopedidoparaanunciarqueelesairiaespontaneamentedaregião.

Dequalquerforma,GilbertoeCarvalhoforamàsededaFunaiemManausparafalarcomopostopelorádio.Foraminformadosdequehaviaumgrupodeíndios, lideradopelocaciqueMaroaga,querendomuitoapresençadeGilbertonolocal,semdizeromotivo.Gilbertodissequenãopoderiamaisiràárea,poiso órgão o havia aposentado. A conversa era acompanhada por Mont’alvernePires, delegado regional da Funai. Segundo Carvalho, o chefe interveio paradizeraGilbertoquefosselárapidamenteevoltasse.Nãoadiantoueledizerqueerapadrinhodocasamento.Oaviãoestariaàsuadisposiçãoapartirdomeio-dia,disseMont’alverne.

CarvalhochamouGilbertodeladoparasaberseeleiriamesmo.Osertanistarespondeuqueseuplanoera trazerdevoltaosoutros trêsservidoresdaFunai,para não deixá-los sozinhos com os índios. Virando-se para Mont’alverne,Gilberto disse que iria sozinho e precisava de lugar no avião para mais trêspessoas.

Maistarde,afamíliadeGilbertodescobriuqueelehaviadeixadoparatrássua aliança de casamento guardada no bolso do paletó no guarda-roupa —segundoumde seus filhos,Gilmar, ele nunca tinhaviajado semela.Antesdeviajar, o sertanista procurou ummédiumnobairro daMatinha, emManaus, aquemcostumavavisitarparaouvirconselhosespirituais.Gilmarnuncasoubeoqueelesconversaram.27

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Localizei emÁguas Claras (DF ), aos 87 anos, o cariocaMont’alverne Pires.NascidonobairrodeSãoCristóvãoem1927,eleentrouparaavidaindigenistanofinaldosanos1960,aconvitedeumamigoqueolevouàpresençadogeneralIsmarth.EleforasubprefeitodeTaguatingaduranteogovernoJoãoGoulart,masosmilitares não fizeram objeção à sua contratação. Quando da construção daTransamazônica,Mont’alvernefoidesignadoparaAltamira,ondehaviabasesdeapoiodaFunai.DepoisfoiescolhidoparachefiaraFunaideManaus.

No dia em que os índios reivindicaram a presença de Gilberto na área,Mont’alverne participou das providências para a viagem,mas negou ter dadoordensaosertanista.Segundoele,adecisãodeviajarpartiudopróprioGilberto.“Nãohaviaproblemanaárea.Agentenãosabiaquehaviaumchoqueentreosprópriosíndios.EuachoqueoGilbertotambémnãosabia,nãosentia.Sabiaqueumaparte dos índios estava contrariada com a passagemda rodovia,mas nãoquepoderiasercontraele.”28

“Ele não hesitou em ir para a área?”, indaguei, mencionando a versãorelatadaporCarvalho.

“Não, nunca!OGilberto tinha confiança.Sedisse aoCarvalho [que tinhaessadúvida],elenãodisseparamim.”

Mont’alvernecontouquenãoouviudiretamentedeGilbertoedeCarvalhoumadiscordânciasobreaobra,massabiadascríticas.

Bom,muitosdeleseramcontraaobra.Nãotenhadúvida.Mastinhaquesefazeraestrada.Naminhacabeça,nãopodepararumaobradessasquevailigarManausatéaVenezuela.“Onegócioaquitemquesair,né.”Umpaíssedesenvolvecomestradas,com…Entãoprecisa.Vocêvejahojecomoaquelaestradaémovimentada.

Nodia28dedezembro,datadocasamentodeCarvalhoeMariaJosé,nãohouvecerimônia em igreja a pedido do casal, apenas uma reunião entre amigos. Osnoivossecasaramàsseishorasdamanhã,poisviajariamàsdezessetehorasparaaluademelemSãoLuís.

Aomeio-dia,CarvalhoacompanhouGilbertoatéo aeroporto.Poucoantesdeembarcar,osdoisamigosestavamemocionadoscomaseparaçãoeofimdo

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trabalho com os índios. Carvalho procurou animar Gilberto, dizendo que embreve ambos voltariam para a áreawaimiri-atroari. “Eleme respondeu assim:‘Euachoquenãovaidarparanós,não’.Easlágrimascorreramnorostodele.Euchoreitambém.Eusentiqueelepressentiualgo.”

CarvalhocombinoudeiràsededaFunaie,pelorádio,conversarlogomaiscomoamigo.Dissequesó iriaparaa luademelquandosoubessequeestavatudo certo na área indígena. O avião partiu e pousou na pista próxima doacampamentodo6oBECemAbonari.De lá,Gilbertochegouaopostoemumbarco.Àtarde,chamouCarvalhopelorádioparadizerquetudoestavatranquilo,nãohaviahostilidade.SegundoCarvalho,porém,osertanistadisseque“achouestranho” um detalhe, a presença de “muito milico lá na pista de pouso” doAbonari. Também havia um avião militar pousado na base. “Eu fiqueipreocupado, os militares estavam fazendo alguma operação lá”, recordouCarvalho.

MasGilbertodissequehaviamulheresecriançasentreos índios. Issoeraconsiderado um bom sinal, já que os índios não costumavam fazer ataquesacompanhadosdafamília.Pelorádio,eledissequeregressariaaManausnodiaseguinte. Mont’alverne perguntou-lhe então quais eram as reivindicações dosíndios,paracomunicá-lasaopresidentedaFunai.“OGilbertojáestavaputonãosó comele,mas com aFunai no geral e comosmilicos, e disse assim: ‘Elesqueremmatartudoquantoémilicoquetempelafrente’.”

Carvalhoentendeuquenãofoiumbomcomentário—tinhacertezadequeorádiodaFunaiestavasendomonitoradopeloExército.Gilbertolhedissepelorádioquefosse“tranquilo”parasualuademel.

OcasalviajouesehospedounohotelSãoFrancisco,emSãoLuís.Nanoiteseguinte,Carvalhoestavasaindocomamulherparajantarquandoviu,naTV,onoticiário anunciar que os índios waimiri haviam atacado e matado GilbertoFigueiredo.AchandoqueeraumequívocodaTV,eletelefonouparaaFunaiemSãoLuís,quenãoconfirmouanotícia.TentoufalarcomManaus,masninguématendia às chamadas. O dia 29 de dezembro caiu num domingo. Na manhãseguinte, ele foi à Funai de São Luís, onde enfim recebeu amesma chocanteinformação transmitida pela TV . Ainda assim, Carvalho disse não acreditar e

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decidiuretornaraManauscomamulhernomesmodia.QuandochegouàcapitaldoAmazonas,soubequeocorpodeGilbertojáhaviasidoenterrado.

DeManaus,CarvalhofoiparaAltamira(PA)tomarpossenanovafunçãonaFunai. Ao chegar, porém, descobriu que se tratava de uma espécie de prisãodomiciliar, um exílio em terras brasileiras, pois era obrigado a se apresentartodososdiasaumaunidademilitardacidade.

AlémdeGilberto,os índiosmataramtrêspessoascontratadaspelaFunai:JoãoBosco Aguiar, João Alves Monteiro e Oswaldo de Souza. Houve umsobreviventedachacina,oíndiosaterê-mauêIvãouIvanLimaFerreira,tambémfuncionário da entidade. Dois dias depois, tendo por base o depoimento dosobrevivente,aimprensadivulgouqueachacinafoicomandadapelos“capitães”MaroagaeComprido.Segundoos jornais, tudoparecia tranquilo atéporvoltadas cinco horas do domingo, dia 29, quando os índios iniciaram um canto deguerra e deflagraram o ataque. Teriammatado primeiroMonteiro e Aguiar, aflechadas,quandoelesestavamnasredes.Aoperceberoataque,Gilberto teriasaído do posto e dado dois tiros de revólver para o alto, tentando assustar osíndios.Masfoiatingidocomduasflechadasnascostasegolpesdeborduna.Aquartavítima,Oswaldo,morreulogodepois,enquantocorriaparachegaraorio.29

Porém, o Saterê deu versão um pouco diferente ao indigenista Carvalho,quandoestelhecobrouinformações.Ferreiradissequehaviadormidodooutrolado do rio Abonari por recomendação de Gilberto, para vigiar os índios. OSaterêacordoucedoeiapelorioemdireçãoaopostoquandoouviuosgritosdeguerra e em seguida “notouqueGilberto estava empénavarandada casadoposto, gritando e gesticulandomuito”. Segundo o índio, houve umbarulho de“fuzilaria”eeleviuumgrupodeíndioscorrendoemdireçãoàmata.Suavisãofoi prejudicada por uma “intensa neblina”, comum naquela época do ano enaquelehorário.30

Os corpos foram resgatados, de novo, por uma turma de funcionários doempreiteiro André. Tanto Robertinho quanto Raimundo Silva disseram queestavam no mesmo grupo. Quatro décadas mais tarde, eles acrescentam uma

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informação que não apareceu nem na imprensa nem nos relatórios oficiais daépoca:umíndiotambémfaleceunaquelamanhã,talvezmortoatirospelopilotodoaviãonomomentoemquecorriapelamataparaescapardoataquedosíndios.Ouvidos emdiasdiferentes edistantesmaisde cemquilômetrosumdooutro,nas localidades de Santo Antônio do Abonari e Presidente Figueiredo (AM ),RobertinhoeSilvacontaramtervistoocorpodoíndiocomburacosdebalanoabdômen.Robertinhoviu três furos,Silvadisse tervistodois e estimouqueoíndiomortotinhacercade25anos.

Robertinhorelatouquefoielequemencontrouocorpo,numapicada.

Quandocheguei,viopilotodoaviãonumapicada.Eumíndiopertodele.[Opiloto]tinhaumrevólvercalibre32,quetinhadisparadoasbalastudo.Opiloto tinha três flechasmetidas dele. O índiomorreu de tiro. Asmarcastavammaisnointestino.Parecequeopilotoatirouassimemseguidapá-pá-pá.

RobertinhoeSilvaconcordamtambémqueocorpodoíndionãofoiretiradodo local. “O corpo do índio estava uns trezentosmetros do posto.Deixemoocorpo lá.Não sei [omotivo].Eunão ia apanhar, oExércitonãoquis apanhar,apanhousóocorpodooutro[piloto]”,contouSilva.“NósnãolevamosocorpoporqueaFunainãoconsentiu”,disseRobertinho.

SilvacontouquetodososservidoresdaFunaideramtirosduranteoataque,poisosrevólveresachadoscomosfuncionáriosestavamcomtodasascápsulasdeflagradas.Aordemnoórgãoera,emcasosdeextremanecessidade,atirarparacimaparaassustaros índios.MasSilvaachaqueoutraspessoassaíramferidasdo confronto, pelos sinais que encontrou no local. “Era muito sangue, muitosangue.Aquele sangue não era só doGilberto e do pessoal daFunai, de jeitonenhum.E tinhacaminhode sanguedopostoatéascanoas, sanguepingando.Eraumacachoeiradesangue.”

Osdois trabalhadoresconheciamGilberto,quedevezemquandoaparecianoscanteirosdaobra.Elesencontraramocorpodosertanistanacasadoposto,deitadodebarrigaparacimaeo“peitopartido”,disseRobertinho.Osertanistatinhaapenas49anos.

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Casado e pai de dez filhos, dos quais oito biológicos e dois de criação,amazonensedeAutaz-Mirim,GilbertoingressounoSPIcomapenasquinzeanos,emjaneirode1941.Segundoafamília,suamãe,Maria, tinhaorigemindígenamura. Dos 34 anos que ele dedicou ao trabalho indigenista, seis foram notrabalho com osWaimiri-Atroari. Pouco antes de morrer, recebeu da Funai aMedalhadeMéritoIndigenista,amaisaltahonrariadoórgão.Tambémfoiseudelegado.31Portanto,Gilbertoestavalongedeseruminiciantenocontatocomos índios. A julgar pelas declarações atribuídas a ele e publicadas após suamorte, ele também sabia que as condições oferecidas pela Funai para o seutrabalhoerammuitoruins,oquefaziaaumentarosriscosquecorria.

Em 31 de dezembro, dois dias após a chacina, O Estado de S. PaulopublicouoqueteriasidoumadasúltimasentrevistasconcedidasporGilberto.AconversacomorepórterManoelLimaocorreunoprimeirosemestrede1973,nacasadosertanista,emManaus.GilbertoaparecedizendoquesofriacensuradaFunai,quenãoodeixavaseexpressar“abertamente”sobreosWaimiri-Atroari.Sempre que era assediado por jornalistas, contou, a entidade o ameaçava dedemissão.Deformacontraditória,dissequenãopretendiafazercríticasàFunai,mas ao mesmo tempo deixou registrada uma potente denúncia sobre ascondições de trabalho oferecidas pela ditadura. Ela cresce em importânciaporquevemdeumdosprincipaissertanistasdopaísnaépoca:

Estoucansadodeilusões;sepeçomaisgente,nãomedão;sepeçoaumentode salário para o pessoal, tambémme negam.Quem é que quer ir para omato,sofrer,ficar longedafamíliaparaganharumordenadodefome?Euvou porque é a minha profissão. […] Falta pessoal especializado eexperimentadoemlidarcomosíndios.Ospostosdeatraçãonãooferecemsegurança nenhuma. Os homens ficam abandonados em plena mata, semqualquer condição de reagir a um ataque. O índio também não lhe dáchance.

Gilbertocomparouascondiçõesdetrabalhonaáreawaimiri-atroaricomasdoParqueIndígenadoXingu,onde,segundoele,haviacondiçõesde“aculturaroíndio”.“Osíndiosdaquiestãovoltandodeondeelesvêm:doprimitivismo.Isso

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nãoéatrairnempacificaroíndio.Étorná-loumserrevoltado,umadasrazõesdaschacinas.”

Na mesma entrevista, ao sertanista é atribuída uma declaraçãopremonitória.“Medodosíndioseunãotenho;confioneles.Tenho-oscomomeusfilhos,considero-osoprolongamentodaminhacasa.Andoarmadoderevólvernafloresta,masnãoatironosíndiosemcasodeumataque.Sememataremumdia,paciência.”

A entrevista publicada também sofreu um corte do governo, que mantinhacensoresnaredaçãodojornal.Nolugardotrechoextirpado,ojornalpublicouaexpressão“Oslusíadas”,deCamões.Opontoretiradofoiestafrase:“ApolíticaindigenistaemtermosdeWaimiri-Atroariéumpoucofalha”.32

UmnúmeromaiordefuncionáriosdaFunainaregiãoteriaumefeitopsicológicoimportantesobreosíndios.DepoisdamortedeGilberto,amedidafoidefendidaàsclarasporOrlandoVillasBôas,quefaloudanecessidadede“organizarumaexpediçãomaisnumerosa”.“Onúmeroéimportanteparaimpressioná-losenãoparalutar.Éprecisoquevejamqueossertanistasestãoemigualdadecomelesparaqueosrespeitem.”33

Anos depois, um relatório produzido pela antropólogaHildegartMaria deCastro Rick também acusou a Funai de ter reunido um número de servidoresinferioraonecessário.

Analisandoosmassacresocorridos,vemosumafalhacomumemtodoseles:na ocasião do massacre a área não apresentava número suficiente defuncionáriospara“igualarforças”,ouseja,osWaimirieAtroarisentindo-sesuperioresesegurosdequenãoiamperder,comodefatoocorreu,atacaram.A falta dematerial para apoio logístico e a desqualificação profissional eintelectualdosnossos trabalhadoressãofalhasconstantesequedevemserevitadasecorrigidas.34

AsrazõesparaachacinadeGilbertoesuaequipenuncaficaramclaras.Comopassar do tempo, a família começou a acreditar num motivo surpreendente.

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Segundodiversos relatos,os índiosgostavamdeleealgunschegaramapassarum dia na casa do indigenista, emManaus. Esse fato, somado a informaçõescoletadas ao longo dos anos, deu a um dos seus filhos, Gilmar, o único queconstruiu uma carreira na Funai após a morte do sertanista, por mais de trêsdécadas, a convicção de que o pai morreu por uma simples superstição dosíndios.

Comoeleiaseaposentar,deveterfaladoparaosíndiosqueiaembora,quenão iriamais para lá, que iriam outras pessoas. E com isso, acho que osíndios — era um ritual, cada um tem sua cultura — queriam deixar oespíritodelelá.[…]Oquemefalaraméquesematassemele,oespíritodeleficariaali.Papaiosprotegia,faziadetudopelosíndios.35

Sea teseéverdadeira,Gilberto teriamorridopelaconfiançaqueos índiosdepositavamnele,aliadaaomedodoqueosoutros“civilizados”poderiamlhesfazernofuturo.

Nosanosseguintes,Carvalhotocoupoucasvezesnoassuntocomosíndios.Quando inquiridos, logomudavam de assunto.O indigenista nunca ouviu dosíndiosumaexplicaçãodetalhadasobreasrazõesdamortedoamigo.

Achacinafoiaquartaocorridanaáreawaimiri-atroarinumintervalodeapenasdois anos — de janeiro de 1973 a dezembro de 1974. Dezesseis pessoas aserviçodogovernofederalhaviamsidomortaspelosíndios,sendotrêsoperáriosligadosao6oBECetrezecontratadosdaFunai.AmortedeGilbertodesencadeouuma série demedidas do Exército que estão na base de todas as denúncias edúvidasquepairamsobreoquedefatoocorreucomosíndioswaimiri-atroariapartir de janeirode1975.Depois da chacina, ao contrário do aconselhadoporVillasBôas,ogovernonãomontounenhumaexpediçãoemdireçãoaos índiosparatentar“pacificá-los”.OExércitopreferiurecorreràpresençaarmadanaáreaindígenadeumaformamaciçasemparaleloatéentão.

Anosmaistarde,oempreiteiroAndréconfirmouqueoExército“achouporbemenviarumgrupamentodo1oBIS”paraprotegerocanteirodeobrasdepoisdamortedeGilberto.36EssaunidademilitarfoifundadaemManausem1915

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com o nome de Batalhão de Caçadores. Na ditadura, teve sua denominaçãoalterada em 1969 para Batalhão de Infantaria de Selva (BIS ). Suas tropasatuaram contra as forças da Revolução de 1924 em Belém, combateram aRevolução de 1932 em São Paulo, e também participaram “das operações noAraguaia” em 1974, em referência à guerrilha do Araguaia. Portanto,diferentementedeumaunidadedeengenhariaeconstrução,comoo6oBEC,oBIS,queagoraentravanaáreawaimiri-atroari,eraumaunidadetreinadapara“ocombatecontrarevoltososerebeldes”.37

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11.IRREVERSÍVEL

NA ENTREVISTA QUEME CONCEDEU EM 2015, MONT’ALVERNEPIRES, chefe da Funai na época das obras no território waimiri-atroari,confirmouqueoExércitodeslocoutropasdoBISparaaregião.QuandoindagueiseeraverdadequeoExército“entroumaispesadonaárea”,Mont’alvernedisse:

Foi.Mastinhaqueser,né?Senãoosíndiosfechavamaestrada.Tinhaqueaumentar[apresençamilitar]paradarsegurança.PorqueaFunainãodavamais segurança. O homem que dava a segurança era o Gilberto, era ohomemqueconversavacomostuxauas.

Ao determinar a entrada doBIS na áreawaimiri-atroari, o Exército estavatornando realidade um jogo de guerra que havia executado em novembro de1969 no território deRoraima.A chamada “OperaçãoAtroaris”, encerrada nopátio do 6o BEC , foi uma série de exercícios simulados de contraguerrilhaexecutadospeloCentrodeInstruçãodeGuerranaSelva.Oexercíciomobilizou1250 homens do Exército, 250 da FAB , “esquadrilhas de aviões B-26,bombardeiros,aviõesde reconhecimentoeataque,umaviãoHerculesC-130eumhelicóptero”.1Participaramsoldadosdomesmo1oBIS,entãoemBelém.Ossoldados treinaram saltos de paraquedas, abordaram e “renderam”, comoinsurretos,moradores da região. Por fim, atacaram um fictício grupo de dozeguerrilheiros comandado pelo comunistaChicoBoião , que, com seu parceiroKid Maconha , tinha o apoio da população local e também sequestravajornalistas“vendidosaoimperialismo”.

OExércitodistribuiunaregiãoumfolheto intitulado“OperaçãoAtroaris”.O papel inclui o desenho de um homem, desarmado e caindo, prestes a ser

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atingidoporumíndioarmadocomummachadodepedra.Otexto,assinadopelo“Comandante do teatro de operações”, conclamava eventuais guerrilheiros naárea a se entregaremaoExército,delatarememataremseus companheiros emarmas.

GuerrilheiroLêcomatençãoesta“mensagem”GuardaestefolhetocomcuidadoEleéoteupassaporteparaavida.EstáscercadoTeusmomentosestãocontadosVênaOperaçãoesboçadaqueoteufimEstápróximo!TeuscompanheirosestãomorrendoTumesmopodesestarferidoOssoldadosbrasileiros—teusirmãosEstãocadavezmaispróximos.Aaviaçãobombardeiasemcessar.Olhaabandeiradeseu[sic]paísÉsbrasileiro—lembra-tedistoReflete,pensabem—overdadeiroinimigoPodeestarateulado!Repudia-o,aprisiona-o,mata-oIrmão—rende-teTeupassaporte:estamensagemEarecompensa,avidaTeufuturo:perdão.2Poucos anos depois da “Operação Atroaris”, no papel dos comunistas

subversivos agora apareciamos índios.Nocenário real,ChicoBoião só podiaseroíndioMaroaga.

As tropas do BIS já estavam na área quando, semanas depois da morte deGilberto, um grupo de cerca de vinte índios aproximou-se do acampamento,

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segundo rememorou Robertinho , o mateiro que tivera “medo sertanejo” aochegar à maloca dos índios meses antes. Eles estavam armados com arcos eflechasecarregavambananasmaduras.Pediramqueasoperáriosascomessem,mas alguns se recusaram porque os índios amassavam o fruto com as mãos.Nessemeio-tempo, umoperário “correu escondido”para avisar uma turmadoBIS,queestavaacampadaacercadevintequilômetros.DepoisRobertinhoviuchegar“umcaminhãodoBIScheiodesoldado”.3

Foram chegando, pulando embaixo [no chão], botando as armas em cimadeles[dosíndios].Euacheiaquiloalimuitatristeza.Opessoaltodomundoarmado e os índios desarmados, fracos, doentes de fraqueza. Eu dizia:“Tenente,nãofazassim,nãoaceitaumacoisadessas,nãoépossível fazerdessejeito”.Eledisse:“Masporquê,vocêquermandarmaisdoqueeu?”.Eudisse:“Nãoquero,euqueroqueosenhorentenda.Osenhorestáarmado,elesnão”.[…]Ossoldadoscadaumcomummosquefal[fuzil]comaquelabaioneta,cutucandoeles.

SegundoRobertinho,partedosíndioscorreuparaamata,masumgrupodeunsdozefoicercadoecolocadonocaminhãodoExército.Essesíndiosestavam“forçados,chorando,semijandodemedo.”

Robertinhodissequeseofereceuparairjuntocomosíndiosnacarroceriadocaminhão.Aideiaeralevá-losparaumabasedo6oBEC,segundoooperário.Mas, no caminho, eles foram pulando do caminhão para a mata sem que ossoldados pudessem reagir. Quando o caminhão chegou ao acampamento,restavamapenascincoíndios.“LevaramessesparaaCasadoÍndio,emManaus.[Depois]eunãovimaiseles,nãosei se trouxeramdevolta, seaFunai tomouconta.”

Episódio narrado por outro operário, Raimundo Pereira da Silva, guardasemelhanças com a história contada por Robertinho . Ele relembrou que porvolta de 1976 trabalhava com seus colegas no desmatamento quando viu seaproximardoacampamentoumgrupodesoldadosdoExércitoescoltandocercadequarenta índiosdesarmados. “Quandonósdemos fé, oBIS jávinhacomosíndios,empurrandonabocadoFAL[fuzilautomáticoleve].Fizeramelessubirno

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caminhão. […]Eles tremiam.Nóssubimosnooutrocaminhãoe fomosparaoBEC.”

Noacampamento,segundoSilva,ossoldadosderam“seiscentostirosdeFALnomato”nafrentedosíndiosparademonstrarseupoderdefogo.“Omatocaía,caía, com aquele fuzil automático leve. E os índios olhando. Tremendo,tremendo.Depoismandaramembora.Eles saíramque saíram.Desapareceram.Nósnuncamaisvimos[essesíndios].”

Silvadisseque“todososdias, atéo finaldasobras”,oExército repetiaomesmo ritual, “com seiscentos tiros demanhã e seiscentos de tarde” nomatoperto do acampamento emque ele estava.Essa estratégia guarda total relaçãocom a ordem escrita do general Paes, de que os militares deveriam fazer“pequenasdemonstraçõesdeforça,mostrandoaosmesmos[índios]osefeitosdeumarajadademetralhadora”.

Robertinhodissenãose lembrardos tirosdefuzilnomatoe tambémnãosoube da “demonstração” feita para os índios. Eles podem ter trabalhado emacampamentos diferentes— vários foram instalados e removidos ao longo daestrada—e,assim,terlembrançasdeepisódiosdiferentes.

***

Naquelamesma época, um contato direto entremilitares e indígenas voltou aocorrer em outro ponto do Norte do país, no sul do Pará, onde o governomobilizou tropas para aniquilar os integrantes daGuerrilha doAraguaia. Parausá-los como guias na mata, os militares recorreram aos índios suruí, que seautodenominavamaikewara,daterraindígenaSororó,nomunicípiodeSãoJoãodoAraguaia (PA ).Eramnãomais que sete dezenas de índios, que viviamemextrema dificuldade. As terras mais férteis estavam “na região onde hácastanheirasequeforamtomadaspeloscivilizados”.4

SegundoconcluiuumgrupodetrabalhodaFunaiemdezembrode1976,5

osSuruí sãopaupérrimos.Vestem-secomandrajosobtidosatravésdoqueganham trabalhando para civilizados. Suas terras atuais, arenosas, pobres,jazem sob o enganoso disfarce de floresta milenar, hoje escassa da

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abundantefaunaqueacaracterizava.

Ao longo do século, os Suruí foram caçados, vandalizados e acuados,empurradossemparardeumladoaoutroparaliberarparafazendeirosvizinhosasáreasricasemcastanhais.AvelhaíndiaMurucontouaopessoaldaFunaiquecerta feitaesquentavaáguaquando levouum tirode raspãonacabeçade“umataque de muitos brancos”. Em outra ocasião, viu um “civilizado” atirar nadireçãodeumaíndiaquecatavapiolhosdesuafilha.“Acertaramnacriança,quemorreualimesmo.”

O Suruí Uareny, que calculava ter cinquenta anos de idade quando foiouvidopelaFunai,em1976,disse tervisto“muitosataques”e fugido“muitasvezes”.“Osbrancoserammuitomaus.Usavamcachorroscontranósequandoalgumíndioeraacuadonumaárvore,elesatiravamcomosefossenummacaco.”6

Em 1968, após intenso trabalho do missionário Gil Gomes, a ditadurareservou apenas 5 mil hectares para os índios. Oito anos depois, a Funaireconheceuqueaáreacorretaerabemmaior,demarcando26,2milhectares,masaindamuitoaquémdareivindicaçãodosíndios.

Porvoltade1972,osmilitareschegaramaSororódeformaestrepitosa,emhelicópteroseporterra,atrásdosguerrilheiros,causandograndesalteraçõesnavida da aldeia. Os relatórios produzidos pela Funai na época passíveis deconsulta, porém, não registram detalhes dessas atividades. Na documentaçãoproduzidapelasForçasArmadaseanalisadapelaComissãoNacionaldaVerdadetambém havia “um total silêncio sobre a utilização dos Aikewara”. 7 Mas amemória dos índios, ouvidos pela CNV , expressou que eles trabalharam sobcoação e ameaça.Os índiosTawé eApi, levados pelamata, disseram ter sidoprivados de água e comida durante três dias, enquanto os militares sealimentavamnormalmente.

Na aldeia, os soldados costumavamdar tiros nomato, o que assustava osíndios,segundoaíndiaTeriweri,etambémproibiamosSuruídesairparacaçar,dizendoquecorriamoriscodesermortospelosguerrilheiros.RelatórioentregueàCNVnarrouqueoperíodofoi

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marcado pela desorganização social e cultural profundas, fome intensa e,sobretudo, medo da morte impostos pelas forças repressivas que serevelaram traumáticos, com sequelas físicas e psicológicas como abortos(espontâneos),tuberculosepulmonar,surdez,pesadelosrecorrentes,insônia,entreoutras.

Osmilitaressaíramdaregiãohabitadapelosíndiosem1974.8

Em Roraima, parte da imprensa passou a sugerir que havia “civilizados”,inclusivevenezuelanos,instigandoosíndioswaimiri-atroaricontraosmilitares.Um jornal de Manaus, tendo por base o depoimento de um juiz de direito,chegou a divulgar que Maroaga era, na verdade, “um ex-oficial do Exércitovenezuelano”.9

UmmilitardoExércitoqueestevenaregiãonaépocadaconstruçãodeixouregistradoquetambém“falava-semuito”sobre

cubanos que poderiam estar assessorando Maroaga. Atribuía-se o uso dearmasdefogoaos índios—oquenãoeraverdade.Dizia-sequeMaroagaeracomunista,alienígena[estrangeiro],agentedaCIAe tantascoisasmais.Ninguém ignora a importância do fator psicológico dentro do contexto dequalquercontenda.10

Após a última chacina, houvemuita instabilidade no comando das frentes deatração.O sertanista que iria substituirGilberto, SebastiãoAmâncio daCosta,nascidoem1943emJacutinga,suldeMinasGerais,nemchegouadesenvolvertrabalho algum na área. Pouco antes de assumir as funções, concedeu umadesastradaentrevistaao jornalOGlobona qual afirmouque estavadisposto afazer uma “demonstração de força dos civilizados”, com “dinamite, granadas,bombas de gás lacrimogêneo e rajadas de metralhadoras”. Também cogitou“deportaçãodoslíderesrebeldesparaoutrasregiõesdopaís,porqueassimelesaprenderãoquenãodevemmatarcivilizados”.11Ogeneral IsmarthdeAraújoOliveira,que tomarapossenaFunai emmarçode1974,mandou investigar asdeclaraçõesdeAmâncio.

Aos setenta anos, recuperando-se de um derrame que lhe tirou parte dos

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movimentosdoladodireitodocorpo,Amânciodisseaoautor,emsuacasaemManaus,que foimal interpretado. “Eraumademonstraçãode força.Os índiosnãoconhecemquemsoueu,seelessabemquemsoueu,elesvãoevitar[atacar].Ojornalistameinterpretoumal,nãoseisepormaldade,earrasoucomaminhavida.”12

Amâncio foi enviado para o vale do Javari. A imprensa não divulgou naépoca,maseleapenashaviaverbalizadoalgoqueopróprioExércitojádecidiranareuniãoocorridaemnovembrode1974noquilômetro220darodovia,comovimospelasordensdogeneralGentil.

NolugardeAmâncio,entrouosertanistaApoena.Poucodepois,emjunhode1975,eledeuumdepoimentoàCâmaradosVereadoresdeManausnoqualameaçoudeixarostrabalhosdeatração,mencionandodificuldadesdelogísticaedepessoal.ElenãoqueriaqueserepetisseatragédiaquevitimaraGilberto.13

Ismarth afirmou à imprensa queApoena ficou novemeses na área, tendosidoretiradodelápordecisãodogeneral,paratentarcontatoscomosíndiosdaetniazoró.14As tarefas de atração foram assumidas pelo sertanista SebastiãoFirmo.Logodepois,atuaramossertanistasEstêvãodaSilvaRodrigueseJulioReinaldo de Morais, o Camiranga . A partir de janeiro de 1976, os índiosiniciaramumprocesso de aproximação como pessoal da Funai com seguidasvisitas em grupos cada vez mais numerosos. Em 20 de janeiro, 35 índioslideradosporCompridoapareceramnumpostodeatraçãoinstaladopeloórgãono quilômetro 308 da BR -174. Os sertanistas interpretaram o episódio como“umaaçãodeespionagem,apesardafalsaaparênciaamigável”dosíndios.15AFunai distribuiu brindes e comida. No dia 6 de fevereiro, outros dezoitoguerreirosapareceram.Nodia25,mais75índiosderamascaras—dessavez,ficaram seis dias nas imediações do posto. O indigenista Carvalho, temposdepois, interpretou as visitas como uma decisão deliberada dos índios de“entregarasarmas”epedirapazcomos“civilizados”.RestouadúvidadoqueocorreuentreamortedeGilbertoeessainesperadadecisãodosíndios.

Emmeio às trocas dos sertanistas, a atividade do 6o BEC seguiu a plenovapor.Emjaneirode1976,oministrodosTransportes,generalDirceuNogueira,inspecionouasobrasedissequearodoviaseriaabertaaotrânsitoaindanaquele

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ano.Noquilômetro380, a comitiva encontrou-sepor acaso comumgrupodequarenta índios “chefiados por Maroaga”. Carregando cestos com banana ecana-de-açúcar, “aparentemente os índios aguardavam os sertanistas da Funaipara troca de presentes”.Não houve atritos e a viagem do general seguiu emfrente.16

Em6deabrilde1977,aestradafoioficialmenteinauguradacomapresençadovice-presidentedaRepública,AdalbertoPereiradosSantos,querepresentouo general ErnestoGeisel. Ele descerrou duas placas fixadas a uma rocha, queserviu de marco comemorativo, colocada no ponto de passagem da linha doequadornaáreawaimiri-atroari.17

Apartirdaliberaçãodaestrada,aFunaipassouatrabalharparaademarcaçãodeumaterraindígenawaimiri-atroari.Realizousobrevoosparacontarasmalocaseprocurou detalharmelhor omodo de vida dos índios. Foram necessários anosparaaentidadequantificar,pelaprimeiravez,apopulaçãowaimiri-atroari.Combaseem“estatísticasfornecidaspelodelegadoda1aDR[DelegaciaRegional]”daFunai, o antropólogo Stephen Baines mencionou que, em julho de 1985, apopulaçãototalerade323pessoas,dasquaisapenas“88homensadultos”.18

Quando os números começaram a ser consolidados, de imediato soaramtodos os alarmes de que algomuito grave havia ocorrido no período 1975-6.Essenúmerodepoucomaisdetrêscentenasdeindígenaseramuitoinferioraoconhecidoatéentão.

Onúmeroestimadodeíndiosvivendonaáreavariouaolongodosanos.Emuma exposição de motivos enviada em 1971 pelo então presidente da Funai,BandeiradeMello,aoministroCostaCavalcanti,queporsuavezreproduziuosdados em outra exposição de motivos enviada ao general Médici, a entidadeafirmouqueaáreawaimiri-atroariregistrava“umapopulaçãode3000(trêsmil)índios”.19Em relatório de1973,Gilberto calculou a populaçãodeWaimiri eAtroarientreseiscentosemil indivíduos.20Informação idêntica foidivulgadaoficialmentepelaFunaiemumanotaà imprensaem30dedezembrode1974.21Emofícionessemesmoano,Carvalhocalculouumtotalde1200índios“emestado primitivo e arredios com contatos isolados”. 22 Em 1976, a imprensa

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falava em até 1600 índios. 23 Um estudo realizado pelo grupo de trabalhoinstituídopelaFunaiem1981continuousebaseandoemumelevadonúmerodeíndios.

Calcula-se que a população waimiri-atroari é de aproximadamentenovecentosindígenas,sendoquinhentosdogrupowaimiriequatrocentosdogrupoatroari,comumgrandenúmerodecrianças.Mesmonosaldeamentosexistentes nas frentes de atração próximas aos PIA s [Postos Indígenas deAtração] é difícil dizer o número exato de indígenas devido à grandemobilidadedosmesmos.24

Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade, instituída pelaPresidência daRepública, afirmou em seu relatório final que nadamenos que2650índioswaimiri-atroarimorreramentre1946e1988porcontadaincúriadoEstadobrasileiro.ACNV,porém,partiudopressupostodequesemdúvidahavia3mil índiosem1972.Segundoacomissão,eles teriamsido“recenseadospelaFunai” naquele ano. Censo, porém, significa uma contagem individual e issonuncaocorreuem1972,massomentemuitosanosdepois,em1986,emtrabalhoconduzidopeloindigenistaCarvalho.

Os números obtidos antes da inauguração da obra, ocorrida apenas nasegunda metade da década de 1970, na verdade decorreram de sobrevoos eestimativas a partir de contatos esporádicos por terra com algumas malocas,trabalhosconduzidossobretudoporCarvalhoeGilberto.Acontagemporaviãoconsistia em fazer estimativas de população a partir do número de malocasexistentes. Esse método, embora útil para projeções de população, é muitodistinto de um censo. Malocas poderiam estar desabitadas ou comportar umnúmerodeíndiosbemmenordoqueocalculadopelaFunai(oórgãolevavaemcontacemíndiospormaloca).ConformeodicionárioHouaiss , recenseamentosignifica a determinação do número de pessoas em uma dada região,“discriminandosexo,idade,naturalidade,estadocivil[…]”.Nadadissofoifeito—enempoderia—pelaFunaiantesdaliberaçãodaobradaestrada.

Afontedos“3mil”nãoéfornecidapelaCNV,masomesmonúmeroconstadaexposiçãodemotivosde1971enviadapelopresidentedaFunaiaoministro

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doInterior.OnúmerotambémaparecenumtrabalhosobreasituaçãodospostosindígenasdaFunainaregiãoamazônica,atribuídoaoanode1972,deautoriadoservidorRubensAutodaCruzequehojeintegraoarquivodeEgydioSchwade.SobreopostodeAlalaúe suapopulação indígena,o trabalhodiz: “Calcula-seem trezentos [índios] na periferia do posto e 3 mil em toda a área”. Não háorigemidentificadadocálculo.

É preciso ver esse número com extrema precaução. Na época, a Funaiprecisavadeassinaturapresidencialparainterditaraáreaporviaslegaiseassimfazer a “pacificação”dos índios—nesse contexto, a fundaçãopode ter usadonúmeros elásticospara chamar a atençãodopresidente.Não se sabe como foielaboradoonúmeroqueaparecenaexposição.

Entretanto, há outros registros confiáveis da época totalmente diferentes.Carvalhoserecordadeterchegado,antesde1974,aonúmerode1,5milíndiospelacontagemaérea(cemíndiosparacadaumadasquinzemalocasavistadas).Em 1973, um relatório de Gilberto apontava entre seiscentos e mil indígenaswaimiri-atroari. Uma nota oficial divulgada pela Funai à imprensa em 1974indicouosmesmosnúmeros.Aconclusãoqueseextraidetodosessesnúmerosdivergenteséquenãohaviaumabase100%confiávelantesdofinaldasobras.Quando as obras da rodovia cessaram, foi possível por fim uma contagemdetalhada.Echegou-seanúmeromuitoinferiordoqueoprojetadopelaFunai.Carvalho, autor do primeiro censo waimiri-atroari de fato, apontou umapopulaçãototalde374indivíduos.

De qualquer forma, os números indicam uma bárbara mortalidade. Se aestimativa mais baixa de Gilberto, de seiscentos índios, estava correta, entãoteriammorridoquase40%dapopulaçãowaimiri-atroari,cercade240indígenas,umnúmeroimpressionante,masmuitoabaixodos2,6milafirmadospelaCNV.

Como se pode perceber, o número inicial usado pela comissão eraimpreciso, o que levou a uma conclusão imprecisa. Recorrendo a aritméticasemelhante(númerodeíndiosdepoisdaditadurasubtraídodonúmerodeantesdaditadura),aCNVtambémafirmouquepereceramentre3,5mile5milíndioscinta-larga no período 1946-88 — os dois números são apresentados semindicação de fonte. Uma das informaçõesmais confiáveis sobre a demografia

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cinta-larga aparece emumestudodo professor JoãoDalPozNeto, doutor emciências sociais emestre em antropologia e profundo conhecedor dessa etnia.Em sua tese de mestrado defendida na USP em 1991, sob orientação daprofessoraManuelaCarneiro daCunha, ele pontuou não haver dúvida de que“até finsdadécadade1960, suapopulaçãopoderia serestimadaentremile2mil indivíduos — os jornais e a Funai citavam, na época, uma cifra muitosuperior,ameuveresdrúxula”.

O pesquisador também fez uma correta observação que é confirmada poroutros pesquisadores e autores. Antes do contato oficial com as equipes daFunai,nofinaldadécadade1960,osCinta-Largacostumavamserconfundidoscomíndiosdeoutrasetnias,comoosSuruíeosZoró.Issoocorreu,explicouoprofessor, porque as outras etnias também “usavam algum tipo de cinto econstruíam malocas oblongas”. Assim, números atribuídos por pesquisadoresantesdosanos1960sobreosCinta-Largapoderiam incluir, semquerer,outrasetnias.Nosanos1980,umacontagemmaisespecíficaedetalhadaapontou514índioscinta-larga.

Éindubitávelqueelesforamalvodevárias“correrias”,ataquesperpetradospor seringueiros e garimpeiros. O mais conhecido e terrível episódio é o“MassacredoParalelo11”,comprovadodemaneiraamplaemprocessojudicialabertoemMatoGrossoepelacoberturadaimprensaapartirde1963.TambéméinegávelqueosCinta-Larga,assimcomoosSuruí,sofreramsurtosviolentosdedoençasdiversasquelevaramaumagrandemortandadeapósocontato.Masosnúmeroscontinuamfluidosenãoconclusivos,aocontráriodacertezaexpressanorelatóriodaCNV.

Os arquivos da Funai não guardam nenhum testemunho direto de eventuaismortesde índiosnaáreawaimiri-atroaripormaisdedoisanos—damortedeGilberto,emdezembrode1974,atéainauguraçãodaestrada,emabrilde1977.25Oquedefatosepassounesseperíododefricçãoentreíndiosemilitareséogrande mistério que cerca o episódio waimiri-atroari. Outro ponto deinterrogação é o destino do cacique Maroaga, de quem não se tem rastrosconcretosdesdeoataquequemassacrouGilbertoesuaequipe,emdezembrode

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1974.Elesimplesmentesumiusemdeixar traços.Seudestinonãoéconhecidonempelosmaisexperientessertanistasquetiveramcontatocomosíndiosdepoisdaaberturadarodovia.

***

Ao contrário de outras etnias, como os Kararaô e os Panará, esses índios, naépoca em que o Exército assumiu para valer a obra, não contavam com umacompanhamentodiretoediáriode sertanistas capazesdedar testemunhosemprimeiramão. Porém, há diversos indicativos do que se passou. Como vimosacima,pelomenosdoisoperáriosdarodoviaconfirmamapresençaostensivadoBIS,a“rendição”dosíndiossobamiradosfuzisecontatosfísicosdosmilitarescomosíndios.

No seu livroMassacre (1996), Silvano Sabatini, amigo do padre Calleri,publicourelatodoíndioPaulinoRondonTukano.Eledissequenãopresenciouoassassinatodosíndios,masqueeramfrequentesosboatosentreosoperáriosdaobrasobre índiosmortosa“rajadasdemetralhadoras”eoutrosmortosquandotocavamcercaseletrificadasqueoExércitoteriamandadoespalharparaprotegerosacampamentos.

Em 1986, o coronel da reserva do Exército Altino Berthier Brasil, queacompanhouaconstruçãodaestrada,escreveuum livrocomumahomenagememparticular “ao anônimo irmãowaimiri atroari, cujo cadávermal enterrado,deparamos,muitasvezes,pelafrente”.Emoutrotrechosombrio,eleafirma:

Ocorrequeoíndionãochora.Masoscódigosqueregulamaaltivezdesuaraça não o impedemde gemer, como qualquer ser humano.E na hora doângelus e mesmo depois, em plena cegueira daquelas noites equatoriais,comovidos, eu cansei de ouvir gemidos pungentes e soluços anônimos—verdadeiros clamores de misericórdia daquela gente, que me pareciacondenadaaumtristeemelancólicofim.

Anosdepois,numaentrevistaconcedidaaumjornalsindical,perguntou-seaocoronelsobrecomofoiresolvidaarelaçãoentreosíndioseosresponsáveispelaobra.

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Foi resolvidomeio a ferro. Era uma luta desigual.O batalhão que estavatrabalhandolánãotinha interessenenhumdefazermorticínio.Mas levavamuitosassaltosdosíndios.Osíndiostinhampavordobarulhodasmáquinas,atacavammesmo. Tenho em minha casa flechas que caíam em frente dacasa,docarro.Aquelesíndioserammuitoaguerridos.26

Passadasmaisdequatrodécadas,ooficialdoExércitoque tevecontatodiretocomaobradarodoviaaceitoudiscutirosnúmerosdemortos.Elemeconcedeuentrevista por telefone e depois me recebeu em seu apartamento em PortoAlegre. Com quase noventa anos, o coronel Altino Berthier Brasil exibiaexcelentes memória e articulação de ideias e frases. Ele foi subsecretário deSegurança do Amazonas entre 1972 e 1975, na época da obra. Depois que arodovia rasgouamata,ogovernodistribuiu lotesparacolonosquedesejassemviveraolongodaestrada.UmdessesnovosmoradoresfoiBerthier,queapartirde 1974 ocupou um lote de quinhentos hectares, a fazenda Pedras Verdes.Assim,elesetornouumatestemunhaprivilegiadadaobra,tantopelafunçãoqueocupounogovernodoAmazonasquantopelo fatode ter sidoummoradordaregião.

Berthier disse não ter testemunhado a morte de indígenas, mas recolheudiversasinformaçõesdosmilitaresepresenciouaatividadedoExércitonaáreaaolongodeanos,conversandocomoficiaisamigosecomoutrosmilitaresqueeram recolhidos e deixados na retaguarda da obra. Também afirmou ter vistooperáriosferidoscomflechassendoatendidosemhospitaisdaregião.Ocoronelchegouaváriasconclusões.

“Quantosíndiosmorreramduranteaobra?”,indaguei.

Não tenho a estatística assim maior. Mas eu acho que no máximo unsquarentaoucinquenta.Maisoumenosomesmonúmerodesoldadosmortosoudosexploradoresqueavançaramorio.Foimaisoumenosequilibradoonúmerodemortesdeumladoedeoutro.Nãotenhoumaestatísticaperfeita.Masnãofoiumacoisaexageradamente,uma“coisadearrasarassim”,não.Foramcontatos,digamos,violentos,eambososladosfaleceram.27

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“E qual é a causa das mortes desses quarenta ou cinquenta casos?”,perguntei.

“Olha, forammortosporencontrosarmados,deumladoedeoutro.Achoqueparasecontaressahistória,[deve-seconsiderar]quealinoAmazonasoquehouve foi uma disputa de território.” Para o coronel, essas mortes ocorreramduranteencontrosfugazesentregruposdemilitaresedeíndios.“Euconversavacom meus amigos militares e vi o sofrimento deles. E a paciência que elestinham.Derepente,surgiadomatoalgunsíndiosehaviaconfrontosesporádicos,corre-correetal.Eassimfoi.”

Osoperáriosdalinhadefrentetambémeramatacados,segundoocoronel.

Elesestavam trabalhandocomfoice, comfacão, lána frente, ede repentelevavamumaflechada.Edaíocompanheirodoladojáatirava.[…]Nuncahouveumaordemassimparamatar,paratomarainiciativadeatirarematar.Haviareaçãoemcontatosdesurpresa,queobrigavacadaumapuxarasuaarma.Jamaisoperaçõesorganizadas.

Berthiercontouqueosmilitareseramsubstituídoscomfrequência,pois“acoisaeraapavorante”e“haviasempreumclimademedonoar,muitomedo”.

Depoisdeuma longaentrevistapor telefone,estivecomocoronelemsuacasa,nofinalde2014.Elemanteveasdeclaraçõesanteriores,comexceçãodonúmero de “quarenta ou cinquenta” índios, sobre o qual passou a manifestarprecaução.“Essenúmeroassimfechado,eunãotenhocomoafirmar.”

Depois das declarações deBerthier, outrosmilitares passaram a colaborarcom informações que me levaram ao coronel Lauro Augusto Andrade PastorAlmeida,moradordeManaus(AM),quede1976a1978foiochefedoEstado-maiordogrupamentodeengenhariadogeneralGentil,comandantedaunidadedejunhode1974amarçode1978.Ocoroneldissequenãosesentiaàvontadepara conversar pessoalmente sobre o assunto, pois não teriamuito a colaborarcom a pesquisa,mas falou ao telefone.Disse que havia uma divisão clara detrabalhos na rodovia: o grupo de engenharia — ao qual ele pertencia — seocupavadaobra,enquantooBISfaziaasegurançadoperímetro.Tratei logode

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indagar sobre asmortes dos índios emconfronto.Oque sabia, respondeu, eraapenasaquiloqueouviuderelatosdecolegasmilitaresnaépoca.

“A gente sabia que tinha havido entrevero. Mas o que que acontecia?Quando acontecia alguma coisa com um índio, imediatamente eles [índios]retiravam...Elesnãodeixavamocorpo.Nãotinhacomocontabilizar,entendeu?Não havia como contabilizar porque o índio não abandona o corpo. Então agentenãosabiasetinhacaraferido,setinhacaramorto.”

“Masocorrerammesmodisparosnamata?”,euquissaber.

“Aordemqueexistia eranãoatirardiretamentenos índios, era atirarparacima,parasedefender.Ninguémpodiaatirar.Oqueeusoubeeraqueocapitão[responsável],naépocacapitão,eramuitoduro,eraum‘Rondon’navida.Elenãoadmitiaqueseatirasseemíndio.”

Euquissaberondeestavamosdocumentosdoperíodoquedemonstravamasetapasdaconstruçãoe,por raciocínio lógico,osembatescomos indígenas.Elemedeu uma resposta de certa forma esperada,masmesmo assim terrível,paraarecuperaçãocompletadosepisódios.

“Vou ser absolutamente sincero com você. O que eu soube é que adocumentação daquela época foi toda destruída. Porque não era só relativo [aisso]…Nós tivemos aquele período também da ‘Revolução’. Aquilo tudo foidestruído.”Ocoronel engenheirodoExército JoãoBatistaFagundes, ex-representantedasForçasArmadasnaComissãoEspecialsobreMortoseDesaparecidosPolíticosapartirde2003eex-deputadofederal,foitenentedo6oBECnosanos1970,tendochegadoà regiãodepoisdaconclusãoda rodovia.Durante trêsanos, trabalhoujuntoaogovernodeRoraimaeouviudiversosrelatossobreaBR-174deoficiaise militares do batalhão de engenharia. Fagundes disse que morreram índiosdurante a obra, na sua opinião nas mesmas condições de confrontos casuaiscomoosnarradospelocoronelBerthier.

“Morreu gente de ambos os lados. Não estou dizendo que só morreramsoldados,não.Morreumuitoíndiotambém.”28

“Quantosíndiosteriammorridonessesconfrontos?”,euquissaber.

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“Ah, uns vinte. É, uns vinte. Porque do nosso lado morreram quinze. Agentetinhabastanterecursoemesmoassimmorreuessemundodegente.”

Fagundescontouqueosmilitaresquemorreramduranteaobra foram“detiro, de bala, de flecha, de borduna. Esses índios eram realmente aguerridos”.Disse também que havia muitos comentários sobre essas mortes, mas “a estaaltura,viu,issojáestámaisoumenossepultadonoescaninhodahistória.Nãosecomentamuito.Massabe-sequehouveconflitoetal”.

SegundorelatodeFagundes,certavez,anosapósainauguraçãodarodovia,ele presenciou uma conversa entre um líder indígena e militares. Os índioshaviam passado uma corrente na BR -174 para impedir a circulação de carrosdurante a noite.Osmilitares pediram que a corrente fosse retirada. Em troca,contudo,oíndiopediuqueosmilitaresretirassemomonumentoinauguradoem1977 pelo vice-presidente da República com os nomes de militares e civismortosduranteaaberturadaestrada.“Oíndiodissemaisoumenosassim:‘Temnome de soldado, de padre, de todomundo.Mas não tem nenhum índio, quemorreu também. Então para nós esse monumento é um ultraje’. Sob certoaspecto,eletinharazão.”

Omonumentodatadodeabrilde1977,formadoporduasplacasfixadasaumarocha, trazia os nomes de quatromilitares—um tenente, um sargento e doissoldados—e28civisquemorreramduranteasobrasdeconstruçãodarodovia.NenhumdosmortosdaFunaioudeíndioseramlembrados.Abaixodosnomes,afrase:“Nãomorreramemvão!”.Numaplacamenor,ainscrição:“Umanaçãoseconstróicomoesforçodetodos”.29

Quando percorri de carro aBR -174 no início de 2014, nada encontrei notrechoondedeveriaestaromonumento.SegundoCarvalho,elepróprioretirouapedradolugaroriginal,apedidodosíndios.

Logo após o final da ditadura, Egydio Schwade, do Conselho IndigenistaMissionário(Cimi),coletoudepoimentosdeíndioswaimiri-atroariquenarraramaviões cuspindo fumaça tóxica, tiros e assassinatos de índios durante aconstruçãoda rodovia.Elecondensouseu trabalhoemumrelatórioentregueà

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CNV,equeapontouumnúmerosuperiora2milíndiosmortosnoperíodo.No relatório “O genocídio do povo waimiri-atroari”, entregue à CNV em

2012,Egydio contouque em1985, ao ladode suamulher,Doroti, iniciouumprocessodealfabetizaçãodosíndios.Nasaladeaula,osíndioseramestimuladosadesenhareafalarsobreopassado.Elesentãopassaramarevelar,segundoorelatório, “o método e as armas que os kamnã [‘civilizados’] usaram paradizimá-los: aviões, helicópteros, bombas, metralhadoras, fios elétricos eestranhasdoenças.Comunidadesinteirasdesapareceramdepoisquehelicópterosde soldados sobrevoaramoupousaramemsuas aldeias”.Surgiram indíciosdouso de substâncias incendiárias despejadas de aeronaves. Segundo o relatório,um indígena certa vez indagou aEgydio, em1985: “O que é que ‘civilizado’jogadeaviãoequeimaocorpodagentepordentro?”.

Mont’alvernePires,chefedaFunaiemManausnaépocadaobra,tachaosnúmerosde2milou3milcomo“invencionices”.Eledisseque“nuncaviuumúnico” índio assassinado pelosmilitares e afirmou que na época não existiamnemmesmoboatossobretaiscrimes.Porém,reconheceuquedeixouocargoem1976, portanto um ano antes da abertura da rodovia, a partir de quando foipossível fazer um balanço mais amplo do impacto da obra. Mont’alvernetambém concordou que o controle efetivo da área não era da Funai, e sim dogeneralGentil,comoqualpoucoconversava.Segundooex-chefedoórgão,ogeneraltocouaobra

nopeitoenaraça.Afunçãodeleeragarantirqueostratorespassassemali.Nasraríssimasvezesemqueconversamos,elenãofalavanada.Euinclusiveperguntava: “General, tá precisando de alguma coisa?”. Ele dizia: “Não,não.Tá tudobem”.Emesmoqueele fizessealgumacoisaerrada,elenãoiriacontar,né?Vocêacha?30

As dúvidas quanto ao número demortos na áreawaimiri-atroari decorrem doevidentedescontrole,porpartedoExército,sobreoestadodesaúdedosíndios.Em1985,asituaçãoeraamesma,comoconstatouumgrupodepesquisadoresda Universidade do Amazonas, em convênio com a Funai. Após umlevantamentonasquatroprincipaisaldeias,aequipeconcluiuquesimplesmente

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osdadosdemortalidadeeraminexistentes,nãohaviainformaçõessistematizadassobre doenças e muitas fichas individuais “nunca foram preenchidas”. 31 Osíndioseramentãoatendidospelo6oBECeporumamineradora;casosmaisgraveseramenviadosàscidadesdaregião.

SebastiãoAmâncio,aquelequechegouasercotadoparachefiarafrentedeatração, diz que surtos de doenças,mal combatidos emal registrados, podemexplicar a redução da população indígena na área, e não os embates armadoscommilitares. “Houve na primeira aldeia um surto de sarampomuito grande.Morreu muito índio, somente jovens. A estrada passava ali. Eu sei porquechefiavaaFunaiemManausnaépoca.Nãoseiquantosforam.Podetersidounsdez índios.”31Amâncio disse que surtos semelhantes podem ter ocorrido emoutraspartesdaárea,semcontroleeconhecimentodaFunai,pois“osrioseramabertosemuitagentetransitava”.

Inexistemcontrovérsiasemrelaçãoaoimpactodepelomenosumsurtoviolentodesaramponaárea indígenawaimiri-atroari.Em1981,portantoapenasquatroanos após a abertura da rodovia ao trânsito de veículos, 21 índios morreramvitimados pela doença.Três relatórios daFunai comprovam amortalidade,33além de “relatórios e radiogramas da época” localizados pelo antropólogoStephenBainesereunidosemumestudoqueeleconcluiuem9desetembrode1985.34

Em1982,disseBaines,o indigenistaCarvalho fezumadenúncia formalàpresidênciadaFunai.

OsfuncionáriosdaFunainaáreaforamunânimesemafirmarqueosóbitosocorreram por falta de cuidados administrativos da 1a DR , para quemapelaramcompedidosdesocorroenãoforamatendidosatempo.AequipemédicadaFunaiemManaus,apesardosinsistentesapelos,nãoacompanhouno localo tratamento.Omedicamentoespecíficonãochegoua tempo.Asmedidas necessárias para tentar salvar os índios enfermos não foramtomadas.

Bainescitouaorigemdosurto,denovoumresultadodoprecáriocontrole

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desaúdedosindígenas.Tudocomeçoulogoapósoretornoàáreadeumgarotoindígena que havia sido tratado de tuberculose naCasa do Índio daFunai emManaus.

Quandoocorreuoúltimomassacrede trabalhadoresdaFunainaáreawaimiri-atroarino finalde1974, sertanistas sugeriram,pela imprensa,aparalisaçãodaobra até que os contatos com os índios fossem concretizados dentro dasmelhorestécnicasindigenistas.Ogoverno,porém,nuncacogitoupôrtalmedidaem discussão. A rodovia sairia de qualquer forma, independentemente dasituaçãodosíndios.OgeneralIsmarthdeixouexpressaessaposição.

Há uma coisa que é certa: a decisão do governo, que é irreversível, decontinuaraestrada.Então,asnossassoluçõestêmdepartirdessapremissa:comaestrada.Evidentemente,seriamuitomaisfácilsepudéssemosoptar,com ou sem a estrada, e apresentar soluções para o problema. Mas umaalternativajáfoitirada[excluída]—adaestradaparar.Ogovernojádefiniusuaposição.35

IsmarthfezaexposiçãoduranteumareuniãodoConselhoIndigenista,órgãode assessoria da Funai, convocada um mês após a morte de Gilbertoexclusivamenteparadebaterocasowaimiri-atroari.Noencontro,eleensaiouummea-culpa, ainda que tímido, porém atribuindo responsabilidade às gestõesanterioresdafundação.

TalveztenhahavidoerrosdaprópriaFunaicomrelaçãoàestradaeaessesíndios porque, quando a reserva foi criada, a estrada já estava sendoconstruída.Praticamentehouveuma inversão:a reservafoi implantadaemcima da estrada, quando já se tinha conhecimento da existência daquelesíndios. […] Devia ter havido também entrosamento entre os órgãosresponsáveis pela construção e a própria Funai em acertar as medidaspreliminares,antesdesepartirparaaconstruçãodaestrada.

OantropólogoOlympioSerra,queem1968haviaassessoradoaCPIdoÍndiono Congresso, fez um paralelo entre o caso dos Waimiri-Atroari e o dos

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Kaingangue,que,no iníciodo séculopassado,atacaramcolonoseasobrasdeconstrução da Ferrovia Noroeste do Brasil, no interior de São Paulo. AresistênciadosKaingangueestánaorigemdeumepisódiomarcantenoprocessode formaçãodapolítica indigenistabrasileira.Em1907, apropósitoda reaçãodeles,omédicoeprofessor alemãoHermannvon Ihering,naépocadiretordoMuseuPaulista,sugeriunadamenosqueadizimaçãodosindígenasdoterritóriodo estado, pois não representavam“umelemento de trabalho e de progresso”.EledissequeosKaingangue“selvagenssãoumempecilhoparaacolonizaçãodas regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio, de que sepossalançarmão,senãooseuextermínio”.36Asugestãogeroutantareaçãonosmeiosdecomunicaçãoeemcírculosmilitaresqueacabouporajudaradivulgar“osmétodospersuasóriosdesenvolvidosporRondon”,oquealimentoua ideiadacriaçãodoSPI,concretizadatrêsanosdepois.37

Agora, em plena ditadura, Olympio Serra sugeria que o país passava porsituação semelhante.Na reuniãodoConselho Indigenista, ele foi apoiadopeloprofessorCarlosMoreiradeAraújoNeto,historiadordospovosindígenas,queaconselhouaFunaiatentaralgoparecidocomoquefizeraRondon.

Secapitalizarmosessesincidentesdemaneirapositiva,mostrandoqueatrásdesse incidente lamentável, isolado, da morte desses servidores da Funaiexiste um passado de traumatismo e violência e que se repeteinexoravelmente, nós podemos dar uma “virada” histórica como Rondonconseguiu, isto é, impor à consciência nacional um debate do problemaindígenaemtodaasuaprofundidade.

Araújo Neto disse que não se tratava de “pacificar os índios”, poisneutralizá-los “sem uma medida adicional” poderia levá-los “a processos tãograves quanto os que aconteceram” comos índios panará. “Então, precisamosarmaressesíndios”,defendeuoprofessor.

O antropólogo Roberto DaMatta disse que havia “um desentendimentoabsoluto”entreosdiversosórgãosdoEstadoatuandonaárea.Masaconfusãoseriaexplicável,poisera“extremamentefuncionalparaasfrentesdeexpansão”.Ou seja, quanto mais atrapalhado o Estado brasileiro, melhor para firmas de

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colonização,garimpeiros,madeireiros.Araújo Neto defendeu que a Funai abrisse uma discussão pública para

mostrarosmotivospelosquaisosíndiosestavamreagindo,porque,segundoele,“somente na base da denúncia é que se pode sensibilizar certos órgãos”. Elesugeriuadivulgaçãodeumdocumentooficialsobre“opreçoqueosíndiosestãopagando pelo desenvolvimento regional do Amazonas”. “Nós temosescamoteado dados.” O professor fez referência ao “desaparecimento” deindígenasocorridoduranteaditadura,masnãodisseaetnia.Elepoderiaestarsereferindo aos índios panará. “Quatro ou cinco anos atrás, numa áreaextremamentecivilizadae tranquiladesapareceramduzentos índios,eninguémjamaisexplicouoquehouve.”

Essa reunião do Conselho Indigenista é notável também por diversasmanifestações de Ismarth que expõem os erros e problemas enfrentados pelafundação nos últimos anos. Ele primeiro reconheceu que a “falta deentrosamento entre os diferentes órgãos do governo” vinha causando “sériosreflexos para a Funai, particularmente na área da Amazônia Legal”. Depoisafirmou que o “problema dos Waimiri-Atroari” era “muito mais complexoporquetemumaamplitudebemmaior”.

Já ocorreu com osKrenakarores na construção daCuiabá-Santarém e vaiocorrer tambémnaconstruçãodaPerimetralNorte.APerimetralNortevaiatravessar áreas onde existem comunidades indígenas de vulto,particularmente entre Tabatinga e Cruzeiro. Então, se não houver esseentrosamento, esse diálogo, entre os órgãos do governo, vão-se repetir osmesmosproblemas.Nósjásentimos,inclusive,que[aestrada]nãotemumtraçadodefinitivo.Aindaestãomudando.EaFunainãoéconsultada.

Assim, mais uma estrada, a Perimetral Norte, estava sendo aberta semprévia consulta à Funai. Dessa vez os planos militares de “ocupação daAmazônia” atingiriam alguns dos grupos isoladosmais numerosos do planeta,que falavamquatro línguas diferentes, preservavam seus hábitos alimentares eculturaiseocupavamumaextensaemontanhosaárea,commaisde9milhõesdehectares, que se estendia do Brasil à Venezuela. Os Yanomami estavam no

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caminhodasmáquinasquedenovorasgariamaselvaparatentartirardopapeloutraestrada,cujotraçadocorriaaonorte,emparaleloàTransamazônica.

Noanode1973,ocantorecompositordesambaMartinhodaVilaproduziuumsamba-enredo crítico à Transamazônica para o desfile do ano seguinte da suaescola de samba, a Unidos de Vila Isabel, no Rio. O samba de Martinho eRodolfodeSouzafalavadeumacomunidadeindígenaquevivia“respeitandoocéu,o ar” atéque“estranhamenteohomembrancochegou”e tudomudou.Oíndio, dizia o samba, “não se escravizou”, mas estava “sumindo da face daTerra”.Amúsica,contudo,nuncafoicantadanaavenida.Martinhoexplicou,emlivroautobiográfico,quehouveumaintervençãodaditadura.

EratempodeopressãoeadiretoriadaVila,naépocapresididapelaPildesPereira,foipressionadapelacensurapolíticae,sobameaça,foiobrigadaacortaromeusamba(tachadodesubversivo)emudarodesenvolvimentodoenredo,passandoafazerumaexaltaçãoàestradaTransamazônica.Ai!Quetristeza… nem gosto de lembrar. Desfilamos sob vaias, xingamentos eindiferença.38

Aletraqueafinalserviudesamba-enredofalavasobreuma“grandeestradaquepassareinante”e“levaoprogressoaoirmãodistante”.Namatavirgem,“ouirapuru,osabiá,afonte,asborboletas,perfumadasflores”,tudotraduzia“festa,integraçãoeamores”.

A escola foi tão mal que correu sério risco de ser rebaixada. Martinhopercebeuodesastreecomeçou“aarticularpoliticamente”aindanosbastidoresdodesfile.AVilaconseguiuumadecisãodogovernadornomeadopeloPlanalto,ChagasFreitas,doantigoestadodaGuanabara,segundoaqual“nenhumaescolacairia”naqueleano.Comosambachapa-branca,aVilaacabouemdécimolugarnadisputa.39

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12.CICATRIZ

OS PLANOS DA DITADURA PARA INTEGRAR O TERRITÓRIO DERORAIMAao restante dopaís eram tanto ambiciosospara o governoquantoarriscados para os índios. Após rasgar, ao sul, por mais de uma centena dequilômetros a terra waimiri-atroari com a abertura da rodovia BR -174, quepermitiu a ligação de Manaus à capital do território, Boa Vista, os militarespassaramaconstruiroutraestrada,aBR-210,agoranosentidoleste-oeste,paracruzaraBR-174afimdeconectarMacapá,acapitaldoAmapá,aomunicípiodeIçana, no norte do Amazonas, a poucos quilômetros da fronteira com aColômbia.OtraçadoriscavaoterritóriodeRoraimadadireitaparaaesquerda,formandoumacruzcomaBR-174.

Duasfrentesde trabalhoentraramemaçãoapartirde1973.As turmasdaempreiteiraCamargoCorrêavieramdadireitaparaaesquerda,domunicípiodeCaracaraí até a localidade de Catrimani, onde funcionava uma missão dereligiososcatólicos.Aoutraequipe,sobocomandodaempreiteiraEIT, saiudeSãoGabrieldaCachoeira,noAmazonas,paraointeriordeRoraima.Oplanoeraque as duas frentes se encontrassem no rio Padauari, em plena área ocupadapelosYanomami.1

AexemplodaTransamazônica,porém,aobrajamaisfoiconcluída.Quandosobrevoeinumaviãopequenoo territórioyanomamiem2001, trabalhandoemreportagem para o jornalOGlobo , a Perimetral Norte continuava sendo umrisconaimensidãodaselva,ligandoonadaalugaralgum.Podiamserdivisadosos vestígios da estrada que chegou a ser feita de Caracaraí até a MissãoCatrimani.Daliemdiante,contudo,tudooqueerapossívelvernãopassavadeuma linha reta, formada por árvores e arbustos bem mais baixos do que o

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restante, em direção ao rioDemini. Era a estrada que, abertamenos de trintaanos antes, acabou engolida pela vegetação, que, por outro lado, não haviaatingido a exuberância anterior. Foi desperdiçada uma enorme quantidade dedinheiro, tempo e sobretudo, como veremos, vidas para abrir essa estranhacicatrizque,demaneira abrupta, acababemnomeioda floresta, semnenhumsinal de atividade humana por perto. Para os Yanomami, a ausência deplanejamentodogovernocustouespecialmentecaro.

Comseus5milou6milíndiosemmeadosdadécadade1970,2vivendoem192malocas,3achamada“famíliayanomami”eraeé,emsi,umverdadeiroeinestimáveltesourocultural(dezanosdepois,onúmerofoifixadopelaFunaiem9milindivíduosemterritóriobrasileiroecercade11milnaVenezuela).Até1974, agrandemaioriadesses indígenaspermanecia isoladana selva, vivendocomo viviam seus antepassados séculos atrás. Segundo o sertanista SebastiãoAmâncio, os índios viviam então “em estado primitivo”, mas tinham “índolepacífica,nãotendosidoobservadoqualqueratoagressivoporocasiãodainvasãodoseuterritóriocomacriaçãodarodoviaPerimetralNorte”.4AocontráriodosWaimiri-Atroari, os Yanomami, embora vivessem em frequentes guerrasintertribais,nãoderramaramsanguedenenhumoperáriodaobraoufuncionáriodaFunai.

OsYanomamieramconstituídosdegruposquefalavampelomenosquatrolínguas, “cada uma com vários dialetos”. Os especialistas divergem sobre agrafiadessaslínguas,masnadécadade1980aFunaiasdenominoude“sanumá,yanam, yanomamo e yanomam” — embora distintas, elas são mutuamentecompreensíveis. Ao longo dos tempos, os Yanomami foram identificados deformasdiversas,comoWaiká,Xiriana,Guaharibo,Karimé,Yanoama,XirixanaeXamatari. Baseada em estudos anteriores, a Funai considerava que os índiosviviam ali fazia mais de 3 mil anos. Tinham baixa estatura, “raramenteultrapassando1,60metroe semmusculaturapronunciada”.Amaioriaouvivianua ou usava um fio de algodão na cintura. Usavam arco e flecha, tocavamflautasdeosso,fabricavamartigosdetecelagememuitoscestos,compoucaounenhumacerâmica.Recusando-seacomerosbichosdecriação,viviamdacaçadeanimaissilvestresedapesca,alémdeinsetos,váriostiposdecoco,mandioca

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e banana, principalmente. Dependuravam seus mortos em árvores, dentro decestosoujiraus.Àsvezesosossoseramseparadosdoscorposemdecomposição,queimados e moídos até virar farinha, para ser adicionada e consumida commingaudebananaduranteasfestasemmemóriadosantepassados.5

Até 1973, a região era pontuada pela atividade de missões religiosas daIgreja católica e protestantes. Também havia contatos esporádicos comexpedições científicas, comissões de limites de fronteiras, membros da FAB eextrativistas.6Maso território era “quaseque totalmentenãopenetradopelosneobrasileirosdaregião,sendoqueaecologiadaflora,dafaunaedapopulaçãoindígena continua em estado natural”, como descreveram na época osantropólogos Kenneth Iain Taylor e Alcida Rita Ramos. Em 1973, a BR -210representaria “a primeira entrada maciça de brancos no território dosYanomami”.7

Surtosmortíferos de doenças, porém, não eram incomuns, e pelomenos umagrandeepidemiadesarampoatingiuapopulaçãodaregiãodoCaburiporvoltade 1973, talvez originada em um grupo indígena da Venezuela. A Funaiorganizou uma expedição de emergência para socorrer os indígenas. FormadapeloindigenistaPorfírioCarvalho,omesmoquetrabalharianosuldeRoraimacomosWaimiri-Atroari,umamédica,umafreiracatólica,umaenfermeiraetrêstrabalhadores rurais, a equipe caminhou por semanas na mata até encontrarcorpos de índios dizimados pelo sarampo numa aldeia quase abandonada emCaburi.“Achoqueeuvimaisdetrintamortos.Erammuitos.OsarampoquaseexterminouaquelesYanomami”,rememorouCarvalho.8

Aoladodocadáverdeumaíndiajáemdecomposição,Carvalhoencontrouumacriançadecercadequatroanosqueaindatentavamamarnosseiosdamãemorta.Eletevecertadificuldadeparadominaracriança,quereagiumordendo-oe arranhando-o. A caminhada de retorno durou quase um mês, segundo osertanista,quecarregouacriançanascostas,atéaequipeconseguirsocorronaMissão Demini. A freira deu à criança o nome de Marcelo. Órfão e semperspectivas de sobrevivência na aldeia devastada pela doença, o pequenoMarcelopassouasercriadoporCarvalho,quedepoisolevouparaBrasília.Em

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Demini,Carvalhoencontrououtrosobrevivente,DaviKopenawa,quesetornariaoprincipallíderyanomaminasdécadasseguintes.

AregiãomaisatingidapelaobradaPerimetralfoiosuldaáreayanomami,em um trecho sob responsabilidade da empreiteira Camargo Corrêa e suassubcontratadas. Anos depois, a Funai reconheceu que as turmas dedesmatamentoentraramnaáreaindígena“semqualquercontroledesaúde”.9

O órgão oferecia “cobertura” aos trabalhos da Camargo Corrêa. Emnovembrode1973,umaequipedaempreiteira, acompanhadapelo servidordaFunaiEstêvãodaSilvaRodrigues,caminhoupor123quilômetrosmapeandootraçadodarodovia.Ocombinadoeraquereceberiamalimentosdespejadosporumavião da empreiteira,mas “estes se perdiam, por imperícia ou não, […]ofatoéque todos ficaramcarentesdealimentos,passandoaspioresprivações”,comendoapenaspalmitoecaça.EstêvãosóconseguiuretornaraBoaVistaemjaneiro,“herniado,necessitandocomurgênciadecuidadosmédicos”.10

O traçado passava perto de muitas malocas dos Yanomami, algumas jádepauperadasporguerras internasepelocadavezmais frequentecontatocom“civilizados”predadores,comoexploradoresdepiaçava,umapalmeirautilizadaparafabricaçãodevassourasecoberturadecasas.QuandooauxiliardafrentedeatraçãodaFunaiJamiroBatistaArantes,acompanhadodetrêsYanomamiquejáfalavam português e foram recrutados pela entidade para ajudar a CamargoCorrêa, foi conferir a rodovia perto da maloca do Araquém, na região daGargantadoÍndio,descobriuqueotraçadopassavaaapenasumquilômetrodeumadasprincipaismalocasdos índios.Ehaviaoutrascincomalocasaapenascincodiasdecaminhadanamata.Oquadrotendiaaseagravarcomachegadadosdesmatadoresetopógrafos.

“Encontramos todosos índiosdoentescomgripeemalária.Os índiosnãoqueriamque a estrada passasse por aquele local.”11Dois deles estavam “emestado grave”. A aldeia contava com sessenta indivíduos, dos quais quinzetinhammenosdetrezeanos.Muitodiferentesdocenáriodepoucosanosantes,“uma aldeia muito grande e [que] contava com inúmeros guerreiros”. ParaArantes, agora a aldeia estava “quase se extinguindo”. A equipe da Funai“passouquasevintediasmedicandoosíndios”.ParaconvencerosYanomamia

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permitirapassagemdaestrada,aCamargoCorrêa“jogavadeaviãobrindesparaseremofertadosaosíndios”,contouArantes.

Enquanto a obra avançava, a Funai organizou uma viagem à região comnove pessoas, incluindo os antropólogos Alcida e Taylor, para fazer umlevantamentomaiscompletodasituação.UmdosmembrosdacomitivaeraJoãoBezerradeMello,chefedaASI,obraçodoSNInaFunai.AochegaraRoraimaemmarçode1975,acomissãoverificouqueotrabalhodaentidadeedogovernojunto aos índios era quase inexistente. Toda a assistência estava nas mãos damissãocatólicaConsolata,ligadaàprelaziadeRoraima,quecuidavadaMissãoCatrimani, e da Missão Evangélica da Amazônia (Meva), que comandavamissões em Auaris, Surucucus, Mucajaí e Anauá. Apenas no ano anterior aFunai havia aberto uma frente de atração àsmargens do rioAjarani, perto daPerimetralNorte.

As distâncias dificultavam o atendimento aos índios. Na região deCatrimani, onde viviam cerca de 370 índios, uma das aldeias ficava a cemquilômetros da sede da missão católica. Isso implicava caminhadas de atésemanaspelamata.Aárea era amais atingidapela construçãodaestrada, eotraçado passava a apenas três quilômetros da sede da missão. 12 Em 1975,estava em plena atividade um processo de “aliciamento” de índias pelostrabalhadoresdasubcontratadadaCamargoCorrêa,comodenunciaramàFunaios responsáveispelamissão,opadreGiovanni (João)Saffírioeo irmãoCarloZacquini.Osoperáriosatraíamasíndiascomopretextode“dar-lhespresentes,masnarealidadecomaintençãodeseduzi-las”.

NafrentedeatraçãomontadapelaFunainaregiãodorioAjarani,comumsertanista, dois auxiliares e quatro ajudantes indígenas, a situação se tornoudramáticapara444Yanomamiqueviviamnaregião.Opostofoiinstaladoa49quilômetros do entroncamento da Perimetral com aBR -174, nomunicípio deCaracaraí,comaldeias localizadasentrequatroe104quilômetrosdedistância,alcançáveisapenasporcaminhadasnamata.Haviacaçaabundantenaregião,deanimais como anta, paca, jabuti e cutia, mas os índios de uma das principaismalocas,aCastanheira,agoraviviam“amaiorpartedotempoperambulandoaolongo” da Perimetral. Eles eram atraídos “pelos trabalhos da empreiteira e

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subempreiteiras,mantendo contato desordenado com os trabalhadores”. Comoficaram“fascinadospelasmáquinasepelomovimentodaestrada”,praticamenteabandonaram “sua aldeia e deixaram de trabalhar em suas roças”. Passaram aviver“dosrestosdecomidaquelhesdãoostrabalhadores”,caçandoepescandoapenas de vez em quando. “Estão subnutridos; há casos de tuberculose edesidratação; índias começam a se prostituir com os trabalhadores dassubempreiteiras.”

Em outras partes de Roraima, onde viviam numerosos grupos indígenas,como os Wapixana, Makuxi, Taurepang e Wai-Wai, o quadro também erapreocupante, com uma Funai quase ausente. Apenas dois postos indígenasatendiam mais de 3 mil índios. Saltou aos olhos da comissão o trabalhoabnegado de uma ex-servidora do órgão, a aposentada Palmira RodriguesTeixeira, de 72 anos, e de seumarido, identificado apenas como “Xico”.Eleshaviamcriadonadamenosque61criançasdasetniasmakuxi,apurinã,wapixanae karipuna, índios “criados, alimentados, vestidos e educados pelo casalRodriguesTeixeira,semqualquerajudadospoderespúblicos”.13

Na região a nordeste do território ocupada por cerca de 2200 índios, queanos depois ficaria conhecida como Raposa Serra do Sol, mais de vintefazendeirosinvasoreshaviamprovocadoadiminuiçãodacaçaemtodaaregião.Os índios se viam forçados a suportar a presença dos fazendeiros, pois a elesrecorriam em casos de emergência, como no transporte de doentes e demercadorias, ocasiões em que os invasores cobravam “preços escorchantes eaindaseaproveitamdasituaçãoparafazercargacontraaFunai,tentandoinduzirosíndiosanãoacreditarnaspromessasdaFunai”.

A presença dos invasores começou a acuar os índios. Na maloca doBoqueirão,com396índiosmakuxiewapixana,acaçadiminuiuemtodaaárea.A comissão apontouqueumex-delegadodo interior do território deRoraima,JacyCruz,“expulsoutodososíndiosdamalocaFlexal(cercadeseisfamílias)”.Perto damalocaLagoGrande, instalou-se um fazendeiro, sobrinho de um ex-servidordoSPI,quesoltavaseugadonaroçadosíndios.PróximoàmalocadaBarata,noveinvasoreshaviamabertofazendas,umadelascomcampodepousopara aviões, cujo dono,RaulLima, era “bastante agressivo comos índios”.A

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Funai não tinha nenhuma ação na área e toda a assistência era prestada pelaprelaziadeRoraima.VáriosjovensíndiospassaramaprestarserviçomilitarnobatalhãodeengenhariaeconstruçãodoExército.

OdescontroleemRoraimaeemespecialoscontatosfrequentesentreoperárioseYanomami não tardaram a ceifar vidas.A comissão verificou que, a partir dachegada das primeiras turmas de trabalhadores da Perimetral à região doCatrimani,emabrilde1974,osatendimentosmédicosnamissãodaConsolataexplodiram, de cerca de 150 a duzentos atendimentos por mês para 450 aquinhentos. Em dez meses, “os índios sofreram onze surtos de gripe, um desarampo, e a incidência de malária vem aumentando consideravelmente”. Osarampo havia matado até o primeiro trimestre de 1975 “um adulto, duascrianças, e houve três abortos”. Em consequência da gripe, “morreram cincoadultoseduascrianças”—umtotal,portanto,dedezmortosemmenosdeumano. 14 A missão religiosa dizia manter boa assistência aos índios, comconsultório“bemabastecidodemedicamentos”eavindadeummédicodeBoaVista “quando há necessidade”. De 1965 a 1973, todos os remédios foramcusteados pela prelazia de Roraima, e só a partir de 1973 surgiram remédiosenviadospelogovernomilitar.15

Masoquadromais completo sobreo impactodaPerimetral na saúdedosíndiosyanomamisócomeçouaservisualizadoapartirdeoutubrode1975pelocasal de antropólogosAlcidaRitaRamos eKennethTaylor.Ambos ph.D. emantropologiaem1972eligadosaoMuseuNacionaldoRio,elesfizeramtrabalhode campo com o subgrupo yanomami conhecido como Sanumá entre 1968 e1970.Defevereiroajulhode1975,AlcidaviveunaMissãoCatrimani.Noanoanterior,TaylorhaviaapresentadopelaprimeiravezàFunaiumplanodeestudoeassistênciaaos índiosyanomami,denominadoProjetoYanoama.Oplano foiaprovadopelopresidentedoórgãoemdezembrode1974.16

Demarçode1975afevereirode1976,TaylortrabalhouparaaFunaicomocoordenador do projeto. O objetivo de longo prazo era fornecer bases a umtrabalho de identificação e demarcação das terras yanomami, com vistas àcriaçãodeumgrandeparquenacionalindígenanosmesmosmoldesdoXingu.

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QuandochegaramaopostoindígenadaFunaiinstaladonoquilômetro49daestrada,AlcidaeTaylorencontraramachefedoórgãoreclamandosemparardatotal falta de apoio da delegacia regional: “sem remédios, sem gênerosalimentícios,quase semcomidaparaela e cincoou seis auxiliares”.Os índiosperambulavam entre a estrada e o posto da Funai, “implorando por comida ecigarros,enãoeramdesencorajadosporelaoupelasuaequipe”.17

OcasalAlcida-TaylorencontroutrêscasosdeprostituiçãodemoçasíndiasdaregiãodoAjarani.Duascontraíramdoençasvenérease foramatendidasemumhospitaldeBoaVista.Mas,depoisdecuradas,foramremovidaspelochefedaFunaiparaoutraárea,dosíndiosmakuxi.Foi“umcastigo”,disseodelegadoregionalaocasaldeantropólogos.Ambasregressaramdepoisàáreayanomami.Uma delas, porém, nunca conseguiu se restabelecer, pois era alvo de surras eameaças domarido e recriminações dos parentes, o que a levava a constantesfugasparaoacampamentodosoperáriosdaobra.

AfotógrafaClaudiaAndujar,quedesde1971conheciaaáreayanomamiese tornaria uma das principais defensoras da criação do parque yanomami,localizoutestemunhasdo impactodaestradasobreavidados índios.Nofilmequerealizoubaseadoemsuaspesquisasdecampo,Povodalua,povodesangue, concluído em 1982 para promover a causa da criação do parque, há odepoimentodeumamulhermoradorada regiãodoAjarani identificadaapenascomo“sra.Dantas”.“Quandochegouaestrada,em1974,eles[índios]fumaram,deramatédebeber,eficavamsóandando.Aínãopararammais,ficaramavidatodanessepasseiodelesquenãotemfim.”

Elacontouqueosíndiosforamcontaminadoscomcuruba,onomepopulardaescabioseousarna,umadoençadepelecausadaporumácaroqueprovocaintermináveis coceiras que escarificam todo o corpo.O fato é confirmado emofícioenviadoporCarloZacquini,daMissãoCatrimani,àpresidênciadaFunai.Os operários forneciam aos índios “roupas usadas, víveres, cigarros e toda equalquer coisa, inclusive bebidas alcoólicas”. “Em consequência do uso deroupasusadas,osíndiosestãoquasetodosafetadospordoençasdepele(micosesetc.).”18

Em 1975, na presença do presidente da Funai, o representante da Meva

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confirmou que a fome grassava entre os Yanomami: “Tenho visto criançasanêmicas,completamentemagrinhas,quetêmquepassarporumperíododedoismesessendotratadascombastantecuidado”.19

Outra importantedescobertadocasalAlcida-TaylorforamosaltosnúmerosdamortalidadecausadapelasdoençastrazidaspelasobrasdaPerimetral.

Nósvimosmuitoscasossériosdeinfluenza,etrêspessoasquehaviamsidolevadasaohospitalemBoaVistadepoismorreram.Doiníciodaconstruçãoaté a nossa chegada, 22%dos índios que viviam perto do posto da Funaihaviam morrido como consequência de doenças trazidas pelo homembranco.

Combasenoslevantamentosdecampo,eleschegaramaonúmerode22ou23Yanomamimortosapósoiníciodaconstruçãodaestradaeoutrosdezesseisoudezessete“dispersos”.Deumtotalde102Yanomamiqueviviamemquatromalocas antes da rodovia, restavamvivos entre 79 e oitenta, de acordo comacontagemdeagostode1975.

No posto deArapishi, dentro dessamesma conta de 22 ou 23mortos, osantropólogos relataram que dois índios yanomami do subgrupo yawaribmorreram de malária, cinco de pneumonia e um de infecção estomacal. NamalocadeCastanheira,localizadaaapenas45minutosdecaminhadadoleitodaestrada,trêsíndioshaviammorridodepneumoniaedoisdedisenteria.AlcidaeovoluntáriobritânicoNicholasCapepassaramumasemanaematendimentosnamaloca, onde encontraram os índios em estado depressivo. “Em termos demoral,orgulhoeautoconfiança,aimagemprojetadaporessesíndiosnãopoderiaser pior. […] Geralmente, o pessoal da Funai visivelmente trata esses índioscomoseussubordinados.”

Alcidaescreveuterficado“chocada”aovisitarumaaladohospitaldeBoaVistadestinadaaospacienteslevadospelaFunai.Elaencontroutrês,deitadosnochãoemtapetessujoserasgados.Umdeles,umaíndiacomtuberculose,era“tãomagraqueaenfermeira,obviamenteinexperiente,nãoconseguiaacharumaveiapara dar uma injeção”. Muito fraca e sem falar nada de português, ela não

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conseguianemse sentar.Osoutrosdois, umcasal, pediamcom insistêncianalínguayanomamiredesdedormir,bananasetabaco.Aportadohospitalestavaescancaradaedezenasdepessoasseaglomeravamnaentrada,curiosas,paraveros índios.“Essaseramasdeploráveiscondiçõessobasquaisumamulhercomtuberculose foi colocada, em vez de sofrer uma atenção especial, isolada deoutrospacientes.”

A mulher com tuberculose depois recebeu alta do hospital, mas quandochegou à Missão Catrimani verificou-se que seu estado ainda era bastantecontagioso.Elafoiremovidadamissãoparaumaaldeia,daaldeiaparaopostoda Funai e de novo para a missão. Alcida disse que a mulher só começou areceber tratamento adequado pelas mãos de Cape e do antropólogo francêsBruceAlbert, quenaquelemomento fazia trabalhode campo, e aospoucos serecobrou e ganhou peso.Duas filhas dela, de cinco e seis anos, depois foramdiagnosticadascomsuspeitadetuberculoseelevadasaohospitaldeBoaVista.

Alcidafrisouqueessamovimentaçãodedoentesentreacidadeeasaldeiaspunhaemrisco todososoutros índios.Asoluçãomaissimplesecorretaseria,para ela, a criação de um hospital dedicado a eles em seu próprio território,devidamente equipado e respeitando as particularidades do modo de vidayanomami.Amedidanunca foiadotada,eoentraesaide índiosdoentes teveconsequênciasdevastadorasparapelomenosumgrupoyanomami.

Emdezembrode1976,umgarotoyanomamidoentefoiatendidonohospitalde Boa Vista, recebeu alta e voltou ao seu grupo wakatauteri, que habitavamalocaspertodorioCatrimani.Maseletrazianocorpoovírusdosarampo.Apartirdefevereiro,umviolentosurtoirrompeutantonaregiãoquantoemoutrasmalocas, pois outros grupos de Yanomami se contaminaram durante visitas àaldeiadosWakatauteri.Osaldofinalfoide68mortos,oquerepresentava50%daquele grupo deYanomami. Os números e a narrativa dos fatos constam deuma entrevista concedida à revista Veja pelo padre João Saffírio, da MissãoCatrimani,quedissetertestemunhadoaorigemdosurtoeamortandade.“Nessemomento, eugostariadeestarmorandonaTerradoFogo”,disseopadre,quecomparou a situação a “mãos grossas” pegando “frágeis borboletas”. 20 Omesmo número de 68mortes já havia sido referido em reportagem publicada

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pelaFolhadeS.Pauloem18demaiode1977.Estranhamente,porém,oiníciodaepidemiafoientãoatribuídopelaFunaia“caçadoresdepeles”,nãoaoretornoinadvertidodacriançadoente.

Trêsanosdepois,ototaldemortosfoicorroboradoemdocumentooficialdaFunai,queculpoudemaneiradiretaaPerimetralNortepelaepidemia.

Abrindo acesso fácil à região [de Catrimani], a Perimetral Norte éresponsávelpelaepidemiadesarampoqueem1977matou68indivíduosemquatro aldeias da região do Jundiá-Lobo D’Almada. Essas mortesrepresentamexatamente50%dapopulaçãodessasaldeias.21

Nomesmoanodaepidemia,ogeneralIsmarthfezumraroreconhecimentodo número de mortes, embora procurando se eximir de qualquerresponsabilidade.EmrespostaaumaperguntadodeputadoUbaldoCorrêanaCPIdoÍndio,ogeneralconfirmou:

DeputadoUbaldo,infelizmentefoiverdadeiro.Morreram67índiosnaquelaregião,vítimasdesarampo.Parecequea ideiaera responsabilizaraFunaipor essas mortes. […] Aquela é uma área de missão religiosa, a área daMissãoCatrimani.AFunai não tem nenhuma outra infraestrutura naquelaárea. O papel da missão não é simplesmente religioso. Ela também temresponsabilidades perante aquela comunidade, pelo menos no campo dasaúde.22

Ismarthdisseque,aosaberdosurto,aFunaieaSecretariadeSaúdedeBoaVistamobilizaram recursos, incluindo helicóptero, para imunizar 65 índios doaltorioKatrimanie162índiosqueviviampertodamissão.Ogeneralleuumacarta do padre João Saffírio que agradecia ao órgão pela ajuda na “trágicaepidemiadesarampoquevitimou67índios”.

Somandoonúmerode67ou68mortosnoCatrimaniaos22ou23 índiosmortos na região do Ajarani, chega-se ao total de 89 ou 91 Yanomamieliminadosemdecorrênciadaestradaabertapelogovernomilitar.Masonúmerorealdevítimasfoimuitomaior.SegundoAlcida,houveoutraepidemianaregiãodorioApiaú,noextremolestedoterritórioyanomami,onde“estima-seque[no

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Apiaú] cercade cem índios já teriammorrido emmeadosdadécadade1970,restandoapenastrintasobreviventes[…].Desgarrados,acabaramabandonandoaáreaejuntaram-seaoutrascomunidades”.23

Na região do rio Pacu, 58 índios foram atraídos para a rodovia, ondepassaram“amendigarna estrada,nos acampamentosdaCamargoCorrêa enaMissãoCatrimani”,contraindo“gripe,faringites,pneumoniaetuberculose”.Umdos doentes de tuberculose, “depois de vários meses de tratamento irregular,morreuemBoaVistaem1977”.24

Em 1976, o coordenador da frente de atração da Funai era o sertanistaSebastiãoAmâncio.EleviveuseismesespertodaregiãodaMissãoCatrimani,num barraco liberado para uso do órgão pela Camargo Corrêa. Em 2014,lembrou que “havia muita intimidade” entre operários e Yanomami, quecostumavam frequentar sobretudo a cozinha dos acampamentos das frentes detrabalho da empreiteira. Mas ele atribui o grosso das mortes de índios aoscontatos com os garimpeiros, não com os operários. Amâncio disse que “nãotinhaideia”dequantosmortoseram,massoubeque“tevemuitamalária,muitahepatite”.

“Aregiãoéendêmicademaláriaehepatites,particularmenteorioAjarani.Os índios sofriamessesproblemas jádeorigem local,deondeestavam.Essesgarimpeirossimnãotinhamcuidadocomquestãodesaúdeepodemterlevadoasdoenças.”25

Maisdeumadécadadepois,noiníciodosanos1990,AmânciofoiumdoscoordenadoresdaOperaçãoSelvaLivre,nogovernoCollordeMello.Elevoltoua viver asmesmas cenas da década de 1970.Contou que certa vez encontrounumapicada,pertodeAjarani,umíndiodoentequevinhaemsentidocontrário.

“Eleestavaverde[defome].Falouquetodosnamalocatinhammorridodemalária.”

“Equantosseriamessesmortos?”“Parecequeteriamsidomaisdevinte.Morreutudodemalária.”

Olhandoemretrospectiva,épossívelressaltarasdiversasfalhascometidaspeloregimemilitarnaépocadaPerimetralNorte,dentreoutras:opróprioprojetoda

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rodovia, de necessidade bastante duvidosa, pois foi abandonado inconclusoaindaporvoltade1976;afaltadeumhospitalequipadoemterrasindígenas,oquereduziriaotrânsitodosíndiosentreBoaVistaeasmalocas;eaausênciadecampanhas de imunização muito antes da chegada das primeiras turmas dedesmatamento.

OtrabalhodeAlcida-Taylorchegouaconclusãosemelhante:

Durante a administração Médici, a agência oficial para a proteção dosíndios,aFunai,nadafezparaprevenirouminimizarosefeitosprejudiciaisda construção da estrada. Nenhuma equipe foi enviada antes dostrabalhadores da rodovia para tentar uma campanha de vacinação quepoderia proteger os índios de doenças letais como sarampo, coqueluche,tuberculoseeagripecomum,antesdachegadadostrabalhadores.26

Segundooestudo,sódepoisqueaestradafoiabertaporcercadecinquentaquilômetrosejátinhaatingidotrêsmalocasnaregiãodorioAjaraniéque“umpostodaFunaifoicriadoemagostode1974pertodarodovianamargemdireitado rio Ajarani, com objetivo de ‘atrair’ os Yanomami e providenciar a elesremédioseprodutosalimentícios”.

Quando foi ouvido no Congresso Nacional sobre essas falhas em 1977,Ismarthcontemporizou,simplesmenteculpandooíndiopelosproblemas.

Ninguém consegue segurar o índio numa determinada área. O índio temliberdadeparaselocomover.Eleburlatodaequalquervigilânciaparafazerqualquercontatoqueelequeira.IssoocorrenãosóemáreasdaFunaicomotambémemáreasdemissõesreligiosas.

Eleescondeudosdeputados federaisoque tinha reveladodoisanosantes,durante a reunião do Conselho Indigenista, quando afirmara haver “falta deentrosamento”entreosórgãosfederais.

Os problemas e as omissões da União, para infortúnio dos Yanomami, nãopararamporaí.Em1970,osmilitareslançaram,aprincípiocomoutronome,oprojeto Radambrasil, sob o controle do Ministério de Minas e Energia e do

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DepartamentoNacionaldeProduçãoMineral(DNPM).Oobjetivoerarealizarumlevantamentosobreaspotencialidadesnaturais“deumaáreaaproximadade1,5milhão de quilômetros quadrados, localizada na área de influência daTransamazônicaedabacia sedimentardoMaranhão”.O trabalhoconsistiaemvarrer o território nacional com aviões equipados com um sistema conhecidocomo Side Looking Airborne Radar. O estudo resultou em 555 mosaicos,produzidos por uma equipe de 702 profissionais, sendo 306 técnicos de nívelsuperior,comogeólogos,geógrafoseengenheirosagrônomos.27

Noprimeirobimestrede1975,oprojetoRadamdetectousinaisimportantesda presença de minérios na área yanomami, perto da missão de Surucucus.Desdeosanos1960funcionavaaliumapistadepousoparaaviõesdaFAB,quepassouaserusadapelopessoaldoRadam.Ainformaçãonãofoi tratadacomosecreta, pelo contrário, acabou sendo trazida às claras ao público pelo própriogoverno.Em26defevereirode1975,oMinistériodeMinaseEnergiadivulgouumanotaparaanunciaradescobertade“importantesocorrênciasdeanomaliasradioativas” na região de Surucucus. A notícia foi confirmada pelo chefe doDNPM,AcyrÁviladaLuz.28

Ainda em fevereiro, o governo organizou uma caravana de ministros àregião, ciceroneados pelo governador do território de Roraima, o coronelFernandoRamosPereira.Ementrevista,ogovernadordissequeasperspectivasdeexploraçãodourânioeram“ótimas”eque“acompanhandourâniohásempreouro”.EleacusouosíndiosdeatrapalharemRoraima:“Soudeopiniãoqueumaárearicacomoessanãopodesedaraoluxodeconservarmeiadúziadetribosindígenasatravancandooseudesenvolvimento”.29Comoadeclaraçãocausoucerta controvérsia, dias depois o governador tratou de explicar que atuava emsintoniacomaFunai.Masnãodesmentiuostermosdasuaprimeiraafirmação.Emnota,procurouminimizarapresençadosíndios,dizendoquenãopassavamde“trezentosouquinhentossilvícolas”.30

No final de março, o ministro do Interior Rangel Reis deu entrevista emBrasília na qual não só confirmou a existência de minérios “na serra deSurucucu”comoavisouqueos“poucosíndios”poderiamserretiradosdasáreasdasdescobertas,emespecialSurucucus,“ondeourâniofoicomprovado”.31

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Poucas semanas após os primeiros anúncios estrondosos do governo, osgarimpeiroscomeçaramapenetrarnasselvasdoplatôdeSurucucus.Oestímulodeterminantedosanúnciospúblicosdosgovernantesparaainvasãodoterritórioyanomami—àquelaalturacompletamentedesprotegidodopontodevistalegal,sem demarcação ou homologação pelaUnião— foi reconhecido poucos anosdepoisemumplanodemetasdoprópriopresidentedaFunainaépoca,ooficialaviadorPauloMoreiraLeal.

Um segundo impasse para esses grupos [yanomami] ocorreu com adivulgação do potencial mineralógico da região, identificado pelo ProjetoRadambrasil, que exerceu forte estímulo a nova frente de penetraçãoindiscriminada de não índios no território yanomami, resultando noagravamentodoquadroinstaladopoucosanosantes.32

Em 23 demarço de 1975,Alcida e Taylor encontraram os primeiros seisgarimpeiros em atividade. Eles haviam encontrado cassiterita, mineral quepermiteaobtençãodoelementoquímicoestanho.Oshomensforaminstruídosaaguardarodiaseguinte,quandochegariaopresidentedaFunai,queosalertariasobreainfraçãoàsleisqueproibiamaentrada,semautorização,de“civilizados”emáreasindígenas.Nodiaseguinte,porém,Ismarthestevecomosgarimpeiros,mas nada fez para retirá-los do lugar. Taylor disse ter pressionado o general.“Naquelemesmodia,quandoeuexpresseiminhaperplexidadesobreelenadaterfeitopararemoveraquelesgarimpeirosdeSurucucu,elesedesculpouafirmandoqueolocalaindanãoeraformalmentedefinidocomoumaáreaindígena.”33

Atéoutubro,cercadeduzentosgarimpeirosjáhaviamchegadoaSurucucus.34 No começo de 1976, esse número havia dobrado e eles já estavam “emcontato esporádico com os indígenas”. 35 Em fevereiro do mesmo ano, osgarimpeiros já tinham aberto dois campos de pouso de terra batida, um comquinhentosmetrosdeextensãoeoutrocom420.AFunaicontounovegrotasdegarimpagem e concluiu, com base em depoimentos dados por escrito pelosprópriostrabalhadores,queainvasãoerafinanciadapelafirmaMineraçãoAlémEquadorLtda.Entreeles,encontrou35casosdegripee febre.ParaaFunai,aempresa estava “matando de doenças e desnutrição os garimpeiros”. Para

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alimentarumgrupodequinzegarimpeirosporumasemana,porexemplo,haviaapenassetequilosdearroz,setedefarinha,trêsdeaçúcaredozelatasdecarneemconserva. Isso os levou a trocarem suas coisas, incluindo armas de fogo eroupas, por comidas fornecidas pelos Yanomami, aumentando o risco deepidemias.36

PeriYanomamieracriançanaregiãodorioCatrimaniquandochegouaobradaPerimetral. Ele se lembra de várias reuniões do grupo para discutir asmortescausadas por doenças. Depois ouviu as histórias de seus pais sobre grandessurtos.

Quandoinvadiramessaáreaporcausadessaestradacomeçoumorrermuito“parente”,aáreainteira,sabe.Morreudegripe,de“tubeclose”,demalária.Quandofiqueigrande,minhamãeemeupaicontavamcomoqueosantigosmorreram.[…]Depoiseuajudeios“parentes”ecomeceiaperguntarcomofoiquechegouadoença.Elesdisseram:“Peri,começouachegaradoençadacidade”.Anossadoençaerafeitoomalespiritual,deparentepajé.Masisso tinha cura. Quando o “parente” enfeitiçava outro “parente”, o pajécurava. Quando a cobramordia o “parente”, o pajé curava também.Masquandopipocoua“marária”,aínãotevecomoopajécurar.37

Duranteaobra,Perifoientreguepelospaisaumafamíliade“civilizados”para escapar das doenças. Quando completou treze anos, voltou para a áreayanomami. Ali encontrou os primeiros garimpeiros em atividade. De inícioacreditou na conversa deles, que prometiam “construir hospital, médico,funcionário” e também aposentadoria para todos os índios. “Aí nos fomosacreditando,acreditando.Otuxauadeixavapassar.Passavaquatrobarcos,cincobarcosdegarimpeiros.”

Maso tempocorriaenadada sonhadaaposentadoria.Peri eoutros índioscomeçaramapressionarosgarimpeiros.

Eles diziam: “Peri, não tiramos o ouro ainda”.Mentira, tudomentira. Osgarimpeirostransmitiramasdoençasqueagentenementende,herpes.Eles

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“permitiam”paraasmeninasnovasdavamascomidas,perfume,bolacha.Aíamulheracreditavaedormiacomosgarimpeiros.Portodoolugartemfilhodegarimpeiro.

Em1976,aatividadedocasalAlcida-TayloremterritórioyanomamicomeçouaincomodarosmilitaresdaFunai.Ocasalestavaproduzindoumtestemunhodegrande valor histórico sobre a mortandade provocada pela Perimetral Norte.Além disso, começou a atuar na contenção da primeira grande invasão degarimpeirosnaregiãodeSurucucus.

O governo militar aceitou que uma firma de extração mineral, a Icomi,controlada pela empresa norte-americana Bethlehem Steel Corporation, 38fizesseumaparceriacomoMinistériodeMinaseEnergia,comautorizaçãodapresidência da Funai, para realizar uma pesquisa geológica em Surucucus. Avacinação em massa dos Yanomami tornou-se “de extrema urgência”. Taylorpediuduasvezesformalmenteà10aDelegaciadaFunai,emManaus,acessãodeumaúnicaatendentedeenfermagem,“treinadanaaplicaçãodavacinaBCG”,masaautorizaçãofoinegadanasduasvezes.39

Taylor começou a ser procurado “constantemente por garimpeiros”querendopermissãoparaentrarnaáreademineração,“pilotos,representantesdefirmasdetáxi-aéreo,homensdenegóciosinteressadosnaexploraçãoderecursosnatuaisnaárea indígena”,enfim,o territórioyanomamiviroudevezobjetodecobiçadetodotipodeaventureiroeexplorador.OantropólogoinformouàFunaique esses grupos eram estimulados por declarações controversas do própriogovernadordoterritóriodeRoraima,ocoronelFernandoRamosPereira.Taylorouviu de outro coronel do Exército, “recentemente contratado comosuperintendente”deuma firmademineração, queogovernadorhavia lheditodias antes que “a área em questão ‘não é área indígena’”. Em nota oficial, ogovernodoterritórioafirmouquehaviatãosomente“detrezentosaquinhentossilvícolasnaregião”,emquatrooucincomalocas.Taylorcorreuparaogabinetedo governador para lhemostrarmapas da região e asseverar que num raio deapenas cinquenta quilômetros da sede da missão evangélica Meva havia naverdade46malocas,compelomenos2,3milíndios.40Oantropólogotambém

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procurouaFABparadenunciarquedezesseisvoosclandestinosforamfeitosemapenas doze dias para a região de Surucucus, ao que tudo indicava levandogarimpeiros.AFABenfimreagiudeterminandoaproibiçãodenovosvoos.41

Em junho de 1976, a antropóloga IsaMaria Pacheco Rogedo foi enviadapela Funai de Brasília para fazer uma avaliação do Plano Yanoama. Em BoaVista, ela encontrou três servidores do órgão, incluindo um sertanista,“completamente desorientados”, declarou-se “espantada” com a “anarquia,ineficiência, ociosidade, desinteresse, irresponsabilidade e desonestidade” dachefia daFunai emManaus e confirmouque havia um sério desentendimentoentreodelegadoAdolphoKilianKesselringeTaylor.“Oprimeiroabsolutamentedesinteressado da problemática indígena, o segundo lutando sozinho contraautoridadesterritoriaisedaFunaiqueviamnoíndioumentraveaoprogresso.”42

Em contrapartida, Kesselring disse à presidência da Funai que Taylormanifestava“arrogânciadesnecessáriaecontraproducente”etinha“caprichosdeum estrangeiro que se diz o dono da Funai”. Teria sido “deselegante com asautoridades locais, governador, comandante do BEC , do BEF ”. Em suma, aconvivência entre as duas principais autoridades de assistência aosYanomamiemBoaVistaeradesastrosa.43

Isa Maria manifestou sua contrariedade em relação à obra da PerimetralNorte, àquela altura já paralisada, mas com a promessa de ser retomada embreve.Elaseperguntava“paraondelevaráaestrada,queatravessatãosomenteterritóriosindígenas”.AoverificarascondiçõesdetrabalhodopostodaFunainaregião,elachegouaconclusõesqueemnadaficamadeveraospioresmomentosdoextintoSPI .Osmilitares repetiamosmesmos erros tão condenados apenasumadécadaantes.

O sertanista, sr. [Francisco] Bezerra, foi jogado na área, sem nenhumacondiçãoparasubsistir.Morandoemumacasadepauapique,queopróprioconstruiu,cobertacomumalonaquelhefoiemprestadapelospoliciaisqueestão atualmente na área, sem rádio, que só foi levado conosco. Enfim, érevoltante[ver]ascondiçõesnasquaisaFunaicolocaseusfuncionários.

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A antropóloga afirmou que seria impossível a Funai deter a escalada dainvasão garimpeira. Assim, sugeriu convênios com duas firmas exploradorasparatentarimprimiralgumaracionalidadeecontrolesobreaentradaeasaídade“civilizados”. Em troca, estes pagariam uma taxa para ser revertida ao PlanoYanoama.Porfim,concluiuque“énecessário,éurgente,évitalparaosíndios”aimediatainterdição“detodooterritórioyanomami”.

Emmaiode1976,TaylorjánãoeramaiscontratadopelaFunai,emborasepusesseàdisposiçãoparacolaborarnoplanoYanoama.44AFunaideBrasília“declarouquehaviarecebidoordensdeautoridadessuperioresparainterrompero trabalho”doantropólogoemRoraimadesde fevereiro, supostamentepor serele um “estrangeiro numa zona de fronteira, por definição uma ‘área desegurança nacional’”. 45 Aos poucos, os outros membros do projeto foramsendo desligados ou pedindo desligamento, até a completa paralisação dostrabalhos.

Em23denovembrode1976,achefiada10aDelegaciaRegionaldaFunai,emManaus, pediu a Brasília que proibisse o ingresso de Alcida na área dosíndios mayongong, em Roraima, “em virtude da atuação negativa junto aosíndiosyanomami”.OpresidentedaFunai,defato,“determinouasuaretiradadaárea,bemcomodeseucompanheirosr.Taylor”.46Nãofoidescrita,porém,que“atuaçãonegativa”teriasidoessa.

Asconsequênciasda suspensãodoPlanoYanoama foram imensasparaosYanomami, sobre os quais desabou uma catástrofe a partir dos anos 1980. Ogovernomilitar semostrou incapazdeprotegero territórioea integridadedosíndios.Aáreafoiinvadidapormilharesdegarimpeiros.

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13. COMO SE FOSSE UM

NEGATIVO

OS INTERESSES DO GOVERNO NA REGIÃO DE INFLUÊNCIA daPerimetral Norte levaram à intensificação de contatos com outra etnia tão oumais resistente que os Arara no caso da Transamazônica ou que osWaimiri-Atroari no caso da BR -174: os Korubo. Como revelou muitos anos depois osertanista Sebastião Amâncio, “grupos de empresários da região do AltoSolimões procuraram a 1a Delegacia Regional da Funai”, em Manaus, entãocomandada pelo general Antônio Esteves Coutinho, para pedir ações quefreassem “incursões de índios isolados contra madeireiros e seringueiros” naregiãodorioItacoaí,noAmazonas.

Porteremmatadovários“civilizados”comgolpesdebordunaouporretenocrânio, os Korubo eram conhecidos como “caceteiros”. Eles simbolizaram,durante muitos anos, a resistência mais impressionante e violenta aos“civilizados”emtodoovaledoJavari.Emumestudodosanos1990igualmenteválidoparaosanos1960,1970e1980,aFunaiosdefiniucomo“umasociedadeemguerra”.1

Fortes, de pele “morena, estaturamédia, dentes perfeitos, corte de cabelomeiacuianafrenteeatrássomenterebaixado”,osKorubocostumavamsepintardevermelhocomurucum,adornavamopêniscompalha,voltadoparacima,eusavampulseirasdesedadetucum.2Elesdefendiamsuas terrascomextremapersistência.

A Funai atribuiu aos Korubo a morte, em 1965, de três “civilizados”

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empregadosdofazendeiroFlávioAzevedopertodoigarapéMarubo.Osegundoconflitoconhecidoocorreuem1968,na localidadedeVoltadoPerigo,quandoelesatacaram,mataramearrancaramascarnesdeumseringueiro,paraassustarosmoradoresdaregião,“deixandoapenasaossada”,alémdesequestraremumamenina“alourada”.Noanoseguinte,osKoruboraptarammaisduascrianças,IsaLucas e Vera Lúcia Ângulo, ambas com nove anos. Em 1970, mataram acacetadasoutroseringueiro.3Esseseventos,aliadosàspressõesdosempresárioseaosplanosdaPerimetralNorte,levaramaFunaiaseinstalarnaregião,comaaberturadequatrofrentesdeatração,nosriosItuí,Branco,ItacoaíeCuruçá.4

Em contrapartida, há diversos relatos de que os Korubo também foramvítimas de “civilizados” ao longo do século, o que ajuda a explicar suabelicosidadeeosataquesquevisavamacausarpâniconoentornodesua terratradicional.Há o registro, por exemplo, de que nos anos 1920 um parente docomercianteOscarGomeseoutros trabalhadores roubarambananaseabacaxisde uma roça de índios isolados, possivelmente os Korubo. Eles então vieramtomarsatisfações,dandoorigemaumsangrentochoqueque teria resultadonamorte,atiros,de“quarentaepoucosíndios”.AhistóriafoicontadapelopróprioGomesaosantropólogosDelvaireJúlioMelatti.5

AFunaiinstalouseuspostosdeatraçãoem1972.Nofinaldesseano,sofreuo primeiro ataque dos índios, que feriram uma funcionária e incendiaram umtapiri. Em agosto de 1974, osKorubo fizeram omais grave ataque até então,matandocomgolpesnacabeçaoservidordaFunaiSebastiãoBandeiraeferindooutro, Bernardo Müller, que conseguiu escapar “atirando-se às águas do rio”Itacoaí.6Naépoca,aimprensaeaentidadechamaramosíndiosde“Marubo”e“Mayoruna”,outrasetniasdoJavari,masdepoisaFunaiconcluiuqueosataquespartirammesmodosKorubo.7

Em24denovembrode1974,umgrupodeKorubomanteveumencontroamistoso com membros da frente de atração da Funai em Atalaia do Norte,denominadaMaruboechefiadapelotécnicoindigenistaValmirdeBastosTorres,entãocomtrintaanos.Aolongodetodoodia,osíndiossedeixaramfotografareaceitaram brindes “com muita alegria”. Por meio de sinais, combinaramregressar ao local dali a “três luas”, ou seja, trêsmeses.Torres, segundoele a

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contragosto,entroudefériasnesseperíodo.Osíndiosforamentãorecepcionadosna data combinada por outro servidor, Bernardo Müller. A Funai cometeu odesatinodeescalarparaaatraçãoomesmoindigenistaquejáhaviaescapadodamorte, pelas mãos dos mesmos índios, no ano anterior. O encontro teve umdesenlacemuito ruim.SegundoValmir,quandoos índiosseaproximaramcommacacose“outrosbrindes”,Müller“foiatacadoporumacrisenervosaepassoua soltar foguetes em direção” a eles, que fugiram assustados. Meses antes,Valmir disse ter descoberto que a Funai distribuíra fogos de artifício aosservidoresdafrente“paraquefossemdetonadosdentrodamata”.OsservidorestinhammuitomedodosKorubo.8

Namanhã de 6 de novembro de 1975, portanto novemeses depois que aFunai afugentou osKorubo, o que lhes causou “grande confusão no espírito”,um grupo voltou a aparecer nas proximidades do posto. Torres e seu colegasertanista Jayme Sena Pimentel cruzaram o rio Itacoaí em direção aos índios.Nãohaviabrindesnoposto,por issoValmir levou suascoisasdeusopessoal,como“pratos,panelas,colheres,garfos,canecos”.Aochegaràmargemoposta,otécnico indigenista pediu que dois funcionários ficassem “na retaguarda”,enquantoeleePimentelcaminharamemdireçãoaosíndios.OsKorubo,porém,“em grande número”, os receberam com golpes de borduna e lança. Valmirconseguiu escapar e se jogou no rio, enquanto Pimentel foi cercado emassacrado.9

O que aconteceu em seguida é uma narrativa disputada por diferentespersonagens, que com versões conflituosas colaborou para produzir um dosmaioresmistériosdoindigenismonosanosdaditadura.

No ano 2000, uma reportagem do jornalOGlobo , do jornalistaAmauryRibeiro Jr., denunciou que índios que trabalhavam com a Funai na épocaafirmaram que Valmir, logo após escapar da morte, determinou que todosusassemsuasarmasdefogocontraosKoruboparavingaramortedeJayme,oque teria causado um massacre de índios à beira do rio. 10 A comissão desindicância aberta pela Funai para apurar o caso acabou por inocentarValmirTorres. A procuradoria do órgão decidiu pelo arquivamento, pois “osdepoimentos colhidos, bem como os documentos juntados aos autos, não

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apontam nenhum indício de que houve massacre dos índios korubo, muitomenosporresponsabilidadedoservidoracusado[Valmir]”.Em1975,aoapuraras circunstâncias da morte de Pimentel, a Funai também já havia absolvidoTorres,quedepoisocupariacargosdechefianaregião.

Teriamsidoosrelatossobreachacinaumafantasia,umgrandeengano?Osdocumentosedepoimentoscoletadosnasduasinvestigações,de1975e

de2000,guardampelomenosumacontradição.Emrelatórioqueescreveuem2000,Torres afirmou que, quando houve o ataque dos índios, “nada tinha nasmãos e vestia calção, camiseta e tênis”. Mas quando prestou depoimento em1975disseque“ainda teve tempo[de]efetuardisparoparacima”,ouseja,eleportavaumaarmade fogo.Outro funcionáriodaFunai,Epitácio JoséBarbozaFilho,queassistiuatudodooutroladodorio,contouterouvido“cercadeoitodisparos de arma de fogo (revólver) detonados porValmir e Jayme, durante oataquedosíndios,[…]presumindoqueosdisparosforamefetuadosparacima”.Outroservidor,VictorBatalha,quedecimadeumaárvorenooutroladodorioviuamortedePimentel,ouviu“claramenteopipocardetrêstiros,nãosabendoprecisarsepartiramdeValmiroudeJaymenemtampoucosabedizersealgumíndiosaiubaleado”.

Mas essa contradição é ainda pequena diante de outro documento. Umrelatório guardado noArquivoNacional que não veio a público na época dosfatosnemantesdestelivroofereceumaversãoimpressionantesobreoepisódio.Sobainscrição“Cópiadefitagravada”,aASIdaFunai,obraçodoSNInoórgão,arquivouumdepoimentoprestadopelo trabalhadorbraçal JoséLatinoTenazorno dia 14 de abril de 1976, portanto seis meses após a morte de Pimentel.Tenazor,quetinha27anos,jáhaviasidoouvidonainvestigaçãointernadaFunaide1975,quandofoiidentificadocomo“servidordaFunai/Coama”,atuandonoposto de atração de Marubo. Na primeira ocasião, Tenazor disse apenas queouviu“diversosdisparosdearmasdefogo,efetuadosporValmireJayme”,masnãosoubedizer“sealgumdosíndiosfoiatingido”.

Seis meses depois, porém, Tenazor contou outra história, tão diferentequantoassustadora.Paraprestaressedepoimento,elefoilocalizadoemsuacasa

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em Atalaia do Norte por um servidor da Funai de Manaus chamado FlávioGomesPereira,queforaenviadoàcidadecomo“representante”daASI , comoconfirmouemofíciooentãochefedaASIdeBrasília,AryLuzLima,a fimdecumprir “um Pedido de Busca” sobre a presença de missionários daMNTB etambém“sobreamortedeumelementopelosíndiosdoaltorioItuí”.Aconversaentre Flávio e Tenazor foi acompanhada por outro servidor, Nilo Pereira.TenazorcomeçoudizendoquenamanhãdamortedePimentelestavaajudandoafazerumacasanopostodeatração,emcompanhiadeVictorBatalha,quandoosKoruboapareceramdooutroladodorio.Deláeleviua travessiadogrupodaFunai, o ataque dos índios e também ouviu “oito tiros” dados por Valmir eJayme.Emseguida, ele,Batalhaemais trêspessoas,Apuí,EpitácioeManuelMendes, atravessaram o rio para socorrer Valmir, que por sua vez apareceucorrendo em direção ao grupo. Valmir teria ordenado aos companheiros queabrissemfogocontraosíndios,oquefoicumprido.

Pereira observou que a versão dada antes por Tenazor era inteiramentediversaequeo relatório finaldasindicância“distorciaos fatos”.“Você foramcoagidos para falar somente o que a comissão dissesse?”, indagou. Tenazorreconheceu que os depoimentos foram combinados e corrigidos pelo entãoresponsávelpela investigação,que tambémtrabalhavanaFunaida região.“Eufiz isso porque todos tinhamdito por umaboca só, eles já tinhamconversadotudo[…].Quandoeufuidarodepoimento,eledisse‘Vocêdizassim’,aíeuiadizendotudinho.”

TantoafitagravadaquantoatranscriçãonãoapareceramnasapuraçõesdaFunaide2000.TambémnãohánenhumregistrodequeafundaçãoououtroórgãodogovernofederaltenhadesencadeadonovasinvestigaçõesouprocessosapartirdorelatodeTenazor.

Em março de 2015, parti em busca da testemunha-chave. A partir deinformações precisas repassadas pelo chefe daFunai novale do Javari,BrunoPereira, encontrei Tenazor em uma colônia de pescadores a cerca de quarentaminutosdebarcodacidadedeAtalaiadoNorte.Eleaprincípiorecebeu-mecomdesconfiança. Indagou se seu depoimento não iria lhe “trazer problemas”. Por

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fim,aceitoucontarasuahistória.Nascidoem julhode1947emSãoPaulodeOlivença (AM ), na regiãode

Alto Solimões, Tenazor chegou criança comos avós aomunicípio deAtalaia,ondeprimeirotrabalhoucomoseringueiro.Adulto,soubedeumavaganaFunaiesetornoumotoristadoórgão.IntegrouafrentedeatraçãochefiadaporValmir.

Emnovembrode1975,eraumdosfuncionáriosdaFunaique,dooutroladodorio,acompanhavamatentativadeJaymeeValmirdemantercontatoamistosocom os Korubo. Tenazor viu ambos com revólveres e apitos. Ninguém sabia,mas os índios estavam escondidos no mato. Quando sertanistas chegaram aotroncocaídonomeiodaroça,umgarotoíndioseaproximou.Atocontínuo,osíndios saíram damata e cercaram os dois. Na fuga, segundo Tenazor, Valmirteriaderrubadoumíndiocomumtiro.

Em socorro a Valmir, o pessoal da Funai, incluindo Tenazor, decidiuatravessar o rio. Eles estavam com “nove ou dez armas”. Tenazor pegou umaespingardaeumacaixadebalasecomeçouaremar.Aochegaràoutramargem,porém, um índio da equipe chamado Apuí pegou a espingarda e subiu obarranco, deixando-odesarmado.Valmir então aproximou-se, armado comumrevólver.

SegundoTenazor,quandoeleconseguiugalgarobarrancoechegaràroça,deu de cara com uma cena caótica e sangrenta.O pessoal da Funai disparavasuasespingardaseoarestavacarregadodefumaçadapólvoradetonada.Àsuadireita, um índio com “uma cara redonda, a cara de uma onça”, levantou seucacete contra um funcionário, mas outro atirou no rosto do índio, que girou,“abraçou”umaárvoreedeslizouparaochão.

Metros adiante, Tenazor disse ter visualizado outro índio, “bemmoreno”,com“ocabelobemquebrado”.Este,segundoele,“eraomandão”,poiscomumcajado e posicionado em um morrinho de terra parecia ordenar as ondas deataquedosíndioscontraopessoaldaFunai.UmtiroderrubouoKorubo.

Eunãoseideondesaiuaqueletiro.Osenhorsabe,osíndiosnãogritavam,não! Não gritavam, não! Acho que estavam drogados, um negócio atéaquelesíndios,aquelesanimais,aveMaria,seilá.[Mas]essemandãoacho

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queeraumcivilizado.Quandoochumbobateulá,elegritou.

“OqueoValmirfazianessahora?”,euquissaberdeTenazor.“OValmirsódisseassim,quandoestavaaflito,ládentrod’água:‘Pô,mata

aomenosumqueéparavingaramortedohomem’.Sódissoqueelefalou.Masdepoiselerevogou[aordem].‘Não,pô,atiraparacima’.”

“Quantosíndiososenhorachaquemorreram?”,indaguei.“Caído, caídomesmo, só aquele. Agora, só que por onde eles passavam,

assimporaquelespaus,[deixaram]aquelemerdeirodesangue.Eunãopodiairmaisporqueeutinhamedo.Seeufossemais,elesiammebatereeusócomdois[cartuchos].”

“Osenhoracreditaquequantostirosforamdadosnototal?”,perguntei.“Tinha doze caixas de bala. Uma caixa tinha 25 cartuchos. Tinha doze

caixasdecartucho.Achoquenãosobrounada.”

Valmir Torres dedicou quase toda a sua vida aos índios. Até depois de suaaposentadoria na Funai, solicitada em 2014 ao cabo de mais de 45 anos deserviços prestados: ele costuma atender índios em sua própria casa emTabatinga, orientando-os sobre aposentadoria e outros processos burocráticos.Osex-colegasdetrabalhochamamacasadeValmirironicamentede“oAnexodaFunai”.Valmiréumhomembaixo,forteeativo.Vaidemotocomfrequênciaà terra indígena Umariaçu, a poucos quilômetros do centro da cidade, muitasvezesfuncionandocomo“indigenistadoJudiciário”paracasosdeviolênciaoubrigas de casais entre os índios tikuna. A droga e a bebida, adquiridas semrestrições em Tabatinga, são dois dosmaiores combustíveis de desavenças naaldeia. Ele costuma ser chamado às pressas para servir de apaziguador ou deintérprete. Pelo menos uma vez, um juiz determinou que um índio ficasse“preso”nacasadeValmir,atéserecuperardosefeitosdabebida.

AtrajetóriadeValmirseentrelaçoucomadosíndiospoucotempodepoisdacriaçãodaFunai,nofinaldosanos1960.Nascidoemjaneirode1945emBarradoMaratuã, hojeNossa Senhora dosRemédios, no Piauí, em uma família dequinze crianças, Valmir mudou-se para Brasília por volta de 1966, onde sematriculounoColégioAgrícola.Em1968,osestudantesentraramemconflito

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comaditadura.OprédiofoicercadoporpoliciaismilitaresepeloExército,queameaçavam uma invasão. Os alunos escolheram dois colegas para saírem àsescondidas,pedirajudaaparlamentaresnoCongressoedenunciarqueosalunosestavam sitiados, com energia elétrica e água cortados. Valmir era um deles.Após atravessarem uma mata, pegarem carona e chegarem à Câmara, foramlevados à presença do então deputado federal José Sarney. Segundo Valmir,Sarney“nãoquisseenvolver”elimitou-sealhesdarunstrocadosparacomeremalgumacoisa.Valmirdissequeeleeseuamigorejeitaramodinheiro.MaissortetiveramcomodeputadomonsenhorManuelVieira,daArenadePatos(PB).Oparlamentarfoiaocolégioe,navolta,passouadenunciarnatribunaaaçãodosmilitares.

Passadaacrise,odeputadochamouoestudanteàsuasalaeoconvidouatrabalhar como técnico agrícola em um núcleo de colonização perto daTransamazônica. Antes, chamou-o para uma viagem à ilha do Bananal. LáValmir disse ter visto índios, os Karajá, pela primeira vez na vida. Ele entãodisse ao deputado que, se fosse para trabalhar no governo, queria entrar naFunai.Poucosdiasdepois,odeputadolevou-oàpresençadeQueirósCampos,quelhedeuamissãodelevarassistênciaaosíndiosxavanteemNovaXavantina(MT).AseguirValmirparticipoudoprimeirocursodeindigenismo,em1970,eatuou no Amazonas com os índios saterê-mauê. Por volta de 1972, passou atrabalhar com os índios tikuna emTabatinga.O Exército era a presençamaisfortedoEstadobrasileironacidade.SegundoValmir,oseuprimeiroatritocomocomandantedoquartel,ocoronelWaterBerg,ocorreuquandoeleresolveudizeraomilitarquesuspendessesuaordemdemandarcortaroscabelosdetodoíndiotikunaquefossepresofazendoalgoerrado.

Meses depois, o indigenista Porfírio Carvalho, que atuava na Coama emManaus, orientou Valmir a notificar todos os “civilizados”, cerca de setefamílias,queocupavamsemquereraterradosTikuna,dando-lhesumprazoparadeixarem o local. Porém, os colonos recorreram ao coronel e nada aconteceu.Até que Valmir reuniu cerca de quarenta guerreiros tikuna e cercou algumascasas de invasores, dando-lhes um ultimato, que enfim foi respeitado— elesdeixaramaterraindígena.DiasdepoisValmirfoilevadoàpresençadocoronel.

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SegundooservidordaFunai,ocoroneldissequejátinhapreparadoumrelatórioaserenviadoaoSNI,emBrasília,noqualacusariaValmirdeinsuflarosTikunacontra o governo militar. Uma equipe da Funai foi a Tabatinga apurar adenúncia.Aofinaldeumareunião,ocoroneldissequenãoqueriamaisValmirnaregiãonemmaisumminuto.Osertanistapegousuascoisasnomesmodiaedeixouacidade,orientadopeloórgãoasedirigiraovaledoJavari,ondedeveriaassumirostrabalhosdetentativadecontatocomosíndioskorubo.

Perto do rio Itacoaí, Valmir reativou o posto indígena conhecido comoMarubão,quejáhaviasidoatacadoduasvezespelosKorubo.Duranteumano,disse, fez caminhadas solitárias namata, tentandomanter contato com algumKoruboedistribuindopresentesemtapiris.Compaciênciaepersistência,fez“oprimeiro contato pacífico da Funai com os índios korubo”, segundo define.Quandoas coisaspareciamevoluirbem,houveas fériasdeValmir e a atitudedesastrosa de outros funcionários de soltarem fogos perto dos índios, o quegerou um retrocesso na estratégia de atração. Os índios não fizeram maisaproximações.

Mesesdepois,ValmirrecebeuavisitadeJaymePimentel,servidordaFunaiqueestavadefériaseapenaspassavapelaregiãoemdireçãoaBelém.Oórgãohavia dito a Pimentel que logo depois do descanso fosse se unir a Valmir nafrentedeatração,eeleresolveuconhecermaisaregiãoantesdeassumiranovafunção.Certamanhã,eleprocurouValmirparalhedizerquedeveriamcruzarorioafimdechecaroboatodequeumKorubohaviasidovistonamatananoiteanterior.Valmirdissequeboatosassimeramcomunsnaregião,masnãovinhamsendo confirmados. Pimentel, segundoValmir, insistiu, e então decidiu-se queiriam de canoa à outra margem do rio, onde havia um roçado. Ao centro, otroncocaídodeumaimensaárvore.Osdoiscaminharamcercadeoitentametroseresolveramsubirno troncopara terumavisãomelhordaárea,comValmiràfrente.

Aocentro,otroncocaídodeumaárvoreoutroraimensa.Apóscaminharemcercadeoitentametros,osdoissubiramnotroncoparaterumavisãomelhordaárea. Nesse instante, Valmir disse ter visto, “pelo canto do olho”, um índiolevantar um porrete para atingi-lo. “Tenho até hoje na minhamente gravado,

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comosefosseumnegativo,nãosai.”Eleconseguiupulareoporreteatingiuotronco,arrancandolascasdemadeira.

Valmir olhou para a beira do rio e a viu toda tomada, “vermelhinho deíndio” — os Korubo passavam urucum no cabelo. Então decidiu correr nosentido contrário, para dentro damata. Ele estava de tênis, mas Jayme usavabotasdecanolongo,daquelasquevãoatéojoelho,paraseprotegerdepicadasde cobras. Por isso Jayme não conseguiu dar muitos passos, foi alcançado,derrubadoemassacradopeloscaceteiros.

Valmirtentouacorridadesesperada,comíndiosnoseuencalço.Derepentetopoucomtrêsdelesparadosàsuafrente,separando-odamata.Eleviuquedoisusavam cacete e o do meio estava com uma lança. Porém, a ponta da armaestava com uma capa protetora, feita de palha ou folhas de bananeira. Noinstanteemqueo índiocomeçouadesencapá-la,o sertanistadecidiu saltarnasua direção, aproveitando os milésimos de segundo proporcionados peloembaraço do Korubo. Valmir ganhou a mata. Após conseguir uma distânciasegura,deuumavoltaatéencontraraságuasdorio,nasquaisseatirouenadouatéencontraroapoiodoscolegasdaFunai.

NaversãodeValmir,elenãoestavaarmadonemdeutiroscontraosíndiosenquanto era perseguido— fugiu porque correumuito. Também não instigouninguémamatar índiospara“vingar”amortedeJayme.Negouterdistribuídoarmasaoscolegas.EafirmouquenãoserecordadetertrabalhadocomTenazor,a quem, por nome, disse não reconhecer. Acrescentou, por fim, que foiinocentadoemduasocasiõesporinvestigaçõesdaFunai.

Naentrevistaquemeconcedeu,TenazordissetertidoaimpressãodequeValmirsearrependeutãologoostiroscomeçaramequeamatançafoiordenadacomouma resposta tresloucada, que saiu do controle, àmorte de Pimentel. Tenazordisse que naquele mesmo dia ajudou a retirar a roça e a enterrar o corpo dePimentel.Dooutroladodorio,osíndiostambémpassaramanoitelamentandoseusmortos.

“Eraumachoradeira, foianoite inteira.Eram3 [mil]ou4mil índios.Eunãoseiondeestãoessesíndios,osKorubo.Hojesãotãopouquinhos.”

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14.ESTEBELOPAÍS

ACERCADE1700QUILÔMETROSAOSULDEATALAIADONORTE,emáreasindígenaslocalizadasentreoterritóriofederaldeRondôniaeoestadodeMatoGrosso,umacrisedesaúdeexplodiunaprimeirametadedadécadade1970. Mais uma vez a crise tinha relação com a política dos militares deexpansãodeagriculturanaAmazôniaeexpunhaasdificuldadesdogovernoemlidarcomodireitodosíndiosdepermaneceremsuasterras.

Ogovernoprocuravaatrairgruposeconômicosparaaexploraçãode solosférteisnaregião.Porém,aindahaviamuitasdúvidassobreoslimitesdasterrasocupadaspelosindígenas.Ogovernotevequecriarummecanismoparaacalmaroagronegócioedarumasensaçãodesegurança jurídicaaosprojetos rurais.ASudambaixouumaresoluçãoem1969quevinculavaanãoexistênciadeíndiosnas terras à liberação dos incentivos fiscais e financiamentos. Só o fazendeiroque tivesse essa manifestação prévia podia reivindicar o apoio financeiro daUnião.Apartirdaí,apresidênciadaFunaivirouumamáquinadeconcessãode“certidõesnegativas”.

Osistemaeramuitíssimofrágil.Tratava-sedecompararocadastrodaFunaideterrasindígenascomaáreaalegadapeloempresáriointeressado.Ouseja,seomapaoferecidopelointeressado,pormá-féouerro,fossediferentedarealidadehavia grandes chances de a entidade autorizar um empreendimento dentro deumaáreaindígena.AFunainãorealizavanenhumachecagememcampoparasecertificardequenãohaviaíndiosnasterrasdeinteressedoempresário.

O próprio general Bandeira de Mello depois reconheceu a precariedadedesse instrumento, embora continuasse defendendo que eventuais errospoderiamsercorrigidos.

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Em sã consciência, eu não posso afirmar que uma certidão negativafornecida pela Funai corresponda à realidade. […] Se essa plotação forerrada, será dada a certidão negativa para uma área e na realidade a sualocalização é outra, podendo inclusive, não havendo benfeitorias, selocalizardentrodaáreaindígena.1

Anos depois a ditadura recuou no sistema de emissão das certidões, ematendimento às recomendações de grupode trabalhomontadonaFunai para aelaboraçãodeumPlanodeAçãoImediatadoórgão,aprovadopeloMinistériodoInterior.Umadasorientaçõeseraa“restriçãoàemissãodecertidõesnegativas,pela Funai, as quais somente serão concedidas para região onde as áreasindígenas estiverem efetivamente demarcadas e/ou delimitadas”. 2 Esse mea-culpa,porém,sóocorreuumadécadadepois.DuranteapresidênciadeBandeiradeMello,entre1970e1974,afundaçãoemitiunadamenosque772certidõesnegativasparaempreendedoresdiversosnaAmazôniaLegal.3

Naprática,o sistemadavaaosburocratasdaFunaiopoderde retardaroumesmo impedir o acesso dos empresários a milhões de cruzeiros dos cofrespúblicos.Assim,começaramasurgirboatosedenúnciasdequeumverdadeirobalcão de negócios clandestinos foi montado no governo para a emissão dascertidões.

Após uma sindicância que ouviu 56 pessoas, o Incra descobriu, porexemplo,queocoordenadordaFunaina regiãodeBarradoGarças,emMatoGrosso,DarioCabrera,havia recebido125mil cruzeirosdeum fornecedordoórgão,oempresáriodetáxi-aéreoOrlandoCorrêaFilho,“paraorientareajudar”na“obtençãodecertidõesparaodesembaraço,peranteaFunai,relativamenteauma área de terras”. Cabrera reconheceu o recebimento dos recursos. Emdepoimento,Orlandodissequeo fazendeiro,quedepois seapurou serHenrykZylberman, residenteemSãoPaulo, teveboapartede sua fazendade100milhectares“abrangidapelareservaindígenadoXingu”.Comoelequeriavenderorestante a terceiros, contratou Orlando por 1 milhão de cruzeiros para“pagamento de honorários, despesas de viagem e outros mais que foremnecessários à obtenção de certidões”. Comunicada sobre os fatos em 1981, a

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FunaiconfirmouaoIncraqueZylbermanderaentradaaumpedidodecertidãopara99725hectaresnaregiãodoXingu,masquenenhumacertidãohaviasidoexpedidaatéaquelemomento.4

Uma certidão negativa emitida por Bandeira de Mello também está naorigemdeumescândalodecorrupçãoquesumiutãorápidodonoticiárioquantoentrou.Nascidoe reverenciadonaSuéciacomoumde seusmaiorescineastas,ArneEdvardSucksdorffjáhaviaganhadodoisprêmiosemCannes,em1952e1954,eumOscardecurta-metragem,em1949,quandoconheceueseapaixonoupeloBrasil.5Elepassouaviverlongastemporadasnopaísapartirde1962,atése mudar de vez para Mato Grosso, onde se tornaria um dos precursores dadefesadoPantanal.6NoRio,deucursosdecinemaajovensrealizadores,algunsdosquaisligadosaoCinemaNovo,edirigiuMeularéCopacabana,de1965,laureadoemfestivaisinternacionais.Em1970,Arneeabrasileiracomquemsecasou,Maria,receberamdepresentede“amigossuecosinfluentes”umaáreade60milhectaresemMatoGrosso,pertodolimitesuldoParquedoXingu.Aideiaera desenvolver ali uma reserva biológica.7Os antigos proprietários da terra,segundoArnedeixoudocumentadonaFunai,tinhamemseupoderumacertidãonegativadapresençaindígenaassinadaporBandeiradeMelloem12deagostode1970.8

Depois o governo concluiu que um terço das terras tinha “títulosprovisórios”eorestante,“títulosdefinitivos”.ComaconstruçãodeumarodoviaquecortouoParquedoXingu,porém,aUniãoincorporouasterrasdeArneaoparquepormeiodeumdecretode1971.Eraumaformadecompensarocortefeitopela rodoviaaonortedoparque,oque feriuosdireitosdos indígenas.Apartir daí, Arne lutou para ou excluir suas terras do parque ou receber umaindenização. Após inúmeras conversas na Funai, recebeu a informação doprocurador-geral do órgão, Getúlio Barros Barreto, de que um advogado,ArmandoConceição, iria ajudá-lo, pois havia “problemas junto àFunai iguaisaosdeArne”.9

MasquandoConceiçãofoivisitarArneemsuacasa,emCuiabá,ocineasta,desconfiado, gravou a conversa, com a ajuda de um auxiliar, que colocou ummicrofone perto da janela. Conceição relatou que tinha um jeito de “tirar” as

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terrasdeArnedosnovoslimitesdoparque.Asoluçãoerapagarsubornoaváriosservidores,osquaisforamapontadosnominalmentepeloadvogado.

Diasdepoisdaconversa,ArneprocurouogeneralIsmartheentregoufitaseditadas da gravação. Em ofício confidencial, Ismarth pediu que a PolíciaFederal apurasseo caso em sigilo, “a fimde resguardar o bomnomeda atualadministraçãodaFunai”.Aomesmotempo,pediuqueocoronelquecomandavaaPolíciaFederal,MoacyrCoelho,apreendesseasgravaçõesintegraisnacasadeArne.10Em10demaio,umdelegadodaPFrecebeudasmãosdeArne“quatrorolos de fitasmagnéticas e duas fitasmagnéticas tipo cassete”.11O cineasta,precavido,deixouumacópiadomaterialnaembaixadadaSuécianoBrasil.12

Arne também levouo embaixador sueconoBrasil para uma audiência noItamaraty, a fimde informarque ele e seu auxiliar sofreram,porpartedaPF ,“umaviolentaçãomoralquedemaneiranenhumamerecíamos”.

O desenrolar dos acontecimentos revelou novo acobertamento pela Funai.Os documentos confirmam que Arne entregou as primeiras fitas emmaio de1977.Até o final de 1978, contudo, nada havia ocorrido:Arne não tinha sidoindenizado e ninguém do órgão fora punido. Armando Conceição foi ouvidopelaPFemjunhode1977.Elenegou terpedidopropinaouusado“onomedeservidordaFunai”.Poroutrolado,confirmouasconversascomArneeofatodeque o irmão do procurador-geral da Funai era também advogado e“correspondenteemBrasília”dopróprioescritóriodeConceição,localizadoemSãoPaulo.

Osdocumentostornadospúblicosquasequarentaanosdepoisrevelamqueaapuração preliminar da PF não foi aceita pela Funai como prova deirregularidades, muito embora o delegado de polícia responsável tenhaidentificado“divergênciaentreodeclaradopeloadvogadoeagravação”.13Emofício,IsmarthalegouqueaapuraçãodaPF“nãoobteveosresultadosdesejados,estando a Funai sem condições de definir as implicações ou não de seusservidores”.

Cansado da briga sigilosa com a Funai, Arne então procurou aFolha deS.Paulo , que em longa reportagem revelou trechos das fitas. 14 O episódio,porém,logocaiunoesquecimentoeninguémfoipunidoemvirtudedadenúncia.

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Em1980,apósmorar“pordezanosnoPantanal”,ocasalfoiaCuiabáparadenovotentarreaverasterrasoureceberumaindenização,masnadaconseguiu.Na mesma época, alguém deu tiros na direção de Arne enquanto ele estavaparadonumabancadejornais,segundorememorousuamulheranosmaistarde.Nunca ficou estabelecido se o atentado teve relação com a denúncia sobre acorrupção na Funai. Arne começou a enfrentar problemas financeiros emCuiabá. Quando o pesquisador e mestre em cinema pela USP Luiz Carlos deOliveira Borges o encontrou para o primeiro de uma série de encontros, em1988,ocasalpassava“porsériasprivações”eoconsumodeálcoolextrapolava“os limites da sociabilidade”. Borges atribuiu essas dificuldades às denúnciasfeitasporArne“emdefesadomeioambiente”,que“colidiam,emMatoGrosso,com poderosos interesses econômicos”. Cinco anos depois, a organizadora deumfestivaldecinemadaFinlândia,KirsiKnunem,passavapeloBrasilquandoprocurou saber notícias deArne. Borges levou-a até a casa do cineasta, ondeKirsiencontrouArneem“situaçãohumilhanteerevoltante”.Ummêsdepoisdavisita,umrepresentantedogovernosuecoentrouemcontatocomArneeolevoudevoltaparaaSuécia,ondeocineastamorreuem2001,aos84anos,semjamaistersidoindenizadopelasterrasexpropriadaspeladitadura.15

Osistemadedistribuiçãodascertidõesnegativasteveumimpactoespecialmenteimportantenosgruposdeíndiosdeumamesmaetniaqueviviamemcondiçõesdifíceis desde o início dos anos 1960 ao longo da rodovia BR -364, que ligaCuiabá a Porto Velho. Os Nambikwara eram constituídos por cerca de trinta“grupos independentes, que viviam num raio de setecentos quilômetrosquadrados”novaledoGuaporéepartedasavanadoplatôdosParecis.Falavamtrês dialetos mutuamente compreensíveis. Cada grupo tinha a sua própriadenominação, sendo os mais conhecidos os Mamaindé, Negaroté, Kitaunlhú,Halotésú,Nandésú,WasùhsúeKatditaunlhú.16

Nosanos1960,emtermosnuméricososNambikwarajáeramapenasumasombradograndegrupoqueao longodaprimeirametadedo século impuserarespeitoemedonaregião,apósdesaparecercomsetetrabalhadores“civilizados”em1925emassacrar seismembrosdeumamissãoprotestantenosanos1930,

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depoisqueumíndiodatribomorreuaoreceberumremédiodosmissionários.17“Milhares de Nambikwara morreram como resultado do contato com acivilização ocidental, embora nunca tenha ocorrido uma guerra de conquista.Eles morreram de terríveis epidemias e de novas e letais doenças que oscivilizadostrouxeramparaaregião”,concluiuoantropólogoDavidPrice.18

OantropólogoClaudeLévi-Straussmencionou,emTristestrópicos,queem1915 o marechal Rondon calculou os Nambikwara em 20 mil pessoas, umnúmero que lhe pareceu “exagerado”, embora reconhecesse que os índiossofreramváriosepisódiosepidêmicos.Em1929,segundoele,umadoençaqueevoluiuparaumtipodeedemapulmonarmatoutrezentosíndiosemapenas48horas.RelatouqueumgrupoconhecidocomoSabanécompreendiaantesmaisdemilpessoas,masem1928,quandovisitouaestação telegráficadeCamposNovos,eramapenas“127homens,maismulheresecrianças”.Em1938,Lévi-StrausscalculouqueosNambkiwaraeramaotodo“maisde2mil,semdúvida”.O impacto do contato com os “civilizados” foi tremendo. No início dos anos1960, segundo o censo governamental, eram apenas cerca de seiscentossobreviventes.Umrelatóriodogovernoconcluiuqueelesforam“dizimadosemcercade90%desuapopulaçãonosidosanos1960”,oqueindicariaumtotalde6milNambikwaranoiníciodoséculopassado.19

Quando o autor deste livro esteve na aldeia nambikwara de Sararé, emdezembrode1996,nazonaruraldomunicípiodePonteseLacerda(MT),aindaosencontrounus,compoucosfalantesemportuguês, resistindoaduraspenas,com pouco mais de setenta pessoas, a uma invasão estimada de 8 milgarimpeiros.20Os índios caçavamcomarco e flecha, emespecial porcos-do-mato.Antesdeiremàscaçadas,passavamcinzasportodoocorpo,deformaaconterosodoresqueespantavamosanimais.Diasantes,partedosNambikwara,liderados pelo caciqueAmérico, havia sido alvo de uma emboscada praticadapor garimpeiros, que prenderam alguns índios, incluindo um bebê, e osespancaram. A malária grassava na região e atingia garimpeiros e índios. Oclima na aldeia era de grande tensão — o cacique chegou a dizer que, sepudesse,matariatodososgarimpeiros,funcionáriosdaFunaiejornalistas—,sóamenizado no ano seguinte, quando o governo desenvolveu uma operação de

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largaescalaeexpulsouosgarimpeiros.

AaberturadaestradaCuiabá-PortoVelho,definidacomouma“estradadedefesae de expansão econômica”, 21 foi um golpe que poderia ter sido fatal para aetnia.Duranteasprimeirasobras,realizadasem1960pordecisãodopresidenteJuscelinoKubitschek,ogovernopouco levouemconsideraçãoos índiosenãodemarcou nenhuma terra, deixando-os à mercê dos empreendimentosagropastorisquecomeçaramaseinstalarnaregião.Éfatoqueogovernomilitarherdou esse quadro, mas também errou no tamanho de uma área, impôsdeslocamentos desastrosos de contingentes indígenas e falhou no atendimentobásicodesaúdeealimentação,denovocolaborandoparamaismortes.

Apartirdosanos1950,osíndioseramatendidospormissõesreligiosas,eopapel do SPI era apenas lateral. Após o golpe de 1964, o cenário continuou omesmo, com a Funai desempenhando o papel de fiscal da atividade dosmissionários.OEstadobrasileiro,arigor,deuascostasaosNambikwara.Essevaziofoipreenchidopormissionárioscomnítidosobjetivosdecatequese.

Doisgruposnambikwara,nasaldeiasCamararé, com58 índios, ewasusu,com45,eramatendidospelamissãonorte-americanaevangélicaSouthAmericaIndianMission(Saim),quetrabalhavaemMatoGrossodesde1914.PorescritoàFunai,orepresentantedaSaimnoBrasil,DavidW.Snyder,reconheceuqueamissão prestava assistência médica e educacional emmeio a um processo deevangelização.

OlíderdaSaimnoBrasildissequeogeneralErnestoGeisel,aovisitarumaaldeia terena em 1977 atendida pela Igreja, elogiou “o grau de coesão edesenvolvimento” dos índios. A Saim também fincou os pés na área xavante,depoisque“umaboaparte”dosíndios“aceitouoEvangelho”.Snyderdissequeum dos pontos altos damissão ocorreu durante a contenção, com remédios epessoal, de uma grave epidemia de sarampo que atingiu, no ano de 1962,diversasaldeias.NadamenosquesetentaXavanteteriammorridoapenasnessaepidemia. Em 1971, a Saim mantinha sete pastores em áreas indígenasnambikwara,terena,xavanteebakairi.22

A missão afirmou à Funai que seus objetivos básicos eram “facilitar a

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transiçãodo índiodaépocadapedraàépocadoespaçoemtermosdesucessoparao índioeparaanação”,porémde forma“gradual”, semuma“imposiçãoartificial”,e“ensinaraverdadesobreDeuseamoralidadebíblica”.23

A Saim atuava com os Nambikwara desde 1926, mas eles se mostravammais resistentes à doutrinação evangélica do que os Terena. Foi um grupo daSaim o dizimado pelos Nambikwara nos anos 1930. A entidade rebatia assuspeitas sobre seu trabalho, dizendoque conseguiudefender “várias vezes” aárea desses índios do ataque de invasores, ajudava na educação e custeavafrequentes viagens para levar índios doentes ao hospital deVilhena.Amissãonão recebia recursos “de nenhuma repartição pública, sendo mantida pelosprópriosrecursosdosmissionários”.24

Em1970,aFunaiconcluiuqueamissãotinhacomo“alvoprioritário”,entreosNambikwara,“aevangelizaçãodosíndioseoensinodehistóriasedoutrinasbíblicas, como meio para fundar ‘uma igreja indígena’”. 25 David Snyderescreveu à fundação acerca de “uns pensamentos nossos sobre a possibilidadedum estudo bíblico para os Xavantes”, o que seria um pedido dos própriosíndios.26OchefedaajudânciaemBarradoGarças,OdenirPintodeOliveira,respondeu que os Xavante de dois dos postos estavam “retornando às suastradições culturais exatamente pela ausência demissionários em seu convíviocomunitário”. Ele pediu que fosse vetado o estudo bíblico, sugestão acolhidapeladireçãodoórgão.Nomesmoano,combasenasadvertênciasdopessoaldaFunai, o presidente do órgão determinou a saída dosmissionários das aldeiasnambikwara.Apenasdoisanosdepois,porém,amissãoretomousuasatividadesnasáreas,comaautorizaçãodaFunai.

Apesardosalegadosesforçosdosmissionários,asituaçãodosNambikwaraerapreocupante.Comaaberturadaestrada,osincentivosfinanceirosdaSudameascertidõesnegativas,osíndiosficaramcadavezmaisacuados,doentesecomdificuldades de alimentação. Pelo menos doze certidões negativas foramemitidaspelaFunaiparaautorizarempreendimentosruraisnovaledoGuaporé.Pouco antes da emissão desses papéis, em outubro de 1968, a presidência doórgãocriouumareservanambikwara,com1milhãodehectares,nachapadadoParecis. Os dois fatos não estavam dissociados,muito pelo contrário. Em um

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ofícioconfidencialassinadopelogeneralClodomiroFortesFlores,entãodiretordo Departamento Geral de Patrimônio Indígena, a Funai deixou expressa apolíticadeEstadode transferirosNambikwaradeáreasa seremocupadasporfazendas para uma área emque não estavam acostumados a viver.O governojuntougruposrivaisemummesmoespaço.

Em 6 de outubro de 1971, a primeira de três remoções dos Nambikwaracomeçouaserarticulada.Trêsfazendeiros,MarioBrandão,MaximilianoGorlaeWidivaldo Combaúva, de origem paulista e vizinhos do grupo dos índios deGalera, acompanhados de um dos missionários da Saim, Eduardo (Edwin)Petersen,queapoiavaosíndiosdesdeosanos1960,procuraramocoronelOlavoDuarteMendes,chefedadelegaciadaFunaiemCuiabá,paraapresentar“umasolução para o atrito criado entre os índios” e os funcionários da fazendaAguapé,pertencenteaBrandãoeCombaúva.UmgrupodeNambikwaraestavaseopondoàaberturadeumaestradaquedariaacessoàfazendadeGorla.Elessurraramumfuncionárioquefaziaasegurançadaobra.

Ocoronelreconheceuhaverrelatosdequeosíndiospassavamfome,tendoque comer insetos. Sugeriu então “um examemeticuloso ‘in loco’”, antes deautorizararemoção.AFunaienviouparaaregiãoosertanistaFritzTolksdorff,queopinoupelatransferência.Emjunhode1972,eleinformouàentidadequeosíndios“daaldeiawasusu jáestão instaladosemnovaaldeia,dentroda reservaindígenanambiquara”.27

Informações truncadas sobre as remoções de índios no vale do Guaporéchegaram à imprensa. Em resposta interna às notícias, em ofício confidencialenviado àASI , a Funai reconheceu a operação,mas alegou que era feita “porpessoaltécnicoespecializadoeobedeceacritérioscientíficos”.28

Outrastransferênciasocorreram.AFunailevouparaachamada“ReservadoCerrado” os grupos mamaindê, negarotê, alantesu e wasusu. 29 As novascondições de vida impostas aos índios foram logo condenadas. Em janeiro de1974, o reverendo Mosher, da Saim, informou à Funai que os 58 índios deCamararé “não estão bem alimentados e acham pouca caça”. A missãoconfirmouaoórgãoque“aterranãoéboa,muitaareia”.30

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Noanoseguinte,umconvêniofeitoentreaFunaieaUniversidadeFederalda Bahia (UFBA ) confirmou que “os Wasusu nem roças suficientes puderamrefazer;eosAlantesuveemmorrer-lhesascrianças,contaminadasaoqueparecepelo gado. Os outros bandos chegaram nesse ínterim à situação que antesdescrevemosequenãosepodesustentarpormaistempo”.

No grupo alantesu, os pesquisadores da UFBA viram “um aprendizadoestritamente mecânico”, com índios cantando hinos com letra religiosa emportuguês e a música “Oh, My Darling Clementine”, “sem que ninguém daaldeiafossecapazdemanteramenorconversaçãonalínguaemquecantava”.31

OqueocorreuapartirdaífoiinesperadoparaaburocraciadaFunai.Osíndiosdedois grupos, famintos em solopobre, passarama retornar espontaneamenteparasuasterrasdeorigem.Apéoudecarona,regressaramumaum.

EssesretornosforampresenciadospelosmissionáriosdaSaimeinformadosàFunai.

OgrupoGalera(wasusu)foiencontradopelosmissionáriosdestamissãoem1964 […]. O grupo estava situado nas terras que foram compradas pelosfazendeiros. Foi resolvido pela Funai mudar os índios até a reservanambikwara.Depoisdedoisanoslá,osíndiosvoltaramaseuhabitatvelho,devidoàfraquezadaterradareservaquenãorendeuquasenada.32

A Funai reconheceu o fracasso da operação de transferência, “depois dequaseumanodetentativas”.OsdesmatamentosnovaledoGuaporépromovidospelasagropecuárias“afugentaramacaça,alimentaçãobásicadaquelesíndios”,oqueoslevou“atalsituaçãodesubnutriçãoemiséria,queselevavaatemerpelaextinçãocompletadaquelegrupo”.33

Cientedoinsucesso,aFunaicontratouoantropólogoPaulDavidPriceeotornoucoordenadordeumProjetoNambikwara,aomesmotempoqueordenou,em setembrode1974, a interdiçãodeoutra áreanovale.Oórgãodeterminounovasremoçõesdedoisgruposquepassavampordificuldades,osHahaintesueosWaikisu,segundodocumentossobreoepisódio,agoraparaaáreainterditada.Emdezembrode1974,osWaikisu foram transferidosporPrice comapoiode

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outro grupo evangélico, a Missão Cristã Brasileira (MCB ). A operação levouquatrodiasdevoosemumaviãoprovidenciadopelaFunaiemaisdoisdiasdecamionete.Namadrugadadodia31,nasceuumgaroto“muitofracoepequeno”,filhodosíndiosJoãoeMaria.Maselemorreu“comapenas24horasdeidadeefoisepultadojánareserva,deacordocomocostumedosíndios”.

Foiaprimeiradeumasériedemortes.OmissionáriodaMCBHeinrichBergrelatouemcartaàFunaiquedoisíndiosmorreramnomato,apósapresentaremsinaisdefebre;umacriança“dequatrooucincoanosdeidade”morreunoposto;emseguida,seuirmãodeummêsdeidade;porfim,maisummeninomorreu,deapenas dois anos. Para o missionário, a princípio os índios “se acomodarambem”nanovaárea,maselanãoera “bemdogostodeles, pois está localizadanum vale apertado entre duas serras e temmuitas pedras. Eles apreciammaisficaremnocampo,nabeiradomatoeemlugarplano”.34

O resultado foi um novo retorno às terras de origem. Em abril de 1975,David Price encontrou os Hahaintesu “muito gripados”, divididos em doisgruposacampadosamenosdeseisquilômetrosdarodovia.SegundoumservidordaFunai,esses48índios“voltaramapédoSararépelaBR-364”.35

EmumareuniãodoConselho IndigenistadaFunai,comaparticipaçãodogeneral Ismarth, Price apresentou um cenário tenebroso. De novo, não sãoexibidosnúmerosprecisos,masrestapoucadúvidasobreaocorrênciademuitasmortesentreosNambikwaranasegundafasedastransferências.Pricedissequeamalária“fezcomquedizimassegrandepartedessasaldeias”.

O balanço das ações da Funai no vale concluiu que houve um erro deorigem.OdecretoassinadopelopresidenteCostaeSilvaemoutubrode1968,que criou reservas para sete etnias, incluindo os Nambikwara, foi “planejadocom base em informações tão inadequadas que chega a mencionar acidentesgeográficos (apontesobreo rioJuína)nãoexistentes”.Areservacontinha“aspiores terras de toda a área tradicionalmente ocupada pelos Nambikwara” eenglobavaapenasduasaldeiastradicionais,compoucomaisde10%daetnia.36OgrossodosNambikwaraqueficaramnovaletevequedisputarespaçocomasagropecuáriasquereceberamascertidõesnegativasdaFunai.

Ainda em 1975, apenas quatro anos depois da primeira transferência, a

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Funai tomouconhecimentodosváriosequívocos,pormeiodeumestudofeitopelaUFBA.SegundoospesquisadoresdaUFBA,afundaçãoconcentrouosíndiosnos solos “de pior qualidade, onde nem sequer haveria condições desobrevivência física para toda a população”. Pelo menos desde 1953 havialiteraturaespecializadainformandoapobrezadosoloeaescassezdacaça.Paracorrigiroproblema,disseoestudo,umsertanistasugeriuqueosíndioscriassemcoelhos, ignorando qualquer princípio ecológico, pois a introdução dessesanimais “teria como consequência provável sua proliferação descontrolada e aperturbaçãoglobaldoecossistema”.

Asfirmasagropecuáriasavançaramsobreasterrasindígenas.AFunaiconstatou,por exemplo, que a Bamerindus Agropastoril, braço de um grande banco,“estava medindo terras das quais alega ser dona dentro da reserva”. Em suadefesa,aempresaafirmouquetinhaoavaldosertanistaTolksdorffedogeneralDemócritoSoaresdeOliveira,coordenadordaCoama.ProcuradopelaFunai,omilitar negou ter dado tal autorização, mas Tolksdorff “admitiu o fato aomissionárioPeterKingston”emmaiode1975.37

Não eram incomuns episódios de violência envolvendo índios e fazendas.Em1975,olíderAxikaruçauárelatouquetrêsNambikwaratrabalharamdurantesemanasparaum fazendeiro.Quando foram reclamaropagamento, receberamameaças. Um funcionário da fazenda, armado de revólver, impediu quedeixassemobarracão.Duranteatentativadefuga,osíndiosreagiramemataramohomemcomumapauladanacabeça.Eles ficaramdoismesesescondidosnomato.38

A saúde dos índios ficou exposta à chegada das frentes de desmatamentocomaté“trezentospeões”.39Asdistânciaseramenormes,impondoviagensdeaté1240quilômetrosdeumaaldeiaaoutra.40Emabrilde1976,oservidordaFunaiSílbenedeAlmeidaeraochefedopostoindígenaManairissu,masficavacirculandoentreosváriosgruposnambikwaraemvisitasde“trêsoucincodiasdealdeiaemaldeia”.Sílbenetestemunhouograndeatritoentreíndiosdogrupohahaieumaagropecuáriavizinha.Segundoele,oadministradordafazenda“nãogostavadosíndios,davatirosassustando,tentouenvenená-loscomarsênico,deu

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choqueelétrico”.Emcontrapartida,osíndios“assaltavambarracosdepeões”eflechavamasvacasdafazenda,poisnãoencontrarammaiscaçaparacomer.

Na primeira vez em que visitou a aldeia, Sílbene encontrou os índios em“desolação, fraqueza”. Aplicou remédios e soro. Mas uma índia, Maria,“fraquíssima,desidratada”,nãoresistiuaummalnão identificadoemorreunamesmanoite.Nodiaseguinte,osíndiosfizeramacova,comsessentaousetentacentímetros de profundidade, dentro damaloca.O corpo foi colocado com aspernasencurvadas,“comonaposiçãonormal[em]queelesdormem”.

No grupo alantesu próximo ao quilômetro 628 da BR -364, acampado amenosdecincoquilômetrosdasededeumafazenda,Sílbeneencontrou índios“tristes,nãoqueremconversa”.Aáguausadaporelesestava“contaminadaporderrubadasebois”.Amortalidadeinfantilera“alta”.Dogrupode25índios,comnovecasais,havia“somentetrêscriançascommenosdecincoanoseduascommenosdequinze”.DuassemanasantesdeSílbenechegar,morreraumacriança.41Oservidor foiveroutrogrupo,osWaisu.Dosdezoito índios,doisestavaminternadosemunidadesdesaúdeda região.Quatro teriammorridodemalária.No final de 1975, Sílbene esteve em visita ao grupo wasusu, quandotestemunhounovasmortes.Numespaçodetrezedias,morreramduascrianças,umadecincoanos,dediarreia,eoutra,comsetemeses,de“infecçãonapele”.

Sílbeneconcluiuqueosíndiosatacavamogadovizinhocomoumareaçãoàs mudanças no ecossistema. Contou que durante toda a viagem ouviucomentários dos peões de fazenda sobre corrupção na Funai. Isso o levou aconcluir, em ofício à sua chefia, que as fazendas do Guaporé “obtiveramcertidões negativas, permitindo a todas elas o incentivo da Sudam e todo ogenocídioqueestásendocometido”.

O total deNambikwaramortos em todo o processo—desde a expedição dasprimeiras certidões negativas, em 1968 — é impreciso, pela falta desistematização, na Funai, dos dados sobre a saúde dos vários grupos. Umrelatóriodetalhadoeoficialda5aDelegaciaRegionalestabeleceuonúmerode26óbitosentreosNambikwarade1975amarçode1980—antesde1975,nãohádocumentosconsolidadosdefontesegura.

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Oepisódiomaistraumáticopós-1975terásidoofalecimentodeonzeíndiosem 1979 no grupo de Sararé, dentre os quais dois adultos por acidente, umadolescente epiléptico, três adultos “mais idosos que já tinham problemas nosbrônquios”, umamulher e três crianças. “Este lamentável acontecimento vemressaltar a urgência de uma enfermaria com atendente em cada área,continuamente.”42

Noiníciodosanos1980,pesquisadoresdaFundaçãoInstitutodePesquisasEconômicas(Fipe),entãovinculadaaoMinistériodoInterior, reafirmaramqueosproblemasenfrentadospelosNambikwaraestavamintimamenterelacionadosàpolíticaindigenista,cujos“desacertosvêmpondoemriscosuasobrevivência”.

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15.INFAMANTE

NO EXTREMO LESTE DE MATO GROSSO, OUTRA CRISE SEDESATOUEMumaáreaindígenanaprimeirametadedosanos1970,maisumavezenvolvendoaaberturadeumaestrada.Nocentrodapolêmicaestavaa“joiadacoroa”doindigenismobrasileiro,oParqueIndígenadoXingu.Dessavez,emdefesa do parque que ajudaram a criar, os irmãos Villas Bôas, os maisconhecidos e respeitados sertanistas brasileiros da época, entraram em rota decolisãocomosmilitares—etambémcaíramnamiradosespiõesdosistemadeinformações montado pela Funai. A estrada criou uma cicatriz em váriossentidos.

A história da abertura da rodovia BR -080 começa em junho de 1965. Ogoverno anunciou com estardalhaço o início das obras, permitindo quejornalistas acompanhassem a abertura da primeira picada em uma cerimôniarealizadanopostodeAreões,umacampamentolocalizadonopontofinaldaBR-72,atualrodoviaBR-158.Aestradaabririacercadeoitocentosquilômetrosdemata virgem para ligar a cidade de Xavantina à base militar do Cachimbo.Prevendo encontrar aldeias pelo caminho, a ditadura montou uma intituladaExpedição Xavantina-Cachimbo, na qual os sertanistas teriam o papel deacompanharasturmasdeoperárioseprevenireventuaisataquesdeíndios.Tantoos irmãos Villas Bôas quanto Francisco Meireles participaram do início daexpedição, prevista para durar três anos. Comandada pelo general OsvaldoCordeiro de Farias, um ativo conspirador para a derrubada de Goulart, doMinistério Extraordinário para a Coordenação dos Organismos Regionais,embrião do Ministério do Interior, a cerimônia teve banda de música,hasteamentodabandeiraemissa,oficiadaporumpadre.Osmilitareslevaramao

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local índios xavante e kamayurá, que aliás não se mostraram nadaimpressionados com o evento, permanecendo “completamente indiferentes” àmissa: “conversavam, cuspiamno chão, cochichavamentre risos e terminandoporseaborrecer,abandonaramolocal”.1

Emseudiscurso,CordeirodeFariasdissequeaexpediçãoestavaincumbidade“trazeraAmazôniaparaocoraçãodoBrasil”.2Diasdepois,acrescentouqueaestrada“possibilitaráoescoamentodaproduçãoagráriaepecuáriadosvalesdoAraguaiaeXingu,aceleraráopovoamentoecriarácondiçõesdeexploraçãodejazidasmineraisatéagorainacessíveis”.3

“AosomdoHinoNacional,sobsalvadepalmas,espocardefogueteseumsolcausticante”,partiuaexpedição,queparaumjornalistalembrou“oiníciodasjornadas dos bandeirantes”. 4Mas amarcha ainda não era para valer:metrosadiante, a expedição regressou ao acampamento.Partiria deverdade sónodiaseguinte.5

A abertura da estrada seguiu lenta, porém semmaiores atropelos, até porvolta de 1970, quando Orlando Villas Bôas, que não participava mais daexpedição,afirmoutersedadocontadequeotraçadohaviafeitoumaguinadaàdireita e invadido o Parque do Xingu. Muitos anos depois, um doscoordenadoresdaobra,SérgioVahiadeAbreu,escreveuquearesponsabilidadepelonovocaminhofoidasempresascontratadasparaaexecuçãodaobra.

PelonossotraçadoaestradanãoiriainterferirnoParqueIndígenadoXingu,poispassariaprimeiromuitoaseulestee,aoseunorte,pelacachoeiraVonMartius (rio Xingu). […] As empreiteiras fizeram essa estrada, hoje MT

-422, cruzando o Xingu mais ao sul, no meio do parque, perto daconfluênciadeseuafluenteManitsauá-Missu.6

Orlando era um homem muito respeitado dentro e fora do Brasil noindigenismo.EletinhaboasrelaçõescomacúpuladaFunai,masquandoviuoataqueao“seu”parquefoiàimprensadenunciá-lo.Emmarçode1971,dissequeoprimeiroimpactodaestradanoXingufoisobreosTxucarramãe.Comaobra,osíndioscomeçaramavagarpela“estradarecém-aberta,abandonandoatribo,aaldeia, deixando as famílias”. Ficavam “rondando pelo acampamento dos

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empreiteiros, curiosos, vendo máquinas e arriscando a pegar doenças dosbrancos”. Antes fortes, agora eram “fracos e dispersos na estrada”. Com otempo,disseOrlando,“poderãoseextinguir”.7

O sertanista revelou que o traçado “contrariava instruções” do presidenteMédiciedogeneralBandeiradeMello.DissequeocombinadocomosgeneraiseralevarparadentrodoXinguasetniasatingidaspelaTransamazônica.“Sóquecom essa estrada, não há mais lugar para levá-los.” 8 O sertanista culpou opresidentedaSuperintendênciadeDesenvolvimentodoCentro-Oeste(Sudeco),CamargoJúnior,peladecisãodaguinadanotraçado.

Dias depois das primeiras denúncias, ficou evidente uma divisão entre osprincipais nomes do indigenismo brasileiro. O médico Noel Nutels, ex-presidentedoSPI,apoiouVillasBôas:“Orlandotemrazão:aestradaliquidaráoparque,semamenordúvida,etodasasexperiênciasnessesentidodemonstramisso”.

FranciscoMeirelesfoinosentidooposto.Dissenãovermotivoparaimpedira passagem da estrada, alegando que o “prejuízo” não seria maior do que oprovocadopor “outras frentes pioneiras abertas em terras de índios”.Meirelesdeu uma estocada no colega, ao dizer que a Expedição Roncador-Xingu,encabeçadapelosVillasBôasecantadaemversoeprosapelaimprensa,também“eradesbravamento”,assimcomo“aTransamazônica,aAcre-Brasíliaeoutrasfrentes”.Fezadefesadapolítica integracionistadogoverno,pois “essas áreasdifíceistêmqueserintegradas”.

AFunai reagiudeduas formas àsdenúnciasdeOrlando.Aprimeira face,pública, foi apoiar a estrada—oquedesautoriza a versãodeOrlandodequeBandeiradeMelloseriacontrárioaonovotraçado.Oprópriogeneraldissequeaestradanãopoderiasermudadae“sótrarábenefíciosaosíndios”.Duranteumavisita à Funai de Campo Grande, ele foi duro com Orlando ao dizer que ascríticas estavam relacionadas a uma candidatura, ventilada pela mídia, “dealguémbemconhecido”aoPrêmioNobeldaPaznaqueleano.

Nessamesmaviagem,poucasvezesaditadurafoi tãoclaraacercadeseusobjetivos em relação aos índios considerados “já em estado de aculturação”.Falando sobre as etnias da área da 9a Delegacia, terena e guarani, o general

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anunciou que seria “iniciada brevemente a instrução de silvícolas para asprofissões de bombeiro-encanador, carpinteiro, mecânico geral e deautomóveis”. A ideia era ensinar essas habilidades com o propósito final de“afastarrapidamenteoíndiodaregião”.Ouseja,umavez“profissionalizado”,oíndio abriria mão de suas terras. Que seriam então redistribuídas pelo Estadobrasileiroaagricultores.9

As afirmações do presidente da Funai não foram apenas um destemperoverbal. Dias depois, o órgão fez a defesa enérgica da obra que desfigurava oXingu, dizendo que a estrada “faz parte de um conjunto de ligações terrestresvitais ao desenvolvimento e à segurança do país”. A nota falava ainda em“fixaçãodaculturacomum”—oquedecertoimplicavaaideiadeanulaçãodeumacultura“incomum”.10

AFunai desencadeou uma segunda reação contra osVillasBôas, esta secreta,promovidapelobraçodoSNI,aASI .Maisdequarentaanosdepois,elaveioapúblico quando o governo levantou o sigilo dos papéis produzidos pelaassessoria. Os documentos demonstram que os militares promoveram umainvestigaçãosobreopassadodafamíliadesertanistas.Ospapéispassarampelasmãos deBandeira deMello no dia 19 demaio de 1971, isto é, poucosmesesapós as primeiras denúncias deOrlando contra a estrada, conforme atesta umregistroporescritonalateraldeumdospapéis.Nãoficaclarooqueosmilitaresfizeramcomodossiê,seéquefizeram.Masadocumentaçãopermiteaveriguaramuniçãoàdisposiçãodeles.Asprincipaispeçassãodepoimentosprestadosem1952aumaComissãode InquéritoabertapelaFundaçãoBrasilCentral (FBC )para investigardenúnciascontraLeonardoVillasBôas, irmãodeOrlando,quehaviafalecidoem1961.

AntônioAlvesdosSantos,trabalhadordaFBCdesde1949,contouterouvidodeOrlandoa recomendaçãodeque“tivessemuito respeitopelasmulheresdosíndios”.Ele foidesignadoem1951primeiroaoposto Jacaré,noXingu, entãochefiadoporLeonardo, irmãodeOrlando.De lá,partiuparaopostoKuluene.Aochegar,disse terouvidode trabalhadoresdaFBCe de índios queLeonardohavia“tirado”daaldeia“amulherdocaciqueTamapu”,chamadaMavirá,eque

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osíndiostentarammatartantoaíndiaquantoosertanista,masnãoconseguiramimpedir a fuga, feita de noite numbarco amotor.Antônio regressou ao postoJacaré, onde de fato encontrou a índiaMavirá sob proteção de Leonardo. EledisseterpresenciadoosseuscolegasAscendino,SerafimeBeneditodizeremaLeonardoqueohaviamapanhado“emflagrantecomaíndiaMavirá”.Leonardoteriarespondidoque“erahomem”,iriasecasarcomaíndiaeostrabalhadores“nãotinhamquevercomoacontecido”.11

Dias depois, Orlando foi visitar o posto Jacaré. Os funcionários da FBCcontaramtudoaosertanista,queemrespostapediu“que‘aguentassemamão’,poisele‘iriadarumjeito’”.OsirmãosforamparaaregiãodeCachimbo.Cercadevintediasdepois,contudo,uminesperadoretornodeLeonardoemumaviãoda FAB abalou os funcionários. O sertanista ordenou que os trabalhadoresarrumassem suas coisas, pois seriam transferidos de imediato para a base doCachimbo.Percebendouma resistência, ele teriaditoque tambémpoderiam ir“para Xavantina, recolhidos”. Antônio afirmou que “os trabalhadores quereclamavamcontraomododeviverdosr.Leonardoeramremovidosparaoutrospostos”.

Antôniodisse terpresenciadoosertanistamantendo“relaçõescoma índiaMavirá,játinhacomoutras”,incluindoumaqueeleteriaencontradonumarededeitadaaoladodeLeonardo.OtrabalhadordaFBCafirmouterouvidodeíndiose colegas da fundação que Leonardo “manteve relações com outras índias”,fornecendo à comissão de inquérito os nomes demais quatromulheres.Disseque ummajor da FAB também fazia sexo com outra índia e que viu OrlandodeitadonumaredecomumaíndianopostoKuluene.Antônioteriaindagadoaosíndiosquemeraamulhereelesteriamrespondido“seramulherdele,Orlando;todasasvezesquevinhaaoposto,aíndiaiapassaranoitecomelenarede”.

Porfim,Antôniodeuumainformaçãoquepoderiaserconfirmadacommaisfacilidadepelacomissão.Maviráteveumacriança,cujopaiosíndiosdiziamserLeonardo. A criança teria sido retirada do posto, a pedido do sertanista, “emaviãodaFABpilotado”pordoismilitares.Antôniodeclarouque“aindiazinhafoitomadaviolentamentedocolodaprópriamãe,queatéhojeaindachoraafaltadacriança; […]a índiaMaviráestavanoXingue reclamavamuitoacriançaque

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haviamroubado”.OdepoimentodeAntôniopoderiaserrecebidocomodevaneioouinvenção,

frutodeumarixacomLeonardo,nãotivessesidocorroboradopontoapontoporumasegundatestemunha,otambémfuncionáriodaFBCLeopoldoJosédaSilva,e reafirmadoao longodosanos,commaioroumenordetalhamento.LeopoldocontouahistóriadagravidezdeMaviráedaretiradadacriançadaaldeiaedisseque os índios chegaram a cercar o rancho ocupado por Leonardo no postoKuluene para matá-lo, assim como à índia, mas ambos escaparam “por umburaco feito na parede de trás do rancho”. 12 Leopoldo afirmou que “muitasvezes” encontrou Leonardo em sua casa “em companhia íntima com a índiaMavirá e outras índias”. “[…]O rancho de Leonardo estava sempre cheio deíndias.”

LeopoldodissequeafilhadeMaviráeraconhecidacomo“Arlinda”equearetiradadacriança,queelechamoude“rapto”,ocorreuemumturboélicedaFABtripuladopelosmajoresLealNetoeHaroldo.OaviãochegouaoXingunodia1odemaioedecolounodia seguinte.Leopoldoafirmou tervistoomomentoemqueLeonardoinsistiucomMavirápara“deixarlevaracriança”.Ohomemteriadadoàíndiacolaresevestidos,masMavirá“semprerecusouentregaracriança”.A criança por fim teria sido tomada dos braços dela pelo radiotelegrafistaDorival e entregue a Leonardo, que na sequência seguiu para o avião que oaguardavanacabeceiradapistacomomotorligado.

OsdepoimentosdosfuncionáriosàcomissãodaFBCocorreramemsetembrode1952.Nofinaldaquelemês,pedaçosdahistóriaapareceramnaspáginasdeOGlobo.OenviadoespecialaoXingu,GeraldoFarinha,descreveu“aspectosdaação prejudicial de alguns sertanistas nos confins do Brasil Central”. 13 OjornalistanarrouumaaltercaçãoocorridaentreLeonardoeofilhodeumcaciquekamayurá em torno de uma autorização dada pelo sertanista para que “a belaMavirá”pudesseassistiraumadançade índiosguerreiros,oqueseriavedadopela tradiçãodosKamayurá.O jornalistaescreveuainda terouvidodoprópriopresidente da FBC , Archimedes Lima: “Depositava plena confiança neles.Entretanto,vi-meludibriado,deboa-fé”.

Na mesma edição, O Globo cuidou de publicar uma ampla defesa de

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Leonardo,queficouacargodealgunsdosprincipaisantropólogosdoSPI,DarcyRibeiro,EduardoGalvãoeJoséCândidoCarvalho.ApesardeelogiaremmuitootrabalhodosVillasBôas,elesnãonegaramoenvolvimentosexualdeLeonardocom Mavirá, pelo contrário, o confirmaram. Porém, procuraram relativizar oepisódio,chamando-oeufemisticamentede“deslize”ede“dramaconstitucionalvividoporLeonardo”.

DarcyRibeirodisseaojornalquetudocomeçouporvoltade1950,quandoMaviráprocurourefúgionacabanadeLeonardoparaevitarumapuniçãoqueosíndios da tribo queriam aplicar. Ela ficou na companhia de Leonardo “váriassemanas”.Darcycontinuou:“Contudo,averdadeéque[Leonardo]jádeviaestarsentindoopesodatorturaqueoseuisolamentolheimpunha.E,então,sobreveioo deslize. Foi, convém ressaltar, a primeira falta de que se teve notícia.Novemesesdepois,aíndiateveumafilha”.

Darcy informou que tudo foi de conhecimento do SPI, pois, quandoLeonardoficouemdúvidasobrecasarounãocomaíndia,“fizemosverque,seumbrancodesposaumaíndia,osoutrosíndiosficamemsituaçãodesvantajosa,poisnãopossuemasbugigangasepresentesquegeralmentelevamos”.Ouseja,LeonardofoiorientadopeloSPIanãosecasarcomMavirá.

Os antropólogos, porém, nada disseram sobre o destino da criança.Confirmando uma parte importante dos depoimentos dos dois funcionários daFBC,anosdepoisficouclaroquedefatoacriançafoilevadadeaviãodaaldeiaenãomais foi vista pelamãe biológica.Amenina foi criada emSãoPaulo poruma irmã de Leonardo, Maria de Lourdes, e recebeu o nome de Mayalu.Localizei-a no segundo semestre de 2015— ela tinha dado uma entrevista àrevistaClaudiaemagostode2012sobreoassunto.Mayaluécasadadesdeos26anoscomumcolegadafaculdadedematemáticadeSãoPaulo,ondeseformouevive desde então, mãe de duas filhas, uma socióloga e uma professora deportuguês. Por telefone, ela confirmou que nãomais viu ou conversou com amãebiológica,nãoviajoumaisparaoXingu.Mavirá,poroutro lado, tambémnãoesteveemSãoPauloàsuaprocura.Avontadedereatarumaligaçãotambémarrefeceu,passadosmaisdesessentaanosdesuasaídadoXingu.

Quando Leonardo morreu, em 1961, Mayalu tinha apenas dez anos. A

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exemplo de muitos sertanistas do passado, e até pelas longas distâncias, eleficavapoucoemcasa,masquandoaparecia,segundoMayalu,“eraumapessoamuitocarinhosa,atenciosa,melevavaparapassearebrincava”.Éessaaimagemqueelaguardadeseupai.QuandoMayalucresceu,ouviudatiaqueMaviráerasuamãe.Aolongodosanos,afamíliaexplicouqueacriançacorreriariscoscasotivessesidomantidanoXingu,porissodeláfoiretirada.

Leonardo,aoquetudoindica,tinhamotivosparaacreditarqueacriançaMayalucorriamesmo risco de vida. Um estudo posterior indicou que o sertanista, aoprotegerMavirá, desafiou uma regra dos Kamayurá. Rafael José deMenezesBastos,professordoDepartamentodeAntropologiadaUniversidadeFederaldeSantaCatarina, entrevistouo índioTakumã, filhodocaciqueKutamapù, entãocasado com uma índia de nome traduzido para o português como “Pele deReclusa”, a Mavirá. Takumã disse ter sido ameaçado com um revólver porLeonardo.EleexplicouqueoproblemacomeçoucomoaffairentreLeonardoePeledeReclusa.OsíndiospassaramaguardarnacasadeLeonardotrêsflautas,consideradassagradaspelosKamayurá.Pelatradição,nenhumamulherindígenapoderiaolhartaisflautas,queeramtocadasapenaspeloshomens.Bastossugeriuque as flautas possam ter sido guardadas de propósito na casa de Leonardo,talvezamandodocaciqueKutamapù,afimdequePeledeReclusaasvissesemquerer.Elanãosabiadaproibição.Apartirdaí,osíndiospassaramapressionarpor uma punição damulher, que seria um estupro coletivo e o banimento daaldeia. Segundo Takumã, o clima na aldeia ficou ruim, Leonardo retirou acriançadaaldeiaedepoisfoiembora.

Mas qual foi o destino deMavirá? Com a ajuda de uma servidora da Funai,LilianBrandt,localizei-a,em2015,portelefonepertodailhadoBananal.ApósperderMayaluparaLeonardo,Maviráconheceuumcaciquekarajá,porquemseapaixonouecomquemsecasou,emudou-separaailha,segundoela,hámaisdetrinta anos. Mavirá foi mãe de quatro mulheres, incluindo Mayalu, e doishomens.Commaisdeoitentaanos,sobreviviadavendadeartesanatokarajánoportodeSãoFélixdoAraguaia(MT).

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Maviráconfirmouumdetalhepresentenosdepoimentosde1952,odequerecebeumiçangasecolaresdepresenteparaevitarquereagisseàretiradadoseubebêdaaldeia.Confirmoutersaídocorrendoatrásdoaviãoequechoroumuitocomapartida.VáriasvezeselaculpouOrlando,enãoLeonardo,peladecisãoderetirar a criança.Disse que chegou a puxar os cabelos do sertanista na época.MavirátambémnegouqueelaeasuafilhacorressemriscosnaaldeiaenegouqualquerbrigaouameaçaentreLeonardoeoutrosíndios.

A índia também confirmou que nuncamais viuMayalu.Há cerca de trêsanos,MaviráprocurouLilianparapedirajudaafimdecontatara filhadeSãoPaulo.AfuncionáriadaFunaimandouumrecadoaumfamiliar,masnãoobteveretorno—elanãosabeseorecadochegouaMayalu.

Envolvimentos sexuais entre indígenas e agentes do Estado brasileiro e demissõesreligiosassãoumtabudesdeaépocadoSPI ,comentadosentrequatroparedes e quase nunca vindo a público na imprensa. Mas abusos do gênerovoltaram a se repetir ao longo de toda a ditadura. Entre 1970 e 1971, aYanomami Esther Ramos Mendonça denunciou ter sido assediada por ummembro da Missão Maturacá, um missionário leigo da Ordem Salesiana naregião do rio Negro, nascido na Itália, formado em filosofia em Turim enaturalizado brasileiro. 14 Segundo o depoimento que ela prestou a umacomissãodesindicânciadaFunai,ohomem“conquistouasuaconfiança”aolheoferecer“roupas,alimentaçãoetodaasegurançaqueumamulherbuscajuntoaum homem”. Embora fosse casada, ela “deu-se sexualmente”, mantendo “umrelacionamento sexual constante”.Esther ficougrávida.Depoisdisso, segundoela, omissionário “desapareceuda área”.Eladeuà luzummenino,que criousozinha.Anosdepois,opadreCarlosGalli,deMaturacá,confirmouàFunaioromancedoex-missionáriocomEsther,acrescentandoque“pelapráticadessesatos”ohomemfoiexcluídodaCongregaçãoSalesiana”.

Após deixar Maturacá, em novembro de 1974, o italiano entrou para osquadros da Funai, onde novamente seu comportamento com índias chamou aatenção.Uma apuração interna concluiu que ele “manteve um ‘caso de amor’comumaíndia”saterê-mauêdeapenastrezeanos,“comaqualchegouapactuar

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casamento”,que,contudo,nãoseconsumou.Segundoaentidade,agarota“lhefoiprometidaemcasamentoporseuspais,medianteartifíciosepresentes”.Osfamiliaresdisseramquedepoisdissoameninaseprostituiucom“civilizados”.Em1982,segundoaapuração,oitalianotambém“namorouecorrespondeu-se”comoutraíndiadequinzeanos.Emseudepoimento,eleconfirmoutermantido“namoros”comas três índias,masnãoreconheceunenhumarelaçãosexual.AcomissãointernadaFunaiconcluiuqueaalegaçãoera“risível”.

NaépocaemqueocomportamentodoitalianopassouaserinvestigadopelaFunai,eleeraocoordenadordasfrentesdeatraçãodoprogramawaimiri-atroari.Em contato com padres e a imprensa, ele procurava denunciar o órgão sobreirregularidadesdiversas.Aoapurarohistóricodoservidor,aFunaideuotroco,deixandoconsignadoquehá “umcaráter infamante e criminoso”nousopelosservidoresde“meioseartifíciosfraudulentos”paraconseguiremmanterrelaçõessexuais com índias, aproveitando-se “da fome, necessidade e ingenuidade”.Oitalianofoidispensadoemabrilde1983peloentãopresidente,ocoroneldaFABPauloMoreiraLeal.

Em 1977, a Funai pediu que um chefe de posto, Frederico de MirandaOliveira,fizesseumlevantamentosobreoboatodequeochefedopostoUaçádesde 1971 teria sido pai de “vinte filhos” com índias diversas. Em cartamanuscrita,Oliveiraconfirmouosnomesdeváriasíndiascomasquaisohomemteriamantido “relações amorosas”. Com uma delas, “viveumaritalmente” porquasedezanos.

O atendente de enfermagem Francisco de Castro Correia contou à Funaique,em1973,aopassarporumaaldeiakaripuna,descobriuqueooutroservidor“passava meses sem visitar” os índios. Na sua ausência, “os civilizados (doOiapoque emilitares deClevelândia doNorte) se aproveitarampara entrar naáreaesesatisfazersexualmentecomasíndias”.Comoexemplo,deuonomedetrês Karipuna prostituídas. Disse que quando perguntava a ao chefe da Funaiquaisprovidênciaseletomariasobreoassunto,ouviacomorespostaqueaculpaera dos pais das índias, “que não ligam para as filhas”, ou então que “elasmesmasqueremassim”.MasqueinformariaosproblemasàdelegaciadaFunai.

Oenfermeirodissequeemsetembrode1973foivisitarumaíndiakaripuna

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queestavagripadacom“todososseusfilhos”.Aopreencherafichadaprimeiracriança, Correia soube que seu sobrenome era semelhante ao do servidorsuspeito. A índia teria confirmado que a menina era filha do chefe do postoindígenaUaçá.

Haviamais. O enfermeiro disse que o chefe permitiu a entrada, em duasáreas indígenas palikur, de supostos “comerciantes”, que na verdade“exploravamdescaradamente esses índios, alémde quase destruí-los […] combebida alcoólica, além de abusarem das filhas e esposas dos índios”. CorreiaacrescentouquehaviainformaçãodequemilitareslotadosnaCompanhiaMilitardeOiapoqueexploravam índios.Soldados se satisfaziam“sexualmentecomasíndias das três tribos”. “Me disseram também que continua a trapaça doscivilizadosemcimadosíndiosequeelescontinuamaprostituirasíndias,tendoatéhavidomuitoscasosdedoençasvenéreas.Olíder[indígena]deixapois‘sãonossosamigos’”,contouCorreia.

Ofuncionárioacusado tambémfoiouvidopelaapuração internadaFunai.Ele negou todas as irregularidades que lhe foram atribuídas. Disse ser pai decatorze filhos, mas todos gerados em união “com três mulheres, todascivilizadas, sendoaprimeiraminha legítimaesposa, daqualmedesquitei, e asegunda e a terceira, amásias”. Sobre a falta de assistência aos índios, eleadmitiu que a situação era terrível e que não havia recursos para visitasmaisfrequentesàs terras indígenas,“fatoque foicomprovadopessoalmentepelo sr.presidentedaFunai,generalIsmarth”.

A conclusão da Funai foi de que “procede a denúncia que pesa sobre ofuncionário,umavezquetodasasfontesdeinformaçãorevelamoprocedimentonegativo“doservidor”.Emoutubrode1977,Ismarthdeterminouadispensadohomem. A demissão, contudo, não foi “por justa causa”, mas apenas por“interessedaadministração”, jáqueaáreaadministrativadaentidadeconcluiuque,dopontodevistajurídico,asprovastinhambase“no‘ouvifalar’eno‘dissemedisse’”.OhomemenfimfoidesligadodaFunaiporvoltadeabrilde1978.

OenvolvimentosexualentreservidoresdaFunaieindígenastambéméopanode fundo do trágico destino de Victor Batalha, o auxiliar de indigenismo da

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entidade que em 1975 havia presenciado, de cima de uma árvore, amorte docolegaJaymePimentelpelosíndioskorubo.Mesesdepoisdoepisódio,Batalhavoltouaoseupostodeorigem,oCuruçá,nomunicípiodeAtalaiadoNorte,noAmazonas.Nasegundametadedosanos1960,Batalhahaviasecasadocomaíndia marubo Maria Deuzinha Reis, ou Sinauam, com quem teve três filhos.Antes,porém,MariahaviasidoprocuradapelolídermaruboJoãoTuchauapara“vivercomumfilhodeste”,Mamimpa,ou“Zacarias”.MariachegouasemudarparaaaldeiadeMamimpa,aMaronau,masocasamentodeuerrado.SegundoMaria,ohomem“jáviviacomoutramulher”,quepassoua“maltratá-la”.Mariaentão conheceu Batalha, por quem se apaixonou e com quem foi morar. Porvoltade1974,Batalhapassouaviversobomesmotetocomoutra indígena,airmã deMaria, Altina Comapa, conhecida comoVuena. Altina contou depoisqueera“hábitoentreseupovoumhomemtermaisdeumamulher”equeseupaiautorizouauniãocomBatalha.15OservidordaFunaitevetrêsfilhoscomMariaeoutrocomAltina.

As atividades amorosas de Batalha enfureceram os filhos do líder JoãoTuchaua,nãosópelasaídadeMariadaaldeiaMaronau,mastambémporqueoservidor “vinha tendo ou tentandomanter relações sexuais com outras índias,comoaprópriamulherdeJoãoTuchaua”.Osíndiosprocuraramosmissionáriosnorte-americanosdaMNTB,que atuavam na região desde 1963, e pediram queBatalhafosseretiradodopostoCuruçáeparalánuncamaisvoltasse.Apósumadenúncia da missão à Funai, Batalha foi proibido de atuar ali. Ele entãoestabeleceu moradia, com suas duas mulheres, na região da Boca do Veado,longedoCuruçá.16

Asituaçãoparecia sob controle até a chegada à regiãodeumcontroversopersonagem que se intitulava “pesquisador de etnologia”, “correspondente deimprensa” e também “representante da vice-liderança do Senado, credenciadopelo senador Evandro Carreira”, além de “bisneto de Macuxi”. Natural deItaituba (PA ), Francisco Paulo Lucena Rodrigues apareceu no Javari com orespaldoexpressodapresidênciadaFunai.Em21de julhode1975,ogeneralIsmarthenviouumtelegramaà1aDelegaciadeManausparadizerqueLucenaestava“autorizadoarealizarpesquisas[em]áreasindígenas[d]essaDR.Prestar

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oapoionecessáriodentrodaspossibilidades”.17Com o sinal verde de Brasília, Lucena passou a transitar pelos diversos

postosindígenasnoAmazonas.DiziafalaremnomedapresidênciadaFunaie,em contrapartida, enviava longos relatórios a Ismarth descrevendo suasandanças,problemasadministrativosdosórgãospúblicosnaregiãoeasituaçãode grupos indígenas. Em uma carta, contou ter encontrado um grupo deKanamarinoBaixoJavari“emestadodeextremamiséria”.Lucenaosdescreveucomo “verdadeiros restos humanos, esboçando queixumes e limitando-se aexibir sua imensa pobreza material como que na tentativa de despertarcompaixões”.18

LucenasetornouumafontedejornalistasbaseadosemManauseBrasília.De tempos em tempos, aparecia nas páginas dos jornais anunciando de formasensacionalistaasupostalocalização,porelepróprio,de“tribosisoladas”eumespantoso “autoextermínio” de índios mayoruna, que “matam as crianças deambos os sexos, como ‘represália às desgraças que foram causadas peloscivilizados’”.19

LucenadistribuíaelogiosaosmilitareseàsatividadesdaestatalCPRM,querealizava“prospecçãodosjazimentoscarboníferosnabaciadoJavari”.EmcartadirigidaaogeneralErnestoGeisel,aopedirdinheiroparaumprojetodecontatocomíndiosisolados,disseconfiarnogeneraleseu“indiscutívelcomportamentode autêntico estadista, pelo notado equilíbrio e abertura humana que temdemonstradoàfrentedosdestinosnacionais”.20

O comportamento de Lucena começou a preocupar os indigenistas naregião. Em janeiro de 1976, o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filhoalertou seus superiores de que Lucena “não possui capacitação para isso[trabalho indigenista], seja qualificação acadêmica, seja por formação ouexperiência indigenista”. Pacheco contou que Lucena se valia da autorizaçãodada por Brasília e de um apoio “ingenuamente dado” por uma unidade doExércitonaárea.21Pachecopediua revogaçãodaautorizaçãodadaaLucena,masaASIdaFunailimitou-seainiciarumaapuraçãopreliminarsobre“asreaisintenções”deLucenanaregião.22

Lucena continuou atuando como uma espécie de informante da Funai de

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Brasília. Em fevereiro de 1976, ele enviou um telegrama “confidencial” aIsmarthparadizer que índios tikuna estavam“hostilizandoviolentamente”umfazendeiro da região, depredando sua propriedade e matando seus animaisdomésticos,boisecavalos,comlançaseporretes.23

Ao tomar conhecimento do telegrama, Pacheco explicou à Funai que oinformefazia“referênciasfactuaiserrôneaseadotaumainterpretaçãoingênuaeunilateral da situação, tomando como fatos as opiniões e racionalizaçõesemitidaspelos‘patrões’,desconhecendointeiramenteoqueéditopelosíndios”.OsTikuna,aliás,“nãousamnemnuncausaramlanças”;naquelaépocausavamespingardasparacaça,dissePacheco.24OantropólogovoltouapediraretiradadeLucenada região, semsucesso.AomissãodaFunaiemBrasília revelou-seespecialmentetrágicaparaumapessoa.

Em abril de 1976, de novo dizendo agir em nome de altos interesses deBrasília,LucenaconvocouVictorBatalhaaacompanhá-loemumaviagemparaaregiãodeCuruçáqueteriaoobjetivode“reunirtodososchefestribaismarubopara um encontro [futuro] com o presidente da Funai”. As duas mulheres deBatalhapediramqueelenãofosse,poissabiamqueestavajuradodemortecasoseaproximassedosfilhosdocaciqueJoão.Porém,apósmuitorefletir,Batalhaaceitou acompanhar Lucena. Na mata, enquanto caminhavam a cerca de oitoquilômetros da aldeia do cacique João, Lucena ouviu um tiro e viu Batalhatombar.Apósverificaremqueocolegaestavamorto,osmembrosdaexpediçãofugiram do local. Dias depois, em uma expedição para resgatar o corpo deBatalha, Lucena e servidores da Funai encontraram-no numa cova rasa, oexumarameo enterraramdenovo.Nessemomento, o grupo “julgoupor bemcumprir um singelo ritual cristão, ato que foi seguido por quantos seencontravam presentes”. 25 Depois disso, Lucena foi afinal proibido pelapresidênciadaFunaideentraremterrasindígenas.

NaépocaemqueosVillasBôaspassaramaincomodaraditadura,umadenúnciasobreenvolvimentosexualcomíndiasseriapotencialmentedesastrosa,casoosmilitares decidissem ressuscitar o caso entre Leonardo eMavirá. Osmilitarescoletarameguardaramtaisinformações,masnãoficaramsónisso.Começaram

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apressionarepedirexplicaçõessobredeclaraçõespúblicasdosVillasBôas.Ossertanistaserammuitoprocuradospelamídia—ecomeçaramaficarcadavezmaiscríticosarespeitodotrabalhodaFunai.Emjulhode1971,OEstadodeS.Paulo revelou que índios pediam esmola na cidade de São Paulo, área sobjurisdição da Ajudância de Bauru, então chefiada por Álvaro Villas Bôas. Areportagem reproduziu afirmações de Álvaro. A Seção de Segurança eInformações (SSI ) da Funai de Brasília, antecessora da ASI , logo pediuexplicações ao sertanista. Ele confirmou por escrito que “como se sabe,elementosdapopulaçãoguaranideSãoPaulo—constituídadegruposesparsos,aculturadoseparticularmenteinstáveis—costumamviràcapitalcomesteduploobjetivo:a)venderpeçasdoseuartesanato;b)pediresmolas”.Álvaroreclamouexpressamentedafaltaderecursosparaconseguiratenderacontentotrêspostosindígenasnointeriordoestadoeapopulaçãoguaranidolitoral,ondenãohaviapostodaFunai.

ASSIemitiu outro ofício confidencial para queOrlando desse explicaçõessobreumanotíciapublicadanaFolhadeS.Pauloarespeitodeumseminárioque“debateu o ‘problema do índio’”, realizado na Faculdade de Medicina deCampinas (SP ). O documento pedia que Orlando explicasse se era “do seuconhecimento faltar competênciaaos servidoresdaFunai, concederentrevistasoudiscutirsobrequestõesdeadministraçãooupolíticaindígenadestafundaçãosemaautorizaçãopréviadosr.presidente”doórgão.

Brasília queria enquadrar Orlando. Em carta datilografada, o sertanistarecebeu uma “admoestação”. Ele negou que o seminário tivesse debatido apolítica indigenista da Funai, apenas examinara “a contribuição do índio —assimcomodonegro—naformaçãodaetniabrasileira”.Orlandodissenãoterconhecimento de dispositivo legal que impedisse “o estudo do índio”, umaproibiçãoque“poderiasertomadacomoumarestriçãoàliberdadedepesquisa”.

OgovernoobservouqueosVillasBôastrabalhavamparareceberoPrêmioNobeldaPazeporissoteveinteresseemacompanharumavisitaaoXingudoantropólogoinglêsRobinHandbury-Tenisonesuamulher,noprimeirotrimestrede1971.Ocasal iria“melhorcoordenara indicaçãodoprêmio”.AviagemfoimonitoradapelochefedaDivisãodeDesenvolvimentoComunitárioemBrasília,

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EdsonRamalhoJúnior.OcasalfoirecebidonoXinguporCláudioVillasBôas,quefezumcáusticodiagnósticosobreaFunai.Elecontouquenãotinhaapoioalgumdoórgão, “quenem telegramas respondia”,dissehavernoXingu“umasituaçãocalamitosa”apartirdaaberturadaBR-080efalouda“faltadevivênciada atual administração coma problemática indigenista”. Por fim, disse queos“VillasBôasseviamforçadosalutaratéofimcontraessasituaçãoecontariamcom o apoio de grandes amigos no exterior e no país, entre os quais o sr. UThant, secretário-geral das Nações Unidas, antropólogos, amigos na FAB ,jornalistaseopiniãopública”.26

Ramalho Júnior ouviu Tenison dizer que “se contava a dedo os bonselementos” da Funai. Por escrito, Ramalho Júnior fez uma advertência aocomando do órgão: “O trabalho dos irmãosVillas Bôas é contrário à PolíticaIndigenista.Aautopromoção,ograndeobjetivodosreferidossenhores,entraemchoquecomosinteressesnacionais”.

Depoisdaviagem,queduroucercadenovesemanas,Tenisondivulgouumrelatório e deu entrevistas à imprensa. Criticou a Funai e disse que “50 milíndios desaparecerão dentro de dois anos, se não houver ajuda financeira etécnica internacional”.TambémdefendeuoNobelparaosVillasBôas.27Emresposta,afundaçãosoltouumanotaàimprensaparadizerqueatendia“70milíndios”,masqueestavaabertaàajuda internacional,“desdequepermaneçanaesferatécnicaeeconômica”.

OsVillasBôasnuncareceberamoNobel.AdocumentaçãosecretadaFunaisugere que, no mínimo, o órgão não viu motivos para se empenhar nacandidatura.

Nos meses seguintes, Orlando passou a mostrar à direção da Funai asconsequências desastrosas da estrada sobre a vida no Xingu. Em uma cartamanuscritadespachadadabasedeDiauarumaBandeiradeMello,informouqueumgrupode“civilizados”tinhasefixadonafozdorioAuaua-Missú,pertodorioXingu,tendoatingidoaregiãopormeiodapicadadaestradarecém-aberta.BandeiradeMelloacionouogeneralLucídioArruda,secretáriodeSegurançadeMatoGrosso,pedindoapoioà“retiradadessegrupodecivilizados, invasores”.

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Em resposta, a ASI da Funai pediu que Orlando se encarregasse de retirar osinvasores.Adireçãodoparque,porém,envioutelegramasemassinaturanoqualsedeclarou“semcondições”delidarcomoproblema.

AguerrasurdaentreosVillasBôaseadireçãodaFunaiteveumnovolanceem1972.OórgãoinformouàbasedoXinguquehaviacolocadoumfuncionáriopara“verificaraaplicaçãodedotações”orçamentáriassobresponsabilidadedeOrlando.Osertanistapôsocargoàdisposição.AFunainãoaceitouademissão,mas manteve a vigilância. Em outubro, ele participou em São Paulo de umaconferêncianaEscoladeComunicaçõeseArtes(ECA)daUniversidadedeSãoPaulo (USP) , convidado por um aluno. O Ministério do Interior, ao qual afundação era subordinada, deslocou um agente da Divisão de Segurança eInformaçõesparamonitoraraatuaçãodeOrlando.Segundooagente,oprofessorda ECA Cláudio de Cicco “mandou desligar os gravadores usados por algunsalunos”para registrar a faladeOrlando.Este teriadito, segundoo agente: “Àmedida que a Transamazônica ia avançando, os responsáveis iammatando osíndios e, em seu lugar, colocando bois. Não haverá, desse modo, lugar pragente”.28

Em dezembro, o general Ismarth, então superintendente administrativo daFunaieseufuturopresidente,presidiaoIIEncontrodeDelegadosRegionaisdoórgão quando Álvaro, chefe da Ajudância de Bauru, fez “dois protestos”.Reclamouque a direção da entidade havia transferido dinheiro proveniente da“RendaIndígena”diretoparaumchefedeposto indígena,“passandoporcimadesuaautoridadedechefedaajudância”,esedisseinconformadocomofatodetersidoalijadodeumareuniãofeitaaportasfechadascommembrosdaASI.Porisso,pediupermissãoparaseretirardoencontro.

Um ano depois, o caldo entornou de vez. Álvaro recebeu a pena derepreensão do presidente da Funai após ter enviado um ofício com “termosostensivos”aseusuperiorna4aDelegaciaRegional,emSãoPaulo.Aomesmotempo,Orlandodavaentrevistascadavezmaisdesabonadorassobreopapeldafundação.

Enviado ao Xingu pelo Jornal do Brasil , o jornalista Edilson Martinsencontrou um cenário preocupante, com um avião parado semmanutenção, a

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casadehóspedes“apodrecendo”e faltade“umaajudamaior”paraatenderos1,7milíndiosdoparque.Eledisseque“amigos”dosVillasBôasconfidenciaramqueelesestavam“profundamentedescontentes”enãoseriasurpresaseembreveparassemdetrabalhar.Aojornalista,OrlandosugeriuestarsofrendocensuranaFunai:“Nãoestouautorizadoafalarnada,absolutamentenada”.

A ASI da Funai pediu por escrito que Orlando se explicasse sobre umaentrevistaqueconcederaaoboletimAmazind , editadonaSuíça e vinculado auma organização não governamental. Na entrevista, Orlando reafirmou quepensavaemdeixaradireçãodoXingu.OjornalistaquissaberdaperformancedaFunai.Orlandofezumdiagnósticoarrasador.

Aagência responsávelé inoperanteporcontade sua faltadeobjetividade.Parafalaraverdade,nãoháumúnicoindigenistaouetnólogoqualificadosentreseuslíderese,assim,nãosepodeesperarqueresolvamumproblemacujaessênciaignoram.OdesempenhoatualdaFunainãopoderáconduziraumasoluçãofavoráveldaproblemáticaindígenanonossopaís.Apopulaçãonativa estámuito longe de ser protegida e assistida.Muito pelo contrário,seusterrassãoinvadidasesuaculturadestruída.Comoíndio,elecontinuaadesaparecer,defatomorrer.29

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16.OGRITO

AOMESMOTEMPOQUEOSATRITOSDOSVILLASBÔASCOMOSMILITARES anunciavam novos tempos nos quadros da Funai, outromovimento começoua tomar corponumaesfera importantedavidabrasileira,emumdospaísescommaiscatólicosnomundo.Nofinaldosanos1960,jánãoeramaisumacertezaentremuitosreligiososavisãodequeoíndio,“selvagem”e “impuro”, precisava ser salvo a qualquer custo do inferno, bastando querecebesse a Palavra da Salvação. O frade dominicano Gil Gomes Leitão, porexemplo, que havia feito uma expedição de contato com os índios gaviãoparkatejê,dissequeapenas“umououtromissionárioarrisca-seaescreversobremissão indígena, com certa vergonha”, reflexo de um “um fracasso relativo”,porém “fecundo”. 1 Gil apontou como problemas a “destruição da culturaoriginal,afaltaderespeitoedastradiçõesecostumeslegítimosdosíndios,certanoção errônea da Igreja, as lacunas na preparação psicológica e científica dosmissionários”.Umaexplicaçãoeraqueoíndiohaviaresistido,àsuamaneira,aoprocesso de evangelização. A Igreja não conseguia fincar bases sólidas nasaldeias.

AIgrejacomeçouadespertarparaanecessidadedeimprimirnovosrumosàevangelizaçãodosíndios.Apalavranãodesapareciadosseusdiscursosoficiais,maspassariaaviracompanhadadecertosvalores:assegurarasobrevivênciadoíndio,defenderapossedesuasterraseevitaropaternalismo.TodaadiscussãoeranaverdadeumreflexodeumdebatemuitomaiornaIgreja,consolidadonoConcílioVaticanoII,quecomeçouem1961eacabouem1965.Oconcíliofalousobre“condicionalismos[que]tantopodemdependerdaIgrejacomodospovos,dosagrupamentosouatédos indivíduosaquema ‘missão’sedirige”.2Falou

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ainda sobre “dignidade e a liberdade dos filhos de Deus” e sobre a meta detrabalhar pelos pequenos, pobres e excluídos e a possibilidade de salvação deseguidoresdeoutras religiões, linhasgeraisapreendidascominteresseespecialpelosmissionáriosdaAméricaLatina.3

AspremissasdoconcílioforamdesenvolvidasàluzdarealidadedaAméricaLatinana IIConferênciaGeraldoEpiscopadoLatino-Americano, realizadaemMedellín,naColômbia,entreagostoesetembrode1968.Oencontromobilizoucerca de duas centenas de bispos, arcebispos, cardeais, padres e leigos. Odocumento final ainda continha sinais de evidente preconceito, como quandocitavaos“analfabetosindígenas”,estipulandoquea“ignorância”dosíndiosera“uma escravidão humana”, cuja “liberação” seria “uma responsabilidade detodososhomens latino-americanos”.Porém,acolhiaocernedasnovidadesdoconcílio:“Atarefadeeducaçãodestesirmãosnossosnãoconsistepropriamenteem incorporá-los nas estruturas culturais que existem em torno deles, e quepodemsertambémopressoras,massimemalgomuitomaisprofundo”.

Os reflexos do novo pensamento da ação missionária ficarammais claros noBrasil apenas dois meses depois da criação da Funai, quando a ConferênciaNacional dos Bispos do Brasil (CNBB ), o mais alto órgão da Igreja no país,realizou no Instituto Justiça e Paz de São Paulo, em fevereiro de 1968, oencontro“PresençadaIgrejanasPopulaçõesIndígenas”.

Umdosparticipantes,EgydioSchwade,haviavistocomosprópriosolhosaaçãoopressivadaIgrejaemterrasindígenas.Nascidoemjulhode1935,emumafamíliadepequenosagricultoresnomunicípiodeFeliz,noRioGrandedoSul,EgydioestudouquasedezanosnosemináriodosjesuítasdeSalvadordoSuleno curso de filosofia emSãoLeopoldo. Interrompeuos estudos para trabalharcom uma missão jesuíta do noroeste de Mato Grosso, onde conheceu índiosrikbaktsa, pareci, nambikwara, apiaká, xavante e bororo. Egydio chegou decaminhão em 1o de janeiro de 1963 ao internato jesuíta chamado Utiarity eencontrou“umarealidadebastantetriste”.4Osíndiosrikbaktsachegavamquasenusaointernato,aindadearcoseflechas,masnooutrodiajáestavamvestidoserezandoaave-marianaigreja.

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Egydioeoutrosreligiosos,comoofreiAdalbertoHolandaPereiraeopadreAntonio Iasi Júnior, que haviam atuado juntos na frente de atração dosTapayuna, começaram a questionar os métodos e objetivos das missõesindígenas. Os três estavam na reunião em São Paulo. Uma das principaisconclusõesdoencontrodavacontadeumasériaalteraçãoemrelaçãoaoqueaIgreja vinha fazendo comos índios. Pregava uma “aculturação” não do índio,masdomissionário.Osmétodospedagógicosseriamdesenvolvidos“apartirdaculturaedamentalidadedoíndio”.

Muitasdessasalterações,naverdade,jávinhamsendopostasempráticaporiniciativas isoladas.UmdoscasosmaisnotáveiseraodasIrmãzinhasdeJesusGenoveva, Clara e Denise, que foram viver com os índios tapirapé emMatoGrossoem1952.Emvezdeconstruirgrandestemploseescolas,comofaziamos salesianos, as irmãs decidiram viver de modo simples na aldeia comcinquenta moradores. Continuava sendo catequese, mas numa prática nova,revolucionáriaparaospadrõesdaépoca.

Anecessidadedemudarapareceumaisclaramenteapartirdeumestudodecampo conduzido pelo padre Iasi entre outubro de 1970 e fevereiro de 1971.NascidoemSãoPauloem1920, filhodecatólicos italianos, IasientrouparaaIgrejaaosquinzeanos,estudounaCompanhiadeJesusemNovaFriburgo(RJ),deuaulasdefilosofiaemBeloHorizonteeviveuemBogotá,naColômbia,ondefoi ordenadopadre em1954.No final dos anos 1950, foi trabalhar emRoma.Retornou ao Brasil em 1960 por um caminho incomum: desembarcou nosEstados Unidos e passou por México, Peru e Bolívia, antes de entrar pelafronteira comMatoGrosso.No caminho conheceumissões jesuítas instaladasem áreas indígenas e se apaixonou pela causa.Quandome recebeu para falarsobresuavida,aos93anosdeidade,emumlardeidososemBeloHorizonte,Iasiexibiaumaimpressionantelucidez,animando-senacadeiraderodasaofalardesuasaventurasporselvasperigosas.Sofreuriscosnocontatocomos índiostapayuna em 1967, sobreviveu a um acidente de carro e foi contaminado por“cinco”malárias,hepatiteeleishmaniosecutânea,oquelhedeixoucicatrizes.

Em1970,umbraçodaCNBB,oSNAM (SecretariadoNacional deAtividadeMissionária), confiou a Iasi a missão de fazer um raio X da atividade dos

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religiososcatólicosnaAmazônia.Apóspercorrerquarentaaldeiasemissõesnaregião,opadrechegouaumaconclusãoamarga.“Amaioriadasprelaziasdeixaos índios abandonados”, e não apenas por falta de pessoal, tambémpor “umaopçãopastoral”.Iasitestemunhouacompletaignorânciadasprelaziasquantoaoimpactocausadoporobrasdaditadura,comoaTransamazônica,eaausênciadequalquer trabalho jurídico de apoio aos índios. Por fim, ele sugeriu que aatividademissionáriasaíssedocontroledoSNAMparaumorganismonovo,asercriadodentrodaIgreja,um“ministério”voltadoexclusivamenteparaaquestãoindígena.EmbreveIasiseriaouvido.

Havia a pressão interna, mas também uma pressão externa clamando pormudançasnaIgrejacatólica.Umgrupodeconhecidosantropólogospartiuparaoataque. Entre 25 e 30 de janeiro de 1971, eles se reuniram em Barbados, naAmérica Central, para analisar relatórios apresentados por representantes dediversos países da América Latina. O resultado do encontro, a chamada“Declaração de Barbados”, foi assinada por onze estudiosos, entre os quaisDarcy Ribeiro e o argentino Miguel Alberto Bartolomé, da Universidade deBuenos Aires. O documento denunciou o “caráter essencialmentediscriminatório” das missões religiosas e acusou-as de terem se convertido“numa grande empresa de colonização e dominação, em conivência com osinteressesimperialistasdominantes”.5

Os antropólogos propuseramuma saída radical: “Emvirtude desta análisechegamosàconclusãodequeomelhorparaaspopulaçõesindígenasetambémpara preservar a integridade moral das próprias Igrejas é acabar com todaatividade missionária”. A declaração também denunciou o “fracasso” dosEstadosnacionaisnapolíticaindigenistaadotadaemseuspaíses.

Oencontrogerouumarespostaemmarçode1972.Comaparticipaçãodemissionários de nove países e de três dos antropólogos que estiveram emBarbados,aIgrejacatólicaorganizouuma“consultamissionária”emAssunção,no Paraguai. A reunião fez a “confissão de falhas e erros nas atividadesmissionárias”,mas repudiouasugestãodeque todoo trabalho fossesuspenso.Porfim,externouumaposiçãoinovadora:“AsIgrejasnãodevemtemer,massim

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apoiar decididamente a formação de organizações propriamente indígenas”. 6Esse foi o pulo do gato, que tanta dor de cabeça traria ao regime militarbrasileiro.

O grupo de Iasi, Egydio e outros, que começaram a externar suas ideiasmissionárias sob a inspiração do Concílio Vaticano II e da Conferência deMedellín, não era dominante na Igreja. Emmaio de 1970, aCNBB divulgou odocumento final da Assembleia Geral dos Bispos do Brasil realizada emBrasília.Quantoàsituaçãopolíticanopaís,defendeuumainvestigaçãosobreasdenúncias de torturas contra militantes de esquerda, mas também repeliu “aslamentáveis manifestações de violência, traduzidas na forma de assaltos,sequestros,mortesouquaisqueroutrasmodalidadesdeterror”.ParaaCNBB,asaçõesdaesquerdaeramtambém“umaformadetorturaropovo”.7

A entidade fez uma defesa clara da política econômica da ditadura,ressaltando seus “resultados palpáveis”. O documento também reclamou depessoas que “exacerbam em radicalizações” na interpretação dos documentosfinais do concílio e de Medellín. Era um claro recado à ala do clero mais àesquerda.Aquestãoindígenaficouparaofinaldodocumento.Tratou-sedeumaclaradefesadaimagemdaditaduraeumapoiopúblicoàpolíticaintegracionista.

Em nome da Verdade e da Justiça, apoiados também no testemunho dosquarenta prelados missionários da região amazônica, presentes à nossaassembleia, repudiamos a campanha que em outros países se promoveucontraoBrasil,acusando-odegenocídioeetnocídiodoíndio.

Essa era a posiçãooficial do alto clero.Maso grupodemissionários quepregavamrenovaçãonãoestavadispostoaperderespaçoepassouaterprojeçãonamídiacomadivulgaçãodedesmandos,erroseirregularidadescometidospeloEstado brasileiro contra trabalhadores rurais e grupos indígenas. Vigorava noBrasil desde 1968 o AI -5, o pacote de medidas autoritárias baixado pelosmilitares para controlar quase todos os aspectos da vida nacional, como oCongresso,aimprensa,aindústriacultural,partidosdeesquerdaemovimentossociais.Emmeioaoagravamentodoautoritarismo,osmissionárioscomeçaram

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atrazeràtonanotíciasincômodasdoBrasilprofundo.AprimeiradasdenúnciasmaispotentesveiodeMatoGrosso,pelaspalavras

de um espanhol radicado no Brasil, pequeno e frágil, porém irrequieto evibrante,meiopoeta,meiofilósofo,ousadoequixotesco.Em10deoutubrode1971, Pedro Maria Casaldáliga Plá, nascido em 1928 num vilarejo perto deBarcelona,tornadobispodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT)nosegundosemestrede1971,emitiuumacartapastoralatéentãosemparalelonaditadura.“Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalizaçãosocial”tinhamaisdecempáginaseseapresentavacomo“umgrito”.

Membro da congregação claretiana, Casaldáliga chegou a São Félix em1968, aosquarentaanos, ede lánuncamais saiu.Eledefendiaoengajamentopessoaldosreligiososparapromoverajustiçasocial,umaIgrejaconectadacomavidadosfiéis,comodisseanosdepoisemumencontrointerno.

AIgrejanãodeveoptarporumpartido,masdeveoptarporumsistema.Ocristãonãovaioptarporqualquerpartido,masporumpartidoquedêumespaçodeatuação.AIgrejaquenãolevaissoemconsideraçãoficanaIgrejateórica,negandoapráticacristã.8

Em2013,Casaldáligarecebeu-menacasasimplesnaavenidaJoséFragelli,em São Félix do Araguaia, que dividia com outros religiosos, mantida comrecursosdaIgreja.Nosfundosdacasa,umapequenacapelatraznaparedeumCristodemadeiraeummapadaÁfricacomaexpressão“Crucificada”.Parasesentar, tocos de madeira. Na parede lateral à esquerda, um quadro comreferênciasaoarcebispodeSanSalvadorÓscarRomero,símbolodedefesadosdireitoshumanosnaAméricaLatina,assassinadoem1980,enquantocelebravaumamissa,talvezporumesquadrãodamorte.AssimcomoCasaldáliga,RomeroafirmouterfeitoumaopçãodeIgrejaemproldosoprimidosepara“proclamarajustiça”.9

Emmeio à luta contra omal de Parkinson, Casaldáliga renunciou ao seucargonaprelaziaem2005.Ele temdificuldadeparase locomoverefalar,masapresentaumamemóriaágileoferecefrasesepensamentoselaborados.

Em1968,quandopisoupelaprimeiravezemSãoFélix,Casaldáligadisse

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ter percebido que nesse caldeirão de cerca de 150mil quilômetros quadradosabrangidos pela sua prelazia, onde fermentavam disputas entre fazendeiros,índiosetrabalhadoresrurais,osindígenaseramapenasconsideradosumfatordeatrasoaodesenvolvimentoeconômico.

Oficialmente,osíndiosnãocontavam.Eramumempecilho.Aatitudeoficialarespeitodosíndioseraaatitudeoficialdosquinhentosanos.Acontecequeas“marchasparaooeste”trouxeramolatifúndioeoagronegócio.Então,seopor ao agronegócio e ao latifúndio era se opor à política oficial. E nãodefender a causa dos índios era negar o problemas deles. […] Os índioseram normalmente deixados de lado. Mas, com a chegada do latifúndiofinanciado pelos incentivos oficiais, eles passaram a ser um empecilho. Etemsidoessaabatalhadetodososséculosdocolonialismoatéhoje.10

Na carta pastoral de 1971,Casaldáliga denunciou que a passagemdaBR -080peloParquedoXingu“veiobeneficiardiretamente sóao latifúndio”.Sobreosíndios karajá, escreveu que a aldeia de Santa Isabel “é um exemplo daaculturação violenta a que foram submetidos. Facilmente encontra-se índiosbêbados.Frequentamascasasdeprostituição.Háentreeles29tuberculosos”.AcartaatacouapolíticadogeneralBandeiradeMello,segundoaqualos índiosseriam “integrados na desintegração da personalidade, na mais marginalizadadasclassessociaisdopaís:ospeões[defazenda]”.

Setores da ditadura não aprovaram nada na carta. De acordo com omaisimportante órgão de inteligência do Exército, o Centro de Informações doExército (CIE ), o texto “repercutiu intimamente no âmbito nacional einternacional e agitou a área de Santa Terezinha,município deLuciara, que éabrangidopelareferidaprelazia”.11MasoCIEcomemorouofatodeaimprensater dado pouco destaque à carta, um “pequeno e parcelado resumo”, comenfoqueprincipalnotrechosobreosíndios.

EstavaemgestaçãonaIgrejaalgoaindamaior.Iasiediversosoutros,comodomLuciano Mendes de Almeida, Tomás Balduíno, Adalberto Pereira e AngeloVenturelli,começaramaerigirumdispositivocatólicoespecíficoparaaquestão

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indígena.Em23deabrilde1972,porocasiãodo IIIEncontrosobreaPastoralIndígena, realizado pela CNBB no Instituto Anthropos, em Brasília, a IgrejaanunciouaformaçãodeumConselhoIndigenistaMissionário,oCimi,formadodeinícioporsetemembros,eleitospelaassembleia,edescritocomoum“órgãooficiosodaCNBB”.12

Osobjetivosdoconselhoerampromoverapastoralindígena,desenvolveraformação teológica, antropológica e técnica dosmissionários, “conscientizar opovo brasileiro a respeito da causa indígena”, cuidar do relacionamento entremissões indígenas, a CNBB e os órgãos do governo federal e planejar outrosencontros sobre a pastoral indígena. E havia o sexto objetivo, o maissurpreendente de todos, cuja importância só seria mais bem compreendidadepois: assessorar juridicamente os missionários na defesa das terras epatrimôniosindígenas.Ouseja,osmissionáriossetornariamagentespolíticosejudiciais em disputas de terras e em defesa dos índios, algo bem diferente daposturacontemplativaedenãoatritodamaiorpartedasmissõesreligiosas.

No primeiro ano de existência, porém, o Cimi não teve o protagonismoesperado por uma parte do clero.O principal trabalho do conselho nessa faseinicialfoiparticipardosdebatessobreonovoEstatutodoÍndio,produzidopeladitadura, encaminhado ao Congresso e sancionado pelo ditador Médici emdezembro de 1973. Do lado do governo, pelo menos dois nomes atuaram naconfecção do texto, o jurista Temístocles Cavalcanti, indicado pelo ministroCosta Cavalcanti, e Queirós Campos. 13 A Funai apresentou 44 emendas aoprojeto original, que tinha 69 artigos. 14OCimi atuou “em conjunto” com aComissãodeConstituiçãoeJustiçadaCâmarapara“introduzirmodificaçõesdemontanodocumento”.Emlinhasgerais,oCimielogiouotextofinaldoestatuto.OpadreJoséVicenteCésar,osegundopresidentedoCimi,queeracoordenadordoAnthroposequehaviaparticipadodaexpediçãodaCruzVermelha,escreveuquedaliemdiante“ninguémpoderámaisofenderoudesrespeitarumíndionoBrasilsemincorreremcrimedelesa-pátriaeultrajarahonradanação”.Afirmouainda: “Deve-se reconhecer com alegria e muita esperança: a lei 6001 quesancionouoEstatutodoÍndioconstituiugrandevitóriaeprogressoparaacausaindígenaemnossapátria,talvezcomparávelaoAlvarádedomJoséIem1755”.

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15ManifestaçõescomoessamostramquenoiníciodasatividadesdoCiminão

era ruim a relação do organismo com os militares. Além disso, governo ereligiososdesenvolviamconversaçõessecretasemreuniõesnoRio.PoucagentesabiadaexistênciadaComissãoBipartite,queprocuravasaídasnegociadasparacrisesquepoderiamprejudicarorelacionamentoentrereligiososegoverno.16Havia sinais de que o comando da Igreja não toleraria “radicalismos”, comoexpressamentemencionadonodocumento final do encontrodaCNBBde 1970.Essediscursoacalmavaosmilitares,queatribuíamosproblemasaumaminoria.Em1967,ogeneralJoséHoráciodaCunhaGarciahaviaescritoemmemorandointerno que o clero esquerdista era formado por traidores da “Revolução” de1964quetrabalhavampara“mandõescomunistasrussos,chinesesoucubanos”.17

Anosmais tarde, o próprio Cimi reconheceu, em documento interno, quehouve uma espécie de intervenção do comando da Igreja nos rumos da novaentidadeindigenista.Explicouqueadecisãodefazeroconselhofuncionarcomo“órgãoanexo”daCNBB,portantosoba“responsabilidadedahierarquiadaIgrejanoBrasil”,nãosurgiudeumdesejodeorganizarapastoralindigenista,masfoiuma “consequência do mal-estar em pessoas da Igreja e do governo face aoquestionamento levantado pelo Cimi não só das falhas estruturais da políticaindigenista oficial como também dos erros dos integrantes do órgão deassistência ao índio”. “Propôs-se a anexação do Cimi à CNBB como formaadequadadeneutralizarsuaação”,afirmouodocumento.18

Omesmo documento pontuou que, a princípio, o Cimi foi bem-vindo noseiodaIgreja,poisnãopassavade“umacúpulaquesereuniaperiodicamente”.Mas,quandootrabalhodoconselho“desceuàsbases”,ascoisasmudaram.

SuperioresreligiososebisposchegaramaproibiraentradademembrosdoCimiemseusdomínios.Outrosevitavamatéa aparênciadecompromissoou ligaçãocomoCimi, especialmentediantedosórgãosdogoverno. […]Emcertasmissões, fez-se tudoparaevitara realizaçãodasassembleiasdechefesindígenasincentivadaspeloCimi.19

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Asdivergênciaschegaramàspáginasdosjornais.OpadreVicenteCésarrevelouterdeixadoapresidênciadoCimi,naqualatuouporpoucosmeses,“emvirtudededivergênciademétodosedeorientaçãodoutrinária”.Elepediu“prudênciaemoderação”. O bispo Tomás Balduíno, de Goiânia, rebateu a afirmação,sugerindoqueCésarobservava“decamaroteagravesituaçãodoíndio[…]semengajamento na causa e o despojamento em favor de outros interesses”. Naréplica, César cutucou: “Se engajar-se na causa indígena e com elacomprometer-se significa integrar-se em ‘apoteoses’ fúnebres e outrasmanifestações congêneres, nisto assiste a Sua Excelência [Balduíno] inteirarazão”.20

OcleroestavadivididoarespeitodoCimi.SegundoaslembrançasdopadreIasi, o principal foco de discordância era a questão do engajamento dosmissionáriosnasaçõespolíticase judiciais enasdenúncias sobreviolaçõesdedireitos em áreas indígenas. “Os mais conservadores, os mais idosos, nãoqueriam esse engajamento. Por exemplo, o Jayme Venturelli, que acabou sedemitindo.AIgreja,aprincípio,nãoaceitouoCimi.”21

UmexemplodessasdificuldadesficouexplícitoparaIasinasegundametadedos anos 1970, quando um deputado federal aceitou a ideia apresentada peloCimi de criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso sobre oíndio.MasodeputadoqueriaoavaldaCNBB,poistemiaque,láadiante,aIgrejafosseapúblicodesautorizaroCimie,porextensão,aCPI.IasieEgydioforamàsededaCNBBparaconversarcomseuentãopresidente,domAloísioLorscheider,eoprimodeste,IvoLorscheiter.Apósmuitaconversa,nenhumapoiofoiobtido.Quandochegouanoite,umairmãveiochamarosbisposparaojantar.MaselesnãoconvidaramosmembrosdoCimiparaamesa.Umdosdoisbispos,Iasinãoserecordaqual,aindateriaditoqueeranecessário“estudaressarelaçãoentreoCimie aCNBB”. “Querdizer, até essa alturaoCiminão estava sendo tratadocomoumdepartamento.Agentetinhaumtrabalhoousado,nãoé?Elesqueriamummaisprudente.”

AviradadoCimi,ouadescida“àsbases”,começouemjunhode1973,comacriaçãodeumsecretariadoexecutivoparagerirasaçõespráticasdoconselho.Oprimeiro a ocupar o cargo foiEgydioSchwade, que desde o final dos anos

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1960 escrevia na imprensa doRioGrandedoSul artigos sobre a situaçãodosíndios no Sul do país. As denúncias resultaram em uma CPI na AssembleiaLegislativa gaúcha. Em 1969, Egydio ajudou a fundar a Operação AmazôniaNativa (Opan),emMatoGrosso,ondeatuoucomocoordenador.AOpan tinhaapoiodeumaentidadedaÁustriaeoutradaItália.

Comosecretariado,oCimideixoudeserumconselhodeespecialistasparase dedicar a viagens e observações in loco nas aldeias. Por ironia, um dosresponsáveis por essa mudança foi o mesmo dom Ivo Lorscheiter, entãosecretárionacionaldaCNBB.FoielequemchamouEgydioeonomeouprimeiro-secretáriodoconselho,emjulhode1973.

Egydiodisseteranoçãodequeumaaçãoindigenistanãopoderiafuncionarapartirdacidade.Atéentão,osmissionáriospercebiamqueacriaçãodoCiminãohaviaresultadoemaçãoprática.Muitosqueriammudançasimediatas.

Umabombacomeçouaserelaboradanofinalde1973echegouaosjornaisemmaiodoanoseguinte.Ofolheto“Y-Juca-Pirama,oíndio:Aquelequedevemorrer”foiumapoderosadenúnciapúblicacontraoregimemilitar.Emboranãoassinado pelo Cimi ou pela CNBB , e sim identificado como “documento deurgênciadebisposemissionários”,ofolhetode31páginastinhatudoavercomoCimi.Eraassinadoporalgunsdeseusprincipaismembros,comoIasi,TomásBalduíno, Gil Gomes Leitão e Tomás Lisboa, e também pelos bisposCasaldáliga, Máximo Biennès (Cáceres, MT ), Hélio Campos (Viana, MA ),EstevãoCardosodeAvellar(Marabá,PA)eAgostinhoJoséSartori(Palmas,PR)eosmissionáriosDomingosMaiaLeite(ConceiçãodoAraguaia,PA),AntônioCanuto(SãoFélix,MT)eLeonildoBrustelin(Palmas,PR).22

O título do documento faz referência ao poema homônimo de GonçalvesDias(1823-64),umdosexpoentesdochamado“indianismo”,termousadoparaoconjuntodeobrasromânticasdoséculoXIXqueprocuravamidealizaroíndiobrasileiro.Areferênciaaopoemaeraumpoucoestranha,poisoíndiodaobraémortoporoutrosíndios,enãopor“civilizados”.Maspodeservistacomoumaironia: antes, as tradições das aldeias é que determinavam qual índio deveriamorrer (no poema, umguerreiro que demonstrou fraqueza); na ditadura, essasregraseramditadaspelos“civilizados”.

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Asprincipaisfontesreferidasnodocumentoforamjornaiserevistas,oquerefleteaimportânciaqueaimprensaconferianaépocaaoregistrodasdenúnciasde crimes contra os índios. Mas o folheto foi além das notícias. Fez umdiagnóstico sombrio dos impactos da política desenvolvimentista, que seriapuramente “economicista, sobrepondo o produto aos produtores, a rendanacional à capacidade aquisitiva da população, o lucro ao trabalho”. Para osreligiosos,a“psicosedesenvolvimentista”tinhacomoconsequência“acrescentemarginalização do povo brasileiro” no campo e na cidade. Avançando nainterpretação desse cenário, o documento pediu uma “modificação radical detodaapolíticabrasileira”.

Contestando os métodos empregados pelo regime militar, os religiososanunciaramo rompimento comqualqueroperaçãode atraçãoou “pacificação”de índios, pois tais ações estariam favorecendo “o avanço dos latifundiários edos exploradores de minérios ou outras riquezas”. Pelo contrário, osmissionários afirmaram que a partir dali toda operação do gênero seria“denunciada”,“aoladodosprópriosíndios”.Osreligiososanunciaramtambémqueo trabalhomissionárionão teriamaiscomometa“civilizar”os índios.Emconfronto aberto com a política indigenista oficial, pregaram não aceitar “umtipode‘integração’quevenhaapenastransformá-losemmãodeobrabarata”.

Como seria previsível, o documento caiumuitomal nogoverno.Emumaanálisesobreoqueconsiderou“propagandasubversiva”,oCIEanunciou:

Nítidaposiçãoanti-Revoluçãoebastantevinculadoecomprometidocomasubversão marxista-leninista. […] O grande objetivo é desmerecer ogovernodaRevoluçãoecriarnapopulaçãocondiçõesdesensibilidadeparaumatomadadeposiçãoantirrevolucionária.23

Muitosanosdepois,quandoentrevisteiumdossubscritoresdodocumento,domTomás Balduíno, morto em 2014, ele não desconversou sobre o caráter“subversivo”dosmissionáriosdoCimi.

De certa forma era verdademesmo, nós fazíamos a subversãonas aldeiasporqueoíndiocomeçavaadespertarparaseusproblemas.QuandooCimi

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chegou,foiumatransformaçãoradical.Eles[índios]começaramabuscararecuperaçãodesuasterrasedesuacultura.24

OfatodeodocumentoreproduzirdiversasreportagensdeOEstadodeS.Paulofoi destacado na análise do CIE , pois o jornal “reconhecidamente vem nosúltimos tempos tomando uma tendência antigoverno, estando no momentosujeitoàcensuraprévia”.Defato,pelomenosoitoreportagensproduzidaspelojornal que trataram do Cimi e de assuntos indígenas no país no ano de 1974foram alvo de censura da ditadura. 25 Foi determinada pelos censores aeliminação de um trecho que falava de Casaldáliga, um texto que relatava aexistênciadecontratosdearrendamento intermediadospelaFunaina terradosKadiwéu, outro que tratava da invasão de Kaingangue em fazendas no RioGrandedoSul,umque traziadenúnciasdeIasisobreapropriação,peloGrupoItamaraty,de226milhectaresdeíndiosparecieoutroquenoticiavaataquedeíndios waimiri-atroari. Em todos os casos, o jornal publicou cantos de Oslusíadas,deCamões,paraindicaraosleitoresacensura.26

A análise do CIE sobre “Y-Juca-Pirama”, enviada a vários órgãosgovernamentais,sugeriuinúmeras“medidasconvenientes”.APolíciaFederaleo Ministério da Justiça deveriam “interromper a impressão e divulgação” dotexto, além de exercer “o controle temporário de divulgação pelos órgãos deimprensa de notícias sobre irregularidades, violência, maus-tratos aos índiosetc.”.Paraisso,ogovernodeveriausar“forçapersuasivadaautoridadedafonteemissoradanotícia”.

Os“órgãosde informações”,prosseguiuoCIE , deveriam fazer o “estreitorelacionamento das atividades dos autores do panfleto”, ou seja, os religiososdeveriam ser espionados. A Funai foi orientada a “interromper, quandoconveniente, o fluxo ostensivo de informações sobre problemas internos daFunai,rixasentressertanistasbrasileiroseatritosentreastriboseentreessasecivilizados”.

OCIE também exigiu o que chamou de uma “contrapropaganda indireta”.Seriauma“campanhainformativa”voltadapara“liderançascatólicas,políticasedocentes universitários”. Para o público em geral, a sugestão era organizar

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“reportagemporumadasprincipaisrevistasnacionais”,quedeveriaserescritapor “jornalistas conceituados” e com “discreta referência a órgãosgovernamentais ou a pessoa da área governamental”. Em síntese, a ditaduraqueriaqueosveículosdecomunicaçãoproduzissemumaversãoedulcoradadarealidade,massemqueoleitorpercebesseque,portrás,estavaamãodoregime.

Aditaduraprocuravareagirsemprequenoexteriorfossecriticadaarespeitodotratamentodadoaosíndios.Emoutubrode1974,umdocumentoconfidencialda ASI orientou o presidente da Funai a não responder diretamente a maisnenhumacorrespondênciaoriginadadaAnistiaInternacional.SegundoaASI,aAnistia“participadecampanhadifamatóriacontraoBrasilnoexterioremantémligações” com uma suposta “Frente Brasileira de Informações, FBI , órgão dedifusãodeinfâmiasementirasnoexteriorcontraonossopaís”.

Em 1975, quando a emissora de TV NRK , da Noruega, divulgou umareportagemnaqualumíndioperuanoafirmavaque“doladobrasileiro,silvícolastambémestãosendomassacrados”eemseguidatransmitiuumfilmebelgasobreasituaçãonasfavelasbrasileiras,aembaixadadoBrasilemOsloprotocolounoMinistério de Assuntos Estrangeiros da Noruega uma nota de protesto dogoverno brasileiro. No documento, o governo repudiou o que chamou de“persistentecampanhadecalúniaedesinformaçãocontraoBrasil”.27

Uma tarefa regular das embaixadas brasileiras ao redor do mundo eralocalizar, traduzirparaoportuguêseenviarparaoBrasilnotícias“negativas”,incluindoasquetratavamdapolíticaindigenista.Haviatambéminformessobreatividades de jornalistas estrangeiros no Brasil. Em fevereiro de 1973, porexemplo, o coronel Joaquim Pessoa Igrejas Lopes, diretor do escritório daSudam na Guanabara, foi entrevistado pelo jornalista dinamarquês HaldorSigurdsson, que trabalhava para a TV National Danisch BroadcastingCorporation.OcoronelenviouconfidencialmenteàASIaíntegradasperguntaserespostas.

“Qualéoproblemacomosíndios?”,quissaberodinamarquês.“Desconheço.Osenhorconhecealgum?”,retrucouomilitar.

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17.PERSONANONGRATA

AOVIRAPÚBLICOEMMAIODE1974,“Y-JUCA-PIRAMA”TORNOUEVIDENTE que a ala do clero ligada à questão indígena desenvolvia voopróprio.Algumasvezes,literalmente.TomásBalduínotinhaumpequenoavião,que ele próprio pilotava e passou a usar para levar missionários do Cimi ouindígenasparaassembleiaseencontrosregionais.Oaparelho,umteco-tecocomlugarparaapenasopilotoeumpassageiro,foiumpresentedadoaBalduínoporamigosreligiososdaItália.1

EgydioeBalduíno,entreoutros,reuniram-seporváriassemanasnofinalde1973,noRio,paraelaboraroprimeiro“programadeação”doCimi.Umadasprioridades definidas foi reunir os índios entre eles mesmos, de forma que“revelassemsuarealidade”unsparaosoutros.Surgiupelaprimeiravezaideiadeassembleiasindígenas.AinspiraçãoveiodereuniõessemelhantesrealizadasnaColômbia.

Outraprioridade era fazer reuniões comosmissionáriospor região, e nãoporprelazia,diretamentecomaquelesque faziamo trabalho indigenista.2Demarçode1974a junhode1975,umaequipevolantedoCimi—formadaporIasi,IvarLuísBusatto,ValberDiasBarbosa,SílviaMariaBonottoeEgydio—percorreu78prelaziasedioceses,dasquais55tinhamalgumaáreaindígenasobsua abrangência. O grupo coletou subsídios que alimentaram denúncias ereportagens na imprensa. Até agosto de 1974, o Cimi realizou sete encontrosentre seus próprios missionários, com um total de 185 participantes. Denovembro de 1973 a junho de 1975, o conselho recebeu colaborações deentidades estrangeiras para a primeira fase de mapeamento da realidadenacional: da Adveniat, mantida por bispos da Conferência Episcopal da

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Amazônia, e da Aiuto Alla Chiesa Che Soffre, uma fundação de direitopontifício sediada na Itália e fundada por um padre holandês. O restante dodinheiroveiodeinúmerasprelaziasediocesesdetodoopaís.3

Vencidaaprimeiraetapadeorganizaçãointerna,oCimivoltou-separaseugrandedesafio,odiálogocomosíndios.Emseusdocumentosinternos,oórgãoorientou os missionários a “procurar relacionamento pessoal com os índios,ganhando sua confiança”, além de “fazer com que se conscientizem de seremautoresdesuahistória(elesmesmospodemedevemagir)”.4

A primeira assembleia indígena, chamada eufemisticamente de“confraternizaçãodosgruposindígenas”,ocorreude17a19deabrilde1974naMissãoAnchieta deDiamantino (MT ). A Funai foi convidada emandou umaobservadoraparaoencontro,aantropólogaAnaMariadaPaixão,daDivisãodeEstudos e Pesquisas da direção do órgão em Brasília. De religiososcompareceramIasi,Balduíno,TomásLisboa,Adalberto,oirmãoLuíseopadreRodolfoLunkenbein,daMissãoSalesianadeMerure,emMatoGrosso.Entreosíndios, apareceramcatorze líderesdas etniasbororo, apiaká, tapirapé, xavante,rikbaktsa,nambikwara,irantxe,pareciekayabi.

Osíndiosforamestimuladosafalarsobreseusproblemasedúvidas,algunsem português “com dificuldades”, dois na língua nativa. Trocaram presentesentresi.Umapartedareuniãofoifechadaaosmissionários.Napartepública,osíndios “criticaram a Funai, aMissãoAnchieta e a si próprios, culpando-se dealgunsproblemasqueatualmenteenfrentam”.Otemafundamentalfoiaterra.

Os Bororo informaram que passariam a “‘policiar’ suas terras contra oscivilizados”,assimcomoosApiaká,“aqualquerpreço”.OsParecidisseramqueareservacriadapelogovernoeragrande,“masnãoserveparaplantar,foifeitasemninguémsepreocuparcomoíndio”.DisseramquehaviaParecitrabalhandoemfazendas“emregimedeescravo”equeiriam“bater”emum“civilizado”queforneciabebidasalcoólicasaosíndios.

OsRikbaktsa forammaisdiretos.A respeitode“civilizados”quequeriamentrarnaáreaindígena“paracaçaremorar”,informaramque“vãomatarquementrarnareservasemordemdosíndiosoudaFunai”.O“capitão”nambikwaraAntôniorelatouqueaáreareconhecidapelogovernoera“pobre,osíndiosestão

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namargem esquerda, quando amelhor parte é namargem direita” e por issopediaajuda“porqueosNambikwaraestãoacabando”.

O resultado da reunião foi tão bem apreciado pelos religiosos que elespassaramachamá-lade“SegundaConfederaçãodosTamoios”,5emreferênciaà revolta liderada pelos Tupinambá contra os colonizadores portugueses nolitoralbrasileironoséculoXVI.

Os indígenas pediramquenovos encontros dogênero fossemorganizadosdaliemdiante.Emseurelatório,aantropólogadaFunaisugeriuqueogovernoficasse atento a respeito desse movimento, para poder se antecipar e mesmolideraronovotempoquepareciasurgirentreosíndios.

Aditaduranãofeznadadisso.Pelocontrário,comoveremosadiante,passouaperseguiretolherasreuniõesindígenas.Masoprocessodeflagradonãotinhamaisretorno.EmGoiânia,oCimiorganizouumareuniãoentreosmissionários,sendo uma das metas “apoiar, incentivar e possibilitar encontros de chefes egrupostribais”.6

Odocumentofalavatambémem“encarnação”,ouseja,tentarvivercomosíndios à maneira deles, “convivendo com eles, investigando, descobrindo evalorizando, adotando sua cultura e assumindo sua causa com todas as suasconsequências,superandoasformasdeetnocentrismoecolonialismoatéopontodeseraceitocomoumdeles”.Ouseja,osmissionáriospretendiamquasequesetornaríndios.QuandoopadreTomásLisboafoivivercomosMukus,elepassoua andar nu, segundo testemunhou Egydio. 7 As ações sugeridas pelo Cimipreviamumcomprometimentototalcomoíndio,emqueomissionáriopoderiapôremriscoaprópriavida.

OCimi logo partiu para organizar a segunda assembleia indígena, e paraissorecebeuaajudainesperadadaprópriaFAB.OlocalescolhidoparaoeventofoiaMissãoCururu,nosuldoPará,fundadaporirmãosfranciscanosem1911.Oconselhopretendiareunirrepresentantesdeíndiosxerente,tapirapé,xavante,bororo,irantxe,apiaká,kayabi,kaxinawa,tiriyó,galibi,karipuna,nambikwaraemunduruku,de8a14demaiode1975.Parasolucionaraquestãodotransporte,Balduíno recorreu a um conhecido, o brigadeiro JoãoCamarão Telles Ribeiro(1916-2000), então comandante da Primeira Zona Aérea de Belém. Balduíno

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pegouseuaviãozinhoerumouemdireçãoaCamarão,juntocomEgydio.Apósouvir o plano dosmissionários de uma grande reunião indígena, o brigadeirobateuamãonamesaedisseque“eraissoqueosíndiosprecisavam”,recordou-seEgydio.

Histórias como essa revelam que, na ponta do sistema, a relação entremissionários, indigenistas, sertanistas e militares era mais matizada. Tambémhaviamilitaresnacionalistasqueviamosíndioscomo“guardiões”daAmazônia,assimcomohaviaosquetinhaminteresselegítimonapreservaçãodasculturasindígenas, como herança do marechal Rondon, e cuja ação, no extremo damáquina estatal, muitas vezes era contrária à própria política oficial. Para oEstadobrasileiro, tambémhaviaaquestãomaispragmáticadocusto-benefício.OsmissionáriosdesempenhavamnasaldeiasumpapelqueoEstadonãoqueriaoueraincapazdeassumir.Emmeadosdosanos1970,aprelaziadoRioNegro,porexemplo,contavacom23padres,onzesalesianose42irmãsdedicadosaosgrupos indígenas da extensa região, o que implicava deslocamentos de atétrezentosquilômetrosdebarco.

Em 1975, foram à assembleia de Cururu índios de Macapá, Diamantino,Guiratinga,SãoFélixeÓbidos.Oeventomobilizoucercade850Mundurukudamissãoevizinhanças,emviagensdeatéquatrodiasdebarco.Asreuniõesforamacompanhadasporcercadesessentachefesindígenasenove“civilizados”,numbarracão. Os índios falavam ou na língua nativa ou em português. Haviaintervaloparaamerenda.Nofinaldodia,partidasdefutebole,ànoite,cantosedanças das diferentes etnias. No terceiro dia, os índios fizeram uma reuniãofechada.UmgrupodetrêsfuncionáriosdaFunaitentouentrarnobarracão,masfoiconvidadoaseretirar.8

Os discursos dos índios foram anotados, traduzidos, publicados edisseminadospeloCimi.Oqueseextraida leiturados registroséa recorrentequeixasobreademoranalegalizaçãodeterrasparaosíndioseocrescenteapoioqueosmissionáriosdoCimipassaramaterentreeles,ligadoàaprovaçãodessetipodeencontro.

OsdepoimentosdãoaperfeitanoçãodequeaditadurarepetiaarotinadoSPI

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de não conseguir desempenhar a contento suas atividades para solucionar asdemandas mais urgentes de várias etnias. Por mais que a ditadura tentasseapresentar uma versão diferente à opinião pública, inúmeros grupos indígenaspermaneciamàmargemdaassistênciaoficial.

NoAltoSolimões,porexemplo,aprelazialocalinformouàFunaiem1973quedezoitoíndioshaviammorridodesaramponumespaçodeapenasvintediaseogovernonãoconseguiraajudara tempocomremédios.9Nosuldopaís,ochefe local da Funai disse ter apenas uma assistente social para vinte postosindígenas em três estados.Emabril de 1977, o general Ismarth “reconhece asdeficiênciasde infraestrutura”noAmazonas”.10AdmissãomaisamplaconstadedocumentoentreguepeloMinistériodaSaúdeaoCongressoNacionalnaquelemesmo ano. Apontou que “70% dos grupos tribais não apresentam condiçõessatisfatórias de saúde”. Dos 170 postos no país, apenas 110 contavam com“atendentesdeenfermagemtreinados”,emapenassessentahavia“cômodosquefuncionam como pequenas enfermarias”, e 19,5% da população indígena nemsequereravacinadacontratuberculose.Orelatóriotambémencontrou“elevadaprevalência de desnutrição em alguns grupos indígenas” e de doençastransmissíveis,“destacando-se,emcaráterendêmico,atuberculose,amaláriaeverminoses”. Tudo isso agravado pela “falta de integração dos órgãosassistenciais”epela“faltadelaboratóriosdesaúdepública”.11

QuandoBandeiradeMellodeixouaFunai,em1974,criou-seaexpectativaentreosmissionáriosdequeorelacionamentocomoórgãomelhorasse.EmumacartadatilografadaparaCasaldáliga,EgydiodissequeoCimiestava“emboasrelações com a nova direção da Funai” e que nos dois contatos com o novopresidente, o general Ismarth, houvera um “diálogo franco, o que nos dáesperanças de um relacionamento mais cordial entre as missões e o órgãofederal”.12

O otimismo não durou muito. O Cimi tornou-se mais e mais fiscal dasatividadesdaFunai.Emfevereirode1975,Egydiofez,nacondiçãodesecretárioexecutivodoCimi,umaviagemparaconhecerpostos indígenasnoParaná,noRio Grande do Sul e em Santa Catarina. No retorno a Brasília, elaborou umrelatórioeoenviouaIsmarth,parasua“especialatenção”.OsKaingangueeram

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“explorados como mão de obra barata em alguns postos” e por colonos emadeireiros. Os Xokleng “resistiram mais violentamente à invasão de suasterras”, mas encontravam-se em situação semelhante à dos Kaingangue. Eles“abandonaram a cultura original quase que totalmente, devido, entre outrosmotivos,àatuaçãodaAssembleiadeDeus,seitabastanteproselitista”.13Entreos líderes indígenas, Egydio encontrou “desespero, que se extravasava nasarruaças internas, na cachaça, nas ameaças de uns contra os outros, nasfrequentesprisõeseespancamentos”.Eleidentificoutambém

estereótipos criados pelo civilizado: índio é vadio, não produz, vive napromiscuidade,éselvagem,cachaceiro,um“coitado”.Épersonanongratanaregião,etodosesperamquedesapareçadeumavez,parapoderemtomaroúltimotorrãodeterraquelheresta.

Egydiorelatouqueosíndiosestavam“encurralados”,maseram“levadosanãorevelaraverdadeirasituaçãodopostoàpolíciaeà imprensa”.Oíndio,namaioriadospostosdoSul,era“umpeãomalassalariadodaFunai”.

Até1967,seisdosprincipaispostosdoRioGrandedoSulestavamligadosnãoaoSPI,masaumserviçoestadualvinculadoàSecretariadeAgriculturadogovernodoestado.SegundoosecretáriodoCimi,asterrasdemarcadasporvoltade 1913 sofreram o maior golpe em 1958, quando o governo gaúcho “seapropriou”da reserva deSerrinha, picotou-a e distribuiu-a para colonizadores,antes transferindo os índios para a reserva de Nonoai. Quatro anos depois, ogovernoalterouasdivisasdasáreas.NocasodeNonoai,umaáreafoi retiradaparacolonização,ondefoierguidoomunicípiodePlanalto.NopostoInhacorá,1737hectares foram retiradospara construir umaestaçãoexperimental e3062hectares, para nova divisão de lotes. Na mesma época, a área de Ventara foiextinta.Osíndiosforam“deportados”paraaáreadeVotouro.

Boapartedessesataquesaopatrimônioindígenaocorreuentre1959e1963,durante a gestão de Leonel Brizola (1922-2004) como governador do RioGrandedoSul.Asmedidasanti-indígenasdeBrizolaeramumtemadeinteressedosmilitares,porsetratardeadversárioferrenhodaditaduraeumdosprincipaisapoiadores do presidente deposto Goulart, de quem era cunhado. Depois do

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golpede1964,oentãodiretordoSPI,majorLuísVinhas,jádiziaqueumadasprioridades do governo era resolver a “usurpação das terras dos índios”provocadapelas“reformasagrárias”deBrizolaedosex-governadoresdoParanáedeMatoGrosso.14

Onzeanosdepois,contudo,nadahaviamudadonoRioGrandedoSul.Em1979,EgydioconcordavasobreopapeldeBrizola:“ComoogeneralBandeiradeMello,quelançouomaiseficientemétododeextermíniodosíndios,LeonelBrizolafezumprocessosemelhantenosuldopaís”.15

Egydiolistoudiversas“firmasespoliadorasdasáreas indígenas”, todasematividade,amparadasporcontratosassinadoscomaprópriaFunai.AMarquettiexploravaopalmitodopostoindígenadeIbirama(SC),aMaiaretirou250milpinheirosdopostoGuarapuava(PR)eaSlaviero“apossou-sede3,8milhectaresdototalde9milhectaresdaáreaindígena”.Omissionárioestimouem“5[mil]ou6mil”onúmerodeintrusosnaáreadopostoNonoai.EmRiodasCobras,umladrãodeterras“profissional”eraacusadopeloespancamento“demaisdetrintaíndios”.Três“pistoleiros”“ameaçaramíndios,espancarameroubaramdinheiroemadeira”.OíndioAugustoteveaspernas“fraturadas”eficouparaplégico.

A resposta do governo a todos esses problemas, escreveu Egydio, eraprecária.Entreoschefesdospostoshaviadesânimo, impotência, “poucavisãoantropológica”, quando não “cumplicidade e participação” no esbulho dopatrimônio indígena.AFunai tinha uma equipe de advogados para auxiliar osíndios,mas nomomento estava “omissa ou semostra inoperante”.A entidadefazia“projetosdegabinete”,ouseja,planosdedesenvolvimentoeconômicoque,naprática,nãosaíamdopapeloueramirreais.

O relatório demolidor doCimi chegou aogabinete dopresidente daFunai emmarçode1975.Nessamesmaépoca,IsmarthmantevereuniõescomadireçãodoCimi, tantonaFunaiquantonasededoconselho,emBrasília.Oque fez tudodegringolarfoiapercepçãoequivocadadosmilitaresdequepoderiamcomprarosilênciodoCimi,segundoEgydio.Quasequarentaanosdepois,elerememorouoconfronto:

Ele[Ismarth]achouqueagenteiapararcomascríticas,iaparardelevantar

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osproblemas.Ecomooschefesdepostonãopodiamfazercertostiposdecrítica, nós tomamos as dores deles. E com isso os jornalistas tiveramconstantemente conteúdo também. […] Como continuou isso, o generalproibiu, fez exatamente o contrário. Foi a primeira repressão grande quesofremos.

Em abril, a Funai promoveu em Manaus um seminário denominado“Funai/MissõesReligiosas”— foi o segundo encontro do gênero; o primeiro,ocorridoem1972,emBrasília,nãotinhasidobemrecebidopelosmissionáriosdoCimi,quetiveramsuamanifestaçãotruncada.IsmarthfoiàsegundareuniãoacompanhadodeváriosdiretoresdeBrasíliaedeoficiaisdoComandoMilitardaAmazônia. Pelo lado dos missionários, compareceram representantes deprelaziasegruposevangélicosqueatuavamnaAmazônia.Foramcincodiasdedebates que pretendiam estabelecer “as bases de atuação conjunta” entremissionárioseFunai.16

A reuniãocomeçoucomo reconhecimentode Ismarthdequeo seminárioanterior não dera “participação ativa do missionário”. Também admitiu que“muita coisa” das resoluções do encontro anterior “não foram levadas emconsideraçãonemforamrealizadas”.

Umsérioproblemanosobjetivosdareuniãofoi levantadopordomMiltonCorreia, arcebispo de Manaus. Ele indagou por que nenhum índio foraconvidado para o evento. O general sugeriu simplesmente que os índios nãosaberiamoquedizer:

Sendoosemináriodeinteressedosindígenasamazônicos,talveztenhasidoesquecimento de nossa parte, que esses índios aqui estivessem presentes.Mas [para isso] eles teriam que ter plena consciência do trabalho a serdiscutido e debatido, talvez nem houvesse um resultado positivo com apresençadessesíndiosaquiemplenário,anãosermesmoapresençadeles.

Poucasvezes ficou tãoevidente avisãonegativaqueoprincipalnomedaFunaitinhaarespeitodacapacidadedereflexãodosíndiossobreseusprópriosproblemas. Porém, enquanto o general dizia que a presença dos índios era

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irrelevante, as assembleias conduzidas pelo Cimi fervilhavam de ideias econstatações.

UmmêsdepoisdoseminárioedoisapósorelatóriodeEgydiosobreosíndiosnosuldopaís,aditadura tomouaprimeiramedidasériapara tentar impedirotrabalhodoCimi.Emcartaenviadaaopresidentedoconselho,Ismarthafirmouquehavia “procurado adotar umapolítica de abertura, leal e franca”,mas querevisavasuaposiçãoapartirdali.“Sentimo-nos traídospeloprocedimentoquevemadotandoesseconselhoemrelaçãoaoórgão.”17

A suposta “traição” era uma só, Ismarthdeixou claro: as reuniões comosindígenas.Ogeneraldissequeelasocorriam“semqueaFunaitenhasequersidoconvidada” e que ele não era informado sobre “os resultados encontrados”.Decidiuentãorevogartodasasautorizaçõesdelivretrânsitoemáreasindígenasconcedidas pelo órgão, condicionando qualquer ingresso futuro à “prévia eexpressa permissão” dele próprio. Assim, a ditadura pretendia cortar os laçosentreCimieíndios,demodoaestancarcríticasenotíciasnegativasnaimprensa.A proibição foi ordenada por escrito por Ismarth e deveria ser cumprida portodososchefesdospostosindígenasnopaís.

Emjunhode1975,Ismarthtambémproibiu,emofícioconfidencial,oingressodeCasaldáliga“emqualquerárea”sobjurisdiçãodaFunai.18Desde1967oCIEjá acompanhava “os acontecimentos no nordeste do estado deMato Grosso”,pois para aquela área convergia “grande soma de capitais” aplicados pelascompanhiasdedesenvolvimentocomprojetosaprovadospelaSudam.19

Casaldáliga não estava sozinho. Ao seu lado havia outros padres ativos,como o francês François (noBrasil, Francisco) Jacques Jentel e os brasileirosAntônioCanutoeJoãoBoscoPenidoBurnier.

JenteljáatuavacomosindígenaseposseirosnaregiãodoAraguaiaantesdacriação do Cimi. Ele havia criado uma cooperativa agrícola que adquiriaprodutosdosposseirosedeíndiostapirapé.AscomarcasdeBarradoGarçaseLuciara eram palco de inúmeros projetos agrários apoiados com recursos daSudamapartirde1967.Achegadadosempreendimentosimplicavaatomadade

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possede terras,oqueatingiadireitosdepequenosprodutorese lavradoresquealiviviam.ACompanhiadeDesenvolvimentodoAraguaia (Codeara)adquiriu196,8 mil hectares na zona rural de Luciara e deu início a um projeto deurbanização do povoado de Santa Terezinha. A empresa precisava daconcordância dos posseiros para que fossem removidos para outras áreasindicadas por ela. O governo depois reconheceu que o povoado “achava-seencravado” na gleba antes da chegada da Codeara, assim como “inúmerosposseirosespalhadospelaglebainteira”.20

De104posseiros,apenas43assinaramocontrato.Jentelcumpriuopapeldeporta-voz das demandas dos posseiros. Além de criticar os acordos entreCodeara e posseiros, o religioso também alegou que cinco lotes do povoadopertenciamà“MissãodoTapirapé”,nomedotrabalhomissionáriodesenvolvidojunto aos índios homônimos, e passou a construir neles uma escola e umambulatório.ACodearaprimeiroquisdoar5milhectaresparaosposseiros,masnemtodossemudaramparaanovaárea.Depoistentouimpediracontinuidadedas obras do padre. Dias após uma discussão com Jentel, um empreiteirocontratadomandou que um trator destruísse “parte dos alicerces do prédio doambulatório,umpoçoealgumasbananeiras”.21

Comoataque,osânimosseexaltarameosposseirosseuniramemtornodeJentel. Informaçõessobredistribuiçãodearmaseconstruçãode“fortificações”no povoado— cinco trincheiras escavadas no solo, preparadas para resistir anovas investidas da Codeara — chegaram ao conhecimento da Secretaria deSegurançaPública,quemandouparaládoiscapitãesecincosoldadosdaPolíciaMilitar. No dia 3 de março de 1972, os policiais tiveram a péssima ideia dechegaraolocalacompanhadospelogerentedaCodeara,JoséSilveira,eoutrosfuncionários da empresa. O grupo foi recebido com uma “saraivada de balasperdidas de todas as direções ao redor da construção” erguida pelo padre.Ospoliciaisresponderamcomtiros.Passadosalgunsminutosdetiroreio,houveumcessar-fogo para socorro aos feridos, levados a hospitais da região. Nos diasseguintes,negociaçõesentreJentel,apolíciaeaCodearatentaramsolucionaroconflito.Segundoapolícia,até283posseirossereuniramnapraçapúblicaparaacompanharosencontros,“sobcomandodopadre”.

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Onúmerocorretodevítimasdoconfrontoéimpreciso,havendorelatosnãoconfirmados na imprensa de até catorze mortos, enquanto um relatório dogovernoapontouseteferidos.UmdocumentodaCodeararegistroutambémseteferidos,comquatroemestado“maisgrave”.22

OprocessocontraJentelcorreu rápido.Umanodepois,ele foicondenadopelaJustiçaMilitaradezanosdeprisão,presoelevadoaumquarteldeCampoGrande.Nojulgamento,umatestemunhaapresentadapelosmilitares,LuciaDiasde Oliveira, disse ter ouvido o padre mandando atirar contra o pessoal daCodeara.23Apósficarumanopreso,opadreconseguiuumavitórianoSuperiorTribunalMilitar.A corte reconheceu que seu caso deveria ter sido julgado naJustiça comum, não militar, e determinou sua imediata soltura. Dias depois,JentelembarcouparaaFrança.Nofinalde1975,eledecidiuregressaraoBrasil.Foipresodenovoe,dessavez,expulsodopaíspeladitadura.24

Jentelnuncamaispôdevoltaraotrabalhoindigenista.ElemorreunaFrança,em janeiro de 1979, aos 57 anos, de câncer renal. 25 Em nota, Casaldáligaacusou:“ARevolução teráqueseenvergonhardemaisumcrimedecovardia,portercondenadoJenteladezanosdeprisãoefinalmenteaoexílio”.26

Noiníciode1976,opadreJoãoBoscoPenidoBurnier,vinculadoàprelaziadeSãoFélixeamigodeCasaldáliga,passouaserumdosprincipaisnomesdoCimiemMatoGrosso,nocargodecoordenadorda regiãonortedoestado.Nascidoem Juiz de Fora (MG ) em 1917, Burnier foi aluno do seminário na ilha dePaquetá,noRio,de1928a1933.EstudouemRoma, integrou-seàordemdosjesuítasetrabalhounaformaçãodenoviçosaté1965.Noanoseguinte,chegouàprelaziadeDiamantino(MT).SeutrabalhonocampoindigenistasedavacomosXavanteeosBakairi.27

OsertanistaOdenirPintodeOliveiraconviveucomBurniernumaépocaemque ambos estavam empenhados em retomar, para osBakairi, terras ocupadaspor fazendeiros. Morando numa reduzida área de 6 mil hectares, elesreivindicavam 36 mil hectares. Estavam espalhados em várias fazendas, ondeforamtrabalharparaosustentodiário.OprincipaltrabalhodeBurnier,segundoOdenir,foireunireincentivarosíndiosapersistiremnacausa.

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Osúltimosdiasdevidadopadreforamdestinadosaosíndios.Entre4e6deoutubro de 1976, ele deixou São Félix em companhia de Casaldáliga paraparticipar de um encontro anual com missionários indigenistas na cidade deSanta Terezinha. Encerrada a reunião, foi visitar a aldeia dos Tapirapé, ondeconversou sobre seus problemas e pernoitou. Na manhã do dia 11, ele eCasaldáliga foram de ônibus, o Expresso Xavante, à cidade de RibeirãoCascalheira,que,nodia,seguinte,estariaemfestapelapadroeiraNossaSenhoraAparecida.Pelamanhã,Burnier acompanhouumaprocissãoatéum riacho,doqual recolheu e benzeu um pouco de água para os batismos que seriamrealizadosnodiaseguinte.28

Porvoltadasdezenovehorasdodia11,osdoisreligiososforaminformadossobretorturasquetrêsmulhereseumhomemestavamsofrendonodestacamentodaPolíciaMilitarda cidade.Uma semanaantes, umsoldadodaPM lotadoali,FélixPereiradeCastro,haviasidoassassinadoquandoprendiaduaspessoassobacusaçãoderoubo.Oparentedeumdosdetidostinhaseaproximadoelhederaumtironorosto.Armados,osautoresdocrimenãopermitiram,porcercadesetehoras,quealguémseaproximassedocorpo.Nofinaldodia,fugiram.UmgrupodePM s foideslocadodacidadedeNovaBrasíliapara auxiliarnasbuscas aoscriminosos.APMentãoprendeuquatroparentesdossuspeitosepassouaexigirqueentregassemoparadeirodeles.29

MargaridaBarbosadaSilva, de54anos, era irmãe tiados acusadospeloassassinato. Ela disse depois ter ficado mais de 24 horas presa e semalimentação.Porhorasafio,osPMsaobrigaramaficar“ajoelhadanumatampade garrafa que estava sobre uma lata vazia de guaraná em líquido, e com osbraçosabertos”.QuandoMargaridabaixavaosbraçosparatentardescansá-los,ospoliciaislheapontavamorevólverparaquevoltasseàposição.Margaridafoitambém “torturada com agulha de costurar que foi introduzida nas unhas dasmãos,nosbraços,nopeitoenopescoço”,alémdeserespancadanacabeçacomcassetetes.

Santana Rodrigues Barbosa dos Santos, de 23 anos, mulher de outro dosacusados, tambémdisse tersidoespancadanoxadrezdadelegaciaeameaçadapelospoliciais,que lheencostaramumrevólvernacabeçaeoutronopescoço.

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JoséAntôniodaSilva,de33anos,dissetersidoespancadocom“tapasviolentosnaregiãodoouvido”,“borrachadasemcimadosrins”e“torturadocomagulhadecostura,novãodaunhaemseusdedosdamão”.

OexamedecorpodedelitodeMargarida, feitodepois,confirmou“lesõescircularesemambososjoelhos”e“edemasemambasasmãos”.Àperguntaseforampraticadosporalgummeio“insidiosooucruel”,omédico-legistaanotou:“Tortura”. O exame de José Antônio identificou lesões em dedos da mão,também produzidas por “tortura”. Sobre o instrumento utilizado, o peritoescreveu: “Agulha”. Em depoimento posterior, o próprio comandante da PMlocal, cabo Messias Martins dos Reis, reconheceu que seus soldados usaramagulhase“tampasdegarrafadecerveja”natorturadospresos.

Procuradospor“váriosmoradoresquedavamnotíciasdasarbitrariedadesdapolícia” e das torturas, 30 Burnier e Casaldáliga rumaram para a frente dodestacamentodaPM,ondecomeçaramapedirexplicaçõesaospoliciais.Nesseinstante,umsoldadodaPMretiravadeumacamioneteumporcoselvagem,quepelojeitoseriausadoparanovastorturasdentrododestacamento.Oqueocorreuem seguida foi testemunhado por várias pessoas, cujos depoimentos contêmapenas pequenas discrepâncias entre si. Os dois religiosos se identificaram epediramaocabodaPMJuracyPedrodaSilvaalibertaçãoimediatadospresos.Ocaborespondeuqueissosóocorreriamaistarde.Burnierexibiuumdocumentodeidentificaçãoparaprovarqueerapadre.OsoldadoPMEziFeitosaRamalho,31de25anos,deuumtapanamãodele,derrubandoaochãoasuaidentificação.Emresposta,opadredeuumempurrãonosoldado.AnunciouentãoqueiriaatéBrasíliadenunciaraos jornaisas torturase indicariaosnomesdospoliciais.OcaboMessias tentou conter Ezi com umamão, mas ele se esquivou, deu umpassoà frente, sacou seu revólver calibre38,deuumabofetadano rosto,umacoronhadae,porfim,umtiroàqueima-roupanacabeçadeBurnier.Temerososde represáliasdapopulação, todososPM sdeixaramacidadenamesmanoite.Ezi se entregou ao comando da corporação três dias depois. Em depoimento,alegou que o cabo Juracy recebera do padre um soco no rosto, o que não foiconfirmadopornenhumatestemunha,equeodisparotinhasidoacidental.

Como tiro,Burnierdesabou“semdarumgrito”,masaindavivia.Ele foi

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colocadonumacamionete,levadoaohospitallocale,delá,seguiuemaviãoparaGoiânia,ondefoiinternadonohospitalneurológicoeacaboumorrendonofinalda tarde do mesmo dia, aos 58 anos. Ao longo do atendimento médico, eletrocoupalavrascomCasaldáliga.

DuranteastrêshorasdelucidezqueaindaviveuopadreJoãoBosco,depoisdo tiro, conversou bastante conosco, os que o acompanhávamos.Repetidamenteassumiu,comgenerosidade,oseusofrimentoeamorte,quepreviu,pelosíndiosepelopovo.Foramtrêshorasdemeditaçãoemvozalta.[…]Lembrou-sedoCimi,lamentouparticularmentenãotertomadonotadeumbate-papo[...]quetivemostrêsdiasnaaldeiatapirapé,comosíndios.32

Quase quarenta anos depois, Casaldáliga lembrou que, quando eleschegaramaodestacamento,ospoliciais

nosxingaramde“padrescomunistas,subversivos”.Eraumalutaarriscada,otrabalhodadiocese.[…]Aprelaziaeraoinimigopúbliconúmeroumdarepressão.Éramosvigiados,amaldiçoados.Eopovosimpleseraobrigadoasecalar.Nãotinhamuitachance,poisarepressãocaíaemcima.33

No curto espaço de dois anos, Casaldáliga teve um amigo expulso, Jentel, eoutro assassinado,Burnier.Outra amiga do bispo foi alvo da ditadura: a irmãMercedesSetem,nascidaem1940emRiodasPedras(SP)eadmitidanaFunaiem junho de 1974 na função de enfermeira do Hospital do Índio do ParqueIndígena doAraguaia, na ilha doBananal.Nomesmo local, a FAB tinha umabasedeoperaçõesepistadepouso.

Mercedes entrou namira dosmilitares após a visita do general Ismarth àlocalidade de Santa Izabel no final de 1974. Durante a visita, o general “foicercado pelos índios e, a par de uma série de reivindicações, foi duramenteinterrogadopelosmesmos”.34OsKarajáqueriamsaberporqueaFunaiestavavendendo tantos bois na ilha. Logo depois, furtaram pedaços de carne doaçougue da entidade e jogaram a culpa no funcionário que cuidava doestabelecimento.

No início de 1975, escaramuças ocorreram entre índios e militares. Seis

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KarajátentaraminvadiracasadeumservidordaFABparaacabarcomumafestade aniversário. Um cabo da Aeronáutica “atirou para o ar”. Dias depois, umíndio embriagado agrediu um sargento em um bar na cidade de São Félix,acusando-odeusurparasterrasindígenas,negar-seaforneceróleocombustívelaosíndioseproibiravendadeálcool.Outroíndio“esbofeteou”ochefedopostodaFunai.

OsmilitaressuspeitavamqueMercedesestavainstigandoosíndioscontraaFAB.Areligiosatinhamesmomuitascríticasaosmilitares.EladenunciouaummédicodaFABqueumsargentohavia“espancadocovardementeumíndio”,queocomandantedodestacamentoderaordensparaagredir índiosqueestivessemembriagadosequeaFABserecusavaafornecerenergiaelétricaparaoHospitaldoÍndio.

Osmilitares iniciaram uma investigação sobreMercedes, acusada de “terperfeita ligaçãoe coincidênciadepontosdevista comobispoCasaldáliga”, epediramaretiradadairmãdailha.35OchefedaFunai,JoelMarcos,endossouas conclusões dos militares e pediu à direção do órgão, em Brasília, quemantivesseareligiosa“sobobservaçãooumesmoquesejaafastadadoHospitaldoÍndio”.

Ismarth designou “reservadamente” para investigar Mercedes o servidorCarlos Alberto Milhomem de Sousa, lotado em Brasília, a fim de queacompanhasseagentesdoCIEedoSNIemumaviagempelaregiãodoAraguaiade18a21demarçode1975.Paraqueosagentespassassemdespercebidos,aFunaiespalhouqueafinalidadedaviagemeraverificarasituaçãodeumprojetodebovinoculturadoórgão.SousaescreveuqueosKarajávinham“demonstrandocerta hostilidade aos trabalhos da Funai” e fazendo reivindicações “até entãodesconhecidas”.Oservidor,contudo,reconheceuqueconcorriaparaasituaçãoa“ineficiênciaadministrativa[daFunai]”.SousadissequeMercedesera“bastanteconceituada”entreosKarajáequesuacasavinhasendofrequentadaporalgunsíndios,“oquenoscausaestranheza”,poisseriam“justamenteosmaisrebeldes”.ParaSousa,havia“umsolapamentocontraospoderesedemodogeralcontraainiciativaprivada”.36

Poucos dias depois, Mercedes foi sumariamente dispensada do cargo de

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enfermeira por uma portaria da presidência do órgão. A Funai perdeu umafuncionáriacomcurrículoinvejável.Mercedesforaenfermeira-chefedoserviçodemedicina e instrutora de estagiários na Santa Casa deMisericórdia de SãoPauloentre1968e1971eprofessoradeenfermagemortopédicanaFaculdadedeEnfermagemSãoJosé.ElaprocurouopresidentedaFunaiparasaberasrazõesde sua dispensa, mas “o mesmo se recusou a prestar qualquer informação arespeitoemuitomenosenvolvendoonomedaAeronáutica”.37

***

Aspressões sobreCasaldáliga eramparte da rotina.ApoderosaConfederaçãoNacional daAgricultura (CNA ), que reunia osmaiores proprietários rurais dopaís, enviou ofício ao gabinete do general Ernesto Geisel assinado pelopresidentedaentidade,FláviodaCostaBritto—em1970elefoieleitosenadorpelagovernistaArena,daqual se tornouvice-lídernoSenado.38Ele afirmouqueCasaldáligaera“oprincipalresponsávelpelasatividadessubversivasquesedesenvolvem naquela região”, numa atuação “provocadora, anticristã eantibrasileira”. Também acusou o bispo e seus “sequazesmarxistas-leninistas,infiltradosnaIgrejaCatólica”.39

OpresidentedaCNAaindaatribuiuàprelaziaa“manipulaçãodosindígenas”da região. “Elementos do clero vêm provocando uma situação altamenteexplosivanacolônia indígenadeMerureemunicípiosadjacentes,áreaemqueíndiosealgunsfalsosposseirossãoinstigadospelosprópriospadresàpráticadeinvasões.”

Merure, terra bororo emMato Grosso, foi o epicentro da segunda gravecriseaenvolverummembrodoCiminomesmoanode1976.

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18.OSSOSEPENAS

EMMERURE FUNCIONAVAAMISSÃODOS PADRES SALESIANOSdirigida entre 1973 e 1976 pelo padre de origem alemã Rudolf (no Brasil,Rodolfo)Lunkenbein, nascido em1939.1Ele conheceu oBrasil no final dosanos 1950, tendo estudado na Casa Salesiana de Campo Grande e feito onoviciadoemPindamonhangaba(SP).Doisanosdepois,regressouàAlemanha,ondeseordenoupadreemBenediktbeuern.EmseguidavoltouaoBrasileaosBororo de Merure. Sua meta, dizia aos familiares, era se dedicar à vidamissionária,atraídopelodesafiodecombatera“pobrezareligiosaematerial”.2

OmarechalRondonfezasprimeirasdemarcaçõesdaterraindígenaTeresaCristina em 1895. Sete anos depois, os salesianos criaram a missão entre osíndios.Nosanos1950e1960,oterritóriobororosofreudiversasinterferênciasdo poder político local, que passou a invadir e ocupar a terra indígena, comapoiodogovernoestadual.Como territóriocadavezmenor,osBororo foramsendoacuados,oqueprovocouaumentoexplosivodealcoolismo,mendicânciaedesagregação social. Após o surgimento do Cimi, porém, padres comoLunkenbein passaram a defender a antiga reivindicação dos Bororo dedemarcação de uma área de 80 mil hectares, uma região já ocupada porfazendeiroseposseiros.

EleitoparaadiretoriadoCimiem1972,Lunkenbeinteveparticipaçãoativanas discussões e trabalhos promovidos pelo conselho desde a sua fundação. 3Emabrilde1974,foiumdosmissionáriospresentesàprimeiraassembleiadoschefes indígenas ocorrida em Diamantino (MT ), na qual também estiveramlíderesbororo.4

Nofinalde1974,onúncioapostólicodoBrasil,domCarmineRocco,foia

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Merureparacelebrarumamissa.Diasdepois,oentãopresidentedoCimi,JoséVicenteCésar,declarouàimprensaqueosBororotinhamdireitoàssuasterraseaconselhouposseirosadesistiremdacausa.NoNataldomesmoano,250Bororoanunciaramqueiriamabraçar“acomunidadecristã,consagrando-seaJesus”.5

Nomêsseguinte,osBororomataramseisboisetrêscavalospertencentesaofazendeiroJoséDavi,alémdelhedaremumultimatoparaquedeixassearegião.A notícia foi espalhada em Brasília por um representante do Cimi. Com achegada da imprensa à região, os índios se deixaram fotografar com arcos eflechas.6

A presidência da Funai mandou criar um grupo de trabalho, em portariaconfidencial assinada por Ismarth. O presidente da equipe era Lunkenbein—tambémparticiparamodelegadoregionaleumantropólogo.7

OpadresalesianoMarioBordignon,nascidonaItáliaem1946,chegouaoBrasil em 1973 e logo se integrou ao Cimi. Como o pessoal do conselhosuspeitavaquecartasenviadaspelosCorreiosvinhamsendoabertaselidaspeladitadura,Bordignonfaziaopapeldepombo-correio,circulandoentreasdiversasmissões de Mato Grosso para receber e entregar mensagens entre osmissionários ou acompanhar as viagens de inspetores salesianos. Assim eleconheceuLunkenbein,noaugedarebeliãodosBororo.8

Osfazendeiroseramacusadosdeestenderseusdomíniosàforça,lançandogadosobrelavourasdosBororo.DoiscaciquesenviaramcartasàFunaiparaprotestarcontra as invasões. Segundo o Cimi, o delegado interino na região, AronyRibeiro,entrouemcontatocomamissãosalesianaparadizerqueoórgãonãogostara da atitude dos índios e sugeriu que Lunkenbein fosse retirado docomandodamissão.OpadreIasifoiatéRibeiroparareclamardaintromissãodaFunainosassuntosdossalesianos.9

Lunkenbeinacusoufazendeirosdetentarderrubarmatasemterrasindígenasnos anos de 1955 e 1974, citando o proprietário rural José Antônio GuedesMiguez.ElehaviaadquiridoafazendaGameleira,de1296hectares,porvoltade1973,comocontouseuirmãodepoisemumlivro,ehaviachegadoàregiãoporvoltade1969,vindodeRioVerde(GO).ComempréstimostomadosnoBanco

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doBrasil,Miguezcomeçouaconstruirasedeefazeramediçãodoslimitesdapropriedade.Lunkenbeineosíndiosforamàfazendaparapedirqueeledeixassea região. Como o fazendeiro não recuou, passou a ser intimado pela PolíciaFederalepelaFunaiadarexplicações,oqueoobrigouafazerviagens“de550quilômetros”.MiguezouviudeumassessordoórgãoqueasterrasdaGameleiraeram “área de perambulação dos índios bororo. Eles têm o animus de possedaquelaáreatoda”.AreaçãodeMiguezteriasidoabrirumsorriso.

Os índiospassaramaatacarematarogadodaGameleira.Miguezenvioutelegramas a diversas autoridades, entre as quais o generalGeisel. Segundo ofazendeiro, os índios eram “insuflados” pelos padres Lunkenbein e GonçaloUchôa. Ele também acusou Lunkenbein de andar armado, com uma “pistolacalibre3.65,marcaLignose,canocurto,caboplástico”.10

Os fazendeiros afirmavam que os salesianos haviam comercializado, nopassado,terrasdeindígenas.Emmarçode1976,Uchôareconheceuocomércio,masalegouqueaIgrejaassimagiraparaevitarinvasõesdaáreaporterceiros,ouseja, disse que a Igreja passara a ser dona de terras dos índios para melhorcontrolá-las.11

A tensão na região era alarmante.Aos trancos e barrancos, a demarcaçãocaminhou. Os trabalhos ordenados pelo grupo de trabalho, chefiado porLunkenbein, foram realizadosporBororo ao ladodos topógrafosdaFunai.12Emumacartade18demaio,oreligiosoescreveuaseuspais,quemoravamemDörinsgstadt.Suaspalavrasdepoisadquiriramtomprofético.

Dentrodeumoudoismesesseráefetuadaamediçãodareservaindígenae,então, toda a população branca será judicialmente solicitada a deixar aregião.Poderáacontecerquenessesdiashajatiroteio.Algunsjáameaçaram.Portantoseráumanomuitoagitadoparanós,masestamossemprenasmãosdeDeusefazendotudoparaevitarinjustiças.13

A pressão dos índios e salesianos começou a fazer efeito. Emmeados de1976,estavabemavançadooplanoderetiradadosposseirosefazendeiros,quedeveria ocorrer logo após o fim da demarcação, cumprida por três turmas deBororoetopógrafos.Atéqueosfazendeirosreagiram.

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Na manhã do dia 15 de julho, o topógrafo Sebastião Cordeiro de Paula,funcionário da firma contratada pela Funai, trabalhava numa das picadas commaisquatroíndiosedoisajudantes,quandocercadesessentahomensarmadosseaproximaramemsetecamionetes.Paulaosreconheceucomofuncionáriosedonosde fazendasda região.A turmade topografia foi rendidae levadaaté asededaMissãoMerure.Umairmãsalesiana,Rita,estavanacozinhaquandooshomenschegaram,perguntandoporLunkenbein.

Quando o alemão apareceu, houve uma conversa amena, mas depois ofazendeiroJoãoMarquesdeOliveira,conhecidocomoJoãoMineiro,passouagritar, chamando Lunkenbein de “ladrão de terras”. O padre Uchôa tentouinterferirefoiagredido.UmgrupodeBororointerveioparasepararLunkenbeinda confusão. Nessemomento, vários tiros foram disparados. Rita viu o padrereceber um tiro na barriga e “mais cinconopeito”.OBororoSimãoCristino,que tentavaajudaroreligioso, tambémfoiassassinadocomumtiro.AmãedeSimão, Tereza, correu em sua direção e foi baleada. Outros quatro índios,incluindoocaciqueLourençoRondon,ficaramferidos.Aimprensaregistrouqueum adolescente “civilizado”, Aloísio Bispo, também morreu no conflito, emcircunstâncias não esclarecidas. Houve relato de que os próprios posseiros oatingiramcomumtiro,porengano,duranteaconfusão.14

Nolivroqueescreveuemdefesadoirmão,oadvogadoJoséMarioGuedesMiguezapresentouumaversãoumpoucodiferente.Segundoofazendeiro,umpouco antes dos tiros, que ele não soube dizer de onde partiram, os índioscercaram e derrubaramMineiro . Miguez viu o padre aproximar-se, mas nãosoubedizer seeraemdefesado fazendeirooudos índios.Reconheceunão tervistoopadreportandoarma.Edisseque,nahoradostiros,escondeu-seatrásdeumacamionete,oqueprejudicousuavisãodotiroteio.15

Lunkenbein morreu na hora. A embaixada da Alemanha reclamou seucorpo,mas os índios quiseram antes fazer um funeral de despedida.16Nesseritual, longo e cheio de detalhes, um dos mais notáveis da cultura bororo, aprincípioocorpoéenroladoemumaesteiradepalhaeenterradonumacovarasanocentrodaaldeia.Aolongodedias,osíndioscantam,dançamepodemfazercorridascom torasdeburiti.Depoisde semanas,quandosevêqueacarnedo

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corpo já se decompôs, os ossos são limpos, lavados, colocados em um cesto,ornamentadoscomurucumepenas,postosemumabandejadepalhaedepoisemoutrocesto.Asmulhereschoramesemachucamcomobjetosdecorte.Sóentãoháoenterrodefinitivo.17

AsmortesdeLunkenbeineSimãoestimularamoCimiacobrarjustiçaechamaratenção para a causa dos índios. Seriam “mais um sinal de que os índios doBrasilviverãovencendoosquedesejamsuaextinção”.“Nenhumaforçadeteráadeterminação de um povo consciente e unido. Os índios estão se unindo elutando.”18

Àquelaalturadadécadade1970,ocomandodaFunaieoCimiestavamembatalhaaberta.OsjornaisregionaisnãorarodavamespaçoaopadreIasi,quandoelepassavaemviagem.Em1975,emManaus,IasidisseaojornalACríticaquea entidade sofria de “uma macrocefalia institucionalizada, e seus burocratasconstituemogrupodegente inútil,maisbemremuneradodopaís”.ACâmaraMunicipal aprovou uma moção em favor do general Ismarth e do sertanistaApoena.19Conseguiu-seunirosdoisladosdoespectropolíticopermitidopeladitadura:amoção foiassinada tantopelo líderdoMDB ,FábioLucena,quantopelolíderdaArena,ViniciusConrado.

AopassarporAquidauana,noentãoestadodeMatoGrosso,paramaisumencontro de líderes indígenas, Iasi declarou ao jornalDiário da Serra que “oíndio está oprimido e não confia na Funai”. Emofício confidencial enviado aBrasília,omajordoExércitoAlbertoVerlangierideCastro,delegadoregionaldaentidade,dissequelevouanotíciasobreareuniãoaoconhecimentodos“chefesdos órgãos deSegurança e Informações doEstado”, Polícia Federal e agênciaregional do SNI . Verlangieri recebeu como resposta a informação de que osórgãosde informaçãoenviaram“umemissáriosecretoàquelacidade,para finsdeobservação”.20

O agente secreto depois entregou àASIda Funai uma fita cassete de umaentrevistaconcedidapelosacerdoteàimprensanoevento—oquesugerequeoagentedosmilitarespodetersepassadoporjornalista.Naentrevista,Iasidissequeoórgãoassistia“passivamente”àmortedoíndio.“Eporissoeupropuslá

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[emManaus]queasiglaFunaifosselidaFuneráriaNacionaldoÍndio.”Para quebrar o sigilo das reuniões mantidas entre Cimi e indígenas, pelo

menosumavezo serviçode inteligênciadaFunai sevaleude informaçõesdemembros do próprio clero que não apoiavam os missionários. 21 Quando oconselhomarcouum“cursodeformaçãodepastoralindigenista”comíndiosemIjuí (RS ), o bispo de Frederico Westphalen, dom Bruno Maldaner, pediuautorizaçãoaoarcebispodePortoAlegre,domVicenteScherer,paraenviaraolocalumdiácono,AntônioRabeloNascimento.Embilhetemanuscrito,Schererdissequenãotinha“nadaaopor”aqueodiácono“prestecolaboraçãonessaeem outras dioceses nas atividades a favor da população indígena”. Um ofícioenviadodeCuritibaaBrasíliapelodelegadoregionalFranciscoNevesBrasileiroafirmaqueasinformaçõessobreoencontrodoCimiforamobtidascomo“frutodosnossosentendimentosemPortoAlegrecomorepresentante[…]deVicenteScherer e outras colhidas pelos chefes” da Funai. 22 Em carta, o diáconoNascimentodissequeocurso foi feito“aportas fechadas,quaseque secreto”,em um “clima de tensão e medo”. Quando chegava um jornalista da região,índiosepadres“escondiam-se, àsvezesatéde forma ridícula,ouocultavamorosto ou viravam as costas quando alguém batia fotos”.Nascimento chegou aconclusões alarmantes sobre os propósitos do Cimi. Para ele, os religiososqueriam“concretizarseusideaissocialistasnoBrasil”.

Parasaberdasdiscussõessigilosas,aditaduratambémpodiapressionarosíndiosaentregarinformações,comoorientouIsmarthemcartaconfidencialenviadaaoassessor-chefe da ASI da Funai em 1976. O general foi informado de que acúpuladoCimiestavareunidaemRioBrancoem“carátersigiloso”ecomdoisíndiosdaregiãodorioPurus.

Outraestratégiaelaboradapeladitaduraeraa infiltraçãodemilitaresentreos religiosos. Em carta confidencial dirigida ao general de brigada FranciscoBatista Torres deMelo, comandante de uma brigadamilitar emMatoGrosso,Ismarth se disse preocupado com “o recrudescimento da atuação da alaesquerdistadaIgrejanasáreasindígenasdeMatoGrosso”,citandoCasaldáligaeBalduíno.IsmarthsugeriuqueMeloexecutasseumaoperaçãode“infiltraçãode

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umelementodabrigadanaáreadaMissãoSalesianadeSãoMarcos”.“Paranãodespertar suspeitas”, o agente portaria “uma carteira funcional de servidor daFunai”.Emresposta,MelodissequeapoiavaaideiaeiriaacionarumaseçãodoExército de Aragarças, em Goiás. 23Muitos anos depois, Melo disse não selembrar da troca de informações com Ismarth. 24 Ele foi o comandante daPolíciaMilitardeSãoPauloentre1974e1977.

Passadas quase quatro décadas, Casaldáliga disse que ele e outros padresdescobriram, nos anos 1970, que na prelazia de São Félix havia um homemligado aos militares infiltrado. Ele se apresentou como voluntário. Poucassemanasdepois,porém,levantoususpeitaspelohábitodeconversarmuitocomos políticos locais. Quando os religiosos fizeram chegar a ele suasdesconfianças,ohomemdesapareceu.Ficaraapenasdoismesestrabalhandonaprelazia.Casaldáligadissequedepoissesoubequeele“respondiaaoComandoMilitardaAmazônia”.

A ditadura trabalhou para acuar Iasi. Em junho de 1975, o ministro doInterior, Maurício Rangel Reis, emitiu um aviso confidencial ao ministro daJustiça, Armando Falcão, para pedir “providências cabíveis” sobre outradeclaraçãodoreligioso,quehaviaditoqueofilho“doministrodoInterior”tinhainteresseemáreanoGuaporé,pertodosNambikwara.25APFabriuinquéritoeintimouIasi.Opadredisseentenderque“oproblemaindígenanãoterásoluçãoenquantohouver jogode interessesentreos índioseosgrandesproprietários”,masesclareceuquesereferiraaoex-ministroCostaCavalcanti,enãoaRangelReis.SegundoIasi,ofilhodoex-ministrotinhaligaçõessocietáriascomaSapéAgropecuária,quehaviaobtidodaFunaiumacertidãonegativasobreapresençadeíndiosnaregião.OmesmoassuntofoireferidopeloantropólogoDavidPrice,que tinhauma largaexperiênciaemtrabalhocomosNambikwara.“Deacordocom fontes confiáveis, JoséCostaCavalcanti, que na época era oministro doInterior, tinha um interesse pessoal na propriedade localizada no Vale doGuaporé”,26daqualforamretiradosíndiosporvoltade1968.EmdepoimentoaoCongressoNacional, o ex-presidentedaFunaiQueirósCampos reconheceuqueoórgãoencontroutrintaNambikwaranamesmaáreadacertidãonegativa,masnãosoubedizerseoempreendimentoeraligadoaofilhodoex-ministro.27

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Depois de maio de 1975, quando Ismarth decidiu revogar as autorizações deingresso dos missionários do Cimi nas áreas indígenas, os missionáriosprocuraramdescumpriraordem,entrandonasterraspormeiodeseuscontatoscomindígenasecomchefesdepostos,comolembraramCasaldáligaeIasi.Emjaneirode1976, Iasi tentou entrar na áreakaingangueBarãodeAntonina, emSão Jerônimo da Serra (PR ), mas foi barrado pelo chefe do posto da Funai,ValdirEvangelistaAraújo.Opadreprocurouosjornaisdaregião.28Voltouaserbarrado e teve suamáquina fotográfica apreendida na área de Tamarana pelochefedoposto,GetúlioCoutoPereira.IasidisseaumjornaldeLondrina(PR )queaFunaiera“ummonstrodeenormecabeça,mascompésdebarro”.29Diasdepois,omesmojornalpublicouumaameaçadeIsmarth.Ogeneralafirmouqueiriaemitir“ordemdeprisão”contraquemtentasseentraremáreaindígenasemautorização.30

A ditadura também se voltou contra outro padre, Nello Ruffaldi, queorganizou a primeira assembleia do Cimi com os indígenas da região doOiapoque, no Amapá, na aldeia do Kumarumã, em setembro de 1976. NellonasceunacidadedeCastell’Azzara,naItália,em1942.Foiordenadopadreem1967etrêsanosdepoisveioparaoBrasil,primeiroparaaprelaziadeMacapá,depoisparaadoOiapoque.31ComacriaçãodoCimi,tornou-seocoordenadorregional Norte II , “representando os bispos do Pará-Amapá na pastoralindígena”.Nello passou a visitar e a prestar assistência a índios de umavastaregiãodaAmazônia,naqualosserviçosdaFunaierammínimosouinexistentes.NaaldeiadosKaripunadaVilaEspíritoSanto, por exemplo, nemhaviapostoindígena; o órgão era representado por “um alfaiate, ex-militar”. O padreencontrouasáreasindígenas“habitualmenteinvadidasportodasortedepessoas:negociantes e traficantes, que além de explorar os índios nos preços dasmercadorias, introduziam cachaça em grande quantidade”. Os “civilizados”entravam nas aldeias para promover festas e “se aproveitavam das mulheresíndias”.Osindígenaseramvistos“cominferioridade,quandonãocomdesprezopelapopulaçãoenvolvente”eacabavam“aceitandoessamentalidade”.Sentiam-se “envergonhados das próprias tradições, da língua, da comida e até dosprodutos deles”. Para o padre, os índios procuravam imitar os “civilizados”,

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“achandoqueaúnicaformadepromoçãoeratornar-secomoeles”.Nello iniciou um trabalho de revalorização do índio, muito embora nem

soubessecomofazerissoaocerto.Elesedisse“‘impreparado’paraenfrentarasituação”.

Eunemsabiaqueexistiampovosindígenasnaminhaparóquia.[…]Oquemeajudoumaisfoiavontadedeouvireconhecerestespovos;adisposiçãodeseraluno,maisdoquemestre;acapacidadedeolharalémdasaparênciase descobrir que estes povos ainda tinham alma , que escondiam valoresprofundosquecustavamamorreredesaparecerapesardecincoséculosdetentativas.32

Comremédiosdoadospelaprelaziaeporitalianos,alémdegasolinadoadapelaColôniaMilitardoOiapoque,opadreeosmilitareslocaiscontrolaramumaepidemiadecoqueluche“emquedezcrianças[karipuna]jáhaviammorrido”naaldeiadoKumarumã.Nellocriouumacooperativaparaosíndios,paracortarafigura do atravessador, que cobrava preços extorsivos dos índios por produtostrazidosdacidade.Ocapital inicialdacooperativafoiumadoaçãodaItália.Etodososíndiosadultoscontribuíamcomvintequilosdefarinhapormês.

Paraopadre, opovo indígenada região estava “ressuscitando”.Mas tudomudouquandoeleorganizouaprimeiraassembleiadoCimi,em1976.Areuniãofoi“histórica”,segundooKaripunaLuísSoaresdosSantos,poispelaprimeiravezKaripuna,PalikureGalibsereunirampara“discutirosproblemasdosíndiosetomarresoluções”.

Na reunião, os índios decidiram fiscalizar por conta própria os limites daterra.MandaramcartaaopresidentedaFunaicom“umpedidodefundamentalimportância para a nossa subsistência: a demarcação da nossa reserva”. Elesestavampreocupadoscomos impactosquesofreriamapartirdaconstruçãodeumarodovianaregião,aBR-156.

O Karipuna Álvaro Silva também enviou uma carta ao general Ismarth,dizendoqueosíndiostinhamsido“completamenteabandonadospeloSPI”,quesó aparecia “na época das eleições para pedir nosso humilde voto que sempreforaafavordogoverno”.ÁlvarodissequeaequipevolantedesaúdedaFunai

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passavanaregião,habitadapormaisdequinhentos indígenas,apenasumavezpor ano, sem transporte para casos urgentes, sem enfermaria e sem leito paraenfermos. Por fim, agradeceu a presença do padreNello. Desde sua chegada,disseoíndio,“opovoestáacordandoparaarealidade”.

Masnão foi assimque a atividadedoCimi foi compreendidapela cúpulamilitar da Funai. Ismarth enviou um ofício ao poderoso CSN para pedirprovidências.Segundoogeneral,opadre“interferianegativamentenaáreadopostoindígenaGalibi,jogandooíndiocontraaFunaiecontraoprópriogovernofederal”. Havia se tornado “uma espécie de coordenador da comunidadeindígena”.

Emmaiode1978,ochefedopostoindígenaUaçá,RaimundodoVale,disseàregionalemBelémqueNellohaviachegadoaolocalsemautorizaçãodaFunaie que pretendia ali permanecer enquanto fosse permitido pelos índios. Osacerdoteteriaditoaindaqueaproibição“contraoCimié[porqueaFunai]temeesclarecimentos de irregularidades que vem praticando contra os índios”. Osindígenas então se insurgiram contra a ordem da Funai,mantendo o padre naaldeia. O órgão em Belém escreveu para a direção em Brasília: “Índiosinsuflados pelo religioso deram-lhe total apoio, não permitindo sua saída.Situaçãomostra-sedelicada”.

AFunaiorientouValeaacionarapolícia.NomomentoemqueNellorezavaumamissa,combatizadosecasamentos,chegouumaequipedapolícia,“armadaderevólveresecomascartucheirascheiasdebalas”.Opadreporfimdeixouaaldeia no dia seguinte. Teve que prestar declarações à PF em Macapá, ondealegouqueaFunainãohaviacontestadosuaspregaçõesreligiosasatéocorreraassembleia indígena. Disse que apenas concordou com os índios que elesprecisavam tomar providências para defesa de seus territórios, constantementeinvadidosporcaçadores.33

Nello só conseguiu voltar a trabalhar nas áreas indígenas após umaintervenção da Igreja emMacapá. Três anos depois, porém, a Funai voltou aproibirsuaentradaemáreasindígenas.34

Nofinalde1976,orelacionamentoentreaFunaieoCimichegouaumponto

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insustentável, com notícias de que Ismarth se negava a receber em audiênciaqualquer membro do conselho. 35 Em dezembro, o general, em caráterconfidencial,pediuaodiretor-geraldaPFquedesse“umbastaaessasatividades”doCimi,taiscomo“oscontatosfeitosporesseselementoscomascomunidadesindígenas”.

O Cimi reconheceu por escrito “as tensões com o órgão oficial”, masrepudioua suspeitadequeestivesse instigandoos índioscontraogoverno.36Denunciou o empenho de Ismarth em isolar o conselho das missões e fazer“pressõessobremissionáriosparasedesligaremdoCimi,casoqueiramoapoiodaFunai”.

Alegandonãotersidoprocuradaparadarumaautorização,aFunaideterminouadissoluçãodeumaassembleiaorganizadaem1977peloCimi emSurumu, emRoraima, que contava com cerca de 140 indígenas representantes de 15 milMakuxi,TaurepangeWapixana.37NavastaregiãocobertapelaregionalsuldoCimi(SãoPaulo,Paraná,SantaCatarinaeRioGrandedoSul),osmissionárioseramproibidosdeentrarnasterrasindígenas,osíndioseramimpedidosdesairsem prévia autorização da Funai e “especialmente” proibidos de participar dereuniões e assembleias indígenas.Os que se atreviam a aparecer nas reuniõessofriam “repressão”, com a Funai “despedindo os que são funcionários,prendendo-os,ameaçandodetransferênciadareserva”.38

Em1976,obispodomMoacirGrechidenunciouaexistênciadegravadoresinstaladosnoprédioondese realizavaumaassembleiadaPastoral Indigenista.Um homem foi barrado ao tentar entrar com credenciais falsificadas na IIAssembleia Indigenista Regional da Amazônia. Em Dourados, dom TeodardoLeitz denunciou no mesmo ano o sequestro de “uma testemunha deirregularidadesfeitascontraíndios”—e,porterfeitoadenúncia,Leitzchegouaserpreso.AIgrejatambémregistrou,em1972,ainvasãoaumaáreadepossedaprelaziadeSãoFélix,ondefoi“destruídooambulatório,opoçod’água,árvoresfrutíferas,depredadoomaterialdeconstrução,destruídaamáquinafotográficacomaqualsetentavadocumentarofato”.

A repressão, é claro, não estava restrita ao Cimi nos domínios da Igreja.

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Entre 1968 e 1978, ela havia atingido 122 pessoas ligadas diretamente àhierarquia da Igreja, sendo nove bispos, 48 sacerdotes, treze seminaristas eirmãoseseisfreiras,alémdeprenderoutros273cristãosengajadosnotrabalhopastoral. Foram sete mortes, incluindo as de Burnier e Lunkenbein, novesequestros,21processos,dezexpulsões,comoadeJentel,edoisbanimentos.39

OtrabalhodoCimicomosíndioscobrouumpreçodosmissionáriostambémnocampo psicólogico.Umgrupo de teólogos reunido pela entidade para analisarrespostas a um questionário preenchido por 22 missionários encontrou“perguntas e inquietações” sobreo impactoda “encarnação”navidado índio,um dos pontos principais preconizados pelo Cimi: “A encarnação na culturatribalnãotraráperigosparaafé?Nãoseráequívocovalorizartantooíndioemrelaçãoànossacultura?”.Muitosmissionáriosse recusavama“usarosmitos”indígenas para falar do Evangelho.A dúvida era de natureza ética: “Poderá omitoserusadoautenticamenteporumaIgrejaquenãosejaautóctone?”.

Ogrupodeteólogosqueanalisouasrespostasconcluiu:“Namedidaemquesecolocadoladodoíndio,omissionáriosente-sequebrado,percebendoque,noladodosdominadores,perdeuascondiçõesdetestemunharaRevelação.Percebequeomundoporelerepresentadoéanegaçãodosvaloresqueeleanuncia”.40

Apesar dos percalços, o Cimi anunciou que havia o que comemorar. Suaprincipal missão parecia ter sido cumprida: “Os índios começam a assumir aconduçãodesualuta”.

A frente principal onde se trava a luta pela sobrevivência dos povosindígenasnãoestánosgabinetesdosórgãosoficiaisdeproteçãoaoíndioounasuniversidades,estánabatalhadiáriaporcadapalmodeterra,disputadapelos grupos indígenas aos invasores, grileiros, latifundiários, servidorescorruptosdaFunaiemesmoaospequenosposseiroslançadossobreasáreasindígenaspelosgruposeconômicos.

Essas palavras, do final dos anos 1970, ganhariam especial sentido nadécadaseguinte,mastambémpoderiamvalerparaopróprioseiodaFunai.

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19.“OUTROTIPODELUTA”

OS EMBATES ENTRE A DITADURA, O CIMI E OS LÍDERESINDÍGENASocorreramnamesmaépocaemquecomeçouumaondadecríticasàpolíticaindigenistaoficial,agoraformuladasporintegrantesdopróprioórgão,como sertanistas, técnicos indigenistas e antropólogos. Os interesses destes,porém,àsvezessechocaramcomosdoCimi.OpessoaldaFunaidesaprovavaotrabalho de catequese nas aldeias.Dizia que oCimi atrapalhava o trabalho doórgão ao instigar o índio contraogoverno.E, comoo conselhoorganizava ascríticas dos índios contra a Funai, isso também acabava afetando essesfuncionáriosqueestavamnapontadosistemaetinhamquelidarcomasnovascobranças. Na tarefa de coibir o Cimi nas aldeias, sertanistas críticos dafundação e a cúpula desta viveram uma curiosa convergência. Orlando VillasBôasdisse,porexemplo:“Sou totalmentecontrárioaquemissionários ligadosaoCimiounãomissionáriosfaçamreuniõesdessanatureza[entreíndios],semaparticipação, o conhecimento e a concordância da Funai […]. E não levavantagemnenhumaaoíndio”.1

Em1976, o indigenista José Porfírio Fontenele deCarvalho telegrafou deFeijó(AC)paraaFunaiemBrasíliaparainformarque“acabaradeexpulsardomeioindígenatrêselementosestranhosqueseencontravamaserviçodoCiminaáreadopostoindígenaAltoPurus”.2Elepediuporescritoquefossemnegadasfuturasautorizaçõesparatrabalhonaárea.3

ComportamentosemelhanteteveoindigenistaOdenirPintodeOliveira,quetestemunhara o quase extermínio dos índios panará. Como chefe do postoindígenadeSantana(MT),em1976,elebarrouaentradadeIasi,queestavasemautorização da Funai. Odenir alertou seu chefe de que “longe do intuito

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religioso,essesmissionários—particularmenteIasi—almejamnassuasvisitasmentalizaroíndiodanecessidadedeorganizar-secontraaFunai,emuitomaisque isso, contra o próprio regimegovernamental”.O sacerdote disse aOdenirqueacúpuladoórgãoeraconstituída“dealmofadinhas”equeogoverno“vemadotandomedidasodiosas,éumaditaduramilitar,formadapornãobrasileiros”.Odenir não gostou do que ouviu. “Diante de tais expressões de ideologiasubversiva, expulsei deste posto esse elemento nocivo, sem que, infelizmente,pudéssemos prendê-lo, porque não fez nenhuma resistência em abandonar oposto.”4

Anosdepois,OdenirfezaspazescomIasiecomoCimi,noqualchegouaocuparafunçãodeconselheiroeditorialdoPorantim.5Essejornalalternativode circulação mensal foi fundado em Manaus por membros do Cimi e pelojornalistaehistoriadorJoséRibamarBessaFreire,quetambémfoiseuprimeiroeditor, e logo se tornou um expressivo veículo de várias denúncias contra apolíticaindigenistadaditadura,umaverdadeirapedranosapatodosmilitares.Operiódicodivulgoumortesdecemíndiosyanomami,pormaláriaetuberculose,edeoutros85índiosdeninorioJuruá.Em1980,passouasereditadoemBrasília.6

OsertanistaApoenaMeirelestinhadadoentrevistasàimprensaparareclamardapolíticaindigenistanoiníciodosanos1970.Mas,emrelaçãoaoCimi,tambémcerrou fileiras com os militares. Em ofício confidencial ao chefe da ASI , nocargodedelegadoda8aDR,Apoenadisseque“enfrentavaproblemas”comosmembros do conselho, que junto com “ex-funcionários da Funai, agitam econflitam as áreas indígenas do Acre”. Um ano depois, em telegramaconfidencial,afirmouqueos“elementosdoCimivinhamtumultuandoasáreasindígenas”, acrescentando que os missionários “de real nenhuma contribuiçãolevamaosíndios”.

OsertanistaacaboualvodoCimi.Missionáriosbem-humoradoselaboraramumapeçadeteatrodenominadaAgrilagemdocabeça,naqualumpersonagemchamadoApoenaapareciacomo“enviadodopresidentedaFunai”pararesolverdeterminadoproblemadosApurinã,noAmazonas.

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Apoenanegavahaver“umgenocídio”nopaís,masapontavaqueasmortesdeindígenaseram“decorrentesdeumtrabalhosemorganizaçãoeplanificaçãocomobjetivos claros.As falhas são tantasquepermitematéo contágiodedoençasquenãoencontramresistênciaorgânicaporpartedoíndio”.Apoenadefendeuacriaçãodeumconselho integradopor sertanistas, “coma funçãode traçarumplano nacional para o órgão, fiscalizando ainda todos os atos e decisões dadireção”. Seria “uma nova Funai”. 7 Essa proposta nunca se tornou real.Bandeira de Mello encerrou o caso, chamando o conselho de “uma ideiacomunista”.DissequejáhaviaestadonaRússia,oquelhepermitiaconhecerafundoo“bolchevismo”.8

Após o contato com os Cinta-Larga e os Suruí, em 1969, Apoena e seu pai,Francisco,permaneceramresponsáveispelasatividadesdaFunainaárea.Nessatarefa, com certa frequência Apoena recebia jornalistas que passavam porRondônia. Um deles, Possidônio Cavalcanti de Bastos, marcaria a vida dosertanistaporsuafugaztrajetória,hojepraticamenteesquecidanasredaçõesdaimprensa. Trata-se talvez de caso único na ditadura em que um jornalista seapaixonoutantopelacausaindigenistaqueabandonouasegurançaeosaláriodeumempregoprestigiadoemumgrandejornalparaviverentreosíndios.

Possidônio nasceu noRecife, emmarço de 1948, emudou-se para o Rioquandocompletoudezoitoanos.ElepassoupelosjornaisÚltimaHoraeOPaís.9AjornalistaLilianNewlandstrabalhoualgunsmesescomPossidônionaUH.

Possidônio era meio gordinho, tinha os cabelos encaracolados e olhosclaros. Era, sim, ummenino bonito. E, para bom observador, saltava aosolhossuapaixãopelojornalismo.Nãomepareciaumtipoextrovertidoeeudiriaque,aomenosnaminhalembrança,eraumapessoareservada.10

Apósumperíodode estágio,OGloboo contratou como repórter auxiliar.Possidônio se destacou ao fazer uma reportagem audaciosa e hoje em diaimpensável.ParaprovarquenãohaviapoliciamentodetrânsitonaavenidaRioBranco,umadasprincipaisartériasdoRio,ele“saiucomumaviaturadojornalpelacontramão”.11

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Naquelaépoca,eracomumosjornaisnãoassinaremtodasasmatériasquepublicavam, de modo que não é simples hoje definir em que reportagensPossidônio trabalhou.Mas quando os jornais enviavam seus jornalistas para ointerior, os chamados “enviados especiais”, as assinaturas apareciam. Assim,sabe-sequePossidônio,emnovembrode1969,foicobrira“OperaçãoAtroaris”,exercício de guerra em Roraima. Dias depois, ele enviou ao jornal, “poriniciativa própria”, outra reportagem sobre uma epidemia de gripe “queameaçavadizimarosíndiosdoParqueNacionaldoTumucumaque”,denunciadaporreligiososdaregião.12

No ano seguinte,O Globo enviou Possidônio ao posto indígena Sete deSetembro,emRondônia.AlieleentrevistouApoena,recém-curadodemalária,paraumareportagembastantecríticasobreascondiçõesdetrabalhooferecidaspela Funai. Possidônio narrou que a equipe “luta com inúmeras adversidades,que vão da falta ou atraso nas verbas às impostas pela natureza”. 13Revelouque, dos trinta trabalhadores originais do órgão, apenas dez permaneciam nolocal.Osoutrossetornaramgarimpeiros“paraverseganhamumpoucomaisdoque trabalhando com índios, pois, neste serviço, só recebemo saláriomínimoregional (134,40 cruzeiros)”. Possidônio também descreveu os inclementesataquesde insetos,“emnuvens”,queassolavamoposto, localizado“emplenaselva”, a cercadenoventa quilômetros da rodoviaBR -364 e ao qual se podiachegar,naépocadaschuvas,apenasapéounolombodeburros.

Em outra reportagem, Possidônio narrou seu primeiro encontro com osCinta-Larga, em visita a uma aldeia localizada a 35 quilômetros da sede doposto. Relatou que cinco índios jovens reclamaram do tratamento que“civilizados”lhesderamnopovoadodeRiozinho.Contaramqueumhomemostinhaempurradoeaoquetudoindicavaderaumtirodeespingardaparaoalto.Outroíndiolhemostrouumacicatriznapernaqueteriasidoprovocadaporumtiro.Possidôniotestemunhavaalgumasdasprimeirasconsequênciasdachegadadasfrentespioneirasdecolonosincentivadaspelogoverno.14

Ao retornar dessa viagem, o jornalista pareceu aos colegas de redação“totalmentemudado”. Tornara-se defensor do índio, a quem chamava de “umbom”. Contou ter recebido dos índios o apelido de “Apon-Karmen”, cuja

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traduçãoseria“irmãodeApoena”.15Em 1970, Possidônio mudou-se para Brasília, onde se tornou chefe de

reportagemdasucursaldeOGlobo.16Maslogoveioadecisãodeabandonarojornalismo, tomada em junho do mesmo ano no posto Sete de Setembro,conforme recordoudepois a jornalistaYole diCapri. Possidônio informou suaresoluçãoaFranciscoeApoenanodiadojogoentreBrasileInglaterranaCopadoMundo.Ànoite,escreveuYole,FranciscolevantouumbrindecomovermuteCinzanoparacomemorarojogodaSeleçãoeadecisãodojornalista:“Ànossavitória,aonossonovocompanheiro,Possidônio!Umnovopacificador!”.17

Possidônio tinha apenas 22 anos quando, em agosto de 1970, pregou umbilhetededespedidanoquadrodeavisosdaredaçãodeOGlobo.O textonãorevelaumjovemimaturo,comosuaidadepoderiasugerir,massimumhomematormentado com a situação do índio noBrasil, que o forçava a uma drásticatomadadeposição.

Nãomaisestarei aquicomvocêsnodiaadia.Sinceramente, issomedói,mas dor maior sentiria me considerando quase um inútil, indo à rua,voltando para escrever. […] Não quer dizer que eu considere inútil otrabalhoquevocês(euinclusive)desenvolvem.Apenasmeutemperamentoromântico,aventureiro,inconformado,levouàopçãoporoutrotipodeluta.Uma luta mais direta em favor dos índios, tão explorados eincompreendidos,emboratenhammaisdireitosquenósahabitarestesoloeaviverdamaneiraquemelhorlhesparecer.

Tambémescreveu, em tomprofético: “Para, dentro dasminhas possibilidades,defenderesseseoutrosdireitosdosnossosselvagens,deixoanossacivilizaçãoe,sefornecessário(talveznãoleveanada),dareiaminhavidaporeles”.18

PordinheiroéquePossidônionãoeramovido.ElefoiadmitidonaFunaiem1odeagostode1971comumsaláriomensaldequinhentoscruzeiros(reajustadotrêsmeses depois, devido à inflação, para 660 cruzeiros). 19Convertido parajunho de 2014, e considerando juros simples de 1% ao mês, esse valorrepresentariaem2015algoemtornode2,9milreais.20

Apoena considerava Possidônio “corajoso e muito sensível”. Na mata,

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gostavadeouvirnavitrolaoConcertodeAranjuez,composiçãoespanholaparaviolão.21

Emnovembrode1971,Possidônio,oradiotelegrafistaAcrísioLimaeumacozinheira,índiagavião,foramdeslocadosparasubstituiropessoaldaFunaidoSete de Setembro, às margens do rio Roosevelt. A equipe original de dezfuncionários,incluindoApoena,tevequeiraoutropontodareservaparabuscaralimentos.22Nodia22denovembro,ogeneralBandeiradeMellorecebeuemBrasília um radiograma da 8a Delegacia Regional informando que o Sete deSetembro havia sido atacado por cerca de duzentos índios. Em seguida duasequipesdaFunai foramenviadasàregião,umaapéeemburros,chefiadaporApoena,eoutraporavião,comFrancisco.Aconfirmaçãodomassacreveionodia2dedezembro.23

Apoena encontrou o corpo de Possidônio “preso às ramas da margemesquerdadorioRoosevelt,adoisquilômetrosdosubposto”.Haviaduasflechascravadasnascostase“outrasagressões”,inclusivetiros.24Orostodojornalistafoi “desfigurado pelos golpes de facão e suas mãos agarravam-sedesesperadamente a um emaranhado de cipós na margem do rio”. Apoenaopinou que a data da morte foi 16 de novembro. Concluiu-se depois quePossidônio correu dos índios e tentou fugir se jogando no rio, mas não tevetempo de se salvar. O corpo de Acrísio nunca foi encontrado, mas os índiosconfirmaramdepoistê-lomatadotambém.Aíndiagaviãoficoudesaparecidapordias, mas depois ressurgiu com os Cinta-Larga. No início de 1972, estesdevolveramàFunai“ogravador,ocadernodeanotações,orevólver,acarteiradeidentidadeeoutrosobjetos”quepertenciamaPossidônio.25

PoucosdiasdepoisdamortedePossidônio,OGlobopublicoutrechosdecartasqueeleenviaraaumcolegadetrabalho,IvanCurvelo.

Os índios, comoascrianças, sãobons.Épreciso,porém,quenão segritecomeles,quenãoseaborreçaosseuschefes.Elesrecebembemohomembranco desde que, é claro, o homem branco não esteja mal-intencionadocom eles. […] A gripe é a nossa maior preocupação. O branco foi o

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fundadordagripe.Porcausadegripeéquemorremtantosíndios.

Ele brincou comos colegas cariocas: “RioBranco,Rondônia,Acre,Guaporé,PortoVelho.AvisaaopessoalqueoBrasilnãoacabaem Ipanema”.Emoutracarta, explicou: “O SPI ? Depois a gente conversa. Uma complicação total. Opessoal vem,morre e ficapor issomesmo.Temnegoquevira nomede rua eninguémnemsabe”.26

Por ironia, um ano depois da morte de Possidônio, o então prefeito deRecife, Augusto Lucena, sancionou uma lei aprovada pela Câmara deVereadoresquedeuonomedojornalistaaumanovaviaurbananacidade.Hojea avenida Jornalista Possidônio Cavalcanti Bastos é localizada numa zonaresidencial do bairro de Iputinga, na periferia de Recife. Apesar do nome de“avenida”, tem pouco mais de 1,5 quilômetro de extensão, o que se cumprenumacaminhadadeunsvinteminutos.27

Temposdepois,ajornalistaLilianNewlandsencontrouemPortoVelhoumCinta-Largaque,segundoApoena, tinhaparticipadodachacina.“Eraumíndiojovemeinteligente.Referiu-seaPossidôniocomo‘umirmão’dequemgostaramuito.Eatestouqueesse‘irmão’tinhamorridocomextremacoragem.”28

Os motivos do assassinato de Possidônio e Acrísio foram tema de muitoscomentárioseteoriasaolongodotempoentresertanistas,semquesechegasseaumconsenso.Afamíliadojornalistaacusou“os‘brancos’”pelocrime,poisserecusava a acreditar que os índios tivessem matado a pessoa que, em cartas,falava tão bem deles. Mas, se foram mesmo os índios, concedeu a família,devemtersido“instigados”pelos“brancos”,quequeriamselivrardePossidônioeabrirespaçoparaaexploraçãodasriquezasnaturaisdaregião.29

Anos depois, Apoena apresentou uma versão mais simples sobre o queocorreu.Segundoele,osCinta-LargaviramasaídadeumgrupodetropeirosdopostodaFunaieentenderamqueeleshaviamdeixadopresentesquePossidôniodeveria distribuir à aldeia. Pelo visto, os tropeiros haviam entregado apenasmantimentos básicos para a sobrevivência do grupo da Funai. Mas comoPossidônionãofizeranenhumadistribuiçãoaosíndios,elesficaramzangados,sesentiram enganados. Possidônio teria argumentado várias vezes que não tinha

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presentealgumparadar,porémomal-entendido,alimentadoporumíndioquepunhaemxequeaversãodePossidônio,derivouparaomassacre.30

No início dos anos 1970, contudo, Apoena apontou o dedo para umaempresa de colonização como a causa de fundo dos assassinatos. Para osertanista, os índios estavam “revoltados com a invasão sistemática de suasreservas de caça pelos homens da Companhia [Melhorança] ColonizadoraItaporanga”. SegundoApoena, os índios “devem ter julgado que o pessoal daFunai era uma espécie de quinta-coluna dos invasores”, ou seja, que o órgãoincentivavaainvasão,eporissoatacaramoposto.31

AsatividadesdaItaporangacomeçaramnofinaldosanos1960,depoisqueogovernointerditouumaáreanoterritóriodeRondônia,nolimitecomoestadodeMatoGrosso,paraa“pacificação”dosíndioscinta-largaenambikwara.EmseguidafoicriadooParqueIndígenadoAripuanã,queabrigava“de4[mil]a5mil” índios.Porém, logodepoisaFunai localizou, forados limitesda reserva,outrosaldeamentosdeSuruí,AraraeGavião,comcercade3milíndios.Apartirdaí, a fundação lutava para ampliar os limites da reserva de forma a abrigartodososíndios,concedendo,poroutrolado,aliberação“daparteNordeste,ondeefetivamente”nãohaviaaldeamentosindígenas.AItaporanga,porém,apareceunaregiãodosaldeamentosrecém-descobertos,ondepretendia“instalarcolonosesobreasterrasinvocadireitosequertítulosdepropriedades”.AFunaiexplicavaqueasituaçãojurídicadasterrashabitadaspelosindígenas,demarcadasounão,era a mesma, e ali “civilizados” não podiam ficar. O órgão alertou para a“promiscuidade” que resultaria da criação de uma cidade dentro de terrashabitadaspor“silvícolasrecém-pacificados”.32

Pertencente a uma família do Paraná, os Melhorança, a Itaporanga seinstalou em Rondônia e passou a atrair centenas de famílias de trabalhadoresruraisdosuldopaíscompromessasde terrenosapreçobaixo.Elanãoestavasozinha na abertura de novas frentes agropastoris. O território viveu umimpressionante boom populacional, que pareceu à antropóloga BettyMindlin,que lá chegou em 1979, “um faroeste de acirrados conflitos pela terra”. Apopulaçãosaltoude85milhabitantes,noanode1960,para111milem1970e490milem1980.33

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A Itaporanga não era a única, mas foi amais problemática e a quemaisatraiuaatençãodogoverno.“Elesvendiamoslotesnosul,masnãovendiam[narealidade], cediam e na demarcação que faziam apenas cobravam, como elesdiziam,prestaçãodeserviço”,dissedepoisogeneralBandeiradeMello.34Afirma protocolou um pedido de cadastramento no Incra. O órgão não só orejeitou como apresentou queixa-crime por “colonização ilegal de terras daUnião”.Em1970,aFunai reforçouapressãodo Incraepediuqueoscolonosfossemtransferidosparaoutraregião.

Em abril de 1972, poucosmeses depois damorte de Possidônio, um dosdonos da Itaporanga foi ao encontro do diretor do Parque do Aripuanã para“apelaraocoraçãohumanitárioemfavordoscolonos”.OdiretorrespondeuqueiriacumpriraConstituição,comapoiodojuizlocal,do5oBECdoExércitoedoIncra.35

Em meio às pressões da Itaporanga, o mais alto círculo da ditaduraexpressou suapressaparapôr empráticamais assentamentosde trabalhadoresrurais em Rondônia. A ditadura já havia criado um projeto em 1970, o OuroPreto,ecriariaosdeJi-ParanáedeSidneyGirãoem1973,odePaulodeAssisRibeiroem1974eosdeBurareiroeMarechalDutraem1976.36

Nofinaldedezembrode1971,osecretário-geraldoCSN,ogeneralefuturopresidentedaRepúblicaJoãoBaptistaFigueiredo,oficiouconfidencialmenteaoministro do Interior, Costa Cavalcanti, para pedir que informasse logo “acaracterizaçãodasáreasjurisdicionadasàFunai”emRondôniaeMatoGrosso.Segundo o general, havia estudos na sua secretaria “para avaliação da áreadisponívelparacolonização”.Ouseja,aFunaiprecisavadizerlogooqueeraeoqueeranãoáreaindígena.Orestoseriarepassadoaoscolonos.

Ademoranadefiniçãodesses limites,porum lado,eapressadogovernoem seu programa de assentamentos, por outro, geraram um cenário de terraarrasada.Emjaneirode1974,adireçãodaSudeco,vinculadaaoMinistériodoInterior, reconheceuqueopovoadodeCacoal,comcercade5milmoradores,“acha-se encravado, portanto, dentro dos limites da área de interdição fixadapelaFunai”paralocalizaçãoe“pacificação”deindígenas.Osíndiostinhamqueser localizados num prazomáximo de dois anos, advertiu a Sudeco, para que

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fossem todos transferidos para dentro do Parque do Aripuanã, “liberando-se,dessa maneira, para desinterdição, as áreas que se verificar desimpedidas dapresençahumana”.37

OgeneralFigueiredodeuapoioà recomendaçãodaSudecoepediuqueaFunaiestabelecesseoprazodedoisanosemumaminutadedecretopresidencial.Dissequeoprazo atenderia aodecretoquehavia criadooparque e adicionouuma informação: levando em conta os limites do parque apresentados pelaFunai,haviacercade trezentoscolonosdoprojetode Ji-Paranádentrodaáreaindígena.38

AFunaiadotouoprazomáximodedoisanosetambémrevisouoslimitesda área indígena. 39 No final das contas, na comparação entre a reservaoriginalmente criada no decreto de interdição e a área final do Parque doAripuanã,houveumareduçãode50%,segundoescreveuopróprioBandeiradeMello.40

UmaáreafinalmenordoqueainterditadanãoocorreuapenascomoParquedoAripuanã, na realidade foi a prática ao longo de toda a ditadura.Uma vezestipuladapelaFunaiaáreadedemarcação,orestanteeraliberadoparaprojetosde colonização. No caso de Aripuanã, porém, toda a pressão para que issoocorresse rápido ficou bem documentada na troca de ofícios e relatórios quepassarampelasmãosdogeneralJoãoFigueiredo.Problemamaiorvinhalogoemseguida,em todososcasosdogênero.Comooórgãoalegavanão ter recursosfinanceiros, em nenhum dos casos a demarcação física ocorreu antes daliberaçãodas terras,mas sempredepois.Assim,quandoas turmasdemediçãoiam a campo, encontravamdivisas precárias, emgeral com colonos habitandoáreasindígenaseserecusandoadeixá-las.FoioquetambémocorreunocasodeAripuanã.Semademarcação,aItaporangacontinuoupressionandoaFunai.Em1972, a direção do órgão emBrasília soube que vários invasores agrediamosíndiosdaregiãoequepessoasdacolonizadoravinhamatirandoneles.41

Após a morte do amigo Possidônio, Apoena passou a demonstrar empúblicosuacontrariedadecomainvasãodasterrasindígenas.Namesmaépoca,o colegadaFunaiAntonioCotrimhavia feito asprimeirasdenúncias contraoórgão.Emmarçode1972,ApoenaenviouaocomandodaFunaiemBrasíliaum

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relatóriocomdesabafos.Odocumentologofoipararnaimprensa.

Ficamosprofundamenterevoltadosaoconstatarmosqueamortedenossoscompanheiros[PossidônioeAcrísio]emnadaserviuparaacausaindígena,poisatéagoraaFunainadafezdeconcretopararetiraroscolonosdaCia.ItaporangaqueinvadiramoParqueIndígenadoAripuanã.42

ApoenaescreveuquejáhaviaavisadoaFunaisobreasituaçãodeperigonoparqueefaltadecondiçõesdetrabalho.Nomesmomês,retransmitiuaBrasíliaumtelegramarecebidodoresponsávelpelosubpostoSetedeSetembro,EuclidesBernardo.

Pesarosamentecomunicoqueacriançaíndiaqueestavamaisdoentefaleceuontemàsdezenovehoras.Às21horas,oíndioIchara,paidafalecida,nospediuumalanternaeumalamparina,chamoutrêsíndioseconduziuocorpoparaaldeia.EleficouumpoucodescontenteporqueAntonioenfermeironãofezacriançavoltaraviver,ainocênciadelesétãograndequepensamquenós temos poderes para fazer viver quem já morreu. Pedimos horário àsdezesseis horas porque ontem depois damorte da índia passamos a noitemais“quente”doSetedeSetembro.Quasenãodormimos.Osíndiosestãoquase todos descontentes e não dormiram a noite toda. O índio levou ocorpodafilhaparaaaldeiaedeixousuamulheraqui,masderepenteelespodemserevoltarememassacrar-nos.43

Emsigilo,aFunaipreenchianaASIumvolumosodossiêarespeitodeApoena,cominformaçõesdediversasfontes,inclusivemilitares,quemanifestavamsuasopiniõesnegativaseapontavamproblemasderelacionamentocomosertanista.

Emjaneirode1972,aFunaideBrasíliaenviouaPortoVelhoumacomissãoformadapordoiscivisedoisgenerais,entreosquaisPedrodeMoraesBotelho,queiriaassumirafunçãodedelegadoregionalnolugardopaideApoena,eosuperintendente administrativo de Brasília, Isnard de Albuquerque Câmara.Apósacerimôniadeposse, Isnardpassouaelaborar“comamaiordiscrição”,conforme fora orientado pelo presidente da Funai, uma “sindicância” sobreApoena.44

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Doismeses depois, Ismarth, então na assessoria de uma das diretorias daFunai, informou a respeito de Apoena: “Já foi removido para a área daTransamazônica”. 45 A Funai soltou uma nota oficial para informar que osertanistaestaria,apartirdemarçode1972,designadocomo“coordenadorgeraldos trabalhos de atração e pacificação das tribos arredias ao longo daTransamazônica”.46Aimprensainterpretoudeoutraformaoafastamento.Teriasido uma retaliação ao pedido deApoena para que o órgão providenciasse “oafastamentodecemfamíliasdoterritóriodosíndioscinta-larga”.47

AssimqueApoena foi transferido, Isnard fezuma inspeçãonoquartoqueeleocupavaemPortoVelho.Contouqueopaidosertanista“sedeuaotrabalhodelavar”asparedesdoquarto,masantesdisso“foramcopiadas”diversasfrasesescritasporApoena.48Alémdapalavra“Possi”,oapelidodePossidônio,eleescreveradeformadesconexa:“Morrer!Soltarnoúltimominutodavidaobradoguerreirodeguerraouvitória.Índiosmorreremdearmasnamãooumendigandonassuasprópriasterras.Amulherdeveserguerrilheira,amanteeesposa”.

Num exemplar da revista Seleções do Reader’s Digest , estava escrito:“Apoena de Meirelles— Acampamento Avançado ‘Che Guevara’”. No livrointituladoParatodosnamoradospassearemdemãosdadas,deRobertoSeljanBraga, o general encontrou a inscrição “Mao Tsé-tung” e a frase “Diante detantasmisériasosolhosdemuitoshomenssomentepousamnosupérfluo,dequevale a vida, a condição social ou econômica de um homem, quando em cadaminutomorremmilharesdecriançasnomundo?”.Abaixodotexto,aassinatura:“Che Apoena de Meirelles”. E, na página seguinte: “Quando colocarmos emjulgamentotodososcrimesdoimperialismo,seupovosofreráduraspenas,nãoporcrimes,esimporteraceitadoumpadrãodevidaemdetrimentodospovosexploradoseoprimidos.ApoenadeMeirelles”.

EmplenaGuerraFriaeduranteoperíodomaisrepressivodaditadura,nãoédifícil imaginar como essas palavras foram recebidas pelo comandomilitar daFunai.Ogeneralcarregounas tintas,dizendoqueocomandantedo5oBECdoExército informou ter “fortes suspeitas de que se teria processado, na área doPQIA[Aripuanã]treinamentodeguerrilhas”.

Isnard tambémescreveuque ficariam“emseupoder”duascartas trocadas

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entreApoenaeajornalistaElianaLucena,deOEstadodeS.Paulo.AscartasforamcopiadaseacrescentadasaodossiêdeApoena.Paraogeneral,ospapéisdemonstravam que o sertanista era a fonte de informações da jornalista parapublicaçãodereportagenscríticassobreasituaçãonoAripuanã.

Apoenadeixouoparqueemmeadosdemarçode1972.Nodia29,ogeneralBandeiradeMellofezaameaçapúblicaaEliana,duranteaentrevistacoletiva,de que o SNI iria investigá-la. Os documentos mostram que na verdade ainvestigação já havia começado em fevereiro, incluindo a apreensão de cartaspessoaisdajornalista.

As menções de Apoena a guerrilhas e a Che Guevara alimentaram tesesconspiratóriasdeBandeiradeMello.Paraele, estava-sediantede“umacélulacomunistamanobradaporagentesestrangeiros”,com“atuaçãosubterrânea”.Aditaduradiziateruminformantedentrodogrupo,masseunomenãoéreveladonadocumentação.Isnardchegaareproduzirsupostasfrasesditasnosencontros,masnenhumaconfirmaateoriadacélulacomunista.

Em relatório, Isnard sugeriu que outro servidor, o sertanista Sidney FerreiraPossuelo, estava ligado ao mesmo grupo comunista subversivo. 49 Citou umtelegramaenviadopelogeneralBotelho,delegadoda8aDelegaciaRegionaldaFunai,segundooqualPossueloentrouemseugabinete“ematitudeagressivaeaosberros”paradizerqueestavasendoprejudicadoporele.

A suspeita de Isnard soa risível nos dias de hoje. Possuelo, que viria a setornar um dos mais importantes sertanistas da história da Funai, suscitoucontrovérsiadentroe foradoórgão,por açõesvigorosasemdefesado índioepelafrequênciacomqueeracitadopelaimpensa,exposiçãocriticadaporalgunscolegassertanistas,massertachadodecomunistaerararidade.Alémdisso,eraumcríticodopensamentoindigenistadosMeireles,dosquaisdivergiualgumasvezes,porestarmaisligadoàsconcepçõesindigenistasdosirmãosVillasBôas.

PossueloconheciaosVillasBôasdelongadata.Elesforamsuasprimeirasreferências na vida indigenista, que começou antesmesmo de a Funai existir.Possuelo nasceu em 19 de abril de 1940, um dia histórico para os índios.Naquela data, na cidade de Pátzcuaro, no México, realizou-se a primeira

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conferência interamericana indigenista.Oeventodeixoucomosugestãoqueosgovernos latino-americanos adotassem a data como oDia do Índio, o que foitornadoleinoBrasilem1943.

Nosanos1930,opaidePossuelo, José,deuma famíliadeespanhóisquechegaramaoBrasil no iníciodo séculopassado, integravaumgrupode teatroamador em Taubaté (SP ) quando a cidade foi visitada por uma companhiamambembedecineteatro.Convidadoatrabalharcomeles,decidadeemcidade,JoséfoipararemSantosDumont,nointeriordeMinasGerais,ondeconheceuese casou coma futuramãedePossuelo.Ela tambémpassou a trabalhar comoatriz, viajando com a família. No interior do Espírito Santo, o filho se disseimpressionado ao ver um grupo de pessoas segurando flechas imensas compenas coloridas. Foi a primeira vez que viu índios na vida. Depois de algunsanos, o casal se separou e Possuelo passou a ser criado por uma avó emSãoPaulo.

Naadolescência,Possuelodissequegostavadeler,emespecialnarevistaOCruzeiro,históriasaventurescassobreomarechalRondoneosVillasBôas.Naépocaos irmãos trabalhavamnoParquedoXingu,vinculadoàFBC . Possuelodecidiu ir atrás de Orlando, a fim de conhecê-lo. Descobriu que o sertanista,quandovinhaaSãoPaulo,dormianacasada irmã,na ruaAzaleia.Foiàcasaalgumas vezes, até conseguir encontrá-lo. Orlando deixou que Possuelo seaproximasse do seu grupo. O rapaz cumpria o papel de faz-tudo: compravacigarros,ajudavanaprestaçãodecontas.Elehaviacompletadoosegundograu,mas não tentou entrar em nenhuma faculdade. Nesse meio-tempo fez váriascursosemáreastãodistantesquantooperaçãodemáquinasoperatrizes,desenhotécnico,gemologia,relaçõespúblicas—este,naFolhadeS.Paulo—eatédeparapsicologia.Possuelotateavaomundo.Masquandochegouaosdezoitoanos,nofinaldadécadade1950,decidiu trabalharcomos índios. Issoo levouparaumalongaviagemdemaisdemeioséculo.

Em São Paulo, uma ação frequente de Orlando era visitar empresas paraobterdoaçõesparaosíndios,queeramenviadasaoXinguemaviõesDouglasC-47doCorreioAéreoNacionalpelomenosumavezporsemana.OrlandoenfimautorizouatãosonhadaviagemdePossueloparalá.

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OaviãodecoloudoCampodeMartee levoudoisdias, comescalas,parachegaraodestino.CaíaumachuvapesadaquandopousounocampodeterradopostoCapitãoVasconcelos.Pertodofinaldapista,oaviãoderrapou.Acargasesoltoudasamarras, rolou sobrePossueloe enterrouobicodacabinena lama,deixando suspensa no ar a cauda da aeronave. Ele saiu atrás de ajuda pararebocaroC-47.Quandosedirigiaàsededoposto,escorregounalamaelevouum grande tombo. Os índios que assistiam a tudo, no mato, caíram nagargalhada.Possuelovoltoucomumtrator,guiadoporumrapazdaFBC,eumcabodeaço.EleeumsargentodaFABquevieranovootentaramataratraseiradoaviãoaotrator,masocabodeaçoeracurto.Possueloentãofezumsinalcomosbraçoslevantadosparaqueotratoristadesseré,afimdeconseguirmaiscaboparaaamarra.Achuvaaindaestava intensa,eo tratoristaentendeuo sinaldeforma errada e tocou para a frente.O cabo de aço deu uma volta em umdosdedos da mão direita do sargento, que ainda procurava fazer a amarra, e odecepou. O dedo voou, bateu no peito de Possuelo e caiu na lama. Omilitarestancouosangueecontinuouotrabalho.Apósaretiradadacarga,opessoaldoCorreio regressou no mesmo instante para Goiás para que o dedo do militarfosse reimplantado, o que não foi possível. Possuelo os acompanhou, e assimterminou seu primeiro dia em uma terra indígena. Sem conseguir falar comnenhumíndio.“Omeubatismofoiassim,comlamaecomsangue.”

Ao completar dezoito anos, Possuelo teve que servir no Exército, no 5oRegimento de Infantaria emLorena (SP ). Após um ano emeio, retornou aosíndios, agora de vez. Pouco tempo depois, conheceu Francisco Meireles, dequem guardou a boa lembrança de um homem desapegado do dinheiro e daburocracia, praticamente vertendo tudo à sua volta para a satisfação do índio.Mas isso não impedia — embora estivessem todos no mesmo lado da“trincheira”—queeletivesseumavisãocríticasobreoqueFranciscoeApoenapreviam como o destino inexorável dos índios no Brasil: a integração àsociedade nacional. Em 1973, Meireles disse publicamente que “o índio estáfadadoadesaparecercomoíndio.Nãotemcondiçõesdesobrevivência”.50

Ao falar sobre as operações daFunai de atração e “pacificação”, algumasdas quais ele próprio liderou e realizou, Meireles fez um elogio aberto aos

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projetos da ditadura.Disse que as doenças que tantomataram os índios eram“umtributo”pagoà“civilização”equeevitá-lasseriaimpossível.

Temos que ser realistas, não podemos deter uma frente pioneira deprogresso.Nãopodemoscontrariarumapolíticadogovernodeaberturadeestradasqueelejulganecessáriasparanossodesenvolvimento.Diantedissoé preciso promover a confraternização dos índios com os elementoscivilizados. Mas é necessário evitar, de qualquer maneira, que sejamcometidasviolênciascontraosindígenas,quesuasterrassejamroubadasapretextodedesenvolvimento.Nãotemoscondições,poroutrolado,deevitarqueoíndiocontraiadoençasemcontatocomocivilizado.

Nessa entrevista que desnuda o modo de pensar de um dos principaissertanistasdahistóriadopaís,Meirelesfoiadiante.Elejustificoudemonstraçõesde força e intimidação contra os Waimiri-Atroari, então em guerra com os“civilizados”apropósitodaconstruçãodaBR-174.Parailustrarseupensamento,revelouquechegouafazermulheresecriançasderefénsaocontatarumgrupodeíndios.

Emdeterminadoscasoséprecisofazerdemonstraçãodeforçaparaoíndioqueestámatandogenteoucriandoproblemas.OsAtroarisestãoprecisandodisso,poisjámataramumaexpediçãonossacomoadopadreCalleri.JáuseiesseprocessodeintimidaçãocomosPacaás-Novas.Duranteaguerra,elesestavam matando sistematicamente os seringueiros, enquanto o governoprecisavadesesperadamentedaborracha.Daí,entramosnaaldeia,pegamosmulheresealgumascriançasparaexplicarquefazíamosaquiloporqueelesestavammatandonossopessoal.Eameaçamosvoltaraqualquermomento.

À pergunta sobre se método semelhante poderia ser usado durante aconstruçãodeoutrarodovia,aPerimetralNorte,Meirelesargumentou:

Se alguma tribo reclamar umamedida dessas, vamos ter que tomá-la.OsAtroaris são perigosos, é necessário que se monte um dispositivo desegurança para que eles não pratiquemmaismortes. É um índio que fala

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português, pois já conviveu com seringueiros. Eles simulam umaconfraternizaçãoedepoisatacam.

Possuelo,Apoenaesuasmulheresconviveramporumcurtoperíodo,porvoltadejunhode1974,nafrentedeatraçãodosíndiospanará.Maslogohouveumadivergênciaentreeleseavidaemcomumduroupouco.PossuelodizqueeleeApoena se tornaram“cordiais inimigos”.Asdiscordânciasnãoo impediamdeter uma relação cordial, que ele qualifica como amizade, com FranciscoMeireles. A última vez que Possuelo viu o grande sertanista foi em junho de1973.

Em25domesmomês,aos65anos,Meirelesdeuentradacom“hipertensãoarterial”noProntocordoRiodeJaneiro,masjáeratarde.Elemorreude“infartoagudo do miocárdio e oclusão coronariana aguda”. Deixou quatro filhos enenhumbem.51Comonãoeracasadodepapelpassadocomaviúva,Abigail,não deixou pensão. Sete meses depois da morte, o jornalista Edmar Morelencontrou Abigail numa região conhecida como “Favelinha”, em CampoGrande,noRio.Acasa“era triste”,comparedesporacabare tijolosàmostra,chãodecimentoe“apenasumavira-lata”comocompanhia.AbigailconheceuesecasoucomMeirelesnaregiãodeGuajará-Mirim,emRondônia,esemudouparaoRioem1952.Comosertanistaquasesemprenomato,trabalhandocomosíndios,amulherenfrentoumuitasdificuldadesparacriarosfilhos,incluindoApoena.“Odinheiroerapouquíssimo.Devezemquando,Meirelesmemandavauns trocados.Eo restoeu inteirava, trabalhandoemcasade famíliae lavandoroupaparafora.”52

Meses depois da morte de Francisco, quatro índios, entre eles o caciquexavanteApoena,vieramaoRioparavisitarotúmulodosertanista.Alideixaram“umcilindrodemadeirabranca,muitopolida”,“umaespéciede lembrançadatribo”.53

ÀmortedeMeirelesseseguiuaconfirmaçãodequeosirmãosVillasBôashaviampedidoaposentadoriadaFunai,napráticaseafastandodasoperaçõesdeatraçãoepacificaçãodeíndiosnopaís.OdeputadoJ.G.deAraújoJorge(MDB-

RJ ) pediuumaaposentadoria especial paraos irmãos, que trabalhavamparao

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governodesde1944.54Emnovembrode1973,Orlando informouà imprensaque continuava discordando da política integracionista do governo militar.“Nossa posição não é novidade para ninguém. A cultura indígena deve serresguardadaatéqueoíndiooptepelaintegração.”55

Noespaçodepoucosmeses,aFunaiperdeutrêsdeseusmíticossertanistas:Meireles e os dois Villas Bôas. Agora o trabalho de contato com os índiosisolados estava parte nas mãos dos mais jovens, como Possuelo e Apoena, epartenadosmaisantigos,comoAfonsinho,queaprenderamatrabalharcomossertanistasdopassado.Nessetempodetransição,outraspressõesirromperameassustaramosmilitares—quereagiramcommaisopressão.

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20.DEPORTADOS

NOS ANOS 1970, AS LIDERANÇAS INDÍGENAS QUE CAUSASSEMPREOCUPAÇÃOaosdirigentesdaFunaiviviamsobaameaçadepuniçãocomumatransferênciadealdeia.Emmaiode1978,ochefedopostoindígenaCanaBrava, dos índios guajajara do Maranhão, Elomar Gerhardt, narrou ao seusuperior no órgão que um “civilizado” do povoadoAltoAlegre, com irmãos,parenteseamigos,tinhaplantadoumaroça“emcimadalinhadivisória”daterraindígena. Os índios alegaram que a linha fora “fabricada”, protestaram esaquearamalavoura.Noconflito,umcolonochamadoBelizáriomorreucomumtiro de espingarda na barriga. O desfecho do episódio, segundo Elomar, foi“triste e lamentável para os índios” da aldeia Muçum. Houve “ameaças detransferênciaeatédeprisão”.ParaElomar,“nãoseouviuoqueosíndiostinhama dizer”.O índio JoséGaldino, acusado de ser “o principal responsável” peloconfronto, foi pagar “sua pena com uma transferência” para outro postoindígena.Asaída forçadadeGaldinodesequilibrouacomunidadeeexpôs suafamília, que agora “passava fome”. Sua mulher foi vista embriagada e umaparenteseprostituía“comoscamioneiros,embuscadedinheiroparasuafomeedeseusparentes”.Havianotíciadequeelaficaragrávida.1

EmDourados,hojeMatoGrossodoSul,viviaumíndioespecialmentevigorosonadefesadesuacomunidade,quetambémsofreriacomapráticadadeportação.MarçaldeSouzaeraonomeregistradonosdocumentosdacidadeeTupã-Ieracomo se chamava entre osGuarani. Sua trajetória foimarcada por constantesdeslocamentos, pela oratória coerente e emocionada, com longas frasesconstruídasdeimprovisoemportuguêsclaroeobjetivo,epelacoragemcomque

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expressouacondiçãodeseupovo.DarcyRibeiroumavezchamouMarçaldeo“índiomaiseloquente”quejáconhecera.2

Talvez tenha sidoo índiomais conhecido em todoo estado entre os anos1970e1980, tendopercorrido inúmerasaldeiasemumabicicletavermelhadeguidão quadrado que diziam ser da marca alemã Göricke. É o que ficou namemória do índio guarani-kaiowá Anastácio Peralta, mais tarde um dosprincipais líderes indígenas no então Mato Grosso. “Ele andava muito debicicleta.SaíadaquidaMissãoCaiuáeiaparaTeikuê,achoquedáunssetentaouoitentaquilômetros.[…]Iacortandoesseestradão.OMarçalorganizavatodaacomunidadedeMatoGrossodoSul.”3

OsGuaraniviviamemdoissubgruposnaregião,osÑandeva,nosquaisseincluía Marçal, e os Kaiowá. Após dezenas de anos em contato com os“civilizados”, período em que foram atraídos e aldeados, ou seja, instruídos aviveremdeterminadospontospredeterminadosemanobradosparatrabalharnasfazendasda regiãoenacoletadeerva-mate,osKaiowásóvierama receberoreconhecimentooficialdesuasterrasentre1915e1935,apósacriaçãodoSPIem1910. Porém, o Estado brasileiro destinou a eles apenas oito áreas pequenas,com um total de 18 mil hectares, e não considerou a existência de diversosoutros grupos espalhados em propriedades rurais. As áreas tradicionais,chamadas de tekoha , eram habitadas porém não reconhecidas como terrasindígenas.AFunaidepoisadmitiuquenocomeçodadécadade1980pelomenos2milíndiosviviam“esparramados”emterrasnãodemarcadas.Otamanhodastekohasdemarcadaseraínfimoemfacedasnecessidadesedonúmerodeíndios.Em1983,asoito terrasdemarcadas somavamapenas18milhectaresparaumtotal de 12315 pessoas, o que representava cerca de 7,3 hectares para cadafamíliaou1,4hectareporindígena.4A títulodecomparação,o lotemédiodoIncranopaísera,em2007,de34hectares.5AdemoradoEstadoemreconhecerasterrasguaraniestánaorigemdasdisputasqueseestenderamportodooséculoechegamaosdiasatuais.

A vida deMarçal foi dura desde o começo. Ele foi criado em uma casa paracrianças e adolescentes indígenas órfãos chamada Nhanderoga, fundada por

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missionáriospresbiterianosdaMissãoEvangélicaCaiuá, apoucosquilômetrosdocentrodeDourados.Segundocontoudepoisàsuafamília,MarçalnasceunavésperadoNatalde1920emumaaldeiaindígenaguarani-ñandevanaregiãodeRincãodeJúlio,atualmunicípiodePontaPorã,nafronteiracomoParaguai.Foiseparado dos pais depois que uma cobra o picou e ele teve que se tratar emDourados.Omeninopermaneceucomosmissionários,ospaisvoltaramparaaaldeia.6Quando tinha por volta de doze anos,Marçal perdeu os pais, ambosacometidospordoenças,conformedepoiscontouàsfilhas.7

Quando o escritorOrígenes Lessa foi visitar aNhanderoga, emmarço de1955, encontrou crianças, adultos e idosos guarani recebendo os cuidados daprofessora baiana Loide Bonfim de Andrade, de seu marido, o reverendoOrlando Andrade, e de outros missionários, em meio a grandes dificuldadesfinanceiras. Era uma “tortura agoniada”. A alimentação básica consistia emarroz, feijão, abobrinha e mandioca, com carne e pão “apenas uma vez porsemana”. Cerca de vinte anos antes, Loide e outros missionários haviamencontradoumquadrodramáticodedoençasemortesdeíndiosguaranieterena,oquelevaraàcriaçãodoorfanato.“Nomato,osíndiosseacabavam.Famíliasinteiras desapareciam. E frequentemente, nas palhoças perdidas, eramencontradas crianças de um ou dois anos, os pais na sepultura, chorando emorrendode fome.”8Lessa contou no orfanato “cerca de cinquenta crianças,queforamsalvasdamorte”.

Emumdomingo,oescritorcompareceuaumcultonaigrejinhadolugar.Opastor pediu que alguém lesse uma oração. De costas para o orador, Lessapassou a ouvir uma “prece admirável, toda construída em estilo bíblico.Umavozdoce, respirando fervor”.Falava sobre a necessidadede queDeus levasseum lenitivo às almas dos crentes, iluminasse seus corações e purificasse suasvidas. Lessa virou-se para ver quem era. “Era um indiozinho descalço,modestamentevestido,oMarçal.”

Marçal,entãocom34anos,pareceuaLessaum“japonezinho”.

É baixo, “rinsonho”, inteligentíssimo.Tinha quinze anos quando apareceunamissão,mordido de cobra.Era um índio comoos outros.Veio quando

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aindanãofalavaportuguês.Trataram-no,ficoutrabalhandoeestudandoali.O rancho em que vive reflete bem sua atual filosofia da vida. É limpo,alegre,organizado.Trabalhador, ativo,curioso, amigodos livros, falacomincríveldesembaraço.9

Apoiado pela Missão Caiuá, Marçal passou temporadas de estudos emCampoGrande,RecifeePatrocínio(MG),ondeportrêsanosfoimatriculadonoInstituto Bíblico Eduardo Lane, fundado em 1925 por reverendos norte-americanos para dar capacitação teológica a missionários de lugares maisafastadosdosmaiorescentrosurbanos.10AliMarçalrecebeuliçõesde“exegeseeoratória”,conformedisseanosdepoisamissionáriaLoide,alémdehomilética,aartedepregarsermõesreligiosos.Essaformaçãoexplicariaaqualidadedesuaretórica,tãoelogiadapelosqueoconheceram.MarçalvoltoudePatrocíniocomopregadordoEvangelho,professordascriançasdaNhanderogaeintérprete,tendoajudadonatraduçãodaBíbliaparaoguarani.Tambémaprendeuatocarórgãoefezumcursodeatendentedeenfermagem.11

Assim,aprincípioMarçaleramaisumdivulgadordoEvangelhodoqueumlíderpolitizado.IssomudouquandoantropólogosdoRio,SãoPauloeBrasíliacomeçaramaaparecernaregiãodeDouradosparaestudaraculturaguarani.UmdosmaisconhecidoseraoantropólogocatarinenseEgonSchaden(1913-91),daUSP,queapartirdosanos1940realizouumamplotrabalhodecampocomosGuarani. Como Marçal dominava o português e conhecia a fundo a culturaguarani,elesetornou“umdosprincipais informantesdeSchaden”.12EmseuAspectos fundamentaisdaculturaguarani ,Schaden incluiuMarçalentreseus“numerosos amigos índios, que às vezes com grande sacrifício pessoal meauxiliaramna realizaçãodaspesquisas”.Ele fezpublicarno livrouma fotodeMarçal, identificando-o como “catequista” evangélico e seu colaborador naspesquisas.13

OutropesquisadorquerecorreuaMarçalfoiDarcyRibeiro,queestudouosKadiwéudaserradaBodoquena.Temposdepois,Marçaldissequeasconversasquemantevecomoantropólogonosanos1940,quandoviajavam“dealdeiaemaldeia”,foramumdivisordeáguas.RefletindosobretudooqueouviudeDarcy,

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eledisseterrevivido

a glória domeu povo jámuito distante, sendo levada pelos séculos, pelotempoepelosanos.Descobriquenóstínhamosumariquezamuitogrande,umariquezamuitopreciosa,queeraanossacultura,anossacrença,anossavida de índio, a nossa organização. Desde então nasceu um amor muitoprofundopelomeupovoindígena.Desdeentãopropusemminhavida,vivertodaavida,viverentreosmeusirmãos.

Nos anos 1950 e 1960, Marçal se distanciou da pregação evangélica epassoua sepreocuparmais coma condição terrenados índios. “EudevoesseabrirdeolhosaoprofessorDarcyRibeiro.”14

OdespertardeMarçalotornouumestorvoparaocomandomilitardaFunai.Adocumentação sigilosa da época, enfim colocada à disposição para pesquisa apartir de 2008, mostra que em 1975 ele foi identificado como alguém “queprocuroualiciarosíndioscontraosseuscapitães”dedoispostosindígenas,emDouradoseemPanambi.15

Na época, ele era atendente de enfermagem contratado da Funai. Emrelatório confidencial, o chefe do posto em Dourados, Idevar José Sardinha,informouaodelegadoregionalquenãoqueriamaissuapresençanaregião.Ascoisassaíramdocontrole,segundoodelegado,depoisqueogeneralIsmartheoministrodo Interior, nãonominado, fizeramumavisita aopostodeDourados.Naocasião,Marçalfezumdiscurso“sobreoproblemadoíndio,colocou-senopapeldedefensordosmesmos,sentindo-seinclusivesuperioraoscapitãeseaochefedoposto,mostrando-semesmoinsubordinadoaestachefia”.16

Porcausade“excessodetempoocioso”,disseSardinha,Marçalsededicavaa“umaatuaçãopolíticacontraochefedoposto,capitãese,consequentemente,Funai,juntoaosindígenasaldeadosnesteposto,alémdeinterferênciaemoutrasáreas vizinhas, como já é de vosso conhecimento o caso do posto Panamby ealdeiaVilaCruz”.

Sardinhaapontoudois“capitães”comoalvosdecríticasdeMarçal:oTerenaRamãoMachadoeoKaiowáNarcisoDaniel.Disseque jáhavia“investigado”

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as acusações contra ambos e as considerara infundadas, acrescentando queMarçal ocupou o cargo de capitão entre 1964 e 1966 e não deixou saudades.Alémdomais,Marçal tambémameaçava“constantemente ir a jornais, rádioetelevisão,casonenhumaatitudesejatomadapelochefedoposto”.

Seuobjetivonospareceserderrubaroscapitães.Afirmaaindaquenãoseimportadeirpresoporumacausajustaoumesmoperderoemprego.Temtrabalhado junto a esta comunidade com fins de conscientizá-la de que aFunaitemeaimprensafaladaouescrita.17

AsafirmaçõesdeSardinhasãocontraditóriasempelomenosumponto:seMarçalfoiumpéssimo“capitão”,porqueseriaumaliderançaasertemidapelaFunai? O delegado, em suas comunicações a Brasília, também descartou umdado fundamental.AscríticasdeMarçal aos “capitães” tinhamplena razãodeexistir.Comaanuênciadoórgão,RamãoMachadohaviamontadoumamilíciaindígena armada e controlava com mão de ferro o dia a dia da reserva deDourados, um exíguo espaço de sobrevivência para milhares de Kaiowá eTerena.Essa“políciaindígena”percorriaacolôniapara“tomararmaseacalmaros companheiros”. 18 Era acusada de desmandos, assassinatos e torturas. Emsetembrodomesmoano,umprimodeMarçal,NenitoCláudio,denunciouqueRamão “desandou a prender o índio, pondo o índio para trabalhar na lavouradele”.Haviaasuspeita,contouNenito,deenvolvimentodogrupodeRamãonoassassinato de um homem chamado Martins, que a Funai considerou ser umparaguaio,nodesaparecimentodeumgarotodedezesseteanosenaeliminaçãodoíndioXistoDaniel,queamanheceumortonacadeiadopostoumdiaapósserpresopelamilíciaindígena.19

O“capitão” tevepela frenteumavidaconturbada, recheadadepolêmicaeacusações. Em 1978, um grupo de índios foi à imprensa de Dourados paradenunciá-lopelatentativademataroíndioDorvalinoFelisberto.20Eleseguiuno cargo. Em 1979, esteve no centro de uma grande crise que mobilizoucentenasdeíndioscontraeafavordasuapermanência.UmgrupokaiowáqueriamatarRamão,crimeevitadoporreligiosos.21

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Conheci Ramão Machado em 1998, quando o entrevistei em Douradosjustamente sobre as atividades da polícia indígena, que ele continuavacomandandoatéaquelemomento.Eleeraaautoridadedefatonaterraindígena.Naquela época, a Funai contava com apenas três funcionários para umapopulação indígenade8,9milGuaranieTerena.Ramãoeraaltoecorpulento,tinhamãos imensaseoolhardisperso.Pareciamuito ressabiadocomaminhapresença na área, dirigindo-me várias perguntas. Ele me recebeu ao lado deoutros índios, todosusandocoletescoma inscrição“agentede segurança”eodesenhodeum índio esticandoumarco.Poucosdias antes,Ramãohavia sidoalvodeumaordemdeprisãodecretadaapedidodoMinistérioPúblicoFederalsob as acusaçõesde tentativadehomicídio, ameaça evilipêndio aos costumesindígenas.Elenegouasimputações.Disse-mequesuamilíciaformadapordozehomens,cujasrondassóocorriamdedia,apenas impunhaa leieaordem.Elepermitiu que eu acompanhasse uma dessas rondas. Na carroceria de umacamionete,vicomoosmilicianostrabalhavam.Emgruposdetalvezmeiadúzia,circulavamhoraspelasdiversasestradinhasdeterraquecortavamareserva.Vezou outra, quando encontravam algum índio vagando sozinho ou de bicicleta,paravam,faziamperguntaseorevistavam.Claroqueaencenaçãoestavalongede refletir a verdade. Os milicianos eram acusados de todo tipo de abuso,violênciaecoação.FoicontraissoqueMarçalseinsurgiu,aindanosanos1970.

Tal milícia não era uma exclusividade de Dourados, havendo casossemelhantesemváriasáreasguaranieterenanosuldoestado.DeDouradosfuiatéAralMoreira(MS)paraverasepulturadoíndioQuintinoBatista,de74anos,quediasantesforaespancadoemortopor“policiaisindígenas”queatuavamnaáreaGuasuty,efalarcomsuafamília.Estadeixousobreotúmuloasduasbotasvelhas,desgastadasesujasqueQuintinousouparatrabalharemumafazendaatémorrer.22Ramão também teveumdestino trágico.Em2008, apósumabrigaemumbar,foiassassinadocomumtiroporumpolicialmilitar.

MasaFunai,em1975,deuapoioirrestritoaRamãocontraMarçal.Este,comomedidapunitiva,foi“colocadoàdisposição”etransferidodacasaemquevivia,naaldeiaemDourados,paraumaterra indígenaemCaarapó,distantecercade

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cinquentaquilômetros.Poucosanosdepois,MarçalcontouquesofreuviolentaperseguiçãoatéserdespejadoparaCaarapó.Eledissequeemabrilde1974umgrupode cercadedez índios lideradosporRamão, que ele chamoude “braçoforte”deSardinha,invadiuoambulatórioemquetrabalhavaepassouaagredi-lo.

Merasgaramtodaaroupaequasemedeixaramnu.Emelevaramforadoambulatório,ondefuiespancadopelosoutrosíndios.Eunãoculpoosíndios,não, o índio não tem culpa nenhuma.Eles foram subornados pelo capitãoRamãoepeloencarregadoparafazeressainjustiçacontraaminhapessoa.23

Aosaberemdoespancamentoedaprisão,familiaresdeMarçalforamvê-lono posto indígena. A mulher, Aristídia, e as filhas Edina, Eunice e Leni oencontraramcomferimentosportodoocorpo,“presoemumquartodaFunai”.Aos23anos,Edinaviuopaisertratado“comosefosseumbandido”.“Pedimosparasoltar,masochefedepostoeoRamãonãodeixaram.Daquelejeitomesmo,ensanguentado,rasgado,levarameleparaCampoGrande.”24

Marçal tinha sete filhos biológicos e três adotados, crianças guarani que,assimcomoelenainfância,nãotinhamumlarparaviver.SegundoEdina,nãoeraincomumnaépocaquefamíliasguarani,semcondiçõesdecriarseusfilhos,osdeixassemnamissãopresbiteriana.Marçalrecolhiaosbebêsatéquesurgisseoutrafamília—trêscrianças,porém,elecontinuoucriandoatéofimdavida.

AntesdeseguirparaCaarapó,Marçal trabalhouporalgunsmesesnaCasadoÍndiodaFunaiemCampoGrande,ondedenovofoi“ameaçadodeprisão”,segundosua filhaEdina,porcausadecríticasàscondiçõesdo local.De lá foienviado para Caarapó, o que forçou uma divisão na família. Por causa dosestudos,asfilhasmaisvelhasficaramemDourados.

CláudioNenitocontoualíderesindígenasreunidospeloCiminaqueleanoqueatransferênciadeíndioserauminstrumentodeopressãodaFunaiedaditadura.Segundo disse, ele também fora “jogado para fora do posto” com sua famíliapelo próprio “chefe da Funai” e perdera toda a sua lavoura. Afirmou que

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espancamentoseprisõeseramcomunsequeochefedaFunai“davacastigoaosíndios”desde,pelomenos,1972.Osíndiospresoseramlevadosparaalavourado“capitão”,oquedeixavasuasfamíliasdesamparadas.

As denúncias de Nenito foram levadas ao conhecimento do CongressoNacional pelo bispo diocesano deBauru (SP ) Cândido Padin, em depoimentoqueprestouàCPIdoÍndio,instaladaem1977.QuandofoisuavezdefalaràCPI,ogeneralIsmarthprocuroudesqualificarMarçal.Alegouqueeleandavaarmadoporque se “incompatibilizou com a comunidade, que o espancou e ameaçoumatá-lo”.Segundoogeneral,aFunaiatuoupara“evitarumatragédia”eporisso“ofereceu-lheremoçãoparaoutraárea,oquefoiaceito”.Porém,Ismarthacaboupor confirmar a política de transferências, dizendo “não ser crime de espéciealguma”eque“àsvezes”elaeraadotadapara“protegeropróprioíndio”.

Os documentos sigilosos enfim tornados públicos quase quarenta anosdepoisrevelamqueIsmarthomitiudoCongressoqueaordemderetirarMarçaldeDouradospartiudoresponsávelpelaFunainaregião,nãosetratandodeumapropostafeitapeloíndio.Comovimos,odelegadoescreveueobteveoapoiodeBrasília para a decisão de enviarMarçal para Caarapó. Em vários trechos dodocumento,odelegadodemonstraacontrariedadecomapresençadoGuaraninaáreadopostoindígenaenadafalasobreprotegê-lodeameaças.

AlémdeexpulsoparaCaarapó,Marçalnapráticatambémficouproibidodevisitar seus parentes que ficaram em Dourados, o que o levou a viagensclandestinas. 25 Ele estava exilado em seu próprio país. Depois voltou adenunciarRamão, emBrasília,mas sem resultado algum.Disseque amilícia,composta de sessenta índios, estava na origemdemuitos suicídios. “Apolíciaindígena é disfarçada deConselhoTribal e quer obrigar até os casamentos natribo,oquejáfezmuitagente,quenãoqueriasecasar,sematar.”26

Mas nenhuma das punições impostas pela Funai foi capaz de interrompersuaascensãocomolíderindígena.QuandoaCPIfoiinstalada,em1977,Marçalentrouemumalistadeindígenasaseremouvidos.Sobreelenãohavia“maioresreferências”, mas deputados o reconheceram como “um dos mais autênticoslíderes”guarani.27Estranhamente,nuncafoichamadoaprestardepoimentonaCPI.

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OGuaranidemonstrouterplenaconsciênciadoincômodoquerepresentava.EmumaassembleiaorganizadapeloCiminas ruínasdeSãoMiguel (RS ), eleorientou os índios a fazerem denúncias pelos meios de comunicação. “Nãopodemosmaisficardebraçoscruzados.Essatalvezsejaaúltimaoportunidadeparanósergueravozdenossastribos.Láforatemmuitagenteboa,aimprensa,atelevisão.[…]Eunãoficoquieto,não.Eureclamo,eufalo,eudenuncio.”28

OcomandodaFunaidemonstravaextremapreocupaçãocomas reuniõesentremembrosdoCimieoutroslíderesindígenasetomouváriasmedidasparacoibi-las. Uma das táticas era desacreditar os índios como representantes de suasetnias. Índios que saíam em defesa dos padres do Cimi eram os primeiros aentrarnamiradoregime.

OKaripunaÁlvaro,quehaviaescritoumacartaaopresidentedaFunaiparareclamar da situação em sua aldeia no Amapá, atraiu a atenção do órgão. Odelegado regional,CarlosAmauryMotadeAzevedo, dissequeo índio estava“bastante conscientizado pela ideologia do Cimi, de quem é representante naárea”.Álvaromostrava-se “arredio” à Funai, e “em tudo que fala se nota umacentoderevolta”.Odelegadobolouumplanoparacooptá-lo.

Faz-se necessário contratá-lo como atendente de enfermagem, para dessemodo tê-lo sobcontroleeemsegundo lugardemonstrarqueaFunaipodeser tantoquantoopadreNelloRuffaldi. […]Umaoportunidadeboadesedemonstrar issoseriaa liberaçãode20milcruzeirosemmercadoriasparaajudar na abertura de uma cooperativa idealizada por ele, padre Nello eoutros.29

Adocumentaçãodisponívelnãoesclareceseoplanosaiudopapel.OcasodeÁlvaroestavalongedeserúnico.ComasreuniõesentreCimie

indígenas cada vezmais frequentes, o sistema de informações da ditadura e ocomando da Funai também estenderam sua espionagem e seu controle sobreinúmeros indígenas.Aatençãodosmilitareseraproporcionalà importânciadoíndioemsuatriboetambémaospotenciaisproblemasqueelepoderiacausaràFunai.

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O general Demócrito Soares de Oliveira ordenou um “levantamentobiográficodasprincipaisliderançasindígenasbrasileiras”.30ArespostaveiodoMuseudoÍndio,noRio,quetratoudosnomesdopassado,ede“questionáriosenviadosporchefesdepostosedelegados regionais”.Uma relaçãodedezoitonomesincluíaoWaimiri-AtroariMaroaga,osXavanteBenedito,Zacarias,AdãoeApoena,oXerenteRaimundo,osGuaraniJoãoGomeseBenedito,osKayapóBebe Gogoti, Knhonk e Pombo, os Karajá Arutana,Maluaré,Maluá, Ataul eUatau,oUrubu-KaaporKaroleoKanelaGregório.31

Os questionários foram acompanhados de breves comentários sobre oslíderes. Dois refletiam preconceitos explícitos dos servidores da Funai. OXavante Zacarias, por exemplo, era “bastante inteligente; executa váriasocupações tão bem quanto um branco ; representou sua aldeia junto aopresidente da República”. O Karajá Maluá foi elogiado por dizer que seriaimportante para os Karajá não “se revoltarem”, mas sim que procurassem “aaculturaçãocomoscivilizados.Temosaquiumfator[ilegível]muitoimportantenamentalidadedeumíndio”.

De modo geral, os questionários exaltavam a capacidade dos índios ehistórias de coragem e liderança que protagonizaram. Tuto Pombo “liderouestrategicamente um ataque” contra grileiros invasores da área indígena, em1969,“conseguindoexpulsá-lossembaixasparaosKayapó”.Maluaréfoicitado“como líder absoluto”, com “espírito de coragem e inteligência”. Certa feita,doisXavantemataramdoisjovenskarajá,umdosquaiseraparentedeMaluaré.Ele então “saiu no encalço dosXavante e conseguiu vingar,matandomais decinco”.

Seumíndioaparecesseemalgumveículodecomunicaçãonascidades,logocaía no sistema de vigilância da Funai. Em dezembro de 1975, o XavanteBenjamineseusogroApoena,daaldeiadeSãoMarcos,participaram,naTV,doPrograma Silvio Santos , no qual apresentaram algumas “danças típicas” epediramdoaçõesde“máquinasdecostura,tratoresedemaisutensíliosparasuascomunidades”. Um mês depois, o chefe de gabinete da presidência da Funaitelefonou à coordenadora daCasa do Índio, noRio, para ordenar que “ambosfossem impedidos de se apresentar em programas de TV , rádio etc.”. A

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coordenadora tentou saber quem custeava as despesas da dupla, mas nãoconseguiu descobrir. Nesse meio-tempo, os índios deram uma entrevista aojornal alternativo O Pasquim , na qual fizeram “críticas desabonadoras aosserviçosdesempenhadospelaFunai”.32

Índiossentiramnaprópriapeleaviolênciadeprepostosdoregimemilitar.Emmaio de 1977, a Polícia Federal deflagrou uma operação para reprimir aproduçãodemaconhaemBarradoCorda,noMaranhão.Namanhãdodia19,uma equipe da PF passou na aldeia Coquinho e determinou que o GuajajaraCelestino Lopes servisse como guia e indicasse mais três índios paraacompanhá-los— João Galdino, Antônio e José Leão. Contudo, foram todoslevados a um prédio na região de Sabonete. Um policial algemou Celestino,amarrouumacamisaemseurostoeolevouparaumasala,ondeoíndioteveacabeçacobertaporumcapuz.Celestinodisseternotadoapresençadotenente-coroneldaPMdoMaranhãoArmandoPerfetti,delegadodaFunaiemSãoLuís.O índiodissequeocoroneloorientoua“contaroquesabeaosmoços”eemseguida saiu da sala.Os policiais deram início a uma longa sessão de tortura.QueriamsaberdoenvolvimentodeCelestinocomoplantiodemaconha.

Umdospoliciaisoestrangulavaediziaqueiriajogá-lodeumaviãoouqueo transformaria num escravo em Minas Gerais. Quando a noite chegou,Celestino, ainda encapuzado, foi levado a um descampado e algemado a umgalhodeárvore.Ospoliciaisdisseramqueeleiriamorrersenãocolaborasse.Foiespancadoechutado“nabarriga,noestômago,nascostas”.Oíndioentãopediua arma de um dos policiais, dizendo que queria se matar. Foi quando elespararam.Nodiaseguinte,Celestinofoilevadoalgemadopelospoliciaisaváriasaldeias,comoseestivesseajudandoapolícia.OsoutrosíndiosentenderamqueCelestinohaviatraídoacomunidade,maseledissequenadafalou.

Umanodepois,napresençadequatrotestemunhasedochefedaFunainaregião, José Porfírio Fontenele de Carvalho, Celestino narrou as torturas. Umdos homens do órgão deixou registrado que, tanto tempo depois, a barriga doGuajajaraaindaestavainchadaeseucorpotinhauma“deformação”.Celestinoexplicouqueissoeraresultadodapancadaqueapolícialhederaequeestavatão

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doentequenãoconseguiamaistrabalhar.Elereconheceutervendidodoisquilosdemaconha,masnãoplantado.33

Em memorando ao tenente-coronel Perfetti, Carvalho contou que outroGuajajara, Djalma, havia narrado torturas semelhantes sofridas de policiaisfederais.Perfetti respondeu aos seus superiores na Funai emBrasília de formavaga sobre um ponto central da denúncia. Disse que “nunca presenciamosqualquer sevícia praticadapelos agentes daPolíciaFederal”. Porém,Celestinohaviaditoexatamentequeeledeixaraa salaantesdosespancamentos.Perfettiafirmouque“nãovislumbrouquaisquermaus-tratos”contraosíndiosDjalmaeCelestino,aquemchamoude“índio traficante”,acrescentandoqueadenúncia“deixatransparecerque[oíndio]foitotalmenteinsinuado”.34

EmofíciodirigidoaPerfetti,CarvalhoreiterouadenúnciaerevelouqueumagentedaPF , denomeAlencar, teria lhe“confessado semqueeuperguntassequeteriaestadonestaáreaeque‘osíndioshaviamapanhadopraburro’”.35AFunai mandou apurar a denúncia. Depois que o sertanista João FernandesMoreira confirmou que a operação da PF fora acompanhada “pelo coronelPerfetti, Domingos Nogueira Neto e um motorista”, o tenente-coronelreconheceuterpresenciadoainquiriçãodeumdosíndios,Djalma,equesoubedaprisãodeCelestino.SobreoespancamentodenunciadoporCelestino,dissenão ter autorizado nem presenciado, mas “se aconteceu condeno e deve serapurada a responsabilidade de quem praticou”. No seu depoimento, CarvalhoacrescentouterouvidodopróprioPerfettiquetestemunharaaPF“baternoíndioDjalma”.Porém,seCarvalhoespalhassesuaconfissão,elenegariatudo.

No relatório final, a comissão da Funai concluiu que “trata-se dedepoimentos que demonstram ser impossível caracterizar a denúncia, umavezquese situamemelementoscircunstanciais”, frisandoa inexistênciadeexamedecorpodedelito.CitouaconfissãodeCelestinosobreavendademaconhaeapontouqueaalegada“confissão”dePerfetti feitaaCarvalhonãopoderia serusadacomoprova.Oepisódiofoiarquivadosemnenhumapunição.36

Namesmaépoca,veioàtonaumterceirorelatodetortura.OchefedopostodaFunai,ElomarGerhardt,contouteracompanhadoumaequipedaPFemoutraoperação de repressão ao plantio demaconha.A equipe parou na casa de um

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colonochamadoOsvaldo,quepassouaserinterrogadosobreaerva.Comonadadisse, recebeu três “telefones”, umgolpedado comasmãos aomesmo temponosdoisouvidosdavítima.Osvaldofoiamarradoelevadoparaumaroça,ondeospoliciaislheperguntaramemquelocalestavaenterradaamaconhaprensada.Omoradornegousaber.OagenteVasconcelossacouseurevólveredeuumtiro“bempróximo aoouvidodeOsvaldo”, dizendoque ele deveria “desenterrar ofumo”.“Osr.Osvaldoolhavaaarma fumegandonasmãosdoagenteeestavaempânico.Seuslábiosnãoconseguiramarticularnenhumapalavraeseusolhospermaneciamvidradosnamãoquesustinhaaarma.”

O morador recebeu mais um “violentíssimo ‘telefone’”, tão forte quemachucouopolegardopolicial.Osvaldocomeçouacavarochãocomasmãos,atéacharummontedegravetosegramaeoferecê-loaopolicialcomo“prova”decrime.Oscolegascaíramnagargalhadaedesistiramdecontinuara tortura,concluindoqueOsvaldoera“desmiolado”.Nocaminhodevoltaparaacidade,umdosagentestentouconvencerElomaraabandonaraFunai,segundocontouoservidor:

Esse serviço com esses fia da p.t. dos índios não leva a nada. Se vocêpermitir,voudescontaressesofrimentonolombodeles.Quedávontade,dá.Vê só emque c. domundoesses sacanas semetem.Esses índiosnão sãoinocentescoisanenhuma,sãoémuitovivos.

Outroagente concordou: “É, senão sentao cacetenesses índios, elesnãodãooserviço”.

Nomeiodaoperação,apareceramíndiosdenunciandoque“civilizados”dospovoados do Alto do Coco e de São Pedro dos Cacetes estavam prestes aexecutar uma invasão em massa nas áreas indígenas Urucu e Juruá. OslavradoresiamaGrajaúcomafinalidadedeobtercadastramentoruraldoIncra,através da prefeitura, à qual pagavam por lote. O chefe da equipe policial,porém,dissequesuamissãoeramaconha,nãoaquestãodeterras,eserecusouaintervir. Elomar lamentou que “os civilizados ficaram sabendo que a PolíciaFederalnãoestánemaíparagarantirapossedaterraemqueosíndiosvivem”.

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AstransferênciasdeterminadaspelaFunainãoatingiamapenasindivíduos,mascomunidades inteiras, desde que fossem convenientes para a administraçãofederal. Essa política atingiu uma pequena e pacífica, porém resistente,comunidade no sul do entãoMato Grosso. Trata-se de uma história de dor epersistência,quetambémilustraàperfeiçãoopapelqueosmissionáriosdoCimipassaramadesempenharsobreaorganizaçãoeaçãodegruposindígenas.

Em1948,quandotrabalhavaparaoSPI,DarcyRibeiroconviveuporquatrosemanascomosOfayé-Xavante,umgrupodedezpessoasdeduasfamíliasqueviviamperto dos riosParaná e Ivinhema.Eles se vestiam como “civilizados”,cultivavama terraecriavampequenosanimais,alémdesairpara trabalharemfazendasdaregião.Falavamalínguaofayéeseidentificavamcomopovoofayé,além de “conservar o sentimento de unidade tribal”, ter os lábios e orelhasfurados,mantero“gostodedormirnochãoemcovascobertasdecapim”eusardevezemquandoarcoeflecha.37

OgrupocomoqualDarcy conversouerao remanescentedeumaoutroranumerosaetnia.Noiníciodoséculo,escreveuoantropólogo,elessomavam“ummilhar de pessoas”. A memória dos índios e os registros do etnólogo CurtNimuendajúnarramtodooviolentoprocessodedizimaçãopeloqualpassaramos Ofayé, com chacinas, fugas e enfrentamentos com “civilizados”. Numafazenda da região, Darcy contou ter encontrado a lápide do fundador, com ainformação de que ele e seus filhos foram “trucidados pelos Chavantes em19/4/1900”.Oataquemotivouretaliaçõesdantescas.

Ficoucélebre,então,ummulatogaúchoqueusavaespadaedepoisdematarmuitos adultos, jogava as crianças para cima e as apanhava espetadas naespada. Ao sair, encontraram duas mocinhas escondidas que conduziramconsigo, porque quase todos queriam levá-las para criar.Mas na primeiraparada amarraram as moças em árvores e as degolaram porque elas lhesderamaentenderquenãodesejavamsegui-los.38

Tendo passado pela região no início do século XX , Nimuendajú coletouinformações sobre as chacinas cometidas por “bugreiros”, assassinosremunerados de índios, em retaliação aomesmo ataque atribuído aosOfayé e

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referidoporDarcy.

Os sertanejos seguiram, então, em perseguição dos índios, chefiados porManoel Nogueira, irmão do defunto. Descendo pelo rio Papagaio para oladodorioIvinhemaeencontramumaaldeiakaiowá,ondeassassinaoitoadezpessoaspacíficaseinofensivas.DizemunsquemataramosKaiowáporengano, convencidos de que eramofaié. […]Comcerteza estes bugreirossaíramconvencidosamatarquantosíndiosencontrassem,fossequalfosseanacionalidade. Istoporque,depoisdeste“engano”,osbugreiros,aindanãosatisfeitos, seguiram rumo leste do rio Samambaia e, encontrando umaaldeiaofaié,mataramatodosquealiestavam.39

Anunciada por Darcy nos anos 1940, a existência dos Ofayé caiu em quasecompletoesquecimentoao longodasdécadasseguintes,comrarascitações,namaioria das vezes identificados como “Xavante” da região de Brasilândia, nadivisa do entãoMato Grroso com São Paulo. Até que, em plena ditadura, osOfayé retornaram ao noticiário — embora de novo chamados apenas deXavante.O jornalista que trabalhava emMarília paraOEstado de S. Paulo ,LuizCarlosLopes,divulgouemagostode1976que“asdoençasdizimamgrupoxavante de Mato Grosso”. Segundo o jornalista, o sarampo, a varicela e acataporadeixavamogrupoàbeiradaextinção.Osduzentosíndiosdadécadade1940,disseele,haviambaixadoparaapenas24em1976.Ojornalistadenunciouoabandonodaetnia.“Naquelaaldeia,ninguémjamaisouviufalaremFunaiouemqualqueroutroórgãodeassistênciaaosíndios.”40

Apesar da dramática notícia do jornal, nada mudou de imediato para osOfayé. Só no final de 1977 houve uma reação, talvez não a esperada pelojornalistaemuitomenospelosíndios.AFunaicomeçouaelaborarumplanodeevacuaçãodosíndiosdesuaterratradicional.

Nascido em abril de 1957, o Ofayé Xehitâ-Ha, nome indígena de AtaídeFranciscoRodrigues,decabelosebarbafartosegrisalhos, recebeu-meemsuacasa na aldeia deBrasilândia no final de 2013.É uma construção pequena dealvenaria caiada, cercada de árvores. Ataíde se expressa com perfeição em

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português.Jáescreveudeprópriopunhoinúmeroscadernosdememórias,algunsdosquaismeapresentou,comumapontadeorgulho.EledissequehojeapenaseleemaisseteOfayéaindafalamalíngua.Casoosoitomorramsemconseguirpassaralínguaparaoutrosíndios,alínguapoderámorrerjunto.Osjovensnãoestão muito interessados, segundo Ataíde, até pela presença de mais decinquentaíndiosguaraniqueconheceramesecasaramcomOfayéesemudaramparaaterradestesnosúltimostempos.

Ataídetestemunhouapequenagrandesagadasuaetniaduranteaditadura.Eleéamemóriavivadeumpovo inteiro.“Comoqueaspessoas,para terumdireito,sofrerambastante.Nósmesmossofremos.Metadedomeupovomorreuparaagentechegarondeestouhoje.”

Depoisdasgrandesperseguições,quereduziramsuaetniaparaapenasduasdezenas, os pais e avôs de Ataíde se fixaram numa área próxima da antigafazendaBoaEsperança,ondeAtaídenasceu,noatualmunicípiodeBrasilândia.Nosanos1970,airmãdeumaduplade“civilizados”,peõesdefazendadeSantaRitadoPardo,interessou-sepeloirmãomaisvelhodeAtaíde,Otacílio.Afamíliadamoçanãogostou.Certodia,o índiodesapareceu.Seucorpo,comsinaisdeviolência, foi encontrado dias depois, e até hoje a morte é um mistério. Namesmaépoca,opaideAtaídemorreudesarampo.

QuandoaFunaifoichacoalhadaparaaexistênciadosOfayé,entre1976e1977,Ataíde tinhapoucomaisdevinte anos edisse se recordar bastantebemdos eventos. Certo dia apareceu na aldeia um dos chefes do órgão no estado,JamiroBatistaArantes.Eleafirmouestaralarmadocomafomeentreosíndioseque eles deveriam sair dali, caso contrário iriammorrer.Disse que havia umaárea sópara índios, com todosos equipamentosdeagricultura,ondeosOfayépoderiamproduzireviverempaz.

Para convencê-los, a Funai levou primeiro para a nova região um OfayéchamadoEduardo,afimdedarumsinalverdeaorestantedaaldeia.Ataídedisseque Eduardo não tornou a aparecer,mas, diante de tantas promessas, a aldeiatodaficouanimadaparamudardelugar.Ataídedissequeemnenhummomentoouviu do órgão uma explicaçãomais detalhada sobre como seria a vida nessaoutraterra.Naqueletempo,disse,elenemsabiadireito“oqueeraaFunai”.

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Osmoradores de Brasilândia, a quinze quilômetros da aldeia, também sediziampreocupadoscomasituaçãodosíndios.Emjulhode1978,quatrodeles,um dos quais era proprietário de uma farmácia da cidade, acompanharam ummotoristadaFunai,DionísioVirgíniodaSilva,quefoiinspecionaraaldeiaparainiciarotransportedosíndios.OsmoradoresescreveramagradecidosaJamiro,naépocaidentificadocomo“chefedospostosdevigilânciadeBodoquena”:

Tivemosagratasatisfaçãodeacompanharosr.Dionísioatéolocalondeseencontramnovefamíliasde índioscomquatroacincopessoaspor famílianoestadomaislamentávelquesepossaimaginar.Sempreprocuramosdar-lhes algum auxílio, mas sem condições de uma recuperação capaz.Sentíamos que continuando naquele estado em breve acabariam noextermínio completo, necessitando até de internamento urgente. […] OsnossosagradecimentossincerosaosmembrosdaFunaipelaatitudehumanae justa que tomaram, decidindo colocar assim estes nossos irmãos,brasileirosnatos,paraumconfortomelhor.41

Bodoquena,odestinodosOfayé,ficanoextremooestedoestado,amaisde650quilômetrosdaaldeiaoriginal.Osíndiosseriamalojadosnaterra indígenadosKadiwéu,comosquaisnuncahaviamtidonenhumtipoderelacionamento.Ataíde disse que, segundo a Funai, a ideia era fazer “uma reserva do tipo doXingu”.

OsOfayénãosabiam,masestavamindoparaumadasáreasindígenasmaisconturbadas naquela época. Desde 1972 a Funai reconhecia que os Kadiwéuviviam “em situação de miséria” e que a posse da terra era “não apenas umproblema econômico, mas também político”. Os arrendatários e fazendeirosinvadiam as terras dos índios, “soltando o gado em suas colheitas ecomportando-se como conquistadores, frente a um povo vencido (prostituindomulheres, dando tiros etc.)”. 42O quadro era tão preocupante que o generalIsmarth solicitou por escrito, em um ofício confidencial, apoio do general dedivisãoTassoVillardeAquino,comandanteda9aRegiãoMilitar,pararealizar“uma manobra na área da serra da Bodoquena” a fim de impressionar osinvasores. Três anos depois, contudo, amanobra ainda não havia sido feita, o

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que manteve na área “a situação atual de insegurança e violência”. Ismarthescreveuqueosórgãosestaduaisestavamtãodepauperadosquenãoconseguiam“sequercoibiradestruiçãoquesevemverificandonasmatasdemadeiradeleidacomunidadeindígena”.43

Emsetembrode1977,osKadiwéupartiramparaajustiçacomasprópriasmãos, aprisionando dezessete invasores. O cacique José Prícipe Silva deu umprazo de vinte dias para eles deixarem a área, caso contrário os índiosincendiariam e atacariam os ranchos a tiros. Os reféns foram libertados emseguida.AFunaisabiadaexistênciade“grileirosquedemarcamlotesdedezacinquentahectaresparavendê-losaestranhosqueignoramoproblema”.Cercade3,5milposseirosestariamnessascondições.44

Amudança dosOfayé foi feita nomês de julho de 1978.Os cerca de 25Ofayé e todos os seus pertences foram colocados num caminhão amarelo daFunai, para uma viagem que durou vários dias.No caminho, a avó deAtaídecontraiupneumoniaefoiatendidaemumhospitaldeDourados.AochegaremaBodoquena, os índios ficaram contrariados com o que encontraram. “Era piorainda.[…].Porqueeraumabrigacivilentreoposseiroeosdonosdaterra,umabriga danada. […] Todo ano ummatando o outro.MeuDeus do céu, era umabsurdo”, disse Ataíde. Segundo ele, os responsáveis pela Funai deram umaordem aosOfayé: deveriam atacar e expulsar as famílias de “civilizados” queocupavam ilegalmente uma parte da reserva. Os Ofayé, porém, recusaram aviolência.“Nósnãofizemosnada,nósnãosomosdoido.”

OsOfayéviveramanosdifíceisnasmãosdosKadiwéuedeoutros índiosqueviviamnamesmaregião,comoterenaekaiowá,enacompletaomissãodaFunai. Ataíde disse que os Kadiwéu “usavam” índias ofayé e também osagrediam“a trocodenada”.Porum tempoosOfayé ficaramnabeiradeumaestrada,vivendodedoaçõesdemoradoresdaregião.Umposseirofoiacusadodemanteremcárcereprivadoeestuprarumaíndiaofayédequinzeanos—oquegerou uma das raras notícias divulgadas por um jornal de grande circulaçãosobreaetnia.45

Certo dia, Ataíde viu um “civilizado” que fora preso pela polícia sob aacusaçãodeterestupradoumaKadiwéu.Emboracompreendesseagravidadedo

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crime, disse ter ficado contrariado com o tratamento que o preso recebeu dapolícia.Ele teria sidoobrigadoaarrastarum tijoloenorme,presoaospés,porváriosquilômetros.“Quandoeuviaquilo,euchorei.Eununcatinhachoradonaminhavida.Agentesentiu.GraçasaDeus,achoqueascoisasmudarammuito.Masantigamenteeradessejeito.”

UmanodepoisdeteremchegadoaBodoquena,umavôdeAtaídecomeçouasofrerpor“corósqueandavamnascostasdele”,masaFunainãoapareceuparaajudá-lo.Coróéadesignaçãopopularparavários tiposde larvas.Levadopelafamília a um hospital em Campo Grande, os médicos “o desenganaram”. OOfayémorreudiasdepois.Namesmaépoca,Ataídeperdeuumatiaeobebêqueela estava esperando.Ela teveproblemasnagravidez, sóque, comomorava asessentaquilômetrosdequalquerlocaldeatendimentomédico,aajudademoroumuito—elamorreunomeiodocaminhoparaacidadedeMiranda.

OsOfayénãoforamosúnicosíndiosempurradosparaaterradosKadiwéupelaFunainemosúnicosasofreremnela.Dionísio,omesmomotoristaquedirigiuocaminhão na transferência dos Ofayé, entrou em ação três meses depois pararemover índios guarani-kaiowá que viviam no atual município de LagunaCarapã,pertodafronteiracomoParaguai.Adocumentaçãoconfirmaointeressedireto de proprietários rurais na remoção dos índios. Uma carta datada desetembro de 1978 assinada pelo procurador da Companhia Matte Larangeira,SinebaldoJosédeLucia,aodelegadoda9aDelegaciaRegionaldaFunai,JoeldeOliveira,agradeceuoempenhodoórgão.AMatteLarangeira, sediadaemSãoPaulo, era desde o final do século XIX uma enorme proprietária de terras naregião fronteiriça, detendo vastas extensões de terra cedidas pela União paraincentivaraexploraçãodaerva-mate.

Foicomsatisfaçãoquerecebemosavisitadeseuassistente,osr.DionisioVerginiodaSilva,queveioemnomedaFunai,delegaciadeCampoGrande,para fazer a remossão de diversas famílias indígenas para a reserva deBodoquena.[…]Omesmoretiroudafazendaototalde121índiosdatribokaiwá,distribuídosem33homens,38mulheresecinquentacrianças,sendo

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25dosexofemininoe25dosexomasculino.[…]Otrabalhodosr.Dionisiofoi perfeito, demonstrando um alto espírito humanitário, transportando,todososíndiossemprovocarnenhumacidente.46

OprocuradortambémagradeceuàFunai“emnomedasfamíliasindígenas”.

Operação semelhante foi cumprida em relação aos Kaiowá de outros doisnúcleospróximosumdooutro,denominadosJacaréeGuaimbé.OcaciqueLídioMoraesrememorou,poucosanosdepois:

Levouminhagente,jogounadivisadoParaguai.[Eu]nãosabiaoquefazer.Chamou[-me] o funcionário do posto [da Funai]. Contou minha história.Contou que já tinha sabido da nossa área, para sair [demarcação] aquelaaldeia. Quando fazendeiro soube desta palavra, ele falou “vou fazerpolítica”,fazermedoparatomarterradele.Queimoudezoitocasas.Chegounaminhacasaefalou:“Vocênãoplantamais,trêsdiasparadesocupar”.47

UmdocumentooficialdaFunaiproduzidopoucodepoisconfirmaahistóriadocaciquesobreasáreasdeJacaréeGuaimbé.

Perto de quatrocentas pessoas os compõem. Foram compulsoriamentetransferidos para o Paraguai, poucos quilômetros além de Pedro JuanCaballero. Literalmente, foram despejados na beira da estrada pelocaminhãodofazendeiroqueostransportou.AFunaiosdevolveaolugardeorigem e,meses depois, os transfere para a serra daBodoquena, perto deseiscentosquilômetros[dedistância].48

Logo após essa remoção, um Guarani-Ñandeva inquieto e comunicativo foivisitar osGuarani na área dosKadiwéu. Ele tinha umamissão especial. RoniLiandesnasceuem1933e,nosanos1970,associou-seaosdirigentesdoCiminosul de Mato Grosso. Com passagens e custos de alimentação bancados pelaIgreja, Roni passou a visitar inúmeras áreas indígenas no Paraná e emMatoGrosso. Ele ganhou “um documento” que lhe permitia receber apoio nasprelaziasemqueaparecessedurantesuasperegrinações.

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FuiverosKainganguesnoParaná,verquemtemterra,quemnãotem,quemtá pelejando para ganhar terra. Eu fui lá orientar, como é que vai entrar,comoéquevaifazerparapoderganharaterra.Faleiparaocacique:“Temque fazer força, não deixamoleza. Se você dámoleza, esperando para obrancovirtrazerparavocêasolução,nãoganhanunca”.NaqueletempooCimiestavatinindo,ajudandooíndio.49

TambémamandodoCimi,ele foi tercomosKaiowáemBodoquena.Aochegar, foi barrado pelos Kadiwéu, mas conseguiu entrar na área depois queinventouqueiriavisitarumairmã.RonidissequeocaciquekaiowáMoraissesentiu “enganado” pelas promessas de vida farta entre os Kadiwéu, “terra‘tombada’[limpa],boi,cafezal,porcoassado”.Roninãoencontrounadadoquefoiprometido.

Estavam todos os índios chorando, não tinha nada para comer. A Funaimandouparaelesfarinha.Umfeijãoduroparacomer.Quandomecontaramassim,fiqueimuitotriste.[…]“Hojejantaeamanhãtemqueacharalgumacoisaparacomer,nóscomeaquiépalmitodebacuri”.[…]Ele[“capitão”]disseque“arrependimuitoquedeixeiaminhaterra”.

Roni participoude reuniões emBodoquena, até queosKaiowádecidiramregressaraJacaré.Adecisãofoivoltarapémesmo.UmgrupodeKadiwéuaindatentou impedir a saída, disse Roni, mas os Kaiowá “fizeram força e saíram”.Essa longa retirada lembra a história trágica dos Araweté na Amazônia. OsKaiowádeveriamvencerumadistânciadecercadetrezentosquilômetros.Pelomenosdoismorreramnomeiodocaminho.

Oprimeirotrechodacaminhadaduroucercadeumasemana,segundoRoni,aofimdoqualogrupochegouàregiãodeBonito.HojeacidadecomessenomeeacidadedeBodoquenadistamcercade75quilômetros.EmBonito,osKaiowáconseguiramumcaminhãodecaçamba—Roniacreditaquea Igrejaajudouacustear o transporte. 50 Um documento da Funai diz que foi o órgão que“apanhounaestrada”os índioseosdeixouemDourados.“Apósquatromesesdeespera”,informaodocumento,osíndiosvoltaramaempreenderacaminhada

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aoRanchoJacaréeGuaimbé,ondederaminícioaumalongadisputapelapossedoterritório.51

OsKaiowádeixaramBodoquena,masosOfayé continuaramsofrendona áreaatéoiníciodadécadade1980.NessemomentoentrouemcenaumpersistentemissionáriodoCimi,umgaúchonascidoemfevereirode1956,emCacequi(RS),quechegouaMatoGrossodoSulexatamentecomamissãodesaberoqueaditadurahaviafeitocomosOfayé.CarlosAlbertodosSantosDutra,oCarlito,éfilhodeumferroviárioedeumadonadecasaderígidaformaçãocristã.Deixoua casa dos pais aos catorze anos para estudar em um colégio agrícola. Aosdezoito,foiservirnoExército.Depoisdedeixarafarda,entregou-seaosestudoseleiturascristãsquenosanos1970incendiavamcoraçõesementesdaAméricaLatina. Comprou e devorou uma edição em espanhol do livro fundamentalTeologia da Libertação , de 1971, do padre dominicano Gustavo GutiérrezMerino.EstudoufilosofiaemumafaculdadedePelotas(RS)e teologianaPUCde Porto Alegre. Na capital,Carlito conheceu as primeiras organizações nãogovernamentaisafavordos índioscriadasnofinaldadécadade1970,comoaAssociação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), cofundada por um futuropresidente da Funai, Julio Gaiger. Em 1981, quando centenas de famílias detrabalhadores rurais sem-terra acamparam em Ronda Alta (RS ), no que éconsideradooberçodoMovimentodosTrabalhadoresRuraisSemTerra(MST),lá estava Carlito . Ele ouvia as músicas revolucionárias da Nicarágua econsultavacomfrequênciaolivroproibidoJesusCristolibertador,umacoleçãodeartigosdeLeonardoBoff,umdosformuladoresdaTeologiadaLibertaçãonoBrasil. Também conheceu umde seus ídolos, domPedroCasaldáliga, a quemmostroupoesiasqueescreviasobreDeuseospobres.

TudoindicavaqueCarlitopassariaaatuarnaComissãoPastoraldaTerra,oequivalenteagrárioaoCiminaIgreja.MassuavidatomououtrorumoquandoeleconheceuoprofessordehistóriaAntônioBrand,umimportanteativistadoCimi. Em uma reunião da Anaí, Brand disse que o Cimi precisava de apoiourgente.E voluntário, sem remuneração.Brand disse que emMatoGrosso doSul havia índios abandonados, expulsos, que precisavam de um

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“acompanhamento”.Carlito foi primeiro aCuiabá, recebeu as informaçõesdaONGOpan, que

sabiadahistóriaofayé,edepoisseguiuparaoCimiemBrasília,paraestudaradocumentaçãodocaso.RetornouaDouradoseprotocolou,naFunai local,umpedidodeautorizaçãoparavisitarosOfayé.Depoisdeuma longae infrutíferaespera de quase um ano, o Cimimudou de estratégia. A Igreja arrumou paraCarlitoumavagadeprofessoremumaparóquiadeMorraria,nasproximidadesda terra kadiwéu. Assim disfarçado, ele tentaria entrar na área mesmo semautorização.

Morraria ficava a cercadequarenta quilômetros da localidadedeTarumã,ondeaFunaimantinhaumposto,guardadoporíndiosterena,quecontrolavaoacesso à área kadiwéu. Perto dali, havia um mercadinho que vendia bebidaalcoólica. Usando uma motocicleta cedida pelo Cimi, Carlito passou afrequentaropostoparaverquementravaesaíaeestudarumaformadeentrarcomoclandestino.ComeçoutambémaaparecernomercadinhoefazeramizadecomosTerena.Segundoomissionário,avigíliaduroumaisdeseismeses.Emtodo esse tempo, nunca viu um Ofayé — e eles estavam a apenas dezquilômetros do portão.Carlito enfim ganhou a confiança dos vigilantes e foiautorizado a conhecer o interior da área. De moto, foi parar direto no localocupadopelosOfayé.Nachegada,tomouumtomboeesfolouoscotovelos.OsOfayécaíramnarisada.

Dos23Ofayéquehaviamsido removidosparaBodoquena,omissionáriocontoudezessete—pelomenos três haviammorrido e outros foram trabalharem fazendas da região.Boa parte da alimentação do grupo vinha do abate deanimais como macaco, tatu e porco-do-mato. A saúde dos índios era “muitoruim”,segundoomissionário.

Haviaváriaspessoasdeitadasnochão,largadas.Anoçãoquesetinhaéquenuncaummédicohaviaestadolá.Quandoelesprecisavamdeatendimento,tinhamqueiraBodoquenaouMiranda,amaisdesessentaquilômetros.Nãotinha camionete, tinham que vir de carona. Eles estavam lá para morrer.Tanto que uma senhoramorreu a caminho do hospital. Eles diziamque a

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Funainuncatinhaaparecidolá.52

Carlitolevouumgravadorpararegistrarasconversasehistóriasdogrupo.QueriaproduzirprovasparaapresentaràFunaiedefenderoregressodosíndiosparaumaterraprópriaemBrasilândia.Depoisdemesesnessetrabalho,tevequeir aBelém para um encontro doCimi.Ao voltar aBodoquena, omissionáriodescobriu que todos os Ofayé haviam ido embora por conta própria. Tinhamvendido o feijão armazenado, reunido dinheiro e comprado passagens de trematéTrêsLagoas.Lá,pegaramumônibusechegaramaBrasilândia.HaviamsepassadocercadeseisanosdesdequeosOfayéentraramnocaminhãodaFunai.

Na cidade,Ataíde deu de cara comumdos fazendeiros que, segundo ele,haviapedidoa transferênciadosOfayé.Ohomemdissequepensaraquetodoshaviammorrido.AprimeirareaçãodemuitosmoradoresdeBrasilândiasobreoretornodosíndiosfoinegativa.“Elesdiziam:‘Porquevocêsvoltaramaqui?Nãotinham ido embora não sei para onde?’. Eu não dizia nada, não podia falarnada.”Ataídedisse ter sido interpeladopelo filhodeum fazendeiro comumaameaça.“Elemedisse:‘Setomarnossaterra,vocêsnãovãomorardentrodessaárea,não’.”

A princípio os índios ficaram espalhados pela zona rural, em grupos. Emuma das propriedades, segundoCarlito , acomodaram-se “em uma estrebaria,junto com cavalos e vacas”. “Eu fiquei escandalizado. Forasteiros na própriaterra, e agora estão trabalhando para quem os explorou. Emuitas vezes era atrocodecachaça,nãopagavam.”

Nesseprocesso,Carlitocriouinimizadesnacidadeequasefoiretiradodelápela Igreja, que temia pela sua segurança.Ele começou a fazer campanhas narádio local e na comunidade. Obteve um importante apoio do bispo IzidoroKosinski,deTrêsLagoas,queacionouumaentidadefundadapeloVaticanoqueajuda indígenas em situação de miséria. Os Ofayé tiveram que montar umacampamentoimprovisadonamargemdorioParaná.

OCimi tambémqueria resgataro amor-própriodos índios eo respeitodacomunidadedeBrasilândia.Carlitocriouumaespéciedevale,quepermitiaqueos índios fossem elesmesmos ao comércio e pudessem gastar com comida e

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roupas. O Cimi também obteve uma linha de financiamento da Oxfam,organismointernacionalsediadoemLondres.

Outra tarefa do missionário foi viajar ao Rio para obter do antropólogoRubem Thomaz de Almeida uma documentação sobre áreas antes ocupadaspelosíndios.TambémqueriareceberdeDarcyRibeiromaisinformaçõesantigasacerca dos Ofayé e debater um ponto polêmico de um dosmaiores livros doantropólogo,Osíndioseacivilização,lançadoem1970econsideradoumadasprincipais obras já escritas sobre o índio no Brasil. No livro, Darcy haviaincluídoosOfayéemumatabelade“etniasextintas”,referenteà“situaçãodosgrupos indígenasbrasileirosem1957”.Emummapadospovos indígenasquehabitavamo sul deMatoGrossopublicadonamesmaobra, osOfayé tambémsumiram.53

OqueCarlitoqueriaexplicareraqueomesmoDarcyquehaviaproduzidouma das peças mais importantes sobre os Ofayé, o texto “Notícia dos Ofaié-Chavante”, de 1951, involuntariamente acabara dando argumentos aosadvogados de fazendeiros da região, que começaram a citar o livro doantropólogo como uma evidência de que os Ofayé não existiam, pondo emxequeaorigemdogrupodeBrasilândia.OutraconsequênciadeOs índios eacivilizaçãoenvolviaaFunai.SegundoCarlito,combasenolivrooórgãotinhadificuldade para reconhecer aquele grupo como indígena e o excluía das suasprioridades. O missionário queria saber se Darcy “tinha conhecimento” dosíndiose,sepossível,extrairdeleumaespéciedeerrata,porescrito,parausaremprocessos judiciais. Já havia lhe mandado duas cartas, mas não receberaresposta.LevadoatéoapartamentodeDarcypeloantropólogoCarlosMoreiraNeto,Carlitofoiapresentadoaoex-ministrodeGoulart,queorecebeusentadoenãoestendeuamãoparacumprimentá-lo.ElenegouterrecebidoascartasqueCarlito disse ter enviado. O missionário queria saber por que Darcy“‘sentenciou’osíndiosofayédoestadointeiroapartirdeduasfamílias”.Apartirdaí a conversa virou uma “disputa verbal”. “Eleme explicoumais oumenosassim:‘Aquelesíndioslá,aquelasduasfamílias,nãocaracterizavamaentidadeétnica’, […] que seria um grupo que trava relações mais íntimas, tem umaexperiênciatribaldereligião,dedança.”

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C arlito disse ter retrucado com o argumento de que o grupo que elepesquisava tinha todas essas características citadas. Darcy perguntou quantosfalantes de ofayé ainda existiam. Ele respondeu: “Dezessete ou dezenove”.Darcymanteve sua posição.Carlito saiu demãos abanando. “Ele não tinha odireitodeescreverqueosíndiosestavamextintos,porqueissoteveumimpactomuito grande nas políticas públicas e na história. […] Eu queria que elecorrigisse,colocasseumaerrata,fosseumpoucomaisclaro.”

***

NamesmaépocaemqueatuoujuntoaosOfayé,CarlitofoichamadopeloCimiacolaborarnotrabalhocomosGuaranidosuldoestado,quetinhamcomeçadoa invadir fazendas na região, em ações que denominavam“retomadas”.Brandhaviaproduzidoummapadasantigasáreastradicionaisocupadasporíndios,oque,paraoconselho,davabase jurídicaehistóricaàaçãodeles.Carlitodisseque o Cimi não estava na vanguarda, mas no “resguardo”, e que “oprotagonismo era sempre dos índios”. Nesse longo processo de invasões edespejos, o Cimi apoiou o uso de armamentos e munição pelos índios, umsegredo guardado pelo missionário por quase três décadas. A intenção erapromover a proteção deles, que passavam a ser ameaçados por fazendeiros.SegundoCarlito,nenhumadessasarmasfoiusadaparamatarfazendeiros.

Emalgunsmomentosdemaiorembate,eulembro,alémdaenxada,dalonapretaquesefornecia,omaterialbélicoveiculavajunto.Agentefaziavistasgrossas,mas fazia parte do processo.Não ia penalizar um índio por estararmadoouestarbuscandomunição.EntãooCimilevouassimaoextremoadedicação,ocomprometimentocomacausaatéoúltimomomento.[…]AcoisamaisarmadafoiaquiemMatoGrossodoSul.PorqueoCimidecertaforma deu garantia para muita resistência, e garantia efetiva, até com ofornecimento de material bélico. Isso eu participei. […] É uma coisacomplicadadefalar,maseuvivencieiisso,sim.

OmissionárioentrounamiradaPolíciaFederal,queporduasvezesfoiemseu encalço na paróquia de Dourados. O então bispo de Dourados, dom

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TeodardoLeitz,apareceunoescritóriodoCimiparaavisarqueCarlitoprecisavasumir,poisnodiaseguinteaPFiriadarumabatidaatrásdele.ElefezasmalasepartiuparaBrasilândia.

C arlito participou de retomadas de tekoha ao longo de muitos anos, de1985,quandoentrounoCimi,até2002,anoemquedeixouoconselho.Nessemeio-tempo, ele, o Cimi e os índios enfim conseguiram uma primeira áreadefinitivaparaosOfayé,nazonaruraldeBrasilândia.AterrafoiadquiridapelaCompanhiaEnergética de SãoPaulo (Cesp) comouma compensação por umausinahidrelétricacujolagoartificialinundouterrastradicionaisdosíndios.

A longa jornada dos Ofayé desde Bodoquena enfim chegou a uma pausaparadescanso.Paraoutropersonagem,porém,aviagemdurouquasetrintaanos.

Nofinalde2013,aochegaràáreadosOfayé,fuiinformadoporCarlitodequeos índios estavam felizes com uma boa notícia. Desde que haviam deixadoBodoquena, por volta de 1986, os Ofayé não haviam recebido nenhumainformaçãoarespeitodoparadeirodeEduardo,aqueleprimeiroíndioquehaviasidolevadonafrentepelaFunaiparaobservarascondiçõesdaáreadosKadiwéueconvencerosoutrosíndiossobreamudança.OsOfayéacharamqueeletinhamorrido.

Em meados de 2013, porém, o Ofayé Koi recebeu informações de queEduardo, seuprimo,que teriaentãomaisde sessentaanos, fora localizadoemuma área terena de Sidrolândia. Em novembro desse ano, Koi enfim sereencontrou com o primo, em Campo Grande, durante uma reunião comlideranças indígenasdoestado.Eduardofoi trazidoparaaaldeiadosOfayénomesmodia.

Fui apresentado a um Eduardo sorridente, de boné e calça jeans,caminhandodescalço.Osdedosdeseuspésestavamtomadosporumamicosepreta,queformouumaprotuberância,aexigiratendimentomédicourgente.Koidissequeerauma“frieirabrava”.MasamaiorsurpresaéqueEduardoésurdoeparecenadasaberdoportuguês.ParaKoieosoutrosOfayé,foiesseomotivodeaFunaitê-loescolhidoem1978.

Elesfalaram:“Vamoslevaresseaquimesmoparaelenãopoder transmitir

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paraos‘parentes’,futuramente”.Achoquefoiumaestratégiabemmontada.Porque se levasse outro indígena com mais conhecimento e mais noção,comcertezaeleiadesistireiadizerqueagentenãofosseparaBodoquena.

OsGuaranidoParanátambémsofreramtransferênciassobopesodaditadura—estas,relativasaumadasprincipaisobrasdeinfraestruturadogovernomilitar.Oditador doParaguai,AlfredoStroessner, havia tomadoo poder em1954, apósumgolpecontraFedericoChávez.Emmeadosdosanos1960,eleeosgeneraisbrasileiros começaram a trabalhar umprojeto em comumpara aproveitamentohidrelétricoderiosdabaciadoParaná.Emjunhode1966,oschanceleresJuracyMagalhãeseRaúlSapenaPastorassinaramaAtadeIguaçu,segundoaqualospaíses se comprometiam a proceder ao levantamento dos recursos hidráulicos“emcondomínioaosdoispaíses,doSaltoGrandedeSeteQuedasouSaltodeGuaíra”, na fronteira. Em 1973, Stroessner assinou com o ditador Médici oTratadodeItaipu,criandoabinacionalhomônima,depoisdefinidacomo“pessoajurídica de direito internacional, da espécie dos organismos internacionais,dotada de inequívoca natureza empresarial”. O nome, em guarani, significa“pedraquecanta”etambémbatizavaumailha.Ahidrelétricaquaseduplicouageração de energia elétrica brasileira. Os investimentos teriam atingido 16bilhõesdedólaresemvaloresatualizadospelaprópriaempresa.54Seuscustosambientais, porém, foram incalculáveis. Além de varrer da face do país umcartão-postal, as Sete Quedas, a usina alagou um total de 1350 quilômetrosquadradosnosdoispaíses.

O lago artificial foi criado em 1982. Dez anos antes, porém, a ditaduratrabalhoucomafincopararetiraríndiosecolonosdasimediações.Entre1940e1980,osGuaranidoParanánafronteiracomoParaguaiforampressionadospelacriaçãodoParqueNacionaldo Iguaçu, em1939, eporaçõesdogovernopara“liberar”aáreaparaasobrasdeItaipu.Osíndiosdepoiscontabilizaramaperdade32tekohas,comosereferemàssuasáreastradicionais.Várioscasostiveramrelação direta como lago de Itaipu, em especial as aldeiasColôniaGuarani eOco’Y-Jacutinga.Nosdois casos, segundoos relatosposterioresdos índios, asterras“foraminvadidasentre1971eem1973”por“representantesdoIncraque,

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armados,expulsaramdo localosGuarani”.Em1971,adelegaciadaFunaiemCuritibafoialertadapeloComandodo1oBatalhãodeFronteirasepelogovernoestadual sobre “a existência de um grupo tribal e da conveniência deregularizaçãodaáreadeterrasporeleocupado”,localizadoemFozdoIguaçu.Em 1976, o coordenador regional do Serviço Público Federal pressionou odelegadoregionalFranciscoNevesBrasileiroatomarmedidas,mencionando“asconstantes pressões que vem sofrendo esta coordenadoria regional para queproceda à titulação daquela área aos seus ocupantes”, faltando apenas “aliberaçãodaáreaporesseórgãoparaaoutorgadostítulos”.BrasileiroinformouaogeneralIsmarthqueoIncra“insistenaliberaçãodasterrasdessacolônia,parafimde titulaçãodasmesmasemfavordoscivilizadosqueas invadiramevemocupando”.55

A Funai por fim “permitiu que o Incra desenvolvesse dois projetos decolonizaçãodentrodoterritórioguaranivisandoassentarcolonosqueapartirde1967passaramaserremovidosdointeriordoParqueNacionaldoIguaçu”.Em1976, o órgão disse haver apenas onze famílias indígenas no local. Depoisreduziuaindamaisessenúmero,pormeiodeumlaudocontroverso,paracincofamílias. Elas foram acuadas e, por fim, se espalharam por outras regiões ealdeias.

Logo depois da ditadura — embora menosprezando a mobilização dosíndios,dizendoqueeleseram“insufladospelasinstituições”,citando“religiosaseemespecialpeloCimieaComissãoPastoraldaTerra”—,aItaipuBinacionalreconheceu textualmente que naquele período houve “a relocação dos índios”.Segundo a versão edulcorada elaborada pela hidrelétrica, a ação ocorreu“observado rigorosamente a lei”, “a interferência da Itaipu abrangeu fraçãoirrisóriadasupostaáreadosíndios”easterras“permanecemforadainundação,ocupadasporcolonos”.AItaipuadmitiuaindaqueosíndiosviviam,entre1975e1982,numa“antigaaldeianabarradorioJacutinga”.

Há,sim,referênciasdealgumasfamíliasnômades,ocupandoareferidaárea,descendentesdatriboAva-Guaraniqueoutroraocupavaaregiãoemambosos lados do rioParaná, com sede e origemnoParaguai.As aerofotos dos

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voos de 1953, 1962, 1974 e 1979 mostram que: a área ocupada pelosindígenassemanteveaproximadamenteconstantedesde1953;ocorreuumvertiginoso processo de colonização, que acabou por envolver a áreaindígena.56

Os índios supostamente “nômades”, porém, erammais alguns dos gruposque,demaneira implacável, foramretiradosdeseus territóriosoriginaisparaapassagemdeprojetosdaditadura.

OmodelodetrabalhofeitopeloCimicomosGuaranidoParanáeosOfayédeMato Grosso do Sul — de organização, pesquisa histórica, apoio jurídico efinanceiro—serepetiuemváriospontosdopaíscomoutrasetnias.NascidoemPresidente Olegário (MG ) em 1954, em uma família católica pobre detrabalhadores rurais, Sebastião Carlos Moreira foi catador de amendoim ealgodãoemorouemalberguesefazendascommaiscincoirmãospequenosemdoisestados,SãoPauloeParaná.Aosseteanos,Tiãojátinhasuaprópriaenxadaparairàroça.Em1975,apósumageadaquedestruiuplantaçõesdecafé,TiãoesuafamíliadecidiramsemudardoParanáparaomunicípiodeDenise,emMatoGrosso.AlieleseintegrouàscatólicasComunidadesEclesiaisdeBase(CEBs)epassouadaraulasdecatequeseparacriançaseadultos.57

Porvoltados catorze anosde idade,Tiãopassoupor uma crise espiritual.Elehaviaaprendidoque“DeuséPai”,masseperguntavacomo“Ele”poderiaadmitir “que alguns de seus filhos sofressem tanto e outros, que eram osfazendeiros, explorassem tanto”. Tião disse ter primeiro concluído que “DeusnãopodeserPai”,contudoessaideiatambémcausavaaflição,poisrepresentavao inferno.Chegouentãoaum termo: “De fatoDeus eraPai, eomundoera acasa dada por Deus para todos habitarem, mas os seres humanos criaramdivisões de classe, emqueumexploravao outro, e isso não era a vontadedeDeus”.Tiãocomeçouatrabalharnaperspectivadeque“ninguémestánomundoparaserescravodeninguém”.

Em1977,comuns22anos,Tiãodeixouafamíliaeacidadeparairestudarcom jesuítas em Cuiabá. Lá, trabalhou como servente de pedreiro e vigia

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noturno.Pensouemserpadre.Antesde irparao seminário,porém,queria ter“umaexperiêncianomeiodopovo”eporissopassouafrequentarreuniõesdemovimentos de trabalhadores sem terra e famílias sem teto, em meio aonascimento do Partido dos Trabalhadores (PT ) e da Central Única dosTrabalhadores(CUT).Acabouconhecendopadresjesuítasquetrabalhavamcompovosindígenas.TudoissoolevouparaosbraçosdoCimi,em1979.

DepoisdeolharomapadasetniasindígenasemMatoGrosso,TiãopediuaoconselhoautorizaçãoparatrabalharemJuara,ondeviviam,namargemesquerdadoriodosPeixes,osKayabie,nadireita,osApiaká.Desdeosanos1960,pormeio do padre João Dornstauder, a Missão Anchieta atuava na região. Lá seconcentraram grupos de Kayabi que se recusaram ou não foram localizadosquando da transferência realizada pelos irmãos Villas Bôas, em 1966, paradentrodoXingu.Nadécadade1960,gruposdeApiakátambémforamatraídospara a mesma região. Em 1974, o “capitão” apiaká Pirí contou que muitosApiakáeramescravosemseringaisdaregião.

Somos quarenta e poucos. Estou fazendo força para juntarmeus parentesespalhados. Estão colhendo seringa, espalhados, explorados. […] Fizemosviagem de três meses, trouxemos nove pessoas dos nossos parentesespalhados.Nãopudetrazeroutrosporquetêmmuitadívidanobarracãodoseringueiro.58

Situação semelhante viviam os Kayabi. O “capitão” Iopareipo, oChico ,faloudasconsequênciasdaoperaçãodetransferênciadosanos1960.

Nossagenteestádividida.Eunãoseiparaondemeupaifoi.Pessoalchegoulácompolíciaparalevarnossagente,namarra.Eunãoquisir.PadreJoãoestava fora.Quando chegou, ralhou comigo: “Comodeixounossopovo irembora?”. […] Eu quero juntar todomeu povo. TemKaiabi na Barra doBugres,nacidade,norioNovonoParqueXingu,norioPeixoto.Estoucomsaudadesdomeupovoespalhado.59

Aochegaràregião,em1982,TiãoouviudeChicoqueaFunai,aodemarcaraterraindígena,haviacometidoumerroquedeixaradeforaosaltoKayabi.Para

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os índios, era um local sagrado. Acreditavam que um antigo pajé continuavavivonofundodopoçodosalto.Quandoospajésdaaldeiaqueriamumconselhosobreumadecisãoimportante,dirigiam-seaosaltopara“ouvir”opajémorto.

Os índios cobravam Tião para que pressionasse a Funai a refazer ademarcação e incluir o salto.Omissionário respondeu que, se o órgão estavademorando, e se os índios sabiam os limites corretos, então que elesmesmosfizessemademarcaçãocompicadaseplacas.Elesresponderamquehaviamuitojagunço armado na região e tinham medo de morrer. Tião disse que elesprecisavam ter coragem. Dias depois, os índios o procuraram para dizer queestavamdecididos a fazer a demarcação.Emummês, fizerammuitos arcos eflechas e começaram a abrir a picada com facões e machados. No caminho,encontraramumtratordeesteiraabrindoumaestradadeterraparaaprefeiturade Porto dos Gaúchos. Tião explicou aos índios que, se a estrada fosseconstruída, muitas famílias de trabalhadores rurais chegariam à região. OsKayabi arrancaram os marcos de medição e os jogaram no mato. Semanasdepois,quandootemposecou,queimaramotrator.Oataqueprovocoucomoçãona região e as rádios passarama acusar osmissionários. ParaTião , os índiostinhamodireitodelutarpelaterraeoataquefoiumaopçãoválida.“Euachavaque tinhaquecausarumfatoquedesserepercussão,casocontrárioa terranãosaía.Eatéhojeeuacreditoqueàsvezesénecessáriocriarconflitosparaacelerarprocessos.”

Como os Apiaká adultos já haviam sido catequizados pela missão deDornstauder,elespediramaTiãoquedesseaulasàscrianças.Eledisseterficadosurpresoquando,aoindagaroqueachavamnecessárioparaqueopovoapiaká“tivessevida”,elasresponderam,nestaordem,“terra,mataeágua”.OsApiakáchamaramTiãopara uma reunião. Eles iriam fazer demarcação pelas própriasmãos.

Omissionário arrumou a fotografia de uma placa da Funai de outra terraindígenaepediuqueumlaboratórioemCuiabá fizessecópias.Levou-asaumpintor, que confeccionou seis placas com os dizeres “Terra Indígena Apyaká-Kaiabi”.Elapassariadecercados60milhectarespropostospeloórgãoparaumtotalde109mil.Tiãoeosíndiosfizeramapicadaeinstalaramasplacas.Certo

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dia, seis homens se aproximaram com espingardas nos ombros, revólveres nacintaefacões.Umdeles,quesedissegerentedeumafazendavizinha,veiofalarcom o missionário para pedir que ele convencesse os índios a parar com ademarcação.Tiãodissequenãopodiafazernadaporqueaterraeradosíndios.Otrabalho continuou. Dias depois, ao visitar um casal em Juara, a cerca decinquenta quilômetros da missão, Tião soube que corria risco de morte. Omesmorecadochegoucommaisveemênciadiasdepois.Umamissionáriahaviaescutadoumgrupodehomensnacidadefalandosobre“pararcomobarbudo”.Tião chamava todas as atenções ao passar por Juara. Além da barba, usavacamisetasdoCimiecomestampasdeCheGuevara,alémdecolaresindígenas.

Namesmaépoca,ogovernoanunciouqueiriatirardopapelumplanoparaconstruir uma usina hidrelétrica no rio dos Peixes. A notícia caiu como umabomba entre os índios. Um padre de Juara sugeriu uma apresentação culturaldeles no ginásio da cidade, para diminuir as tensões com “civilizados”. Oevento, contudo, derivou para uma série de discursos em que os índios, aomicrofone,falaramsobreadisposiçãodedefendersuasterrasaqualquercusto.ACentraisElétricasMatogrossenses(Cemat)ignorouosavisos,instaloualgunsbarracões e começou as obras. Em resposta, cerca de oitenta índios, combordunas e espingardas, atacaram, depredaram, queimaram máquinas ebarracõeseocuparamocanteirodeobrasdaCemat60.

A tensãocresceuna regiãoeos índiospediramqueTião fosse embora.Ahidrelétrica nunca foi construída. Dois anos depois, a área foi registrada pelaFunainos109milhectaresdemarcadosàforçapelosíndios.

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21.UMMOINHOFEROZ

DARCYRIBEIRO,OANTROPÓLOGOQUENÃOSEANIMOUCOMosOfayéremanescentesnaconversacomCarlito,eraumvibrantee reconhecidodefensordospovosindígenas.HaviasidoetnólogodoSPI,contratadoem1952,antes de ser reitor daUnB,ministro da Educação (1962-3) e último chefe daCasaCivildogovernoGoulart.1Derrubadodocargopelogolpede1964,comos direitos políticos cassados por dez anos pormeio de umAto Institucional,demitidotantodoSPIquantodaUnBesobaameaçadeprisão,DarcypartiuparaoexílionoUruguai.Em1968,decidiuregressaraoBrasilporsuacontaerisco.Passou a dar entrevistas atacando a ditadura. Um dia após o AI -5 entrar emvigor,emdezembro,DarcyfoipresonoRio,passouporduascadeiaseacaboutrancafiadonopresídiodabasedosfuzileirosdaMarinhanailhadasCobras,noRio.Aos seus carcereiros, e para surpresadeles, contouquenão apenashaviasido “amigo e discípulo” domarechalRondon,mas que o herói dosmilitarestinha morrido “de mãos nas minhas mãos, dizendo frases do catecismopositivista.Inclusive:‘Amor,ordemeprogresso’”.Darcyficoutrêsmesespreso,foisoltopordecisãojudicialedenovopartiuparaoexílio,agoranaVenezuela.2

Darcy foi condenado, à revelia, a treze anos de prisão por um conselhomilitareteveordemdeprisãoexpedidapelocomandodaDivisãoBlindadadoIExército, além de virar réu em processos judiciais “instaurados nas váriasauditorias do sul do país e de Brasília”, sob acusação de crimes contra asegurançanacional.3TambémperseguidafoisuamulherBertaGleizerRibeiro,formadaemgeografiaehistóriapelaFaculdadedeFilosofia,CiênciaseLetrasdaUniversidadedoRio.Nascidaem1922naRomênia,Bertafoiumaprofícua

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pesquisadora dos mais variados temas indígenas, da arte plumária dos UrubuKaaporaousodovenenocurare,tendotambémajudadonaelaboraçãodolivrofundamentaldeDarcyOsíndioseacivilização.4

Aanistiaveioem1979,masDarcyobteve,porcausadeumgraveproblemade saúde, autorização para regressar antes disso ao Brasil. Ele descobriu umcâncer no pulmão e requisitou ao governo brasileiro uma liberação para seroperado aqui, concedida em dezembro de 1974 pelo Ministério da Justiça. 5Contra os prognósticos mais sombrios, Darcy venceu a doença. A partir daí,passou a participar da vida política do país, surgindo em notas e notícias dejornal,massemprecomo“antropólogo”,enãocomooex-ministrocassadopelosmilitares.Decertaforma,eledefatohaviasedespido—oumelhor,odespiram—de sua condiçãodepersonagemdavidapolítico-partidáriapara retornar aotemaquetantoomobilizaranosanos1940e1950,osíndios.

Darcyvoltouàativanummomentodeatividadefebrilnocampoindígena.O Cimi estava em plena ação nas aldeias, com suas assembleias indígenas.Muitos sertanistas e indigenistas da própria Funai começavam a denunciar equestionarpublicamenteapolíticaoficial.Osíndios,porsuavez,desenvolviamsuas próprias reuniões e organizações. Emuitos antropólogos, trabalhando ounãoparaaFunai,passaramadarascaras.AditaduracomeçouapagarumpreçoporaquelesanosemquedesencadeouobrasportodaaAmazônia,aferroefogo,sempre sem esclarecimentos prévios e muito menos concordância dascomunidadesindígenas.Nessemomentodeebulição,Darcyfoiumavozpúblicadestemida.

Umadassuasprimeirasatuaçõespúblicasapósoretornoaopaísnoticiadaspela imprensa foi justamente um seminário sobre o índio, realizado em PortoAlegreemabrilde1977,noqualdissequeastribosvinhamsendosubmetidasa“uma ditadura burocrática que vende sua madeira e aluga suas terras”. 6 Emagosto,DarcyparticipoudadelegaçãobrasileiradoIIEncontrodeBarbados,noCaribe, que criticou “o regime de tutela exercido pela Funai”, contrário àparticipaçãodeíndiosemreuniõesinternacionais.7

Os militares reagiram. Em outubro, a liderança da base governista noCongressooperouparacancelarumconvitefeitoaDarcyparaqueparticipasse

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deumdebate,noSenado,sobreaeducaçãonoBrasil.OsenadorgovernistadeAlagoasArnondeMelo,paidofuturopresidentedaRepúblicaFernandoCollor(1990-2), apoiouo cancelamentodo convite, qualificandoDarcyde “elementocassadopelaRevolução”.8ArnontambémhaviaatacadodatribunadoSenadoocolega norte-americano Edward Kennedy por ter denunciado, nos EstadosUnidos,oassassinato“sistemático”deíndiospeloEstadobrasileiro.9

Oambientepesoudevezquandoosmilitarestrouxeramàbailaumapalavraque incendiaria o debate público. Em abril de 1978, o ministro do Interior,Rangel Reis, e o o general Ismarth confirmaram que estava em fase deelaboraçãonoministério“umprojetodeEmancipaçãodoÍndio”.10Emsíntese,tratava-sedeestabelecerdiversoscritériospelosquaisumacomunidadeindígenaseriaconsideradaintegradaà“civilização”.Umavezconfirmadaaintegração,oíndio poderia ser declarado “emancipado”. As terras indígenas seriam entãodivididas por núcleos familiares, não mais constituindo um território uno eindivisível.11OíndioemancipadotambémpoderiadeixardeseratendidopelaFunai e pela política indigenista oficial. Oministro confirmou que o objetivofinalera“entregaraoíndioaposseeodomíniodesuas terras, libertando-odatuteladogoverno”.SegundoReis,haveriadoistiposdeemancipação:“agrupaleaindividual”.Noprimeirocaso,osíndiosseriamautorizadosanegociar suasterras“apósumperíododedezanos”.Nasegundahipótese,adoaçãoda terraaosíndios,pelaUnião,“dependeriadasituaçãodobeneficiado”,ouseja,seeleseriacapazounãode“desenvolveratividadesagrícolas”.12

As ideias de tornar terras indígenas ocupadas havia centenas de anospassíveis de negociação e de que os índios se tornariam pequenos produtoresrurais da noite para o dia causaram forte rejeição emdiversos setores da vidanacional.Aconclusãomaisóbviadosantropólogosemissionáriosfoiaseguinte:seoEstadodizqueo índionãoémais índio, entãoa terrapode ser retomadapela União, usada e repartida entre fazendeiros. Se a ditadura conseguisseaprovar a lei, inúmeras terras indígenas no Brasil seriam simplesmenteeliminadas do mapa, vendidas a particulares. Líderes indígenas corrompidosfacilitariam as transações, comprometendo as gerações futuras. Além disso,haviaahipótesedeaprópriaFunaiantecipar-seepediraemancipaçãoemnome

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dedeterminadogrupoindígena.A ideia da emancipação vinha sendo acalentada fazia muito tempo pelos

militares.Emmarçode1975,duranteoseminário“Funai/MissõesReligiosas”,Ismarthfalouabertamentesobreotema.Nahora,porém,issopassoubatido,nãotendo suscitado nenhum questionamento dos membros do Cimi presentes aoencontro.Falandoacercadotrabalhodasmissões,elepontificou:

É importante para o índio, é importante para o governo que definiu porpolítica a integração do índio, e essa integração é feita por intermédio deuma emancipação. E essa emancipação econômica vai constituir um fatortambémválidoparaaintegraçãodoíndionaComunhãoNacional.13

Emjaneiro,RangelReishaviaditoementrevistacoletivaemBrasíliaquepretendia promover a emancipação dos índios “a longo prazo, quando elestiveremmaisconsciênciadanecessidadedeproduçãocomercializável”.14Em1976,aovisitar asaldeiasdeTaunaye Ipegue, emAquidauana (MT ), Ismarth“chegou à conclusão” de que os Terena estavam “em adiantado estado deaculturação” e que “para alcançarem a emancipação necessitam de projeto dedesenvolvimentocomunitário”.15

Propostas de emancipação chegaram a ser apresentadas pela Funaidiretamenteagruposindígenas,comorevelamdocumentosoutrorasigilosos.Osíndios tembé, do posto Alto Rio Guamá, no Pará, contaram ao Cimi ter sidoprocuradospelodelegadoregionaldaFunaicomumaestranhaideia.

Eleveionosproporestapropostadedarduzentoshectaresdeterraparacadaumdenós,demarcada,documentada,davacercadadearame.Bom,opovotodoninguémentendianemoqueerahectare,ficaramamaiorpartecalado.[…]Ficoutodomundocommedo,adepoiselecalmou,pediuaopiniãoseelepodiadizerquenósaceitavaestaproposta,aíninguémconcordou.16

O homem do Cimi indagou qual era o objetivo do delegado. O caciquedetalhou que ele lhes dissera “que nós aproveitasse a oportunidade antes queperdessetudo,aterra,queassimcomonóspodiaganharessesduzentoshectarespodia ser emancipado a nossa reserva. […] De certeza, ele prometeu

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emancipaçãoparanósaqui”.

Emabrilde1977,coubeaosíndios,reunidossobacoordenaçãodoCimi,darosprimeiros gritos de guerra. Emuma declaração assinada por representantes deXavante, Bororo, Pareci, Apiaká, Guarani, Kaingangue, Kayabi, Terena eKaiowá,osíndiosrepudiaramaproposta.

Emancipação, Integração. São termos antropológicos. Que representamessas palavras para o índio?Acaso foram termos criados pelo índio? […]Estamos pedindo “integração e emancipação” na sociedade dos brancos?Não.Nós queremos apenas reconhecimento e respeito à nossa integridadefísica e cultural. Que nossa integração e emancipação sejam feitas dentrodosnossospadrõesculturais.17

Emjulhode1978,Darcypartiuparaoataque.DuranteareuniãoanualdaSociedadeBrasileiraparaoProgressodaCiência(SBPC),sugeriuqueoprojetode emancipação pretendia beneficiar arrendatários da área dos Kadiwéu emBodoquena. Dias depois, Rangel Reis telefonou para a SBPC para saber dodiscursodeDarcy,masa instituiçãoafirmounão tê-logravado.À imprensa,oministroanunciousuadisposiçãodeabrirumprocessocontraoantropólogo.18

Darcy não recuou, pelo contrário. Convocou uma entrevista coletiva, noRio,naqual ampliou, em termosduros, suasobjeções.DissequeoprojetodeReisera“umaaçãonefasta”eque,sepudesse,eleéqueprocessariaoministro“por infidelidade às nossas tradições indigenistas”. “OministroRangelReis éhoje,noBrasil,umaespéciede‘anti-Rondon’.[…]É,hojeemdia,semsombradedúvida,oinimigopúbliconúmeroumdosíndiosdoBrasil.Aliás,elefazjusaeste título há muito tempo.” 19 Darcy chamou o projeto de “cientificamenteinepto e juridicamente monstruoso”. Em resposta, Reis encaminhou uma“denúncia”aoprocurador-geraldaRepública,naqualoacusoudecalúnia.

QuandoDarcyparticipounaUSPde um seminário ao lado da antropólogaCarmenJunqueira,todaafaladeambosfoigravada,transcritaeentregueàASIda Funai. Carmen fez declarações contundentes contra a política indigenista,mencionando os impactos da Transamazônica, a mineração em Rondônia e a

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aberturaderodovias.

Apartir de 1968 nós estamos assistindo a uma aceleração do processo deextermíniodosúltimos100milíndiosqueexistemnoBrasil.[…]Umdosrecursosutilizadosparaaceleraresseprocessovaiserexatamenteatentativadesedecretaraemancipaçãodealgunsgruposindígenas.20

Darcyvoltouacondenaroprojeto:

Emanciparosíndios,dacondiçãodeíndios,édeclararqueelesnãoexistemcomo índios. Como a propriedade não é deles, é da tribo, se a tribo estádissolvidapeloministro,nãoháterra,nãohápropriedade,aterraestálivreparaoministrodaraquemelequiser.[…]Seeledeclarassequenãoexistemais a famíliaMatarazzo, não háMatarazzo. Ele podia dar ao secretáriodele,àcomadredele,cadafábrica.

Umapessoadaplateiaabordououtropontocrucialdapolíticaindigenistadaditadura: os contatos com os índios isolados. Carmen respondeu que apacificaçãoera“dosmalesomenor”,poisseriaimpedirqueosgruposindígenasfossem“metralhados”aoreagiràentradados“civilizados”emseus territórios.Darcycomparoua“civilização”aum“moinhoferozquedesfazagente,quecriaagentesemcara”.Deummodogeral,porém,eledefendeuapolíticadecontato.

Em meio ao debate público, a princípio acenou em socorro da Funai e dogoverno,aindaquedeformadiscreta,OrlandoVillasBôas.NoencerramentodeumcursonoMuseudoÍndio,noRio,Orlandodisseàimprensaqueestavasendotomado“umcuidadoextremo”naconfecçãodoprojeto.Haviafalhasnapolíticaindigenista,maseleestavadeacordocomIsmarth,pois,sejátivessesidofeitoumtrabalhosobreaemancipaçãovinteoutrintaanosantes,“hojenossastribosestariam numa situação formidável”. 21 Dias depois, contudo, o sertanistarecuou e fez declarações incisivas contra o projeto de emancipação.Disse verduassaídas,“umaaçãopopular [ou]acondenação,édeixarparaahistóriaeahistóriamarcaráaquelesquenaquelaépocaderamoprimeiropassoquelevariaaodesaparecimentototaldoíndiobrasileiro”.22EmBauru(SP),ÁlvaroVillas

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Bôas tambématacouoprojeto,chamando-ode“altamente suspeitoenocivoàpopulaçãoindígena”.Nãodeixou,porém,dealfinetaroCimi,classificando-ode“umaaladaIgrejacujoúnicoobjetivoédesmoralizaraFunai”.23

***

Os críticos da emancipação não se contentariam com nenhum julgamentohistórico tardiosobreumamedidaque teria impactodiretonavidados índios.Umgrupodetrintaantropólogoscondenouemdocumentoaideia,dizendoqueseria como entregar os índios “desarmados a forças infinitamente maispoderosas,quelhesarrebatarão,emmaioroumenorprazo,asterrasavilpreço,por grilagem ou por execução de dívidas, absorvendo-os como mão de obrabarata”. O texto foi divulgado em entrevista coletiva pelas antropólogas LuxVidal,ManuelaCarneirodaCunha,AracyLopesdaSilvaeCarmenJunqueira.24Anunciaramaindaqueogrupodeantropólogos jáhaviadecididocriar, emconjunto com religiosos, educadores, juristas e índios, uma “comissão pró-índio”,quelogosetornariaumadasprincipaisvozesemdefesadoíndionopaís.À reuniãodosantropólogosquediscutiuaemancipação,Orlandocompareceu.25

Omovimento cresceu em todoopaís, culminando, em7denovembrode1978,emumatopúbliconaAssociaçãoBrasileiradeImprensa(ABI)noRioe,nodiaseguinte,emumgrandeencontronoteatrodaPUCdeSãoPaulo,oTuca,ambos organizados pela Comissão Pró-Índio e pela Associação Nacional dosCientistasSociais.AoTucacompareceramDarcy,Orlando,osmissionáriosdoCimiIasieBalduínoediversosantropólogos,comoEduardoViveirosdeCastro,Lux Vidal, Roberto Cardoso de Oliveira, Carmen Junqueira eMércio PereiraGomes.Tambémcompareceramlíderesindígenaskaingangue,parecieterena.

Os organizadores estenderam duas faixas no palco: “Contra a FalsaEmancipação!”e“PelaDemarcaçãodasTerrasIndígenas”.26Foilidaumacartada organização norte-americana fundada no século XIX Indian RightsAssociation, endereçada ao general Ismarth.A carta fazia um paralelo entre oprojetobrasileiroeaLeiDawes,aprovadapeloCongressodosEstadosUnidosem 1887.Amedida determinou a divisão das reservas indígenas naquele país

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“empequenoslotesdeterra,atribuindo-osindividualmenteaosíndios”.Após25anos, ogoverno transferia a propriedadeda terra a eles, aomesmo tempoquelhesdavacidadanianorte-americana.Oresultadofoicatastróficoparaosíndios,segundo a carta. Em 1934, quando essa política foi abandonada, “os índiostinham perdido 90 [milhões] dos seus antigos 138 milhões de acres de terra.Hojese reconhecequeaLeiDawesfoiextraordinariamentedesastrosaparaosindígenas”, na prática “destruindo a base agrária, que era o alicerce da vida eculturaindígenas”.27

OsprotestosemSãoPauloenoRio foramumsucesso, comcoberturadaimprensa e um público estimado entre 1,5mil e 2mil pessoas no Tuca, e desetecentaspessoasnaABI .28Nosdias seguintes,oJornaldoBrasil publicoueditorial emapoioaodecretodeRangelReis, enquantoOEstadodeS.Paulocondenou a proposta. No final de novembro, Reis admitiu a possibilidade dealteraçõesnodocumento.Emdezembro,aimprensainformouqueaPresidênciada República decidira, “estrategicamente, esquecer por algum tempo aaprovaçãodoprojeto”.29Emmarçode1979,ogeneralErnestoGeiselpassouafaixa presidencial ao general João Figueiredo.A proposta da emancipação foiengavetadaemdefinitivo.Tratou-sedeumaabrangentee impactantevitóriadetodosquantosresolveramafrontaroregimemilitaremdefesadosíndios.

A emancipação era a principal, mas estava longe de ser a única, divergênciaentre antropólogos e o comandomilitar da Funai.Os atritos ficaram cada vezmaisfrequentesportodoopaísapartirdasegundametadedadécadade1970.Como atestou por escrito o diretor do Departamento Geral de PlanejamentoComunitáriodaFunaideBrasília.

O caso da 4aDRnão passa de uma expressão do que está ocorrendo peloBrasilafora.Deumlado,antropólogosnocamposentindoosproblemasdosíndios, de outro, delegados vivendo nas capitais, sem o mínimoconhecimento da realidade indígena. Conflitos entre antropólogos edelegados estão ocorrendo em diversas áreas onde antropólogos estãotrabalhando para a Funai. Tais conflitos são facilmente explicáveis pela

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própria antropologia: “resistência àmudança”.Cadadelegado emgeral sesitua,porsuaconsciênciaesuaposiçãonaestruturasocial,comoum“fiscalde índios”, alguém que ali está para que não criem os índios problemasreivindicando suas terras, educação, saúde e o direito de serem tratadoscomo seres humanos. A grande contradição, sr. superintendente, é que osíndios, umavez educados e conscientes de seus direitos e damentalidadedossrs.delegados,têmnecessariamentequelutarporessesdireitos.30

Em junho de 1976, a antropóloga lotada em Brasília Isa Maria PachecoRogedo fez uma viagem às terras dos índios suruí e gavião, no Pará. Aoregressar, produziu um relatório devastador sobre uma decisão equivocada daditadura. “No posto indígena Sororó tivemos a noção exata da área decretada[pela Funai] em 1968, que na realidade não passa de um quintal de qualquerfazenda na região e que não satisfaz de forma alguma às necessidade de umgrupode72pessoas,cujapopulaçãoaumenta.”

Porvoltade1972,osíndiosforamtransferidospelaFunaiparaoutropostoindígena, ficando no local de origem apenas uma família que se recusou amudar.Isaqualificouaestruturaadministrativadoórgãocomo“arcaica,acéfalaecastradora”,acusouoórgãodeprejudicarosíndiosnoprocessodeextraçãodacastanhaeaventouashipótesesde“incompetênciaadministrativa”,“desviosdeverbasecorrupção”.

Namesma área, outra antropóloga, Iara Ferraz, foi acusada pelo Incra deinsuflar índiossuruícontraumaequipedetopografiaquerealizavaserviçosnaregião. A equipe teve “os cabelos cortados” e foi ameaçada “com lanças,bordunaseflechas”.UmmemorandodogabinetedapresidênciadaFunaidisseque Iara “impediu que a Eletronorte construísse torres de transmissão” deenergiaelétricanaáreadeMãeMaria.

AFunaireagiucontraasduasantropólogascomaaberturadetrêsprocessosparaapurar

índios “influenciados”, “insatisfeitos” com o chefe do PI Sororó, e com ademarcação determinada por lei, inclusive com ameaças de reação,“doutrinados” na aldeia suruí, “incitamento” de índios caso os trabalhos

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prosseguissem, “intimação dos índios aos membros da equipe para sedirigiremàcasadocapitãodaaldeia”.

Um parecer da procuradoria interna da Funai apontou que houve“insubordinaçãograveemserviço”epediuumapenaderepreensãocontraIsaeo rompimento do contrato de prestação de serviços assinado com Iara. Emoutubrode1976,IsmarthassinouumatoderepreensãocontraIsa.

A“insubordinação”algumasvezesganhouaspáginasdosjornais.Em1978,oentãodiretordoParquedoXingu,OlympioSerra,experienteindigenistaquehavia trabalhado na assessoria da CPI criada no Congresso em 1968 após adivulgação do Relatório Figueiredo, mandou um telegrama para a direção daFunai para protestar contra as condições da filmagem da telenovelaAritana ,produzida pela TV Tupi. A novela contava a história de um índio do Xingu,interpretadopeloatorCarlosAlbertoRiccelli,queseapaixonaporumamédicaveterinária, vivida pela atriz Bruna Lombardi, enquanto defende as terrasindígenasdaambiçãodefazendeiros.Olympioatéquenãoreclamavadoroteiro,massimdafaltadepagamentoaosíndiosquetrabalharamcomoextrasem1978.Ismarth não gostou da denúncia e mandou afastá-lo do cargo. “Eles [Funai]queriam apoiar uma TV que estava falindo. Eu não quis deixar que os índiosfossemfigurantessemqualquercachê.OEstatutodoÍndioproíbeatéhoje,‘nãosepodeexplorarcomercialmenteoíndio’”,disseOlympio,décadasdepois.31

Por ironia,overdadeiroAritana,um índioyawalapiti, criticouaspectosdanovela e defendeu a volta deOlympio aoXingu, o que a Funai não permitiu.Quando o sertanista Apoena Meireles foi enviado pela Funai ao Xingu parasubstituirOlympio, cercade “2mil índios” impediramque ele assumisse suasfunções.32

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22.AESPINHA

OS ANTROPÓLOGOS QUE TRABALHAVAM EM CAMPO NOCONTATODIRETOcomarealidadedoíndiotambémpassaramapresenciarpráticas e omissões da Funai que passariam despercebidas em outros tempos,devidamenteocultasemrelatóriossigilososedecirculaçãorestrita.NascidonoRioGrandedoNorteemnovembrode1950,filhodeumdentistaeumadonadecasa,MércioPereiraGomesestudavaantropologiaelínguasnaUniversidadedaFlórida, nosEstadosUnidos, quando, em1975, resolveu voltar aoBrasil comumabolsadeestudosfornecidapelobrasilianistaCharlesWagley,queestudaraosTapirapé.Mérciodirigiusuaatençãoaosíndiosguajajara(outenetehara)doMaranhão, tendo vivido entre eles, em várias aldeias, de junho a dezembrodaqueleano.Regressououtrasvezes,numtotaldedezesseismesesdeconvíviocomosíndios.

EmumdosretornosaosEstadosUnidos,Mérciocaiudemalária—seriamoitocrisesaté1980.Comatesededoutoradoprontaem1977,eleregressouaoBrasil, vinculado à Unicamp. Logo se aliou às críticas contra a emancipaçãoindígena,tendosetornadovice-presidentedaComissãoPró-Índiopaulista,edeupalestrasemfaculdadesdeváriosestadoscontraoprojeto.Deesquerda,MércioestudoueaplicouateoriadeKarlMarxpara“entenderosprocessoseconômicosde relacionamentos das sociedades indígenas”, mas considerava apartidário omovimentoindigenistaqueganhouopaísnofinaldadécadade1970.

Onegóciodoíndioéumacoisamarginal,aténaesquerda.Levouquarentaanos para o Congresso Nacional ter de suportar a presença indígena, apressão indígena. Naquele tempo foi outra coisa, tinha uns aspectos deromantismo.Pegavaasociedadepelocoração,nãopelacabeça.1

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Em1975,aochegaraoMaranhãocomseus24anos,forasteiroecabeludo,foiabordadoporummilitardoExército.ElequissaberseMércioerasociólogo,eelerespondeuquenão,queeraantropólogo.Aoouvirisso,omilitarrelaxou.Mércio não foi incomodado. Eis uma profissão que parecia não dizerabsolutamentenadanaquelaregião.Mércioapresentou-seaodelegadoregionalda Funai, sobre o qual teve uma impressão negativa: “Foi decepcionante.Obviamenteelenãoseinteressavaporíndios.Estavaalidesdefevereirode1975pelo emprego que lhe fora conseguido por influência de um irmão ligado aoesquemadepoderdosmilitaresdoMinistériodoInterior”.2

Mércio foi procurar no escritório local da Funai valiosos documentos doextinto SPI que poderiam iluminar pontos em favor dos tenetehara no direitosobre suas terras, que vinham sendo invadidas ou que tinham seus limitesquestionados por fazendeiros da região e posseiros oriundos do Nordeste.Descobriu então, perplexo, que o delegado havia mandado queimar todos ospapéisdeinteressehistórico.3

ArelaçãoentreosGuajajaraeos“civilizados”daregiãoeramarcadapelamemória demassacres ocorridos a partir demarço de 1901.Umamissão dosfrades capuchinhos vinda da Itália havia fundado um internato em 1897 paracriançasindígenas,acercadesetentaquilômetrosdacidadedeBarradoCorda.Em1900,umsurtodevaríola,seguidodeumdetétano,matoupelomenos28das82indiazinhasqueviviamnolocal.Atensãocresceunosmesesseguintesatéque, na manhã de 13 de março de 1901, um grupo formado por centenas deíndios lideradosporum índiochamadoJoãoCaboré, tambémconhecidocomoKawiréImánouCauiréImana,eporoutroscaciquesguajajaraatacouamissãode Alto Alegre. Eles invadiram a igreja na hora da missa, matando homens,mulheres e crianças. Uma versão diz que Caboré desencadeou o massacreporque fora preso e agredido pelos padres; outra, porque queria proteger osíndios dos abusos cometidos pela missão, que pretendia, na sua visão,“escravizar”osGuajajaraparasempre.4

AimprensadoMaranhãonoticioumaisdeduzentosmortos;outroscálculosapontaram 170. 5 Entre as vítimas estavam quatro padres e sete irmãs. 6 OEstado de S. Paulomencionou 61 mortos e citou comomotivo da chacina a

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dúvidadosíndiosdequeosreligiosos“pretendiamtomar-lhesascrianças”queeramdirecionadasàmissão.7

Em represália, o poder político local organizou uma grande expediçãopunitiva,comsetentasoldadosdeBarradoCorda,umatropadeGrajaúeíndioscanela.Naprimeiradessasinvestidas,teriamsidoassassinadosentre28etrintaGuajajara.NumataqueaCaboréeseugrupo,dezoitoíndiosforammortos,masocaciqueescapou,atéserafinalcapturado,emagosto.Emoutubro,eleeoutroslíderes da revolta foram condenados à prisão perpétua.Emnovembro,Caboréamanheceu morto em sua cela na cadeia pública de Barra do Corda,supostamentevítimade febres palustres.8Outro relato diz que elemorreu nacela dois anosmais tarde, com “o corpo todo inchado e as faces arrocheadaspelassevícias”.9

Maisdesetedécadasdepois,MérciotomouopartidodosGuajajaracontrauma fazendeira que reivindicava terras dentro da terra indígena Bacurizinho.Comelareuniu-sediversasvezes,ocasiõesemqueelaochamavade“diabodaFunai”.

Em1978,MércioconcedeuumaentrevistaemCampinasparadenunciarainvasãodeumaáreaguajajarademarcadanadécadade1920emBarradoCorda.Os invasores erammais de 5mil “civilizados” , que formaram a vila de SãoPedrodosCacetes.Haviagrande tensãoemoutras regiões, também invadidas,comonaterraArariboia,ondeumconflitoarmadodeixoumortosentreíndiose“civilizados”.SegundoMércio,aFunaiagiuepelomenosumagrandeviladeinvasoresfoiretiradaaindanadécadade1970.

Em sua passagem pela área, Mércio conheceu o indigenista José CarlosMeireles (sem parentesco com Francisco Meireles), que, junto com aantropólogaValériaPariseeoutros,haviacontatadoumgrupode índiosguajáporvoltade1973.Eramíndiosisoladosqueviviamnus,empequenascasasdepalhaemadeira,alimentando-sedacaçaedefrutas.Elesestavamdispersosportoda a região, em talvez duas dezenas de grupos independentes. A partir docontato, outros índios foram chegando ao local, muitas vezes atraídos pelospróprios Guajá a pedido da Funai, com a distribuição de machados, facões eutensílios.

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Porém,algomuitogravecomeçouaocorrer.Em1975,segundoascontasdaFunai verificadas porMércio, havia um total de 54 índios ligados à frente deatraçãoguajá.Cincoanosdepois,quandoelevoltouàregiãoparadarsequênciaàssuaspesquisas,haviaapenas24.

Tinhammorrido29outrintanasmãosdaFunai.[…]Eraumaépocaemqueainda tinhaum fluxodepequenos lavradoresvindodoPiauí edoCearáepressionando a área. Eu estava com muito medo de os Guajá seremdizimados.MuitosgrupinhosdeGuajáforamcontatadosporqueapareciamnospequenos vilarejos, onde tinha gente abrindomata e plantando, e elesentravamemcontatoemorriam.10

Mércio escreveu à Funai para dizer que, de 91 índios reunidos na frente deatração guajá no verão de 1976, restaram apenas 29 em 1980. A situação foiagravadaporumadecisãodaentidade,em1977,quepermitiuacriaçãode“umcorredorquedividiu”aáreadeCaruearegiãodeTuriaçu,desfazendooqueera“umareservasóconstituídapordecretopresidencialnoanode1961”.“Àentãoadministraçãoda6aDRcoubeaglóriadeaceitaresseesbulho territorialedevecaber-lhe o peso da morte de uns cinquenta índios guajá por causa dessamedida.”11Ealémdodesleixohaviatambémassassinatos:aFunaiconfirmouamortedecincoGuajáporposseirosdaregião,eogeneralIsmarthdissequeseriainvestigadaahipótesedeusodearsênicomisturadoaaçúcar.12

Emdezembrode1979,umaequipedesaúdevolantedaFunaiapareceuparavacinar 33 índios. Porém, contrariando o recomendado pelo servidor local doórgão,aequipeaplicoutodasasvacinasdeumavezsó,enãoaospoucos,oquelevouaumadebandadadosíndiosparaamata,relatouoantropólogo.Nomato,eles “contraíram gripe oumesmo talvez [por] reação das vacinas e oito delesmorreram, inclusive uma família inteira”. Depois Mércio concluiu que naverdadenovemorreramapenasnesseepisódio.

Na época,Mércioproduziuum relatório eo endereçou ao entãodelegadoregionaldeSãoLuís,advertindo:“Éassombrosoodecréscimopopulacionaldosíndios guajá da região do rioTuriaçu”.13Sobre a vacinação atabalhoada, elepediu que se fizesse “uma reflexão profunda e estudada por parte dos

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responsáveis pela saúde na Funai, para que incidentes dessa natureza não serepitam”.

Logodepoisdesserelatório,ochefedopostoindígenaCarurecebeuumbilhetedeummoradordopovoadodeCentrodosPaulos,nomunicípiodeSantaLuzia,dizendoquepróximodaliforavistoumgrupodeíndiosguajá.AFunaimontouuma equipe com um médico, um auxiliar de indigenismo, um atendente deenfermagem e dois Guajá. Ao saber da ideia da expedição, Mércio pediu erecebeu autorização do presidente do órgão para integrá-la. 14 O plano eratransferirosíndiosparaumaterrajáocupadaporoutrosGuajá,adeCaru,comcercade172milhectares.

Mércio e equipe já tinham circulado bastante pela região atrás dos índiosquando,em10deabrilde1980,pararamacercadedoisquilômetrosdoigarapéTimbiraparacomerfarinhaecajucristalizadoquetraziamnabagagem.Mérciopediu que os doisGuajá,Geí e Takydiá, pegassem uma espingarda e saíssemparacaçar,masseguindoocaminhoqueelesjáhaviamvistoequeatribuíamaosGuajáquebuscavam.Emmeio auma forte chuva, ambos regressaram,porémseguidos por outros trêsGuajá.Um, “parecido comum coreano”, falavamaisseguro, o segundo tinha uma enorme marca produzida pela leishmaniose noombroesquerdoeosdentesestragados,falavamaisaltoedeformarápida,eoterceiro,comdentesperfeitoseumbigoderalo,“falavamaisparcimoniosamenteesorriamaisdelicadamente”.Ocontatofoitranquilo.15

OsíndiosconvidaramMércioeosdoisGuajáparaumavisitaàaldeia.Láoantropólogo conseguiu divisar catorzeGuajá, todos, ao que tudo indicava, embomestadode saúde—outros coletavammel ou caçavamnas redondezas.Oíndio Ikarawadjá convidou-os para sua casa. Ele deitou-se na rede, Mérciosentou-seno chão e estendeu sua camisa ao fogo,para secá-la.Apareceuumamulher “alta evelha, já semosdentesda frente” e começoua falar, enquantoalisavaascostasdeIkarawadjá.Mércioanotouemseucadernodeviagemoqueaidosacontou:“QuandoosGuajáestavamnococal[debabaçu],emdireçãoasudestedeondeestamos, tinhauns trêskaraícaçandopaca comumcachorro.Este acuou uma paca, osGuajá foram ver, os karaí atiraram neles. Um deles

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aindaficoucomorostomanchadopelapólvora”.Orelatosobreoataquedos“civilizados”reforçouemMércioanecessidade

de uma transferência para Caru. No dia seguinte, um grupo de seis GuajáapareceunoacampamentodaFunai.OmaisvelhoaparentavasessentaanosesechamavaPirá.Denovofoiumaconversaamistosa.OsGuajárepetiramahistóriadoataquedoskaraíemostraram,comoprova,oladodireitodopescoçodeumdeles, Tiborrá, com os sinais que seriam da pólvora. Disseram que os karaíhaviam“botadoroçadearroznassuasterras”.ElesindagaramaMérciodeondeele tinhavindo.Oantropólogodescreveumuitopositivamente a áreadeCaru,tentando convencer os índios a semudarem.Disse que era “umamata bonita,commuitaqueixadaesemkaraí[‘civilizados’]”.

Ogrupoeracompostode27índios,eadistânciaatéCarufoiestimadaemsessenta quilômetros. 16 Antes de qualquer movimentação, porém, Mércioqueria garantias da Funai de que haveria medicamentos e pessoal suficientespara a operação. Em relatório, qualificou experiências anteriores da entidadecomo“verdadeirosdesastresdemográficos”,citandooscasosdosPanaráedosXavante.

AFunaiatendeuaospedidosdoantropólogo,queporfimvoltouaoigarapéTimbiraparaalongacaminhadados27Guajá,iniciadaem27dejunhode1980.Foimontada uma equipe de treze pessoas, incluindoMércio e dois índios. Oplanoeraandardeformasinuosapelamata,fugindodequalqueraglomeraçãode“civilizados”.Ogrupoandavaumpouco,parava,caçavaporcosnomato,comiaedormia,voltavaaandar.Faziamacampamentoserecuperavamsuasforças.Emdeterminado dia, porém, Mércio notou que uma família de sete Guajá haviaficadoparatrás.Nesseinstante,umsurtodegripeatingiutodoogrupoprincipal.OpessoaldaFunainãopoderiairatrásdafamíliasemantestratarosoutros,sobpenadeumdesastre.

Nóspassamosumasemanacuidandodessesíndios.[…].Elesmelhoraram,aí fomos procurar a família. Quando a gente chegou, dos sete, tinha trêsmortos.Elestinhammorridoporqueosdoishomenstinhamcaídodegripeenão conseguiram mais caçar. E morreram nas suas redes, de inanição.

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Tinhammorridoumpai,umamãeeumgaroto.17

Emumamanhãdemarçode1982,umidosoGuajádirigiu-seàmataparapegarfrutos quando, de repente, caiu emorreu, sem que a Funai apontasse a causaexata. Tratava-se de Pirá, o velho do igarapé Timbira que havia visitado oacampamento de Mércio antes da caminhada. Sua viúva depois procurou oantropólogoparalhedardepresenteumacoroafeitacompenasdeavesrarasnaregião.Mércioaguardava,até2013,emsuacasanobairroSantaTeresa,noRio.

DepoisdePirá,umacriançamorreu,oquelevouogrupoasemudarparaoutro igarapé. Um surto de malária atingiu doze Guajá. Mércio recebeuinformaçãodequemais índios tinhammorridoe,por isso,emmarçode1982,em entrevista a um jornal de São Luís, denunciou a Funai como responsável“pelamortedeonzeíndiosguajádorioPindaré”.Afirmouquehaviaadvertidooórgão para providenciar uma equipe “de pessoas habilitadas providas demedicamentos e serviço de rádio” a fim de atender os índios transferidos doigarapé Timbira. O antropólogo aparece na reportagem dizendo que osfuncionários da Funai “cometeram as maiores barbaridades”, que dois índiosmorreram de “malária não diagnosticada” e outro de uma desidratação“consequentedeumainfecçãointestinalqueoenfermeironãotratou”.18

Apósapublicaçãodaentrevista,aimprensadoMaranhãofoiouviromajorque comandava a Funai regional, Alípio Levay. No dia seguinte, a imprensapublicou que ele acusara o antropólogo de ter ajudado a disseminar doençasentreos índios,pois teriaserecusadoapassarporexamesrotineirosdesaúde.Em um ofício confidencial enviado à Funai de Brasília, contudo, o próprioLevayrecuoudaacusação,dizendoqueapenassedefendeuequeorepórterforaoresponsávelpelo“estardalhaçotodo”.19Nomêsseguinte,váriosprofessoresdaUniversidadeFederaldoMaranhãodivulgaramumanotapúblicaemfavordeMércio,quetambémfoiapoiadopelaComissãoPró-ÍndioepeloCimi.20Eramosanos1980,comosnovosaresqueanunciavamofimdaditadura,dentrodaabertura política. O governo militar agora era confrontado por uma série deorganizaçõesindigenistas.

NamortedostrêsGuajáqueficaramparatrásnacaminhada,repetiu-seovelho

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trágicocírculovicioso:oíndiogripadocaiprostradoenãoconseguemaiscaçar;semcaça, ele eosquedeledependemmorremde inanição.Onúmerode trêsmortos,aindaqueexpressivo,porém,nãosecomparacomoresultadodeoutrascatástrofes, como a caminhada dosAraweté, quando de quatro a seis dezenaspereceram. De certa forma, aos trancos e barrancos, parecia que o Estadobrasileirocomeçavaaaprenderaminimizarseuserrosbrutais.

AntropólogoscomoMércioemissionáriosdoCimijáhaviamsedecidido,aduraspenas,pelanecessidadedeumamudançaradicalnapolíticadecontatoquevinha sendo adotada pelaFunai desde sua criação e que era a prática desde oiníciodoSPI.Passadossetentaanosdeacertosedesastres,muitosachavamqueestava na hora de mudar. Alguns sertanistas também caminhavam na mesmadireção.Umdeles,emespecial,pelopapelqueviriaadesempenharnosnovosrumos da política de contatos, teve a certeza reforçada após testemunhar umanovatragédia,noiníciodosanos1980.

***

PormaisdeumadécadaaFunaiconheceuafirmeresistênciadosíndiosarara.Elesatacaramcominsistênciaasdiversasequipesenviadaspara“pacificá-los”etambémmorrerampelasmãosdecolonos,comovimosanteriormente.Decididosadobraros índios,oschefesdafundaçãonãodesistiram.Nocomeçodosanos1980, o órgão enviou para a região de Altamira (PA ) o sertanista SidneyPossuelo. Sua primeira medida foi fazer sobrevoos em uma área de 235 milhectaresinterditadapelaFunaiem1978,paramapearapresençadosíndiosedoscolonos,emnúmerocadavezmaior.Aofinaldeumasemana,Possueloentregouum relatório à presidência da Funai no qual sugeriu a retirada de todos oscolonoseacriaçãodeumanovafrentedeatração.Elefoiorientadoaretirarosplanosdopapel.

PossuelopediuajudaaooficialdoExércitocomandantedo51oBatalhãodeInfantariadeSelva,deAltamira,queprovidencioumilitaresparaacompanharosertanistaemvisitasahabitaçõesederrubadasdematapromovidasporcolonosdentrodoterritóriointerditadocomoáreaindígena.21

Osertanistapercebeuquenãoconseguiriavenceraresistênciadosíndiosse

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não reduzisse a pressão que os invasores exerciam sobre as roças e rios. Osdesmatadores se aproveitavam de várias estradas vicinais que partiam echegavam à Transamazônica rumo à terra arara. Visto de cima, o conjuntolembravaumaespinhadepeixe.PossuelocolocouplacasdesinalizaçãodaFunainaáreaedeuumprazodealgumassemanasparaosdesmatadoressaírem.Quemficassenãoseriaperdoado.

Euchegavacomminhaequipe,dezouquinzehomens,todosarmados,comespingardas, pistolas, armasportáteis.Noúltimodia, quemsaiu, saiu. “Sevocênãosaiu,saiagora,tirasuasesposas,seusfilhoseseusbens.Vocêtemmeiahoraparafazerisso.Daquiameiahoravoubotarfogo.”Eaíeubotavafogomesmo.22

PossueloficouagradecidopeloauxíliodoExércitonaoperação—paraele,umdosmomentoscruciais emqueosmilitares,durante aditadura, saíramemsocorrodo índio.Osertanistaescreveu:“SeosArara soubessem, sepudessemnosfalar,estariamaquieagoraagradecendoestaaçãodejustiçaquevemdoseiodoExércitoBrasileiro”.23

Com a área livre de invasores, Possuelo reconstruiu um posto nomesmolugaremqueocolegaAfonsohaviasidoflechado,anosantes,a120quilômetrosnaTransamazônicaapartirdeAltamiraeadezoitoquilômetrosdeumaestradavicinal.Emnovembrode1980,quandoasinvasõesdosdesmatadoresjáestavamcontidas,opessoaldaFunaiteveoutroproblema.Aapenastrêsquilômetrosdoposto,oIncracolocou“máquinasdeextraçãodemadeira”naregião,emapoioaos assentados e colonos da firma Cotrijuí. Na tentativa de assustar os“civilizados”, osArara jogavam cocos nos operadores dasmáquinas e faziambarulho namata. A Funai pediu que asmáquinas parassem de trabalhar, poispoderiam“originarumaaçãohostilporpartedos índios”.24OsArarahaviamespalhado estrepes — pedaços pontiagudos de madeira, entrelaçados — noscaminhos que davam acesso às suas aldeias, em um claro sinal de “proibidopassar”.

Possuelotomouprecauçõesemcasodeataquesdosíndiosaoposto.Abriuuma clareira comum raio de cemmetros em volta da casa. Ergueu postes de

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madeiracomholofotesnoalto.Conectou-osaummotormovidoàbateria,quepodia ser acionado por dois botões instalados em pontos diferentes dentro dacasa.Assim,numaemergênciaomotorserialigado,gerandoumgrandebarulhoeiluminandodeimediatotodoopátiocomluzespotentes.AideiadePossueloeraassustarosíndioseevitarderramamentodesangue.

Odispositivodesegurançafoienfimpostoempráticanumanoitede1980.EnquantoosservidoresdaFunaijantavamàmesadacozinha,iluminadosapenaspelaluzdelampiões,umgrupodeAraraseaproximouemsilêncio,miroucomasflechaspelasfrestasdasparedesdemadeiraedisparou.Trêsservidoresforamatingidos:umderaspão,naboca,outronoombroeoterceiroteveumadasmãosatravessada“deladoalado”pelaflecha,dissePossuelo.Antesqueoataqueseintensificasse,umdosferidosconseguiucorreratéumdosbotõesdeemergênciae o pressionou. A luz potente dos holofotes no pátio e o barulho do motorpuseramosíndiosparacorrer.Napressa,deixaramparatrás“cinquenta,oitentamaçosdeflechas”.25

No dia seguinte, Possuelo encenou um desfile no pátio com todos osservidoresdearmasnamão.TambémchamoureforçodeAltamira,duplicandoonúmero do pessoal. Depois de uns vinte minutos de encenação, o sertanistareforçouospresentesaosíndiosnotapiriemandoutodomundoserecolher.Eleachavaqueosíndiosestavamassistindoatudodamata,escondidos.

Eu queria dizer a eles: “Eu tenho força suficiente para ir atrás de você eposso fazer bobagens contigo, mas não vou fazer isso, não é minhaintenção”. Se tem uma coisa que eles conhecem é arma de fogo, sãoperseguidos por armas a vida toda. Eu mostrei força, mas também umaatitudepacifista.26

Entreofinalde1980eocomeçode1981,osAraracircularamcomregularidadenas cercanias no posto, mas agora em atitude pacífica, segundo relatórios deWellingtonFigueiredo.Emumatarde,elespresentearamopessoaldaFunaicom“ummutumassado,doisjabotis,umnhambuassadoeumfilhotedemutum”.27Os índios não eram vistos diretamente, apenas passavam e iam embora,deixandoospresentesemtrocadasferramentas.

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Em 2 de fevereiro de 1981, eles enfim se aproximaram. Um grupo foirecebido por dois índios a serviço da Funai,KarayvahTxicão eManoelWai-Wai.Depoisdeunscinquentaminutos,foramembora,dizendoquevoltariamàtarde.Informadoporrádio,Wellington,àspressas,foidecamionetedeAltamiraao posto, lá chegando por volta das dezessete horas, nomomento em que osArararetornavamaolocal.Eramcinco:doiscommaisde45anos,dois“acimadevinte”eumgarotodeunstreze.Osadultostinhamestaturamediana,poucospelos no rosto, o “prepúcio amarrado com um pedaço de envira”, as orelhasfuradas,emborasóumusassebrinco,enopescoçocolaresdemiçangas.Deramum“porcãoassado”aopessoaldaFunaie,parabeber,umamisturademelcomágua,acondicionadaemumpedaçodebambu.28

DiasdepoisPossuelomanteveseuprimeirocontatopessoalcomumArara.Eleestavanopostoquandoderepentesurgiuumgarotosozinho,deoitoounoveanos,chamadoAktô.Possuelo foiàporta, sorriuparaomenino,quesorriudevolta.Pegou-opelamãoeoconvidouaentrar.Pediuquefossefeitoummingaudefubáecomeucomele.Aktôfoiembora,masdepoisvoltoucommais“quatrooucinco”.Daíemdianteosíndiosforam“chegando,chegando”.29

Anotícia doprimeiro contato, ocorridonovemeses depois da chegadadaequipe de Possuelo, se espalhou rápido na região. A ideia de que, após oprimeirocontato,aFunaiiriaretirarosíndiosdaterrae“aldeá-los”provocouoaumentodasinvasõesdecolonosnaterraarara.Entretanto,oplanodePossueloera justamente o contrário: ampliar e garantir a demarcação do território. Eleescreveuaopresidentedoórgão“recordandodagarantiado território indígenacomocondiçãoessencialàsobrevivênciadosAraraque,paralelamenteaoutrasmedidas,agecomoproteçãodascompulsõesdoscivilizados”.30

O sertanista conseguiuo apoiodoExércitopara retirar invasores e avisouporrádioquenãoseriamtoleradasinvasões,mas,quandopediuajudaaoIncra,“infelizmente, apesar dos ofícios e mapas encaminhados, tudo permaneceparado”. 31 A situação era pior em relação a outro grupo arara ainda nãocontatado, que desapareceu por quatro meses após “violentas derrubadas” dematanaregião.

Possuelo estava preocupado em especial com a possibilidade de uma

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epidemia dizimar o grupo contatado. Já no primeiro contato, o menino Aktôapareceucomonarizescorrendo,umpossívelsinaldegripe.Emconversacomosíndios,ointérpreteKarayvahdescobriuqueosArara“jáconheciamagripe”,pois mantinham contato com roupas e utensílios de “civilizados” da região.Possuelo tomoumedidasparaevitarumamortandade:adquiriugeladeirasparaacondicionar as vacinas, comproumedicamentos e conseguiu uma enfermeiratransferidadeoutroposto.32Tambémmandoufazerexamesdetuberculoseemtodos os integrantes da frente de atração, vacinou-os contra sarampo, tétano efebreamarela,afastoudolugartodoservidorqueapresentoualgumsintomadedoença e vacinou também famílias de colonos da região.33“Eu disse amimmesmo:‘Nãovoupermitirmortenenhuma’”,recordou.34

Todo o planejamento não contava com uma atitude dos índios. SegundoPossueloserecordoutemposdepois,oqueéconfirmadoporseusrelatóriosdaépoca, os Arara começaram a pressionar o pessoal do posto para levá-los aconhecer Altamira— tinham visto os funcionários se comunicando por rádiocoma base daFunai na cidade e ficaram curiosos para saber como seria esselugar.As coisas fugiram ao controle quando resolveram sair caminhando pelaTransamazônica. Omotorista de um ônibus foi instado pelo grupo de índios,pelados,apararoveículoparaqueentrassem.Eleandouporalgunsquilômetros,masdepoisdesligouomotorepediusocorroàFunai.Osíndiosforamtrazidosdevoltaàaldeia,porémoepisódioevidenciouqueaidaàcidadeseriaquestãodetempo.Possuelodisseterconcluídoque“nãohaviamaiscomosegurar”.“Acuriosidade,issoémuitohumano.Naimpossibilidadedesegurar,oqueeuvoufazer? Vou organizar a ida deles até lá”, disse. O sertanista mandou lavar,desinfetarecaiaroprédiodabaseemAltamira,estocoucomidasuficienteparatrês dias, comprou camisetas e calções para os homens e vestidos para asmulheresecontratouveículosparatransportarosíndioseopessoaldaFunai.

Avisitaestavaprogramadaparaodia11de fevereirode1982,mascincodias antes, para surpresa de Possuelo, apareceram em Altamira cinco índios“acompanhadosdedoismateiros”daFunai.35Umgrupode23índios,lideradospelo cacique Toti, somou-se ao primeiro grupo. A notícia, espalhada pela

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emissoraderádiolocal,causougrandeimpactonacidade,quepormuitosanosacompanhara os relatos sobre ataques dosArara na zona rural, os índiosmaistemidosnaqueletrechodaTransamazônica.

A princípio Possuelo segregou os índios no prédio da base da Funai,procurando mantê-los afastados de um contato direto com os moradores. “Acidade inteira” correu para o prédio, “subiamnomuro e queriam entrar” parasatisfazeracuriosidade,disse.OExércitomandousoldadosfazeremasegurançadoprédio.Doaltodomuro,aspessoasjogavamcédulasdedinheiroaosíndios,pelovistoemsinaldepaz.OsArara,contudo,pegavamasnotaseasjogavamnochão, para espanto dosmoradores.Aqueles papéis pintados nada significavamparaeles.36

Os índios estavam curiosos para conhecer as ruas de Altamira. Em ummomento de descuido, um grupo conseguiu abrir o portão da garagem, nosfundos,esaiucaminhando.Quandosoube,Possuelocorreuparaacompanhá-los,apavoradocoma ideiadequeum“civilizado”aparecesseparavingar amorteantiga de algum amigo ou parente. “Foi uma cena fantástica. Um grupo deíndios, andando na frente, sem roupa, as mulheres peladas, bebês no colo,andando,sorrindo.Ecaminhandoatrásdezenas,centenasdemoradores,seilá,acidade inteira. Aquela algazarra, a gritaria: ‘Os índios estão aqui!’.” 37 Aocontrário do que o sertanista esperava, a recepção foi excelente. “Civilizados”cercaram os índios com curiosidade, alguns “choravam de emoção ao abraçá-los”.38

A jornalista Memélia Moreira, presente à cena, observou que Possuelotambém chorou quando viu um altamirense, Italvino, carregando um bebê nocolo, chorar e abraçar um índio arara. Ela ouviu outro morador, Pedro, ex-operário da Transamazônica, saudar os índios nesses termos: “Graças a Deusvocêsestãoaqui.GraçasaDeusvocêsnuncamaisvãoatacar,nãoprecisamosmais brigar”. O encontro extraordinário não era apenas entre dois mundosdiferentes,mas tambémumsinalde esperançadeumavida futura semódio eviolência.

Ainda que emocionado pela boa recepção, Possuelo lamentou: “Melhorseriasenãohouvessenecessidadedetrazê-losparanossoconvívio”.39

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Três décadas depois, Possuelo fez uma descriçãomuitomais sombria sobre achegada dosArara aAltamira, em especial nomomento em que eles foram àfeiranofimdesemanaeviramcentenasdepessoascirculandopelasbarracas.Osertanista disse que os índios ficaram “em choque” ao perceber que os“civilizados” são muitos, centenas de milhares, contra apenas cinquenta ousessentaArara,queeraototaldeindivíduosdaquelegrupo.

Elesjamaisimaginamexistirumacidadede70mil,80milhabitantes.Equeainda são as pequenas. Nesse momento acontece uma coisa muitoimportante,comonóssertanistaschamamos,a“quebradaespinha”.Aquelaaltivez que eles têm antes do contato, antes de saber que eles nãorepresentamforçanenhumaemrelaçãoanós,aquilodesaparece.Umavezumíndiodisseaumsertanista:“Vocêssãomuitagente,vocêspodiamfazercomagenteoqueagente fazcomuma formiguinhaque sobenaperna”.Entãoissoquebraaespinhadele,eleperdeaaltivez.Elevêqueseobrancoquiser,elemassacra, temumaquantidade infinitadegente.Derepenteeledescobreisso.Éummomentomuitodifícilparaeles.

O choque foi sucedido pela tragédia. Ela começou a se desenhar logo após oretorno dos índios ao posto da Funai namata. No dia 23, cerca de cinquentaestavamreunidosalienãohaviasinaldedoenças.Osgruposfamiliaresentãosedividiram,unsretornandoparasuasaldeiaseoutrospartindoparacaçadas.Unscincoouseis índios,porém,decidiramficarnopostoparaaproveitaracomidaquePossuelohaviaestocado.Trêsdiasdepois,essegrupocomeçouamanifestaros primeiros sintomas de gripe, com espirros e coriza. Enquanto agia paramedicar os índios, o pessoal da Funai se deu conta de que a gripe tambémpoderiateratingidoosquejáestavamnamata.Possueloorganizoutrêsequipescom medicamentos, agulhas, seringas e equipamento de radiocomunicação, ecadaumapartiuparaumadireçãonamata.Tratava-sedeumacorridacontraotempo.

O grupo liderado por Possuelo topou com índios no segundo dia decaminhada. Todos estavam gripados e debilitados. O sertanista aplicou osmedicamentoseseupessoalcomeçouacarregarosíndiosdevoltaparaoposto.

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OArara que ainda tivesse forças esticava os braços para a frente e assim eralevado às costas do servidor da Funai.Osmais fracos eram transportados emuma rede atravessada por um pedaço de pau. No posto, Possuelo fez umatransfusãodesanguediretodassuasveiasparaumArara.Essegrupointeirosesalvou, mas ainda havia duas equipes na mata atrás de doentes. O primeirotambém regressou carregando índios e conseguiu salvar todos. No terceirogrupo, porém, a gripe foi mais violenta e rápida. Quando a equipe da Funailiderada pelo experiente indigenista Wellington o encontrou, seis Arara jáestavammortos—doishomens,trêsmulhereseumacriança.Orestantelutavapelasobrevivência.UmacenadramáticaficouregistradanosarquivosdoórgãoemrelatóriodePossuelo.ElecontouqueogrupodeWellington

escuta um choro na selva e parece ser de criança. O pessoal vai seaproximando,quandoelesveeméumacriançasobreocadáverdamãe.Amãe já estava morta, há um ou dois dias. A criança era pequena, tentamamarnopeitodamãe, amãemorta.Equandoopessoal seaproxima, acriançasaicorrendocommedo.Dáumtrabalhoterrívelparaelespegaremacriança,atéqueapegam.40

Outro índiomorreu depois, perfazendo o total de sete vítimas.O comando daFunai tinha pleno conhecimento desse número desde, pelo menos, a primeiraquinzenadeabril,poisPossuelo remeteuumrelatóriodatadododia8daquelemês.Masasnotíciassobreasmortessóchegaramummêsdepoisàspáginasdosjornaisdecirculaçãonacional.SegundoaFolhadeS.Paulo , a informação foidada por “um fotógrafo do Museu do Índio que trabalhou durante cerca dequinze dias entre esses índios”. O jornal acrescentou que “de acordo com asinformações de funcionários da Funai, a notícia não foi dada na época pordeterminação do coronel Ivan Zanoni Hausen, diretor da Assessoria Geral deEstudosePesquisas”.41

O fotógrafo citado eraMarcos Palmeira, que viria a fazer grande sucessocomo galã de novelas de TV . Após trabalhar com o cineasta Luís CarlosSaldanhanaterradosArara,emumtrabalhoorganizadopeloMuseudoÍndio,elechamouaimprensanoRioefezumadenúnciasobreasituaçãodosíndios.A

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denúnciaobrigouaFunai,umdiadepois,areconhecerassetemortes.Palmeiraéfilho do cineastaZelitoViana, omesmoque havia lançado, três anos antes, odocumentário-denúnciaTerradosíndios.42

Palmeira contou na época que a Funai autorizou a entrada da equipe domuseu na área como objetivo de “montar uma farsa”. Sabendo que os índiosestavamgripados,enviouumaequipedemilitaresparaaparecernas filmagens“socorrendo-os”comum“mini-hospital”montadoàspressas.Umdiadepoisdotérmino da gravação, porém, omédicomilitar deixou a aldeia. “O coronel sóatrapalhou o trabalho do sertanista Sidney Possuelo, [que] sozinho e às suascustas, tentava acabar com a gripe.O coronel se diziamédico e não entendianadademedicina.Nãolevouremédios,apenasumabarracadenáilonquegastouumdiaparamontar.”43

ApósregressaraBrasília,aequipedefilmagemrecebeuarecomendaçãodocoronelHausende“nadafalarsobreamortedosseteArara”.

O trágico surto de gripe entre os Arara abalou Possuelo. Ele continuou, anosafora, defendendo a ideia da visita a Altamira, pois para ele era apenas umaquestãodetempo,emfacedaspressõesdosíndiosparaconheceremacidade,etambémporqueogestoeliminouastensõesentreíndiose“civilizados”,quenãotiverammaisconflitosdesdeentão.Porém,naquelefevereirode1982emqueoscadáveres foram achados, depois que os índios foram socorridos em meio aintensaatividade,Possuelodisse ter sentidoumafrustraçãomuitogrande,poistinhasepreparadoparaquenenhumíndiomorresse.Aofimdodiaemqueoscorpos foramcontados,ele foi tomarbanhonumigarapéquepassavapertodopostoeaoladodoqualopessoaldaFunaifaziafogueirasparaassarcomida,oquedeixavapequenosmontesdecinzas.Possuelosentou-senabeiradoriachoepassouasersacudidopor“soluçosconvulsivos”.

Quandomedeiconta,euestavasentadocomasmãosnopeitoetodocheiodecarvão.Achoqueeumesmoesfregueiacinzanopeito.Navidaeutinhavisto muitos Kayapó que quando não se veem há muito tempo, seemocionamdemais,pegamofacãoebatemnacabeça,secobremtodosde

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sangue, e passam carvão e cinzas no corpo todo. Eu não sabia que tinhaincorporadoisso.

“Oquepoderiatersidofeitoenãofoinessecaso?”,indagueiaPossuelo.

Nada. Simplesmente, o povo indígena que está sofrendo não sabe avirulênciadadoençaquepegou. […].Agrandefrustraçãominhaéqueeuestava com os antibióticos, eu estava com todas as coisas, absolutamentepreparado,eaívocêvêcomosãoascoisascomospovosisolados.Eutinhatudo para ajudar, mas não tinha a cooperação deles. Eles não sabem doperigoqueestãocorrendo.[…]Aquelefoiumdiadeprofundatristeza.Eupasseioutrascoisasdifíceis,masemmatériadetristeza…Aquelefoiumdiaterrível.44

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23.LEVANTE

NASEMANADOÍNDIODE1980,EMABRIL,DIVERSOSCACIQUESdeMatoGrossodoSulsereuniramnoTeatroGlauceRocha,emCampoGrande,no I Seminário Sul-Mato-Grossense de Estudos Indigenistas, tendo comoconvidados Darcy Ribeiro e o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, entreoutros.Eram27osíndiosdamesadiretora,dentreosquaisMarçaldeSouza,oGuaraniqueserecusava“aficarquieto”,eoXavanteMárioJuruna,escolhidocomocoordenadordoevento.1

Areunião tinhaoapoiodoCimi, jácommaisdeseisanosdeexperiêncianasreuniõeseassembleiasindígenasnasaldeias.OgovernoestadualeaprópriaFunai apoiaram o encontro, no que parece ter sido um tiro no pé. Segundodeclarou depois o agrônomo Áureo Brianesi, que atuava na área indígena deDourados, a fundação pretendia “encampar o movimento indígena no estadopara esvaziá-lo;mas os índios fizeramoito reuniões prévias e o tiro saiu pelaculatra”.2

No discurso de abertura do evento, Juruna reclamou da ausência derepresentante da Funai.Umhomemque estava na plateia então se apresentoucomoenviadodoórgãoedissequefalavaemnomedodelegadoregional,queteria saído em viagem. Juruna conclamou os outros índios a não se calarem:“Vamosdiscutirmaisverdade,nãopodeguardarsegredoporquehomemquefalaverdadenãopodetermedodaFunai”.

Marçalfoiinterrompidoporpalmasalgumasvezesduranteseudiscurso.Eledenunciouqueos índioserammuitasvezesproibidosde falarcomodelegadoregionaldaFunainacapitaloucomoórgãoemBrasília.

Há cinco anos que o povo kaiowá de Dourados está suportando a lei da

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cacetada,aleidofioelétrico,aleidocano.[…]Oíndioaculturado,aqueleque tem um pouco de desenvolvimento, o encarregado [da Funai] nãoconsulta,porqueeleestávendo.Elesabe,éounãoé?

MarçalpediuàFunaialiberdadedefazerreuniõescomcaciquesdetodoopaís e de participar de seminários ou congressos: “Tenhamos o direito deorganizar,aproveitaraqueleselementosqueamamosseusirmãos.[…]Onossocasojamaisumbrancoentenderá.Osofrimentomoralespiritualdoíndio”.3

Aofimdareunião,foidefinidaumacomissãodedezesseiscaciquesparaafundaçãodoquesechamouaprincípiode“IrmandadeIndígena”.4Aomesmotempo, o futuro líder indígenaMarcos Terena, que estudava em Brasília comoutros índios de diversas partes do país com auxílio da Funai, havia criado aUnião das Nações Indígenas (Unind), cujo primeiro presidente era seu tio, oterenaDomingosVeríssimoMarcos.NascidonaaldeiaBananal,pertodopostoindígena Taunay,Domingos era subtenente da reserva do Exército.Depois dequasetrintaanosnacarreiramilitar,em1979eleretornouaolocalondenasceuepassou a disputar a função de “capitão” da aldeia com o Terena TibúrcioFrancisco, o que gerou uma divisão e grande tensão na área, com “agressõescorporaiseameaçasdemortedeambasaspartes”.5

OCimirecebeurecursosparaauxiliaracriaçãodanovaentidadeindígena.Missionário leigo doCimi deMinasGerais desde 1977, FábioMartinsVillasacompanhou as negociações em torno tanto daUnind quanto da “Irmandade”.Segundoele,osecretáriodoCimi,AntônioBrand,ficouemdúvidasobrequaldasduasdeveriaapoiar.OimpassefoiresolvidoemumareuniãoemSãoPaulo,naqualBranddissequenãosepodia“ficarbrigando”.6

Asaídafoiaunificaçãodasentidades,sacramentadaemjunhode1980.Anova organização ficou com a sigla Unind, tendo Domingos como presidenteprovisório. 7 O vice-presidente era Marçal e os outros quatro secretários etesoureiros eram todos Terena.A sigla foi enfim alterada paraUNI, União dasNações Indígenas, emabril de1981.Oestatutodiziaque aUNInão tinha finslucrativos “nem caráter político-partidário ou religioso”. Entre seus quatroobjetivosestavamapromoçãoda“inviolabilidadeedemarcaçãodesuasterras”,

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ouso“exclusivodasriquezasnaturaisedetodasasutilidadesnelasexistentes”ea assessoria a indígenas e suas comunidades “no reconhecimento de seusdireitos”. A entidade previa a realização de assembleias gerais comrepresentantesdecadacomunidadefiliada.8

Nesse momento da ditadura, uma organização como a que os índiosmontaramestavamuitolongedenãocorrerriscos.NomesmoDiadoÍndiodareunião de CampoGrande, por exemplo, agentes doDepartamento deOrdemPolítica e Social (Dops) paulista prenderam dezessete pessoas ligadas aomovimentogrevistadosmetalúrgicosdaregiãodoABCPaulista.9

OsdocumentossigilososproduzidospeladitaduramostramqueosmilitaresprocuraramcontrolareesvaziaraUNI.OpresidentedaFunainaocasiãoeraocoronelda reservadoExército JoãoCarlosNobredaVeiga,que tomaraposseem outubro de 1979, após um curto mandato de Adhemar Ribeiro da Silva,sucessor do general Ismarth. Veiga era assistente de segurança da Docegeo,subsidiáriadaestatalCompanhiaValedoRioDoce.10Aoserconfirmadoparaocargo,elesedissesurpresocomaescolhadeseupróprionomeeadmitiuquedeíndio sóconhecia “ahistóriado índiogaúchoSepéTiaraju”, líderguaraniqueviveu no séculoXVIII .11Veiga traria tantosmilitares damesma patente paradentrodaFunaiquesuagestãodepoisficariaconhecidapelosindigenistascomo“otempodoscoronéis”.

AProcuradoriaJurídicadaFunaiconcluiupela“viabilidadelegal”daUNI,mas desde que fosse composta “exclusivamente de comunidades indígenas ecomaassistênciaesançãodoórgãotutelar”.Ouseja,poderiaexistirdesdequesobdomíniodaFunai.Semanasdepois, emBrasília, aAgênciaCentraldoSNIdiscordou da Funai, apontando “inconveniência e pela inviabilidade legal dacriação”daentidade.AtéaPresidênciadaRepúblicaentrounahistória,optandopornãoproibirdiretamente,massimboicotaraUNI.12

Em 24 de novembro de 1980, o ministro-chefe do Gabinete Civil daPresidência,GolberydoCoutoeSilva,umdosprotagonistasdogolpede1964,transmitiuaoministrodoInterior,MárioAndreazza,“deordemdosr.presidenteda República, orientação no sentido de que a Funai se abstenha de qualquerprovidência ou ajuda tendente a estimular a constituição da entidade”, caso

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fossem constatadas “inconveniência e inviabilidade jurídica da projetadaentidade”.13

A ditadura tinha motivos para temer o recrudescimento da organizaçãoindígena,que jávinhacausandogrande incômodo.Namanhãde5demaiode1980,osíndiosxavante,fartosdeouvirfalarsobredemarcaçãodaterraPimentelBarbosa, elaboraram e cumpriram um plano de invasão da sede da Funai emBrasília,nocoraçãodogoverno.Umgrupode trêsdezenasdeXavante foideônibusdeBarradoGarças(MT)aGoiâniaedeláparaBrasília.Nafrenteseguiuuma“escolta”de trêsdeputadosfederaisdoMDBe jornalistas,dentreosquais,emseuFusca,MeméliaMoreira,daFolhadeS.Paulo,quehaviasidochamadapara a missão por um grupo de servidores da própria Funai.Memélia cobriucomopoucosjornalistasaquestãoindígenaduranteaditadura.Anosdepois,elarevelouqueaviagemdosXavantefoitramadanacasadoantropólogoCláudioRomero.“[Eleera]umcombatente.HaviaoutrosindigenistasefuncionáriosnaFunai[nareunião].Conspirávamos.”14

Armadoscomarcos,flechasebordunas,osíndiosseguiramparaasededaFunai,onde invadiram, jáacompanhadosde índiosdeoutrasetnias,ogabinetedocoronelNobredaVeiga.MeméliadisseterpresenciadoomomentoemqueosXavante,prestesaatirarumgeneral,Nestor,pelajaneladoterceiroandar,foramcontidospeloindigenistaEzequiasHeringer,oXará.APolíciaMilitarcercouoprédio com “dois camburões, duas patrulhinhas, um caminhão com tropa dechoqueeumaperua”.15Ainvasão,encerradaàtarde,foiummarco,noticiadaemtodososprincipaisjornaisdodiaseguinte.

***

Era grande a agitação também entre os Kayapó de Mato Grosso, comoconsequência, de novo, das frentes de expansão estimuladas pela ditadura.Sobrinho deRaoni,MegaronTxucarramãe nasceu no início dos anos 1950 naregiãoondehojesesituaacidadedeLuciara(MT).Em1953houveoprimeirocontato de sua etnia com os irmãos Villas Bôas. Megaron recorda que nasequênciaocorreramepidemiasquemataram“muitos”Kayapó.ApósacriaçãodoParquedoXingu,osVillasBôaslevaramosKayapóparaamargemesquerda

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doXingu.Nosanos1970,ossertanistasanunciaramaosíndiosquehaviamsidoenganados pelos militares e que a estrada BR -080 iria cortar o parque, aocontráriodoplanejado.QuandoasobraschegaramàbeiradoXingu,osKayapóse deram conta de que o traçado passaria a apenas dez quilômetros de ondeviviam. Segundo Megaron, um grupo liderado por seu pai, Kopre, chegou arumarporumapicadaparamassacraros trabalhadores,mas foi impedidopeloirmão,Raoni.Kopremorreuumanodepois,disseMegaron,eaobracortouoparque.16Entre1974e1975,umnovosurtodesarampovoltouamatar.

Nessamorreuumtiomeu,Yamatu.AFunairemoveubastanteindígenaparaa aldeia do Bananal e a doença também pegou outra aldeia, do meu tioRaoni, Cretire, onde morreu também bastante indígena. Sarampo pegoumuitoseatéeupeguei.Eunãoseicomoeunãomorri.

Emjunhode1980,osKayapóeocomandodoParquedoXingucomeçaramaadvertirfazendeirosdoentornoparaqueparassemcomdesmatamentos,depoisque Raoni e um funcionário da Funai encontraram catorze peões derrubandocercadedezhectaresaapenascincoquilômetrosdabeiradoXingu.Raonieopresidentedoórgão,NobredaVeiga,assinaramumtermopeloqualogoverno“secomprometiaaestudarapossibilidadedeaumentaraáreaindígenaJarina”.17

Em agosto, Megaron e Raoni estavam fora da aldeia Cretire quando umgrupo de Kayapó descobriu que uma fazenda da região, a São Luís, haviainiciadoumdesmatamentocomumaturmadetrabalhadores.Osíndioscercaramospeõesepassaramaagredi-los.SegundoaversãodeMegaron,aideiainicialnãoeramatar,masaaçãosaiudocontrole.“Umguerreirofalouassim:‘Vamosmatar eles’. Ele disse que se só batessem, os brancos iam voltar de novo.Aímataramonze.Umíndiotambémmorreu.”

Os peões foram mortos a golpes de borduna. A chacina, noticiada pelaimprensa, teve grande repercussão. O dono da fazenda, Luiz Carlos da SilvaLima,exibiuà imprensa“umdocumentodaFunaiassinadopeloex-presidentedoórgão”,BandeiradeMello,queatestariaqueapropriedade,de2420hectares,“lhepertenciadesde1968”.Umsobrevivente,TertoJosédaCruz,dissequeos

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trabalhadores não reagiram ao ataque dos índios e estavam desarmados,“principalmente porque tínhamos recebido ordens para não brigar comninguém”. ParaO Globo , Raoni advertiu que “guerreiros matarão todos osbrancosquecontinuarementrandonasterras”.18

Quatroanosdepois,ocaciqueRaonipuxouaorelhadoministroAndreazzana frente de jornalistas, ao cobrar o cumprimento de promessas feitas aosKayapó, incluindo Jarina. “Ele disse que o ministro tinha que ouvir mais osíndios”,afirmouMegaron.

A violência voltou a irromper apenas ummês depois domassacre da fazendaSãoLuís.Naépoca,BenignoPessoaMarques,oindigenistadaFunaiquehaviatrabalhadonocontatocomosArara,trabalhavacomosKayapódeGorotire,nosuldoestadodoPará,pertodomunicípiodeRedenção.Aochegaràregião,eleencontrouintensasatividadesdefazendasegarimpospertodaáreaindígena,oque levava “os índios a baterem de frente” com os “civilizados”. Os índiosdenunciaram que muitas fazendas estavam invadindo a área que havia sidodemarcadaaindanaépocadoSPI.Benignoapareceunessecontextoexplosivo.

“EufuiusadopelaFunai.‘Oproblemaestálá,entãomandaoBenignoparalá.’Onegócioveioespoucarnaminhamão,masaquilojá tinhasidocriadohámuitotempo.”19Benignodescobriuque,poucassemanasantes,umfuncionárioda entidade quase havia sido massacrado pelos índios, que reclamavam dalentidão do órgão na solução do problema.O indigenista pediu aBrasília queenviasseum topógrafoeumantropólogoparaproduzirum laudocomvistasaumanovademarcaçãoqueabarcasselocaisreivindicadospelosíndios.Tambémfez expedições de reconhecimento em companhia dos índios, nas quaiscostumava encontrar trabalhadores e mais desmatamento. Pelo menos duasvezes,disseBenigno,eleconseguiudemoverosíndiosdaideiadeumachacina,salvandoavidadostrabalhadores.

Emsetembro,osíndiosreceberamainformaçãodequeaáreaseriainvadidaporumgrupodedesmatadores.Organizaramentãoumaexpediçãoparachecarahistóriaesaíramemcaminhada.Benigno,queficounopostodaFunai,disseterrecebido a garantia dos líderes de que eles apenas iriam fazer advertências, a

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exemplodeepisódiosanteriores.Apósdoisdiasdeviagematéolimitedaárea,os Kayapó concluíram que o informante, um índio, havia mentido, nãoencontraram nenhuma invasão. Pressionado, ele transferiu a responsabilidadepeloerroaum“civilizado”quemoravanolimitedaterraindígena.Todosforamatélá,masohomemnãofoiencontrado.DepoisBenignoconcluiuqueohomemhavia inventado a história para se passar por amigo dos índios. Os Kayapó,contudo,ficaramfuriososcomalongaeinútilcaminhada.

A partir daqui, Benigno narra a versão que ouviu dos vários índios queparticiparam da expedição. Eles decidiram seguir até a fazenda Espadilha, nolimite da terra indígena, onde trabalhava um genro daquele homem queprocuravam.OgerentedaEspadilha,novonaregião,haviaacabadodeassumirapropriedadeeseusfamiliaresnãosabiamexatamentecomoserelacionarcomosíndios.Poroutro lado,os índios tambémnãosabiamquea fazendahavia sidovendida.Elestinhamumbomrelacionamentocomoproprietárioanterior.Antes,quandochegavamemvisita,costumavamentraraosgritosesempedirlicença,ondeeramrecebidosatécomalmoço.Repetiramogesto,masdessavezhaviaumhomemarmadocomumaespingarda,quetentouimpedi-losdeentrar.Aoveracena,ogerentedaEspadilhaintercedeuepediuqueohomemdeixasselivreaentrada.Masoclimaficoutenso.Dentrodafazenda,osíndiosmanifestavamsuacontrariedade com a recepção. Disseram que iriam dar “um castigo” nosegurança, que seria apenas cortar os seus cabelos, gesto que para osKayapóconfigura uma humilhação. O gerente viu uma saída para descontrair oambiente:pediuqueosíndioscortassemtambémseuprópriocabelo,poisestavaprecisando mesmo. Ele sentou-se e os índios começaram o trabalho. Nessemomento,umadasfilhasadolescentesdofazendeiro,queestavanoquartoenãoouviuastratativas,entrounasalae,aoverosíndioscomfacasefacõescercandoseupai,rendidonumacadeira,teriaentendidoqueeleestavasendoassassinado.Nodesespero,pegouuminstrumentodecortequeestavaàmãoeinvestiucontraumdos índios, ferindo-onabarriga.Seguiu-seumbanhodesangue.Os índiosmassacraram a golpes de borduna e facão dezessete pessoas — todos osseguranças e os membros da família que estavam na fazenda, incluindo trêscriançasetrêsmulheres.20

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Diasdepois,osíndiosenfimretornaramaopostodaFunai.Benignojáhaviasido alertado por Brasília e foi cobrar satisfações do cacique Kanhú, que os“civilizados”chamavamde“Canhoto”.“Aíelechorou.Botouamãonacabeçaeficavachorando,chorando.Eledizia:‘Ninguémmeouviu.Eufiqueiparatráseo pessoal foi e fez, e ninguémme ouviu’. Por que fizeram aquilo?Não tinhanenhumanecessidade.”

AschacinasnasfazendasSãoLuíseEspadilhaeainvasãodaFunaiemBrasília,tudoocorridoemmenosdeseismeses,devemterpesadonadecisãodogovernodeesvaziaranovaentidadedosíndios,aUNI.Semajudafinanceiradogoverno,aUNIteveproblemasparaorganizarasuaprimeiraassembleiageral,programadapara abril de 1981 em Aquidauana (MS ). Para cobrir as despesas, o líderDomingossolicitouajudadaentidadealemãMisereor,obraepiscopaldaIgrejacatólicadaAlemanhafundadanosanos1950,masorepassedosrecursosnãofoipossívelporqueaUNI,dopontodevistalegal,nãoexistia.Oencontrotevedeseradiado,eaditaduracomemorou:“Porfaltadecondiçõeslegaisederecursos,areferidasociedadetendeaextinguir-se”.21

AUNI de fato começou a murchar. Mas não apenas pela falta de verbas,comolembrouFábioVillas,doCimi.

Começou-seaconstruirpelotelhado.Faltavabase.Houveumatentativaderegionalização, o Cimi organizou encontros, cursos para os índios, ecomeçou a organizar e entregar para a UNI , “Olha, agora vocês vão darconta”, eoCimi sempreacompanhando.HouveumenormeseminárioemBrasília, foram escolhidos representantes da UNI nas várias regiões. Etambémfoidecimaparabaixo,nãofoiacomunidade,opovodaregião,queelegeu. Tinha esse problema de representação. As pessoas que iam paraesses encontros nem sempre eram as principais lideranças, às vezes eraaquelequefalavamelhoroportuguês,ouomaissaidinho.Eaíentãotentou-sefuncionarmasnãodeucerto,nãofoiparaafrente.ErarepresentantedaUNI ,masopovomesmonãoreconheciacomorepresentante.Essa ligaçãoentreabase,ospovos,eaUNIsemprefoiproblemática.22

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Haviaoutromotivoparaadesmobilização inicialdos índios.Entreo finaldosanos1970eo iníciodos1980,oprotagonismodos índioscomeçouaproduzirvítimasentreseuslíderes,fazendocrescerograudetensão.Emabrilde1978,oApurinã Raimundo Pereira da Silva foi assassinado por um cabo da PolíciaMilitar deBoca doAcre, noAmazonas, ao tentar socorrer um irmão de trezeanos que estava sendo agredido por policiais.Em26 de dezembro de 1979, ocaciquepankararéÂngeloPereiraXavierfoimortoa tirosemBrejodoBurgo,na Bahia, ao resistir à invasão de terras indígenas e à “repressão policial àsmanifestaçõesculturaisdopovopankararé”.23

Poucos dias depois, em janeiro de 1980, o noticiário se voltou para ocaciqueÂngeloKretã, da aldeiaMangueirinha, no Paraná. Ele desempenhavaumpapelproeminenteedestemidonaorganizaçãodosíndioskaingangue,alémdeservereadorpeloantigoMDB .Em1977,um“analista”dobraçodoSNInoMinistériodoInteriorfoiaveriguarasdenúnciasfeitasporváriosíndiosepeloCimi contra o delegado regional da Funai de Curitiba, Francisco NevesBrasileiro. Kretã disse que o índio era explorado e enfrentava enormedificuldade para a produção agrícola, pois não havia combustível para asmáquinas. Relatou que o chefe de um posto da Funai vizinho o ameaçara deprisão porque “procura brigar a respeito da minha gente aqui”. O principalproblemaeraafrágilpossedaterra,disputadacomamadeireiraF.Slaviero,quesegundooCimihaviaseapossadode3,8milhectaresdeterraindígenaemricamatadearaucáriaemadeiradelei.Kretãavisou:

Essaárea,pordireito,elaénossa,énossa.Eunasciaquiemecrieiaqui,énosso e não adianta o Slaviero querer dizer que é dele. Inclusive eu fuitiradodeláelogoqueeusaí,elesbotaramfogonomeurancholádentrodafazenda. […] Eu venho brigando por isso, inclusive até me bateram emíndioalidentrodessaáreaporquedissequeédeles.[…]Deramcomfacãonascostasdoíndios,tinhaatésinalnolombodoíndio.24

IsaacBavaresco, o chefe dopostodaFunai local, apoiou as denúncias deKretãeacrescentouqueas trêsprofessorasqueatendiamosíndioserampagasporprefeiturasdaregião,comum“saláriovexatório”,napráticaum“favorpara

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aFunai”.Dos637índiosatendidosnoposto,192tinhammenosdecincoanosdeidade.

Ouvido na mesma ocasião, o delegado regional admitiu que o apoio daFunaiaoíndioestavaaquémdonecessário.Sobreasterras,BrasileiroinformoudepoisporescritoqueoórgãodisputavacomamadeireiraF.SlavieroodomínioeapossedaglebaBdacolôniaK,emMangueirinha,pormeiodeduasaçõesjudiciais,comauxíliodoIncraedaProcuradoriaRegionaldaRepública.

Em fevereiro de 1978, Kretã anunciou a resistência. Ele queria repetir ofeitodedoisanosantes,quandoosíndiosexpulsaraminvasoresdaterradeRiodas Cobras. A uma TV do Paraná, o cacique contou que sua ação começouquandoreuniudezesseteíndios,armadoscomfacõeseflechas,arrombouopaioldeumafazendaeesparramouaproduçãonochão.Fezomesmocomdiversosoutros ranchos. Ao fim de duas semanas, disse Kretã, os índios haviamexpulsado “170 intrusos”. Em Mangueirinha, prometia ele, a história seria amesma.

Quem se considera dono daquilo ali é os Slaviero,mas o donomesmo énóis, índio aqui de Mangueirinha. Nós vamos avançar lá e vamos tomaraquilo.Ecomoaquiloéanossaterra,assimcomonósconseguimosganharaquelaquestãoládoRiodasCobra,perigosamente,nósganhamosessaaquimuitofácil.25

Bavaresco eKretã começaram a receber ameaças demorte.26 Em janeiro de1980,KretãandavacomaescoltadesoldadosdaPolíciaMilitar—oquenãoimpediuopior.27Nodia23daquelemês,elesofreuumacidentedecarropertodesuaaldeiaequebrou“umbraço,aspernaseváriascostelas”.Morreuseisdiasdepois, em virtude dos ferimentos, na Policlínica de Pato Branco, oeste doParaná. A Comissão Pró-Índio paulista disse que houve “um atentado” queobrigouKretãadesviarocarroquedirigiaebaterdefrentecontraumacarreta.28 No dia seguinte à morte, o coronel Nobre da Veiga, da Funai, disse terrecebido “os laudos periciais da polícia de Pato Branco” e afirmou que “atéprovaemcontrário”,Kretãmorreranumacidenterodoviário.

AFunaidivulgouqueumFuscaazulocupadoporquatrohomens,queKretã

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reconheceu como adversários dos índios na região, estava parado na pista nasaídadacidadenomomentoemqueKretãdeixavaPatoBrancoemumFuscavermelho,tendoaoseuladoumsoldadodaPM.Aoverocarroparadonapista,o cacique decidiu voltar para “buscar reforço policial” e, nessemomento, foiatingidodefrenteporumacarretaquetentoudesviardocarroestacionado.29

BavaresconarrouàTVGloboqueconversoucomomotoristadacarretalogodepoisdoacidente.Dissequeelecontou,“napresençadeváriaspessoas”,quequatro homens estavam parados ao lado do Fusca azul na estrada. Depois doacidente,elesseaproximaram,masrecuaramaoverumpolicial.“Elesentãoseevadiram,desceramumbarranco,tudoderevólvernamão.”

JoséCarlosLeal,delegadodaFunai,dissehaver“indíciosbastanteclarosdeque aconteceria uma emboscada no horário em que houve o acidente”.Localizados depois pela polícia, os homens do Fusca azul disseram terestacionado o carro por problemas mecânicos, mas o tenente da PM SílvioMozalatti informouqueocarronão tinhanenhumproblemaefoi trazidoatéodestacamento“rodando,funcionando”.30

OcasofoioficialmenteencerradopelapolíciadoParanácomoacidentedetrânsito. Em2014, aComissãoNacional daVerdade afirmou em seu relatóriofinalqueKretãfoi“assassinado”,sem,contudo,apresentarprovainequívocaqueampare essa afirmação. Trata-se de uma conclusão precária à luz das provas,que,contudo,nãoreduzassuspeitassobreamorte,emboraváaoencontrodasconclusões da família. O Kaingangue Romancio Kretã, que tinha sete anosquandoopaimorreu,dissequeamerapresençadeumveículonaquelepontodaestradapôsemriscoosmotoristasefoideterminanteparaamortedele.

Damaneira que foi feita as coisas, como foi investigado, tudo levou paraquefosseumassassinato.Emesmoqueapessoativesseporacasoparadoocarro ali, ela também está cometendo um crime, porque ali era estradafederal,comcurva, temumriscomuitograndedeapessoaqueestávindobaterdefrentecomooutrocarro.Dequalquermaneira,foiumcrime.Paramim,nãotenhodúvidadequefoiassassinato.31

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24.ASOCIEDADE

NOMESMO ABRIL DE 1980 QUEMARCOU O INÍCIO DA UNI, umgrupo de servidores da Funai esticou a cabeça para fora. Em uma entrevistapublicadapeloJornaldeBrasília,ochefedaajudânciadoórgãoemBarradoCorda(MA ), José Porfírio Fontenele deCarvalho, anunciou a criação de umacerta Sociedade Brasileira de Indigenistas (SBI) , com a divulgação de seu“primeirodocumento”comumasériedecríticasàpolíticaindigenistaoficial.Aentidade teria sidocriadaemfevereiroe jácontavacom“oitenta sócios, todosfuncionáriosdaFunaicomexperiêncianocampo”.Seisdiasdepois,adireçãodaFunai cobrou explicações de Carvalho. 1 A resposta foi uma provocação. Oindigenistaescreveuque,comooofíciodaFunaifalavano“servidor”Carvalho,ficou “prejudicada” a sua resposta. Explicou que tinha dado a entrevista emnomedaSBI,“nãoeranenhumpronunciamentodeservidoresdaFunai”.2Coma SBI , o numeroso grupo de servidores da Funai recorria enfim à mesmaestratégia de confrontação adotada pelo menos sete anos antes pelo Cimi—entidadetãocriticadapelosservidoresnaépocadesuacriação.

As divergências entre indigenistas e militares erammuitas no começo dadécadade 1980.Anos depois,Carvalho se disse negativamente impressionadocom o comportamento de alguns dos principais militares que comandavam aFunai.DogeneralAntônioEstevesCoutinho,chefeemManaus,eleserecordado autoritarismo e da “pouca importância” que dava ao índio na região. 3AsmemóriassobreogeneralBandeiradeMellosãomaisextravagantes.SegundoCarvalho,detemposemtempos,quandoseaproximavaumfinaldesemana,ogeneral passava um radiograma com ordem de que Carvalho reservasse doisapartamentos conjugados em hotel flutuante emManaus, às custas da Funai,

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paraeleesuasecretária.Comoogeneraltrabalhava“muitoduranteasnoiteseprecisava de uma assessoria”, os quartos tinham que ter uma porta interna decomunicação. Carvalho também era orientado a pedir ao governador doAmazonasquepusesseuma lanchaàdisposiçãodogeneral,poisduranteodiaele tinhaque fazer“reconhecimentosdaárea”.A lanchavinhaabastecidacombebidas.

***

AFunaifoiinformadaarespeitodacriaçãodaSBIem2demarçode1980,quandouma“comissãoprovisória”daentidadeenviouumacartaaoórgãoparapedir uma discussão mais aprofundada sobre “os critérios de abordagem doproblema sociopolítico que se constituiu a terra indígena”. Assinou pelacomissãoaqueleantropólogoquehaviatramadoainvasãodosXavantenaFunai.NascidoemPiracicaba, interiordeSãoPaulo,CláudiodosSantosRomeroerafilhodeumferroviárioedeumadonadecasa.Em1971,passounovestibularparaa faculdadedeciênciassociaisdeRioClaro.Algunsdosmaisdestacadosantropólogos da época lá lecionavam, como Carlos Araújo Moreira Neto,Carmen Junqueira e Fernando Altenfelder. Romero disse ter lido, durante ocurso, “muita coisa de marxismo, socialismo, era completamente contra aditaduramilitareparticipavadomovimentodejovensdaIgrejacatólica”.4

Romeroaproximou-sedoprofessorMoreiraNeto,ummilitantedoPartidoComunista, profundo conhecedor do tema indígena, que havia vivido entre osKayapó e escrito obras de referência. Os pronunciamentos do professor emdefesa do índio impressionavam Romero. Moreira Neto disse que os índiosprecisavamdaajudadepessoascomoseualuno.Romero,porém,aindanãosediziaconvencido.Eleindagouaoprofessorseonúmerodeíndiosnopaís,queseriade120mil,nãoeramuitopequenoparajustificarumadedicaçãodetantasaulas e horas de estudo, considerando que nas cidades haviamuitos operáriossendopresosetorturados.MoreiraNeto,disseRomero,chamou-ode“avozdaignorância”, deu-lhe uma longa aula sobre o índio noBrasil, que começou nafaculdade e terminou em um bar, de madrugada. “Ele falou da diversidadeculturaldosíndios,detudooqueaconteceu,dosmassacres,decomoaditadura

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estavaatropelandoessescarascomessasbarragens,essasestradas.Aíocarameinteressou.”

Após formar-se emciências sociais,Romero foi paraBrasília e conseguiuumavaganaFunai,apartirdeentrevistasedecartasdeapresentação.Entrounoórgãoemabrilde1976.Nomêsseguinte,foiorientadoasedirigiraosXavantedeMatoGrosso.Antes,porém,foichamadoàsaladogeneralDemócritoSoaresde Oliveira, coordenador da Coama. Primeiro o militar reclamou dos cabeloscompridos,dacalçadebarrabocadesinoedovisualdesleixadodeRomero—“Maisum‘maconheiro’queaFunaicontrata”,resmungou.DepoisdesaberqueRomeroiaparaaregiãoapenascomumrevólverdebaixocalibreecanocurto,ogeneral,dizendo-segenuinamentepreocupadocomasegurançadorapaz,trocouaarmaporumapistolacalibre45.AFunaieracapazdeproduzir talcena:emplenaditadura,umgeneralarmandoum“comunista”.

Romero viajou para SãoMarcos, onde funcionava a Missão Salesiana, acerca de 125 quilômetros deBarra doGarças (MT ). 5 Romero encontrou umcenário chocante. Numa população total de 854 índios, a taxa demortalidadeinfantil era extremamente alta.Apenas entre 1974 e 1975 haviammorrido 96crianças commenos de um ano de idade, das quais 37 por sarampo e 41 por“gripeefebre”.Noveoutrashaviammorridologoapósoparto.Nosexamesdasfezesde79crianças,apenassetederamnegativoparavermescomolombrigaegiárdia.Romeroregistrouquea“alimentaçãobásicaéoarroz,feijão,mandiocaemilho,sendoquenãonotamosnemcarnenempeixenaalimentaçãonosdiasemquepermanecemosnaárea”.6

DepoisoantropólogoconheceutodasasáreasxavantedeMatoGrosso.EmSãoMarcos,ouviuestarrecidoadescriçãosobreaconsequênciadaepidemiaqueatingiuosíndiosdeMarãiwetsedeassimqueláchegaram,transferidosemaviõesdaFAB.

OíndioGuidomecontouqueeleeseusirmãos,PioeMiguel,faziamcovas,abriamejogavamtrinta,quarentacorposdeíndios.Denoitemorriamedemanhãjogavamemvalascomuns.Issofoiemsetembrode1966.Ostratoreschegavamcomascarretascomoscorposejogavamnascovas.[…]Foiuma

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sacanagemoquefizeramcomessesíndios.

OsXavantejávinhamtomandoainiciativapararetomarsuasterrasdesde,pelomenos,1970,quandoumgrupodeAreõessaqueoupropriedadesvizinhas.Olíder indígenaSaamri,com35guerreiros,declarounaépocaque“queimariaasfazendasrestantesnaáreaeexpulsariaseusresidentes”.7

A partir de 1977, Romero e o indigenista Odenir Pinto de Oliveiracomeçaram a trabalhar com os líderes xavante, dentre os quais CelestinoTsererob’o e Babati, para a expulsão de fazendeiros e invasores. 8 A terraindígena Parabubure foi criada assim, sob pressão, com uma portariapresidencialassinadaem1979.Emjaneirodaqueleano,umfazendeirovizinhodaáreaPimentelBarbosafoiaBrasíliaparadenunciarRomeroeoutroservidordaFunai,JoãoBatistaNunes,comoresponsáveispor“insuflarosíndioscontraosfazendeiros”.9

Romeroconcordou,maisdetrintaanosdepois:

Foiumaguerrilha.[…]Corajosoéumacoisaquenãoexiste.Ascoisasqueeu fazia era uma total falta de juízo. Eu tenho uma amiga que fala que acoragem é a falta de noção do perigo. Naquela época eu era louco. Euachavaqueestavatudoerradoepartiaparacima.

Assim,portudoquehaviavistoeouvido,quandoosindigenistassereuniramemBrasíliaparaoficialmentefundaraSBI,de3a5deabrilde1980,Romerotinhamuitascríticasafazersobreapolíticaindigenistaoficial.Elefoieleitosecretáriodaentidade.Carvalho tornou-seopresidente eOdenirOliveira foi eleitovice-presidente.EsseseoutrosnomesligadosàSBIforamdeimediatorepassadosaosistemade informaçõesdaFunai,aASI ,pormeiode“umadegravaçãode fitacassete”.10

Desde o começo a SBI foi acompanhada com lupa pelo serviço deespionagemdaFunai.Umdocumentosigilosorevelaqueareuniãodeabril,com36 servidores, foi toda acompanhada por um “informante”, identificado emdocumentocomosendoninguémmenosqueumdoseleitosparaadiretoriadaentidade,nocargodesuplentedetesoureiro,oentãodiretordoParqueIndígena

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doXinguFranciscodeAssisdaSilva.Nodia19demaio,Silva renunciouaocargonaSBI.11

Noencontro,osindigenistasfizeramrelatosdasituaçãodaáreaemquecadaumatuava.Trata-sedeumricopanoramaproduzidopelosprincipaisservidoresdaFunaiqueviviamnapontadosistema,emcontatodiretocomarealidadedosíndios.

Na área xerente, além da falta de demarcação de terras estava havendo“massacre de Tocantínia, que os posseiros e fazendeiros fazem aos índios”.AntônioPereiraNeto,administradordoParquedoAraguaia,“falouquenãohásegurança. Ele contou que um dia eles iam atravessando de balsa no rioTocantinseforambaleados,balearamabalsaeelesearriscou,correuperigodevida,demorreralinaquelahora”.

JoséVictorSantana,dopostoAndirá,noAmazonas,contouqueaPetrobras,estataldogovernofederal,eraomaisnovoproblemanaregião,pois“houveumaexploraçãono rio lá ematoumuitospeixes”.RonaldoOliveira, que atuavanaárea dos índios apurinã, contou o longo processo de atrito entre posseiros eíndios pela posse da terra e que “existe uma grande pressão política em cimadaquelesíndios”.

Segundo Ronaldo, um grupo de índios foi abordado por uma equipe daPolícia Federal, que, a partir de determinadas perguntas esdrúxulas — secomiamcomcolheregarfo,porexemplo—,afirmouqueeles“nãoerammaisíndios” e ordenou que saíssem de imediato da região, sob pena de prisão.Osíndios resistiram. Após uma reunião em Brasília e um acordo frustrado, doisíndios apurinã tentaram retornar aBrasília para falar com a direção da Funai,masforam“retiradosdoaviãopelaPF”.Ronaldodisseque“oíndiosabeoquequer,oíndioconheceseusdireitoseoíndionãovaicalarporqueoíndionãotemmedodematarenemtemmedodemorrer”.

Ao comentar a situação dos índios krenak, Cláudio Romero disse que “acúpuladaFunaiéterrívelesutil”.Certavez,contouele,opresidentedoórgãolheordenouquesedirigissecom“vinteíndios”atéacasadeumposseiroparareceberasprópriasmediçõesdas terrasqueelealegavapossuir.OantropólogodissequenãohavianenhumaparelhodemediçãoequeaFunaiteriaqueconfiar

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napalavradoposseiro.Odenir, que atuava entre os Xavante, descreveu uma intensa campanha

difamatórianaregiãodeBarradoGarças.Ospolíticosandavam“pelasruasemcaminhões,carroscomalto-falantes,metendoopaunaFunai,noíndio,dizendoqueaFunaiquerfazerdaquelelugarumareservaindígena”.Carvalhoconfirmouqueepisódios semelhantesocorriamemBarradoCorda.Ele sugeriuqueaSBIdesse “um basta” nos problemas, que se dedicasse a produzir um documentopara o presidente da República para “denunciar a cúpula da Funai”. FranklinRoosevelt de Góes da Silva, ummédico, sugeriu um pedido de demissão emmassa.

Uma servidora que trabalhava com os Yanomami contou que “há anos”pediu remédios para a região, mas “nada foi feito”. Assim, ela recorreu “àDinamarca e àNoruega”, que lhe deram “30mil dólares para fazer vacinas”.Franklinrevelouquemuitosdeseuscolegasmédicos“raramenteaparecemnoshospitais”eporissodeveriamserdemitidos.

Um participante do encontro, identificado apenas como Fernando(possivelmenteSchiavinideCastro),contoumaisumcasochocantedafaltadeatendimentodesaúde.Elerelatouterido“buscarummédico”paraexaminarumíndiodoente.Omédico,porém,dissequeopacienteestavaapenascomfomeerecomendou que lhe fossem dadas bananas. No dia seguinte, o índiomorreu.“Fernando no dia seguinte pagou um avião com seu próprio dinheiro e foi lámatar o médico, porque não entendia como é que ele não havia atendido oíndio.”Nãoficouclaroodesfechodoepisódio.

ForamtantasashistóriasregistradaspeloesquemadeespionagemdaFunaique uma análise isenta só poderia concluir que as razões da insatisfação dosservidoresdoórgãotinhamtudoavercomasituaçãoprecáriadosíndios,algomuito distante de uma armação política. Mas a ditadura carregou nas tintascontraaSBI.

AprimeirasériacriseenfrentadapelanovaentidadetevecomoorigemaregiãodedivisaentreAcreeAmazonas.OantropólogoTerriValledeAquinochegoupelaprimeiravezàterraondeviviamosíndioskaxinawáaindacomoestudante

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da UnB, em 1975. No ano seguinte, Terri se aliou ao líder indígena AlfredoSueiro e conseguiu furar o esquema de atravessadores que adquiriam o látexproduzido pelas comunidades indígenas da região, o que provocava “sériosconflitos”entreíndioseseringueiros.Em1977,foicontratadopelaFunaicomoprestadordeserviçose,em1978,credenciadoporumasecretariadogovernodoAcre,ocasiãoemqueseinsurgiucontra“oencarregadodoprojetodeconstruçãodeumapistadepouso”,feitacommãodeobraindígena.“Adiscussãogirouemtornodopreçodadiáriapagaaos trabalhadores,queoantropólogoconsiderouinjusto.”Seringalistaspressionaramogovernolocal,queretirouacredencialdeTerri. Em novembro domesmo ano, a chefia da ajudância da Funai no Acre“retiroueproibiu”Terride ingressarnaárea.Noanoseguinte,opresidentedaFunaimandouqueelefosseretiradodaregião.12

Documentos confidenciais da época demonstram os bastidores daperseguiçãoaTerri.Segundoessespapéis,em1978osenadorAltevirLeal,dagovernista Arena do Acre, declarou ao indigenista José Carlos dos ReisMeirellesJúnior,chefedeumpostoindígenadaFunai,quehaviaestadocomogeneralIsmarthemBrasília,“dequemeraamigopessoal”,erecomendadoqueoórgão desligasse Terri da região, sob a alegação de que ele estava vendendoborrachadosíndios,oqueaFunainaregiãosabiaserumainverdade.OchefedaAjudânciadoAcrenaocasião,AntônioPereiraNeto, tentou reverteradecisãodeIsmarthcomumainformaçãocrucial:“OsenadorAltevirLealéatualmenteomaiorseringalistadeTarauacá”.13

O sertanista explicou que Terri e os índios haviam conseguido “furar umbloqueio”estabelecidoporseringalistasna fozdo rioJordão,oqueos levouapassarquaseuma toneladadeborracha“apreçosmuitomaiscompensadores”.PereiraNeto disse queTerri “jamais auferiu lucro pessoal nessa história”.Em1977, os índios tentaram de novo vender uma carga de borracha,mas ela foi“tomadapelosirmãosFarias”,seringalistaspoderososnaregião.14

Compós-graduaçãonaUSP,aantropólogaDelvairMontagnerMelattitrabalhoupor quatro anos na Funai e realizou pesquisas de campo em várias terrasindígenas. 15No final dos anos 1970, ela esteve em contato com índios que

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habitavamumaextensa regiãonosmunicípiosdeBenjaminConstanteAtalaiadoNorte, onde também atuava Terri. As ações da antropóloga enfureceram ochefedaAjudânciadoSolimões,MarcosMárioBenn.DelvairfoiàprefeituradeAtalaiadoNortepara levantarosnomesde todososproprietáriosde terrasdaregião e anunciou que iria “fechar os rios e igarapés, impedindo a entrada demadeireiroseseringueiros”.ElavasculhouarquivosdaFunailocale“procurousaber se existiam indígenasdoentes”.Segundoa sededa entidade,Delvair fez“comentários pouco recomendáveis com referência à política de atuação daFunai”ededicou-sea“incentivaroshabitantes[dasáreasindígenas]atomaremumaposiçãomaisagressiva”emrelaçãoaoórgão.AoencontrarumíndionorioItuí,motivou-oairatéaajudânciapara“botarparaquebrar”.16

O poder local se agitou.O prefeito deAtalaia doNorte,Ademir Lucena,procurouumjornaldeManausparadizerqueaFunaicometia“atosarbitráriosnoqueserefereàdemarcaçãodeterrascomobloqueiodosrios”.17

Tudo somado, Terri, José Meirelles e Delvair estavam sob a mira docomandodaFunai.Emmaiode1980,adelegaciaregionaldoórgãoerachefiadapelo sertanista Apoena Meireles. Ele enviou a Brasília um telegramaconfidencialparadizerquenão iria“tolerar insubordinaçãode funcionários”epediu a demissão deTerri, deMeirelles e do auxiliarAntonioLuizBatista deMacedo.Apoenaargumentouqueostrês“insistememdesmoralizarochefe”daAjudância do Acre, Benamour Fontes, com “provocações descabidas egratuitas”. 18 “É intenção desta DR disciplinar a Ajacre dentro das normas ediretrizesdaFunai,afastandoelementosquequeremtumultuaraárea”,escreveuApoena.

Mesesdepois,emrespostaadenúnciasfeitasporTerriàimprensadoAcre,Apoena enviou uma carta a um jornal local para dizer que a Funai estavatentando implantar “projetos econômicos em todos os postos” para ajudar osíndiosdoAcre,“quepormuitotempoestiveramentreguesahomenscomoTerrideAquinoeoutrosquenadafizeramparamudarasituação”.Apoenaescreveuainda que a realidade do índio brasileiro “não pode ser vista da maneiraromânticaeutópicacomooéporalgunsgrupos”.19

Nodia28demaio,ocoronelNobredaVeigadispensouJoséMeirellesdo

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empregodetécnicodeindigenismoedachefiadopostoindígenaquedirigianoAcrehaviaquatroanos.20

Aomesmotempo,emBrasília,oprocurador-geraldaFunai,AfonsoAugustodeMorais, opinou, após analisar o estatuto da SBI , pela “incompatibilidade doservidordaFunaiintegrarasociedade”,poisestariaferindo“princípiosbasilaresda doutrina trabalhista”. Segundo ele, havia “um conflito de situações— osfundadoresdasociedade,osseusdirigentessão,aumsótempo,assalariadosdaFunaieseuscríticos,seusjulgadores”.21

NobredaVeigainformouàdireçãodaSBIqueanovaentidadenãoteriasua“aprovaçãoeaceitação”,masalegouquenãopretendiaobstaracriaçãodealgoparecido,oferecendoaFunaiparaajudara“elaborarumaminutadeestatuto”.22

OministrodoInterioreraocoroneldoExércitoMárioAndreazza,quetinhasubstituídoRangelReisnoanoanterior.Andreazzahaviaparticipadodareuniãoque, em1968,decretouoAI -5.Para aprovação inicialdos indigenistas, assimquetomouposseeleconfirmouqueogovernoFigueiredonãoiriamaisexecutaro plano de emancipação dos índios tramado pelo ministro anterior. 23 Noepisódio do SBI , porém, Andreazza voltou à mesma linha dura de 1968. Ocoronelfezumareuniãocomoministro-chefedoSNIecomoministro-chefedoGabineteMilitar, DaniloVenturini, para discutir “os problemas presentementeenfrentados pela Funai”. O medo dos militares ficou patente. Andreazzaanunciou que na reunião foi bolada “uma nova postura” da fundação. OministérioeoSNI iriam lançar “umesquemade segurançaa ser acionadopelaFunai”,“depreferênciacomcaráterpreventivo”.Oministroanunciouaindaqueo órgão iria “exercer ação disciplinadora sobre as comunidades indígenas”.Também mandou o recado de que não aceitaria as pressões dos índios eindigenistas que buscavam demarcar por conta própria áreas tradicionais eexpulsarinvasores.Eleescreveuqueoórgãohonrariacompromissosassumidoscom demarcações, mas evitaria “a ampliação indiscriminada e desnecessáriadessasreservas”.24

ASBIreagiudeformaduraàpuniçãocontraJoséMeirelleseoutrosnoAcreeà

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pressãodaFunai.Umgrupodenove filiadosdirigiuaopresidentedaentidadeofícios individuais pedindo seu imediato desligamento: Romero, Odenir,OswaldoCidNunesdaCunha,FranciscodeCamposFilho,FernandoSchiavinide Castro,MartaMaria Lopes, Otacílio deAlmeida Júnior, Ronaldo Lima deOliveiraeEvangelinadeFigueiredoAraújo.Osofíciosdiziamqueademissãoera “emcaráter irrevogável”, por “discordar da política indigenista daFunai eemprotestocontraademissãode‘companheirosindigenistaspertencentesàSBI’”.25

Emseupedidodedemissão,OdenirdissequeaFunaivinhaprocurandodemaneira progressiva implantar na área xavante “um sistema de trabalhoalienatório, de difamação e de desestruturação tribal”. 26 Alfinetando osmilitares, Romero escreveu que a política oficial “vai contra a tradiçãoindigenistacriadaporRondon”.27

NobredaVeigaaceitouasdemissõesdeRomeroeOtacílioem11dejunho.Nodia seguinte, “por contestação à administração”, resolveudemitirCarvalho“por justa causa”. 28 O coronel se apoiou em novo parecer do procuradorAfonso de Morais, que defendeu a justa causa por “ato de indisciplina einsubordinação”. O motivo: um telegrama que Carvalho enviou à Funai paraprotestarcontraasdemissõesdeMeirelleseoutros,noqualchamouadecisãode“arbitrária,descabidaedesrespeitadora”.29

No meio da crise, a SBI fez mais dois ataques à ditadura. A princípio,divulgou uma das manifestações mais enfáticas contra a Funai registradas aolongo de toda a ditadura, uma carta aberta intitulada “Ao povo”, em quedenunciouaaçãoindigenistaoficialcomo“altamentearbitrária”,emdesrespeitoà“tradiçãoindigenistabrasileira”.

Tal tradição vem descaradamente sendo desrespeitada pela atual cúpuladirigentedaFunai,paraaqualo índioécasodepolícia,subornávelenãomerecedorderespeito.ResponsabilizamososatuaisdirigentesdaFunaiporessas práticas, assim como pelo etnocídio e genocídio que no presenteexecutam e programam, especificamente com os povos apurinã, xavante,guajajara, krenak, nambikwara, kaingangue e yanomami. A SBI acusa os

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dirigentes do órgão tutelar de não passarem demeros testas de ferro dosgrandesgruposeconômicos,nacionaisounão.30

Ogolpeseguinteocorreuem16de junhode1980,comumacartadeseispáginasendereçadapelaSBIaoministroAndreazza,comcópiasaospresidentesdoSenadoedaCâmara.Trechosforamamplamentecitadosemreportagensdaimprensa. A carta listou dezenove “fatos demonstrativos” de que a legislaçãoindígenaestavasendodesrespeitadapeladitadura.Denunciou“seguidosatosderepressão policial e ameaças de viva voz aos índios” por Nobre da Veiga; a“ocupaçãomilitardopostoindígenaBocadoAcre”,noAmazonas,“portropasdaPMedoExército,na tentativaunilateraldereprimiranseiosdacomunidadeapurinã”; o “descaso” sobre crimes cometidos contra índios kaingangue,guajajara, tikuna e pankararé; a falta de demarcação de terras nambikwara; aconstrução de barragens que “devastarão territórios reconhecidamenteindígenas”;postosindígenasquenuncaforamativados;eodescumprimentodeleiemrelaçãoàdemarcaçãodasterras.Porfim,odocumentopediuqueaFunaipassasse a ser dirigida “por homens públicos de comprovada postura eexperiênciaindigenista”eareintegraçãodosservidores“demitidosouforçadosasedemitir”porrelaçõescomaSBI.

OcomandodaFunairespondeuàcartadeduasformas.Primeiro,distribuiuumtextoemquecontestoutodasasdezenoveacusações.Emseguida,nodia1odejulho,promoveuademissãocoletiva,por“justacausa”,dos21servidoresquehaviamassinadoa carta endereçada aAndreazza.Adecisão foimaisumavezapoiadaporumparecerdoprocuradorMorais.ElealegouqueaSBInãoexistianemsepoderia chamarde “entidade sindical”, oque a tornava ilegal à luzdalegislação trabalhista, e que as acusações contidas na carta constituíam“indisciplinaeinsubordinaçãodosempregados”.31

Asdemissõesforamoápicedacrisedesencadeadaemabril,atingindoentãoumtotalde34desligamentos,assimdivididos:trêsservidores“porindisciplina”,no caso do Acre; um, Carvalho, por “contestação à administração”; nove, apedido,“emcaráterirrevogável”;alémdos21subscritoresdacarta.Entreos34excluídos,haviacatorzeantropólogoseonzetécnicosindigenistas.32

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AndreazzadissepelaimprensaqueapoiavaasdecisõesdocoronelNobredaVeiga.33MasaFunaiaindanãoestavacontenteetentouampliaroexpurgo.Emagosto,ocoronel IvanZanoniHausendistribuiuumexpedienteaos servidoresdoórgãopara saber aopiniãode cadaumsobre a carta abertadaSBI . Para adiretoriadaentidade,aintençãodocoronelera“identificarossóciosdaSBI[…]para persegui-los funcionalmente, dificultando assim a consecução de umindigenismohonestoecoerente”.34

AiradacúpuladaFunaivoltou-setambémcontraoutrofocodeincômodo,umgrupodeservidoresdoMuseudoÍndio,noRio,órgãovinculadoàfundação.Quando estourou a polêmica sobre a emancipação do índio, dois anos antes,servidoresdomuseu,comalunoseprofessoresdeantropologiaepesquisadoresdoMuseuNacional,haviamcriadoaComissãoPró-ÍndiodoRio,queorganizouatosepalestrascontraosplanosdaditadura.

O primeiro presidente da comissão foi Carlos Augusto da Rocha Freire,lotadonomuseu.Elechegaraaoórgãonasegundametadedosanos1970,afimdeajudar,comumadezenadepessoas,emumtrabalhodecoletaecatalogaçãodedocumentosreferentesàhistóriadoSPIqueestavamespalhadospelosprédiosdaFunainopaísafora.Oesforço foi lideradopeloantropólogoCarlosAraújoMoreiraNeto,omesmoquehaviainspiradoCláudioRomeroaentrarnaFunai.Então estudante de ciências sociais, Rocha Freire ficou impressionado com oconteúdodosdocumentos.

Levou-meaterumaconsciênciadessahistóriacomosefosseumahistóriaoculta do Brasil, porque eu estava tendo acesso a uma documentaçãoprimária de tudo o que ocorria com os índios e que não era usada porantropólogos e historiadores. E que revelava uma situação de totalabandono,umadesgraça total, epidemias,conflitos,umasériedecoisas, efaziaumperfildecomoeraaassistênciadoEstado.35

Com a onda de demissões do pessoal ligado à SBI , a cúpula da Funaiaproveitou para fazer um ataque também aos quadros domuseu.Em julho de1980, os dez contratos de prestação de serviço entre o órgão e o pessoal dadocumentação não foram renovados. “Foi fechado o setor de documentação e

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fomos todos afastados. Cada um seguiu um rumo, alguns voltaram a estudar,outros foram trabalhar com pesquisas avulsas. […] Foi uma diáspora, umadebandadageral”,disseRochaFreire.

Commedodequeadocumentaçãohistóricafosseextraviadaoudestruída,MoreiraNeto correu aomuseu para dirigi-lo em caráter temporário, até que asituaçãopolíticanaFunaisenormalizasse.Ocentrodedocumentaçãoficouumanofechado.

As demissões criaram uma situação difícil para muitos dos 34 servidores daFunai.Elesseviramimpedidosdecontinuarrealizandoo trabalhocomgruposindígenascomosquaistinhamconvividoporanosafio.Sentiam-se,emmaiorou menor grau, corresponsáveis pelo destino daquelas comunidades. Algunsquiseramvoltaraosquadrosdafundação.Aoperceberessaintenção,ocoronelZanoni fez uma exigência cruel: o interessado deveria redigir uma carta“pessoal, individual, e de preferência com palavras próprias”, na qual“necessariamente deveria haver uma declaração de arrependimento pelo atopraticado”.

AexigêncialembraoqueaditadurapromoveucomoestudantesecundaristaMassafumiYoshinagaque,presopelaOperaçãoBandeirante(Oban),foilevadoa divulgar uma carta aberta “dirigida aos jovens”, em julho de 1970, na qualelogiouosfeitosdogovernoesedissearrependidodeterbuscadoalutaarmada.Soltodiasdepois,Yoshinagaenfrentoudistúrbiosmentaiseacabousematandoem1976,enforcadocomumamangueiranoapartamentoquedividiacompaieirmãos.36

DozeprocessosforamabertosnaFunaiparaatentativadereadmissão,masapenas duas antropólogas, segundo o parecer de Zanoni, deveriam serreadmitidas.Elas“aceitaramapuniçãoporconfessarem-seculpadas”,“tiveramacoragempúblicaderetratarem-seporescrito[…],confirmandoaconsciênciadoerro” e também “não participaram de nenhuma carta, assembleia, reunião ousequer encontro comosdemaisdemitidos”.37A Funai confirmou depois queambas “refletem uma atitude de arrependimento e explicitam um pedido deretratação”.38

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25.APALAVRA

MUITOS DOS EXPURGADOS DA FUNAI NA CRISE DE 1980 foramreadmitidos dois anos depois, na gestão do coronel da Aeronáutica PauloMoreiraLeal.Outros,porém,não regressaramàentidade.Odenir foi trabalharcomomotorista de caminhão. 1Dois anos depois ele se aliou a Fontenele deCarvalhoparatrabalharcomoprimeiroparlamentarfederalindígenadahistóriadopaís—equeaté2015continuavasendooúnico.AtrajetóriasingulardesseXavantefoimarcadapelacríticadesabridaepelacobrançadireta,porcercadeoito anos, aosprincipaismilitaresque comandavamaFunai eoMinistériodoInterioremplenaditadura.

MárioJurunaDutsé,citadoemcartóriodeMatoGrossocomotendonascidoem3 de setembro de 1943,2era sobrinho do caciqueApoena. 3 Estava comdezesseteanosquandotevecontatocomosprimeiros“civilizados”.Aoconhecerascidades,ficoucompenadosseusmoradores.

Coitado, coitado, viu!Homemquevivena cidadenão tem feliz.Não temfeliz. É tanta coisa que a gente pensa, cheio de problema. O homem dacidade não tem liberdade, a gente tá vivendo depende do outro.Ninguémvive para si. […] O pior é vício, é pior que gente bate outro, falta-serespeita,gente roubacoisadooutro,épiorquegentemataooutro,épiorquegenteenganaoutro,tapeiaoutro,enrolaoutro.4

Emmeadosdosanos1970, JurunaviviapertodamissãosalesianadeSãoMarcos quando decidiu criar uma nova aldeia, a Namuncurá, 32 quilômetrosdistantedasedeconstruídapelospadres.Esteslhefizeram“umaforteoposição”.JurunadisseaoantropólogoCláudioRomeroqueseugrupohavia“secansado”

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demorar perto dos padres porque “eles não queriamque os índiosmudassemparapertodoriodasMortesporqueláaterraéboaeosíndiosvãodesenvolver”.Para Juruna, a “missão tem bastante coisa, mas o índio não tem nada, nemcomida”. A Funai confirmou: “A situação é exatamente essa: os índios estãoproduzindo o suficiente para sobreviver”. A nova aldeia contava com 119Xavante em 1976, porém não tinha “praticamente assistência alguma”, comoconstatouaprópriaFunai.5

JurunacomeçouaaparecernaimprensadoeixoRio-SãoPaulocompoucomenosdetrintaanos,em1974,depoisquepassouquinzediasemBrasíliaentreo Ministério do Interior e a Presidência, onde pediu uma audiência com ogeneralGeisel.Elequeriaumagarantiadequeogovernoiriamesmoindenizareretirarosfazendeirosqueocupavamáreasxavante.Jurunacontouaosjornalistasqueem1973elehaviaconfiadonapalavradoministroCostaCavalcanti,masnenhumaprovidênciaforatomada.Osíndiosentãodecidiramexpulsarporcontaprópria um fazendeiro. “O fazendeiro me falou para esperar autoridades. Eu,esperarautoridade?QuandovemoExércitometirar,eusaio.SeoExércitotemautoridade,eutambémtenhoautoridade.”6

Jurunaprometeubriga.“Eunãovouparartambém.Eusemprecriabagunçacomopessoárparapoderresolverproblemadoíndio.Eunãovouficarquieto,não,porquetemgenerár,porquetemministro.”7

Emjaneirode1977,JurunaressurgiuderepentenoPlanaltocomafinalidadedeser recebido por Geisel. Com “um gravador, um facão na cintura e fumandocigarros”, fezumplantãodasoitoàsdezessetehoras,masnãoconseguiu falarcomogeneral.Apósserrecebidoporum“assessorderelaçõespúblicas”,dissequea“Funainãoatendeoíndio”equesesentia“umcidadãobrasileiroqueestásendojogadonolixo”.8

Em fevereiro, Juruna tocou na sua aldeia uma fita que gravou de umaconversasuacomodiretordapoderosaDiretoriaGeraldeOperaçõesdaFunai,Francelísio van der Broocke. Na fita, Broocke aparece reclamando: “Estamoschegando lá para ajudar vocês e você vem com papo de gravador aqui paraconversarcomigo.Vocêestámeofendendo”.

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“Se você quiser pode proibir, mas eu não vou aceitar. […] Então tágravando.”

“Eubrigocomvocê.”“Podebrigar.Sevocêquiser,podememandarnacadeia.”9

AFunaisoubequeousodogravadorporJurunaseespalhoucomomodaentreoutros líderes indígenas. Eles começaram a enviar para o órgão, em Brasília,“inúmeras mensagens gravadas”. E pediam que as respostas também fossemgravadas.10

Oexotismorelacionadoaousodogravadorporumíndiocapturouaatençãoda imprensa, que parecia pela primeira vez conceber a ideia de que “um‘selvagem’”, como às vezes se referia a ele, pudesse ter capacidade de cobrarpromessasfeitasporautoridades.

Naemocionantepurezadoíndio,emsuaestruturamentalevocabular,nãorestalugarparaoconceitodementira.Tudoéclaro,nítido,definido.[…]Oíndio,selvagem,dizefaz.Ocivilizadodizuma,fazoutrae,provavelmente,senteumaterceiracoisa.JurunaéoBrasilverdadeiroeautêntico.Nãotemnada de tropicalista e exuberante, ao contrário, é quase ascético na suamoral.11

Se o governo estava surpreso com Juruna, o Xavante é que se diziaespantado com a dificuldade de falar com as autoridades de Brasília, semprepresasacompromissospreviamentedefinidos.

Naminhatribo,qualquerpessoaquechegapodefalarcomochefe.Apessoachega, encaminha e vai embora. Não tem burocracia. Lá o que vale é apalavra. Palavra de homem é palavra de homem. […] Aqui na cidade, agentefalacompapofurado.Entãonãotempalavradehomem.Eunãosoucriança.12

Juruna se disse magoado com o general Ismarth, que o descreveu ajornalistascomo“umíndiomuitoespertoe,quandonãoconseguedinheiroparafazersuasviagensaoRioeaSãoPaulo,começaafazerqueixaspelosjornaisea

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falarmaldaFunai”.13Um ano depois, Ismarth indicou que osmilitares poderiam ser bemmais

perigosos. Ele ordenou que Juruna deixasse Brasília de imediato, a fim de“cuidar de seu povo” na aldeia. O índio disse que ia embora porque haviarecebidoapromessadequeasaldeiasxavantereceberiam“quinhentascabeçasdegado”daFunai.14

Quando foi ouvido pela TV Cultura em São Paulo, Juruna denunciou oesquema das certidões negativas emitidas pela Funai e mencionou o generalBandeiradeMello.

[Ele]vendeuterradoíndio.ODGPI,ochefedoPatrimônioIndígena[…],arrumava tudo documento fasso, arrumava tudo nascimento negativo parafazendeiro, vendeu esse nascimento negativo para fazendeiro. Então essedocumentofoiproveitadoparapodertomaraterradoíndio.15

JurunadenunciouasmortesdosPanaráeadecisãodogovernoderetirá-losparaoXingusemaautorizaçãoesclarecidadosíndios.

DepoisoExército,oBEC,2oBatalhão,fezestrada,cortouaterrakrenakore.Morreu muito Krenakore também na estrada. […] Depois Krenakore foilevadoparaXingu.NãoéKrenakorequequisirmudarparaXingu.GovernoquistirarKrenakoreparaXingu,Orlando[VillasBôas]quistirarKrenakoreparaXingu.Krenakore não entendeu nemuma palavra de português,masKrenakorefoisemsaber.[…]AíparecemorreuquatrocentosíndiosquandochegouparaXingu.

Juruna se tornou um dos mais conhecidos indígenas no país, a ponto detrabalhar como garoto-propaganda do Laboratório Beta-Atalaia do produtoAtalaia Jurubeba, um elixir que prometia curar problemas de fígado— pelotrabalhoelerecebeu100milcruzeiros.16

Quando soube que o engenheiro do DNER e um dos responsáveis pelaTransamazônicaAdhemarRibeirodaSilvaforaescolhidoparapresidiraFunaiem1979,Jurunafoifalarcomele,noRio.Chegouumdiaantesdoqueestavaagendado,masinsistiuefoirecebido.OGlobodescreveuareunião.17

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Juruna foi direto ao ponto: pediu que Adhemar tirasse da Funai “apanelinha”defuncionáriosque,segundoele,sóficavanosgabinetese“nãosaipara conhecer os problemas dos índios”. Exibindo uma certidão negativaexpedida por Bandeira de Mello, Juruna afirmou que os Xavante foramprejudicados.Acertidãoderarespaldoàpresençadeumaagropecuáriaemterraxavante. Adhemar desconversou: “Isso tudo nós vamos olhar. Você tem quecompreenderqueporenquantoeusouapenasindicado[paraocargo]”.

“Masosenhorjávaientendendo.Nogabinetetemgentequevaienganarosenhor.Aquijávaiminhapalavraeosenhornãoéenganado.”

Adhemar sedisseumhomemcalmo,quegostavadepesar os argumentosantes de tomar uma decisão, de observar e de ponderar. Juruna foi bemmaisdireto: “Eu souhomemdedecisão,de fazernahora.Agente resolvenahora.Existeautoridadeparaisso,nãoéparaenrolarninguém”.

OmaiorembatedeJurunacomaFunaiatéentãoocorreuemnovembrode1980.O Xavante teve o passaporte negado pela ditadura quando estava prestes aembarcar para Rotterdam, na Holanda, onde deveria fazer denúncias sobre asituaçãodos índiosnoBrasil duranteoTribunalBertrandRussell deAssuntosIndígenas,queocorreriade23a30daquelemês.Oevento,organizadopelaONGBertrandRussellPeaceFoundation,erainspiradonocorpoinformalprivadodeinvestigaçãosobrecrimescontraosdireitoshumanoscriadonosanos1960pelofilósofobritânicohomônimoepelofrancêsJean-PaulSartre.EncontrossimilareshaviamdenunciadotorturaspraticadaspeladitaduranoChileecrimesdeguerrano Vietnã. Na prática, não funcionava como “tribunal”, configurando apenasumagrandedenúnciapúblicacontradeterminadaagressãoaosdireitoshumanos.MasaFunaibateupé,dizendoquepelaleidetinhaatuteladeJurunae,porisso,nãooautorizavaaparticipardoencontro.OcoronelNobredaVeiga,presidentedoórgão, alegouqueoXavantenão tinhacapacidadede avaliar a situaçãodeoutras etnias no Brasil. “O Juruna foi convidado para ser jurado de duasentidades indígenas, nambikwara e yanomami, sobre as quais ele nada sabe.Uma pessoa não pode julgar o que não conhece”, disse Veiga. 18Contraditoriamente, pouco antes a Funai havia autorizado o embarque para o

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Méxicodedois outros índios “menosbarulhentos emais comportados”, comoafirmouarevistaVeja.

OrlandoVillasBôastambémnãoconcordoucomaviagemdolíderxavante.“OJurunasópoderiairaoexteriorsefosseacompanhadoporumfuncionáriodaFunai.OuentãoseaFunaitransferisseatutelaparaosr.DarcyRibeiro.[…]Soucontra a perambulação dos índios porque eles estão sendo usados para acontestação”,disseosertanista.19

Seu irmão Álvaro também criticou a ideia da viagem, pois para ele “aEuropa,principalmenteaHolanda,não temmoralpara julgaroqueogovernobrasileirotemfeitoparaosnossosíndios”.ÁlvarodissequeJuruna,comoíndio,tinha“umasériederestrições”,embora,poroutrolado,tivesse“regalias”,como“terra,assistênciagovernamental,nãopagaimpostosenãotemserviçomilitar”.20Naditadura,atéconsagradosdefensoresdosíndiosàsvezespodiamexternarmanifestações com conteúdo preconceituoso (por exemplo, considerar a terracomo“umaregalia”oudizerqueaviagemdeumíndioera“perambulação”).“OBrasil,nocasoaFunai,nãomataseusíndios.Aocontrário,procuratratá-losdamelhormaneirapossível.ApesardoserrosdaFunai,otrabalhoporelaprestadoémuitoimportante”,defendeuÁlvaro.21

Apoiado por entidades como o Cimi, Juruna recorreu ao Judiciário paraobter uma autorização de viagem. Nesse meio-tempo, dois brasileirosconseguiramembarcare falaramnoencontrosobreoBrasil,oescritorMárcioSouzaeotukanoÁlvaro.Quandoo“tribunal”começou,JurunaaindaestavanoBrasil.Numajogadapolítica,aentidadedecidiuelegê-lopresidentedoevento,oquefezaumentarapressãosobreoBrasil.Funcionou.Em27denovembro,porquinzevotosanove,oTribunalFederaldeRecursosconcedeuumhabeascorpusquepermitiuoembarquedeJuruna.Porém,elesóconseguiuchegarparaoatodeencerramentodoevento.22

Temposdepois,JurunaafirmouàTVGloboqueenquantoestevenaHolandaaFunairepassouumabaixo-assinadoavárioslíderesxavantecomoobjetivodepôremxequesuarepresentatividade.Nessemomento,afirmouJuruna,équeeleteveoestalodeentrarparaapolítica.

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Seeusaiocomochefedecomunidade,ogovernovaicomeçarbaterpalma:“Graças a Deus o homem chato já saiu”. Eu não quero sair fora emliderança,mas tambémnão vou sair fora do país. […]Eu vou escolher omeupartido,euvoulançarmeucandidato.

O oposicionista Leonel Brizola, líder do Partido Democrático Trabalhista(PDT),dissenaépocaquefoiprocuradopeloXavante,portelefone,emsuacasanoRio.Emagostode1982,JurunaassinousuafiliaçãoaoPDTdoRio.AversãodeBrizolaexcluiDarcyRibeiro,umdoslíderesdopartido,naescolhadeJuruna,masébastanterazoávelsuporqueoantropólogoteveumadecisivainfluência—noatodafiliação,asTVsmostraramDarcyaoladodoXavante.Jurunaanunciousua disposição de se candidatar a deputado federal pelo Rio nas eleições denovembrode1982.23

Ele foi uma das surpresas do pleito, obtendo 31904 votos.Dos 46 eleitospeloestado,foio35omaisvotado.Édifícilverificaroquantodobomhumordocariocaajudounavotação—emfevereirode1977,umblococarnavalescodoRiojáhavialançadoJuruna“candidatoàPresidência”.24

MasaeleiçãocobrouumpreçodeJuruna.Seuapoionamídiasereduziuàmedidaque foi ficandoclaroqueBrizola fizerauma jogadademestreequeoXavante passara a funcionar como peça de um grupo político de esquerda.Oregimemilitar caminhavaparao fim,porém issonão significavaque todososadversários da ditadura seriam recebidos efusivamente pelos meios decomunicação — a imensa maioria deles havia apoiado o golpe de 1964 emrespostaaumasupostaameaçadeguinadadopaísrumoaocomunismo.ComobemnotouumestudoposteriordeLauraR.Graham,professoradodepartamentode antropologia da Universidade de Iowa, 25 a partir da eleição de Juruna aimprensa passou a reproduzir suas falas na íntegra, com todos os seus errosgramaticais,e tambémfazendoreparações,em“puxõesdeorelha”sobreousocorreto da língua. Antes da eleição, entretanto, as declarações do índiocostumavam ser corrigidas pelos jornalistas antes de serem publicadas, o quepassava a impressão de um domínio mais efetivo da língua. Juruna tambémcomeçouaseralvodechargesdepreciativas.

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Aaproximaçãode Juruna coma esquerda era temade interessedaFunai.Emjaneirode1983,aASIfoiinformadaporCláudioRomero,entãoassessordeumadasdiretorias,dequeaantropólogaMariaAntonietaBarbosadeOliveiraeochefedaAjudânciadoAcre,OswaldoCidNunes,vinhammantendoreuniõesnoRio comBrizola,Darcy e dois ex-diretores da SBI , Odenir e Carvalho.Oobjetivo,segundoRomero,era“desacreditaraFunai”eseupresidente“juntoàopinião pública nacional e às lideranças indígenas no geral”. 26 Quando elepassouapresidiroórgão,em1993,oconteúdodessedocumentofoipublicadopela imprensa. Romero se defendeu dizendo que os servidores citados, juntocomJurunaeDarcy,planejavaminvadirasededaFunai,daíseualerta.Romerodissequenãoqueriaqueapresidênciacaísse,naquelemomento,porqueestavalutandopordemarcaçãodeterrasnaregiãodoXingueadireçãooapoiava.27

Trêsex-dirigentesdaSBIexpurgadospelaFunaiem1980foramcontratadoscomo assessores de Juruna na Câmara dos Deputados: Odenir, Carvalho eOtacílio. O primeiro conhecia Juruna desde os tempos da aldeia Namuncurá.Meses depois Juruna conseguiu emplacar sua primeira proposta de peso naCâmara, uma comissão permanente do índio, o que levou Odenir a sair dogabineteparatrabalharnonovoórgãodaCasa.

Emboracomstatusepoderdedeputado,JurunaeraalvodepreconceitoemBrasília,comotestemunhouCarvalho,quepormuitosmesestrabalhoucomoseuauxiliarmaispróximo.Umdoseventosemqueeleacompanhouodeputadofoium jantar oferecido pelo Rotary Clube de Brasília perto do lago Paranoá.Carvalho tentou demover Juruna da ideia de ir ao jantar, dizendo que alininguémestariainteressadoemdiscutirasituaçãodoíndio.Jurunainsistiu.Aochegar, Carvalho viu seu pessimismo ser confirmado. Achou que as pessoasestavam lá“para fazerumagozaçãomesmodo índio”.Decabelos longos,um“índio puro”, o deputado “era um brinquedo”. Antes de começar o jantar,crianças vieram brincar com o Xavante e alguns adultos perguntaram se eraverdade que ele tinha muitas mulheres ou se comia muito. Um militar daAeronáutica se aproximou dizendo que gostavamuito dos índios e até criavacomo filha uma índia que ele havia trazidodo alto rioNegro. Juruna indagousobre a moça e o militar respondeu que ela ficara em casa. Juruna retrucou

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dizendo que na verdade ele criava a índia como empregada doméstica erecomendouqueelafossedevolvidaàaldeia.

Nodiscursoaomicrofone,JurunarevelouqueestavaaliemdesacordocomarecomendaçãodeCarvalho,queohaviaadvertidodequeseriaalvodechacota,faloudasperguntasesdrúxulasquelhefizeramemprivadoerelatouaconversaque tivera com omilitar sobre a garota indígena. Segundo Carvalho, naquelemomentoomilitar se levantounaplateia e, emocionado, prometeudevolver aíndiaàsuaaldeia.Quantoàquestãodasmulheres,Jurunadissequetinhaduas,uma na aldeia e outra emBrasília,mas que todos os homens que ali estavam“tambémtinhamduasmulheres,masninguémcontaemcasa”.“PormaisqueeuconhecesseoJuruna,eununcapenseiqueeletivesseaqueleespíritocrítico,deverqueaspessoasqueseaproximavamdeleseaproximavamparaexplorarele,aimagem,gozar,usá-locomoumpalhaço”,disseCarvalho.

Duranteodiscurso,Jurunacontouumapassagemcríticadesuavidadaqualo indigenistanunca tinhaouvido falar,ocorridapoucoantesda sua filiaçãoaoPDT .A narrativa confirma o que Juruna disse à TV Globo anos depois: que aFunaiespalhoucalúniasaseurespeitoentreoslíderesxavante.“ElecontouquefoiexpulsodesuaaldeiaporqueoscoronéisdaFunaidisseramaos índiosqueele estava se apropriando de donativos feitos para a aldeia. Eu não sabia deexpulsãonenhuma.Elecontouquesaiuapédaaldeia”,disseCarvalho.

Uma vez empossado no mandato de deputado federal, no começo de 1983,Juruna dirigiu as suas baterias contra a Funai.Ao visitar a sede do órgão emBarradoGarças,prometeu“demitirtodomundo”.28Aomesmotempo,porém,manteveumcanaldediálogocomapresidênciadoórgão,quepassouavisitar“nosentidodeajudarasolucionarasquestõesindígenas”.29

JurunaenviouaoministroAndreazzaumacartacomavaliaçãodecadaumdosprincipaisgestoresdaFunai.Segundoodeputado,opresidentedoórgãoserecusavaareceberoslíderesindígenase,quandoosrecebia,admitianãoter“acapacidadeenemmeiosparadarsoluçãoàquestãodoíndio”.Quatrocoronéisqueassessoravamopresidenteeram“desconhecidosdos índios”, comexceçãode um, que fora “espancado e expulso por duas vezes” de terras indígenas.O

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chefe da ASI , um capitão de fragata, seria “totalmente inoperante, não seantecipavaaosconflitosentreíndiosebrancos”.AASIerachamadade“acasade‘fuxico’”. Na assessoria de planejamento, escreveu Juruna, havia trezeeconomistas “que nunca visitaram aldeias indígenas”, acabando por fazerinvestimentosem“construçõesecomprademáquinasquesetornamtotalmenteobsoletasenãotêmserventiaparaosíndios”.OcoronelIvanHausen,queparaJurunafoiomentordaideiadaemancipaçãodoíndio,umprojeto“monstro”,foiexpulso por um grupo de índios da sede da Funai em 1980. A procuradoriajurídica do órgão, segundo Juruna, tinha objetivos obscuros, já que “todas asquestõesafavordos índiosnaJustiça,nósperdemos.Osassassinosdos índiossempreficamlivres.Nuncasãocondenados”.OutrocoronelcompareciaàFunai“emabsolutoestadodeembriaguez”,alémde“confessarpublicamentequenãogosta de índio”.OXavante apontou que, segundo os dados da própria Funai,aguardavam demarcação 256 áreas indígenas com um total de 40milhões dehectares. Jurunadisse ter sido informadopelopresidentedoórgãodequeestedispunhadeapenas35milhõesdecruzeirosparaasdemarcações,quandoototalnecessárioerade1,5bilhãodecruzeiros.Porfim,Jurunapediuaoministroqueafastasse“imediatamenteadireçãodaFunai”.30

AFunaiapostavanoesvaziamentodopoderdeJurunajuntoaosXavante.Paraaárea de informações do órgão, ele era “manipulado pelos diversos setorescontestatórios ao governo federal”. “Na maioria das comunidades indígenaspoucoseesperadeJurunanaCâmara,jáqueseuconceitojuntoaosíndiosnãocondiz com o que é apregoado pelos antropólogos e demais setores ligadossobretudoàalaprogressistadoclerobrasileiro.”31

OpresidentedaFunainaépocaeraocoroneldaAeronáuticaPauloMoreiraLeal,quesubstituiuNobredaVeigaemoutubrode1981.ComapossedeJurunanaCâmara,ocoronelpercebeuuma“significativamudançadecomportamentode algumas lideranças indígenas”.Ele viu umaumentodas “pressões contra opresidente da Funai e seus servidores, ao reivindicarem concessões emintensidade até entãonãoexperimentadasnestagestão”.Os líderes estavamsedeslocandocomfrequênciacadavezmaioraBrasíliapara,“mediantepressão,

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seremrecebidospelopresidente”doórgão.Ocoroneladmitiuquehavia“pleitosjustos”equeaFunaieraincapazdeatendê-los,por“nãocontarcomadequadose suficientes recursos financeiros e humanos”.A lista dos pedidos “justos” naverdade era quase tudo, como ele admitiu: “demarcação de terras, retirada deposseiros e invasores, prestação de assistência médica, instalação de escolas,instalaçãoemelhoriadeinfraestruturajáexistenteeaampliaçãoemelhoriadosmeiosdesubsistênciadascomunidades”.Em11demarçode1983,prosseguiucontando o coronelMoreiraLeal, umgrupo de líderes xavante entrou em seugabinete “de modo hostil” para “impor exigências não condizentes com apolíticaindigenista”.32

AfranquezadeJurunaquase lhecustouomandato.NatribunadaCâmara,elefezsucessivasdeclaraçõescontraogovernoeaFunai.NoDiadoÍndiode1983,dissequeaentidadeestava“matandooíndio”,quemilitaresestavam“contraoíndio”equequemestava“estragandooBrasiléoprópriogovernofederal,éestepresidentedaRepública”eoministroDelfimNetto.AfirmouaindaqueBrizolaforaexpulsodopaísàsemelhançadeíndiosqueeramexpulsosdesuasterras,equedariaapoioaopresidenteFigueiredocasoele“expulsassetodooministério”.

O presidente não é do povo. O presidente foi eleito com empresário,presidente foi compromisso com multinacional, com fazendeiro, comempresárioegrandeempresário.[…]Eaquigentetámorrendo.Eporquê?Porque não tem presidente, não tem autoridade. E toda autoridade écomprada, toda autoridade está sevendendo,querodinheiro, querganhardinheiro.33

Outrodiscurso, datilografado e escrito pela sua assessoria, foi anexado aoseupronunciamento.Nele,odeputadodiziaqueaFunaihaviaseconvertidoem“umdestacamentomilitar, compostode22coronéisda reservaemaisdeumadezena de militares de patentes inferiores, que, encastelados nos cargos dedireçãodoórgão,cometemtodotipodedesatinoseperseguemsistematicamenteoíndio”.

O auge das acusações de Juruna se deu em 26 de setembro. Afirmou na

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tribuna, de improviso, que “todo ministro é ladrão” e que “parece que opresidentedaRepúblicanãoestáenxergando”.34Acrescentouaindaque“todoministro” é “sem-vergonha” e “mau-caráter” e que “osmilicos […] não estãoolhandoopobrezinho,oíndioinocente”.35

Treze ministros protocolaram uma reclamação, apoiada pelo generalFigueiredo,naMesadaCâmara.Foiabertoumprocessoquepoderiaresultarnacassação domandato de Juruna.O presidente daCâmara, FlavioMarcílio, dabasealiadadogoverno,decidiuimpedirapublicaçãododiscursodoXavantenoDiário do Congresso . Walber Guimarães (MDB-RJ ), que presidia a Mesa,tambémdeterminouàtaquigrafiadaCasapara“validarnahoradapublicação”apenasotextoescritoqueJurunalevaraaoplenário.36

Aofinaldoprocesso,porseisvotosaum,aMesadecidiuaplicarapenadecensuraescrita,poisa faladoXavante foiconsiderada“imprópria,descortêseofensivaàsautoridadesconstituídasdaRepública”.Eleprocurouseexplicar:“AcensuraénormalnaCâmara,masnãocalaabocadeJuruna.[…]Nósdizemos‘ladrão’ou‘gato’,masfalandooqueeufaleinãoquisprovocarninguém”.37

Jurunaestavasendofielàquiloquehaviadefendidooitoanosantes,durantea terceira assembleia de chefes indígenas, promovida pelo Cimi na aldeia deMerure.

Deusestáacimadetudo.Opresidenteparamimnãoénada.Entãoagentequer discutir o problema do índio na cara dele. Nós não guardamossegredos.Agentetemquefalarnacaradele,porqueseagentenãofala,elenãoresolvenada.Elenãoresolvenada.Nuncapensanoproblemadoíndio.Elesópensanariquezadobranco.38

Emmanifestaçõesinternasrepassadasadiversossetoresdogoverno,ocoronelMoreiraLealprocuroudesacreditarJuruna,chamandosuasdenúnciasde“partede uma ação bem definida que vem sendo executada por entidades e pessoasdiretamenteligadasaosindígenas,utilizandooreferidodeputadonosentidodedesencadearumacampanhadifamatóriacontraadireçãodesteórgão”.39

AimpressãonãoeracompartilhadapelosetordeinteligênciadoMinistériodo Interior ligado ao SNI , aDSI . Segundo informação confidencial enviada a

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Andreazza, Juruna e seus assessores não tinham condições de criar oumanter“mais de quarenta focos de conflitos em áreas indígenas”, que era o númeroatualizado do “quadro de tensão social entre índios e não índios” no país. “Aresponsabilidadepelapresenteconjunturaéfrutodaprópriafundaçãoetambém,possivelmente, reflexo das intenções, muitas vezes não expressas, de seupresidente.”40

ADSIdescreveuJurunaem tomdepreciativo,um índio“meioaculturado”,um“Xavanteemfasedeintegração,sendoporvezesinfantileinconsistente”.O“infantil”Juruna,todavia,participoudeumgolpedemestreparaferiroorgulhodos militares. Por volta das 7h30 do dia 23 de junho de 1983, um grupo deXavante chegou à sede da Funai, em Brasília, passou pelas salas ondefuncionavamdepartamentoseporfimparounadaDiretoriaGeraldeOperações.41Doisdelesportavambordunas.ComoMoreiraLeal estavaemviagempeloNordeste,ogrupofoiatendidoporseuchefedegabinete,IvanPintoTancredo,querecebeudoíndioTibúrcioumdocumentocomreivindicaçõesdemelhoriaspara a terra indígena São Marcos. Ao dizer que o assunto seria avaliado,TancredofoiseguropelosbraçospordoisXavanteeempurradonoscorredoresdesdeoterceiroandaratéopátiodoestacionamento.Umassessordapresidênciafoi“repelidocomempurrõespelos índiosJosué,SimãoeMarcel”.Doiscarroschegaram à Funai com uma comitiva de deputados, dentre os quais Juruna eDantedeOliveira(PMDB-MT),quemesesanteshaviaobtidograndenotoriedadeao apresentar a emenda das Diretas Já. Índios e deputados se reuniram nogabinete do presidente. O coronel Costa Ferreira, chefe do setor de auditoriainterna,protestoucontraainvasão,mastambémfoi“empurradoparaforapelosXavante”. Uma fotografia mostra um índio segurando o braço esquerdo domilitar.42

Logo depois chegou ao prédio o chefe da DSI do Ministério do Interior,coronelHércioGomes.Omilitar“fezveraosdeputadosaresponsabilidadequeelesassumiamaoinvadirumórgãodogovernofederal”.Elefoicontestadopelodeputado Arthur Virgílio Neto e por Dante, que, “esmurrando fortemente amesa”,falouacercado“direitodeirevir”.UmgrupodeXavanteavançousobreHércio, também ameaçando expulsá-lo, mas Juruna interveio em favor do

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militar.AocupaçãodoprédiodaFunaiduroutrêshoras.Quatro dias depois, Moreira Leal escreveu a Andreazza para pedir

“providênciasdrásticas” sobrea invasão, segundoeleexecutadaporumgrupode índios “perversamente manobrados por um grupelho de agitadores”. Aomesmo tempo,pôs àdisposição seu cargo eosde todosos “atuaisdiretores eassessores”. 43 Leal também organizou às pressas uma reunião com váriosoutroslíderesindígenasparademonstrarqueJurunarepresentavaumaminoria,estava isolado.A reuniãomostrouque,de fato, Juruna, embora fosseumavozpotente, estava longe de ser um líder incontestável e muito menos o únicorepresentantedeinteressesindígenas.

OTxucarramãeRaonidissequenãoqueria a substituiçãodeLeal, que “ébom”, mas sim “mais escola, professora, médico e enfermeira”. Ele se dissecontrário a Juruna porque suas constantes denúncias estavam prejudicando “otrabalho”daFunai.Quandohouvesse algo errado,disseRaoni, Jurunadeveriabuscar uma solução consensual comoutros caciques.Algo semelhante disse oXavanteCelestino, paraquemas reivindicaçõesdos índiosdeveriamser feitas“por escrito ao presidente”.OTerenaLísio disse que “ninguém ali era contraJuruna”, mas que seu método de protesto fora equivocado. Marcos Terenapropôsmaisdiálogoepediu“paranãotermaisviolência”.Aofinaldareunião,opresidentedisseque“nãodormiadesdesexta-feira”—oencontroocorreunumasegunda-feira —, pediu união entre os índios e admitiu que sua “missão éextremamentepolítica,umadasmaisdifíceismissõesquesepodeconfiar”.44

MoreiraLealnãoresistiuàsintensaspressões.Elefoisubstituídoemjulhode1983,duassemanasapósainvasãodoórgãopelosXavante.Localizei-o,portelefone,emfevereirode2009.OcoroneldisseapenasquesuapassagempelaFunai “foi uma folha negra na vida” e não quismais se pronunciar. Tinha naocasião94anos.45

SextopresidentedaFunainaditadura,MoreiraLealficouapenasumanoedezmesesnocargo.Seusucessor,oeconomistaOtávioMoreiraFerreiraLima,tinhasidoassessordocoronelNobredaVeigae,porisso,chegouaocargoemmeioapesadascríticasdoCimi.OcaciqueRaonidisseque,seelenão“dessecerto”,suacomunidade“iriabrigar”.46Limaficounapresidênciasomentedez

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meses.Seusubstituto,JurandyMarcosdaFonseca,parouapenascincomesesnacadeira.Opróximo,NelsonMarabuto,sóficouoitomesesnocargo.Ofinaldogoverno Figueiredo e da ditadura foi incrivelmente tumultuado para a políticaindigenista.Emumgovernode cinco anos, aFunai foi administradapor nadamenosqueseispessoasdiferentes.

No segundo semestre de 1984, o Congresso Nacional fervia com as eleiçõesindiretas para a Presidência da República entre os deputados Paulo Maluf,candidato da ditadura, e Tancredo Neves, apoiado pela oposição. Como aemendadeDantepelasDiretasJáforaderrotada,aescolhadonovopresidenteseria feita pelo Colégio Eleitoral, que reunia todos os senadores, deputadosfederaisecertonúmerodedeputadosestaduais.

No momento em que o apoio estava sendo disputado voto a voto noCongresso, Carvalho, o assessor de Juruna, começou a ficar alarmado comobservaçõesestranhasqueoXavantevinha fazendo sobreavidaabastadaquealguns de seus colegas parlamentares desfrutavam. Para Juruna, “um homeminteligente era aquele que tinha muitas posses”. Ele disse a Carvalho que osdeputados estavam recebendo dinheiro “ou do Maluf ou do Tancredo”. Ecomentava as manchetes de jornal que diziam que determinado deputado“malufou”. Um dia, segundo o assessor, o Xavante iniciou uma conversapreocupante. “‘Eu vou falar com Tancredo, será que eleme dá dinheiro?’ Eufalava: ‘Deputado, não faça isso, não, você é um personagem, representa osíndios,pedirdinheiroficamuitofeio’.Amulherdeleinfernizavaacabeçadeletambém.”47

Emoutubro,CarvalhosoubepelopróprioJurunaquedefatoelechegouapedir dinheiro a Tancredo,mas o candidato “disfarçou, levou na brincadeira”.Diasdepois,Carvalhodisseterficadoassombradoaoverummaçodedinheironuma bolsa que o deputado costumava levar a tiracolo. Questionado, Jurunadissequeeraumdinheiroquelhepertencia,semexplicaraorigem.Nasemanaseguinte,chamouCarvalhoaoapartamentofuncionalqueocupavaemBrasília.Apósalgunsrodeios,perguntou-lhequalerasuaopiniãosobreMaluf.Oassessordissequeodeputadoera“pessoamuitoruim”.Jurunaduvidou,pois“eleébom,

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elenãodádinheiroàspessoas?”.Apertado por Carvalho, Juruna confirmou ter estado com gente ligada a

Maluf.Oassessorresolveuapelar,perguntando-lhecomosechamava,naculturaxavante, “o demônio”.Chamava-seYurupatí, tambémgrafado comoYuruparí.No século XIX , um professor dos Estados Unidos que estudou as lendasindígenas descreveu essa entidade como “demoníaco, uma espécie delobisomem”.48JurunaexplicouqueomonstroeratãoruimqueosXavantenãogostavamnemdepronunciarseunome.CarvalhoaproveitouadeixaparadizerqueMalufera“oYurupatínanossaculturabrasileira”.“OJurunamudouacarana hora. Eu peguei pesado: ‘Deputado, se o senhor pegou alguma coisa doYurupatí,osenhorsabeoqueacontece’…”

Juruna chamou a mulher para alertá-la de que Maluf era Yurupatí e que“ninguémpodetercontatocomele”.Foientãoaoquartoevoltoucomumsacode supermercadocheiodedinheiro junto comumbilhetemanuscrito, segundoele,pelocoordenadordacampanhadeMaluf,CalimEid,comdatasenúmeros.Aprimeiraparcelaentregueforade30milhõesdecruzeiros—cercade91milreais emvalores atualizados49—,mas haveria outras,mensais, num total de370milhõesdecruzeiros.50

Carvalho logo telefonou para o comando do PDTnoRio para saber o quefazer.DarcyRibeiromandouqueeleeJurunafossemnaquelemesmodiaparaoapartamentodeBrizolanoRio.Equelevassemodinheiro.

No apartamento, Brizola, fumando muito, segundo a lembrança deCarvalho, indagou por que Juruna havia aceitado o suborno. O Xavanterespondeu que era por necessidade, pois Brizola “não lhe dava dinheiro”.Carvalho disse que Juruna não tinha noção do valor da moeda e costumavapassar privações. “O salário daCâmara ele dava todo para a comunidade, e amulher também tomava. Se entrava um índio no gabinete, Juruna pegava umpacotedagavetaedavatudo,elenãosabiacontarnemquantoeraaquelepacotededinheiro.”

NoRio,ficoudecididoqueJurunairiadevolvertodoodinheiroparaCalimEid.Uma parte, porém, ele já havia gastado—Brizola teve que completar ovalor.Em25deoutubro,odeputadodeuumaentrevistacoletivanoComitêde

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ImprensadaCâmarapararevelaropagamentoeapropostadocoordenadordacampanhadeMaluf.Eletentoufazerumdiscursonoplenário,masfoiimpedidopela Mesa, sob a alegação de que a sessão já havia terminado. 51 No diaseguinte, Juruna fez o depósito para Eid na agência do Banco do Brasil noCongresso.Enquantoesperavaacontagemdasnotas,admitiuaosrepórteresquehavia lhe pedido 15 milhões de cruzeiros porque enfrentava dificuldadesfinanceiras.Agora,contudo, iriavotaremTancredo,“paraopovo”.52Ouvidona época, Eid reconheceu ter conversado com Juruna sobre problemasfinanceiros,masnegouterdadoodinheiro.53

O episódio, que não produziu nenhuma punição contraMaluf, acabou sevoltandoempartecontraopróprioJuruna.Emeditorial,oJornaldoBrasildisseque“odeputado jápassourecibodasuaprópriacorrupção”.54A revistaVejaconcluiu que, ao se dirigir ao comitê de Maluf atrás de dinheiro, o Xavante“confessousuafraqueza”.

Ocasotambémdesestimulouaequipedeseusassessoresindigenistas,queseafastaramdeJuruna.Elenãoconseguiunovomandatonaeleiçãoseguinteecaiunoostracismo.55

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26.UMGOSTOAMARGO

MUITO LONGE DOS GABINETES DE BRASÍLIA, OUTRO TIPO DEresistênciaindígenamarcouosestertoresdaditadura.PelaprimeiravezdesdeosembatesdosWaimiri-AtroariquandodaconstruçãodaBR-174,índiosbrasileirosimpediramplanos do regime—que dessa vez se viu forçado a dar umpassoatrás.

Emmarçode1982,osmilitarestiraramdopapelumplanoparaexploraçãode “lavra de petróleo e gases raros” naAmazônia.Naquelemês, a Funai, sobgestão do coronel PauloMoreira Leal, assinou convênio com a Petrobras, naépoca presidida pelo ex-ministro de Minas e Energia Shigeaki Ueki, masnenhumíndiofoiconsultadonemparticipoudoacerto.Odocumentodizqueaexploraçãodessasriquezasconsisteem“atividadesderelevanteinteresseparaasegurançaeodesenvolvimentonacional”equeé“políticanacionalaaceleraçãoda exploração do potencial petrolífero do país”. De maneira indireta, odocumento reconhecia a possibilidade de “danos causados ao patrimônio doíndio ou da comunidade indígena”, pois previa “pagamentos de indenização”nesses casos. A Funai se comprometia a “assessorar de modo permanente aPetrobras e suas contratantes”. Em síntese, era uma repetição do papeldesempenhado pelo órgão na década anterior como assessora das empreiteirasqueabriramrodoviasnaAmazônia.1

LocalizadonoAmazonas,pertodafronteiracomoPeruedadivisacomoAcre,ovaledoJavariéumaimensaregiãoricaemrecursosnaturaisediversosgrupos indígenas.Demarcada nos anos 1990, a terra indígena compreende 8,5milhões de hectares, onde vivem treze etnias conhecidas e vários gruposindígenas isolados cujo número exato é desconhecido. Trata-se de uma das

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regiõesmenos exploradas no país, um santuário ecológico.Até essa época, asduasúnicaslocalidadesderelevânciaformadaspornãoíndioseramguarniçõesdo Exército, em Estirão do Equador e Palmeiras do Javari. Para percorrer aenormeregiãoeramnecessáriasexpediçõesdebarcoeapécustosaselongas,àsvezesporsemanasafio.Mesmocomsuacapilaridade,aFunai,osmissionárioseantropólogostinhamdificuldadesparaapresentarumpanoramamaisclarodasituação do índio na área. Foi de novo o Cimi que, em 1982, produziu osprimeiros alertas. Em Brasília, o secretário-geral do conselho, Paulo Suess,convocou a imprensa para dizer que 38 índiosmatis haviammorrido de gripeduranteomêsdejunhodaqueleanoemAtalaiadoNorte(AM).Eraumnúmeroimpressionante, ainda mais considerando que o grupo tinha apenas 138indivíduos antes da epidemia. Suess denunciou que não existia “qualquerassistênciaaosíndios”.AassessoriadeimprensadaFunaiprocuroudesmenti-lo,afirmandoque“sótrês”índioshaviammorrido,emjaneiro.2

Ficouentãooditopelonãodito.Contudo,quinzeanosmaistarde,quandoaFunaiconcluiuorelatóriode identificaçãoedelimitaçãodaárea indígenaValedo Javari, lá apareceu, num diminuto quadro, a evidência da impressionanteepidemia.Segundooórgãoindigenista,havia138índiosmatisnoJavarinoanode1980.Doisanosdepois,naépocadadenúnciadoCimi,ototalcontabilizadofoi de noventa, uma diferença de 48 índios. O relatório apontou ainda “adevastadora epidemia de gripe ocorrida no início dos anos 1980, quando apopulaçãomatiscaiude140pessoas,emdezembrode1980,paranoventa,emnovembrode1982”.Assim,entre1980e1985aetniamatisperdeu21%deseusintegrantes.3

A confirmação da Funai, tantos anos depois, é apenas um exemplo denotícias verdadeiras que foram “desmentidas” pelo órgão oficial, mas que, setivessem sido confirmadas na época, dariam origem a um escândalointernacional.Ao longo de 21 anos, aproveitando-se das enormes distâncias edificuldade ou falta de interesse dos meios de comunicação, a Funai soubedistribuirinformaçõesedesinformações,prejudicandoarealdimensãodotemaindígena noBrasil. Tantos anos depois, essa sucessão de “desmentidos” servecomo alerta sobre as políticas de acobertamento que um Estado autoritário é

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capaz de pôr em prática.Muitas histórias desapareceram damemória coletivanacionalporquenãoforamrelatadasdeformacorretanaépoca.

Trêsdécadasmaistarde,porexemplo,localizeinopelotãodoJavari,aoqualsó se chega de barco ou de avião, o militar da reserva Raimundo ClementeMesquita, de 53 anos, que se incorporou aoExército noBatalhãoEspecial deFronteiradeTabatinga(AM).Emmeadosde1980,elechegoucomorecrutaaopelotãodeVilaBittencourt.Naépoca,aumadistânciadequarentaminutosdebarco, haviaumaaldeiade índiosque falavama línguamaku.Elesviviamdecaça e pesca e àsvezesvendiampeixesparaosmilitares.Na segundametadedos anos 1980, segundo Clemente, um surto de malária “quase dizimou” ogrupo. Clemente e outrosmilitares correram paramedicar os índios, após umpedidodesocorrodocaciqueRafael.

Naépocamorrerammaisdevinte,sónesseataquedamalária.Atribodeviachegar auns setenta,por aí.Sódomeuconhecimento. Isso foinoanode1985, 1986, por aí. Até então, eles não tinham representante nenhum daFunainaárea.DepoisfoiqueoCarlosfoiparaláecomeçouacuidarmaisdeles, dar apoio com medicamentos. […] Eles viviam sozinhos, em umaáreaisolada.4

***

Dois leigos católicos doCimi e daOpan que viviamno vale do Javari,AraciLabiak e Lino Neves, escreveram que a região do Médio Solimões e seusafluentes, como Juruá e Jutaí, “está sendo retalhada por picadas para aprospecção geológica que tem como objetivo principal o gás natural”. Emnovembrode1982,eleschegaramaumaáreasobcontroledaLasaEngenhariaeProspecção,aserviçodaPetrobras,econstataramqueelahaviainstaladovárias“cargasdedinamiteparaposteriordetonação”.OsítiodaLasaficavaapoucosmetrosdeumaaldeiados índioskokama.Tambémoperavana área a francesaElf Acquitaine, que já havia trabalhado no Baixo Amazonas. 5 Em outrorelatório,osmissionáriosnarraramataquesde índios isoladoscontraas turmasde prospecção em novembro de 1983, no rio Jandiatuba, com um trabalhador

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flechado,eoutronoigarapéSãoJosé,emmarçode1984.ElesdisseramqueaPetrobraseoutrasempresasabriram“centenasdeclareiras”naselvapara“testesdedetonaçãosísmica”.Tambémdenunciaramquebombasestavamsendousadasnãosóparaadestruiçãoderochas,mastambémcontraosprópriosíndios.6

A afirmação, à primeira vista exagerada, foi confirmada pelo própriopresidentedaPetrobras.Nofinalde1983,eleadmitiuemumacartaaodeputadoJurunaque“funcionáriosdaempresarealmenteutilizaramcargasdeexplosivospara dispersar um grupo de índios arredios” perto do rio Jandiatuba. 7 “Paraevitarmaioresconsequências,osoperáriosdetonaramnochãodaclareira,ondenãohaviaíndios,duascargasmoldadas.Comoestampidodaexplosão,osíndiosimediatamente abandonaram o cerco ao acampamento”, informou Ueki,singelamente.8

O convênio Funai-Petrobras deu origem a um contrato de prestação deserviçosdaestatalpetroleiracomasubsidiáriabrasileiradaempresafrancesaElfAquitaine, denominada Braselfa, que terceirizou serviços para a empresaCompanhia Brasileira de Geofísica (CBG ). Em abril de 1983, a CBG fez asprimeirasperfuraçõesnoterritórioindígenaAndiráMarau,habitadopelosíndiossaterê-mauê e munduruku. Os serviços incluíram abertura de picadas ederrubada de árvores, causando danos à flora e à fauna que geraram umaindenizaçãode25milhõesdecruzeiros.9MasopiorocorreriadepoisqueaCBGdeixouaregião.Deformaataboalhadaesemnenhumafiscalizaçãodogoverno,aempresadeixouparatrásváriosexplosivos,detonadosounão.

OsíndiosDacinhoMichiles,DeoclideseSebastiãoforamtirarcastanhapararevendaquando“encontraramemumaestrada,namata,umabombaenterrada”.Dacinho a desenterrou e a levou, embaixo do braço, para a comunidade doTorrado.Eletambémpassouasmãosnorosto,sujaspelocontatocomoartefato.Logocomeçou“asentirdordecabeçaeabocaáspera”.QuandoDacinhojogouabombanorio,elaexplodiuaumadistânciadequatrometros.Oíndiomorreudiasdepois,emmeioa“enjoo,vômitos,dornacabeça”.

Em outra aldeia, a de Santa Cruz, em dezembro de 1983 o índio LauroBatista,comcercadedezoitoanos,tambémencontrouumabombaabandonada.Ele chamou dois garotos,Nivaldo e Isarita, para jogá-la num igarapé.Depois

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quetocouoartefato,Lauro“começouaemagrecer”,tossire“escarrarsangue”.Descritocomoum“índioforte”,morreudiasdepois.

Na aldeia Fortaleza, os índiosCravino e Faustina recolheram uma bombaquehaviasidorecolhidaporumparenteea“esmigalharamnumformigueiro”.Cravinofoialmoçar,masnãolavouasmãos.Logocomeçouapassarmal,“comumafortedordecabeçaeumgostoamargonaboca”.Apenas“umdiaemeio”depois,Cravinomorreu.Faustinafoiàroçaedepoisaumigarapétomarbanho.Em casa, começou a passarmal, com dores de cabeça, “um gosto amargo desanguenabocaetonteiras”.Morreudoisdiasdepois.10

AdenúnciasobreexplosivosnãodetonadosaoalcancedosíndioschegouàimprensadeManauspeloCimiepelaorganizaçãonãogovernamentalCentrodeTrabalhoIndigenista(CTI),oqueobrigouogovernoafazerumaapuração.Aoserouvido,obraçobrasileirodaElfAquitainealegouqueocontatodiretocomoobjeto representava “baixa toxicidade e somente inalação prolongada poderáacarretaralgummal-estar,comonáuseaedordecabeça”.Aempresaassegurouqueosexplosivos“remanescentesforamdestruídos”.

Mas a Comissão de Sindicância instalada pela Funai constatou que “semsombradedúvidanãohouvequalquersinceridadenaresposta,postoquefogeamesmadarealidadedosfatos”.Acomissãoencontrounadamenosque“sessentapetardos” ativados e espalhados na área indígena Andirá Marau. Sobre asmortes,apóscolherdiversosdepoimentos,acomissãoatestouque“tambémjáseencontra provado e comprovado que seres humanos vieram a falecer após ocontatomanualdiretocomosjámencionadosexplosivos”.

AcomissãodaFunaiconcluiuque“anegligênciaestácaracterizadacomodescaso na vigilância dos explosivos e na execução dos serviços” e que “asmortes,todaselas,oforamemdecorrênciadocontatodiretocomosexplosivosachados na mata, levados para casa, o que vem caracterizar ainda mais airresponsabilidadecomostrabalhosefetuados”.

AsgravesconclusõesdaComissãodeSindicânciaforamclassificadaspelogoverno como “confidenciais”.A imprensa noticiou que os danos à fauna e àflora e mortes foram denunciados pelo CTI , pelo Cimi e pela antropólogafrancesa Simone Dreyfus Gamelon. 11 Emmaio, a Elf Aquitaine e a CBG se

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comprometeramarecolheredesativarosartefatosexplosivos.12Os indígenas,“insatisfeitoscomasituação”,“exigiamasaídadaempresaBraselfaearetiradadetodasascargasdedinamiteaindaenterradasemdiversoslocais”.13

Em junho de 1984, quando tomou ciência das atividades da Petrobras, aantropóloga IsaMariaRogedocondenouapresençadapetroleira,dizendoqueelas“levamaaberturadequilômetrosdepicadasnamata,implantaçãodebasesde operação e inúmeras clareiras para heliportos, construção de torres deprospecçãoedetonaçõesdebombasdenitroglicerina”.“Somosdeparecerqueos trabalhos que estão sendo realizados nesta área sejam imediatamentesuspensos, por tempo indeterminado, de forma que permita os trabalhos deatraçãodessesíndiossempressõesdequalquerespécie.”14Encurralados,disseIsaMaria,aos índiossórestariamduasalternativas:“Recuarpara lugaresmaisdistantesdasfrentesdecontatoouenfrentaremosinimigosemlutadireta”.

OgovernonãodeuouvidosaIsaMaria.Logodepois,asegundahipótesesetornou realidade e atingiu em cheio os interesses da poderosa Petrobras. Porvoltadasquinzehorasdodia4desetembrode1984,umgrupodeíndioskoruboseaproximoudoacampamentomontadopelaestataleumacontratada,aCBG,namargemdireitadorioItaquaí,emAtalaiadoNorte.Aoperceberemosíndiosnamata, o sertanistadaFunaiLindolfoNobreFilho eo funcionáriodaCBG JoãoPraiaCaldastentaramumcontato,levandopresentes.Osíndioschegaramadarasmãoseensaiarpassosdedançascomosdois“civilizados”.Menosdecincominutos depois, porém, eles os massacraram a golpes de borduna, tudotestemunhadoporcercade150funcionáriosdaPetrobras.15

No dia 6, enquanto os corpos eram sepultados, aCBGe a Funai retiraramtodososfuncionáriosdolocalcomo“medidadeprecaução”.16Elesnuncamaisvoltaramàárea.OdelegadodaFunainaregião,AldoGomesdaCosta,informouque também iria desativar um núcleo que trabalhava para o contato com osKorubo.Eleinformouqueaquelefoi“osextomassacre”defuncionáriossobasuachefia.17

O sertanista Sidney Possuelo foi escalado pela presidência da Funai parapesquisarasmorteselevantararealatuaçãodaPetrobrasnaregião.Quandosedeucontadecomoocorriamostrabalhosdapetroleira,elesedisseperplexo.

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Você[Petrobras]estánumaáreaqueestácheiadeíndiosisolados,estãoa3mil anos de distância, no passado. Aí você sai com aquelas linhas deprospecção geológica e bum-bum-bum, explode aquelas bombas, sãopetardos que são colocados a cada tantos metros, formam linhas dequilômetros. Aquilo ali é para fazer um bum que penetra no solo e ossismógrafos vão registrando para ver as camadas que estão embaixo. Éassim.18

Depoisdasexplosões,aPetrobrasabriagrandesclareirasnamataeburacosno solo para inserir sondas. Possuelo foi ver como as sondas funcionavam.Oque primeiro lhe chamou a atenção foi a logística envolvida na operação.Enormes barcos atracavam perto das clareiras para dar suporte à exploração.Depoishaviaotrabalhodasondapropriamentedito.Porumtubo,injetava-senosoloáguamisturadacomvárioselementosquímicos,incluindosodacáustica.Devolta à superfície,o líquidoera escoadoparaumapiscinaartificial, abertaportratores.Possuelofoiolharaspiscinaseviuqueaáguacontaminadavazavaemdireção aos igarapés, que desaguavam nos rios. Disse ainda que os tubos, devárias toneladas, eram transportados de helicóptero da cidade de Eirunepé àsclareiras. Numa dessas viagens, o piloto ficou desorientado e, após circularváriosminutos,tevequeselivrardotuboparafazerumpousoforçado.Segundoosertanista,otubodesaboupertodeumamalocaindígena.EmumareuniãocompessoasdaPetrobras,noRio,elepediuaproibiçãodasatividades.

Possuelo deixou por escrito a necessidade de uma “reformulação doconvênio Funai/Petrobras”, tendo em vista “a insatisfação dos grupos arrediosexternada nos ataques de 17 de novembro de 1983 e 4 de setembro de 1984contraasequipesdaFunaiePetrobras”.19

Nofinalde1984,quandoaPetrobrasanunciouqueretomariaostrabalhos,oentãopresidentedoórgão,NelsonMarabuto,enviouumtelegramaparaprotestarcontraadecisão,“tomadaàreveliadaFunai”.20APetrobras,porfim,recuou.

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27.PISTOLEIROAVÁ

OS ANOS FINAIS DA DITADURA CONTINUARAM SENDO, PARAALGUNS DOS mais conhecidos líderes indígenas, um período turbulento etrágico. Ao filmar seu documentário Terra dos índios em 1979, uma potentedenúncia sobre a política indigenista da época, o cineasta Zelito Viana haviaentrevistadotrêsdosíndiosmaispoliticamenteativosdopaís—ÂngeloKretã,Juruna eMarçal de Souza.No ano seguinte,Kretãmorreu de forma violenta.Logo depois Juruna foi eleito deputado, mas seu mandato foi bastantetumultuado. A UNI , que ele eMarçal haviam ajudado a fundar, também nãodecolou. Resta saber o destino de Marçal, que havia declarado aodocumentarista,comasveiasdagargantasaltadaseodedoemriste:“CreioquepeloBrasil inteiroouvai levantarou já levantou índios esclarecidoscomoeu,que levantarásuavozemproldasua raça. […]Nós reclamamosa injustiça,acalúnia,apobreza,afomequeacivilizaçãonostrouxe”.

No final dos anos 1970, enxotado de Dourados e depois de passar porCaarapó, Marçal se estabeleceu na aldeia kaiowá de Campestre, ou CerroMarangatu, a onze quilômetros da cidade de Antônio João e a poucosquilômetrosdafronteiracomoParaguai.Ali,viveunumacasadechãobatido,com paredes demadeira e coberta de palha, na qual também funcionava umapequenaenfermariadopostodaFunai,ondeMarçalatendiaíndios.1

Marçal ficou sabendo de um grave problema que ocorria em outra terratradicional,ou tekoha ,denominadaPirakuáe localizadaapoucosquilômetrosde Campestre. Nesse momento, o caminho dele cruzou com o do fazendeiroLíbero Monteiro de Lima e de seu pai, Astúrio. Para sempre essas duastrajetóriastãodísparesficaraminterligadas.

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Líbero nasceu em outubro de 1926 na cidade de Ponta Porã, na fronteiracom o Paraguai, emorava numa casa no centro da capital do estado, CampoGrande,commulherequatrofilhos.Frequentavaumdospontosde lazermaisbadalados pela alta sociedade local, oRádioClube, ia àmissa na paróquia deSantoAntônioegostavadeviajar.Comajudadopai,haviaestudadoem1946emSãoPaulo,nocolégioRioBranco,masparoudeestudarapósterseformadonosegundograu.Tinhaduas fazendas,aSãoPedroeaSerraBrava,“carrosetratores”.2

Marçal foi pesquisar a situação em Pirakuá em 1978 e encontrou o índioGentil,quelhedissealiviverdesde1947,comseusdozefilhos,“todoscasadosali”.MarçalestavaacompanhadodeAntônioBrand,doCimi.Eleconcluiuque“fazendeirosestãopressionando,violentamente”.3Maspediuresistência.“Temqueficarfirme,éoúnicolugarqueresta, temmataria,peixe,caça.Nãopodedar para o fazendeiro.Não sair. Lugar daminha casa, éminha terra.Ameaçamatar,masnãopodefazeristo.”

OsKaiowá viviam em um pedaço da SerraBrava, da qual reivindicavamcerca de 2,3mil hectares, do total de 4mil.Tratava-se de uma área de difícilacesso,àqualsechegavaapóstransporouorioApaouocórregoPoção,ambossempontes.Osoloerabemdrenado,comfertilidademédia,eorelevoeraplanoedeforteondulação,comapresençadepedrasnasuperfície.Amaior riquezaestavanumaporçãode1,5milhectaresdemata,comsuavegetaçãodealtoporte“compartesdemadeiradeleipredominandoperoba,aroeira,cedroetc.”.4

Conformeo próprioLíbero confirmoudepois emuma reunião na sede daFunairegional,originalmenteasterrasemquestãopertenciamaoantigogovernodeMatoGrosso, sendoportantoconsideradas“terrasdevolutas”.Masoestadoresolveu doar 10 mil hectares à prefeitura de Bela Vista, que passava pordificuldadesfinanceiras,eque,porsuavez,resolveuvendermetadeedestinaraoutraparte“dereservaparaos índios”.SegundoLíbero,porém,os índios logoforam“retirados”,poisumnovoprefeitodeterminouavendadesegundaporçãodas terras. Os índios teriam invadido então a fazenda Dois de Ouro, depropriedade de um senador da República, Rachid Saldanha Derzi, mas foramtransferidosparaoutra área.De lá, regressaramparaa terradeorigem.Líbero

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alegou,porém,queaáreadosíndioseraoutra,denominadafazendaPiracuá,nãoincidindosobreasuapropriedade.Equeapenas“cincofamílias”apareceramnaSerraBrava,maselepermitiuqueficassemporque“nãoseincomodou”.Líberodisse que seu avô havia chegado à região no “tempo daGuerra do Paraguai”(1864-70).5Mais tarde, reconheceuporescritoqueapropriedadeSerraBravafora adquirida pela sua família no ano de 1965, portanto havia muito poucotempo.Osíndiosafirmavamqueestavamládesde,pelomenos,osanos1940.6

Nosanos1990,participeideumaentrevistacoletivamarcadapelosenadorDerziparafazerdiversascríticasàFunai.EleserecordoudoepisódiodaentradadosKaiowáemsuafazendaeexplicouquemandouseusfuncionáriosexpulsaremosíndios. Fazendo o gesto de apertar um gatilho, o senador narrou: “Eumandeipassarassimrá-tá-tá-tá-tá.Ebum,bum!Comochamaisso?”.

Umrepórterajudou:“Metralhadora,bomba,senador?”.“Isso,metralhadora,bomba.Massófoiporcimadeles,ninguémmorreu.”Derzi foimembrodaArenanaditadura, eleito emummandato e senador

biônicoemoutro.

Seporum ladoaversãoapresentadaàFunaipelo fazendeiroLíberocontradizalgumasinformaçõesdosíndios,poroutrocorroboraporcompletoaversãodeque a região era um território tradicional dos Kaiowá, uma tekoha , já que aprefeitura reconhecera a “reserva para os índios”. Os Kaiowá, por sua vez,tinhamaconvicçãodeque suas terras incidiamsobreaSerraBrava, eporelacomeçaramabrigar.

Em junhode1980, o papa JoãoPaulo IIarrastoumilhões de fiéis em suaprimeiraviagemaoBrasil.Marçalfoiescolhidoparaseroporta-vozdosíndiosbrasileiros em um discurso na sacada do palácio episcopal de Manaus. Elediscursouemfrenteaopapa:7

PesamosàSuaSantidadeanossamiséria,anossa tristeza,anossa tristezapelamortedenossoslíderes,assassinadosfriamenteporaquelesquetomamo nosso chão, que para nós representa a nossa própria vida e a nossasobrevivêncianessegrandeBrasil,chamadoumpaíscristão.8

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Oíndiofezmençãoaoslíderesindígenasassassinadosnopaís.“Queriamsalvara nossa nação, trazer a redenção para o nosso povo. Mas não encontrouredenção,masencontrouamorte.”9

OsmovimentosdeMarçaledoCimipressionaramaFunaiatomaralgumamedida. Em setembro de 1980, o órgão enviou à região o auxiliar técnicoindigenistaEliodeMeloPalmeira.Maselenãoconseguiuchegaràáreaporquenão tinhaumveículo adequadopara a estradade chão, empéssimo estado.AFunai,depauperada,nãoconseguianemconversar comos índios.Dequalquerforma,combaseeminformaçõesdoórgãoagrário,oIncra,edadiocese local,Palmeira sugeriu um “processo legal” para “desapropriação” da fazenda SerraBrava e advertiu que “tudo precisa ser feito para assegurar a permanênciadaquelepovonaárea”.10OdocumentoseguiuparaocoroneldaAeronáuticaAmaroBarbeitasFerreira,chefedaFunainacapital.

Os fazendeiros reagiram rápido e fizeram as primeiras acusações contraMarçal, em uma carta dirigida ao coronel. Astúrio alegou que apenas cincoíndioshaviamchegadoàssuasterras“trêsanos”antes,somenteparaumserviçotemporáriode limpezaede formaçãodepastagens,dentreoutros,masMarçalestariaatraindooutrosíndiosdoParaguaiparaafazenda.Elecontouquehaviacontratadoumempreiteiro,chamado“RômulodeTal”,parasubstituirotrabalhodos índios, mas que eles, “orientados pelo índio Marçal, [os Kaiowá] serecusaramaretirar-sedafazenda,sobaalegaçãodequeaterraeradelesequeomesmoMarçalestavaprovidenciandoadocumentaçãojuntoàFunai”.11

O funcionáriomencionado porAstúrio, Rômulo, ganhariamuito destaquenosanosseguintes.Elesetornariaosuspeitonúmeroumdeumassassinato.Emoutubro de 1980, Marçal escreveu uma carta ao coronel Amaro com umaacusaçãodiretaaomesmofuncionáriodafamíliaMonteiro.

MaisumavezvenhoatravésdestafazerapeloaV.Sanosentidodetomarenérgica providências a respeito da situação dos índios caiuás da aldeiaPiraquá noApa. Pois o arrendatário paraguaioRômuloGamarra continuacom suas ameaças contra nós. Agora está nos ameaçando de morteabertamente. O mesmo prometeu eliminar os dois principais líderes da

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aldeia Piraquá, Gentil Barbosa Pereira de Souza e Jacinto Ireno. Visa aminhapessoaetambémapessoadocapitãoAlziro.12

EmBrasília,namesmaépocaadireçãodaFunairecebeuumestudofeitoporumantropólogodos seusquadros,AlceuCotiaMariz, segundooqualPirakuá eraárea“deperambulaçãoimemorial,háváriosanosdemoradafixadeíndios”.Elepediuademarcaçãodasterras.Porém,oórgãoquedouparalisadoporquasedoisanos.Umadasconsequênciasfoioacirramentodoconflito.

Além da carta que enviou à Funai, Líbero fez um movimento nossubterrâneosdaditaduraquesóanosdepoisfoidescritoemdetalhespelabocadoprópriofazendeiro.EleprocurouaPolíciaFederaldeCampoGrandeparadarumaqueixacomdoispropósitos:“retiradadosíndioseumaprensanospadres”.Líbero acusava o frade franciscano Hugolino Becker e o membro do CimiAntônioBranddeorganizaremosíndios.OfazendeirorelatouaindaquechegouaserabertouminquéritonaPF,“combasenaLeideSegurançaNacional”,quenoentantoacabouarquivado.13

O apoio do Cimi e de Hugolino aos Kaiowá não era nenhum segredo.Naquelemesmooutubrode1980,Beckerhaviaenviadoumacartaaoconselhode Brasília, que foi parar na imprensa, na qual denunciou a tentativa de umfazendeiro de Amambai de tentar corromper outro grupo kaiowá para quedeixassesuafazenda.14

Umdos fundadoresdoCimino estado, ogaúchodeMontenegroAntônioJacobBrand, nascido em janeiro de 1949, graduado emhistória e doutor pelaPUC do Rio Grande do Sul, se tornou um profundo conhecedor da trajetóriaguarani.BrandcostumavavisitarPirakuáemumaToyota,àsvezescomMarçal,e ficava dias na região, conversando com os índios e levando ferramentas esementes.Umlíderkaiowáouviu-odizerqueosíndios“deveriamprocurarseusdireitos,[…]enãopodemficarassimjogados”.15

MaistardeBranddeclarouqueaentregade“sementes,ferramentaseaindauma pequena ajuda em comida” causou nos fazendeiros da região “profundairritação”.Segundoele,oapoio“determinouoacessodeoutrosíndiosàárea”,epor isso Líbero passou a acusá-lo de trazer outros índios para a aldeia de

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Pirakuá.16

OKaiowáArgemiroEscalanterecebeu-meemsuacasanaterraindígenaPirakuánofinalde2013.Emguarani,comtraduçãodocaciqueJorgeGomes,eledisseque morava em Pirakuá quando começou a briga pelas terras. O índio serecordoudediversasreuniõesentreMarçal,BrandeoKaiowáLázaroMorelnalocalidade deSãoPedro, onde a diocese deDouradosmantinha uma estruturapara encontros e seminários. 17 Lá, o Cimi costumava realizar reuniões comindígenasdeváriaspartesdoestado,conformerecordouumdosex-voluntáriosdoCimi,LaerteTetila.

Depoisdadivisãodoestado,em1977,osíndioscomeçamasretomadasdesuas áreas originais. E oCimi começa a organizar as lideranças de váriastekoha . As reuniões nas aldeias começam a partir de 1979, 1980, foi operíodofértil.NaVilaSãoPedro,aIgrejatinhaumespaçoquedácursosdeformação em várias áreas, como teologia. O Cimi se utilizava daqueleespaçoeasliderançasindígenasdetodaaregiãosereuniamali.[Falavam]arespeitodelegislação,paraoíndioterconsciênciadeseusdireitos.OíndioestudavaoEstatutodoÍndio.Claro,oMarçaltambémfaziaparte.18

SegundoEscalante,tambémfoiBrandquemconseguiupassagensdeônibuse hospedagem para que Lázaro Morel e o índio Venâncio Ireno fossem pelaprimeiravezàFunaiemBrasília.

Apartirde1982,Morelassumiualinhadefrentedabrigapelaterra.Nessemomento, segundo Escalante, o Kaiowá recebeu uma oferta do fazendeiro:quinhentos hectares para ele e sua família, desde que retirasse os índios dasterras.Morelrecusouoacordo.

Marçalsofreuassédiosemelhante.AfilhaEuniceSilvaSouzaGonçalvescontouàPolíciaFederalqueopaisofrera“nãosóameaças,comotentativasdesubornocomoobjetivodetolherassuasiniciativasemdefesadacomunidadeindígena”.Ela acrescentou que foi oferecida a Marçal “a importância de 5 milhões decruzeiros,para[que]fossemretiradosdeumaaldeiadenome‘Piraquá’,alguns

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contingentesindígenas”.Eunicecontouaindaterouvidodopaiqueumapessoao“advertiudaiminênciadevirasofreralgumaviolência”.19

AmulherdeMarçal,Elisa,dissedepoisqueRômuloGamarraofereceuaoseumarido“umpacotededinheiroparaque[…]nacondiçãodelíderindígena,retirasse os índios da aldeia Piraquá”. 20 Já um amigo não índio de Marçal,ArmandoCampos,contouterouvidodopróprioGuaraniqueRômulolhepediu“ajudapara retiraros índiosdaaldeiaPiraquá”.Marçaldisse ter se recusadoa“perseguiríndio”.21

Marçal, em carta enviada ao coronel Amaro, afirmou que um “capitão”kaiowá“anteriormenteestavadandotodacoberturaaoparaguaio[Rômulo],eleestavapegandodinheirodoparaguaioparaexpulsaros índiosdaáreaPiraquá.Nãoconseguindooseu intento,agoraestáameaçado tambémpeloparaguaio.”22

Líbero negou ter assediadoMarçal, mas confirmou ter feito “um acerto comduasdascincofamílias[indígenas],queseretiraramdefinitivamente,easoutrastrês pediram-lhe umprazo”. 23O acordo foi tratado exatamente por Rômulo,que“retornoudizendoqueasfamíliasqueriam25milcruzeiroscadaumaparadeixar o local, com o que concordou [Líbero]”. 24 Em outra ocasião, ofazendeiroconfirmouterpagadoovaloràsduasfamílias.25Líberoreconheceutambémquechegoua“manterumdiálogo”comMorel,mas“nenhumacordofoifeito”,poiso índio“nãoapresentoupropostaviável”.26Confirmou aindaqueRômulotrabalhouparaele“pordoisanos”.27

O“paraguaio”Rômulo,quenaverdadeeraumbrasileironascidoemjulhode 1925 em Bela Vista (hojeMS ), na fronteira Brasil-Paraguai, separado, 28confirmou ter trabalhado para Líbero com o objetivo de “derrubada deoitocentosalqueiresdematanachamadaaldeiaPiraquá”,ondeviviam,segundoele, dezoito índios.O fazendeiroorientou-o aprocuraros índiosparaque elessaíssemdaáreae fossemlevadosparaondequisessemir,poisa fazenda tinha“dinheiroecaminhão”.

Masofazendeiro,passadoumtempo,“nãoestavasatisfeito”comRômuloemsuatarefade“manterentendimentoscomosíndios,paraqueelessaíssemda

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aldeia”. Líbero também “vivia insatisfeito com os índios”. Quando Rômuloanunciou que deixaria de fazer o serviço, Líbero “ficou com raiva” do seufuncionário.29A casa deRômulo, soube-se depois, ficava a apenas duzentosmetrosdaenfermariaemqueMarçalvivia.30

AFunai continuoudemorando a agir.Aprimeira informação sobre a crise emPirakuádatoudesetembrode1980.Quasedoisanosdepois,umdosdiretoresdoórgão, em Brasília, alertou que a aldeia “precisa com urgência do apoio daFunai”.31Emjulhodomesmoano,oentãopresidentedoórgão,ocoroneldaAeronáuticaPauloMoreiraLeal, instituiuumgrupode trabalhoparaestudaroassunto.

O antropólogoAlceuCotiaMariz chegou aPirakuánomesmomês, ondeencontrou“43famíliasdegrupokaiowá”.Suaconclusãofoidenovoinequívoca:“É evidente que toda aquela região é de imemorialidade indígena. Suacomprovação em si é fácil. […] Os índios kaiowá que habitam a região doPiracuátêmrazãoemsuasreivindicaçõesterritoriais”.32

Marizsugeriuaaberturadeumprocessoparaindenizaçãodosfazendeiros,se fosse o caso. E voltou a falar das ameaças e pressões de Líbero contra osíndios.Estes,narrouaindaoantropólogo,haviammantidonopassadoumaboarelação com Astúrio, chegando a trabalhar com ele, mas as coisas mudaramdepoisqueouviramofazendeirodizerque“estavamdentrodesuapropriedade”.Apartirdaí,astensõesseacirraram,assimcomoameaçascontraosíndios.

Porcasualidade,opróprioMarizjáhaviaconhecidoRômulo,quandoestevenaáreadoisanosantes.SegundoMariz,houve“umcontatointimidativocomojagunçovulgoParaguaio,entãomoradordeCampestreque,apartirdeentão,‘moderou’ suas ameaças ao grupo até desistir, retirando-se da área”. OantropólogoexplicouporescritoàFunaiterlevadoocasoao“conhecimentodasautoridadesdepartamentais[daFunai]daépoca”,queprometeram“providênciasoportunas”. Porém, depois Mariz descobriu que o órgão apenas manteve oslimitesjáexistentes.“Portanto,nenhumainiciativaforatomadaembeneficiodaregularização das áreas Pirakuá e fazenda Serrito, que […] continuamdesassistidaseignoradasoficialmente.”33

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Relatos semelhantes de pressões contra os índios vindas de Líbero e deRômulochegaramàFunaideBrasíliatambémpelavozdolíderMorel.Emumadasreuniões,oíndioalertouqueosíndios

atualmentevivemsobameaçasdosr.Líbero,quepordiversasvezesestevena aldeia, oferecendo casas para os índios […]. A seguir mandou umindivíduovulgoParaguaioempregado, tentarà forçaa retiradados índiosdo local, ameaçando levar apolícia,prometendo tambémmatá-los, senãosaíssem.34

O relatório de viagem de setembro de 1982 foi um importante passo para ademarcação da terra. Em janeiro de 1983, a Funai concluiu o memorialdescritivodaárea.Nomêsseguinte, foramentreguesaoDGPI ,odepartamentodo órgão responsável pela demarcação, um “mapa, memorial descritivo eportaria”daáreapara“aprovaçãodelimites”.35

Nesse meio-tempo, uma confusão entre índios irrompeu na aldeiaCampestre. O “capitão” Alziro “andou espancando alguns exaltados que oagrediram”, segundo Marçal. Acabou sobrando para Marçal, que ficou presocomAlziro por várias horas “na polícia deAntônio João”. Antes, porém, eledissetersidoagredido.“Naaldeiaumpolicialapaisanomeespancousemqueeu tenhadadomotivopara isso.Chegouadarvários socosna alturados rins.Estousentindomuitadornolocal.[…]Háváriasnoitesnãopossonemviraredeitardetantador.”36

Marçal foi orientado a se dirigir à delegacia de polícia local. Lá, porém,passouaserinterrogadosobre“umadenúnciafeitapelofazendeirodoPiraquá,LíberoM.Lima”,segundoaqualteriahavidouma“invasãodafazenda”.DepoisMoreltambém“foichamadoadepor”.MarçaldissequeexplicouàpolíciaqueeleeBrandsófaziam“ajudarosíndiosqueprecisamdeajudaenadamais”.EqueMoreltambémfora“ameaçadodemorteporumjagunçodofazendeiro”.Oepisódio parece guardar relação com a estratégia, narrada anos depois porLíbero, de ter procurado a PF para denunciar o indígena e Brand por estarem“instigandoosíndios”.

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No início de novembro de 1983, o chefe do posto indígena da Funai deAmambai,VandelinoBravim,voltouapedirceleridadenademarcaçãodaárea:“É o grupo indígena do país em que pior situação se encontra em termos deterras, pois na maioria de suas reservas a proporção [é] de um hectare porhabitante”.37

Ainda que a passos lentos, a movimentação da Funai em direção àdemarcaçãocomeçouaficarconhecidanaregião.Nosegundosemestrede1983,oórgãoergueuumaplacadentrodafazendaSerraBravaparaanunciaroslimitesda área. Segundo os índios, porém, a placa foi incendiada no dia 25 denovembro,oquefoiconfirmadodepoiseminvestigaçãodaPolíciaFederal.38Trata-sedeumdiamemorável.

Osassassinosvieramànoite,sobumachuvafina,umdecasacopretoecomorostoescondidoporumchapéudeabas largaseooutrodecalçabrancaeumcigarro na mão. Vieram com uma falsa história, fizeram algumas perguntasestranhas, até queum sacouo revólver e atirou àqueima-roupa três vezes emMarçal,queestavadeóculos,camisaazulecalçajeans.Atingidonopeito,pertodaclavículaenoantebraçoesquerdo,eletomboudeladoemorreu.EliminadooGuarani, a dupla correu para a escuridão domato. A poucosmetros dali, umcarpinteiro vizinho acordou em casa com os tiros e correu para a varanda, atempo de ver dois vultos atravessando a “invernada”, o pasto onde o gado sealimenta, para chegarem a umveículo que os aguardava com as luzes acesas.Talvezfosseumacamionete,queemseguidadeuumgironarodoviaearrancou,levandoogrupoparaaestradaescura.39

O impactodoassassinatodeMarçal foi especialmente forteemumapessoa, aGuaraniElisaVilharva,queseencontravaao ladodelenomomentodocrime.Com27anos,elaestavagrávidadenovemeses.Deuàluzpoucosdiasdepois,ajudadaporumaparteiradaaldeiaecomafamíliaaindatomadapelomedodequeosassassinosvoltassemparaprocurá-la.

Trinta anos depois, fui atrás de Elisa.Disseram-me que ela vivia na terraindígenadeDourados,consideradaamaioraldeiaemzonaurbanadopaís,com

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maisde11,8milindígenasguaranieterenaespremidosem3,4milhectares,umaespécie de símbolo e resumo maior da miséria enfrentada pelos Guarani noestado.40Entreosanosde2000e2012,nadamenosque608índiostiraramaprópria vida emMato Grosso do Sul. As taxas de suicídio entre os Guarani-Kaiowásão“aproximadamentevintevezessuperioresàtaxanacional”.Noanode 2013 veio o recorde histórico anual de 73 suicídios, dezoito dos quaisocorreramnaáreadeDourados.41OsíndiosdaaldeiadeDouradosvivememcasas demadeira e de alvenaria,muitos dependem de trabalhos eventuais emfazendasdaregiãooudocortedacana-de-açúcaremdestilariasdeálcool,outrossobrevivem da renda obtida com o plantio na aldeia e outra parte é socorridacombolsasecestasbásicasfornecidaspelogoverno.

Perguntandoaquieali,enfimencontreiElisanamanhãdosegundodiadoanode 2014, sentada emuma cadeira nos fundos da casa emque vive comafamília. Ela é pequena emagra, tem o rosto enrugado, asmãos com as veiassaltadas, opescoçovincado.Elisaparece termuitomaisdoque seus58anos.Ela falou pouco em português emuito em guarani. Como intérprete, saiu emmeusocorroumGuaranidetrintaanosque,aoladodeElisa,tomavatereré,ummategeladotípiconoestado.OíndiotrabalhouemplantaçõesdealgodãoefoicatadordelixoemDourados,masagoradissequeenfrentavasériasdificuldadesparaexecutarserviçospesados,ocorponãoaguentavamuito.Disseseresseoresultadodefacadasquequaseomataramanosatrás,duranteumabrigaderua.Levantou a camiseta paramostrar as duas extensas cicatrizes quemarcam suabarriga.Éamanhãdeumdiadesemana,masBibianodeSouzaficaráemcasa,nãotemondetrabalhar.OfilhodolíderindígenaMarçal,magroedefeiçõesqueem muito lembram a do pai, está desempregado há vários meses. Tal qualMarçal,Bibianoviveusemopaidesdemuitocedo.Atéantesdenascer:eraeleobebêqueestavanabarrigadeElisaquandoseupaifoiassassinado.

Elisa disse ter conhecido Marçal quatro anos antes do assassinato. Elatrabalhava como arrumadeira de um hotel na cidade deAntônio João quandoconheceu o pequeno e agitado índio, que se disse apaixonado e foi pedirautorizaçãoaopaidamoça,naaldeia,parapoderlevá-laparacasa.Ocasaltinha36 anos de diferença. Ela é nascida em 1956, e ele, em 1920. 42 Antes do

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casamento,Marçal quitouumadívida que ela tinhana aldeia, o que serviu desalvo-condutoparaocasamento.ElisafoimorarcomMarçalnacasa-enfermariadeCampestre.Eraosegundocasamentodela.DepoisdoassassinatodeMarçal,porém,elanuncamaissecasou.

Bibianotraduziuahistóriacontadapelamãe.Porvoltadasvintehorasde25denovembrode1983,doishomenschegaramàenfermaria-casadopai comahistóriadequeprecisavamderemédios.MarçalestavadeitadoaoladodeElisanochãodavarandasobrepanosquealiestendera.Elecomeçouaconversaaindadeitado,erguendoapenasacabeça.

Omeupaifalouquenãotinharemédio.Aíumdelesfalouque“meupatrãofoiparaacidadeenósvemosaquienósprecisamosderemédio”.Meupairespondeuque“nãotemremédio,acabou,nãotemmais”.Dissequenodiaseguinteiriaatrás,verseconseguia.Aícomeçaramafalarcomvozgrossa,diferente, pediram uma cadeira que queriam sentar.Aí estava assimmeioestranhojá,decomoascoisasiamacontecer.Estavamcomamãopegandonaarma.

Marçal estava desconfiado, “não entendia, não estava bom a coisa”,completouElisa.Ela disse ter intercedido: “Eu falei para eles: ‘Vocênãovemcomboa intenção,vocêsvêmparamataroMarçal’.Aíeledisse: ‘Nósviemosparaissomesmo’”.

UmdoshomensacendeuumalanternaeoramirouorostodeMarçal,oraode Elisa. Quando Marçal se ergueu na esteira, os tiros começaram. SegundoElisa,

só um atirou nele, o outro ficou esperando, encostado na parede. O queatirou tinhaumcasacopreto,achoque tinhauma touca,umcapuz,eumacalça amarela. Estava de chapéu grande, tipo um sombrero , e capa dechuva.Noescuronãodavaparaverdireitoo rosto.Estavachovendobempouquinho,garoando.

Osegundoestavadecalçabrancaefumava.Apósostiros,Elisadisseterouvidoemportuguês:“Vamosembora”.

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Apoucosmetrosdali,aGuaraniRomildaVilharva,airmãdeElisa,ouviuosdisparosecorreuparaacasadeMarçal,ondeoencontroucaído.Trêsdécadasdepois,elavivenamesmaaldeiaenamesmacasa,comparedesdemadeiraetelhadodepalha.Sófalaemguarani,compoucaspalavrasemportuguês.Umadelaséfazendero.

O fazendeiro perseguiu oMarçal. Ele ajudava a gente, chegou aqui paratrabalhar em saúde para nós. Ele era enfermeiro e ajudava na saúde,educaçãoedemarcaçãodeterra.[Morreu]porcausadaterra.OfazendeiroameaçavaMarçalporqueeleestavaafavordosíndios.43

OcorpodeMarçalfoilevadoparaonecrotériodeDouradoseenterradonodiaseguintejuntocompartedasroupasqueguardavaemcasa—cincocamisasdetergalealgodão,duascalças,umpardesapatosdotipo“esportivo”etrêscuecas—, um termômetro clínico e estojo, umamoeda de dez cruzeiros emitida em1980eumamoedadevintecruzeirosemitidaem1982.44NaterraindígenadeCerroMarangatu, anos depois a prefeitura local construiu uma escultura azul,quelembraumasepultura,nolocalemqueMarçalrecebeuostiros.45

Apolícia contavacoma testemunhaoculardocrime,Elisa,maselanão foiodepoimentoseguronecessárioparaaquelemomento.Primeiroapontouoatiradorcomo sendo João Batista Gomes, conhecido como João Bugre , morador deCampestre.Depoisdisseterseequivocado,queo“apontouaesmo”equeestava“sob forte emoção” no primeiro depoimento. Por fim, em uma sessão dereconhecimentonaPF,ElisanãoreconheceuBugrecomooassassino.46

A provável origem da confusão de Elisa é que JoãoBugrede fato esteveatrásdeMarçalnosdiasanterioresaocrime,mas,segundoele,comoobjetivode pedir penicilina.Bugre disse que não sabia atirar, que se “dava bem” comMarçal e com o irmão de Elisa, Severiano Vilhalva, com quem, aliás, estavapescandonanoitedocrime.47Severianoconfirmouapescariae isentouJoãoBugre.48

A confusão ficou pior depois que aCasaCivil do governo estadual, nummovimento esdrúxulo, muito possivelmente para se livrar das suspeitas

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levantadaspelaimprensadequenãoprovidenciouproteçãoaMarçal,declaroupublicamentequeocrimefora“passional”.JornaisdeCampoGrandeedeSãoPaulochegaramadivulgarqueaex-mulherdoíndioteriamandadomatá-lopor“ciúmes”.49

CobradopelaPF,ogovernoestadualdissetersebaseadoemumrelatóriodaPolíciaMilitar.Porém,aíntegradopapel,deapenasumapáginaechamadode“Sindicância verbal”, demonstra que a acusação era lastreada apenas emafirmações atribuídas ao “capitão” indígenaAlziro e a Elisa— depois, à PF ,ambosvoltaramatrás.50

Com informações tão frágeis e contraditórias, a PF logo abandonou a tese dohomicídio “passional”, passando a correr atrás de outras pistas. No dia 1o dedezembro,apreendeuumrevólvernoporta-luvasdocarrodeRômulo,nacidadede Antônio João (MS) . Tratava-se de um revólver Taurus, calibre 38, canomédio,oxidado,númerodesérie13073.Acoronhaera feitadeplacasdeossoamarelado, presas por uma fita isolante preta. 51 Questionado pela polícia,Rômulodisseque“nuncadeuumtirosequercomaarma”enuncaaemprestouaninguém.52

Noiníciodedezembro,oprimeirodelegadoacomandarocaso,ArmandoRodriguesCoelhoNeto,“tomouconhecimento”dequeoautordocrime“teriasido Fausto da Silva”, depois identificado como Faustino da Silva— a dicapartiudepoliciaiscivisdaregião.UmaequipedaPFcorreuatráseconcluiuqueFaustinotrabalhouparaafazendaSerraBravae“teriasaído”nodiadocrimeemcompanhiadeoutrohomem, IsaíasdaRosa, que “portavaum revólver calibre38”. 53 Confirmou-se depois que ambos trabalhavam na outra fazenda deLíbero,aSãoPedro.54UmtelegramaposteriordodelegadodepolíciadeBelaVista(MS)informouqueFaustoera“suspeitodepraticarhomicídio”nacidade,mas não houve pedido de prisão preventiva porque “os indícios nãoautoriza[m]”.55

Localizadopelapolícia,Isaías,de44anos,confirmoutersaídodafazendacomFaustino no dia do crime em uma camioneteD-10 pertencente a Líbero,masdissequenomomentodostirosestavaemsuacasanacidadedeBelaVista.

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56Faustinorepetiuahistóriaeforneceucomoálibionomedaamante,nacasadequemteriapassadoanoitedesexta-feira.

OcapatazdafazendaSerraBrava,AurélioAjala,emboranegandoqualquerenvolvimentonocrime,forneceuinformaçõesinquietantesàPF.Eledisseque,umanoantesdocrime,umtenenteeumcabodaPolíciaMilitardeBelaVistaforam chamados por Líbero para “instigar os índios da aldeia Piraquá”. Ospoliciaisdeixaramacamionetena sededa fazendae seguiramacavaloparaaaldeia,acompanhadosdeoutrofuncionáriodeLíbero,chamadoPeruí.Navolta,PeruícontouaocapatazqueosPMsfizeramdisparosnaaldeia,masninguémseferiu.Peruítambémdisseque“Líberoiriadarumacasaparaeleemtrocadeumserviço”. Não revelou que serviço seria esse. 57Ajala acrescentou que PeruíesteveemPirakuáoutrasduasvezes,aoladodeFausto,equeumfuncionáriodafazenda,chamadodeGaúcho,“usaumrevólvercalibre38”.

Em uma visita à aldeia, o delegado da PF soube que o índio AlexandreArinostinhainformaçõesúteis.OGuaranirelatouque,doisdiasantesdamortedeMarçal,foiavisadopelofilhodocapatazdafazendaRanchoAlegre,vizinhaàSerraBrava,paraquetomassecuidadonaquelesdiasporquenaregião“haviatrêspistoleirosqueiammatarumíndio”—umdosquaisseriachamadoFaustoeoutroconhecidocomoGaúcho,ambosfuncionáriosdeLíbero.58

O filho do capataz que alertou o índio era EraldoAlmeidaDuarte, de 23anos.LocalizadopelaPF,eleconfirmouque“procurouorientaroíndioparaquetomasse cuidado” porque os funcionários da fazenda, para chegar ao trabalho,tinhamquepassarpelapropriedadedeLíbero.Eraldodissequepassouaadvertirosíndios“recentementeporqueultimamenteandavamcirculandopelasterrasdeLíberoMonteiro pessoas que falam ser ‘pistoleiras’”. Nominou as pessoas deFausto eGaúcho . O primeiro, segundo Eraldo, seria um “pistoleiro avá”. Apolícia quis saber o que significava a expressão. Eraldo respondeu: “Significamatadordeíndios”.59

A polícia confirmou a identidade de Gaúcho : tratava-se de Paulo RonaldoDouradoCosta,motoristade26anos,nascidoemSantanadoLivramento(RS).Quando lhe perguntou por que ele adotara “comportamentos suspeitos”, como

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“ter se evadido, haver procurado um advogado e ter sido procurado o juiz dePonta Porã para ser impetrado algumasmedidas em seu favor”,Gaúcho disseque agiu assim porque as pessoas que estiveram antes na mesma delegacia“apanharammuito”.Ele contouque faziadiversos serviçosparaLíbero, comodirigir,“fazercompras,ficharempregados”efazer“escritadafazenda”.Porém,negouser“pistoleiro”edissequenãoconheceuMarçalnemsabiaondeficavaaaldeiadeCampestre.

Nas suas declarações à PF e nos interrogatórios judiciais, Líbero semprenegou qualquer envolvimento no crime. Disse que nem sequer conheciapessoalmente Marçal e que ficou sabendo do assassinato pela televisão,acrescentando que seu nome estava sendo “injustamente” vinculado ao crime,fato comoqual “nada temaver”.Reconheceuapenas adisputa em tornodasterrasdePirakuá.60Àimprensa,nãonegouseusdesentendimentoscomMarçal:“Eleeraum‘bugre’muitoaudacioso”.61

Em outro depoimento, Líbero adicionou um dado de interesse àinvestigação:diasapósocrime,osfuncionáriosdesuafazendaFaustino,Isaíase“outros”, de cujos nomes não se lembrava, deixaram sua propriedade, semmaioresexplicações,“tomandorumodesconhecido”.62

A PF enfrentou dificuldades financeiras para trabalhar. O segundo delegado acomandar o caso,AldeirBórioGonçalves, solicitou, por exemplo, três diáriasparaquedoisagentesviajassempara tentar localizarumíndioque teriasidooautordosdisparos.Averba,contudo,sófoiliberadadezesseisdiasdepois—adiligênciafoiinfrutífera.63

Em31demaiode1984,Bóriosolicitouaojuizdocaso,portelegrama,quedecretasse a prisão preventiva de Rômulo, pois dera positivo o exame dorevólver apreendido em poder do suspeito, “comparado a um dos projéteisencontrados [no] corpo da vítima”. 64Bório enviou para exame, no InstitutoNacional de Criminalística, em Brasília, três revólveres (a origem dos outrosdois nunca foi esclarecida) e “cinco projéteis de arma de fogo de chumboendurecido”. 65O projétil de número cinco, com dez gramas e deformações“devido a posterior impacto a obstáculo resistente”, correspondeu ao revólver

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TaurusdeRômulo.Abalatinha“característicasindividualizadorassemelhantesaosprojetiscolhidoscomopadrõesdaarmano2”,“sendoestaresponsávelportê-loexpelido”.66

RômulofoipresopelaPFàsquinzehorasdodia31demaiode1984,nadamenosqueseismesesdepoisdaapreensãodaarmaemseucarro.67Em10dejunho, assinou uma procuração e constituiu como seu defensor um dos maiscarosetalentososadvogadoscriminalistasdoestado,RenêSiufi.Tratava-sedomesmoadvogadodeLíbero.68SiufifoiaoantigoTribunalFederaldeRecursos(TFR ), que, no dia 28 de agosto de 1984, concedeu o habeas corpus porunanimidade,oquelevouàsolturaimediatadopreso.69Desdeentão,Gamarranuncamaisfoivisto,comousemvida.

OTFRtambémfoiopalcodeumadisputajudicialqueconsumiuquasetrêsanosdoprocesso,períodoemquetodaainvestigaçãosobreocrimetevequeserparalisada. Provocada por um procurador da República, a Justiça em Brasílialevou todo esse tempo apenas para dizer se o caso deveria tramitar na JustiçaFederalounaJustiçacomumdoestado—venceuasegundahipótese.

Ainvestigaçãosófoiretomadaem1987,quatroanosapósocrime.Em2dedezembro,umafilhadecriaçãodeRômulo,aparaguaiaIvoneChucarro,entãocomquinzeanos,fezumadeclaraçãoextraordináriaàPF.

[Ela]temabsolutacerteza,nacondiçãodefilhadeRômuloGamarra,quefoioseupaiquemefetivamentematouoíndioMarçaldeSouza;nãosabequemfoi omandante do crime, no entanto, na época do homicídio, seu pai eraempregado do fazendeiro Líbero. Logo após a morte do índioMarçal deSouza,oseupai,RômuloGamarra,chegouacolocarumrevólvernopeitodainformante,afimdeintimidá-la,paraquenadacontasseàpolícia.70

OdesaparecimentodeRômulonãopermitiuàpolíciafazerumaacareação,umaconfrontação, sobreahistóriacontadapor Ivone.Agarota tambémnuncafoiouvidaemjuízo.

MesmocomafugadeRômulo,oprocessoprosseguiuemrelaçãoaLíbero.Veioà tona um sério buraco na investigação. Para obter a prisão de Rômulo, o

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delegadoBóriohaviaassinadoumdespachopeloqualdeterminaraaelaboraçãodo auto de apreensão do revólver “assim como dos projéteis encontrados nocorpodavítima e arredores”.71Além disso, em telegrama enviado à Justiça,Bório reiterou que o exame dera positivo quando se comparou “a um dosprojéteis encontrado [no] corpo da vítima”. 72 Porém, o laudo de examecadavériconadadiziaarespeitodeapreensãodeprojéteis.OpromotordeJustiçaAntonio Clemente Neto percebeu que não havia projétil algum apreendidooficialmentenosautosnemconstavanoinquérito“alusãoanterior”algumasobreofato.

Em1989,ojuizLuizCarlosSaldanhaRodriguesreconheceuagravefalhadainvestigação.ElemandouindagaraoprimeirodelegadodaPFquecuidaradocaso na Polícia Federal,Armando, na época vivendo emSão Paulo: “Quandopresidiuo inquéritopolicial, […]determinouaapreensãodeprojéteisdearmadefogoe,emcasopositivo,ondeeempoderdequemforamapreendidos?”.73

O delegado disse que não se recordava direito dos fatos, que “não sabeinformar sobre o destino dado aos citados projéteis”, mas poderia “presumir”queosprojéteistinhamsidoretiradospelosmédicos.74Emoutrodepoimento,acrescentouque“houveumapressaemquererapresentarrapidamenteoculpadopelohomicídio”,devidoaocrimeterprovocado“umaenormerepercussãodadapelaimprensa”.75

Ojuiztambémordenouumainquiriçãodosperitosquefizeramoprimeiroexamedocadáver.Forafeitaumaautópsia?DocorpodeMarçalforamretiradosprojéteis?Umdosperitos,NivaldodeSouzaRamos,contouqueeles“naocasiãonãodispunhamdecondiçõesmateriais”pararealizarumaautópsia.Assim,haviasidofeitoapenasumexameexterno,“usando-sedastécnicasdepraxe”.NãoforaretiradonenhumprojétildocorpodeMarçal.76

OmédicoCatarinoAntonioHernandesMorenorelatouque

nãohaviaboa iluminação,oquenãopermitiaumabuscanosarredoresdolocal.Nãofoifeitaautópsia,nemretiradosprojétilouprojéteisdocorpodavítima,dizendo,entretanto,quehouvetransfixiaçãodocorpodavítimaporprojéteis, localizados no corpo e no braço, conforme consta do auto de

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examecadavérico.Quenãoforamrecolhidososprojéteisquetransfixiaramocorpodavítima.77

Trinta anos depois, o delegado federal Armando Coelho revelou-me o queconcorreu para a tumultuada investigação sobre o assassinato deMarçal. Emdezembrode1983,elefezsuaprimeiraeúnicaviagemàaldeiadePirakuá,comum carro emprestado da Receita Federal. Ao regressar à sua casa, em PontaPorã,soubequeumaequipedaPFprocurarasuamulherparadizerqueelenãoeramaisodelegadodocasoequeseriatransferidodacidadenospróximosdias.Segundo Coelho, ele ficou apenas um mês e alguns dias na presidência doinquérito. “Na época da ditadura faziam isso, transferiam as pessoas assim.Ocarro encostavana sua casa, entregava aspassagens evocê estava transferido.[…]Comesserompimentobruscodainvestigação,atéretomaroqueseestavafazendo…”78

OdelegadoatribuiusuasaídadocasoàspressõesquefezàCasaCivildogoverno do estado a propósito das informações que chegaram à imprensaassociandoo crime a uma suposta vingançada ex-mulher deMarçal, hipótesequeCoelho achava absurda, e que teria surgidomediante tortura, como agorarevelava.

Eles fizerammuitamerda, seapressaramaapresentargentequenão tinhanadaaver.Deramumpaunumcara lá. […]Eudisse: “Olha, eunãovouprenderessecara,quenão temnadaaver”.Ficavamfabricandoculpados.PegaramumBugre,umíndioBugre.Elefoitorturado,deramumpauneleparaelefalarmerda.Eoqueelefalounãotinhanadaaver.

OsdocumentosdoinquéritoconfirmamqueoúltimodespachoassinadoporCoelhoédatadode20dedezembrode1983.Doisdiasdepois,odiretordaPFnoestado deMato Grosso do Sul determinou a redistribuição dos autos a outrodelegado,semapontarnenhummotivoparaadecisão.79Sóem13defevereiroé que o novo delegado do caso passou a atuar.Assim, a investigação sobre oassassinato ficou paralisada por cerca de cinquenta dias, e justamente na faseinicial,quecostumaseramaissensívelemumainvestigaçãodehomicídio.80

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OjuizSaldanhachegouaamargasconclusões.Eleescreveuqueapolíciaagiu“sem proceder ao isolamento da área [do crime], sem proceder ao exame dolocal e sem apreender os objetos que tivessem ligação com o crime ou queviessemafacilitaradescobertadaautoria”.Sobreabalaquenãotinhaorigem,ojuizreconheceu:“Essaéumadasdúvidasquevêmdificultandooesclarecimentoda verdade, enfraquecendo os indícios da autoria aponta [da] contra odenunciado Rômulo”. 81 Assim, ele determinou a exumação do cadáver deMarçal,numatentativadedescobrirseosprojéteiscontinuavamnocaixão.

Namanhãdodia19de junhode1991,osperitos abrirama covanúmero4531docemitériomunicipalSantoAntôniodePádua,emDourados.Contudo,nenhum projétil foi encontrado perto da ossada nem na terra misturada aocaixão.Assim,haviaapenasduaspossibilidades:asbalasatravessaramocorpo,masnãoforamlocalizadas,recolhidasnemapreendidaspelapolícianolocaldocrime;ouasbalas,umaou todas,pararamnocorpodo índioeforamretiradaspeloexamecadavérico,masdepoissumiram.82Emambasashipóteses,porém,teriahavidoumafalhagrosseiranainvestigação,oquecomprometeuboapartedaacusaçãocontraRômuloeLíbero.SemabalaparafazeraconfrontaçãocomorevólverapreendidoempoderdeRômulo,nãohaviaumelomaterialentreoacusadoeocrime.

Paracomplicartudoaindamais,simplesmentedesapareceram,nofórumdePontaPorã,osprojéteisquehaviamsidolevadosàperíciaanosantes.Tambémnão foi encontrado registro de que eles tenham sido enviados, em algummomento,aoJudiciário.83Asbalas,emespecialaquecomprometiaRômulo,viraram fumaça. Ao saber do fato, o juiz Saldanha concluiu que se tornava“impossível a nova balística nos projéteis”. 84 Restou como um profundomistérioaorigemdabalaenviadaàperíciaqueligavaRômuloaoassassinatodeMarçal.Talveznuncaseesclareçadeondeveioeparaondefoi.

Parapioraroquadro,oassistentedeacusaçãoJorgeNeyCorrêaRodrigues,queacompanhavaocasoemminúciasemnomededoisfilhosdeMarçal,EdinaeEpitácio,sofreuumgraveacidentedemotoemorreudeumsurtohemorrágicopoucosmesesantesdoprimeirotribunaldojúri,realizadoemmarçode1993.Osfilhos de Marçal tiveram que substituir o advogado às pressas, nomeando

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pessoasdosetorjurídicodoCimi.85

Dez anos após o assassinato, emmarço de 1993, índios guarani de diferentesaldeias cantaram e dançaram na frente da Câmara Municipal de Ponta Porãenquanto transcorria o primeiro tribunal do júri sobre as acusações contraLíbero.Comoestavaforagido,Rômulonãofoilevadoajulgamento.Eleédadocomo desaparecido até os dias atuais. Em julho de 2015, teria completadonoventaanos.Nadenúncia,oMinistérioPúblicocitouFaustino, IsaíasePauloRonaldo, sobre os quais “se formou fundamentadas opiniões de executoresdiretodohomicídio”,masdeixou-osdeladonahoradaacusação.86

AcompanheiojulgamentosobumfortecalornosalãoprincipaldaCâmara,adespeitodeváriosventiladoresinstaladosdeúltimahora.Comonãocabiatodomundonoprédio,o juizmandouafixarumtelãonapraçaemfrenteaofórum.Nomeiodosdebates, aquestãodamisteriosabaladesaparecida foi enfatizadaváriasvezespeloadvogadodeLíbero,RenêSiufi.Eleelaborouumadetalhadapeçadedefesaquebasicamentedesmontouoprocessopedaçoporpedaço,numaexposiçãoequilibradaetécnica.QuandoopromotordeJustiçapercebeualinhadadefesa,arriscou-seemumatoextremo:arremessouváriaspeçasdoprocessoparaoalto, indagandose“elasnãovalemnada?”.Ospapéisvoarampara todolado,parasurpresadaplateiaeincômododojuiz,querepreendeuopromotor.

DoisadvogadosligadosdeSãoPauloreforçaramaacusação:LuizEduardoGreenhalgh, militante do PT , e sua sócia Michael Mary Nolan, umaexperimentadaativistadosdireitoshumanos.Porém,elespoucopuderamfazer.Líberofoiabsolvidopelosjurados,queacolheramatesedanegativadaautoria.

AacusaçãorecorreuaoTribunaldeJustiçaalegando,dentreoutrospontos,queoinquéritopolicialtinha

um erro tão inacreditável quanto imperdoável — e que foi muito bemexploradopeladefesa—poisfoiefetuadaumaperíciaquedeterminouquecertoprojétilpartiudaarmaapreendidaempoderdeRômuloGamarra, sóquenãoseindicaondeecomotalprojétilfoiapreendido.87

OMinistérioPúblicoconseguiuumnovojulgamento,realizadoemjunhode

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1998.MasdenovoLíberofoiabsolvidodaacusação,porcincovotosadois.88OassassinatodeMarçalfoialçadoàgaleriadavergonhadaimpunidadeno

país.

***

A morte do Guarani atraiu a atenção internacional em novembro de 1983.Poucosmesesdepois,porém,outro índio tombousilenciosaeanonimamenteàbeiradeumrionoAcre,amilharesdequilômetrosdeDourados.Emjulhode1984, umdosprincipais indigenistas da região, cuja perseguiçãopela ditadurahavia sido o pivô da crise com a SBI quatro anos antes, JoséCarlos dosReisMeirellesJúnior,chegoudebarcoaopontodeencontroentreoigarapéMoaeorio Iaco na companhia de um índio, Otávio Brasil, e seu sogro, AntonioFigueiredo,ondemontouacampamentoafimdeobter“rancho[comida]paraaderrubada de nossos roçados”. Eles secaram a carne de uma anta e de algunspeixes.No dia 21,Otávio saiu do acampamento de barco para pegar ovos detracajá, enquantoMeirelles e Antonio arrumavam as coisas, já se preparandoparadeixarolocal.Numapraia,Otávioparouobarcoeseguiuapépelomato.Na volta, notou um grupo de garças voando “espantadas” e escutou “doisassovios”. Ao se aproximar da praia, viu que estava toda tomada por índiosconhecidoscomoMasko,“índiosarrediosnômades”,noentenderdeMeirelles.Eramcercadequarenta.QuandoviramOtávio,começaramadesatarosmaçosde flechas que carregavam. Otávio “correu a praia toda”, sempre perseguidopelosMasko, até chegar ao acampamento para alertar os dois amigos, que deimediato começaram a desmontar tudo para sair dali o mais rápido possível.Porém, não foram tão rápidos. Enquanto se dirigia à canoa, Meirelles viu asprimeiras “pontas de taboca das flechas passando pela encosta da praia”. Elerecuou.Conseguiuveroitoíndiosegesticulounadireçãodeles,tentandomanterumaconversa.

“Arespostafoiumachuvadeflechas.Oataquecomeçou”,escreveudepoiso indigenista. Antonio, que tinha cerca de setenta anos, andava devagar nasareiasdapraiaelogofoialcançadoporumíndio.Meirellessacouoriflecalibre22 que carregava às costas e deu um primeiro tiro para o ar, na tentativa de

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assustar oMasko,mas isso foi inútil. OMasko, segundoMeirelles, chegou a“dez ou quinze metros de Antonio e esticou o arco”. Meirelles atirou pelasegunda vez, agora na direção do índio, que foi atingido e tombou.Os outroscontinuaramgritandoesoltandoflechas.Cansadosdefugir,MeirelleseOtávioderammeia-volta e passarama correr emdireção contrária, aos gritos.Otáviodeu outro tiro para o chão.Os índios se assustaram e recuaram, dando tempoparaafugadotrio.

No dia seguinte, um grupo de índios jaminauá, inimigos dos Masko,retornouaoacampamentopararesgatarpertencesdeMeirellesqueficaramparatrás. Lá, disseram ter encontrado uma sepultura na praia coberta com areia epalha.

Até agorame encontro perplexo com o ocorrido. Em primeiro lugar pelasurpresaemquefomospegos.Emsegundo,porserobrigadoatiraravidadeumserhumanoeporúltimoesseserhumanoserumíndio,[aoqual]bemoucomdefeitos,tenhodedicadocatorzeanosdeminhavida.Oueraisso,ouentão, tenho certeza, não estaria aqui escrevendo este relatório, junto deminhamulherefilhosenemaquiestariammeuscompanheirosdeviagem.Feliz por estar vivo e profundamente amargurado pelo ocorrido. O velholemadomarechalRondon:“Morrerseprecisofor,matarnunca”…Nãotivetemponempazpararefletirnele.89

Essahistória, relatadaemofícioconfidencial, sóveioà tonana imprensaanosdepois, quando a ditadura já nãomais existia, por iniciativa deMeirelles, quepassouacontá-laaquemsedispusesseaouvir,a fimdefazeraspazescomopassado.Ocorridaem julhode1984, talvez tenhasidoaúltimamorteviolentadocumentada de um índio durante a ditadura. Como amarga ironia, oMaskomorreulogopelasmãosdeumdosprincipaisdefensoresdosíndiosnoAcre,quehavia criado atritos com a ditadura e se arriscado pela demarcação de terrasindígenas.

“Todosquevãodemaneiraououtraopinarejulgarminhaatitude,ofaçamcomcalmaejustiçadequemvêascoisasdefora.Tiveumafraçãodesegundoparadecidir.Preferiviver”,escreveuMeirellesem1984.

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Oapelodoindigenistaporumainterpretaçãomaistoleranteecompreensivaserviria para a análise de outros eventos ocorridos na ditadura, quandofuncionários públicos, mesmo com a melhor das intenções, acabaramproduzindoresultadoscatastróficos.

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EPÍLOGO(TALVEZUMAVITÓRIA)

DESDE O FIM DA DITADURA, EM 1985, O ESTADO BRASILEIRONUNCA DIVULGOU , de forma pública e abrangente, um balanço críticosobresuasaçõesemtornodaspopulaçõesindígenas.Algoparecidochegouaserensaiado entre quatro paredes na Funai, devidamente longe dos holofotes daimprensa.Aindaquedeformatímida,tratou-sedeumaprimeirareflexãoacercadoslongos21anosdaditadura.

Entre os dias 1o e 6 de maio de 1985, todos os delegados regionais etécnicos de vários departamentos do órgão reuniram-se na sede, em Brasília,paraapontar“diretrizesvoltadasparareformulaçãodapolíticaindigenistaoficiale reestruturação da Funai”. Da análise das atividades e do sistema deorganização da fundação, quase nada se salvou. No tema da demarcação dasterras, oBrasil estava “muitodistante”dasmetas estabelecidasnoEstatutodoÍndioe“aviolaçãodosdireitosdosíndios”semostrava“drástica”;naeducação,oscurrículosoferecidosaosíndiosignoravam“asespecificidades”etãosomentereproduziamos“currículostradicionaisdasociedadenacional”;oorçamentodaFunai continuavadiminuto, insuficienteparaprestar “umaassistênciadigna àscomunidades indígenas”; a administração do órgão priorizava “umacentralizaçãocadavezmaior,emdetrimentodeseucorpotécnicoedosprópriosíndios”;esua“políticaempreguista”resultounaconcentraçãodeservidoresnassedes, enquanto as áreas indígenas “apresentam-se carentes de servidoresqualificados”.1

Para osmais graduados servidores da Funai, o próprio objetivomaior dapolítica indigenistaeraumtremendoequívoco.O textoparecia ter sidoescritopelo Cimi, e não por agentes do próprio Estado. Poucos anos antes, seria

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facilmentetachadodesubversivoeagitador.

Umapolíticadeextermíniooudeintegraçãoassimilacionista,ondeosíndiose as sociedades indígenas foram encarados ou como empecilhos à plenaocupaçãodeumespaçoeconomicamentecobiçadopelasociedadenacional— e neste caso o extermínio foi praticado por recomendação régia eimperial— ou como entraves que deveriam ser reduzidos para posterior“educação”,quevisavatransformá-losemcidadãosprodutores,semdireitosespeciais.[…]ofatoéqueoEstado(dacolôniaàRepública)sempretentoumanobrarodestinodaspopulaçõesindígenasnacionaisnoterrenolimitadopelo extermínio puro e simples e pela proteção física para posteriorassimilação.

O Estatuto do Índio, baixado pela ditadura, teve por objetivo “reformaralguns princípios liberais e humanísticos já fixados na tradição brasileira semcontudodeixardefixarqueodestinodaspopulaçõesindígenasésua‘integraçãoàcomunhãonacional’”.

OschefesdaFunai chegaramaduras conclusões sobreopapeldoEstadobrasileiro,cujaprioridadeeram“açõesquevisamminararesistênciadosgruposindígenas que são capazes de oferecer maior resistência ao projeto deincorporaçãodeterrasaopatrimônionacional”.“Naverdade,oEstadobrasileirosempre atribuiu-se o direito de decidir soberanamente sobre o destino dassociedades indígenas, seus bens, seus territórios. Em nenhum momento dahistóriadopaísosíndiosforamouvidossobreestasdecisões.”

Osservidoresencaminharamosresultadosdareuniãoemumacartaaoentãoministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, além de uma lista tríplice para aescolhadonovopresidentedaFunaicomosnomesdeÁureoFalheiros,OdenirOliveiraeMarcosTerena.

Emoutracarta,opresidente interino,GersonAlves,alertouquea faltaderecursosdaFunai ea indefiniçãoquantoaonovopresidenteocasionaram“umafluxo desmedido de índios aBrasília” buscandomelhor assistência para suasaldeias. Ele calculou que trezentos índios apareciam diariamente na sede doórgão. Gerson afirmou que havia “uma escassez de recursos” na Funai, cujo

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orçamento “não atende sequer as despesas relativas ao primeiro semestre doano”.ComexceçãodapressãoindígenaemBrasília,pareciaserumacópiadascartas desesperadas enviadas pelo então diretor do SPI , Hamilton Castro, aoentãoMinistériodaAgriculturaduasdécadasantes,em1966.

As críticas apresentadas pelos servidores da Funai produziram poucosresultados. Nenhum dos nomes da lista tríplice foi escolhido pelo governoSarney. No ano seguinte, o órgão passou às mãos do futuro senador RomeroJucá, em uma gestão que estimulava a exploração das riquezas de terrasindígenas e acabou marcada por denúncias de graves irregularidadesadministrativas. A ideia dos servidores de que a Funai fosse subordinadadiretamenteàPresidênciadaRepúblicatambémnuncafoiacolhida.

Outro balanço feito ao final da ditadura produziu resultados mais concretos.Tratou-se de um mea-culpa sobre a política oficial de contato com índiosisolados.Começouaseconsolidara ideiadeumapolíticadenãocontato,queimplicava o desaparecimento dos processos de “atração” e “pacificação”. Ouseja, se os índios estavam vivendo bem isolados na mata, que assimcontinuassem. Na segunda metade da década de 1970, a direção da Funai jáconsideravaessapossibilidade,comoindicou,aindaquedemaneiranãomuitoclara,umafaladogeneralIsmarth:

Nós temos grupos ainda isolados, sabemos que não estão tendo qualquercompulsão.Então,nósosdeixamoslá,quietos.[…]Estãotranquilos,vamosdeixá-los.Quantomaistempoficaremnessasituação,melhor;nãoprecisamnem da Funai nem de ninguém, sobreviveram até agora.Mas até quandoelespoderãoficarnessasituação?2

AposiçãodeIsmartharigorexpressavaumgrandeavançoemrelação,porexemplo, à do ex-ministro do Interior José Costa Cavalcanti, que haviapreconizadoooposto:

Somente o contato, somente a integração gradualista, somente a procuradessa proteção, somente essas medidas que se tomam em relação àsempresas privadas, aos trabalhos do governo, só assim se procedendo, o

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índiopodesobreviver.Docontrário, édifícil a sobrevivênciadele, isoladonessesverdadeiros—comooschamei—museusdaselva.3

Nosanos1970,ocontatocomosisoladoseraumobjetivoaseralcançadodentrodapolíticageraldeintegração,comoexpressaumofícioconfidencialdoDepartamentoGeraldePlanejamentoComunitário.

Comacontinuidadedocontato,eobservandoasuperioridadedatecnologiadoscivilizados,oindígenavaipoucoapoucoabandonandoosseusmétodostradicionaisdecaçaepescaeadotandoosartefatoseosmétodosusadosnanossa sociedade. Este é o primeiro passo para a almejada integração dosindígenasàsociedadeenvolvente.4

Durante a CPI do Índio, em 1977, a discussão sobre contatar ou não osisolados apareceu em alguns depoimentos. O deputado federal Dias Menezes(MDB-SP)dissequeo idealseria“apenasdeixá-losondeelesexistem,nassuasáreas, sem contato com ninguém, sem precisar serem integrados”. Mas arespostatambémnãoeratãosimplesquantoadoparlamentar,dadoquemuitosíndios isolados podiam ter sua sobrevivência posta em risco por ataques de“civilizados” , como madeireiros e garimpeiros, por doenças ou por guerrasintertribais. Nessas condições, uma intervenção do Estado poderia impedir oextermíniodeumaetnia.

Foram tantos os equívocos, foi tão alta a mortalidade, que a Funai se viuobrigadaadarumpassoatrás.Emagostode1983,osertanistaSidneyPossueloelaborou uma série de sugestões para uma nova “política para os gruposarredios”. Após apontar “a pressão geral” que os grandes empreendimentos,como estradas e hidrelétricas, exerciam sobre os índios isolados, Possuelodefendeuarevisãodeconceitos“quepermanecemosmesmosdesdeoprincípiodo século, nãomais condizentes com as circunstâncias atuais”.As equipes deatraçãodaFunaieramacionadasapenas“emsituaçõesdeemergência”,eaindaassim “demaneira desordenada”. Era necessário antecipar-se às crises e fazerum amplo levantamento prévio sobre a localização dos grupos isolados.Possueloopinoupelacriaçãodeumacoordenadoriaespecíficaparaosisolados.

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5A proposta, porém, ficou estacionada por quase quatro anos nas gavetas daburocraciadaFunai.

Em 1984, ao menos no discurso o órgão indigenista já dizia ter incluídocomo política oficial a ideia de “não propiciar a chamada ‘pacificação’ oucontato, desde que não estejam em risco sua integridade territorial, cultural efísica”. 6 Mas não havia nenhuma mudança real na política e na estruturaadministrativa—aditaduraacabousemrevisaresseponto.

Muitos servidores da Funai tinham plena consciência da alta mortalidadeprovocada pelos contatos mal estruturados e mal planejados. Tais conclusõesficaram óbvias em junho de 1987, quando, sob a coordenação de Possuelo,algunsdosmaisconhecidossertanistasdopaíssereuniramemBrasília,entreosquais Afonso Alves da Cruz, João Evangelista de Carvalho, Fiorello Parise,SebastiãoAmânciodaSilvaeJulioReinaldodeMorais,oCamiranga,alémdosindigenistasJoséCarlosdosReisMeirellesJúnioreAntônioPereiraNeto,entreoutros.

Embora tenhamos consciência do heroísmo e do sacrifício de inúmeroscompanheiros,nuncapoderemosnosesquecerdeque,quandoestamosemprocesso de atração, estamos na verdade sendo pontas de lança de umasociedade complexa, fria e determinada, que não perdoa adversários comtecnologia inferior. Estamos invadindo terras por eles habitadas, sem seuconvite, sua anuência. Estamos lhes incutindo necessidades que jamaistiveram. Estamos desordenando organizações sociais extremamente ricas.Estamoslhestirandoosossego.Estamososlançandonummundodiferente,crueleduro.Estamos,muitasvezes,oslevandoàmorte.7

Ossertanistaschegaramàconclusãodequenãosedeviamaisfazercontatos“apenasporfazer”.

Énecessárioqueoconceitodeproteçãoaoíndioisoladosejareformulado.[…]AFunaideveriaimplementarmedidasdeproteçãoaosíndiosisoladoscujos territórios não estejam ameaçados ou cujas ameaças possam sercontornadas. […] O ato do contato só deverá ocorrer quando

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comprovadamente aquele grupo isolado não tiver mais condições desuportar o cerco de fazendas, invasões de seu território etc. Quandocompulsões incontroláveisocorrerem,aí então,o atode semanter contatoseriaumamedidaessencialdeproteção.

AFunaiporfimbaixou,em1987,umaportariaqueestabeleceuasdiretrizesparaumaCoordenadoriadeÍndiosIsolados,cujoprimeirodiretorfoiPossuelo.Odocumentoestabeleciaqueasaúdedosisoladosera“consideradaprioritária”,estimulava ações de campo para localizá-los geograficamente e obterinformações sobre eles, mas estabelecia que “a constatação da existência deisoladosnãodetermina,necessariamente,aobrigatoriedadedecontatá-los”.

Caso o contato fosse inevitável, havia uma série de prescrições edeterminações com os mínimos detalhes sobre a ação das equipes neleenvolvidas. No âmbito da saúde, por exemplo, a Funai iria providenciar aaquisiçãoeoenvioaocampodemedicamentos,enãoemqualquerquantidade,mas sim “suficiente para tratamento a nível de surto ou epidemia”.Comprometia-se também a exigir a comprovação de vacina de pessoas nãoíndias, mesmo que autorizadas a entrar na área, deveria retirar do lugar“qualquer pessoa que apresente doença infectocontagiosa”, impediria adistribuiçãode roupasusadasaos índios,entreoutrasmedidas simplesque,nopassado,poderiamtersalvadomuitosindígenas.

Em abril de 1988, após consultar documentos internos e entrevistar“sertanistas, antropólogos, técnicos indigenistas, índios e regionais”, a novacoordenadoriaapontouaexistênciade82gruposdeíndiosisoladosnosestadosdeAmazonas,Rondônia,MatoGrosso,Pará,Goiás,Acre,RoraimaeMaranhão.O destino desses povos dependeria da capacidade da Funai de reconhecer oserrosdopassadoeaplicarcomrigorasnovasdeterminações.

Entretanto, não mudou a tradicional visão da região amazônica, por parte dacúpula militar, como um vazio a ser ocupado e desenvolvido, por razões desegurançanacional,ideológicas,econômicaselogísticas.Nessecontexto,comodefinidoempelomenosumdocumentosecretoformuladoemmeadosdosanos

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1980peloConselhoNacionaldeSegurançaNacionaleapreciadopeloEstado-Maior das Forças Armadas, o índio aparece como um entrave aodesenvolvimento da região de “imenso potencial extrativo mineral e vegetal,agropecuário,industrial,pesqueiro,turístico,energético”.

Entretanto, sua [da Amazônia] ocupação e desenvolvimentosocioeconômico têmsidodificultadosoumesmoimpedidosporproblemasindígenas (com ingerências de ordem nacional e internacional),crescimentos desordenados em alguns pontos, narcotráfico, problemasfundiários, exploração predatória dos recursos naturais, deficienteinfraestrutura governamental na região e conflitos entre posseiros efazendeiros, garimpeiros, empresas mineradoras, organizações nacionais eestrangeiras “defensoras” dos índios, do equilíbrio ecológico e do“congelamento”(intocabilidade)damaiorpartepossíveldaAmazônia“embenefíciodofuturodessepatrimôniodaHumanidade”.8

O estudo secreto sugeriu uma “eficiente revisão do Estatuto do Índio, demodoaconduzireficazmenteosilvícolaàincorporaçãoàsociedadeenvolvente,passo inicial para que, junto com os demais brasileiros, possa participar doprocessoglobaldeintegraçãonacional”.

Em outro estudo também secreto, de 1986, o CSN chegou a associar oschamados“problemasindígenas”amanobrascomintenção“separatista”.

A crescente atuação de grupos de pressão (externos e internos) tem fortecoincidênciacomaaçãotípicadelentaeveladapreparaçãodemovimentosindígenas separatistas, incutindo os sentimentos de identidade racial eculturalprópriosediferentesdasociedadebrasileira,dedireitohistóricodepossedosoloesubsolodoseuterritório,comsuasfronteirasreconhecidasedemarcadas, e de autodeterminação. A ação desses grupos tem comopropósito imediato criar uma situação de isolamento dos indígenas emrelaçãoàsociedadenacional.

Os militares continuaram a falar em fantasmas de “enclaves” e riscos àsegurançanacional.

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Oprocessoadministrativodedemarcaçãodeterrasindígenas,inclusivecomoclarorespaldoconstitucional,possibilitaaformaçãodeenclavesindígenasinterditosàsociedadebrasileiraelevando,emníveisinaceitáveis,oriscodeperda de território nacional. Esse processo deve ser modificado paradiminuirsuavulnerabilidadeaosgruposcontestadores,evitandoaformaçãodecorposestranhosdentrodoconjuntoedasoberaniadopaís.9

***

Foi diverso o destino demuitos apoiadores dos índios nos anos 1960, 1970 e1980.AntonioCotrim,queabandonouaFunaiparanão sercoveirode índios,tornou-se comerciante emMaceió. Porfírio Carvalho escreveu um livro aindaduranteaditadurasobreocasowaimiri-atroari,noqualreproduziudocumentossigilosos do Exército. Por isso, disse ter sofrido ameaças e um processo combasenaLeideSegurançaNacional.ApósdeixaraFunai,elefoicontratadopelaEletronorte, que havia construído a hidrelétrica de Balbina na área indígena.Com os recursos da estatal, pôs em prática um programa específico para osíndios,bancandoprojetosnossetoresdesaúdeeeducação.Carvalhocontrolaoacessoeo trânsitonaárea indígenacommãode ferroeumasériedecâmerasquemandouespalharnaregião.Asimagenspodemservistasemtemporealnasede da Eletronorte em Manaus. Essa experiência é tanto elogiada quantocriticadaporindigenistas.Paracalaroscríticos,Carvalhoexibeasaltastaxasdenatalidadeentreosíndios,quesaíramdoscercadequatrocentos,nosanos1970,paramaisde1,5milnosdiasatuais.OutrodefensordosWaimiri-Atroarieumdos fundadores do Cimi, com muitas divergências com Carvalho, EgydioSchwadeviveemPresidenteFigueiredo(AM),apoucomaisdecemquilômetrosda terra indígena. Ele prossegue em investigações sobre asmortes dos índiosduranteaditadura.

Na segundametade dos anos 1990, o garoto yanomami órfão batizado deMarcelo,queem1973forasalvodaepidemiadesarampoporCarvalho—equecomeleesuafamíliapassouaviveremBrasília—,resolveuqueeraahoradevoltarparaseupovo.Comcercade25anos,eacontragostodeseuprotetor,elerumouparaa terrayanomami, trabalhandopelaFunai.Mesesdepois,Carvalho

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recebeuumtelefonemaurgentedeBoaVista.Marcelohaviacontraídomeningitena terra indígenaeestavaàbeiradamorte.Carvalhochegoua tempodevê-locomvidanohospital.Marcelomorreunosbraçosdoindigenista,quesempreochamoudefilho.10

ApoenaMeirelesmorreuem2004,enquantocolaboravacomaFunaiarespeitodosmesmosíndiosquehaviaajudadoacontatarnofinaldosanos1960.EleforadeslocadodeBrasíliaparaRondônialogoapósummassacrede29garimpeirosporCinta-Larga. Tendo passado tantos perigos em selvas,Apoenamorreu emplenacidade,portirosdisparadosporumassaltante,quandoretiravadinheiroemum caixa eletrônico no centro de PortoVelho.Um colaborador seu demuitosanos na mata, José Carmo Santana, o Zé Bel , morreu com um tiro no peitoenquanto manipulava uma caneta-revólver, em 1982 — não se sabe se foiacidenteousuicídio.11

Oprocurador JáderdeFigueiredo,autordo relatórioquecolaborouparaaextinçãodoSPI,morreuemacidentedeônibusem1975.Paraafamília,ocaso“nunca foi esclarecido”. 12 Outro acidente viário, este nos anos 1990 emBrasília,matouosertanistaEzequiasHeringer,oXará,quehaviadenunciadoasituaçãodosíndiospanará.

Oex-deputadoJurunaficouforadequalquermandatoeleitoralatémorrer,em17de julhode2002,aos58anos,emconsequênciadediabetes.Doisanosantes,foraencontradomorando“emumcasebre”,quedividiacomoutrasquinzepessoas,entrefilhosenetos,noqualpassava“amaiorpartedotempodeitado”,numacidade-satélitedeBrasília,vivendocom3milreaismensaisdesalárionocargodesecretáriodoPDT.Eledisseque“teveumavidainfeliz”eiria“morrerinfeliz”.13Poucoantesdemorrer,aoutrojornalistareconheceuterfeitopelosíndios,nomandatodedeputado,menosdoquegostaria.“Também,comoéqueeuiafazer?Eraoúnicoíndionomeiodeempresários,banqueiros,capitalistas,muitoscorruptosquedejeitonenhumiriamaprovarmeusprojetos.”14

Aabsolutamaioriadosmilitarescominfluêncianaáreaindigenistaentreosanos1960 e 1980 citados neste livro já havia falecido até 2015, entre os quais

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Bandeira de Mello, Ismarth, Albuquerque Lima, Antônio Nogueira, OtávioQueiroz, Gentil Paes, Demócrito de Oliveira, Pedro Botelho, Isnard Câmara,ManoelCarijó,PedroRondon,OlavoMendeseIvanHausen,segundorespostaauma consulta enviada pelo autor ao Comando do Exército, assim como LuísVinhas (1915-92), Clodomiro Bloise (1914-90), Amaro Ferreira (1927-88) eSaul Lopes (1923-88), conforme os dados repassados pelo Centro deComunicaçãoSocialdaAeronáutica.

A exemplo do caso Marçal de Souza, a morte do padre João Bosco Burnierpermaneceuimpune.Ocrimeocorreuem1976eoMinistérioPúblicodenunciounovepoliciaismilitarespelastorturasdasmulheressocorridaspelopadreepeloseuassassinato.Até1990,porém,oprocessodeuumpasseiono JudiciáriodeMato Grosso. Quando uma nova comarca era criada na região, o juiz sedeclaravaincompetenteparaseguirnofeito,encaminhandoosautosparaoutracidade. Assim, o processo começou na comarca de São Félix do Araguaia,passou para a deNovaXavantina e acabou na de Canarana, onde a principalavenidarecebeuonomedopadre.Em1991,oMinistérioPúbliconotouquenãohavia nos autos sequer as alegações finais do principal acusado, o soldado PMEziFeitosaRamalho.AJustiçasómandouintimá-lotrêsanosdepois,indicandoque havia sido expulso da corporação,mas vivia solto na cidade deBarra doGarças, como eletricista. Após circular por várias firmas de eletricidade dacidade,porém,ooficialdeJustiçanãolocalizouRamalhoemdezembrode1994.

Em agosto de 1997, o promotor de JustiçaGilbertoGomes percebeu que“lamentavelmente”deveria“anunciarquenadaháquefazernesteprocesso”.Ocrimeencontrava-seprescrito.AdenúnciafeitapeloMinistérioPúblicocontraospoliciaisfoiacolhidapeloJudiciárioapenasdezoitodiasdepoisdocrime,masoprocessosearrastouincríveisvinteanossemnenhuma“causadeinterrupção”doprazodeprescrição.Opromotorpediuaextinçãodaaçãopenal,nãosemantesmencionarqueocrimefora“repugnante”.Semteroquefazer,ojuizacolheuopedido de extinção em janeiro de 1998, encerrando amargamente mais umatípicahistóriabrasileiradecrimeeimpunidade.15

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Por outro lado, o término da ditadura por fim deu cores e dimensão a outrarealidadequedemorou a ser reconhecida.Essaboanotícia foi apresentada emprimeiro lugar nos círculos acadêmicos pelo antropólogo Mércio FerreiraGomes,quehaviatrabalhadoentreosíndiosguajajaraeguajá,noMaranhão.Em1977, ele encerrou sua tese de doutorado, defendida e aprovada pelodepartamentode antropologiadaUniversidadedaFlórida, sobaorientaçãodoprofessorCharlesWagley.Aorevisareverificarosdadosquecoletaraaolongodo trabalho,Mércio percebeu que algo impressionante ocorria entre os índiostenetehara. Nos anos 1940, eles haviam caído para 2,5 mil ou 3 mil, mas nadécada seguinte começaram a se recuperar numa espiral de crescimentopopulacional que dava muita esperança. “Eu vi que havia uma força internamuito grande na cultura indígena de viver e sobreviver. Há um desejo deautonomiaedepermanecerindígena.”16

Mércio percebeu que a mesma projeção poderia ser estendida a diversasoutras etnias. Em síntese, ele dizia que, apesar dos pesares, os índios vãosobreviver.Aprincípioumaconclusãocomoessa,emummomentodeembatescom a ditadura, não foi muito bem-aceita. Os principais antropólogos eindigenistas vaticinavam o contrário, que os índios brasileiros estavamdestinadosàassimilaçãoe,porfim,aoextermínio.Mércioencontroudesdémedescrençaaodisseminarseuachado.

Os números, porém, demonstravam de forma clara que, contra os pioresprognósticos, os índios estavam vencendo a batalha pela sobrevivência. Paraespantodosentusiastasdosprazeresedaforçaatrativada“civilização”,muitasetniasdemonstravamumapegoextraordinárioàsuaterraeaoseumododevida,dandoascostasàspromessasdascidades.Oobservadormaisatentopoderiaterconcluído algo semelhante. Em Mato Grosso do Sul, índios kaiowá haviamregressado a pé para suas terras e passavama invadir fazendas para recuperarsuas antigas posses; na Bahia, os Pataxó Hã-Hã-Hãe emergiram quase dascinzas; no Parque do Xingu, muitos costumes e tradições indígenaspermaneciampraticamenteintocados;emMatoGrosso,osXavantenãoabriammãodeseumododevida.OsMatis,quehaviamcaídode138paranoventanosdoisprimeiros anosdadécadade1980, subirampara155 em1992e176 três

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anosdepois.17Nos estertores da ditadura, a situação dos Parakanã também começou a

mudar.UmepisódiodescritopelaenfermeiraDnairdeOliveirademonstracomoumsocorrorápidocomeçavaasalvarvidas.Emfevereirode1983,elachegouaumabasecom22homense22mulheresparakanãnomunicípiodeSãoFélixdoXingu.Ochefedafrentedeatração,FiorelloParise,“jáprevendoumsurtodegripe”, pediu ajuda à Ajudância de Marabá. De fato, dias depois “toda acomunidadefoiacometidadefortegripe”.UmaviãodaFunaitrouxeremédiosinjetáveiseemgotas,soroglicosadoesoluçãofisiológica.Criançasemulheresprimeirorejeitaramosremédios,masdepoisosaceitaram.

“O estado geral de saúde da comunidade foi se agravando, deixando-osprostrados,começaram[a]apareceralgunscasosdepneumonia.”Aenfermeiramanteve contato com o médico Roberto Madeira, que aconselhou fazertratamento“àbasedepenicilinacristalina,alémdosmedicamentospaliativos”.Apóso terceiro dia de tratamento, foi observadauma “grandemelhora”.Umasemanadepois,foianotadaapenasumamorte,deumamulherdecemanosque“seencontravadebilitada”emrazãodeumincêndioocorridodiasantes.18

Em março do mesmo ano, novo surto de malária matou uma meninaparakanãdeoitoanos. “Aestruturadoposto indígenaeracompostadeapenasumacasacobertadepalhabruta,ondefuncionavaaenfermaria,farmácia,sedeeresidência.”Em5demarçohouveumavisitadopessoaldoCimi.Depoisqueaequipe foi embora, toda a comunidade ficou gripada. “Não fosse a grandequantidade demedicamentos” que levavam, talvez houvesse óbitos, pois “dos137membros da aldeia, não ficouum só sema forte gripe que semanifestoucomfaltadear,umaespéciedeasma”.19

Assim, pouco a pouco, começou a lenta recuperação dos Parakanã. Em1983, já somava 136 indivíduos o grupo anterior de 86 índios que haviasobrevividonaregiãodorioLontraapósocontatodesastradodosanosde1971-2.

O crescimento populacional foi reconhecido entre todas as etnias conhecidas.Em1957,onúmero total de índiosnopaís erade70mil, segundoumestudo

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oficial da Funai apresentado em2010.No ano de 1980, esse número já haviatriplicado,atingindo210mil.Vinteanosdepois,em2000,o totalde indígenaschegou a quase o dobro, com 400 mil pessoas. 20 A apresentação dessesnúmeroscontémumapolêmica,pois sóem1991o IBGEdecidiu incorporar osíndios ao seu censo.Mas basta fazer os recortes demográficos por etnia paraconfirmaracurvainequívocaparacima.

OsParakanã, que somavamapenas86 apóso contato, passarama939noano de 2010. 21Os Panará, quase exterminados em virtude da construção darodoviaCuiabá-Belém,saíramde82indivíduospara913.OsAsurinidoXingu,cuja catástrofe levou às denúncias do sertanistaCotrim, saíram de 63 pessoasapósocontatopara146em2010.

***

A retomada do crescimento populacional dos índios deveu-se à mudança dapolítica oficial indigenista, mas em grande medida aos próprios índios, queresistiram,retomaramterritóriosantigosenãoabandonaramseumododevida.Deveu-se ainda à ação de organizações não governamentais, antropólogos,indigenistas e missionários que trabalharam pela reorganização das entidadesrepresentativasdos indígenas eofereceramapoio jurídicoà lutapor terrasnãodemarcadas.

AUNI,umadasprimeirasorganizaçõesindígenas,foiumaexperiênciaquedeuerrado.Masaolongodosanos1980e1990osíndioscriaramumasériedeentidades,ampliandoesofisticandoseusvínculoseprocessosderepresentação.

Essasarticulaçõespermitiramoretornodealgunsgruposindígenasàssuasterras tradicionais, das quais haviam sido arrancados durante a ditadura. OsPanará, quase exterminados quando da abertura da BR -163, enfim saíram doParquedoXingue,comaajudadoNúcleodeDireitosIndígenas(NDI)—quedepoisajudariaaformaraorganizaçãonãogovernamental ISA—,conseguiramretornar auma terrademarcadanonortedeMatoGrossoapartir de1995.OsXavante deMarãiwatsede, alvo da violenta epidemia nos anos 1960, tambémconseguiram,apartirde2013,regressaràterradaqualhaviamsidoretiradosemaviõesdaFAB.Paraessesíndios,foramlongasviagens,queduraramquatroou

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cincodécadas.Muitos índios passarama exigir compensações pelos seus própriosmeios.

ComooEstadonãocorrigiuinjustiçasnemesboçouvontade,acontaacabounobolso dos motoristas. Os Tenharim, que tiveram suas terras cortadas pelaTransamazônica,emmaiode2007voltaramabloqueararodovia,exigindoumpedágiodesessentareaisparacaminhões,vintereaisparacarrosecamionetesedez para motos. 22 Em 2012, as guaritas do pedágio foram incendiadas edepredadas por moradores de Humaitá, depois que três homens foramassassinados ao atravessar a terra indígena. A Polícia Federal e o MinistérioPúblicoacusaramepediramaprisãodeíndios tenharim.Elesnãohaviamsidojulgadosatéoencerramentodestelivro.

Em relação aos Yanomami, a principal reivindicação dos indigenistas eativistas de direitos humanos era a demarcação do território. Em setembro de1976,apóspressõesdosantropólogosefuncionáriosdaFunai,oMinistériodoInteriorfechouosgarimposdeSurucucuseretirouos invasores.Aolongodosanos seguintes, no entanto, eles continuaramvindo emondas, penetrando e seestabelecendonoterritórioyanomami,numaprovadaincapacidadedogovernomilitarde impedir a ação ilegal.Nãoestavammais atrás apenasdecassiterita,mas também de ouro. Em maio de 1983, a Funai estimou a presença dequinhentosa2milgarimpeirosdeouronaregiãodeSantaRosa.Osgarimpeiros,“sem nenhuma assistência médica”, provocavam “o alastramento de doenças,principalmente de malária, que vem atingindo um alto índice em relação àsoutrasregiõesendêmicas”deRoraima.AprópriaFunaireconheciaqueseusdoispostosna região funcionavam“comescassos recursoshumanose financeiros”,ocasionandouma“assistênciaprecáriaaosíndios”.23

As seguidas invasões e a incapacidade do governo militar de encerrá-lasdeixaram claro aos indigenistas e ativistas de direitos humanos que ademarcação do território yanomami era uma medida inadiável para tentargarantir o futuro da etnia. A partir demeados dos anos 1970, antropólogos edefensores dos direitos indígenas, como a fotógrafa Claudia Andujar,organizaramaComissãoPró-ParqueYanomami(CCPY),talvezamaisarrojadaebem-sucedida campanha da sociedade civil pela demarcação de uma terra

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indígena no Brasil. Desde 1975, a principal reivindicação dos religiosos daMissão Catrimani apresentada à Funai era a imediata “delimitação das terrasindígenasesuademarcação,englobandotodasasaldeiasdogrupo”.24

Asinvasõeseasdoençascontinuaramnumritmofrenéticoatéque,entreofinaldosanos1980eoiníciodos1990,jánosgovernoscivisdeJoséSarneyeFernando Collor, uma catástrofe atingiu os Yanomami, atraindo a atençãointernacionalepondoemxequeasobrevivênciadaetnia.De1987aagostode1991, pelomenos354 índios perderamavidadevido a doençasdiversas (243apenasnoperíodo1987-9,sobogovernoSarney).Dessetotal,69,8%morreramde malária. Entre janeiro e maio de 1991, a Funai registrou 5132 casos dadoença.25

MasacampanhadeAndujaretantosoutrosafinalsurtiuefeito.Emmaiode1992,umdecretopresidencialhomologouoterritórioyanomami,comcercade9,6milhõesdehectares.Porironia,umdoscoronéisquehaviamapoiadoogolpede1964eumde seusmais ativos representantes, JarbasPassarinho, assinouaportariademarcatória,nocargodeministrodaJustiçadeCollor26.

Nadécadade2010,osdesafiosdos indígenas são imensos e seusopositores,poderosos, como a bancada de parlamentares ligada ao agronegócio noCongressoNacional,quefezandarumapropostadeemendaàConstituiçãoqueincluía, comoutraspalavras,omesmoprincípioda“emancipação”doperíodomilitar. A gestão Dilma Rousseff (2011-6) esvaziou a importância da Funai,deixando que interinos a governassem por quase três anos, bateu recordenegativo de demarcações e tirou do papel obras que atingiram os direitosindígenas, como a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, conformedenúncias feitas a organismos nacionais e internacionais por dezenas deentidades ligadas aos indígenas e ações judiciais movidas pelo MinistérioPúblicoFederal.NoprimeiroanodogovernoMichelTemer(2016-7),apósasuabasealiadatentarsemsucessoemplacardoisgeneraisdoExércitonocomandoda Funai, o órgão foi assumido por alguém indicado pelo partido de centro-direitaPartidoSocialCristão(PSC).OMinistériodaJustiçabaixouumaportariaque,naprática,ameaçaprocessosdedemarcaçãoemfasemaisavançadaaocriar

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um“grupodetrabalho”nãoprevistonaleiemvigor.NoJudiciário,umaturmadeministrosdoSTFpassouatomardecisõesquebarramdemarcaçõesdeterrasjáreconhecidascomoindígenaspeloExecutivo,soboargumentodequeosíndiosdeveriam estar nelas ou ter brigado judicialmente por elas quando dapromulgaçãodaConstituiçãode1988.Háaindaopreconceitomaisvergonhoso,que a internet agora permite conhecer em grande extensão. A respeito de umvídeo que mostrava índios cobrando pedágio emMato Grosso, por exemplo,internautas exortaram as pessoas a matá-los a tiros; outros disseram quepassariamporcimadelescomseuscarros.NoscomentáriossobreanotíciadequeumhelicópterodesapareceunaAmazôniaenquantotransportavaduasíndiasgrávidasparaumhospital,uminternautaescreveuqueeram“grávidasdebarrigapostiça, cheia de drogas” e outro sugeriu que o aparelho foi derrubado pelospróprios índios.Manifestações do gênero na internet são, longe de configurarexceção, o que transforma os índios numa das minorias mais odiosamenteatacadas e criminosamente discriminadas nas redes sociais e caixas decomentáriosnosportaisdenotíciasnoBrasil.

Porém, contrariando as previsões dos anos 1960 e 1970,muitas feitas deboa-fé,osíndiosnãosónãodesapareceramcomoregistraramaltosrecordesdenatalidade.AexemplodasmarchasdosGuarani, dosOfayé, dosPanará edosXavante, entre outros, que regressaram às suas terras contra a vontade daditadura,índiosdediversasetniasreafirmaramseumododevidaenãoabrirammãodesuaterratradicional.Nopapel,aprevisãodaditaduraeraclara—edecertamaneira ingênua.Segundoo regimemilitar,aoconheceromododevida“civilizado”naturalmenteosíndiosdeixariamsuasterras,abrindoespaçoparaoagronegócio. Porém, graças à inesperada e às vezes violenta tenacidade deles,nada disso aconteceu. Pelo contrário, eles passaram a reivindicar a posse deoutros territórios não reconhecidos pela União. O trabalho de ONG s,missionários e antropólogos pode explicar parte damobilização indígena,maselasimplesmente inexistiria seosprincipais interessadosdecidissemabrirmãode suas terras e tradições, rumando para as cidades. Para muitos brasileiros,prossegue sendo um choque ver que homens, mulheres e crianças podem serfelizes em uma sociedade completamente diferente daquela em que os

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“civilizados”vivem,comseusprazeres,seusluxoseseuconforto.Porém,cadaumàsuamaneira,commaioroumenorênfase,milharesdeíndiosdisseramnãoa outro modo de vida. Como diz “Cara de índio”, uma música gravada porDjavanem1978,podemvestirumaroupa,mascontinuamsendoíndiosemsualíngua, na sua terra e com suas tradições. Disseram vivamente que preferemviver entre os seus, a despeito do preconceito, da marginalização e daincompreensãogeral.Para eles, essa resistência silenciosa,porémexpressivaevibrante, representou por fim um tipo de vitória, entre tantas derrotas. Nessesentido, as centenas de índios que pereceram pela incúria, falta deprofissionalismo e truculência da ditadura acabaram por impor ao extintogovernomilitarumaderrotaparaalémdaqueletempo,queseexpressaacadadiaeacadahoraemqueumcurumimnascenointeriordeumamalocadealgumaaldeiaencravadanosconfinsdoBrasil.

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1.OcaciqueMarçaldeSouzadenunciaaopapaJoãoPauloIIosassassinatossofridosporindígenas,em1980.

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2.OsertanistaFranciscoMeireles,emfotode1972.

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3.ÀbeiradarodoviaCuiabá-Santarém,índiosKrenakahorepedemcomidae

caronaparaacidade,emmarçode1974.

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4.PertodeCuiabá,índioskrenakahorepedemcaronaparaacidade.

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5.PedroCasaldáligafalanaCPIdaTerra,naCâmaradosDeputados,emjunhode1977.

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6.AssembleiadechefesindígenasnaaldeiaxavantedeSãoMarcos,em1978.

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7.OantropólogoDarcyRibeiro,emfotode1978.

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8.AtopúblicorealizadoemSãoPaulo,emnovembrode1978,analisadecretodogovernoquepermitea

emancipaçãodoíndio,isoladoouemcomunidade.

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9.OcaciqueMárioJuruna,chefedosXavante,emfotode1980.

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10.TreinamentoparaintegraraGuardaRuralIndígena,sobocomandodaFunai,em1968.

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11.OsertanistaFranciscoMeirelescomíndioKayapódeKubenkrankrei,naregiãodorioIriri,noPará,em1957.

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12.TratorfazterraplenagemduranteaconstruçãodasegundaetapadarodoviaTransamazônica,em1972.

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13.OsertanistaCláudioVillasBôas,emfotode1972.

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AGRADECIMENTOS

Este livro não teria sido possível sem o incentivo da historiadora, cientistapolíticaeprofessoraHeloisaStarling,daUniversidadeFederaldeMinasGerais(UFMG),quegentilmentemeconvidouaescreversobrearelaçãoentreaditaduraeoíndio.DevoaelaeaoseditoresdaCompanhiadasLetrasOtávioMarquesdaCosta e Flávio Moura agradecimento pelas observações, paciência e vivointeresse pelo tema. Agradeço a todos os índios, sertanistas, indigenistas eantropólogos que se dispuseram ame atender e conceder entrevistas, às vezespor mais de um dia — citados ao final do livro. Sem a sua prestativacontribuição,teriasidoimpossívelreconstituirváriosdoseventosaquirelatados.FaçotambémreferênciaaocaciquexavanteAniceto,queaceitou,por telefone,mereceberemsuaaldeia,masfaleceuantesqueeuconcretizasseaviagem.

Na sede da Funai em Brasília, o chefe do Núcleo de Documentação doDepartamentodeProteçãoTerritorial(DPT),JoséJailsondeLimaSilva,ajudou-meprontamente,desdeaprimeiravisitaquelhefiz,aindanoanode2012.Nomesmosetor,devoagradecimentosaMarcela JhéssicaSantaBorbaeThaisdeAraújo Oliveira. A chefe do Serviço de Gestão Documental (Sedoc), MariaHelenaLuzGutembergCaldas,gentilmentemeauxiliouemtudooqueestavaaoseu alcance, assim como o agente de indigenismo Jorge Henrique RodriguesMalcher Lopes e as estagiárias Ana Beatriz Rodrigues Sampaio e BrendaRodriguesAraújo.OsservidoresdaBibliotecadaFunai sempremeatenderamdeformarápidaeeficiente.

NacoordenaçãoregionaldoArquivoNacional,emBrasília,recebioprontoapoiodePabloEndrigoFranco,PauloAugustoRamalho(emmemória),CamilaFrança, Raynes Adiron Castro, Vera Lúcia Duarte, Deisy Rosa Silva e Juraci

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Canabarro.Em São Félix do Araguaia, Pedro Casaldáliga e José María autorizaram

acesso e cópia de arquivos da prelazia. Egydio Schwade compartilhou seuarquivopessoalnoAmazonas.NoInstitutoSocioambiental(ISA),conteicomaajuda de Luiz Adriano dos Santos, Leila Maria Monteiro Silva, Maria InêsZanchetta e Letícia Leite. No Rio, tive a colaboração do jornalista SergioAntonio CamposMeireles, que me franqueou acesso a papéis dos sertanistasMeireles.NoMuseudoÍndio,noRio,CarlosAugustodaRochaFreire,RodrigoPiquet e IoneCouto gentilmenteme franquearam acesso aos documentos.NoCongresso Nacional, recebi o amplo apoio de Vanderlei Batista dos Santos,chefedaSeçãodeGestãodeArquivoIntermediário(Segai)daCoordenaçãodeArquivos (Coarq). Em Dourados, os professores da Universidade Federal daGrandeDourados(UFGD)NeimarMachadodeSousaePauloCimògentilmentemeenviaramarquivosdaamplacoleçãodedocumentossobreahistóriaguaraninaregião.

Além de me conceder uma longa entrevista, o missionário do CimiSebastião Carlos Moreira proporcionou-me contatos de entrevistados e meindicoupersonagensfundamentaisdahistóriadoconselho.Suacolaboraçãofoiinestimável. Da mesma forma, Cláudio Romero, Sidney Possuelo, PorfírioCarvalho, Odenir Pinto de Oliveira e Mércio Gomes não se limitaram a meconceder extensos depoimentos: também indicaram caminhos e recuperaramepisódios perdidos na memória de outros entrevistados. Waldemar Bettio, deMinasGerais,proporcionou-meacessoaopadre Iasi Júnioremeenvioucópiade relatório de grande interesse para a história dos Tapayuna. Os jornalistasMeméliaMoreira,LilianNewlandseFelipeMilanezmeajudaramcomcontatose a memória de certos eventos. Tomás Chiaverini, na TV Cultura, localizou eenviou-mecópiadeprogramasobreMárioJuruna.

NaFunai,inúmeraspessoasmeajudaramcomconversas,dicasesugestões,aexemplodeLeonardoLeninSantos,BrunoPereira,FabrícioAmorim,CarlosTravassos,HugoMeirelesHeringer,ClarisseJabur,MárioVilela,KellWadickeAriovaldo José dos Santos. A dedicação dessas pessoas aos povos indígenasdemandaria outro livro. LilianBrandt, da Funai, ajudou-me na entrevista com

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Mavirá. Também ressalto a atenção do general TheophiloGaspar deOliveira,ex-comandante militar da Amazônia, e de sua assessora, tenente Letícia. OssetoresdecomunicaçãosocialdoExércitoedaAeronáuticaresponderamaumpedidodeinformaçõesparatentarlocalizarumasériedemilitaresdoperíodo.

Agradeço a Paula Souza e a Fernanda Belo, da Companhia das Letras, eDanilo Marques, da UFMG , pelo trabalho de busca e seleção de imagens.AgradeçotambémaJuliaPassos,aIsabelCuryeaSilvanaSalernopelaleituracuidadosa.

Agradeço em especial ao amigo Mário Magalhães pela leitura de umaversão dos originais e pelos comentários preciosos que se mostraram todosacertadose indispensáveiseaLeonêncioNossa,quemeapresentouaoprojetodeStarling eda editora.Os jornalistas e amigosFabioBrandt,AnaFlor, JoãoCarlosMagalhães,TiagoOrnaghi,JoeldosSantosGuimarães,JailtonCarvalho,AmauryRibeiroJr.,ChicoOtávio,AndréBorges,MatheusLeitãoeLucasFerrazaturaramminhas conversas sobre omesmo tema. Evandro Eboli forneceu-mefotografias do monumento erguido pelos militares na BR -174. Agradeço aMércesDiasJúnioreVerônica,quetambémmesocorreramemumatraduçãodoguarani,ValdecirHanauereCléo,RuiLimaeJanete,MarcosRossieGabriela,WalterOgimaeElisa,JefersonCalheiroseAdriana,JoséLimaeÂngela,DaviIshy, Adriano Furtado e Dani, Catia Seabra, Mario Cesar Carvalho, AngelaKempfer, Ana Claudia, Tadeu Silva, Yelmo Papa e Ivan Massocatto pelaamizade por toda a vida. Também sou grato à Folha de S.Paulo , que meconcedeulicençadeumanoparaapesquisaeprimeiraversãoescritadoprojeto.Agradeço aos meus familiares, em especial a minha mãe, Yolanda, a minhasirmãsLígia eDiva, e ameus irmãos e sobrinhos.Nenhumdos citados acima,obviamente,éresponsávelporquaisquereventuaisfalhasouomissõesdolivro,quedevemsercreditadasexclusivamenteaoautor.

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ENTREVISTADOS E LOCAIS DASENTREVISTAS

AfonsoAlvesdaCruz,Afonsinho.Altamira,PAAltinoBerthierBrasil.PortoAlegre,RSAnastácioPeralta,Guarani.Dourados,MS

AntonioCotrimSoares.Maceió,ALAntonioIasiJúnior.BeloHorizonte,MG

AntonioQueirósCampos.Brasília,DF,portelefoneArgemiroEscalante,Guarani.AntônioJoão,MS

ArmandoCoelhoNeto.SãoPaulo,SP,portelefoneArturo,Mayoruna.AldeiadeSanMeireles,AMAtaídeFranciscoRodrigues,Ofayé-Xavante.Brasilândia,MS

BenignoPessoaMarques.Altamira,PABibianoSouza,Guarani.Dourados,MS

CaciqueKamayurá.Altamira,PACarlosAlbertoDutra.Brasilândia,MS

CarlosAugustodaRochaFreire.RiodeJaneiro,RJCláudioRomero.Brasília,DFCleonicePankararu.Araçuaí,MG

CleusadaSilva,Ofayé-Xavante.Brasilândia,MS

ClóvisAmbrósio,Wapixana.Brasília,DFClóvisBrighenti.Luziânia,GODaviKopenawa,Yanomami.Brasília,DFEdinadeSouza.Dourados,MS,portelefoneEgydioSchwade.PresidenteFigueiredo,AM

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Eleutéria,Guarani.AntônioJoão,MS

ElisaVilharva,Guarani.Dourados,MS

Erivelto,Apurinã.Brasília,DFFábioMartinsVilas.BeloHorizonte,MG

FábioTitiá,PataxóHã-Hã-Hãe.Brasília,DFFranciscoBarbosaClodovil,Apurinã.Brasília,DFFranciscoJosédosSantos,Potiguara.Brasília,DFFranciscoLoebens.Luziânia,GOGeraldaChavesSoares.Araçuaí,MG

GilmarFigueiredo.Tabatinga,AMHarima,Karajá.SãoFélixdoAraguaia,MT

JoãoBatistadaSilva,Wapixana.Brasília,DFJoãoBatistaFagundes.Brasília,DFJoãoMorel,Guarani.AntônioJoão,MS

JorgeGomes,Guarani.AntônioJoão,MS,eBrasília,DFJoséAlfredo,Krenak.Resplendor,MG

JoséLatinoTenazor.AtalaiadoNorte,AMJoséPataxó.Brasília,DFJoséPorfírioFonteneledeCarvalho.Brasília,DF,eManaus,AMJúlioGoes,Yanomami.Brasília,DFKaissuma,ouWaki,Mayoruna.AldeiadeSãoMeireles,AMKoi,ouJosédeSouza,Ofayé-Xavante.Brasilândia,MS

LaerteTetila.Dourados,MS

LídioEscalante,Guarani.AntônioJoão,MS

LuísShoquê,Mayoruna.AldeiadeSãoMeireles,AMManoelOliveira,Pataxó.Carmésia,MG

MarcelodaSilvaLins,Ofayé-Xavante.Brasilândia,MS

MariaLourdes,Pataxó.Carmésia,MG

MarioBordignon.Luziânia,GOMavirá,Kamayurá.SãoFélixdoAraguaia,portelefoneMayaluVillasBôas.SãoPaulo,portelefone

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Megaron,Txucarramãe.Brasília,DFMeméliaMoreira.EstadosUnidos,porSkypeMércioPereiraGomes.RiodeJaneiro,RJMichaelNolan.Luziânia,GONeimarMachado.Dourados,MS

OdenirPintodeOliveira.Brasília,DFPaulinhoPayakan,Kayapó.Brasília,DFPedroCasaldáliga.SãoFélixdoAraguaia,MT

Peri,Yanomami.Brasília,DFPio,Xavante,Brasília,DFRaimundoClementeMesquita.PelotãodeFronteiraPalmeirasdoJavari,AMReginaldoNevesGomes,Tuxá.Brasília,DFRobertodaSilvaAguiar.SantoAntôniodoAbonari,AMRomancioKretã,Kaingangue,Brasília,DFRomilda,Guarani.AntônioJoão,MS

RoniLiandes,Guarani.Brasilândia,MS

RosaLopes,Guarani.Japorã,MS

SabinoBenites,Guarani.Japorã,MS

SalvadorReynoso,Guarani.AntônioJoão,MS

SandroEmanueldosSantos,Tuxá.Brasília,DFSebastianaOliveira.Carmésia,MG

SebastiãoAmânciodaCosta.Manaus,AMSebastiãoCastilhoGomes,Kokama.Manaus,AMSebastiãoCarlosMoreira.Luziânia,GOSergioMeireles.RiodeJaneiro,RJSidneyPossuelo.Brasília,DFTiminigui,Araweté.Altamira,PATiula,Guarani.Japorã,MS

TuminCachispe,Mayoruna.AldeiadeSãoMeireles,AMValmirBastosTorres.Tabatinga,AMVanderleiBispo.Japorã,MS

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WalterFirmo.Recife,PE,portelefone

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NOTAS

INTRODUÇÃO

1.Sobreosnúmeros.Númerode70mil:ofícioenviadopelodiretorsubstitutodoSPI,LuizdeFrançaPereiradeAraújo,aodiretor-geraldeadministraçãodoMinistériodoInterior,AméricoSantiago,16ago.1967,RelatórioFigueiredo(citado,daquiemdiante,comoRF);númerode110mil:entrevistaconcedidapelomajoraviadorLuizVinhasNeves,diretordoSPI,aOEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,24dez.1965).

2 .AnuárioEstatísticodoBrasil:1964 ,doInstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística(IBGE),queestimou79,8milhõesdehabitantesparaaqueleano.

3.Postos:105,respostaassinadapelotenente-coronelMoacyrRibeiroCoelho,diretordoSPI,àCPIdoÍndio,noCongressoNacional,7maio1963;126:JoãoPachecodeOliveiraeCarlosAugustodaRochaFreire,Apresençaindígenanaformação do Brasil (Brasília: Secad/Unesco; Laced/Museu Nacional, 2006).Número de oitocentos: defesa oferecida nos autos da Comissão JaderFigueiredopelomajordaAeronáuticaDantonPinheiroMachado,chefeda7aInspetoriaRegionaldoSPI,1965.RF.

1.URUBUS

1.EntrevistaaoautoremMaceió,25nov.2013.2 .Entrevistaconcedidaà jornalistaElianaLucena,deOEstadodeS.Paulo ,comváriostrechospublicadospelojornalOPopular(Goiânia,16set.1979).ASI-Funai.ArquivoNacional(citado,daquiemdiante,comoAN).

3 .Procuradopeloautorparaumaentrevista,Passarinhoestava incomunicável

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em2013,comproblemasdesaúde,aos93anosdeidade.Suafamíliainformouqueelenãotinhamaiscondiçõesdereceberjornalistasparaentrevistas.

4.ExpedidoArnaudeAnaRitaAlves,“AextinçãodosíndiosKararaô—BaixoXingu,Pará”.BoletimdoMuseuParaenseEmílioGoeldi,n.53,26jun.1974.

5.DepoimentodofreiRobertoGomesdeArrudaàCPIdoCongressoNacional,21ago.1963.

6.Id.7.“ExpediçãodoSPIvaiafinalpacificarosferozesPacaasNovas”.AProvínciadoPará,Belém,19abr.1961.BibliotecadaFunai,Brasília.

8 . Entrevistas feitas pelo autor com diferentes sertanistas, como SidneyPossueloeAfonsoCruz,sobreomesmotópico.

9.RF,boletiminternodoSPIno57,desetembroadezembrode1962,relatórioelaboradopeloinspetorMeireles.

10.EntrevistaaoautoremAltamira(PA),5fev.2014.11 . “Vida de sertanista:A trajetória de FranciscoMeirelles” (Tellus , CampoGrande, ano 8, n. 14, pp. 87-114, abr. 2008), de Carlos Augusto da RochaFreire,doutoremantropologiasocialepesquisadordoMuseudoÍndio,RJ.

12.Ibid.

2.UMVAZIO

1.“Amazôniamudacomnovapolítica”.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.44,26jul.1965.

2 . Sobre a manobra e as inspeções, Lira Neto, Castello: A marcha para aditadura(SãoPaulo:Contexto,2004).

3 .ManoelDeodoro da Fonseca, “Mensagem dirigida aoCongressoNacionalpelopresidentedaRepúblicadosEstadosUnidosdoBrazil”,15jun.1891.RiodeJaneiro:ImprensaNacional;BibliotecadoSenadoFederal,1891.

4 . Celso Castro, Exército e nação: Estudos sobre a história do Exércitobrasileiro.RiodeJaneiro:FGV,2012.Sobre“ascinzas”,referênciadeCastroaCompêndiodaserasdaprovínciadoPará(Belém:UFPA,1969),deAntónioLadislauMonteiroBaena,militarehistoriador(1782-1850).

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5.GolberydoCoutoeSilva,Conjunturapolíticanacional:OPoderExecutivo& geopolítica do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, pp. 43-7.ColeçãoDocumentosBrasileiros.

6.AAmazôniaenós (RiodeJaneiro:BibliotecadoExército,1971,v.94),domajorMarsenoAlvimMartins, que atuou no 5oBatalhão de Engenharia deConstrução(BEC)de1966a1969.

7 . Documento transcrito em A Amazônia e nós , do major Marseno AlvimMartins,pp.48-50.

8.Leino5174,de27out.1966.9.Leino5173,de27out.1966.10.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.6,6jun.1969.11.“Conceitoestratégiconacional”,de1969,p.10.AN.12 . Relatório de visita a Suiá-Missu pela Comissão Externa da Câmara dosDeputados,22nov.2012.

13.Tabelaàp.115deVictimsoftheMiracle:DevelopmentandtheIndiansofBrazil (Nova York: Cambridge University Press, 1977), de Shelton Davis,diretordoCentrodePesquisasAntropológicasemCambridge,Massachusetts.Cita como fonte dos números umdocumento elaborado em1971 pelo bispodomPedroCasaldáliga.

14 . Depoimento do ex-funcionário da fazenda Diodato Vitalino Alves noprocesso no 95.0000679-0, que tramita na Justiça Federal de Mato Grosso,consultadopeloautornoTribunalRegionalFederalda1aRegião,emBrasília.

15.Autosdoprocessono95.0000679-0,quetramitanaJustiçaFederaldeMatoGrosso,consultadospeloautornoTribunalRegionalFederalda1aRegião,emBrasília.DepoimentodeDarioCarneiro.

16.DocumentárioValedosesquecidos(TucuraFilmes,2010),direçãodeMariaRaduan.

17.Autosdoprocessono95.0000679-0,quetramitanaJustiçaFederaldeMatoGrosso,consultadospeloautornoTribunalRegionalFederalda1aRegião,emBrasília.DepoimentodeDarioCarneiro.

18 . Depoimento do padre Bartolomeo Giaccaria à 5a Vara Federal de Mato

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Grosso,nosautosdoprocessono95.0000679-0.AutosconsultadospeloautornoTribunalRegionalFederalda1aRegião,emBrasília.

19 . Cópia nos autos do processo no 95.0000679-0, que tramita na JustiçaFederal deMatoGrosso.Autos consultadospelo autor noTribunalRegionalFederalda1aRegião,emBrasília.

20.CartadosenadorDarcyRibeiroaoministrodaJustiçaCélioBorja,19jul.1992.ArquivodoDepartamentodeProteçãoTerritorialdaFunai,Brasília.

21 .OrlandoVillasBôas eCláudioVillasBôas,Amarchaparaooeste . SãoPaulo:Globo,1994.

22 . Depoimento de Aturi Kayabi em Mariana Kawall Leal Ferreira (org.),Histórias do Xingu: Coletânea de depoimentos dos índios Suyá, Kayabi,Juruna,Trumai,TxucarramãeeTxicão .SãoPaulo:Fapesp;NHII (NúcleodeHistóriaIndígenaedoIndigenismo—USP),1994.

23.Paraesseparágrafo,oanterioreoseguinte,ibid.24 . Texto reproduzido na dissertação de mestrado da antropóloga ElizabethTravassosLins,XamanismoemúsicaentreosKayabi(RiodeJaneiro:UFRJ—MuseuNacional),1984.

25 . Depoimento do padreMarioOttorino Panziera nos autos do processo no95.0000679-0, que tramita na Justiça Federal de Mato Grosso. AutosconsultadospeloautornoTribunalRegionalFederalda1aRegião,emBrasília.

26.DocumentárioValedosesquecidos,op.cit.27.EntrevistaaoautornaFunaiemBrasília,jul.2015.28 . Depoimento do padreMarioOttorino Panziera nos autos do processo no95.0000679-0, que tramita na Justiça Federal de Mato Grosso. AutosconsultadospeloautornoTribunalRegionalFederalda1aRegião,emBrasília.

29 . Depoimento do padre Bartolomeo Giaccaria à 5a Vara Federal de MatoGrosso,nosautosdoprocessono95.0000679-0.AutosconsultadospeloautornoTribunalRegionalFederalda1aRegião,emBrasília.

30.DepoimentoprestadoporNoelNutelsàCPIdoÍndio,20nov.1968.ArquivodoCentrodeDocumentaçãoe Informação(Cedi)daCâmaradosDeputados,emBrasília(citado,daquiemdiante,comoCedi-Câmara).

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31 . Autos do processo no 001249/92, da presidência da Funai. Arquivo doDepartamentodeProteçãoTerritorial,daFunai,emBrasília.

32 . IaraFerraz,PatríciaMendonçaRodrigueseMarianoManpieri, “Relatóriodeidentificaçãodaáreaindígenamarãiwatsédé”.Brasília:Funai,1992.

33 . “Plano Nacional de Erradicação do Sarampo”, Secretaria de Saúde doEstadodeSãoPaulo,CoordenaçãodosInstitutosdePesquisa,1999.

34.MércioPereiraGomes,OsíndioseoBrasil.SãoPaulo:Contexto,2012.35.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,19jun.1966;LutaDemocrática,RiodeJaneiro,16/17jun.1966.

36.“Maxacalistocamostamboresdeguerra”.OGlobo,RiodeJaneiro,p.17,15jun.1966.

37 .Relatório deAtividades daAjudânciaMinas-Bahia do SPI , assinadopelochefedaajudância,AugustodeSouzaLeão,jan.1967.ComissãodeInquéritodoSPI(RF).

38.RelatóriodochefedopostoindígenaMarianodeOliveira,assinadoporJoséSilveira de Souza, agente do SPI , 31 mar. 1966. Autos da Comissão deInquéritodoSPI(RF).

39 . Telegrama urgente do chefe da ajudância, Augusto de Souza Leão, aodiretordoSPI,HamiltonOliveiraCastro,19abr.1967.AutosdaComissãodeInquéritodoSPI(RF).

40 . Depoimento do então capitão da PM-MG Manoel dos Santos Pinheiro àComissãodeInquéritodoSPI(RF).

41 . Relatório do chefe da Ajudância de Minas Gerais e Bahia, Augusto deSouzaLeão,aodiretordoSPI,17 jul.1967.AutosdaComissãodeInquéritodoSPI(RF).

42 .TermodeInquiriçãodocoronelHamiltonCastroàComissãodeInquéritodoSPI(RF),28ago.1967.

43.OGlobo,RiodeJaneiro,p.17,ed.matutina,23mar.1965.44.Ibid.,p.6,ed.matutina,26maio1966.45.Ibid.,p.6,ed.matutina,24maio1966.

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3.ESCÂNDALO

1.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,1mar.1966.2 .Carta aNeyBraga assinada por PedroPedrossian, 11 jun. 1966.Autos daComissãodeInquéritodoSPI(RF).

3.RelatórioassinadopelomarechalCândidoRondonemCuiabá,29dez.1896.AutosdaComissãodeInquéritodoSPI(RF).

4 . “Resumo histórico da legitimidade do direito do índio sobre a Colônia‘TerezaCristina’”, assinado pelo chefe da 6a Inspetoria do SPI , Hélio JorgeBucker,11jun.1966.

5.Leino2630,de3ago.1966,publicadanoDiárioOficialdoEstadodeMatoGrosso,Cuiabá,n.14779,4ago.1966.

6 . Degravação feita pelo SPI do noticiário de 14 set. 1967 na Rádio A Vozd’Oeste,comotítulo“SPIlevadesassossegonovaledoSãoLourenço”.AutosdaComissãodeInquéritodoSPI(RF).

7.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.42,15ago.1964.8.Ibid.,p.9,10mar.1966.9.Ibid.,18mar.1967.10.Ibid.,20abr.1967.11.RelatórioFinaldaComissãodeInquéritodoSPI(RF).12.NecrológiodeJáderCorreialidonaCâmaradosDeputadospelodeputadoPaes de Andrade (MDB-CE ),Diário do Congresso Nacional , Brasília, nov.1976.

13 . Relatório com a íntegra dos depoimentos prestados à CPI do Índioconstituídaemabrilde1968(DiáriodoCongressoNacional,Brasília,28abr.1971,suplementoaon.15).Cedi-Câmara.

14.Id.15 . Dado como desaparecido por mais de quarenta anos, o relatório foilocalizado nos arquivos do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, pelopesquisador Marcelo Zelic, coordenador do Projeto Armazém Memória, deSãoPaulo.

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16 . Ofício enviado por Jáder ao coronel Florimar Campelo, chefe doDepartamentodePolíciaFederal,solicitandoportedearma,11out.1967.

17.RF.18.Ibid.19.Ibid.20.OPortalKaingang,acessadoem30abr.2014,referecomo“Fonte:Funai”.21 . João Yunes, “Os níveis de saúde no município de São Paulo de 1961 a1967”.RevistadeSaúdePública,SãoPaulo,v.3,n.1,pp.41-50,jun.1969.

22.Considerandoapopulaçãototalestimadadoanode1970,de5,88milhõesno município de São Paulo. Fonte do número: “Memória das estatísticasdemográficas”, Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados).Disponível em: <produtos.seade.gov.br/produtos/500anos/>. Acesso em: abr.2014.

23.AnexoaoRelatórioFinaldaComissãodeInquéritodoSPI(RF).24.CartadosenadorDarcyRibeiroaoministrodaJustiçaCélioBorja,datadade19de julhode1992.ArquivodoDepartamentodeProteçãoTerritorialdaFunai,emBrasília.

25 . José D. Novais Patriota e Dimitrie Nechet, 2068:Missão e heroísmo naAmazônia.Disponívelem:www.reservaer.com.br.Acessoem:17ago.2016.O tenente-coronel Novais Patriota acompanhou os fatos na base deJacareacanga e o major Nechet estava de plantão em Manaus quando datragédia ligada a Cachimbo. Eles tiveram acesso a vários documentos daAeronáuticasobreoacidente.

26.Notaer—OJornaldaForçaAéreaBrasileira,Brasília,anoXXVI,n.11,2jul. 2003. Publicação do Centro de Comunicação Social da Aeronáutica(Cecomsaer).

27 . Coronel-aviadorAntonioRicieri Biasus e tenente-coronel-aviadorMiguelÂngelo Braga Grilo, “Força Aérea 2068: Trinta anos, missão cumprida!”.Disponível em: <www.rudnei.cunha.nom.br/FAB /br/fab2068.html>. Acessoem:17ago.2016.

28.JoséD.NovaisPatriotaeDimitrieNechet,op.cit.

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29.Ibid.30 . Item II do artigo 2o da lei no 5371, de 5 dez. 1967, que criou a Funai.Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5371.htm>.Acessoem:17ago.2016.

31 .ExposiçãodeMotivos transcrita emLedaMariaCardosoNaud,“Índioseindigenismo: Histórico e legislação” (Revista de Informação Legislativa ,Brasília, v. 4, n. 15/16, pp. 235-68, jul./dez. 1967). Biblioteca Digital doSenadoFederal,Brasília.

32 . Depoimento de Álvaro Villas Bôas à CPI do Índio, ago. 1968. ÁlvaroocupavanaépocaocargodediretordoDepartamentodeAssistênciadaFunai.

33.Id.34.DepoimentodeJosédeQueirósCamposàCPIdoÍndio,1977.35.OGlobo,RiodeJaneiro,p.5,25jun.1956.36 . Sobre o nacionalismo, o conservadorismo e o cargo de vereador,informaçõesdofilhodeJosé,AntonioQueirósCampos,por telefone,27jun.2014.

37.ArquivodoextintoMinistériodoInterior.AN.38.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.78,13jun.1968.39.Ibid.,p.5,6jun.1968.

4.ACRUZ

1.AmauryKruel,julhode1962,entãosecretáriodoCSN,àdireçãodoSPI,p.6213(RF).

2.OfíciodeMoacyrCoelho,diretordoSPI,aoministrodaAgricultura,4mar.1963.AutosdaComissãodeInquéritodoSPI(RF).

3.EntrevistadeValmirBatistaTorresaoautoremTabatinga(AM)emmarçode2015.

4.SilvanoSabatini,Massacre.SãoPaulo:Loyola;Brasília:Cimi,1998.5.EntrevistadeCotrimaoautor,emMaceió.6.Documento“Seminário:Funai/Missõesreligiosas”,produzidopelaFunaiemBrasília,1975.ASI-Funai.AN.

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7 . Relatório de João Calleri referido pelo ex-presidente da Funai José deQueirósCamposemseu livroAverdadedecadaum ,quenãochegoua serpublicado. Cópia datilografada no arquivo pessoal de Egydio Schwade emPresidenteFigueiredo(AM).

8 .A verdade de cada um , livro do ex-presidente da Funai José de QueirósCampos, que não chegou a ser publicado. Cópia datilografada no arquivopessoaldeEgydioSchwadeemPresidenteFigueiredo(AM).

9 . Para o parágrafo, relatório da frente de atraçãoWaimiri-Atroari, produzidopelo sertanista da Funai Gilberto Pinto Figueiredo, 27 out. 1973. ProcessoFunaiMEMO/042/DID/GDPI /81. Nudoc-DPT -Funai. Consultado e copiado peloautorem2012.

10.TextopostadonoBlogdoPeret(blogdoperet.blogspot.com.br/),2out.2010.O sertanista disse que a conversa ocorreu em 1966, mas depois afirma queMalcherdissequea“Funaiésoberana”.MasaFunaisófoicriadaem1967eentrouematividadeem1968.Émaisprovávelqueaconversa tenhasedadoem1968,poisnaquelemesmoanoocoronelCarijófezumconvênioebancouaexpediçãoCalleri.

11 . Para essa mensagem e as seguintes, textos integrais reproduzidos em Averdadedecadaum,livrodoex-presidentedaFunaiJosédeQueirósCampos,que não chegou a ser publicado. Cópia datilografada no arquivo pessoal deEgydioSchwadeemPresidenteFigueiredo(AM).

12 . Há duas divergências sobre esse ponto. Em seu livroWaimiri Atroari: Ahistória que ainda não foi contada (Brasília: Edição do autor, 1982), o ex-servidor da Funai José Porfírio Fontenele de Carvalho diz que a últimamensagem é do dia 26, não 31. Os livrosMassacre (op. cit.), de SilvanoSabatini, um padre amigo de Calleri, e A verdade de cada um , obra nãopublicada do ex-presidente da Funai José deQueirós Campos, trazem finaisdiferentes para amesma e “última”mensagemdo dia 31. SegundoSabatini,Calleri teriaencerrado:“Hojedemadrugada,umdenossosmelhoreshomensabandonou a expedição. Tudo indica que se faltarem orações as flechas nãotardarãoavoar”.NosescritosdeCampos,amensagemterminaassim:“Hoje

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demadrugada,umdosnossosmelhoresabandonouaexpedição.Arealidadeémuitodifícil.Aquiaboavontade, auniãoea serenidadede todaaequipeémuitomaravilhosa.Saudações.PadreCalleri”.Esteautorconsideraautênticaamensagemdodia31porquedoisautoresadivulgaramnaíntegra,eumdeleseraopresidentedaFunai na época, oque indicaque teve acesso aospapéisoficiais.

13.RelatóriodePeret,14jan.1969,dirigidoaopresidentedaFunaieanexadoaA verdade de cada um , livro do ex-presidente da Funai José de QueirósCampos, que não chegou a ser publicado. Cópia datilografada no arquivopessoaldeEgydioSchwadeemPresidenteFigueiredo(AM).

14.ArquivodoInstitutoSocioambiental(ISA),emSãoPaulo(citado,daquiemdiante,comoISA).

15.DepoimentodeOrlandoVillasBôasàCPIdoÍndio,noCongressoNacional,25maio1977.Cedi-Câmara.

16.Entrevistaaoautor,18fev.2015.17.OGlobo,RiodeJaneiro,26set.e14out.1969.18 . Relatório sobre levantamento bibliográfico e documental a respeito dosregistrossobreíndiosdoXingu,realizadoporLuizFernandoFerreiradaRosaRibeiro,estagiárioemantropologiadoDepartamentodePatrimônioIndígenadaFunai.ProcessoFunaino3568/82.Nudoc-DPT-Funai.

19.RelatórioproduzidopelaAssessoriaTécnicadaAgespdadireçãodaFunai,6abr.1982.ProcessoFunaino3568/82.Nudoc-DPT-Funai.

20.DepoimentodeJosédeQueirósCamposàCPIdoCongresso,29set.1977.Cedi-Câmara.

21 . Memória Globo, página institucional da Rede Globo de Televisão.Disponível em: <memoriaglobo.globo.com/perfis/talentos/hedyl-valle-jr-/trajetoria.htm>.Acessoem:17ago.2016.

22.Entrevistaaoautor,18fev.2015.23.DanielaBatistadeLima,“Vamosamansarumbrancoparapegarascoisas:Elementos da etno-história Kajkhwakratxi-jê (Tapayuna)”. Brasília:Departamento de Antropologia-UnB, 2012. Dissertação (Mestrado em

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AntropologiaSocial).24 .OEstado de S. Paulo , 15 jul. 1969, p. 9, eOGlobo , 16 jul. 1969, ed.matutina,Geral,p.5.

25 . Entrevista concedida a Marília Bellizzi Jaccoud e publicada em<www.velhosamigos.com.br/publicacao/gente-em-foco/joao-americo-peret>.Acessoem:30jan.2017.

26 . Ofício datado de 18 de agosto de 1969 e assinado pelo diretor DarcyMesquitadaSilva.AcervoASI-Funai.PastaJoãoAméricoPeret.AN.

27 . Relatório assinado pelo diretor-geral doDepartamento deAdministração,WilsondeSouzaAguiar.ASI-Funai.PastaJoãoAméricoPeret.AN.

28.“Exposiçãodemotivos”,22out.1969,assinadaporJoãoAméricoPeret.ASI-Funai.PastaJoãoAméricoPeret.NA.

29 . “Os tupinambás e os papagaios amarelos ou as relações entre Brasil eFrança entre os séculos XVI e XVII ”, de Mary Del Priore. Hist. Ensino ,Londrina,v.6,pp.11-32,out.2000.

30.Destetrechoemdiante:“RelatóriodaOperaçãoTapaiunaouBeiçodePau”,assinadopelo sertanistaVIIdaFunaiAntôniodeSouzaCampinas, datadodeCuiabá,18nov.1971.AcervoASI-Funai.PastaAntoniodeSouzaCampinas.AN.

5.NASSUASMÃOS

1.Osobrenomedosertanistaégrafadoeminúmerasreportagensdaépocacomo“Meirelles”. O autor se vale da assinatura do próprio sertanista e dedocumentosinternosdaFunaiparagrafá-locomo“Meireles”,comapenasum“l”.

2 . Sobre a filiação, Sagas sertanistas: Práticas e representações do campoindigenistanoséculoXX,deCarlosAugustodaRochaFreire(RiodeJaneiro:PPGAS-MuseuNacional-UFRJ,2005.Tese[DoutoradoemAntropologiaSocial]).

3.TextodafamíliaMeirelessobreahistóriadeFrancisco.ArquivopessoaldojornalistaSérgioMeireles,sobrinhodeFrancisco,RiodeJaneiro.

4.ColeçãoSiloMeireles,doadapelafamíliaaoAN,Brasília.

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5.TextodafamíliaMeirelessobreahistóriadeFrancisco.ArquivopessoaldojornalistaSérgioMeireles,sobrinhodeFrancisco,RiodeJaneiro.

6.Id.7.TermodeinquiriçãodeMeireles,22out.1967.RF.8 . “Vida de sertanista: A trajetória de Francisco Meirelles” (Tellus , CampoGrande, ano 8, n. 14, pp. 87-114, abr. 2008), de Carlos Augusto da RochaFreire,doutoremantropologiasocialepesquisadordoMuseudoÍndio,RJ.

9.TermodeinquiriçãoassinadoporOliveira,10nov.1967.RF.10 . Certidões emitidas pelo SPI em 1955, que declaram ter revisado a fichafuncionaldeMeireles.ArquivosdaAssessoriadeSegurançaeInformação(ASI)dadireçãodaFunai.AN.

11.EntrevistaconcedidaàjornalistaElianaLucena,deOEstadodeS.Paulo ,comváriostrechospublicadospelojornalOPopular(Goiânia,16set.1979).ASI-Funai.AN.

12.DefesaprotocoladaporFranciscoMeirelesnaComissãodeInquéritodoSPI(RF),6maio1968.ArquivodaAssessoriadeSegurançaeInformação(ASI ).AN.

13.DepoimentodeGamaMalcher,14set.1967.RF.14.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.7,24out.1967.15 . Sobre a indicação de Meireles, os sobrevoos e as aspas, “Relatório deFrancisco Furtado Soares Meirelles: Dezembro de 1968”, assinado porMeireles.Sedoc-Funai.

16.EntrevistacomApoenarealizadapelojornalistaSérgioMeireles,ago.1994.ArquivopessoaldeSérgioMeireles.

17.CurriculumvitaedeApoenafornecidoaoautorpelafamíliaMeireles.18 . “Relatório com fotografiasdoprimeiro contato comos índios cinta-larga,apresentado pelo inspetor Francisco Meireles”, jun. 1969. Arquivo dojornalistaSérgioMeireles.

19.EntrevistadeFranciscoMeirelesàjornalistaElianaLucena,deOEstadodeS.Paulo,comváriostrechospublicadosnojornalOPopular(Goiânia,16set.1979).ASI-Funai.AN.

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20.RobertoLinsker(Org.),OsúltimosdiasdoÉden:AsimagensdeW.JescovonPuttkamer.SãoPaulo:TerraVirgem,2005.

21 . W. Jesco von Puttkamer, “Brazil Protects Her Cinta Largas”. NationalGeographic,Washington,v.140,n.3,set.1971.ISA.

22.CartadeJudithBrownaogeneralBandeiradeMello,23abr.1971,comaslaudas datilografadas em inglês por Jesco, e resposta do diretor doDepartamentoGeraldeEstudosePesquisas(DGEP)daFunai,PauloMonteiroSantos,11maio1971.Sedoc-Funai.

23.Odocumentoreferencialé“Relatóriocomfotografiasdoprimeirocontatocomosíndioscinta-larga,apresentadopeloinspetorFranciscoMeireles”,jun.1969.ArquivopessoaldojornalistaSérgioMeireles.

24.LilianNewlands(Org.),Apoena:Ohomemqueenxerga longe .Colab.deAguinaldoAraújoRamos.Goiânia:PUCdeGoiás,2007,pp.138e142.

25 . Jean Chiappino, “The Brazilian Indigenous Problem and Policy: TheAripuanãPark”.Amazind/IWGIADocument,n.19,1975.

26.Parecerno054/84-AESPdadireçãodaFunai,assinadopelaantropólogadoórgãoIsaMariaPachecoRogedo,28set.1984.Sedoc-Funai.

27 .Die If You Must (Londres: Macmillan, 2003), do escritor e ativista dosdireitosindígenasJohnHemming.

28.DarcyRibeiro,Confissões.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1997.29 . Sobre o convênio, Parecer no 054/84-AESP da direção da Funai, assinadopelaantropólogadoórgãoIsaMariaPachecoRogedo,28set.1984.Sobreosnúmeros,levantamentofeitopelaFunaisobreoSILnosanosde1970e1971,semdata.AmbosnoSedoc-Funai.

30.SobreoapoiodeBandeiradeMelloeaspas,cartaassinadapelodiretordoSIL Internacional, DaleW.Kietzman, ao general Bandeira deMello, 14 abr.1971.Sedoc-Funai.

31.“CircularàsequipestécnicasdoSILtrabalhandoemtribosnasquaisaFunainãoatua”,documentodo“diretordoSIL”.Sedoc-Funai.

32 . Relatório “Situação dos índios do rio Tapaua”, da Funai, assinado pelomissionárioPaulE.Moran,2jan.1971.Sedoc-Funai.

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33 . Carta enviada pelo representante-geral do SIL no Brasil, PaulMullen, aoGrupodeTrabalhodaFunaisobreoSIL.Sedoc-Funai.

34 . Nomes e dados pessoais do casal, carta do diretor-presidente do SIL noBrasil,ArloLeeHeinrichs,aopresidentedaFunai,27jul.1972.Sedoc-Funai.

35.RelatóriosnoSedoc-Funai.36 . “Terrae conflitonoParquedoAripuanã”, textodeAbeldeBarrosLima,BettyMindlineCarmenJunqueira,set.1980.ISA.

37 . “Report of the ICRCMedical Mission to the Brazilian Amazon Region”,maio-ago.1970.

38.Ofíciode5demaiode1970assinadopelodiretordeAssistênciadaFunai,DarcyMesquita daSilva. Processo FNI/BSB /493/70, “Pedido de assistência asilvícolas”.ASI-Funai.AN.

39 . “Report of the ICRCMedical Mission to the Brazilian Amazon Region”,maio-ago.1970.

6.FARDADOS

1 .Jornal doBrasil (Rio de Janeiro, PrimeiroCaderno, p. 30, 27 ago. 1972),citado em José Gabriel Silveira Corrêa, “A proteção que faltava: OReformatórioAgrícola IndígenaKrenakeaadministraçãoestataldos índios”(ArquivosdoMuseuNacional,RiodeJaneiro,v.61,n.2,pp.129-46,abr./jun.2003).

2.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.64,16nov.1969.3 .Sobreonúmerode3mil,osobjetivos,onúmerode57e as instruções,OGlobo(RiodeJaneiro,Geral,p.14,ed.matutina,18nov.1969).

4.ImagenslocalizadaspelopesquisadorMarceloZelicedivulgadaspelaFolhadeS.Pauloem2012.

5 .Folha de S.Paulo (São Paulo, Ilustríssima, 11 nov. 2012), reportagem deLauraCapriglione.

6.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.32,6 fev.1970.As imagensdeJescointegramoacervodaPUCdeGoiás/IGPA.

7.Ibid.,p.70,9jun.1970.

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8.Sobreoaniversárioeopescador,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,p.52,21out.1973).

9 . Sobre esse parágrafo, depoimento do etnólogo e antropólogo Júlio CezarMelattiàCPIdoÍndio,noCongressoNacional,10ago.1977.Cedi-Câmara.

10 . Sobre basear-se na resolução e a frase de Queirós Campos, carta dopresidentedaFunaipublicadaemOEstadodeS.Paulo (SãoPaulo,p.72,3dez.1972).

11 . Para esse parágrafo, André Campos, “Ditadura criou cadeias para índioscomtrabalhosforçadosetorturas”.AgênciaPública,24jun.2013.Disponívelem: <apublica.org/2013/06/ditadura-criou-cadeias-para-indios-trabalhos-forcados-torturas/>.Acessoem:17ago.2016.

12 .GeraldaChavesSoares,OsBorundoWatu:Os índiosdorioDoce .BeloHorizonte:Cedefes,1992.

13.Sobreosquartéiseosequestrodecrianças,“Osbotocudosesuatrajetóriahistórica”, da antropóloga Maria Hilda Barqueiro Paraíso, emHistória dosíndiosnoBrasil,org.deManuelaCarneirodaCunha(SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1992).BibliotecadaFunai,Brasília.

14.GeraldaChavesSoares,op.cit.15.EntrevistaaoautornaterraindigenaKrenak,14dez.2013.16.DepoimentosdeSôniaeJuliaemGeraldaChavesSoares,op.cit.17.Ibid.18.EntrevistaaoautornaterraindigenaKrenak,14dez.2013.19 . Documento “Resumo do que foi discutido na reunião da SBI [SociedadeBrasileira de Indigenistas]”. Abaixo, foi datilografada a expressão:“DegravaçãodefitaK7”.ASI-Funai.AN.

20.EntrevistaaoautoremAraçuaí(MG),12dez.2013.21 .“SíntesedoproblemaexistentenaáreaaserdemarcadanosuldaBahia”,relatório da antropóloga Maria Hilda Baqueiro Paraíso, do convênio Funai-UniversidadeFederaldaBahia.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

22 . Cornélio Vieira de Oliveira, Barra Velha, o último refúgio . Londrina:Ediçãodoautor,1985.

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23 . “Discurso do presidente do sindicato [rural], Pedro Alexandre Leite(Resumo)”, durante reunião realizada no sindicato dos fazendeiros de PauBrasil,2jul.1984.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

24 . Informação no 024/DEID /99, assinada pelo chefe do Departamento deIdentificação e Delimitação (Deid) da Funai, Brasília, Walter Coutinho Jr.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

25 .“SíntesedoproblemaexistentenaáreaaserdemarcadanosuldaBahia”,relatório da antropóloga Maria Hilda Baqueiro Paraíso, do convênio Funai-UniversidadeFederaldaBahia.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

26 . Informaçãono024/DEID /99, assinada pelo chefe doDeid-Funai,Brasília,WalterCoutinhoJr.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

27 .SobreoarrendamentoaMaroneoparágrafoseguinte,“Relatório sobreahistória e situação da reserva dos postos ‘Caramuru e Catarina Paraguassu’,apresentadoàFundaçãoNacionaldoÍndio”,deMariaHildaBaqueiroParaíso,Salvador,1976.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

28 .“SíntesedoproblemaexistentenaáreaaserdemarcadanosuldaBahia”,relatório da antropóloga Maria Hilda Baqueiro Paraíso, do convênio Funai-UniversidadeFederaldaBahia.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

29.SobreCurteSamado,Informaçãono25/DID/DGPI,daantropólogadaFunaiMariaAuxiliadoraC.S.Leão,16out.1980.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

30.SobreosdadosbiográficosdeNimuendajúesignificadodonome,“Notassobre a vida e a obra de Curt Nimuendajú”, do antropólogo Egon Schaden(Revista de Antropologia , São Paulo, v. 15/16, 1967-8). Biblioteca DigitalCurt Nimuendajú. Disponível em: <biblio.wdfiles.com/local--files/schaden-1967-notas/schaden_1967_notas.pdf>.Acessoem:17ago.2016.

31 .“SíntesedoproblemaexistentenaáreaaserdemarcadanosuldaBahia”,relatório da antropóloga Maria Hilda Baqueiro Paraíso, do convênio Funai-UniversidadeFederaldaBahia.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

32.Memorandono55,11jan.1958.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.33 .CartaPrecatóriano07/80, doDepartamentodePolíciaFederal em Ilhéus

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(BA).Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.34.Memorandono467,assinadopelodiretordoDepartamentodeAssistência,Darcy Mesquita da Silva, 6 nov. 1969. Processo no 5935/76. Nudoc-DPT -Funai.

35.Informaçãono25/DID/DGPI,daantropólogadaFunaiMariaAuxiliadoraC.S.Leão,16out.1980.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

36.“SíntesedohistóricodeocupaçãodaáreadosPIsCaramurueParaguassupelo grupo indígena pataxó”, assinado por Hildegart Maria de Castro Rick,assistente do Departamento Geral de Patrimônio Indígena (DGPI ) da Funai,Brasília.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

37.Informaçãono25/DID/DGPI,daantropólogadaFunaiMariaAuxiliadoraC.S.Leão,16out.1980.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

38 . “Respostas a quesitos objeto da carta precatória no 07/80”, assinada pelachefe da Divisão de Identificação e Delimitação (DID ) da Funai, Brasília,MariadoRosáriodeMeloOliveira.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

39 . Ofício do delegado substituto da 11a DR da Funai, Andrade Freitas, aodiretor doDepartamentoGeral deOperações (DGO) , Brasília, 30mar. 1978.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

40.Informaçãono1149/78,cartamanuscritaporMariaHildaBaqueiroParaíso,Salvador,2jan.1979.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

41 . “Declarações prestadas pelo índio Samado dos Santos”, 28 set. 1972.Processono5935/76.Nudoc-DPT-Funai.

42 . Relatório dos representantes indígenas da V Assembleia Nacional doConselho Indigenista Missionário (Cimi), 25-29 jul. 1983. Arquivo noB10.1.9.18P09.11.ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT).

43 . “Relatório sobre a história e situação da reserva dos postos ‘Caramuru eCatarinaParaguassu’, apresentado à FundaçãoNacional do Índio”, deMariaHilda Baqueiro Paraíso, Salvador, 1976. Processo no 5935/76. Nudoc-DPT -Funai.

44.Sobreocostumenaépocamilitareainutilidadedomastro,entrevistacomAlexandrePataxó,umadasliderançasdaterraindígena,15dez.2013.

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45 . Conferência de Queirós Campos realizada durante jantar que lhe foioferecido pelo Clube da Dinamarca na sede da Associação Brasileira deImprensa,noRio,24out.1969.PastaCecíliadeQueirozCampos.ASI-Funai.AN.

46.SobreosdadospessoaisdeCecília,curriculumvitaeentregueàFunai.ASI-Funai.AN.

47.Portariano212assinadaporCampos,1set.1969.PastaCecíliadeQueirozCampos.ASI-Funai.AN.

48.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.72,3dez.1972.49 .Ofício semdata deCecília deQueirozCampos.PastaCecília deQueirozCampos.ASI-Funai.AN.

50.CurriculumvitaeentreguepelogeneralOscarJerônimoBandeiradeMelloàCPIdoCongressoNacionalquandodeseudepoimento,em1977.ArquivodoCongressoNacional.

51.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,pp.38-40,7set.1969.

7.COVEIRO

1.SobreavisitadeMédiciaoNordeste:OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,pp.16e18,7jun.1970),FolhadeS.Paulo(SãoPaulo,p.3,7jun.1970)eVeja(SãoPaulo,n.93,17jun.1970;n.94,24jun.1970).

2.Decretono61.330,de11set.1967.3.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,26jun.1969.4.EntrevistadeFranciscoMeirelesemOGlobo(RiodeJaneiro,27jun.1970).5 .DepoimentonaCPIdo Índio,noCongressoNacional, 25maio1977.Cedi-Câmara.

6 . Depoimento do general Bandeira de Mello à CPI do Índio, no CongressoNacional,4out.1977.Cedi-Câmara.

7 .Entrevistado sertanista JoãoEvangelistadeCarvalho (SPI /Funai) a CarlosAlberto Ricardo, Centro Ecumênico de Documentação e Informação,registradaemvídeo(câmeraMuriloSantos),emBelém,17out.1992.ISA.

8 . Relatórios do arquivo pessoal do sertanista Antonio Cotrim Soares, em

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Maceió.9.EntrevistaaoautoremBrasília,3dez.2013.10 . Sobre o tamanho e os dados de Pucuruí, relatório do coronel ClodomiroBloise,17jan.1971.ISA.

11 . Informação sobre o parentesco, entrevistas ao autor do sertanista AfonsoAlves, 5 fev. 2014, e do indigenista Benigno PessoaMarques, 6 fev. 2014,ambasemAltamira(PA).

12 . Esse parágrafo e seguintes sobre as frentes de atração, relatórios deClodomiroBloise,jan.de1971.ISA.

13.InformaçãodeGeorgeZarur,ProcessoFunai/BSB/344/71,29abr.1971.14.RelatórioaopresidentedaFunaidePauloMonteirodosSantos,diretordoDGEPdaFunai.ISA.

15.RelatóriodeClodomiroBloise,dabasedePucuruí,aopresidentedaFunai,generalBandeiradeMello,jul.1971.ISA.

16.RelatóriodocoronelAntônioNogueira,22fev.1972,localizadopeloautornasériede“DossiêsPessoais”daASI-Funai,nacaixarelativaaoservidorJoséApoenaMeireles.AN.

17.DespachomanuscritopelogeneralIsmarth.PastaJoséApoenaMeireles.ASI-Funai.AN.

18.SobreaautorizaçãodaFunai,oapoiodaMeridionaleomotivodaatração,relatório“PacificaçãodosíndiosAsurini:Xingu”,deAntoneKarlLukesch,26maio1971.ISA.

19.Daquiemdiante,livroBeardedIndiansoftheTropicalForest:TheAsuriniof the Ipiaçaba Notes and Observations on the First Contact and LivingTogether(Graz:AkademischeDruck,1976),deAntonLukesch.BibliotecadoISA.

20 . Relatório “Pacificação dos índios Asurini: Xingu”, de Anton e KarlLukesch,26maio1971.ISA.

21.EntrevistadeAntonioCotrimSoaresaoautoremMaceió,25nov.2013.22 . Relatório de Cotrim, 11maio 1971. Arquivo pessoal de Antonio CotrimSoares.

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23.RelatóriodafrentedeatraçãoasurininorioIpiaçaba,dirigidoporCotrimaocoronelPedrodaSilvaRondon,20out.1971(convémdestacarquenocorpodotextoCotrimdizqueodocumentoserefereàsatividadesdejunhoaoutubrode1972,naverdadeumerrodosertanista,poisorelatórioédatadodeoutubrode1971eeledeixariaaregiãoporvoltademarçode1972).ArquivopessoaldeAntonioCotrimSoares,emMaceió.

24.EntrevistadeAntonioCotrimSoaresaoautoremMaceió,26nov.2013.25.EntrevistaaoautoremBrasília,3dez.2013.26 . Relatório “Epidemia gripal que assolou comunidade indígena e suasconsequências”,semdata.ArquivopessoaldeAntonioCotrimSoares.

27.TelegramaconfidencialdaFunaideAltamiraaochefedaCoordenaçãodasOperaçõesdaTransamazônica(Cotz),generalIsmarthOliveira.ASI-Funai.AN.

28 . “Resumodos atendimentosmédicos e entregas demedicação às bases daTransamazônica”,documentoqueintegraapastaAntonioCotrim.ASI -Funai.AN.

29.Relatórioproduzidopela2aDelegaciaRegionaldaFunaiemBelém.ASI -Funai.AN.

30 .“Relatóriosobreaeleiçãodanovaárea indígenaparakanã”,26 jan.1979.ASI-Funai.AN.

31 . “Levantamento da situação atual dos índios parakanãs: Reserva IndígenaParakanã, abril 1983”, do antropólogo Antonio CarlosMagalhães LourençodosSantos,doMuseuParaenseEmilioGoeldi.ISA.

32.EntrevistadosertanistaJoãoEvangelistadeCarvalho(SPI/Funai)aCarlosAlberto Ricardo, Centro Ecumênico de Documentação e Informação,registradaemvídeo(câmeraMuriloSantos),emBelém,17out.1992.ISA.

33 . Carlos Augusto da Rocha Freire, Sagas sertanistas: Práticas erepresentações do campo indigenista no século XX. Rio de Janeiro: PPGAS-MuseuNacional-UFRJ,2005.Tese(DoutoradoemAntropologiaSocial).

34 . “Projeto Parakanã: Transferência das comunidades do Posto IndígenaPucuruí e Reserva Parakanã”, elaborado pelo antropólogo Antonio Carlos

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MagalhãesLourençodosSantos,emconvêniocomaFunai,dez.1977.ISA.35 . Relatório assinado pelo chefe do posto indígena da Funai na reservaparakanã,FiorelloParise,30nov.1979.ISA.

36 . Regina Aparecida Polo Müller, “Projeto de saúde para grupos recém-contatados: O caso Asurini”. In: VIII Conferência Nacional de Saúde, 1986,Brasília.Anais daVIIIConferênciaNacional de Saúde . Brasília: Centro deDocumentaçãodoMinistériodaSaúde,1987.ISA.

37 . “Project of Health Recuperation for the ‘Asurini’ Indians of Koatinemo(Brazil)”,deReginaAparecidaPoloMüller,RenatoDelaroleeWalterLaboniaFilho,1986.ISA.

38.EntrevistadosertanistaJoãoEvangelistadeCarvalho (SPI /Funai)aCarlosAlberto Ricardo, Centro Ecumênico de Documentação e Informação,registradaemvídeo(câmeraMuriloSantos),emBelém,17out.1992.ISA.

39.InformaçãoIndígenaBásicano088/82-Agesp/Funai.Processono3832/78.Nudoc-DPT-Funai.

40.EntrevistadosertanistaJoãoEvangelistadeCarvalho(SPI/Funai)aCarlosAlberto Ricardo, Centro Ecumênico de Documentação e Informação,registradaemvídeo(câmeraMuriloSantos),emBelém,17out.1992.ISA.

41.EntrevistadeAntonioCotrimSoaresaoautoremMaceió,26nov.2013.42.EntrevistaaoautoremMaceió,26nov.2013.

8.AMARCHA

1.EntrevistaconcedidaporBenignoemsuacasaemAltamira(PA),6fev.2014.2 . “Trabalho preliminar sobre a Funai e a Transamazônica”, do sertanistaCotrim.Arquivopessoal.SobreaaceitaçãodoprojetopelocomandodaFunai,entrevistadeCotrimaoautoreentrevistaconcedidaaoantropólogoEduardoViveirosdeCastro(ArquivoISA,noijd00045).

3 .Entrevistado sertanista JoãoEvangelistadeCarvalho (SPI /Funai) a CarlosAlberto Ricardo, Centro Ecumênico de Documentação e Informação,registradaemvídeo(câmeraMuriloSantos),emBelém,17out.1992.ISA.

4.EduardoViveirosdeCastro,Araweté:OpovodoIpixuna.SãoPaulo:Centro

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Ecumênico de Documentação e Informação, 1992. Biblioteca da Funai,Brasília.

5.Ibid.6 . Resumo de entrevista feita pela equipe do Centro Ecumênico deDocumentação e Informação com Antônio Lisboa Dutra, atendente deenfermagemdaFunai,10abr.1992,publicadoemEduardoViveirosdeCastro,op.cit.BibliotecadaFunai,Brasília.

7.EntrevistadeBenignoaoautoremAltamira(PA),6fev.2014.8.SobreachegadadosíndioseodilemadeCarvalho,entrevistadosertanistaJoão Evangelista de Carvalho (SPI /Funai) a Carlos Alberto Ricardo, CentroEcumênico de Documentação e Informação, registrada em vídeo (câmeraMuriloSantos),emBelém,17out.1992.ISA.

9.ConsiderandoaestimativadoIBGEparaoanode2013,com11,821milhõesdehabitantesnacidadedeSãoPaulo.

10.Oautorescreveonometalqualentendeuterouvido,nãopodendoconfirmarseagrafiaatendeàsnormasaceitasparaalínguaArawetê.

11 . Sobre a vida dos Arara, documento da Funai intitulado “Relatório deatividades da frente de atração que atua entre os quilômetros 70 e 110 darodoviaTransamazônicadotrechocompreendidoAltamira/Itaituba,noperíodode04/09/1970a05/11/1973”,assinadopelosertanistaAfonsoAlvesdaCruz,8nov.1973.Doc.noard00002.ISA.

12.Relatóriodafrentedeatraçãoarara,assinadopeloauxiliardeindigenismoWellingtonFigueiredo,4mar.1981.Processono4724/77.Nudoc-DPT-Funai.

13 . Resumo histórico sobre os índios Arara, assinado pelo sertanista SidneyFerreiraPossuelo,nafrentedeatraçãoarara,out.1980.ProcessoFunaiBrasíliano4724.Nudoc-DPT-Funai.

14.Id.15.Id.16.“Relatóriodeatividadesdafrentedeatraçãoqueatuaentreosquilômetros70 e 110 da rodovia Transamazônica do trecho compreendidoAltamira/Itaituba, no período de 04/09/1970 a 05/11/1973”, assinado pelo

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sertanistaAfonsoAlvesdaCruz,8nov.1973.ISA.17 . Sobre as tentativas de contato, as flechas e o intérprete, “Relatório deatividades da frente de atração que atua entre os quilômetros 70 e 110 darodoviaTransamazônicadotrechocompreendidoAltamira/Itaituba,noperíodode04/09/1970a05/11/1973”,assinadopelosertanistaAfonsoAlvesdaCruz,8nov.1973.ISA.

18.Decreto-Leino764/1969.19.OGlobo,RiodeJaneiro,OPaís,p.6,ed.matutina,26fev.1976.20.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,25fev.1976.21 . Sobre o acampamento,OEstado de S. Paulo (São Paulo, 26 fev. 1976).Sobreosnomes,ibid.(27fev.1976).

22.OGlobo,RiodeJaneiro,25fev.1976.23.Ibid.,OPaís,p.6,ed.matutina,26fev.1976.24.Ibid.25.EntrevistadeBenignoaoautoremAltamira(PA),6fev.2014.26 . “Relatório da frente de atração índios arara durante o período de 27/05 a30/06/77”,dosertanistaAfonsoAlvesdaCruz,30jun.1977.ProcessoFunaino4724/BSB.Nudoc-DPT-Funai.

27 . Declarações atribuídas a dirigentes da Funai e publicadas nos jornais dealcancenacionalem25e26fev.1976.

28 . “Relatório da frente de atração índios arara durante o período de 27/05 a30/06/77”,dosertanistaAfonsoAlvesdaCruz,30jun.1977.ProcessoFunaino4724/BSB.Nudoc-DPT-Funai.

29.SobreocontratocomoIncra,estimativadecolonos,interdiçãodaáreaeoavisodaCotrijuí,processoFunaino4724/BSB.Nudoc-DPT-Funai.

30.EntrevistadeAfonsoaoautoremAltamira(PA),5fev.2014.31.SobreoferimentoemBarbosa,“Relatóriodoocorridonodia13dejunhode1979”, do auxiliar de sertanista Gerson Reis de Carvalho, 22 jun. 1979. Omesmorelatóriocitanoveservidoresnamissão(Afonsohaviafaladoaoautoremonze)eadistânciadeoitoquilômetrosdoacampamentoatéaaldeiaarara.ProcessoFunaino4724/BSB.Nudoc-DPT-Funai.

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32 .Sobreo socorrodeaviãoehelicóptero,ocercodosAraraea evacuação,“Relatóriodoocorridonodia13dejunhode1979”,doauxiliardesertanistaGersonReisdeCarvalho,22jun.1979.ProcessoFunaino4724/BSB.Nudoc-DPT-Funai.

33.Sobreaextensãodarodovia,asduasinaugurações,oestadogeraldaestradaeo“tobogã”,SergioBuarqueeMarcosMagaldi,“OsestranhoscaminhosdaTransamazônica”(OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.64,29jan.1974).

34 . Curt Nimuendajú, “Os índios parintintin do rioMadeira”. Journal de laSociété des Américanistes , v. 16, pp. 201-78, 1924. Disponível em:<biblio.wdfiles.com/local--files/nimuendaju-1924-parintintin/nimuendaju_1924_parintintin.pdf>.Acessoem:17ago.2016.

35.EgonSchaden,“NotassobreavidaeaobradeCurtNimuendajú”.Revistade Antropologia , v. 15/16, 1967-8. Biblioteca Digital Curt Nimuendajú.Disponível em: <biblio.wdfiles.com/local--files/schaden-1967-notas/schaden_1967_notas.pdf>.Acessoem:17ago.2016.

36.SobrearelaçãocomoseringalistaDelfimeadecisãoderemoverosíndiospara a beira da estrada, “Parecer no 45”, de autoria da antropóloga MariaAntonieta Barbosa de Oliveira, 4 set. 1991. Processo Funai Brasília no5065/79.ISA,SãoPaulo.

37 . Para esse parágrafo e os seguintes que tratamdos efeitos da obra, “Açãocivilpública,compedidodeliminar”,15jan.2014,assinadapeloprocuradorda República Julio José Araujo Junior, que se valeu de documentos edepoimentosreunidosnoInquéritoCivilPúblicono1.13.000.000828/2013-87,quetramitouno5oOfícioCíveldaProcuradoriadaRepúblicadoAmazonas.Aaçãocivilpúblicarecebeu,na1aVaraFederaldeManaus,onúmero0000243-88.2014.4.01.3200.

38.EmpesquisanosjornaisFolhadeS.Paulo,OEstadodeS.PauloeOGloboe na revistaVeja , o autor não localizou nenhuma referência às duas etniasantesdoanode1979.

39.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.5,27nov.1979.40 . Miguel Angel Menendez, “Os Tenharim: Um grupo tupi à beira da

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Transamazônica”.Terra Indígena—BoletimMensal doG. E. I. Kurumim ,Araraquara.v.3,n.25,jun.1984.ISA.

41.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,29ago.1980.42 . VídeoOs Tenharim e aComissãoNacional da Verdade , com edição deOsmar Marcoli, missionário do Cimi, 2013. Disponível em:<www.youtube.com/watch?v=KieTHr8y_Gw>.Acessoem:17ago.2016.

9.TRINCHEIRAS

1.CartaenviadaporOrlandoVillasBôasaoprocuradordaRepúblicaMarceloLuizCastroRodopianodeOliveira,12fev.1995.ISA.

2.JohnHemming,DieIfYouMust.Londres:Macmillan,2003.3.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,26mar.1965.4.Ibid.,12dez.1967.5.Nofilme,opróprioCowelldescrevequeosembatesforamreencenadosaseupedido.

6 . Carta a José de Queirós Campos assinada por Villas Bôas, entãoadministrador-geral do Parque do Xingu, sem data. Como há dois ofíciosdatadosdeCamposnasequência,acartadosertanistadeveserdoanode1968.ISA.

7.OfícioassinadopelopresidenteJosédeQueirósCampos,semdata.ProcessoFunaino2710/94.Nudoc-DPT-Funai.

8 .RobertoGeraldoBaruzzi et al., “TheKren-Akorore:ARecentlyContactedIndigenousTribe”. In:KatherineElliott (Org.),Ciba Foundation Symposium49:HealthandDiseaseinTribalSocieties.Amsterdam:Elsevier,1977.ISA.

9.Ofíciode28fev.1973.ProcessoFunaideBrasíliano2710/94.Nudoc-DPT-Funai.

10 .Ofícioenviadoaoministrodo Interior, assinadopelopresidentedaFunai,OscarJerônimoBandeiradeMello,11jan.1973.ProcessoFunaino2710/94.Nudoc-DPT-Funai.

11 . Depoimento no documentário O Brasil Grande e os índios gigantes(Direção:AurélioMichiles.Produção: ISA.SãoPaulo: ISA, 1995.Vídeo, 47min,

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color.).12.TelegramasenviadosporVillasBôas,jun.1972.ASI-Funai.AN.13.Id.14.OGlobo,RiodeJaneiro,p.10,31maio1972.15 .TelegramadeOrlandoVillasBôaspara aFunai emBrasília, 7 jun. 1972.Nudoc-DPT-Funai.

16.NotadaAssessoriadeRelaçõesPúblicasdaFunai,Brasília,jul.1972.ASI-Funai.AN.

17.DepoimentodeCláudioVillasBôasnodocumentárioOBrasilGrandeeosíndiosgigantes(Direção:AurélioMichiles.Produção:ISA.SãoPaulo:ISA,1995.Vídeo,47min,color.).

18.NotadaAssessoriadeRelaçõesPúblicasdaFunai,23fev.1973.ASI-Funai.AN.

19 . Relatório reservado “da Subcoordenação da Cuiabá-Santarémcorrespondente ao primeiro semestre de 1973”, assinado pelo coronelOlavoDuarteMendes, 15 ago. 1973. Processo da Funai no 2710/94. Nudoc-DPT -Funai.

20.Id.21 .PlanodeTrabalhoparaoExercíciode1972,posto indígenaPerigara, emBarãodoMelgaço(MT ), assinadopelo chefedoposto indígena, JoséCarlosBarbosa,8out.1971.AN.

22.Sobreaobradoaeródromoeospagamentos,relatóriosdoencarregadodafrentedeatraçãodaFunai emSurucucus, áreayanomami,FranciscoBezerradeLima,enviadosaoadministradorregionaldaFunaiemRoraima,referentesaoperíododenov.1985aset.1986.AN.

23 . João Pacheco de Oliveira e Alfredo Wagner Berno de Almeida,“Demarcação e reafirmação étnica: Um ensaio sobre a Funai”. In: JoãoPachecodeOliveira(Org.),“Ospodereseasterrasdosíndios”.ComunicaçãoPPGAS/MuseuNacional/UFRJ,RiodeJaneiro,n.14,pp.13-75,1989.

24 . Relatório da “Expedição Kren Akarore”, assinado pelo sertanista-chefeAntônioCampinas,out.1973.ISA.

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25.RelatóriodaantropólogaValériaParise,4jan.1974,arquivopdz00039,ISA.26.“RelatóriodotécnicoindigenistaEzequiasPauloHeringerFilho,lotadonafrente de atração Peixoto de Azevedo”, confidencial, dirigido aosubcoordenadordaCoamaemCuiabá,2jan.1974.ISA.

27.Id.28.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,8jan.1974.OGlobo,RiodeJaneiro,12jan.1974.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,14jan.1974.

29.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,8jan.1974.30.Paraesseparágrafoeosseguintes,ASI-Funai.AN.31.Id.32 . Sobre a formação dos dois grupos e as distâncias, relatório do sertanistaFiorelloParisedirigidoàCoamadeCuiabá,25nov.1974.Arquivopzd00042.ISA.

33.Relatóriodejan.1975.ISA.34 . Depoimento no documentário O Brasil Grande e os índios gigantes(Direção:AurélioMichiles.Produção:ISA.SãoPaulo:ISA,1995.Vídeo,47min,color.).

35.Id.36.DepoimentodeOrlandoVillasBôasemprocessona7aVaraFederaldeSãoPaulo.ISA.

37.“OsPanarádoPeixotodeAzevedoecabeceirasdoIriri:História,contatoetransferênciaaoParquedoXingu”,1992.ISA.

38 . Depoimento no documentário O Brasil Grande e os índios gigantes(Direção:AurélioMichiles.Produção:ISA.SãoPaulo:ISA,1995.Vídeo,47min,color.).

39.Id.40.EntrevistaaoautoremBrasília,9nov.2013.41 . Carta de Heelas ao antropólogo Olympio Serra, então administrador doParquedoXingu,13abr.1975.ProcessoFunaino2710/94.Nudoc-DPT-Funai.

42.Id.43.RichardHosieHeelas,TheSocialOrganisationofthePanará,aGêTribeof

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Central Brazil . Oxford: Universidade de Oxford, 1979. 383 pp. Tese(DoutoradoemAntropologia).ArquivopessoaldomédicosanitaristaDouglasRodrigues.

44.Ibid.45.Ibid.46.SobreodestinodosíndiosPanará,verEpílogo.47.OfícioassinadoporIsmartheenviadoaoministroRangelReis,4fev.1975.ProcessoFunaino2710/94.Nudoc-DPT-Funai.

48 . Relatório da Superintendência de Assuntos Fundiários, vinculada aoMinistériodoInterior,6maio1976.ProcessoFunaino2710/94.Nudoc-DPT-Funai.

10.CAMINHOGRANDE

1.BoletimInternodoDNERno118,21maio1970.Obtidopeloautor juntoaoDepartamentoNacionaldeInfraestruturadeTransportes(Dnit)pormeiodaLeideAcessoàInformação.

2.DadossobreoBEC,“Síntesehistórica”informadaaoautorpeloMinistériodoExército,ComandoMilitardaAmazônia,apartirdeumpedidoformuladopormeiodaLeideAcessoà Informação.Odocumento,porém,está incompleto,interrompendo-se justamente quando passa a narrar “problemas” enfrentadospelo batalhão na rodovia.O autor pediu esclarecimentos e foi informado dequeaspáginasfaltantesnãoforamlocalizadasnosarquivosdoExército.

3 . “Relatório da frente de atração waimiri-atroari”, assinado pelo sertanistaGilbertoPintoFigueiredo,27out.1973.ProcessoFunaino2625/81.Nudoc-DPT-Funai.

4.RelatóriodeGilbertoPintoFigueiredo,sobreviagemrealizadaemjulhode1972,30out.1972.ProcessoFunaino3929/81.Nudoc-DPT-Funai.

5.Id.6.RelatóriodeGilbertoPintoFigueiredo,sobreviagemrealizadaemsetembrode1972,30out.1972.ProcessoFunaino3929/81.Nudoc-DPT-Funai.

7.EntrevistaaoautoremSantoAntôniodoAbonari(AM),13jan.2014.

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8.DepoimentoemvídeodeAndréNunes,publicadonoYouTube,28out.2012.Disponívelem:www.youtube.com/watch?v=7hICteSfbG0.Acessoem:17ago.2016.

9 . JoséPorfírioFonteneledeCarvalho,WaimiriAtroari:Ahistóriaqueaindanãofoicontada.Brasília:Ediçãodoautor,1982.

10 .Folha de S.Paulo , São Paulo, 1 fev. 1973.OEstado de S. Paulo , SãoPaulo,2fev.1973.OGlobo,RiodeJaneiro,2fev.1973.

11.ANotícia ,Manaus,15fev.1973.PastaJoséFonteneledeCarvalho.ASI -Funai.AN.

12.Ofícioconfidencialde8mar.1973.ASI-Funai.AN.13 . Sobre a reunião, ofício do sertanista Gilberto Figueiredo, 31 jan. 1974.Sedoc-Funai.

14.OGlobo,RiodeJaneiro,3e4jan.1974.Nodia4,reportagemintitulada“SubpostodoAlalaúemalerta:IminenteataquedosWaimiris”.

15.Sobreesseepisódio,relatório“ParaaverificaçãodasocorrênciasnoPostoIndígenadeAtraçãoAlalaúII,de30desetembroa9deoutubrode1974”,14pp.,assinadoporGilbertoFigueiredo,1nov.1974.ProcessoFunaino3929/81.Nudoc-DPT-Funai.

16.EntrevistaaoautoremBrasília,mar.2014.17.JoséPorfírioFonteneledeCarvalho,op.cit.18.Relatório“ParaaverificaçãodasocorrênciasnoPostoIndígenadeAtraçãoAlalaú II , de30de setembro a9deoutubrode1974”, 14pp., assinadoporGilberto Figueiredo, 1 nov. 1974. Processo Funai no 3929/81. Nudoc-DPT -Funai.

19 .Para essagrafia, o autor sevaledenotíciapublicadanoJornal doBrasil(Rio de Janeiro, 10 out. 1974). O autor não encontrou documentos oficiaissobreapassagemdePalmérionaFunai.

20.ProcessoFunaino2625/81,p.146.Nudoc-DPT-Funai.21.Areuniãoéreferidanoofícioconfidencialno042-2,assinadopelogeneralde brigadaGentil Nogueira Paes, 21 nov. 1974. Arquivo pessoal de EgydioSchwade.AmesmareuniãoécitadaemOEstadodeS.Paulo (SãoPaulo,p.

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22,22nov.1974).22.Id.23.Cartaendereçada”aoamigoAzamor”,assinadaporGilberto,21maio1974.ASI-Funai.AN.

24.EntrevistaaoautoremBrasília,mar.2014.25.JoséPorfírioFonteneledeCarvalho,op.cit.,p.74.26.Fac-símiledaportariaqueinformaaposentadoria.ASI-Funai.AN.27.EntrevistadeGilmarJoiadeFigueiredoCostaaoautor,31mar.2015.28.EntrevistaaoautoremÁguasClaras(DF),maio2015.29 .OGlobo (RiodeJaneiro,p.3,31dez.1974),OEstadodeS.Paulo (SãoPaulo,p.16,31dez.1974)eFolhadeS.Paulo(SãoPaulo,31dez.1974).AFolhamencionaapresençaapenasdeMaroaga,nãodeComprido.

30.VersãopublicadaemJoséPorfírioFonteneledeCarvalho(op.cit.,p.104).31.Sobreosdadosbiográficos,NotaàImprensadivulgadapelaAssessoriadeRelaçõesPúblicasdadireçãodaFunaiemBrasília,30dez.1974.ASI -Funai.AN.Entrevistaaoautordeumdeseusfilhos,GilmarJoiadeFigueiredoCosta,quecorrigiuonúmerodefilhosdanotadaFunai,decincoparadez.

32.Emseuarquivohistóricoon-line,OEstadodeS.Paulodisponibilizaofac-símile das páginas censuradas pela ditadura militar, o que permite ascomparaçõescomoquefoipublicado.

33.OGlobo,RiodeJaneiro,p.5,3jan.1975.34.Relatóriopreliminarsobreafrentedeatraçãowaimiri-atroari,assinadoporHildegart,27jun.1977.Sedoc-Funai.

35.EntrevistadeGilmarJoiadeFigueiredoCostaaoautor,31mar.2015.36 . Depoimento em vídeo de André Nunes, publicado no YouTube, 28 out.2012. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=7hIC teSfbG0>. Acessoem:17ago.2016.

37 . Histórico no site do 1o BIS. Disponível em:<www.1bis.eb.mil.br/index.php/historico>.Acessoem:26maio2014.

11.IRREVERSÍVEL

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1.OGlobo,RiodeJaneiro,Geral,p.6,ed.matutina,21nov.1969.2.Fac-símiledofolhetonoarquivopessoaldeEgydioSchwade.3.EntrevistaaoautoremSantoAntôniodoAbonari(AM),13jan.2014.4.RelatóriodeconvênioentreFunaieProjetoRadamproduzidoporgrupodetrabalhonomeadoem11nov.1975.ProcessoFunaiBSBno1778/82.Nudoc-DPT-Funai.

5.ProcessoFunaiBSBno1778/82.Nudoc-DPT-Funai.6.Osdoisdepoimentossãosubscritospelos índiosepelo indigenistaAntônioPereiraNeto.ProcessoFunaiBSBno1778/82.Nudoc-DPT-Funai.

7.RelatóriofinaldaCNV.Adatadechegadadosmilitaresem1972tambémédaCNV.

8 . Relatório “O tempo da guerra: Os Aikewara e a Guerrilha do Araguaia”,escrito por Iara Ferraz, Orlando Calheiros, Tiapé Suruí, Ywynuhu Suruí eentregueàCNVemmaiode2014.RelatóriofinaldaCNV.

9 . A Notícia , Manaus, maio 1975. Recorte no arquivo pessoal de EgydioSchwade.

10 .Opajénabeirada estrada (PortoAlegre:Escola Superior deTeologia eEspiritualidadeFranciscana, 1986), do coronel da reservadoExércitoAltinoBerthierBrasil.

11.OGlobo,RiodeJaneiro,p.3,6jan.1975.12.Entrevistaaoautor,10jan.2014.13.ACrítica,Manaus,14jun.1975.14.OGlobo,RiodeJaneiro,p.5,6jul.1976.15.Sobreessasériedecontatos,relatóriodasatividadesnaáreawaimiri-atroaride janeiro a maio de 1976, assinado pelos sertanistas Estêvão da SilvaRodrigues e Julio Reinaldo de Morais, da frente de atração waimiri-atroari(FAWA).ArquivopessoaldeEgydioSchwade.

16.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,PrimeiroCaderno,9jan.1976.17 .Folha de S.Paulo (São Paulo, 7 abr. 1977),O Estado de S. Paulo (SãoPaulo,7abr.1977)eOGlobo(RiodeJaneiro,7abr.1977).

18.ProcessoFunaino2625/81.Nudoc-DPT-Funai.

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19.Id.20 . “Relatório da frente de atração waimiri-atroari”, assinado pelo sertanistaGilberto Pinto Figueiredo Costa, 27 out. 1973. Processo Funai no 2625/81.Nudoc-DPT-Funai.

21 . “Nota à imprensa” divulgada pela Assessoria de Relações Públicas dadireçãodaFunaiemBrasília,30dez.1974.ASI-Funai.AN.

22.OfíciodosubcoordenadordaCoamaFonteneledeCarvalhoaocomandantedo6oBEC,2jul.1974.ArquivopessoaldeEgydioSchwade.

23.“OsWaimirispodemiranovomassacre”.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.14,7nov.1976.

24.“Relatóriosobreaáreaindígenawaimiri/atroari”,elaboradopeloGrupodeTrabalhoestabelecidopeladireçãodaFunaiem27dejunhode1981,formadopela antropóloga AngelaMaria Baptista, pelo engenheiro-cartógrafo LucélioCesarSabeFrancoeporGilbertoFerreira,chefedosetordecartografianoDF.ProcessoFunaino2625/81.Nudoc-DPT-Funai.

25.Oautortambémsoliciou,pormeiodaLeideAcessoàInformação,todotipoderelatóriooudocumentoproduzidopeloExércitosobreaáreawaimiri-atroarie a construção daBR -174. A resposta foi quase nula, com exceção de doisofícioscomregistrosburocráticossobreaobra.

26 . Entrevista ao jornal sindicalExtraClasse , publicação do Sindicato dosProfessores do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS ), out. 1997. Disponível em:<www.oocities.org/toamazon/toajaestamos.htm>.Acessoem:30jan.2017.

27.Entrevistaaoautor,29maio2014.28.EntrevistaaoautoremBrasília,2013.29.Fotografiasdomonumentofeitasem2008pelo jornalistaEvandroÉboliecedidasaoautor.

30.EntrevistaconcedidaporMont’Alverneaoautor.31.“RelatóriodaExpediçãoWaimiri-AtroariGrupodeSaúdeFUA /Funai”,10abr.1985.ProcessoFunaino2625/81.Nudoc-DPT-Funai.

32.EntrevistaaoautornacasadeAmâncio,emManaus,10jan.2014.33 . “Sarampo na área dosWaimiri-atroari”, da atendente de enfermagem da

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FunaiLeonidaEgufe,maio1981,e“EpidemiadesarampoentreosWaimiri-atroari”,2jun.1981,citadosem“1orelatóriodoComitêEstadualdaVerdadedo Amazonas: O genocídio do povo waimiri-atroari” (2012), do Comitê daVerdade,MemóriaeJustiçadoAmazonas,coordenadoresEgydioSchwadeeWilson C. Braga Reis. Ofício enviado ao coronel Paulo Moreira Leal,presidente da Funai, pelo servidor da Funai José Porfírio Fontenele deCarvalho,27fev.1982.Sedoc-Funai.

34.Relatório“GrupodeTrabalhoWaimiri-Atroari”,deStephenGrantBaines,entãoalunodepós-graduaçãoemantropologia,níveldoutorado,daUnB.

35.Atada81aSessãodoConselhoIndigenista,23jan.1975.AN.36.“AantropologianoestadodeSãoPaulo”.RevistadoMuseuPaulista,SãoPaulo,v.VII,1907.CópiadotextodisponibilizadapelaBibliotecaDigitalCurtNimuendajú.

37.DarcyRibeiro,Osíndioseacivilização.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1996.

38 .Martinho daVila,Kizombas, andanças e festanças . Rio de Janeiro: LéoChristiano,1992.Nolivro,oautordizqueosversoseram:“Praconstruir/Pradestruir”.Naversãogravadaanosdepois,porém,aparece:“Praconstruir/Praprogredir”.

39.Ibid.

12.CICATRIZ

1 . Sobre a divisão e a meta dos trabalhos, ofício assinado pelo sertanistaSebastiãoAmânciodaCosta,coordenadorda frentedeatraçãoyanomaminaFunaieendereçadoaodelegadoda10aDRdaFunai,emManaus,26abr.1976.Sedoc-Funai.

2.Id.3 . Documento “Parque Indígena Yanomami”, mar. 1980. Processo Funai no2192/84.Nudoc-DPT-Funai.

4.OfícioassinadopelosertanistaSebastiãoAmânciodaCosta,coordenadordafrentedeatraçãoyanomaminaFunaieendereçadoaodelegadoda10aDRda

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Funai,emManaus,26abr.1976.Sedoc-Funai.5 . Sobre a questão das línguas, denominações e tempode vida dos índios naregião, documento “Parque Indígena Yanomami”, mar. 1980. Cita trabalhoanterior do linguista Ernesto Migliazza (1972). Sobre as denominações dosYanomami, “Terra Indígena Yanomami”, 1984, do Departamento dePatrimônio Indígena (DPI ) da Funai. Sobre altura média, vestimenta,alimentação,artefatosecuidadocomosmortos,“RelatórioMissãoEspecialno28/81”,subscritoporumacomissãodaFunai,incluindoaantropólogadaFunaiAna Maria da Paixão. Os três documentos integram o Processo Funai no2192/84.Nudoc-DPT-Funai.

6 . Documento “Terra IndígenaYanomami”, 1984, doDPI da Funai. ProcessoFunaino2192/84.Nudoc-DPT-Funai.

7 . Estudo “Projeto Perimetral Yanomami”, de Kenneth Taylor e Alcida RitaRamos, do Departamento de Ciências Sociais da UnB, 6 jun. 1974. Sedoc-Funai.

8.EntrevistaaoautoremBrasília,mar.2014.9 . Documento “Parque Indígena Yanomami”, mar. 1980. Processo Funai no2192/84.Nudoc-DPT-Funai.

10.OfíciodochefedaAjudânciaAutônomadaFunaideRoraima,15jan.1974.Sedoc-Funai.

11.OfícioenviadopeloauxiliardafrentedeatraçãoaocoordenadordaCoama.“Relatório das atividades do trecho da Perimetral Norte compreendido entreCaracaraíeRioPadauari”,1out.1974.Sedoc-Funai.

12 . “Relatório do Grupo Roraima”, da Funai, assinado pelo coordenador,RubensAutodaCruzOliveira,10jun.1975.ISA.

13.Id.14.“DeclaraçãosobreaMissãoCatrimani”,assinadapeloantropólogoKennethI.Taylor,coordenadordoProjetoPerimetral-Yanoama,daFunai,epelopadreGiovanni Saffirio, responsável pelaMissãoCatrimani, para esclarecer dadoscontidosemreportagemdeACrítica,deManaus,26mar.1975.Sedoc-Funai.

15.Id.

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16.“PlanoYanoama”,relatóriotrimestralno001.Sedoc-Funai.17.Relatório“TheYanoamainBrazil”,1979,179pp.,doComitêparaCriaçãodoParqueYanomami,assinadoporAlcidaeTaylor, sob responsabilidadedoInternationalWorkGroupforIndigenousAffairs,deCopenhague,doSurvivalInternational,da Inglaterra,edoAnthropologyResourceCenter,dosEstadosUnidos.

18.OfíciodeCarloZacquini,29dez.1974.Sedoc-Funai.19.Documento“Seminário:Funai/Missões”,produzidoem1975pelaFunaiemBrasília.ASI-Funai.AN.

20.Veja,SãoPaulo,n.466,pp.71-2,10ago.1977.21 . Documento “Parque IndígenaYanomami”,mar. 1980. Processo Funai no2192/84.Nudoc-DPT-Funai.

22.DepoimentodeIsmarthnaCPI,set.1977.Cedi-Câmara.23 .AlcidaRitaRamos,“Opapelpolíticodasepidemias:OcasoYanomami”.SérieAntropologia153,Brasília,UnB,1993.

24 . Documento “Parque IndígenaYanomami”,mar. 1980. Processo Funai no2192/84.Nudoc-DPT-Funai.

25.EntrevistaaoautornacasadeAmâncio,emManaus,10jan.2014.26.Relatório“TheYanoamainBrazil”,1979,179pp.,doComitêparaCriaçãodoParqueYanomami,assinadoporAlcidaeTaylor, sob responsabilidadedoInternationalWorkGroupforIndigenousAffairs,deCopenhague,doSurvivalInternational,da Inglaterra,edoAnthropologyResourceCenter,dosEstadosUnidos.

27.Sobreobjetivos,númerosepessoalenvolvido,textoenviadoaoautorpeloDepartamento Nacional de Produção Mineral (DNPM ), em resposta a umpedidoformuladopormeiodaLeideAcessoàInformação.ODNPM informacomo fonte dos dados o texto “Projeto Radam: Uma saga amazônica”, deMárioIvanCardosodeLima(Belém:Paka-Tatu,2008).

28.OGlobo,RiodeJaneiro,p.17,27fev.1975.29.“Governadoracusaíndiosdeatrasaremodesenvolvimento”.OGlobo,RiodeJaneiro,p.6,1mar.1975.

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30 . Nota oficial do governador publicada na íntegra em O Globo (Rio deJaneiro,p.6,5mar.1975).

31.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,Nacional,p.4,27mar.1975.32.“PlanodeTrabalho”dagestãodopresidentedaFunai,PauloMoreiraLeal,provavelmenterealizadoem1982.ASI-Funai.AN.

33 . Sobre os garimpeiros e a conversa com Ismarth, “Mining and TheYanoama”, no relatório “TheYanoama inBrazil”, 1979, 179pp., doComitêpara Criação do Parque Yanomami, assinado por Alcida e Taylor, sobresponsabilidade do International Work Group for Indigenous Affairs, deCopenhague, do Survival International, da Inglaterra, e do AnthropologyResourceCenter,dosEstadosUnidos.

34.Id.35 . Relatório trimestral no 002 do Plano Yanoama, período jan./fev. 1976.Sedoc-Funai.

36 .Paraoparágrafo, relatórioenviadopelodelegadosubstitutoda10aDR daFunaideManaus,CarlosMarinhodosSantos,aopresidentedaFunai,4 fev.1976.

37.EntrevistaaoautoremBrasília,4dez.2013.38.ProcessoFunaino2192/84.Nudoc-DPT-Funai.39 . Relatório trimestral no 002 do Plano Yanoama, período jan./fev. 1976.Sedoc-Funai.

40.Id.41.Id.42.“RelatodaSituaçãoAtual”,assinadopelaantropóloga,5jun.1976.Sedoc-Funai.

43.OfícioenviadoporKesselringaopresidentedaFunai,26jan.1976.Sedoc-Funai.

44.OfícioenviadoporTayloraogeneralIsmarthOliveira,presidentedaFunai,4maio1976.Sedoc-Funai.

45.Relatório“TheYanoamainBrazil”,1979,179pp.,doComitêparaCriaçãodoParqueYanomami,assinadoporAlcidaeTaylor, sob responsabilidadedo

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InternationalWorkGroupforIndigenousAffairs,deCopenhague,doSurvivalInternational,da Inglaterra,edoAnthropologyResourceCenter,dosEstadosUnidos.

46 .Memorando confidencial enviado pelo chefe da ASI -Funai ao diretor doDGPCdaFunai,4nov.1980.ASI-Funai.AN.

13.COMOSEFOSSEUMNEGATIVO

1.Relatóriodeidentificaçãoedelimitaçãodaterra indígenaValedoJavari,p.54, produzido pela Funai e subscrito pelo antropólogoWalter Coutinho Jr.,maio1998.ISA.noOfd00064.

2.Id.,p.57.3.Id.,p.56,citandoofíciono04/70,doadvogadoda2oDR,RaimundoNonatoHolanda,19set.1970.

4.RelatóriosobreíndiosisoladosejácontatadosnovaledoJavari,jurisdiçãodaadministração regional de Atalaia do Norte, Funai, subscrito peloadministrador Gilmar Figueiredo Norte, 22 jan. 1990. ISA . Arquivo no0fd00041.

5 . Informação anexada por Valmir Torres à comissão de sindicância, p. 122,instauradapelaportariano406/PRES,23maio2000.Processono00193/2000.Autos obtidos pelo autor junto à Funai por meio da Lei de Acesso àInformação.

6.Sobreosataquesde1972e1974,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,p.14,21ago.1974)eOGlobo(RiodeJaneiro,p.5,21ago.1974).

7.OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,p.14,21ago.1974;p.13,30ago.1974)eOGlobo(RiodeJaneiro,p.5,21ago.1974).

8.Paraesseparágrafo,depoimentodeValmirTorres,nov.1975,nacomissãodesindicância, p. 122, instaurada pela portaria no 406/PRES , 23 maio 2000.Processono00193/2000.

9.Id.10 .AmauryRibeiro Jr., “AdministradordaFunai teria chefiadomassacre”.OGlobo,RiodeJaneiro,p.10,16abr.2000.

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14.ESTEBELOPAÍS

1.DepoimentodeBandeiradeMellonaCPIdoÍndio,4out.1977.Cedi-Câmara.2.PortariadoministrodoInterior,MárioAndreazza,aprovadiretrizesgeraisdoPlanodeAçãoImediatadaFunai,16fev.1981.ASI-Funai.AN.

3.MemorandododiretordoDepartamentoGeraldePatrimônioIndígena(DGPI)da Funai, Cláudio Pagano deMello, ao chefe daASI -Funai, versando sobre“pastacontendoarelaçãodetodasascertidõesnegativasexpedidasduranteosanos de 1970 a 1974, época da gestão do então presidente Oscar JerônimoBandeiradeMello”,18dez.1980.ASI-Funai.AN.

4 . Para esse parágrafo, documentos arquivados na pastaDarioCabrera.ASI -Funai.AN.

5 . Sobre os prêmios em Cannes: <www.festival-cannes.com/en/archives/artist/id/13589.html>.Acessoem:30ago.2016.

6.SobreadatadasuachegadaaoBrasil,FolhadeS.Paulo(SãoPaulo,p.30,21dez.1974).

7.Sobreopresenteeaideiadareserva,texto“Ohomemestáondeestãoosseussonhos”,deSérgioMoriconi,curadordaexposição“ArneSucksdorff,osuecodoCinemaNovo”,exibidanoCentroCulturalBancodoBrasil,emBrasília,de16a24mar.2010.

8.“RelatóriosobreasterrasdeMariaeArneSucksdorffeproblemasemrelaçãoàsmesmas”,assinadoporArne,dirigidoàFunai,7maio1977.ASI-Funai.AN.

9 .Relatório“CorrupçãonaFunai”, assinadopelodelegadodaPolíciaFederalElderAfonsodosSantos,5dez.1977.ASI-Funai.AN.

10.OfíciodeIsmarthaCoelho.ASI-Funai.AN.11.DeclaraçãoassinadapelodelegadoAntonioJoséCarvalhoLima.ASI-Funai.AN.

12.TermodedeclaraçõesdeArneàPolíciaFederal,10maio1977.ASI-Funai.AN.

13 . Ofício do superintendente regional da Polícia Federal, FernandoAntonioSant’Anna,jun.1977.ASI-Funai.AN.

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14.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.8,24dez.1978.15 . Para todo o parágrafo, Memória do cinema em Mato Grosso (Cuiabá:Entrelinhas,2008),deLuizCarlosdeOliveiraBorges.

16.“TheNambiquara”,deDavidPrice,semdata.ISA.17 . Sobre os ataques, Tristes trópicos , de Claude Lévi-Strauss (São Paulo:CompanhiadasLetras,1996).Umacartadamissãoevangélicadosanos1970dizqueoataqueocorreuem1930,enãoem1933.

18.“TheNambiquara”,deDavidPrice,semdata.ISA.19 . Relatório de atividades dos anos 1983 e 1984 da Ajudância do Vale doGuaporé,Funai,MinistériodoInterior.ISA.

20.“Garimpoinvadereservaelevantacidade”.FolhadeS.Paulo ,SãoPaulo,25dez.1996.

21.OGlobo,RiodeJaneiro,15fev.1960.22.OfícioenviadopelodiretordaSaimnoBrasilaNeyLand,chefedaDivisãodePlanejamentodaDiretoriaGeraldeEstudosePesquisasdaFunai,23mar.1971.Sedoc-Funai.

23 . “A filosofiabásica eobradaSouthAmerica IndianMission”, documentoentregueàdireçãodaFunaipeladireçãodaSaim,27jan.1971.Sedoc-Funai.

24.Relatóriosobreopostoindígenaoucolônia“Galera”,1974.Sedoc-Funai.25.OfícioassinadopelodiretordoDGEPdaFunai,PauloMonteiro,enviadoaogeneralBandeiradeMello,22out.1970.Sedoc-Funai.

26.CartadeSnyderaodiretordoDGOdaFunai,GersonAlvesdaSilva,31jul.1978.Sedoc-Funai.

27 . Processo Funai no 3092/71, ofício assinado pelo assistente do diretor doDGEPdaFunai,RubensAutodaCruzOliveira.Sedoc-Funai.

28.RespostaaPedidodeBuscafeitopelaASI-Funai,ofícioassinadoporNeyLand,diretorsubstitutodoDGEPdaFunai,3jul.1972.ASI-Funai.AN.

29 . Relatório do Centro de Trabalho Indigenista (CTI ),ONG criada nos anos1970paradefenderdireitosindígenas,10maio1980.ISA.

30.RelatórioenviadopeloreverendoMosheràFunai,jan.1974.Sedoc-Funai.31.CartaenviadapeloexecutordoconvênioFunai-UFBA,PedroAgostinhoda

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Silva,àdireçãodaFunai,4dez.1975.Sedoc-Funai.32.Relatóriosobreopostoindígenaoucolônia“Galera”,1974.Sedoc-Funai.33.AtadaprimeirasessãodoConselhoIndigenistadaFunai,27/28out.1975.ISA.

34 .Relatóriodaaldeia indígenaWáiKiSureferenteaoprimeiro trimestrede1975,assinadopelomissionárioHeinrichBerg.ISA.

35 . Relatório de Sílbene de Almeida, da Ajudância Autônoma do Vale doGuaporé,daFunai.ISA.

36.Id.37.AtadaprimeirasessãodoConselhoIndigenistadaFunai,27/28out.1975.ISA.

38 . Documento “II Assembleia de Chefes Indígenas”, do Cimi, 1975. Cedi-Câmara.CPIdoÍndio,1977.

39 . Relatório de Sílbene de Almeida, da Ajudância Autônoma do Vale doGuaporé,daFunai.ISA.

40 . Relatório de Sílbene de Almeida, chefe do posto indígena Sararé, aodelegadoda5aDRdaFunai,emCuiabá,22jun.1975.ISA.

41.Id.42.Relatóriono01/NVG/80dopostoindígenaManairissu,dochefeSílbenedeAlmeida,mar.1980.ISA.

15.INFAMANTE

1 .O Estado de S. Paulo , São Paulo, p. 6, 8 jun. 1965. Sobre o papel deCordeiro de Farias no golpe,Paulo Egydio conta:Depoimento aoCPDOC-FGV , org. deVerenaAlberti, Ignez Cordeiro de Farias eDora Rocha (SãoPaulo:ImprensaOficialdoEstadodeSãoPaulo,2007).

2.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.6,8jun.1965.3.Ibid.,p.7,1jul.1965.4.OGlobo(RiodeJaneiro,p.3,8 jun.1965), textodoenviadoespecialAcirMéra.

5.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.6,8jun.1965.

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6 . Texto de Sérgio Vahia de Abreu. Disponível em: <goiania-goias.blogspot.com.br/2007_11_01_archive.html>.Acessoem:31ago.2016.

7.DeclaraçõesaOGlobo(RiodeJaneiro,p.3,5mar.1971).8.Id.9 . Sobre as declarações de Bandeira deMello na sede da Funai em CampoGrande,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,22abr.1971).

10.SobreafaladeBandeiradeMelloeanotadaFunai,FolhadeS.Paulo(SãoPaulo,10abr.1971).

11 .DepoimentodeAntônioAlvesdosSantos emXavantina (MT ), tendo portestemunha Newton do Prado Cardoso, 2 set. 1952. ASI -Funai, direção daFunaiemBrasília.

12.DepoimentodeLeopoldoemXavantina(MT),tendoportestemunhasOlavode Siqueira Cavalcanti e Sebastião Garibaldi da Fonseca, 8 set. 1952. ASI -Funai,direçãogeraldaFunaiemBrasília.

13.TrêsreportagenspublicadasemOGlobo(RiodeJaneiro,capa,Geral,pp.1e6,26set.1952).

14.Históricodoservidor.ASI-Funai.AN.15 . Termos de declarações de Maria Deuzinha Reis e Altina Comapa naComissão de Inquérito Administrativo da Funai instituída pela Portaria771/P/76,26ago.1976.PastaFranciscoPauloLucenaRodrigues.ASI -Funai.AN.

16 . Para o parágrafo, termo de declarações do missionário norte-americanoGeraldRaymondKennelJr.àComissãodeInquéritoAdministrativodaFunaiinstituídapelaportaria771/P/76,1set.1976.ASI-Funai.AN.

17 . Telegrama de 21 jul. 1975. ASI -Funai. Pasta Francisco Paulo LucenaRodrigues.AN.

18.“PrimeirorelatóriodoAltoSolimões:BaciadoJavari”,assinadoporLucenaeenviadoaIsmarth,29set.1975.ASI-Funai.AN.

19.OGlobo,RiodeJaneiro,21set.1976.20.Cartade11out.1975,deAtalaiadoNorte(AM).ASI-Funai.AN.21.Memorandono003,13jan.1976.ASI-Funai.AN.

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22.Ofícioconfidencial,31mar.1976.ASI-Funai.AN.23 . Telegrama com protocolo de 4 fev. 1976. Ismarth despachou no papelsolicitando“medidasquepoderãosertomadas”.ASI-Funai.AN.

24.Ofíciode4mar.1976.PastaFranciscoPauloLucenaRodrigues.ASI-Funai.AN.

25 . Relatório assinado por Divaldo Rodrigues de Souza, comissão desindicânciavinculadaàCoama,14maio1976.ASI-Funai.AN.

26.RelatórioproduzidoporEdsonRamalhoJúniorsobreaviagemocorridanoprimeirotrimestrede1971,semdata.ASI-Funai.AN.

27.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,8jul.1971.28 . InformedaDivisãodeSegurançae InformaçõesdoMinter,enviadoàASIFunai,datadode19dedezembrode1972.

29 .BoletimAmazind , outonode1973,Genebra,Suíça.PastaOrlandoVillasBôas.ASI-Funai.AN.

16.OGRITO

1 . Frei Gil Gomes Leitão, “Prolegômenos de uma política missionária”. In:Encontro sobre Presença da Igreja nas Populações Indígenas, 18 a 22 fev.1968, São Paulo. Arquivo pessoal de Egydio Schwade em PresidenteFigueiredo(AM),consultadopeloautor,jan.2014.

2.Decreto“AdGentes:SobreaatividademissionáriadaIgreja”,assinadopelopapaPauloVIemRoma,7dez.1965.

3 . “Nos trilhos do Vaticano II ”, de Paulo Suess, missionário franciscano naprelaziadeÓbidos(PA),quesetornouummembroativodoCimi.

4.EntrevistaaoautoremPresidenteFigueiredo(AM),jan.2014.5.“DeclaraçãodeBarbadosI:Pelalibertaçãodoindígena”,assinadaporMiguelAlbertoBartolomé,GuillermeBonfilBatalla,VictorDanielBonilla,GonzaloCastillo Cárdenas, Miguel Chase-Sardi, Georg Grünberg, Nelly Arvelo deJiménez,EstebanEmilioMosonyi,DarcyRibeiro,ScouS.RobinsoneStefanoVarese,30jan.1971.

6.Sobreosnúmerosdareuniãoetrechosdodocumentofinal,BeneditoPrezia

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(Org.),Caminhandonalutaenaesperança:Retrospectivadosúltimos60anosdaPastoralIndigenistaedos30anosdoCimi(SãoPaulo:Loyola,2003).

7.OdocumentofoipublicadonaíntegraemOEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,28maio1970).

8 .“IVAssembleiaGeralOrdinária doConselho IndigenistaMissionário”, emCuiabá, 22 a 26 jul. 1981.ArquivoB10.1.7.30P1.6.Arquivodaprelazia deSãoFélixdoAraguaia(MT).

9 . Fala de Óscar Romero reproduzida no documentárioMonseñor: The LastJourneyofÓscarRomero(2011,FirstRunFeatures),direçãodeAnaCarriganeJulietWeber.

10.EntrevistaaoautoremSãoFélixdoAraguaia(MT),28out.2013.11.Informaçãono856,doCIE,abr.1972.ASI-Funai.AN.12.“RegimentoInternodoCimi”.Prelazia-Araguaia.13.ConformeentrevistatelefônicaaoautordafilhadeQueirósCampos,MariaDulceVieiradeQueirósCampos,jul.2014.

14.SobreopapeldeTemístocleseasemendasdaFunai,documento“EmtornodoEstatuto do Índio—Histórico”, assinado pelo padre JoséVicenteCésar,presidentedoCimi,15jan.1974.Prelazia-Araguaia.

15.Paraosdoisparágrafos,ibid.16 .KennethSerbin,Diálogosnasombra .SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2001. O autor escreveu que a comissão era conhecida apenas por “algunsmembrosprivilegiadosdaIgreja,altosoficiaismilitaresealgunsjornalistas”.

17 . Citado em Kenneth Serbin, ibid. Boletim Reservado no 6 da 1a RegiãoMilitar,acervoFGV/CPDOC.

18 .“RelatóriodoSecretariadodoCimi—1975/1979”,27 jul.1979.ArquivonoB10.1.5.08P12.12,p.8.Prelazia-Araguaia.

19.Id.20.Paraoparágrafo,“EsclarecimentosaopresidentedoCimi”, textoassinadopelopadreJoséVicenteCésar,26out.1976.Prelazia-Araguaia.

21.EntrevistadeIasiaoautoremBeloHorizonte,9dez.2013.22.Cópiaintegralde“Y-Juca-Pirama”.PastasobreairmãmissionáriaMercedes

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Setem.ASI-Funai.AN.23.InformaçãodoCIE,dogabinetedoministrodoExército,22maio1974.ASI-Funai.AN.

24 . Entrevista ao autor, fev. 2009, para reportagem publicada pelaFolha deS.Paulo(SãoPaulo,24fev.2009).

25 . Levantamento realizado pelo autor no arquivo on-line deOEstado de S.Paulo.

26 . “O índio e a Funai na imprensa diária”, levantamento realizado pelaAssessoriadeComunicaçãoSocialdaFunai,Brasília,1osem.1976.asi-Funai.AN.

27.Informaçãono194-A/75,daASI-Funai,enotadeprotestodaembaixadaemOslo.ASI-Funai.AN.

17.PERSONANONGRATA

1.Sobreopresente,textodivulgadonositedaComissãoPastoraldaTerra(CPT), quando da morte de Balduíno, em 2014. Disponível em:<www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/noticias-2/16-cpt/2057-o-adeus-a-dom-tomas-balduino>.Acessoem:31ago.2016.

2 .Sobreasvertentesea reuniãonoRio,entrevistacomEgydioSchwadeemPresidenteFigueiredo(AM),jan.1974.

3 . Para esse parágrafo, documento “Atividades do Secretariado do ConselhoIndigenistaMissionário”,doSecretariadodoCimi,18 jun.1975.ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia (MT) .Outrasdoações internacionaisestãorelatadasnodocumentonoB10.1.1.13P3.3domesmoarquivo.

4 . Documento “Conclusões da II Assembleia do Cimi — Regional Sul”.ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT),documentonoB10.1.2.01P4.4.

5.Id.6.Documento“IAssembleiaMissionáriaIndigenista”,27jun.1975.ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT).

7.ParaodestinodopadreTomásLisboa,verEpílogo.

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8.Sobreosdadosdareunião,documento“IIAssembleiadeChefesIndígenas”,doCimi.Cedi-Câmara.CPIdoÍndio,1977.

9.Documento“SeminárioFunai/Missões”,produzidopelaFunaiem1975.ASI-Funai.AN.

10.ASI-Funai.AN.11 . RobertoG. Baruzzi, “O problema de saúde das comunidades indígenas”.EscolaPaulistadeMedicina,12maio1977.

12.CartadosecretárioexecutivodoCimi,29mar.1974.Prelazia-Araguaia.13.ASI-Funai.AN.14.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.5,26set.1964.15.Ibid.,p.13,28set.1979.16.Sobreosdadosetranscriçõesdareunião,“Seminário:Funai/Missões”,306pp.,documentoproduzidopelaFunaiemBrasília.ASI-Funai.AN.

17.CartadeIsmarthdeAraújoOliveiraàpresidênciadoCimi,26maio1975.ASI-Funai.AN.

18.PastairmãMercedesSetem.ASI-Funai.AN.19 . Sobre a data do acompanhamento do CIE , “Histórico”, documento comcarimbodoExército,semdata.ASI-Funai.AN.

20.“Relatórioespecialdeinformações”,confidencial,produzidopelomajordeartilhariadoExércitoLuizGonzagadeToledoCamargo,enviadopelogovernoaolocal,14mar.1972.ASI-Funai.AN.

21 . Sobre o histórico da Codeara e o ataque do trator, “Relatório das açõesdesenvolvidaspelaSecretariadeSegurançaPública[deMatoGrosso]faceaomovimentoarmadoocorridonopovoadodeSantaTerezinha,Luciara,nodia3demarço de 1972”, assinado pelo coronel Ivo deAlbuquerque, responsávelpelaSecretariadeSegurançadeMatoGrosso.PastaPedroCasaldáliga.ASI -Funai.AN.

22.CorreioBraziliense(Brasília,p.5,9mar.1972)eAnexo“A”confidencialaorelatóriodeinformaçõesdaSecretariadeSegurançadeMatoGrosso.ASI -Funai.AN.

23.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,29maio1973.

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24.Ibid.,16dez.1975.25.Sobreacausadamorte,FolhadeS.Paulo(SãoPaulo,p.7,4jan.1979).26.Ibid.,p.8,10jan.1979.27.Sobreosdadosbiográficos:documentosdoarquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT),documentonoA10.1.06,emtextoatribuídoaDarcyLuizPivetta.

28 . Sobre os últimos dias e horas de Burnier, jornalAlvorada (São Félix doAraguaia,nov.1976).ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT).

29 . Sobre o assassinato, investigações e depoimentos, Processo Criminal no410/90,dacomarcadeCanarana,396pp.ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT).

30.TermodedeclaraçõesassinadoporPedroCasaldáligaaoinspetordaPolíciaFederalHélioMáximoPereira,16out.1976.ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT).

31.OautoradotaessagrafiacombasenoAutodeQualificaçãoeInterrogatórioenaPlanilhadeIdentificaçãodeRamalholavradospeladelegaciadeBarradoGarças (MT ), 17 out. 1976. Na planilha consta a assinatura legível de Ezi.ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT).Em2014,orelatóriofinalda Comissão Nacional da Verdade grafou o nome como “Ezy RamalhoFeitosa”.

32 . “A morte do padre João Bosco Burnier. Depoimento de dom PedroCasaldáliga”,12out.1976.DocumentoA10.1.05P1.1.ArquivodaprelaziadeSãoFélixdoAraguaia(MT).

33.EntrevistaaoautoremSãoFélixdoAraguaia(MT),28out.2013.34 .RelatórioEspecialde Informações,“SituaçãoemSanta IzabeldoMorro”,produzidopelaSeçãode InformaçõesdoSextoComandoAéreoRegionaldaAeronáutica.ASI-Funai.PastaMercedesSetem.ASI-Funai.AN.

35.Id.36.RelatóriodestinadoàASI-Funai,assinadoporservidorCarlosMilhomemdeSousa,24mar.1975.ASI-Funai.AN.

37 . “Dados sobre pessoa física irmãMercedes Setem”, documento produzido

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pelaFunai,10jul.1975.ASI-Funai.AN.38.<www.senado.gov.br/publicacoes/diarios/pdf/sf/1999/03/09031999.pdf>.39.OfíciodaCNA,19nov.1976.DossiêsobreCasaldáliga.ASI-Funai.AN.

18.OSSOSEPENAS

1.Sobreadatadonascimentoeocargo,textoassinadopelopadreWalterBini,inspetor salesiano. Missão Salesiana de Mato Grosso. Disponível em:<www.missaosalesiana.org.br/falecidos.php?id=297>. Acesso em: 17 ago.2016.

2.HansGüntherRöhrig,RodolfoLunkenbein:Umavidaemdefesadosíndios.Trad.eadapt.deJoséWinkler.SãoPaulo:SalesianaDomBosco,1982.

3.SobreaeleiçãoaoCimi,ibid.4.RelatórioassinadopelaantropólogaAnaMariadaPaixão,3maio1974.ASI-Funai.AN.

5.Sobreamissa,adeclaraçãodeVicenteCésareas“consagrações”,JornaldoBrasil(Riodejaneiro,17,28e26dez.1974).Arquivoon-lineISA.

6.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,18jan.1975.Sobreafoto,ediçãode1jan.1975.

7.Portariaconfidencial,21fev.1975.ASI-Funai.AN.8.EntrevistaaoautornocentrodeformaçãodoCimiemLuziânia(GO),4nov.2013.

9.SobreosconflitoseacitaçãoaMiguez,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,p.7,1jan.1976).

10 .Sobreosdoisparágrafos,AchacinadoMeruri:Averdadedos fatos (SãoPaulo:AGazetaMaçônica,[1980?]),deJoséMarioGuedesMiguez,irmãodofazendeiroMiguez.

11.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,12mar.1976.12.“DeclaraçãodoCimi”,25jul.1976.ASI-Funai.AN.13.HansGüntherRöhrig,op.cit.14 . Entrevistas concedidas por Sebastião e Rita aos jornalistas HenriqueGonzagaeAnaLagoa,publicadanaFolhadeS.Paulo (SãoPaulo, Ilustrada,

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17jul.1976).SobreotiroporenganoemBispo,OGlobo(RiodeJaneiro,p.6,17jul.1976).

15.JoséMarioGuedesMiguez,op.cit.16.“BororosiniciamfuneraisdomissionárioLunkenbein”.FolhadeS.Paulo ,SãoPaulo,18jul.1976.

17 . Sobre o ritual, “Funerais entre os Bororo: Imagens de refiguração domundo”(RevistadeAntropologia,SãoPaulo,v.49,n.1,2006),daprofessoradoDepartamento deAntropologia daUSPSylvia CaiubyNovaes.Disponívelem:<www.scielo.br/pdf/ra/v49n1/v49n1a09.pdf>.Acessoem:30ago.2016.

18.“DeclaraçãodoCimi”,25jul.1976.ASI-Funai.AN.19.ConformetranscriçãoematadaCâmaradosVereadoresdeManaus.PastaAntônioIasi.ASI-Funai.AN.

20.Ofícioconfidencial,27maio1975.ASI-Funai.AN.21 . Sobre esse episódio, documentos do arquivo da ASI -Funai, pasta dodelegadodaFunaiemCuritibaFranciscoNeves.AN.

22.OfíciododelegadoregionaldaFunaiFranciscoNevesBrasileiroàdireçãodoDGOdaFunaiemBrasília,5maio1977.ASI-Funai.AN.

23.DocumentosdeIsmartheMelo,ago.1978.ASI-Funai.AN.24 . Entrevista ao autor para reportagem publicada naFolha de S.Paulo (SãoPaulo,24fev.2009).

25.Avisono008/75,11jun.1975.PastaAntônioIasi.ASI-Funai.AN.26.DavidPrice,“TheNambiquara”,semdata.ISA.27 .AtadoDiáriodoCongressoNacional , jun. 1978.ArquivodoCongressoNacional.

28 . Carta enviada por Araújo ao delegado regional da Funai no Paraná,FranciscoNevesBrasileiro.ASI-Funai.AN.

29.Sobreaapreensãodamáquina,oproblemaemTamaranaeasdeclaraçõesdopadre,OPanorama(Londrina,17jan.1976).ASI-Funai.AN.

30.Ibid.,7fev.1976.ASI-Funai.AN.31.TermodedepoimentodeNellonaPolíciaFederalnoAmapá,11maio1978.ASI-Funai.AN.

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32.Sobreafrase,ocargonoCimieasprimeirasprovidênciasdopadre,cartadatilografada e assinada pelo padre Nello e entregue a “dom José”,possivelmente dom José Maritano, da prelazia de Macapá. Pasta NelloRuffaldi.ASI-Funai.AN.

33.TermodedepoimentodeNellonaPolíciaFederalnoAmapá,11maio1978.ASI-Funai.AN.

34 . Decisão do delegado 2aDR da Funai, Paulo Cezar Silva de Abreu, comautorizaçãodaFunaideBrasília,7ago.1981.PastaNelloRuffaldi.ASI-Funai.AN.

35 . “Funai rompe o diálogo com padres do Cimi”. Folha de S.Paulo , SãoPaulo,p.7,10dez.1976.

36.“RelatóriosobreasmissõesindígenaseoCimi”.Documento“solicitadoaoCimipelaCNBBparainformaçãodosbisposporocasiãodaXVAssembleiadoEpiscopado”, realizada de 8 a 17 fev. 1977. Doc. no B10.1.3.27. Prelazia-Araguaia.

37 . “Relatório das atividades” do Cimi 1975-7. Arquivo no B10.1.3.02.Prelazia-Araguaia.

38 . Relatório para a II Assembleia Nacional do Cimi, Regional Sul, 1977.ArquivonoB10.1.3.19.Prelazia-Araguaia.

39. Íntegradodocumentodivulgadopela Igreja intitulado“Repressãoà Igrejano Brasil: Reflexo de uma situação de opressão”, formulado com dadoscoletados pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi),embrião do ISA , voltado à questão indígena. A íntegra do documento foipublicadapelaFolhadeS.Paulo(SãoPaulo,pp.5,6,7e8,23jan.1979).

40.“LeituraecomentáriodasprimeirasrespostasaoquestionáriodoCimi”,out.1977.ArquivonoB10.1.3.16.Prelazia-Araguaia.

19.“OUTROTIPODELUTA”

1.DepoimentonaCPIdoÍndio,1977.Cedi-Câmara.2 . Memorando confidencial assinado pelo superintendente administrativo daFunai,JoãoBatistaCavalcantideMelo.ASI-Funai.AN.

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3.MemorandoaodiretordoDGO,emBrasília,assinadoporPorfírioCarvalho,18out.1976.PastaCimi.ASI-Funai.AN.

4.OfícioenviadoporOdeniraodelegadoregionaldaFunaiemCuiabá,24dez.1976.PastaIasi.ASI-Funai.AN.

5.EntrevistadeOdeniraoautoremBrasília,9nov.2013.6.SobreaorigemdoPorantimeasdenúncias,JoséRibamarBessaFreire,“Aborduna que virou jornal” (Diário do Amazonas , Manaus, 21 out. 2007).Disponível em:<www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=115>.Acessoem:30ago.2016.

7 .DiáriodeBrasília (Brasília,8 jul.1972), recorteque integrapastaApoenaMeireles.ASI-Funai.AN.

8.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,13jun.1972.BibliotecadaFunai.9 . Folha de S.Paulo (São Paulo, 24 dez. 1971), que entrevistou os pais dePossidônio,opadeiroElísioouElídio(onomeégrafadodeambasasformas)CavalcantiBastoseMariaEunice.

10.TextoenviadoporLilianaoautorpore-mail,19ago.2014.11.DadosbiográficosemOGlobo(RiodeJaneiro,Geral,p.5,ed.matutina,3dez.1971).

12.OGlobo,RiodeJaneiro,Geral,p.5,ed.matutina,3dez.1971.13.Ibid.,p.24,ed.vespertina,31ago.1970.14.Ibid.,p.10,ed.matutina,26ago.1970.15.Ibid.,p.5,ed.matutina,3dez.1971.16.Ibid.,p.10,ed.matutina,4dez.1971.17.Ibid.,p.13,ed.matutina,9dez.1971.18.Ibid.,p.33,ed.vespertina,6dez.1971.19 . Ofício reservado enviado pelo auxiliar administrativo da Funai Rui FaialCordeiro Nunes ao Departamento do Pessoal da Funai, 17 fev. 1972. PastaApoenaMeireles.ASI-Funai.AN.

20 . Cálculo feito a partir de <www.profcardy.com/calculadoras/atualizacao-monetaria-calculada.php>.

21.DeclaraçãodeApoenapublicadaemLilianNewlands(Org.),op.cit.

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22.OGlobo,RiodeJaneiro,Geral,p.5,ed.matutina,3dez.1971.23.CorreioBraziliense,Brasília,3dez.1971.BibliotecadaFunai.24 .JornaldoBrasil (Rio de Janeiro, 7 dez. 1971), que refere declarações dogeneralBandeiradeMello.BibliotecadaFunai.

25.Ibid.,5maio1972.BibliotecadaFunai.26.OGlobo,RiodeJaneiro,Geral,p.33,ed.vespertina,6dez.1971.27 . Decreto disponível em:<www.legiscidade.recife.pe.gov.br/lei/10874/original/1/>.Acesso em:30 ago.2016.

28.TextoenviadoporLilianaoautorpore-mail,19ago.2014.29.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,24dez.1971.BibliotecadaFunai.30.LilianNewlands(Org.),op.cit.31.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,27dez.1971.BibliotecadaFunai.32.SobreohistóricodaItaporanga,ofícioconfidencialenviadopelodiretordoDGPIdaFunai,ClodomiroFortesFlores,aopresidentedaFunai,21jun.1972.ASI-Funai.AN.

33.BettyMindlin,NósPaiter:OsSuruídeRondônia.Petrópolis:Vozes,1985.34 . Depoimento do ex-presidente da Funai na CPI do Índio, no CongressoNacional,4out.1977.Cedi-Câmara.

35 . Telegrama reservado enviado pelo diretor ao presidente da Funai, 25 abr.1972.Semassinatura,odiretorprovavelmenteeraApoena.ASI-Funai.AN.

36.BettyMindlin,NósPaiter:OsSuruídeRondônia,op.cit.37.OfícioenviadopelosuperintendentedaSudeco,NelsonJairoFerreiraFaria,ao ministro do Interior, Costa Cavalcanti, 9 jan. 1974. Processo Funai no10003/MI/S.COM/BSB/72.Nudoc-DPT-Funai.SobreocargocorretodeFaria,queassinaopapelapenascomo“superintendente”,FolhadeS.Paulo(SãoPaulo,6mar.1974).

38.Avisono197/73,encaminhadoporFigueiredoaoministroCostaCavalcanti,24dez.1973.ProcessoFunaino10003/MI/S.COM/BSB/72.Nudoc-DPT-Funai.

39.OfícioenviadopelodiretordoDGPI,ClodomiroFortesFlores,aopresidentedaFunai,3jan.1974.ProcessoFunaino10003/MI/S.COM/BSB/72.Nudoc-DPT-

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Funai.40 .Ofício no 187/DGPI , encaminhado porBandeira deMello aoministro doInterior,23out.1973.ProcessoFunaino10003/MI/S.COM/BSB/72.Nudoc-DPT-Funai.

41 . Ofício do superintendente administrativo da Funai, general Isnard deAlbuquerque Câmara, ao presidente da Funai. Pasta ApoenaMeireles. ASI -Funai.AN.

42.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,20mar.1972.BibliotecadaFunai.43 .TelegramadeApoenaàCotz,20mar.1972.PastaApoenaMeireles.ASI -Funai.AN.

44.“Relatóriodasituaçãoadministrativa,financeira,estruturaledepessoalda8aDelegaciaRegional,PortoVelho e 1aDRemRondônia”, confidencial, 10fev.1972.ASI-Funai.AN.

45.ParecerdeIsmarth,5abr.1972.ASI-Funai.AN.46.ArquivoASI-Funai.PastaApoenaMeireles.ASI-Funai.AN.47.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,12mar.1972.48 . Carta datilografada assinada pelo general Isnard ao presidente da Funai.Documentosemdata, referea transferênciadeApoena.Segundonotaoficialdivulgada pela Funai em 16 mar. 1972, a transferência ocorreu nessa data.PastaApoenaMeireles.ASI-Funai.AN.

49 .Carta datilografada e enviada por Isnard ao presidente daFunai, 22maio1972.PastaAntonioCotrim.ASI-Funai.AN.

50.EntrevistadeMeirelesaojornalistaAndréStumpf,emVeja(SãoPaulo,23demaiode1973),comotítulo“Nossoíndionãosobrevive”.

51.Sobreacausadamorteenãoterdeixadobens,atestadodeóbitoregistradona 5aCircunscrição doRegistroCivil das PessoasNaturais da Freguesia daLagoaeGávea,assinadopelomédicoCaioRodriguesPereira,8jul.1973.

52.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,3out.1973.ASI-Funai.AN.53.Ibid.,28set.1973.54.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,22nov.1973.55.Ibid.,20nov.1973.

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20.DEPORTADOS

1.RelatórioencaminhadoporGerhardtaochefedaajudânciadaFunai,17maio1978.ASI-Funai.AN.

2.DarcyRibeiro,Confissões,op.cit.3.EntrevistaaoautoremDourados,31dez.2013.4.Sobreosnúmeroseohistóricoguarani,“Relatóriodaáreaindígenapirakuá:UmapanorâmicasobreoproblemaeanoçãodaterraguaraniemMatoGrossodo Sul”, 71 pp., do antropólogoRubemFerreira Thomaz deAlmeida, entãoassessor I da Presidência da Funai, 24 jul. 1985. Processo Funai/BSB no2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

5.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,28abr.2007.6.AhistóriaécontadaemMarçaldeSouza,Tupã’I:UmGuaraniquenãosecala (Campo Grande: Ed. UFMS , 1994), de José Laerte Cecílio Tetila, queentrevistou filhos de Marçal e missionários de Dourados. Sobre a data denascimento,opróprioMarçaldeudeclaraçõesquepõememdúvidaoanode1920.NumaentrevistaqueconcedeuaopoetaepesquisadorHeitordaPedraAzulem10out.1983,porexemplo,declarouquetinha“59anos”naqueleano,oqueindicariaquenasceuporvoltade1924.UniversidadeFederaldaGrandeDourados(UFGD).

7 . Entrevista ao autor de sua filha, Edina Souza, 7 abr. 2015. Ela disse terouvidoahistóriadeseupai.

8.OrígenesLessa,“Oásisnamata”.CorreiodaManhã,RiodeJaneiro,30abr.1955.SuplementoLiterário.Outrasediçõesdojornalsobreoassuntosãoasden. 19041, 19046, 19049, 19561, abr. 1955. Hemeroteca Digital Brasileira.Disponível em: <memoria.bn.br/DOCREADER /DocReader.aspx?bib=089842_06&pesq=Nhanderoga>.

9.CorreiodaManhã,RiodeJaneiro,p.12,16abr.1955.10 . Sobre a fundação e os objetivos do instituto, jornalBrasil Presbiteriano(SãoPaulo,ano55,n.704,jul.2013),órgãooficialdaIgrejaPresbiterianadoBrasil,textodopastorJoséCarlosPiacenteJúnior.

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11.Sobrea frasedeLoide,osestudosemPatrocínioeseupapelnoretornoaDourados,JoséLaerteCecílioTetila,op.cit.,queentrevistoufilhosdeMarçalemissionáriosdeDourados.

12.SobreotrabalhodeSchadeneasaspas,“AetnologiadeEgonSchaden”,doantropólogoRoquedeBarrosLaraia,daUnB(RevistadeAntropologia,v.56,n.1,pp.427-39,2013).

13 . Egon Schaden, Aspectos fundamentais da cultura guarani . São Paulo:Difusão Europeia do Livro, 1962. (Coleção Corpo e Alma do Brasil, v. VI).BibliotecadoSenado,Brasília.

14 . Discurso no I Seminário Sul-Matogrossense de Estudos Indígenas, 1980.TextoreproduzidonaíntegraemOProgresso(Dourados,p.3,6dez.1983).

15 . Ofício confidencial no 228/DGO , do diretor do Departamento Geral deOperações da Funai ao superintendente administrativo, 29 abr. 1975. ASI -Funai.CoordenaçãoRegionaldoArquivoNacional,Brasília.

16 . Relatório confidencial de Sardinha ao delegado regional da Funai emCampoGrande,31mar.1975.ASI-Funai.PastaMarçaldeSouza.AN.

17 . Relatório confidencial de Sardinha ao delegado regional da Funai emCampoGrande,31mar.1975.ASI-Funai.PastaMarçaldeSouza.AN.

18.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.15,13maio1975.19.IIIAssembleiadeChefesIndígenas,realizadapeloCimiemMeruri(MT),2a 4 set. 1975.ArquivodoCongressoNacional, anexo aoprocessodaCPIdoÍndio,1977.

20.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.24,4maio1978.21.Ibid.,p.19,3abr.1979.22.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.16,26abr.1998.23.LivroTerradosíndios(RiodeJaneiro:Embrafilme,1979),p.89,deZelitoViana,quedirigiuumdocumentáriohomônimo.

24.EntrevistadeEdinaaoautor,7abr.2015.25.EntrevistaaoautordoprofessordegeografiaJoséLaerteCecílioTetila,quechegouaDouradosem1968eescreveuumlivrosobreMarçaldeSouza.

26.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.10,5out.1982.

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27.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.14,3jun.1977.28 . Depoimento de Marçal na VIII Assembleia de Chefes e RepresentantesIndígenas,nasRuínasdeSãoMiguel(RS),18abr.1977.Cedi-Câmara.

29 . “Relatório de viagem à região de Oiapoque”, assinado pelo delegadoregional,19fev.1979.ASI-Funai.AN.

30 .OfícioassinadoporDemócrito,diretordoDepartamentodePlanejamentoComunitáriodaFunai,22mar.1973.Sedoc-Funai.

31.OautoraquisegueagrafiadessesnomesutilizadapelaFunainodocumento“Relação nominal das principais figuras indígenas ou líderes indígenasbrasileirosvivos”.Sedoc-Funai.

32.RelatórioassinadopelachefedaOCAdoRio,EuniceAlvesCariry,10dez.1980.ASI-Funai.PastaLiderançasIndígenas.ASI-Funai.AN.

33.Paratodaanarrativadatortura,depoimentodeCelestinoLopes,napresençade quatro testemunhas e do chefe da ajudância da Funai na região, JoséFonteneleCarvalho,28fev.1978.PastaJoséPorfírioFonteneledeCarvalho.ASI-Funai.AN.

34.Ofíciododelegadoda6aDR,OrlandoPerfetti,aodiretordoDGOdaFunai,Gerson da Silva Alves, 4 maio 1978. Pasta José Porfírio Fontenele deCarvalho.ASI-Funai.AN.

35 . Ofício de Carvalho para Perfetti, 28 maio de 1978. Pasta José PorfírioFonteneledeCarvalho.ASI-Funai.AN.

36 . Sobre os depoimentos e o relatório da comissão, pasta José PorfírioFonteneledeCarvalho.ASI-Funai.AN.

37.DarcyRibeiro,“NotíciadosOfaié-Chavante”.RevistadoMuseuPaulista ,NovaSérie,v.V,1951.BibliotecaDigitalCurtNimuendajú.

38.Ibid.39.TextodeCurtNimuendajúcitadoemOfaié:Morteevidadeumpovo,deCarlosAlbertodosSantosDutra(Brasilândia:Ediçãodoautor,2012).

40.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.25,6ago.1976.41.CartaendereçadaàFunaicomosnomesdeDomingosCristóvãoRibeiroeTomásdeAlmeida,22jul.1978.PastaDionizioVirgíniodaSilva.ASI-Funai.

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AN.42.Ofíciono247/72,comocarimbodochefedaDivisãodeEstudosdaFunaideBrasília,GeorgedeCerqueiraLeiteZarur,20jun.1972.PastaDemarcaçãodeTerrasIndígenas.ASI-Funai.AN.

43.Ofíciono335/Presidência,assinadoporIsmarthAraújo,17jun.1977.PastaDemarcaçãodeTerrasIndígenas.ASI-Funai.AN.

44.PedidodeBuscaConfidencialno092-L/77,produzidopelaASIdaFunai,17nov.1977.PastaDemarcaçãodeTerrasIndígenas.ASI-Funai.AN.

45.OGlobo,RiodeJaneiro,26maio1983.46.CartaenviadadeDourados(MS),21set.1978.PastaDionizioVirgíniodaSilva.ASI-Funai.AN.

47 . Reunião da UNI em Campo Grande (MS ), 6 e 7 set. 1980. Relatóriodatilografado.UFGD.

48 . “Relatório da área indígena pirakuá”, do antropólogo Rubem FerreiraThomazdeAlmeida.ProcessoFunai/BSB2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

49.EntrevistadeRoniaoautoremBrasilândia(MS),19dez.2013.50.HárelatosdequeaFunaicorreuparaprovidenciarumcaminhãoparatentarfazer com que os índios voltassem para Bodoquena, mas a ação teria sidorechaçadapelosíndios.Ainformaçãoconstade“Alutadosíndioskaiowádasterras Rancho Jacaré e Guaimbé de Mato Grosso do Sul (1976-1979)”, deMeire Adriana da Silva, mestranda no Programa de Pós-Graduação emHistóriadocampusdeDouradosdaUFMS(XXIIISimpósioNacionaldeHistória,2005,Londrina).

51 . “Relatório da área indígena pirakuá”, do antropólogo Rubem FerreiraThomazdeAlmeida.ProcessoFunai/BSB2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

52.EntrevistaaoautoremBrasilândia(MS),19dez.2013.53 . Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização . Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira,1970.BibliotecadoSenadoFederal.

54 .Sobrea ata eo tratado, site institucionalda ItaipuBinacional.Disponívelem:www.itaipu.gov.br/institucional/documentos-oficiais.Acesso em: 30 ago,2016.Sobre aorigemdonome, a energiagerada eovalor atualizado, seção

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“Nossahistória”.55.Sobreasdeclaraçõesdosíndiosedocumentostranscritos,MariaLuciaBrantde Carvalho,Das terras dos índios aos índios sem terra — o Estado e osGuarani de Oco’Y: Violência, silêncio e luta (São Paulo: FFLCH-USP , 2013.Tese[DoutoradoemGeografia]).DocumentosintegramarquivosdaFunai.

56.“SíntesedosprocedimentosdaItaipuBinacionalnaquestãodosíndiosava-guarani: Período de 1975 a 1988”, produzido pela Itaipu Binacional, 9 dez.1988. Integra o relatório “Violações dos direitos humanos e territoriais dosGuaraninooestedoParaná(1946-1988):SubsídiosparaaComissãoNacionaldaVerdade”,produzidopeloCTI,deautoriadoantropólogoepesquisadorIanPacker.

57.EntrevistaaoautornocentrodeformaçãodoCimiemLuziânia(GO),4nov.2013.

58.TextodaIAssembleiadeChefesIndígenas,Diamantino(MT),Cimi,1974.AnexodaCPIdoÍndio,1977.Cedi-Câmara.

59.Id.60.OGlobo,RiodeJaneiro,OPaís,p.13,ed.matutina,12mar.1985.

21.UMMOINHOFEROZ

1 . Sobre os dados biográficos de Darcy, ficha da pasta Darcy Ribeiro. ASI -Funai.AN.

2 . Sobre as saudades do Brasil, as prisões e o leito de morte de Rondon,Confissões,op.cit.,livroautobiográficodeDarcyRibeiro.

3.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.4,23set.1977.4.SobreosdadosbiográficosdeBerta,curriculumvitaeassinadoporela,RiodeJaneiro,14mar.1977.PastaDarcyRibeiro.ASI-Funai.AN.

5 . Página censurada de O Estado de S. Paulo (São Paulo, 21 dez. 1974),disponívelnoarquivoon-linedojornal.

6.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,,p.18,26abr.1977.7.Ibid.,p.20,25ago.1977.8.Ibid.,p.18,12out.1977.

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9.“RespostaaosenadorEdwardKennedy”,faladosenadorArnondeMellonoSenado, Gazeta de Alagoas (Maceió, 1970). Biblioteca Digital do SenadoFederal.

10.OGlobo,OPaís,p.8,ed.matutina,26abr.1978.11.Sobreadivisãoemlotes,aFolhadeS.Paulo(SãoPaulo,4mar.1980)relatamanifestaçãodolíderindígenaDanielCabixi.

12 . Declarações atribuídas ao ministro Rangel Reis em O Globo (Rio deJaneiro,OPaís,p.10,ed.matutina,10maio1978).

13.Transcriçãodareunião,306pp.“Seminário:Funai/Missões”,produzidopelaFunaiemBrasília.ASI-Funai.AN.

14.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.4,28jan.1975.15 . Revista de Atualidade Indígena , Brasília, ano 1, n. 1, nov./dez. 1976.EditadapelaAssessoriadeComunicaçãoSocialdaFunai.ISA.

16.DegravaçãodefitacasseteobtidapelaASI-Funai,enviadaaochefedosetor,JoãoNeivadeMelloTávora.PastaNelloRuffaldi.ASI-Funai.AN.

17 .DeclaraçãoapropósitodoDiadoÍndiode1977,assinadacomoendereço“RuínasdeSãoMiguel,RioGrandedoSul”.PastaFranciscoNevesBrasileiro.ASI-Funai.AN.

18.SobreaSBPCeaameaçadeprocesso,OGlobo(RiodeJaneiro,p.8,26jul.1978).

19 . “Um ministro agride os índios”, texto gravado de entrevista coletivaconcedidaporDarcyà imprensanoRioem27 jul.1978,parte integrantedolivro Ensaios insólitos (Rio de Janeiro: Ludens; Fundação Darcy Ribeiro,2011).BibliotecadaEscolaSuperiordoMinistérioPúblicodaUnião,Brasília.

20 . “Notas taquigráficas” de “Seminário sobre a Questão Indígena”, 24 ago.1978.ASI-Funai.Coord.Reg.AN.

21.OGlobo,RiodeJaneiro,OPaís,p.8,ed.matutina,29jul.1978.22 .CadernosdaComissãoPró-Índio-SP,no1:A questão da emancipação .São Paulo: Global, 1979. Disponível em:<www.cpisp.org.br/indios/upload/editor/files/Cadernos%20da%20Comiss%C3%A3o%20Pr%C3%B3%20%C3%8Dndio%20n%C2%B01.pdf>.Acessoem:30ago.2016.

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23.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,p.8,8nov.1971.24.OGlobo,RiodeJaneiro,OPaís,p.9,ed.matutina,29ago.1978.25.Ibid.,p.18,ed.matutina,27ago.1978.26 . Fotografia publicada emOEstado de S. Paulo (São Paulo, p. 24, 9 nov.1978).

27.CartaassinadapeladiretoraexecutivadaIndianRightsAssociation,SandraL.Cadwalader,26out.1978.TranscritaemCadernosdaComissãoPró-Índio-SP,no1:Aquestãodaemancipação,op.cit.

28.Paraoprimeironúmero,OGlobo(RiodeJaneiro,OPaís,p.9,ed.matutina,9nov.1978).Paraosegundo,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,p.24,9nov.1978). Sobre o protesto na ABI ,O Globo (Rio de Janeiro, Rio, p. 17, ed.matutina,8nov.1978).

29.CadernosdaComissãoPró-Índio-SP,no1:Aquestãodaemancipação,op.cit.

30.InformaçãodaDGPC,daFunaideBrasília,emrespostaaoofíciono15/75-GAB/4aDR,quecomentava“acusações”dodelegadoda4aDR.ASI-Funai.AN.

31.Entrevistaaoautor,portelefone,28ago.2013.32.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,8dez.1978.

22.AESPINHA

1.EntrevistaaoautornacasadeMércio,noRiodeJaneiro,15out.2013.2.MércioPereiraGomes,Oíndionahistória.Petrópolis:Vozes,2002,p.72.3.EntrevistaaoautornacasadeMércio,noRiodeJaneiro,15out.2013.4.Sobreachacina,osdadosdamissão,osurto,ocastigoaCaboréeseunomeindígena,O índio na história , deMércio PereiraGomes, op. cit., eCauiréImana,ocaciquerebelde(Brasília:Thesaurus,1982),deOlímpioMartinsdaCruz,quefoisertanistadoSPI.Arespeitodagrafia“CauiréImana”eadatademarço,enãoabril,livrodeOlímpioCruz.

5.Para200,DiáriodoMaranhão(SãoLuís,n.08285,10abr.1901),disponívelna Hemeroteca Digital Brasileira. Sobre os 170, Mércio Pereira Gomes,Oíndionahistória,op.cit.,p.270,notaderodapé.

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6.OlímpioMartinsdaCruz,op.cit..7.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.2,22abr.1901.8.SobreasexpediçõeseodestinodeCaboré,MércioPereiraGomes,Oíndionahistória,op.cit.

9.OlímpioMartinsdaCruz,op.cit.10.EntrevistaaoautornacasadeMércio,noRiodeJaneiro,15out.2013.11 . “Relatório sobre o contato e a necessidade de transferência de 27 índiosGuajá do igarapé Timbira, município de Santa Luzia, para a reserva Carú”,apresentado à Delegacia Regional da Funai por Mércio Pereira Gomes, 20maio1980.Arquivogjd00003.ISA.

12.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.15,2mar.1979.13 . Parecer de Mércio Pereira Gomes sobre o processo Funai/BSB /5044/79,referenteaosGuajá,9mar.1980.ISA.

14 .Ofício do delegado da 6aDR ,Alípio Levay, à Funai deBrasília, 22 abr.1982.PastaMércioPereiraGomes.ASI-Funai.AN.

15.Sobreomomentodocontato,Mércioleuparaoautor,emsuacasanoRio,emout.2013,asanotaçõesdeseucadernodecampoqueutilizounaviagemem1980.

16 . “Relatório sobre o contato e a necessidade de transferência de 27 índiosGuajá do igarapé Timbira, município de Santa Luzia, para a reserva Carú”,apresentado à Delegacia Regional da Funai por Mércio Pereira Gomes, 20maio1980.Arquivogjd00003.ISA.

17.EntrevistaaoautornacasadeMércio,noRiodeJaneiro,15out.2013.18.JornaldeHoje,SãoLuís,25mar.1982.PastaMércioPereiraGomes.ASI-Funai.AN.

19.OfícioconfidencialassinadoporLevay,22jun.1982.PastaMércioPereiraGomes.ASI-Funai.AN.

20 .Memorandoconfidencial assinadopelo chefedaASI , 11 jun. 1982.PastaMércioPereiraGomes.ASI-Funai.AN.

21 . “Relatório sobre a operação conjunta da frente de atração arara e o 51oBatalhãode InfantariadeSelvaparaa retiradade invasoresdaárea indígena

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interditada para a atração dos índios Arara”, assinado por Possuelo, 24 out.1980.ProcessoFunaino4724/77.Nudoc-DPT-Funai.

22.EntrevistaaoautoremBrasília,20set.2013.23.Ofíciono22/80,dafrentedeatraçãoarara,assinadoporPossueloedirigidoao“comandante”dobatalhãodeselva,24out.1980.Onomedessemilitarnãoconstanadocumentaçãoenãopôde ser recuperadonamemóriadePossueloduranteasentrevistasaoautor.ProcessoFunaino4724/77.Nudoc-DPT-Funai.

24 . Relatório “Ocorrência”, assinado porWellington, 23 nov. 1980. ProcessoFunaino4724/77.Nudoc-DPT-Funai.

25.EntrevistadeSidneyPossueloaoautoremBrasília,20set.2013.26.Id.27 . Relatório “Ocorrência”, assinado porWellington, 23 nov. 1980. ProcessoFunaino4724/77.Nudoc-DPT-Funai.

28.RelatóriodeWellington,4mar.1981.ProcessoFunaino4724/77.Nudoc-DPT-Funai.

29.EntrevistaaoautoremBrasília,20set.2013.30.“Frentedeatraçãoarara,relatóriofinalde1981”,assinadoporPossuelo,4dez.1981.Nudoc-DPT-Funai.

31 .Relatório I /81 da frente de atração arara, assinado por Possuelo, 19mar.1981.ProcessoFunaino4724/77.Nudoc-DPT-Funai.

32 . Id. O nome do menino também aparece grafado como “Uaktô” emdocumentosdaFunai.

33 . “Frentedeatraçãoarara, relatório referenteaosurtogrupal índiosArara”,assinadoporPossueloedirigido“aosuperintendente”,8abr.1982.Nudoc-DPT-Funai.

34.EntrevistaaoautoremBrasília,20set.2013.35 . “Frentedeatraçãoarara, relatório referenteaosurtogrupal índiosArara”,assinadoporPossueloedirigido“aosuperintendente”,8abr.1982.Nudoc-DPT-Funai.

36.EntrevistadePossueloaoautoremBrasília,20set.2013.37.Id.

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38.Sobreavisitanodia11eochoro,JornaldoBrasil(RiodeJaneiro,p.4,15fev.1982).

39.Sobrearecepçãodosaltamirenses,asfrasesdePedroePossueloeochorodosertanista,FolhadeS.Paulo(SãoPaulo,p.4,15fev.1982),reportagemdeMeméliaMoreira.

40.EntrevistaaoautoremBrasília,27set.2013.41.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.6,11maio1982.42.SobreadenúnciadePalmeira,“FotógrafodizqueFunainãosocorreíndiosemextinção”,OGlobo(RiodeJaneiro,Rio,p.9,ed.matutina,10maio1982).SobreaconfirmaçãodaFunai,JornaldoBrasil(RiodeJaneiro,p.2,11maio1982).

43.OGlobo,RiodeJaneiro,Rio,p.9,ed.matutina,10maio1982.44.EntrevistaaoautoremBrasília,27set.2013.

23.LEVANTE

1 . Relatório datilografado sobre o seminário, 17 a 20 abr. 1980. Centro deDocumentaçãoRegionaldaFaculdadedeCiênciasHumanasdaUFGD.

2.CitadoemJoséLaerteCecílioTetila,op.cit.,p.35,notaderodapé.3.Relatóriodatilografadosobreoseminário,17a20abr.1980.UFGD.4.Sobreacomissãodedezesseiscaciqueseonomeprovisório,relatório“UniãodasNaçõesIndígenas,origemecriação”,textoconfidencial,8pp.,INF/4C.01.ASI-Funai.AN.

5.RelatórioformuladopeloantropólogodaFunaiCláudiodosSantosRomero,sobre uma entrevista concedida por Domingos ao Jornal do Brasil (Rio deJaneiro,18fev.1982).PastaDomingosVeríssimoMarcos.ASI-Funai.AN.

6.EntrevistaaoautornasededoCimiemBeloHorizonte,10dez.2013.7 . Sobre a reunião emCampoGrande e a presidência provisória, “União dasNações Indígenas: Resumo histórico”, documento produzido pela Funai, 28abr.1981.PastaDomingosVeríssimoMarcos.ASI-Funai.AN.

8.SobreocargodeMarçaleoestatuto,“UniãodasNaçõesIndígenas,origemecriação”,textoconfidencial,8pp.maisanexos,INF/4C.01.ASI-Funai.AN.

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9.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,20abr.1980.10 . Sobre o cargo na Docegeo,Veja (São Paulo, Entrevista, n. 642, 24 dez.1980).

11.OGlobo,RiodeJaneiro,OPaís,p.6,ed.matutina,1nov.1979.12 . Para esse parágrafo, “União das Nações Indígenas: Resumo histórico”,documento produzido pela Funai, 28 abr. 1981. Pasta Domingos VeríssimoMarcos.ASI-Funai.AN.

13 .DocumentodoarquivopessoaldoantropólogoCláudioRomero, fundadordaSBI.

14 . “Quando os coronéis tremeram...”, artigo publicado porMemélia em seublog, maio de 2013. Disponível em:<memeliamoreira.com/blog1/2013/05/05/quando-os-coroneis-tremeram/>.Acessoem:30ago.2016.

15.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.6,6maio1980.16.EntrevistadeMegaronaoautoremBrasília,4dez.2013.17 . “Relatório sobre o conflito de terra dos índiosTxukarramãe”, deVanessaLea,doMuseuNacional,noRiodeJaneiro,24ago.1980.ISA.

18.OGlobo,RiodeJaneiro,p.4,13ago.1980.19.EntrevistaaoautoremAltamira(PA),16fev.2014.20.Sobreonúmerodemortos,OLiberal(Belém,3set.1980).21 . “União das Nações Indígenas: Resumo histórico”, documento produzidopelaFunai,28abr.1981.PastaDomingosVeríssimoMarcos.ASI-Funai.AN.

22.EntrevistaaoautornasededoCimiemBeloHorizonte,10dez.2013.23.Sobreasmortes,“Campanhacontraaviolêncianocamponaáreaindígena”,documentoproduzidopeloCimi,27nov.1985.PastaLiderançasIndígenas.ASI-Funai.AN.

24.Cópiadefitagravada“ViagemanalistadaDSI/Minter”,4a8jul.1977.ASI-Funai.AN.

25.ZelitoViana,op.cit.,p.83.Parágrafoanterior,p.66.ZelitocitaimagensdaTVParanaense,canal12,Curitiba,nov.1977.

26 . “Lamento por um cacique”, Globo Repórter , 1980. Disponível em:

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<www.youtube.com/watch?v=yByU6eJDi9s>.Acessoem:30ago.2016.27.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.5,30jan.1980.28 .Sobreos ferimentos e a acusação,OGlobo (Rio de Janeiro, p. 5, 25 jan.1980).

29.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.5,31jan.1980.30 . Sobre as declarações de Bavaresco, Leal e Mozalatti, “Lamento por umcacique”,GloboRepórter ,1980.Disponívelem:<www.youtube.com/watch?v=yByU6eJDi9s>.Acessoem:30ago.2016.

31.EntrevistaaoautoremBrasília,19abr.2015.

24.ASOCIEDADE

1.MemorandoconfidencialassinadopelodiretordoDGOdaFunaideBrasília,JoséGodinhoRodrigues,18abr.1980.ASI-Funai.AN.

2 .Resposta aomemorando no 009/DGO -80, assinado por Carvalho, 16maio1980.ASI-Funai.AN.

3.Entrevistaaoautor,mar.2014.4.EntrevistaaoautornasededaFunai,emBrasília,5ago.2013.5.RelatóriofinaldasatividadesdogrupodetrabalhosobreasreservasXavante.ProcessoPE003/DIF/SUAF/89.Nudoc-DPT-Funai.

6.ProcessoPE003/DIF/SUAF/89.Nudoc-DPT-Funai.7.RelatóriodaFunaicitadoemSethGarfield,Aluta indígenanocoraçãodoBrasil(SãoPaulo:Ed.Unesp,2007),p.240.

8.SobreopapeldeCelestino,Babati,OdenireRomero,SethGarfield,ibid.,p.264emdiante.

9.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.18,11jan.1979.10.“DegravaçãodefitaK7”,papelsemassinatura.ASI-Funai11 .Documento confidencial no 089-A/80, 50 pp., intitulado “Funai— Crisesinternas— Política indigenista”, produzido pela ASI -Funai em resposta aoPedidodeBuscano22/1218/80daDivisãodeSegurançaeInformações(DSI)doMinistériodoInterior,28ago.1980.ASI-Funai.PastaJoséCarlosMeirellesJúnior.Otrechododocumentodiz:“FranciscodeAssisdaSilva(informante),

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diretordoParqueIndígenadoXingu-PQXIN”.ASI-Funai.AN.12.Texto“Resumo”sobreTerriValledeAquino.ASI-Funai.PastaTerriValleJúnior.CoordenaçãoRegionaldoArquivoNacional,Brasília.

13 .Ofícioconfidencialno048/78Ajacre,assinadoporAntônioPereiraNeto,17abr.1978.PastaTerriValleJúnior.ASI-Funai.AN.

14.InformaçãoconfidencialproduzidapeloComandoMilitardaAmazônia,26jul.1977.PastaTerriValleJúnior.ASI-Funai.AN.

15.“Curriculumvitae”.PastaDelvairMontagnerMelatti.ASI-Funai.AN.16 . Relatório confidencial, assinado pelo chefe da Ajudância do Solimões,Marcos Mário Benn, 27 jun. 1980. Pasta Delvair Montagner Melatti. ASI -Funai.AN.

17.ACrítica,Manaus,p.5,7jun.1980.PastaTerriValleJúnior.ASI-Funai.AN.

18.TelegramaconfidencialdeApoenaMeirelesaoDGOdaFunai,Brasília,26maio1980.PastaTerriValleJúnior.ASI-Funai.AN.

19.ORioBranco,RioBranco,p.1,8mar.1981.PastaTerriValleJúnior.ASI-Funai.AN.

20.Portariano482/P,de28maio1980.ASI-Funai.PastaJoséCarlosMeirellesJúnior.ASI-Funai.AN.

21.Parecerno58/PJ/80,6maio1980.PastaSBI.ASI-Funai.AN.22.Ofíciono179/Presidência,27maio1980.PastaSBI.ASI-Funai.AN.23.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.1,20abr.1979.24 . Aviso Gabinete Ministro no 0338, dirigido por Andreazza a DaniloVenturini,4jun.1980.ASI-Funai.AN.

25 . Sobre os pedidos de demissão, datas e aceitação de Nobre da Veiga,documento confidencial no 089-A/80, 50 pp., intitulado “Funai — Crisesinternas— Política indigenista”, produzido pela ASI -Funai em resposta aoPedidodeBuscano22/1218/80daDSIdoMinistériodoInterior,28ago.1980.PastaJoséCarlosMeirellesJúnior.ASI-Funai.AN.

26.Ofícios/no/80,2jun.1980.SBI.ASI-Funai.AN.27.OfíciodeRomeroemquesolicitademissão,2jun.1980.SBI.ASI-Funai.AN.

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28 . Sobre os pedidos de demissão, datas e aceitação de Nobre da Veiga,documento confidencial no 089-A/80, 50 pp., intitulado “Funai — Crisesinternas— Política indigenista”, produzido pela ASI -Funai em resposta aoPedidodeBuscano22/1218/80daDSIdoMinistériodoInterior,28ago.1980.PastaJoséCarlosMeirellesJúnior.ASI-Funai.AN.

29.Parecerno72/PJ/80,11jun.1980.PastaSBI.ASI-Funai.AN.30 . Arquivo do antropólogo Cláudio Romero, membro fundador da SBI ,Brasília.

31.Parecerno79/PJ/80,26jun.1980.SBI.ASI-Funai.AN.32 . “Resumo dos acontecimentos que levaram à demissao de servidores”,documentoempapel timbradodogabinetedopresidentedaFunai,semdata.SBI.ASI-Funai.AN.

33.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,3jul.1980.34.NotadadiretoriadaSBI,20ago.1980.SBI.ASI-Funai.AN.35.EntrevistaaoautornabibliotecadoMuseudoÍndio,noRio,14out.2013.36 . Sobre a carta,OGlobo (Rio de Janeiro, Geral, p. 2, ed.matutina, 3 jul.1970),esobreosuicídio,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,9jun.1976).

37.Memorandono486/80-DGPC,assinadoporZanoni,16out.1980.ASI-Funai.AN.

38 . Informação no 364/PJ /80, assinada pelo procurador da Funai AfonsoAugustodeMorais.ASI-Funai.AN.

25.APALAVRA

1.EntrevistaaoautoremBrasília,9nov.2013.2.Sobreaprimeiragrafiadonomeeadatadenascimento,EditaldeProclamasdo casamento de Juruna noCartório do 2o Ofício e Registro Civil de NovaXavantina(MT) , 24nov. 1981.PastaMário Juruna.ASI -Funai.AN . Sobre asegundagrafiadonome,SethGarfield,op.cit.

3.Sobreoparentesco,FolhadeS.Paulo(SãoPaulo,1maio1978).4.ArquivodaTVCultura,programaVoxPopuli,abr.1978.5 . Para os dados da aldeia Namuncurá, relatório do antropólogo da Funai

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CláudiodosSantosRomero,1976.ProcessoFunaiBSBno1137/82.Nudoc-DPT-Funai.

6.Veja(SãoPaulo,n.324,20nov.1974),entrevistaconcedidaaÁlvaroPereiraeArmandoRollemberg.

7.ArquivodaTVCultura,programaVoxPopuli,abr.1978.8.FolhadeS.Paulo,p.6,27jan.1977.9.OGlobo(RiodeJaneiro,OPaís,p.11,ed.matutina,9fev.1977),reportagemdeAntonioMartinseOrlandoBrito.

10 . Revista de Atualidade Indígena , Brasília, ano 1, n. 4, maio/jun. 1977.EditadapelaAssessoriadeComunicaçãoSocialdaFunai.ISA.

11.“MárioJuruna”(editorial).FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.2,1fev.1977.12.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,CadernoB,capa,29jan.1977.13.Ibid.14.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.16,30maio1978.15.ArquivodaTVCultura,programaVoxPopuli,abr.1978.16.ReciboassinadoporMárioJuruna,12nov.1980.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

17 . O Globo (Rio de Janeiro, Cultura, p. 29, ed. matutina, 3 mar. 1979),reportagemdeMarceloBeraba.

18.Veja,SãoPaulo,n.642,24dez.1980.19 . Sobre os índios “comportados” e as declarações de Orlando, Veja (SãoPaulo,n.637,19nov.1980).

20.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.12,13nov.1980.21.Ibid.22.Sobreavotação,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,p.10,28nov.1980).23.SobreasentrevistasdeJurunaeBrizolaeaimagemdafiliação,“Juruna”,programaGloboRepórter,29mar.1984.ProjetoMemóriaGlobo.Disponívelem: <globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/globo-reporter-juruna-1984/2797711/>.Acessoem:2set.2016.

24.Veja,SãoPaulo,n.441,16fev.1977.25 . Laura R. Graham, “Citando Mario Juruna: Imaginário linguístico e a

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transformaçãodavozindígenanaimprensabrasileira”.Mana,RiodeJaneiro,v.17,n.2,ago.2011.

26.OfícioassinadoporRomero,25jan.1983.PastaDarcyRibeiro.ASI-Funai.AN.

27.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.8,4ago.1993.28 .Lauda de texto lido naRádioManchete, 19 jan. 1983, empoder daASI -Funai.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

29 . Ofício do deputadoMário Juruna ao presidente da Funai, PauloMoreiraLeal.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

30.CartadodeputadoJurunaaoministro,12abr.1983.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

31.OfícioconfidencialdaASIdaFunai,3fev.1982.PastaMárioJuruna.ASI -Funai.AN.

32.Ofícioconfidencialno270,enviadopelopresidentedaFunaiaosecretário-geraldoMinistériodoInterior,14mar.1983.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

33.NotastaquigráficasdopronunciamentodeJurunaem19abr.1983,CâmaradosDeputados,DepartamentodeTaquigrafia,RevisãoeRedação.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

34.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,p.4,29set.1983.35.OGlobo,RiodeJaneiro,OPaís,p.5,ed.matutina,29set.1983.36.SobreareclamaçãodosministroseasdecisõesdeMarcílioeWalber,JornaldoBrasil(RiodeJaneiro,p.4,29set.1983).

37.SobreapenaeasdeclaraçõesdeJuruna,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,p.4,5out.1983).

38 .Transcriçãodediscursosde líderes indígenasda IIIAssembleia deChefesIndígenas,Meruri,2a4set.1975.AnexoàCPIdoÍndio,1977.Cedi-Câmara.

39.OfíciodeMoreiraLealaochefedegabinetedoMinistériodoInterior,maio1983.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

40.Informaçãono22/0782/G-3/83,20jun.1983.41 .Sobreoseventosde23 jun.1983, relatóriode IvanTancredoentregueao

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presidentedaFunai.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.42.OGlobo,RiodeJaneiro,OPaís,p.5,ed.matutina,24jun.1983.43.Ofíciono678/Presidência,27jun.1983.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

44.Relatóriosobrereuniãoem27jun.1983.PastaMárioJuruna.ASI-Funai.AN.

45.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,24fev.2009.46.SobreascríticasdoCimieaameaçadeRaoni,OGlobo(RiodeJaneiro,OPaís,p.7,ed.matutina,5jul.1983).

47.EntrevistaaoautoremBrasília,mar.2014.48 . Charles Frederick Hartt, Amazonian Tortoise Myths . Rio de Janeiro:WilliamScully,1875.BibliotecaBrasilianaGuitaeJoséMindlin,Disponívelem <www.brasiliana.usp.br/handle/1918/00771400#page/5/mode/1up>.Acessoem:2set.2016.

49 . Atualizado até ago. 2014 a partir de<www.profcardy.com/calculadoras/atualizacao-monetaria-calculada.php>.

50.Sobreovalortotal,JornaldoBrasil(RiodeJaneiro,p.2,26out.1984).51.Sobreaentrevistaeatentativadediscurso,OGlobo(RiodeJaneiro,OPaís,p.5,ed.matutina,26out.1984).

52.Sobreatransferênciaeasdeclarações,OGlobo(RiodeJaneiro,OPaís,p.3,ed.matutina,27out.1984).

53.JornaldoBrasil,RiodeJaneiro,p.2,26out.1984.54.Ibid.,p.10,27out.1984.55.Manchete,RiodeJaneiro,ano48,n.2507,p.10,6maio2000.

26.UMGOSTOAMARGO

1.ConvênioassinadoporLealeUeki,11mar.1982.ArquivodaFunai.2.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.6,30jun.1982.3.Relatóriodeidentificaçãoedelimitaçãodaterra indígenaValedoJavari,p.78, produzido pela Funai e subscrito pelo antropólogoWalter Coutinho Jr.,maio1998.ArquivonoOfd00064.ISA.

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4.Entrevistaaoautor,16nov.2013.5 . “Umaáreapouconoticiada”.Aconteceu:Povos IndígenasnoBrasil/1982 ,RiodeJaneiro,abr.1983.Especial12.

6 . Araci Labiak e Lino Neves, “A Petrobras e os arredios do Itacoaí eJandiatuba”.Aconteceu:PovosIndígenasnoBrasil/1984,jun.1985.Especial15.

7.Nota“Explosivocontraíndios”.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.13,30dez.1983.

8.JornaldaTarde,SãoPaulo,30dez.1983.9.Relatórioconclusivode3abr.1984,assinadoporRobertoAlexandreAlvesBarbosa, Paulo Rocha Filho e Raimundo Dias Mendes, da Comissão deSindicânciaabertapela1aDelegaciaRegionaldaFunai,anexoaoInformedaDSIdoMinistériodoInterior,11maio1984.ArquivoSNI.ACE0432240-84.AN.

10.Depoimentosreproduzidosnorelatórioconclusivode3abr.1984,assinadoporRobertoAlexandreAlvesBarbosa, PauloRochaFilho eRaimundoDiasMendes, da Comissão de Sindicância aberta pela 1a Delegacia Regional daFunai, anexo ao Informe da DSI do Ministério do Interior, 11 maio 1984.ArquivoSNI.ACE0432240-84.AN.

11.SobreSimone,OEstadodeS.Paulo(SãoPaulo,p.12,13jun.1984).12 . Informação confidencial no 35/0266/84, daDSIdoMinistério deMinas eEnergia,21maio1984.ArquivoSNI.AN.

13.Informeconfidencialno22/1602/G.3/83,daDSIdoMinistériodoInterior,16nov.1983.ArquivoSNI.AN.

14.OfícioassinadoporIsaMaria,19jun.1984.Funai.15.Sobreadataeosnomes,OGlobo(RiodeJaneiro,p.7,6set.1984).Sobreadança,o testemunhoeonúmerode150funcionários,entrevistadosertanistaSidneyPossueloaoautor,emBrasília,17out.2013.PossuelofoiescaladopelaFunaiparainvestigarocaso.Sobreoscincominutosdecontato,onúmerodeíndioseohorário,OGlobo(RiodeJaneiro,p.6,7set.1984).

16.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.5,7set.1984.

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17.OGlobo,RiodeJaneiro,p.6,7set.1984.18.EntrevistaaoautoremBrasília,17out.2013.19.Informaçãono002/ASS-SUpex,deBrasília,assinadoporPossuelo,assessorII,10set.1984.Sedoc-Funai.

20.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.14,15dez.1984.

27.PISTOLEIROAVÁ

1.Sobreadescriçãodacasa,fotoseautosdareconstituiçãodocrimee“MaçoProcessoCriminalMarçaldeSouzaII”,item1.UFGD.

2 . Informações do “Boletim individual de vida pregressa do indiciado”,assinadoporLíbero,30jul.1985.InquéritodaPF-MSno108.MaçoI,arquivo7.UFGD.

3.“ReuniãodaUniãodasNaçõesIndígenas(UNI)”,6e7set.1980,emCampoGrande(MS),papeldatilografado.UFGD.

4 . “Relatório de vistoria” da Funai assinado pelo engenheiro agrônomoLudeSimioli Filho,membro de comissão que visitou o local de 30 abr. a 3maio1984.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

5.“Relatório”doassessordaFunaideCampoGrandeChaficJoãoThomaz,dereuniãorealizadaem5dez.1984naFunai,entreThomaz,odelegadodaFunai,Délcio Vieira, o antropólogo Rubem Ferreira Thomaz de Almeida, ofazendeiro Líbero Monteiro de Lima e seu advogado, João Atílio Mariano.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

6 . Sentença da ação de reintegração de posse no 00.0004469-5, movida porLíberocontraaFunai,assinadapelojuizfederalLuizCalixtodeBastos,28set.1990.MaçoIV,arquivo6.UFGD.

7 . Sobre “caído na poça de sangue”, termo de declarações de João OnofreRomeroàPolíciaFederalemPontaPorã(MS ),29nov.1983.Elechegouaolocaldocrimepoucodepoisdostiros.UFGD.

8.ImagensdodiscursoaopapareproduzidasnovídeoMarçaldeSouza,Tupã’I(direção: Ednaldo Rocha, produção: Dalila Cividini e Leonardo Fernandes),Faculdades Anhanguera. Disponível em: <www.youtube.com/watch?

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v=XoT8LLjMQBY>.Acessoem:2set.2016.9.“DiversasfalasdeMarçal”.UFGD.10.RelatóriodePalmeira,26set.1980.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

11 . Carta de Astúrio ao coronel Amaro, 3 out. 1980. Processo Funai/BSB no2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

12.TranscriçãodecartaaodelegadoregionaldaFunai,26out.1980.UFGD.13.“Relatório”doassessordaFunaideCampoGrandeChaficJoãoThomaz,dereuniãorealizadaem5dez.1984naFunai,entreThomaz,odelegadodaFunai,Délcio Vieira, o antropólogo Rubem Ferreira Thomaz de Almeida, ofazendeiro Líbero Monteiro de Lima e seu advogado, João Atílio Mariano.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

14.FolhadeS.Paulo,SãoPaulo,p.6,3out.1980.15 . Depoimento do líder kaiowá LázaroMorel na sede da Funai emCampoGrande,11jun.1982.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

16.Sobreo localdenascimento,dataedeclaraçõesdeBrand, termoassinadoporAntônioBrandnaPolíciaFederalemPontaPorã,7dez.1983.UFGD.

17 .Entrevista ao autor na terra indígenaPirakuá,município deAntônio João(MS),27dez.2013.

18.Entrevistaaoautoremsuacasa,emDourados,28dez.2013.19.TermodedeclaraçõesdeEuniceàPolíciaFederalemPontaPorã,29nov.1983.MaçoVI,arquivo1.MaçoII,arquivo2.UFGD.

20 . Termo de declarações de Elisa à Polícia Federal, 30 nov. 1987.Maço I ,arquivo2.UFGD.

21.TermodedeclaraçõesdeArmandoCamposàPolíciaFederalemPontaPorã,29nov.1983.UFGD.

22.TranscriçãodecartaaodelegadoregionaldaFunai,26out.1980.UFGD.23.“Relatório”doassessordaFunaideCampoGrandeChaficJoãoThomaz,dereuniãorealizadaem5dez.1984naFunai,entreThomaz,odelegadodaFunai,Délcio Vieira, o antropólogo Rubem Ferreira Thomaz de Almeida, ofazendeiro Líbero Monteiro de Lima e seu advogado, João Atílio Mariano.

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ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.24.TermodeinterrogatóriodeLíberonojuízodaVaraCriminaldePontaPorã(MS),1dez.1988.UFGD.

25.TermodedeclaraçõesàPolíciaFederalemPontaPorã,30nov.1983.UFGD.26 .TermodedeclaraçõesdeLíberoàPolíciaFederalemPontaPorã,17nov.1987.UFGD.

27 .TermodedeclaraçõesdeLíberoàPolíciaFederalemPontaPorã,30nov.1983.MaçoVI,arquivo1.UFGD.

28.SobreosdadospessoaisdeGamarra,boletimindividualdevidapregressadoindiciado,31maio1984.MaçoVI,arquivo3.UFGD.

29.TermodedeclaraçõesdeRômuloGamarra.Trechostambémdestacadosemdecisão do juizLuizCarlos SaldanhaRodrigues nos autos da ação penal no174/88,18ago.1992.MaçoIV,arquivo3.UFGD.

30 . Sobre a data de nascimento e a localização da casa deGamarra, auto dequalificaçãoeinterrogatóriodeRômuloGamarra.MaçoIII,arquivo4.UFGD.

31 .Ofício assinado pelo diretor doDGOda Funai,Gerson da SilvaAlves, aopresidentedaFunai,9jul.1982.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT -Funai.

32.Relatóriodeviagem,10set.1982.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

33 . Ofício ao diretor do DGO da Funai, 7 jul. 1982. Processo Funai/BSB no2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

34.DepoimentoassinadoporLázaroMorelnasededaFunaideCampoGrande,11jun.1982.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

35.“Relatóriodaáreaindígenapirakuá:Umapanorâmicasobreoproblemaeanoção da terra guarani em Mato Grosso do Sul”, 71 pp., do antropólogoRubemFerreiraThomazdeAlmeida,entãoassessorIdapresidênciadaFunai,24jul.1985.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

36.CartadeMarçalaAntônioBrand,“cópiafiel”,25jan.1983.UFGD.37 .Ofício no 17/83, encaminhado ao delegado regional da Funai emCampoGrande,3nov.1983.ProcessoFunai/BSBno2092/82.Nudoc-DPT-Funai.

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38.DepoimentodoíndioAlexandreArinosàPolíciaFederal.Umrelatóriododelegado da PF Armando Coelho de 14 dez. 1983 confirma que a placa foi“danificada”,semespecificarcomo.MaçoIV,arquivo2.UFGD.

39 . Sobre a descrição das roupas dos dois homens, a garoa e as perguntas,entrevistadoautorcomElisaVilharva,testemunhaoculardocrime,naaldeiadeDourados,2jan.2014.Sobreonúmeroeoslocaisdostirosnocorpo(três,não cinco, nem na boca, ao contrário do que consta de um laudo dereconstituiçãodoassassinato),termosdedeclaraçõesdosmédicosNivaldodeSouza Ramos e Ricardo Zocolaro Neto, que fizeram o exame do corpo, àPolíciaFederal,4maio1988.MaçoI,arquivo5.InquéritodaPolíciaFederalqueapurouamorte.SobrearoupadeMarçal,termodedeclaraçõesdeSandraBeatrizDiasàPolíciaFederal,1dez.1983.MaçoII,arquivo3.Sobreosdoisvultoseoveículo,depoimentodeArmandoVareiroàPolíciaCivildeAntônioJoão (MS ). Maço VI , arquivo 1. Centro de Documentação Regional daFaculdadedeCiênciasHumanasdaUFGD.

40 .Sobreo tamanhoda terra,Funai; sobreonúmerodehabitantes, dadosdaFundaçãoNacional de Saúde de 2008, em “De olho nas terras indígenas doBrasil”,dadoson-linedoISA.

41.Relatório“ViolênciacontraospovosindígenasnoBrasil”,dadosde2013,Cimi,queinformousebasearemdadosfornecidospeloMinistériodaSaúde,pormeiodaSecretariaEspecialdeSaúdeIndígena.

42.SobreaidadedeElisa,termodedeclaraçõesdeElisaàPolíciaFederal,30nov.1987.SobreaidadedeMarçal,atestadodeóbitoqueapontaaidadede63anosdavítimaem1983.Autos“MaçoProcessoCriminalMarçaldeSouzaII”,item3,p.19,UFGD.

43.EntrevistadeRomildaaoautoremCampestre,27dez.2013.44 . Laudo de exame necroscópico por exumação, InstitutoMédico Legal, 19jun.1991.AssinadopeloslegistasRaulGrigolettieRicardoZocolaro.UFGD .MaçoIII,arquivo1.

45.Sobreaprefeituraterfeitoaobraeolocalescolhido,entrevistadoautornolocal, com um dosmais antigosmoradores da aldeia, SalvadorReynoso, 27

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dez.2013.46.Autodereconhecimento,1dez.1983.TermodedeclaraçõesdeSeverianoàPolíciaFederalemPontaPorã,1dez.1983.MaçoII,arquivo3.UFGD.

47 . Termode declarações de JoãoBatistaGomes à Polícia Federal emPontaPorã,1dez.1983.MaçoVI,arquivo1.UFGD.

48.TermodedeclaraçõesdeSeverianoàPolíciaFederalemPontaPorã,1dez.1983.MaçoVI,arquivo1.UFGD.

49 .Correio do Estado , CampoGrande, 29 nov. 1983.MaçoVI , arquivo 1.UFGD.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.15,29nov.1983.

50.Relatórioassinadopelosegundo-tenentedaPM JoséRosevaldoBarbosa,8dez.1983.MaçoII,arquivo4.UFGD.

51 . Laudo do exame em armas de fogo e projéteis do Instituto Nacional deCriminalística,emBrasília,deresponsabilidadedosperitosDaelLimadaSilvaeAristeuAlvesLima.MaçoVI,arquivo2.UFGD.

52 . Sobre o local da apreensão e nunca ter usado o revólver, auto dequalificaçãoeinterrogatóriodeRômuloGamarra.MaçoIII,arquivo4.UFGD.

53 .RelatóriodoagentedaPolíciaFederalRamonAjalaPereira,6dez.1983.UFGD.

54 . Termo de declarações de Isaías daRosa e de Faustino da Silva à PolíciaFederal,7dez.1983.UFGD.

55.Telegramade7dez.1983.UFGD.56.TermodedeclaraçõesdeIsaíasàPolíciaFederal,7dez.1983.UFGD.57 .TermodedeclaraçõesdeAurélioAjala,6dez.1983.Maço II , arquivo3.UFGD.

58.TermodedeclaraçõesdeAlexandreArinosàPolíciaFederal,14dez.1983.MaçoII,arquivo4.UFGD.

59.TermodedeclaraçõesdeEraldoAlmeidaDuarteàPolíciaFederalemPontaPorã,16dez.1983.MaçoII,arquivo4.UFGD.

60.TermodedeclaraçõesdeLíberoàPolíciaFederal,30nov.1983.MaçoVI,arquivo1.UFGD.

61.Veja,SãoPaulo,n.796,p.48,7dez.1983.

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62.Termodedeclaraçõesde17nov.1987.MaçoI,arquivo2.UFGD.63.PedidodeverbaedespachoanunciandoqueaverbanãohaviasidoliberadaerelatóriodeviagemdosagentesdaPolíciaFederal.MaçoVI,arquivo2.UFGD.

64.Telegramade31maio1984.Inquérito148/83.UFGD.65 . Laudo do Instituto Nacional de Criminalística, em Brasília, deresponsabilidadedosperitosDaelLimadaSilvaeAristeuAlvesLima.MaçoVI,arquivo2.UFGD.

66.Id.67.RelatóriodemissãoassinadopeloagentedaPolíciaFederalNelsonWagnerS.deAlmeida,3jun.1984.MaçoVI,arquivo2.UFGD.

68.MaçoVI,arquivo2.UFGD.69.JornalPorantim,doCimi,set.1984.PastaMarçaldeSouza.ASI-Funai.AN.

70.TermodeinformaçõesdeIvoneChucarroaodelegadodaPolíciaFederalemPontaPorãIsaíasPadilhaGuimarães.MaçoI,arquivo3.UFGD.

71 . Despacho do delegado assinado em 17maio 1984.MaçoVI , arquivo 1.UFGD.

72.Telegramade31maio1984.MaçoVI,arquivo3.UFGD.73.DespachoassinadopelojuizdePontaPorã,7ago.1991.MaçoIV,arquivo1.UFGD.

74.TermodedeclaraçõesdeArmandoàPolíciaFederalemSãoPaulo,6maio1988.UFGD.

75.Testemunhadojuízo,emSãoPaulo,27fev.1992.MaçoIV,arquivo2.UFGD.

76.Testemunhadojuízo,24set.1991.MaçoIV,arquivo1.UFGD.77.Termodeaudiênciadeinquiriçãodetestemunha,nacomarcadeBrusque(SC), nos autos de carta precatória no 128/91, oriunda do Juízo de Direito daComarcadePontaPorã,19nov.1991.MaçoIV,arquivo1.UFGD.

78.Entrevistaaoautor,20set.2014.79.DespachoassinadopelodelegadoWiltonGonçalvesRamos,22dez.1983.

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MaçoVI,arquivo2.UFGD.80.DespachodeBório,13fev.1984.MaçoVI,arquivo2.UFGD.81 .Despacho convertendo em diligência, 6maio 1991.Maço IV , arquivo 3.UFGD.

82 . Laudo de exame necroscópico por exumação, InstitutoMédico Legal, 19jun.1991.AssinadopeloslegistasRaulGrigolettieRicardoZocolaro.MaçoIII,arquivo1.UFGD.

83 . Certidão expedida pela escrivã Cleuracy de Lima Pinto, 26 maio 1992.MaçoIV,arquivo1.UFGD.

84.Despachode28maio1992.MaçoIV,arquivo1.UFGD.85.Petiçãode31out.1992.MaçoIV,arquivo3.UFGD.86.DenúnciaformuladapelopromotorAntônioClementeNeto,15ago.1988.MaçoVI,arquivo1.UFGD.

87 . Parecer em apelação criminal assinado pelo procurador de Justiça JoãoBatistadaCostaMarques,8set.1993.MaçoV,arquivo1.UFGD.

88.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,p.14,9jun.1998.89 . Sobre a descrição do evento, relatório assinado porMeirelles. Pasta JoséCarlosMeirellesJúnior.ASI-Funai.AN.

EPÍLOGO(TALVEZUMAVITÓRIA)

1.Ofíciode8maio1985.PastaPlanosdeAçãodaFunai.ASI-Funai.AN.2.DepoimentonaCPIdoÍndio,1977.Cedi-Câmara.3.Id.4 . Ofício endereçado àASI da Funai, 19 set. 1972. Pasta Planos de Ação daFunai.ASI-Funai.AN.

5 . “Sugestões de uma política para os grupos arredios”, 19 ago. 1983. PastaÍndiosIsolados.ASI-Funai.AN.

6 . Estudo da Funai “Sudam e Funai”, 1984. Pasta ASI Sudam e Funai. ASI -Funai.AN.

7.DocumentofinaldoIEncontrodeSertanistas,22a27jun.1987,emBrasília.PastaÍndiosIsolados.ASI-Funai.AN.

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8.EstudoPreliminar(Secreto)no025/3aSC/86“DesenvolvimentoordenadodaAmazônia Legal”, da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional.ArquivodoEstado-MaiordasForçasArmadas.AN.

9.Estudo(Secreto)no009-4aSC/86,“ProjetoPresença”,24nov.1986,arquivodoEstado-MaiordasForçasArmadas.AN.

10.EntrevistadeCarvalhoaoautoremBrasília,mar.2014.11.SobreasmortesdeSantanaeAri,LilianNewlands(Org.),op.cit.12 . Estado de Minas (Belo Horizonte, 17 abr. 2013), reportagem de FelipeCanêdo.

13.IstoÉGente,SãoPaulo,6mar.2000.14.Manchete,RiodeJaneiro,ano48,n.2507,p.10.15.Sobreosdoisparágrafos,autosdoprocessojudicial.Prelazia-Araguaia.16.EntrevistaaoautornoRiodeJaneiro,15out.2013.17 .Relatório de identificação e delimitação da terra indígenaVale do Javari,produzidopelaFunai,maio1998.ISA.

18.RelatóriodaenfermeiraDnairdeOliveira,deMarabá(PA),4abr.1983.ISA.19 . Relatório do sertanista-chefe do posto de atração João Evangelista deCarvalho,maio1983.ISA.

20 . Quadro demográfico atribuído pela Funai à pesquisadora Marta MariaAzevedo, divulgado no site da Funai. Disponível em: www.funai.gov.br.Acessoem:2set.2016.

21.Paraessenúmeroeosseguintes,“OBrasilindígena”,estudoproduzidopelaFunaiepeloIBGEsobreocensodemográficonacionalde2010.

22.OEstadodeS.Paulo,SãoPaulo,19maio2007.23.RelatóriododelegadosubstitutodaFunaiemManaus,FranciscoAroldodosSantos,13maio1983.Sedoc-Funai.

24.“RelatóriodoGrupoRoraima”,daFunai,assinadopelocoordenadorRubensAutodaCruzOliveira,10jun.1975.ISA.

25.Notaoficial“SituaçãodesaúdeYanomami”,dez.de1991.Sedoc-Funai.26 . Sobre as denúncias contra hidrelétricas, “Declaração conjunta: Grandesbarragens e violações dos direitos dos povos indígenas na Amazônia

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brasileira”,subscritapor24ONGsbrasileirasecatorzeinternacionais,14fev.2014.Sobreasdemarcações, levantamentodo ISA“Demarcaçõesnosúltimosseis governos”, última atualização 12 maio 2016. Disponível em:<pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/demarcacoes-nos-ultimos-governos>.Acessoem:2set.2016.

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CRÉDITOSDASIMAGENS

1:LuizPinto/AgênciaOGlobo2:AntonioNery/AgênciaOGlobo3,4e5:OrlandoBrito/AgênciaOGlobo6:MarcioArruda/AgênciaOGlobo7e8:FernandoPereira/CPDOCJB9:AdemirBarbosa/Folhapress10:Arquivo/AgênciaOGlobo11:AcervodoMuseudoÍndio/Funai–Brasil12:SolanoJosé/EstadãoConteúdo13:RolandodeFreitas/EstadãoConteúdo

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SERGIOLIMA

RUBENS VALENTE nasceu em Goioerê (PR), em1970.JornalistadaFolhadeS.Paulodesde2000,fez reportagens em mais de trinta terrasindígenas,principalmentenosanos1990.Desde2010érepórterdojornalnasucursaldeBrasília.

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Copyright©2017byRubensValenteGrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.ProjetográficoeCapaKikoFarkaseAnaLobo/MáquinaEstúdioFotodecapaPauloSuess/AcervoCIMIPreparaçãoCacildaGuerraRevisãoIsabelCurySilvanaSalernoISBN978-85-438-0867-3TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORASCHWARCZS.A.RuaBandeiraPaulista,702,cj.3204532-002–SãoPaulo–SPTelefone:(11)3707-3500www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.brfacebook.com/companhiadasletrasinstagram.com/companhiadasletrastwitter.com/cialetras

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Umahistóriadosamba:AsorigensNeto,Lira

9788543808536

376páginas

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UmdosmaioresbiógrafosdoBrasilcontaahistóriade

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nossogêneromusicalporexcelência:osamba.

DepoisdaaclamadatrilogiabiográficadeGetúlioVargas,LiraNetoselançouaodesafiodecontarahistóriadosambaurbano.Emsuanovaempreitada(defôlego!),oescritorcearensepretenderetraçar,comsuavervenarrativasingular,opercursocompletodesseritmosincopadoqueéumdossinônimosdabrasilidade.Emvirtudedariquezaedaamplitudedomaterialcompilado,recheadodedocumentosinéditoseregistrosfotográficos,oprojetoserádesdobradoemtrêsvolumes-nesteprimeiro,LiralevaoleitordasorigensdosambaatéodesfileinicialdasescolasdesambanoRio.OsambacariocanasceunoiníciodoséculoXXapartirdagradativaadaptaçãodosambaruraldoRecôncavobaianoaoambienteurbanodaentãocapitalfederal.Descendentedasbatidasafro-brasileiras,masigualmentedevedordapolcadançante,ogêneroencontrouterrenofértilnosfestejosdoCarnavalderua.Nasdécadasde1920e1930,comoaprimoramentodomercadofonográficoedaradiodifusão,consolidouseuduradourosucessopopular,simbolizadopelosurgimentodasprimeirasestrelasdo

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gêneroepelafundaçãodasescolasdesamba.

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UmasensaçãoestranhaPamuk,Orhan

9788543808741

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Apartirdosolhardeumvendedorambulante,PamukfazdeclaraçãodeamoraIstambulemnovoromance.

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OprincipalpersonagemdaobradeOrhanPamuknãocostumaserumapessoa,masumacidade:Istambul.EmUmasensaçãoestranhanãoédiferente.Atransformaçãodacidadeaolongodeváriasdécadaséapresentadapelosolhosdeumvendedorambulante,Mevlut,quepasseiapelasruascompotesdeiogurte,arroz,ervilhaeboza—umabebidaturcatípica,feitacomtrigofermentado.Nascidonumpobrevilarejo,Mevlutsaidecasaaosdozeanosrumoàcidadegrande.Alicomeçaumasériedetentativasfalhadasdeestudar,abrirnegócios,engajar-sepoliticamente.QuandoMevlutchegaàmeia-idade,todosaseuredorestãodeolhonasbenessesfugazesdeumaTurquiaquesemoderniza.EmUmasensaçãoestranha,Pamukpintaumquadrobrilhantedavidaentreosrecém-chegadosquetransformaramIstambulaolongodosúltimoscinquentaanos.

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OinstantecertoHarazim,Dorrit

9788543806242

384páginas

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Comolharargutoesensível,ajornalistaDorritHarazimfaladealgumasdasmaisimportantesfotografiasda

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história.Hácliquesquealteraramorumodahistóriaeoscostumesdasociedade.NesteOinstantecerto,apremiadajornalistaDorritHarazimcontaashistóriasdealgunsdosmaiscélebresfotogramasjátirados.Assim,registrosdaGuerraCivilAmericanaservemdebaseparaanalisarosavançostecnológicosdafotografia;umafotonacidadedeSelmacontaahistóriadomovimentopelosdireitoscivis;eumamudançanaleitrabalhistabrasileiratemcomofrutoumdosmaisprofícuosretratistasdopaís.Emseuprimeirolivro,Harazinnosguianãoapenasatravésdasimagens,masdeumuniversodehistóriasinterligadas,acasoseaquelesbrevesmomentosdegenialidadequesóafotografiapodecaptar.

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Compre-meocéuXinran

9788543808826

352páginas

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Nesterelatopungenteerevelador,XinraninvestigaasconsequênciasdapolíticadofilhoúniconaChina.

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EstelivrofaladehomensemulheresnascidosnaChinadepoisde1979—asgeraçõesrecentescriadassobapolíticadofilhoúnico.Dentrodesuasfamílias,sãovistoscomopríncipes,mastantoafagoostornouisolados,confusoseincapazesdelidarcomavidaprática.Dofilhodeumexecutivoincapazdearrumaraprópriamalaaoalunodedoutoradoquesuperouaextremapobreza,Xinranmostracomoessasgeraçõesencarnamosmedoseasesperançasdeumgrandepaísnumtempodemudançassemprecedentes.Éummomentodefragmentação,emqueocapitalismoconvivecomocomunismo,acidadecomocampoeasoportunidadesdoOcidentecomastradiçõesdoOriente.Pormeiodasfascinanteshistóriasdefilhosúnicos,capturamosumafacetadecisivadaChinacontemporânea.

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FimaOz,Amós

9788543808147

320páginas

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FimaviveemJerusalém,masachaquedeveriaestarem

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outrolugar.Aolongodesuavida,tevediversosamores,foiumjovempoetapromissor,meditouacercadosentidodouniverso,polemizousobreosdescaminhosdeIsrael,elaborouumafantasiadetalhadasobreacriaçãodeumnovomovimentopolíticoesentiuaânsiaconstantedeabrirumnovocapítuloemsuavida.Eei-loagora,aos54anos,emseuapartamentoimundo,numamanhãcinzentaeúmida,travandoumabatalhahumilhanteparasoltarapontadesuacamisapresanozíperdacalça.Comgraça,agudezaeconhecimentoprofundodaalmahumana,AmósOztraçaoretratodeumhomemedeumageraçãoquetevesonhosnobresegenerosos,maséincapazdefazeralgumacoisa.

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