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Inocência roubada

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Mais que uma história de sobrevivência e liberdade, este é o relato de uma heroína que, com muita luta e determinação, recuperou sua vida. Elissa Wall descreve os detalhes de uma vida enclausurada por Warren Jeffs, líder religioso que defendia a poligamia e estabelecia casamentos entre seus seguidores e garotas ainda adolescentes. Sendo uma de suas vítimas, Elissa conta como conseguiu se livrar desta seita e ainda ajudar a polícia americana a encontrar um dos fugitivos mais procurados pela polícia.

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Elissa Wall é uma jovem ex-membro da IFSUD que foi forçada a se casar aos 14 anos. Deixou a igreja aos 18 e atualmente vive com os dois filhos e o marido, Lamont.

lisa PulitzEr é escritora e já publicou cinco livros de não-ficção ainda inéditos no Brasil: Crossing the Line: Joel Rifkin, Crime on Deadline, A Woman Scorned, Fatal Romance e Murder in Paradise. Lisa mora em Long Island, Nova York.

www.inocenciaroubada.com.br

Em setembro de 2007, a lotada sala de julgamentos do tribunal de St. George, em Utah, ficou em completo silêncio, quando Elissa Wall, a testemunha-chave contra Warren Jeffs, o líder de uma seita poligâmica, deu seu testemunho contando que ele a forçara a se casar aos 14 anos. Seu relato angustiado e vívido foi a prova mais forte contra Jeffs, mostrando a dura realidade da comunidade fechada da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (IFSUD) e contando os extremos a que seu líder chegava para manter as mulheres sob controle.Oferecendo sua visão da vida na IFSUD, Elissa fala dos tempos de criança, explicando como o turbulento passado de sua família alicerçou sua personalidade forte, que a definiu como uma menina que precisava ser controlada através do casamento.Uma vez casada, Elissa viu a infância arruinada ao se ver obrigada a obedecer às ordens de Warren Jeffs e a entregar-se ao marido de “corpo, mente e alma”. Com pouco dinheiro e sem conhecer o mundo exterior, ela estava presa a essa realidade e era forçada a suportar a dor e os abusos que sofria naquele relacionamento. No entanto, Elissa nunca perdeu a esperança de encontrar o caminho da libertação. E esse caminho apareceu na forma de um estranho chamado Lamont Barlow. O encontro entre os dois foi o início de uma amizade e depois do amor que deu a Elissa a força de que ela precisava para se libertar do passado e das algemas da igreja.

“Desde o dia em que nasci, pertenci à Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (IFSUD). Aquele modo de vida era o único que eu conhecia; não me era possível imaginar outro diferente. Pelo que

me haviam ensinado, cabia ao profeta [Warren Jeffs] decidir o que era melhor para nós, e as palavras que ele dizia vinham direto de Deus. Eu acreditava

que era da vontade de Deus que eu me casasse, e que isso não podia ser evitado. Mas ainda assim tinha que tentar. Eu também sabia que era diferente das

outras meninas de nossa comunidade. Eu queria estudar, talvez até vir a ser enfermeira ou professora. Descobrira que certas coisas com as quais eu nunca sonhara eram possíveis. Claro, eu pretendia ser mãe, mas não queria começar

essa missão aos 14 anos. Queria filhos, mas também queria um futuro, e ousava pensar que podia conseguir as duas coisas.”

Neste livro corajoso, Elissa Wall conta a incrível e inspiradora história de como emergiu do confinamento imposto pela IFSUD e ajudou a levar à justiça um dos mais notórios criminosos dos Estados Unidos. Mais do que uma história

de sofrimento e libertação, este livro é a história de uma mulher heroica que se ergueu em defesa do que era certo e reclamou sua vida de volta.

INOCÊNCIA ROUBADAElissa W

all com Lisa Pulitzer

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INOCÊNCIA

ROUBADA

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Elissa Wallcom Lisa Pulitzer

INOCÊNCIA ROUBADA

A história da mulher que chocou os EUA revelando sua vida em uma seita poligâmica

TRADUÇÃO

Vera Maria Marques Martins

Page 4: Inocência roubada

© 2008 by Elissa Wall

Publicado sob acordo com a HarperCollins Publishers.

Todos os direitos reservados à Ediouro Publicações Ltda., 2009

Assistente editorial: Fernanda CardosoCoordenadora de produção: Adriane Gozzo

Assistente de produção: Juliana CampoiPreparação de textos: Alessandra Miranda de Sá

Revisão: Márcia DuarteEditora de arte: Ana Dobón

Projeto gráfi co e diagramação: Dany EditoraCapa: Rick Pracher

Imagens de capa: arquivo pessoal da autora

Todos os direitos reservados à Ediouro Publicações Ltda.

Rua Nova Jerusalém, 345 – BonsucessoRio de Janeiro – RJ – CEP 21042-235

Tel.: (21) 3882-8200 Fax: (21) 3882-8212 / 3882-8313www.ediouro.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wall, ElissaInocência roubada : A história da mulher que chocou os EUA

revelando sua vida em uma seita poligâmica / Elissa Wall com Lisa Pulitzer . -- São Paulo : Ediouro, 2009.

Título original: Stolen innocenceISBN 978-85-00-01420-8

1. Casamento - Aspectos religiosos - Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos do Último Dia 2. Casamento forçado - Estados Unidos 3. Esposas maltratadas - Estados Unidos - Biografi a 4. Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos do Último Dia 5. Jeffs, Warren, 1955- 6. Mormons - Estados Unidos - Biografi a 7. Poligamia - Estados Unidos 8. Wall, Elissa I. Pulitzer, Lisa. II. Título.

08-11913 CDD-364.15553092

Índice para catálogo sistemático:

1. Estados Unidos : Mulheres violentadas : Biografi a 364.15553092

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Esta é minha história. Os eventos descritos são baseados em minhas memórias e são reais. Mudei o nome de alguns personagens para proteger sua privacidade.

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A Sherrie e Ally: vocês me lembram todos os dias

de que sou uma lutadora.

E à memória de Daleen Bateman Barlow, minha sogra,

uma das primeiras pessoas a ter coragem de abandonar

tudo por ela mesma e por seus fi lhos.

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SUMÁRIO

Prólogo ...................................................................................... 11

PRIMEIRA PARTE

1. Uma nova mãe ................................................................... 17

2. Crescendo como uma boa menina ..................................... 32

3. Bons fi lhos do sacerdócio ................................................... 52

4. Na luz e na verdade ............................................................ 62

5. A ascensão de Warren ........................................................ 74

6. Fora de controle ................................................................. 88

7. Nova transferência de posse ............................................... 100

8. Preparando-nos para Sião ................................................... 114

9. A revelação......................................................................... 122

10. A lei celestial ...................................................................... 134

11. A palavra do profeta ........................................................... 147

12. Marido e mulher ................................................................ 160

13. Completamente sozinha .................................................... 175

SEGUNDA PARTE

14. Começa a luta pela sobrevivência ...................................... 195

15. A destruição está próxima .................................................. 209

16. A morte chega a Short Creek .............................................. 223

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17. Falso profeta ....................................................................... 231

18. Refúgio no Canadá ............................................................. 241

19. Sem ter para onde ir ........................................................... 256

20. Um par de faróis ................................................................. 267

21. Prometo que não contarei .................................................. 283

22. Uma história igual a minha ................................................ 295

23. Enfi m, o amor .................................................................... 311

24. Escolhendo meu futuro ...................................................... 323

TERCEIRA PARTE

25. Um novo começo ............................................................... 337

26. A denúncia ......................................................................... 354

27. Preso .................................................................................. 365

28. Frente a frente com Warren ............................................... 372

29. Começa o julgamento......................................................... 388

30. O fi m se aproxima .............................................................. 406

31. Estou livre .......................................................................... 427

Epílogo ...................................................................................... 436

Nota da autora ............................................................................ 443

Agradecimentos ........................................................................ 444

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PRIMEIRA PARTE

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Uma nova mãe

� � �

Para nós, é o sacerdócio de Deus ou nada.

PROVÉRBIO DA IFSUD

A inda posso sentir o cheiro do assado recém-tirado do forno na noite

em que papai anunciou que teríamos uma nova mãe. Embora já

houvesse duas mães em nossa casa, receber uma terceira era motivo

de comemoração. Eu tinha 9 anos e fi quei um pouco confusa, mas

também empolgada, porque todo mundo ao redor da mesa parecia

muito feliz por nosso pai.

Não parecia estranho ter uma terceira mãe, tampouco o fato de que

nossa família continuaria a crescer. Isso era apenas parte da única vida

que eu conhecia como membro da IFSUD, grupo que havia se separado

da Igreja Mórmon a fi m de que seus membros pudessem continuar a

praticar o casamento múltiplo. Claro, em nossa casa já havia duas mães

e totalizávamos quase uma dúzia de irmãos, mas muitas das crianças

que eu conhecia tinham muito mais do que isso, e recebermos outra

mãe parecia fazer sentido.

Naquele tempo, eu não compreendia muita coisa a respeito de

nossa igreja, mas sabia que éramos diferentes das pessoas que viviam

no mesmo subúrbio de Salt Lake City onde morávamos. Para começar,

não tínhamos permissão para brincar com as crianças da vizinhança

e, para proteger nossa privacidade e a vida secreta que levávamos, as

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cortinas de nossas janelas eram mantidas sempre fechadas. Todas as

outras crianças iam a escolas públicas nos ônibus amarelos, menos nós.

Frequentávamos uma escola especial, a Alta Academy, fundada por

membros da IFSUD e que funcionava numa enorme e despretensiosa

casa branca. Também nos vestíamos de modo diferente: usávamos

roupas de baixo de mangas e pernas compridas, que nos cobriam por

inteiro. Por cima disso, as meninas e mulheres usavam longos vestidos

com babados, ao estilo da época dos pioneiros, o que tornava difícil

brincar no quintal e, mais difícil ainda, suportar o calor do verão. As

outras crianças usavam shorts e camisetas, mas nós não tínhamos essas

coisas e, ainda que tivéssemos, não poderíamos usá-las.

Na época, eu não entendia por que tudo tinha de ser tão diferente,

só sabia que devia “ser uma boa menina” e não reclamar. Éramos o povo

escolhido de Deus e, quando o dia do Juízo Final chegasse, seríamos

os únicos a ir para o céu. Para a IFSUD, o dia do Juízo Final era o dia

em que o Senhor traria destruição ao mundo, com fogo e tempesta-

des, deixando um rastro de morte por onde passasse. Todos os iníquos

seriam destruídos e, quando se tivesse a impressão de que ninguém

sobrevivera, o Senhor ergueria da terra os merecedores — nós —,

mantendo-nos a salvo da devastação aqui embaixo. Depois, seríamos

trazidos de volta à terra e construiríamos Sião, um lugar onde não

haveria tristeza nem sofrimento. Nesse lugar, viveríamos com Deus

durante mil anos de paz.

Meu pai, Douglas Wall, era um élder, um ancião da igreja. Para

ele, e na verdade para toda a família, receber uma terceira esposa

era uma enorme bênção, um marco importante na longa estrada da

salvação eterna. O conceito de um homem ter mais de uma esposa

tornara-se parte integrante da religião mórmon quando fundada por

Joseph Smith, em 1830, mas a prática da poligamia fora ofi cialmente

abandonada em 1890, para que Utah ganhasse a posição de Estado. Mas

fora abandonada em parte, porque alguns dos membros continuaram

a praticá-la em segredo, correndo o risco de serem excomungados.

Em 1935, alguns homens que haviam sido expulsos da Igreja Mórmon

fundaram a própria seita, conhecida primeiro como A Obra e, décadas

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mais tarde, como Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Eles viam o casamento múltiplo como um dos dogmas principais e a única maneira de se alcançar a salvação eterna.

Os membros da IFSUD acreditam que estão seguindo a verdadeira religião mórmon, como foi originalmente idealizada por Joseph Smith. Um de seus principais ensinamentos é o conceito do casamento ce-lestial, no qual um homem deve ter no mínimo três esposas para ser admitido no mais alto dos três planos do céu. O fato de papai tomar uma terceira esposa signifi cava que ele começara a garantir um lugar no reino do céu para si mesmo e sua família.

Onze dos vinte e dois fi lhos de papai ainda moravam em nossa casa, em Salt Lake City, quando ele, naquela noite de sábado, em outubro de 1995, contou-nos a respeito da terceira esposa. Muitos de meus irmãos e irmãs mais velhos haviam se casado e se mudado para começarem a própria vida. Nossa família morava numa rua tranquila do subúrbio chamado Sugar House, a cerca de trinta quarteirões a sudeste da praça do Templo, o centro de comando da Igreja Mórmon. Fundado em 1853, seis anos após Brigham Young ter levado os pioneiros mórmons para o vale de Salt Lake, o subúrbio tinha o nome de Sugar House por causa do engenho de açúcar, cuja construção nunca fora completada. Apesar disso, o nome fi cou.

Havia um espaço de mais ou menos seis metros entre o pátio frontal de nossa casa e a rua, e de lá podíamos avistar as montanhas Wasatch ao longe. Pinheiros altos e arbustos no pátio da frente ocul-tavam a casa quase totalmente e a faziam parecer menor do que real-mente era, mas papai adorava o lugar, porque havia um quintal muito grande, onde as crianças podiam brincar. Mais importante ainda era a privacidade que tínhamos ali, algo essencial, porque não queríamos que as pessoas soubessem muito a nosso respeito. Como casamentos múltiplos eram proibidos em Utah, nossa família, assim como todas as outras da IFSUD, preocupava-se com a atenção de que seríamos alvo se o mundo exterior soubesse o que acontecia em nossa casa.

O que impedia que famílias como a nossa fossem descobertas era o fato de haver um número pequeno delas e de todas estarem espalhadas

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ao longo do vale de Salt Lake. Naquele tempo, havia cerca de noventa

famílias da religião mórmon fundamentalista residindo na área e, se

todas morassem num mesmo local, nosso modo de vida atrairia mais

atenção, e a irregularidade em que vivíamos acabaria por chegar ao

conhecimento do governo estadual.

Naquela noite de sábado, sentado à cabeceira da mesa de jantar,

meu pai sorria, satisfeito. As duas esposas, mães da família, estavam

sentadas a seu lado, uma à esquerda e outra à direita, e logo elas teriam

de abrir espaço para mais uma. Sharon, minha mãe biológica, era a

segunda esposa de meu pai. Audrey era a primeira, e eu a chamava de

mãe Audrey. A atmosfera era de entusiasmo e nós nos entreolháva-

mos, cheios de esperança de um futuro promissor. O rosto de meu pai

parecia dilatar de orgulho enquanto nos falava sobre como devíamos

nos preparar para a cerimônia e providenciar um lugar para nossa

nova mãe. Minha irmã mais velha, Rachel, e alguns outros membros

da família começaram a compor uma canção que cantaríamos para

comemorar a chegada da nova mãe.

Mas, quando a alegria da noite cedeu lugar à realidade da luz do

dia, a ansiedade causada pela situação tornou-se palpável. Receber

uma nova mãe devia ser uma ocasião maravilhosa, motivo de grande

júbilo, e sempre haviam nos ensinado que esse era um presente de

Deus, algo para ser comemorado e reverenciado. Mas, por trás de nossa

alegria exterior, a tensão espreitava, ameaçadora, porque ninguém

— nem meu pai, minha mãe, mãe Audrey ou meus irmãos — podia

afi rmar com exatidão o impacto que aquele acontecimento teria sobre

a química instável já em curso em nossa casa.

Pelo que me lembro, sempre houve uma corrente subterrânea de

rivalidade e intranquilidade em nossa família. O relacionamento entre

mãe Audrey e minha mãe era complexo, muitas vezes entremeado

de mal-entendidos, e seus sentimentos, bastante naturais, de insegu-

rança e ciúme causavam problemas para todos nós. Tentar coexistir

como uma única família, numa casa onde havia muitos fi lhos e duas

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mulheres dividindo o mesmo marido, apresentara desafi os desde que

minha mãe chegara, há mais de vinte e cinco anos.

Papai tinha 15 anos quando conheceu Audrey. Os dois frequenta-

vam a mesma escola, a Carbon High School, e iam para lá no mesmo

ônibus. Meu pai estava no primeiro ano do ensino médio, era presidente

de sua classe e astro do time de futebol quando um amigo o apresentou

a Audrey, aluna do último ano, linda, vibrante, inteligente, educada

e extrovertida. Os dois combinavam perfeitamente. Começaram a

namorar e se casaram em agosto de 1954.

Como nenhum dos dois fora criado na IFSUD, abraçaram a fé por

acaso. Estavam casados havia vários anos quando os pais de Audrey

converteram-se à religião fundamentalista. Ansiosos por encaminha-

rem os dois de volta ao mormonismo tradicional, papai e Audrey come-

çaram a estudar a religião fundamentalista para aprenderem tudo que

pudessem sobre essa fé. Naquela época, a igreja ainda era conhecida

como A Obra, e o plano dos dois era examinar profundamente seus

ensinamentos em busca de falhas, mas, em vez disso, foram envolvidos

pelo que encontraram.

Alguns anos depois de se juntarem à IFSUD, meu pai conheceu

minha mãe, a mulher que se tornaria sua segunda esposa, numa viagem

que fez ao sul de Utah. Como geólogo, papai era um recurso valioso

para a comunidade da igreja. Naquela época, ele trabalhava muito com

a comunidade principal nas cidades fronteiriças de Hildale, em Utah,

e Colorado City, no Arizona, ajudando os membros de lá a encontrar

fontes de água potável.

Mamãe foi criada na religião fundamentalista, no sul de Utah, e

cantava no coro da igreja. Meu pai a notou pela primeira vez, num culto

dominical de que participou, quando ela, sentada com os outros canto-

res, esperava pelo momento da apresentação do coro. Ela se inclinou

e murmurou alguma coisa ao ouvido do pai, Newel Steed, regente do

coro, e aquele leve movimento chamou a atenção de papai.

Mais tarde, papai me disse que, naquele momento, ele ouviu

uma voz que lhe dizia: “Sharon Steed pertence a você. Ela será sua

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nova esposa e você será o próximo que falará à congregação”. Papai

fi cou extremamente surpreso quando, poucos minutos depois, cha-maram-no ao púlpito para falar. Os homens da IFSUD são ensinados a crer que têm o poder de receber revelações diretamente de Deus, e papai acreditou que acabara de receber uma delas. Ele voltou para

Salt Lake City e, seguindo os ensinamentos da igreja, começou a orar pedindo esclarecimento sobre a revelação. Para seu espanto, alguns

meses depois de voltar a Salt Lake, Audrey contou-lhe a respeito de uma revelação que ela própria tivera. Sonhara que uma mulher cha-

mada Sharon Steed pertencia à família deles, e perguntou a papai se ele conhecia alguém com esse nome. Até aquele momento, meu pai não dissera a ninguém que tivera uma revelação, de modo que ouvir o relato de Audrey foi uma grande surpresa. Ele, então, falou sobre Sharon, e os dois começaram a orar juntos.

Mais de um ano se passou, e nada aconteceu. Então, papai soube que Sharon ia se casar com outro homem. Desapontado e preocupado por achar que compreendera mal a revelação, ele conversou a respeito com o irmão de Audrey, que lhe sugeriu falar com o homem que, na

época, era o chefe da igreja, o profeta Leroy S. Johnson, a quem as pessoas chamavam de tio Roy. Na religião fundamentalista dos Santos

dos Últimos Dias, “tio” é um termo que os membros usam quando se referem aos patriarcas e líderes da igreja em sinal de carinho e respeito.

Durante a conversa, papai descobriu que não havia nenhum casamento planejado para Sharon, e foi aconselhado a ir para casa e orar para que

tio Roy pudesse “conversar sobre o fato com o Senhor”.

Quando se trata de casamento, os membros praticam algo cha-mado a Lei do Arranjo, segundo a qual todos os casamentos são deter-minados pelo profeta e baseados em uma revelação que ele recebe de Deus. Tudo que o profeta proclama é considerado a palavra de Deus e, assim, se ele diz que duas pessoas devem se casar, é como se o próprio Deus ordenasse a união.

Várias semanas após essa conversa com tio Roy, papai e Audrey foram visitar a comunidade do sul de Utah, e foi então que veio a pa-lavra reveladora do profeta. Seguindo as instruções de tio Roy, eles

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foram à casa onde Sharon, minha futura mãe, vivia com sua família para se apresentarem. Mamãe estava na sala de estar quando os dois chegaram e, sem saber o que estava prestes a acontecer, levantou-se para sair, mas o pai dela lhe pediu que fi casse e conhecesse o homem que seria seu marido. Minha mãe já sabia da predição do profeta sobre um casamento para ela, porém, como nada havia acontecido imedia-

tamente, preocupara-se imaginando que não se casaria. Por tradição, as uniões eram “seladas” pelo profeta dentro de poucos dias, às vezes

horas, após a revelação.

Meu pai e ela se casaram no mesmo dia. Como não houve tempo

para costurar um vestido de noiva, mamãe contentou-se em usar um cor-de-rosa, que era seu favorito. Naquela noite, estava a caminho de

Salt Lake City para começar uma nova vida com meu pai e Audrey, na casa de seis dormitórios com vista para as montanhas Wasatch.

Até então, mamãe passara poucas noites longe de sua numerosa

família e, embora aquela fosse uma mudança súbita, portanto difícil, sua fé inabalável ajudou-a a vê-la como positiva. A união representava um marco importante em sua vida: o profeta encontrara um lugar onde ela poderia começar a construir uma nova família.

Mamãe crescia na época em que as autoridades locais no sul de Utah e no norte do Arizona estavam empenhadas em acabar com os casamentos múltiplos. Durante algum tempo, o pai dela, meu avô Newel, tornara-se alvo constante de investigação, tendo recebido visitas

inesperadas de policiais em sua fazenda esperando encontrá-lo com várias esposas. Como resultado, ela passou grande parte da infância acompanhando a família em mudanças entre os dois Estados, Utah e

Arizona, para que as autoridades não descobrissem o arranjo polígamo. Para não ser apanhado, e possivelmente preso, meu avô começou a

esconder as esposas e os fi lhos em vários locais da região. Minha avó Alice, mãe de minha mãe, foi enviada para uma casa perto da fronteira

do Arizona com os fi lhos, onde eles poderiam continuar frequentando a escola. De algum modo, porém, as autoridades os descobriram, e al-

guém, anonimamente, avisou minha avó, oferecendo-se para ajudá-la a escapar. Para espanto da polícia, nenhuma das mulheres que eles

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24 � Elissa Wall

suspeitavam ser esposas de meu avô parecia infeliz; nenhuma delas

procurava ajuda. Na verdade, as cinco só queriam que as deixassem em

paz para viverem de acordo com suas crenças religiosas. Muitas vezes

foi dito que vovô Newel e sua família eram um exemplo que devia ser

seguido por todos.

Por mais traumático que possa parecer o fato de estar sempre

se mudando e fugindo das autoridades, minha mãe nunca perdeu a

fé. Ela acreditava profundamente na tradição do casamento múlti-

plo e nos ensinamentos da igreja, e a maneira positiva como passou

pela experiência de crescer nessas circunstâncias modelou toda sua

visão de mundo. Quando ela falava da infância que tivera, sua voz

ecoava afeição, mesmo que estivesse contando como sua família fora

perseguida. Histórias nostálgicas sobre sua vida na fazenda do pai

misturavam-se a outras, com cenas dramáticas de fuga, deixando-me

apavorada e transmitindo-me a lição de que não devíamos confi ar em

estranhos, principalmente em policiais. Uma história em particular,

sobre minha mãe e seus irmãos pequenos precisarem fugir por um

buraco na cerca de sua “casa segura” perto da fronteira do Arizona,

deixava-me tão nervosa, que eu sentia o estômago embrulhado. Junto

com meus irmãos, eu ouvia mamãe falar, imaginando o medo que ela,

ainda uma menininha, sentira ao passar por um buraco na cerca, no

meio da noite, para fugir dos policiais que pretendiam prender sua

família. Ela nos contava essas histórias para fortalecer nossa fé e nos

ajudar a compreender por que era importante não deixar que estranhos

conhecessem nosso estilo de vida.

Quando se casou, mamãe tinha apenas 18 anos, e Audrey, 33.

Apesar da diferença de idade, Audrey recebeu com entusiasmo a nova

esposa no seio da família, achando que teria uma amiga, uma confi -

dente. No entanto, logo fi cou claro que o modo diferente como as duas

haviam sido criadas tornava difícil o desenvolvimento de compreensão

e estima verdadeiras entre elas. Os pais de Audrey haviam se conver-

tido à religião da IFSUD, mas ela crescera num lar monogâmico e só

conhecera realmente um casamento múltiplo quando minha mãe se

tornou a segunda esposa de meu pai.