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Área Temática: Participação Política
Sessão: Participação, planejamento e representação de interesses
Inovações democráticas no planejamento urbano: reflexões
a partir do Plano Diretor de Fortaleza (CE)
Área Temática: Participação Política
Sessão: Participação, planejamento e representação de interesses
Inovações democráticas no planejamento urbano: reflexões
a partir do Plano Diretor de Fortaleza (CE)
Eduardo Gomes Machado
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Sessão: Participação, planejamento e representação de interesses
Inovações democráticas no planejamento urbano: reflexões
a partir do Plano Diretor de Fortaleza (CE)
Eduardo Gomes Machado
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
2
Introdução 1
No Brasil dos anos 1980, com amplas repercussões nas décadas seguintes, um
conjunto de agentes sociais, agrupados sob o ideário da Reforma Urbana, defendeu
formas inovadoras de representação e enfrentamento da questão urbana, mobilizando
conceitos como gestão democrática e função social da cidade e da propriedade. Nesse
contexto, o Plano Diretor foi normatizado como o principal instrumento de planejamento
urbano no país, pressupondo-se para sua elaboração ou revisão um conjunto de
requisitos processuais de caráter democrático (Silva, 2003). O Estatuto das Cidades (EC),
por exemplo, determinou que em sua formulação fossem garantidas audiências públicas e
debates, com a participação da população e de associações representativas dos vários
segmentos sociais, além da publicidade e do acesso de qualquer interessado aos
documentos e informações produzidos (Brasil, 2003). O EC também indicou que deveriam
ser utilizados, dentre outros, os seguintes instrumentos para garantir uma gestão
democrática da política urbana: órgãos colegiados, conferências, debates, audiências,
consultas públicas, iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos
de desenvolvimento urbano, referendo popular e plebiscito (Brasil, 2003). Ao mesmo
tempo, o EC também demarcou referências democráticas substantivas para os planos
diretores, ao vincular, por exemplo, um conjunto de instrumentos urbanísticos, fiscais,
tributários e políticos de planejamento, gestão e intervenção urbana à função social da
cidade e da propriedade e ao direito à cidade.
Ao final do século XX e início do século XXI, o campo do planejamento urbano em
Fortaleza vivenciou tensões e lutas democráticas, com experiências inovadoras de
representação, deliberação e participação popular. Nesse contexto, entre 2002 e 2009 foi
realizada uma revisão do Plano Diretor (PD) de Fortaleza. A gestão Juraci Magalhães
(PMDB – 2001-2004), iniciou a revisão no segundo semestre de 2002, e deu entrada, em
23 de setembro de 2004, na Câmara Municipal de Fortaleza, no Projeto de Lei
Complementar 0182/04, que dispôs sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e
Ambiental de Fortaleza (PDDUA-For) (Fortaleza, 2004). Porém, esse Projeto de Lei não
chegou à votação. No primeiro semestre de 2005, sob pressão de segmentos populares,
o Projeto foi retirado da Câmara Municipal pela gestão Luizianne Lins, sendo reiniciado
todo o processo, em 2006. Ao final, elaborou-se o Plano Diretor Participativo de Fortaleza
1 Este texto, mobilizando dados e achados empíricos, atualiza e direciona análises efetuadas na pesquisa que originou a Tese de Doutoramento do autor (Machado, 2011).
3
(PDPFor), tornado lei no início de 2009, no segundo mandato da Prefeita (Fortaleza,
2008).
Essa revisão adquiriu visibilidade nacional no campo do planejamento urbano, por
dois motivos. Em primeiro lugar, porque um conjunto de agentes e lutas sociais
questionou a fragilidade ou ausência de participação popular durante a gestão de Juraci
Magalhães (PMDB). Em segundo lugar, mantendo-se mobilizados, esses agentes
provocaram o reinício de todo o processo, na gestão de Luizianne Lins (PT), efetivando-
se outro desenho institucional e metodologia, incorporando inovações democráticas
formais e substantivas. Uma fala do Diretor de Planejamento Urbano do Ministério das
Cidades (MCidades) revela a visibilidade nacional que o processo de revisão do PD de
Fortaleza adquiriu no campo do planejamento urbano:
[...] a capital cearense está dando um exemplo para o País de como o documento deve ser elaborado. Segundo ele, a rejeição de Luizianne ao PD deixado pelo ex-prefeito Juraci Magalhães, sob a alegativa de falta de participação da sociedade, demonstra o compromisso da administração municipal com os movimentos populares. "Os holofotes do Brasil estão de olho em Fortaleza. Quando nos perguntam como fazer o Plano, damos o exemplo daqui" [...] (Holanda, 2006).
As revisões do PD de Fortaleza sob as gestões Juraci Magalhães (PMDB) e
Luizianne Lins (PT) detiveram diferenças nos formatos institucionais, processos e
instâncias decisórias, com implicações significativas em relação ao caráter democrático
do processo. A gestão Juraci Magalhães apenas utilizou instâncias decisórias já
existentes, a Comissão Permanente do Plano Diretor (CPPD) e o Conselho Municipal do
Meio Ambiente (COMAM), agregando reuniões informativas, com participação da
população, mas sem caráter homologatório e muito menos decisório. Além disso, cabe
indicar a ausência de autonomia política da CPPD e do COMAM, instâncias diretamente
subordinadas e controladas pelo Prefeito, e o caráter pontual e mínimo da representação
popular nessas instâncias (Machado, 2011). Na revisão sob a gestão Luizianne Lins,
conformou-se um desenho institucional mais complexo e inovador, institucionalizando-se
instâncias representativas e espaços de participação direta, com caráter deliberativo, tais
como: núcleo gestor; audiências públicas territoriais, temáticas e legislativas; fóruns; e
congresso (Machado, 2011).
Nesse contexto, com agentes sociais posicionados em pólos empresarial,
governamental e popular, cabe identificar potenciais inovações democráticas na revisão
do Plano Diretor, avaliando se essas inovações promoveram mudanças no campo do
planejamento urbano em Fortaleza, até que ponto e de que forma (Machado, 2011).
4
A revisão na Gestão Municipal de Juraci Magalhães ( PMDB)
Agregando técnicos inexistentes na Prefeitura, a gestão Juraci Magalhães
contratou a Associação Técnico-Científica Paulo de Frontin (Astef). Ao mesmo tempo,
centralizou os debates e decisões na Comissão Permanente do Plano Diretor (CPPD) e
no Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM), articulando a essas instâncias o que
alguns técnicos denominaram de agenda social. Nesse contexto, entre dezembro de 2002
e abril de 2003, o Núcleo de Habitação e Meio Ambiente (NUHAB) emergiu como agente
social importante de contestação ao processo de revisão do Plano Diretor, efetivando
ações de mobilização e esclarecimento da população, articulação interinstitucional e
negociação com os técnicos da Astef e outros segmentos da Prefeitura. Além disso,
apresentou metodologia participativa alternativa às ações desenvolvidas pela
Astef/Prefeitura (Diário do Nordeste, 2004).
A CPPD foi criada como órgâo colegiado, consultivo e de assessoramento do
Chefe do Poder Executivo, em questões relativas à política de desenvolvimento urbano,
através da Lei 7813 de 30 de outubro de 1995 (Fortaleza, 1995). O Projeto inicial do
Prefeito não previa a representação de segmentos populares, com um contingente de 18
conselheiros. Através da tramitação na Câmara Municipal, foi agregada a representação
dos movimentos populares.2 De forma geral, as atribuições e competências da CPPD
desvelam um sentido formalista, e em nenhum momento o ideário da Reforma Urbana
aparece como elemento presente em suas atribuições e competências, tanto no que se
refere à democratização do planejamento urbano, como à regulação e função social da
propriedade e ao direito à cidade. A criação da CPPD efetivou quatro movimentos
simultâneos e articulados: (1) a centralização do poder político no campo do planejamento
urbano, no interior do aparelho de Estado do executivo municipal e diretamente nas
“mãos” do Prefeito; (2) a criação de um espaço formal de debate público e participação da
sociedade, controlado pelo executivo municipal; (3) a criação de um espaço para
intermediação das demandas, para a negociação direta entre segmentos da esfera
privada e pública e para o encaminhamento de projetos e empreendimentos; (4) a criação
de um espaço de poder com autonomia do legislativo e capacidade de gerar legitimação
técnica e política para as mudanças e propostas defendidas.
O Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) foi criado em 24 de julho de
1997, através da Lei Nº. 8048/97, mantendo a mesma perspectiva da CPPD de órgão
colegiado, diretamente vinculado ao Prefeito Municipal que atuaria em “nível consultivo e
2 Parecer Nº. 95 da Comissão de Urbanismo da Câmara Municipal de Fortaleza, 26/09/1995.
5
de assessoramento ao Chefe do Poder Executivo”, para “questões relativas à política
municipal do meio ambiente na área do Município de Fortaleza” (Fortaleza, 1997). Além
disso, esse Conselho manteve a mesma divisão entre membros natos e membros
representantes, agregando a figura dos membros convidados (que não tinham direito a
voto)3, definindo que os conselheiros membros representantes e seus respectivos
suplentes, com mandatos de dois anos, seriam “designados por ato do Prefeito, através
da indicação feita pelos dirigentes dos órgãos ou entidades representadas, podendo ser
reconduzidos por igual período” (idem, 1997). Além do caráter não decisório e do controle
sobre os membros representantes – em tese a representação da sociedade civil – através
da obrigatória indicação pelo Prefeito, destaque-se também a proposição do Regimento
Interno também através de Ato do Prefeito, e a própria composição do Conselho, descrita
na Lei, enquanto elementos que reproduziam o controle firme do gestor municipal sobre
esse espaço institucional. Desta forma, rompia-se uma possível autonomia, tornando-o
uma entidade que compunha o aparelho do Estado no município, formalmente destinado
ao debate público e à legitimação das decisões e ações políticas (Machado, 2011).
A CPPD e o COMAM foram espaços institucionais previamente demarcados
hierarquicamente, com uma correlação de forças amplamente desfavorável, e até mesmo
excludente, em relação aos agentes populares. Além disso, a diferenciação na
representação entre entidades técnico-profissinais e comunitárias, existente nas duas
instâncias, implicitamente delimitou graus e sentidos diferenciados para essa
representação, tornando-se inteligível no contexto de uma concepção de planejamento
urbano que desqualifica os saberes e práticas “comunitárias”, excluindo a priori potenciais
capacidades deliberativas dos agentes populares. Apesar de tudo isso, no decorrer da
tramitação do Plano Diretor da gestão Juraci Magalhães, as reuniões da CPPD e do
COMAM tornaram-se parcialmente um espaço demarcado por ações de resistência e
oposição de segmentos populares. Nessa perspectiva, o Nuhab, que deteve um único
representante na Comissão, a Federação dos Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF),
articulou e conquistou como aliados os representantes da Universidade Federal do Ceará
(UFC), do Instituto dos Arquitetos do Brasil – Seção Ceará (IAB-CE) e da Associação dos
Geógrafos do Brasil – Seção Ceará (AGB-CE) (Machado, 2011).
A partir dessas indicações, é possível apontar algumas características do processo
de revisão na gestão Juraci Magalhães. Não se constituiu uma esfera pública, tanto em
3 Os membros convidados seriam “entidades representativas da sociedade civil, com reconhecida atuação em ecologia e meio ambiente” (Fortaleza, 1997).
6
uma perspectiva de autonomia em relação ao Estado quanto em uma perspectiva
institucionalizada, em seus aspectos de socialização e transparência das informações, de
debate público e deliberação no sentido de negociação, debate e convencimento éticos
ou de decisão. A ausência da democratização também se revela nas tentativas
sistemáticas de desqualificação dos agentes populares, de fragilização da mobilização
social e na inexistência de uma dimensão educativa nas atividades participativas.
Os argumentos defendidos pelos representantes da gestão Juraci Magalhães
afirmaram uma dualidade entre a técnica e a participação, derivando uma interpretação
negativa para esta última, opondo os técnicos aos leigos, buscando deslegitimar os
saberes, experiências e práticas populares (George, 2004).
No início de 2003, duas idéias importantes sobre a participação na revisão podem
ser identificadas. Em primeiro lugar, diferenciando entidades técnicas e comunitárias, e
em segundo lugar através dos debates e decisões desenvolvidos no Conselho do Meio-
Ambiente e na Comissão Permanente de Avaliação do Plano Diretor. Um dos gestores da
Comissão de Revisão do PD, em entrevista (Machado, 2004a), deslocou a
responsabilidade da participação para os gestores e, ironizando, manejou defendeu o
argumento da desorganização da população e conseqüente incapacidade política:
Eu acho meio complicado você comentar um processo de audiência pública numa cidade deste tamanho. Porque a cidade é muito ampla e os setores de opinião não são organizados. O cara grita, grita, grita, mas eles não são pró-ativos. Eu quero isso, isso, isso, pelo menos na minha experiência, está entendendo? [...] Ah, o problema foi o processo...Que processo? Que processo? Está entendendo? Como é que você vai discutir o Plano Diretor com a dona Maria lá do Serviluz se tem um enfoque aqui que é legalista e ela está em um enfoque reivindicatório, a não ser que você criasse um outro produto que se chama: Versão Didática do Plano Diretor, está percebendo?
Outro técnico vinculado à Gestão Juraci Magalhães, também em entrevista
concedida ao autor (Machado, 2004b), afirmou a dualidade entre técnica e participação,
defendendo a restrição desta última e afirmando a pretensa existência de uma agenda
social na revisão da gestão Juraci Magalhães:
Você não pode colocar em debate todo mundo [...] então as vezes as pessoas não compreendem que esse plano diretor é algo mais complexo [...] e cada vez que ele vai, ele vai descendo pra essas instancias, ele vai ficando com um grau de comprometimento técnico [...] a equipe fazia uma versão preliminar, então eu vou pegar aqui o plano de estruturação urbana, aqui é uma versão preliminar do plano de estruturação urbana, e esse plano ia a debate [...] passou-se a fazer reuniões conjuntas da comissão de avaliação do plano diretor [CPPD] e do conselho municipal do meio ambiente [COMAM], então feita a discussão aqui e aqui então você recolhia as propostas e tal e você fazia uma outra versão, uma versão dois ai você fazia uma audiência pública então isso aqui é o que eu chamava [...] da agenda oficial [...] ai nós criamos o que eu chamava de agenda social, então o que
7
era a Agenda Social do Plano? A equipe que estava a disposição de qualquer instituição pra ir apresentar, debater e tal, então aqui vocês, a gente apresentou isso, to lendo aqui, Pacto de Cooperação, CDL e Planefor [...] Pastorais Sociais, ali na Messejana onde tem o centro Dom Luis [...] CREA [...].
A pesquisa constatou que a propalada agenda social deteve somente caráter
informativo, não homologatório, consultivo ou decisório (Machado, 2011).
Mesmo restringindo a análise a uma perspectiva liberal ou pluralista da
democracia, a revisão do PD sob a gestão Juraci Magalhães foi antidemocrática. A
perspectiva pluralista democrática associada a Robert Dahl, por exemplo, “credita a
preservação da liberdade política à sobrevivência e à contraposição de inúmeros poderes
sociais independentes” (Limongi, 1997, p. 19). Não foi isto que ocorreu no caso enfocado,
tendo em vista a busca incessante da centralização autoritária do poder, em suas facetas
técnicas, institucionais ou jurídicas, com a maioria dos espaços e agentes político-
técnicos sendo mantidos centralizados politicamente e subordinados diretamente ao
Prefeito. Neste sentido, se buscou sistematicamente anular a existência de forças ou
poderes sociais independentes, deslegitimando ou desqualificando simbolicamente os
segmentos populares, excluindo-os dos espaços institucionais efetivos da revisão e
reduzindo sua pretensa participação a reuniões de caráter informativo, destinadas a
justificar a legitimidade da revisão. Neste sentido, cabe destacar que para Dahl (2001, p.
49) a democracia exige que todos possam ser tratados “como se estivessem igualmente
qualificados para participar do processo de tomar decisões”, o que remete a regras e
princípios que possibilitariam a afirmação da igualdade política, apesar das características
sociais que geram e reproduzem desigualdades políticas. Apesar dessas desigualdades,
e talvez justamente por elas, Dahl enfatiza a institucionalidade enquanto mecanismo de
ordenação social, evidenciando uma articulação teórica entre a escolha racional
estratégica e uma perspectiva neo-institucionalista.
Por fim, é o próprio Dahl (1997, p. 28) que, ao defender a poliarquia, afirma que
esta deve articular duas dimensões essenciais – a oposição, contestação pública ou
competição política; a participação ou inclusão –, ambas as dimensões fragilizadas na
revisão da gestão Juraci Magalhães.
A partir dessa avaliação, avalia-se que o potencial democrático inovador se
inscreveu, neste momento, prioritarimente nos agentes, movimentos e lutas populares, no
âmbito da sociedade civil e não na estrutura institucional da Prefeitura. Desta forma,
parcela da sociedade civil revelou capacidades importantes de articulação
interinstitucional, mobilização social e técnica e aplicação de estratégias e formas de luta
que, pouco a pouco, modificaram a correlação de forças no campo do planejamento
8
urbano da cidade. Desta forma, em contraposição ao poder governamental e ao bloco
hegemônico no aparelho estatal, constituiu-se um bloco de poder qualificado política e
tecnicamente e que conseguiu ser vitorioso em suas reivindicações, impedindo a gestão
Juraci Magalhães de consolidar e aprovar sua proposta de Plano Diretor. Para esta
vitória, sem dúvida contribuiu o fato de Luizianne Lins ter sido eleita e assumido a gestão
municipal, em um contexto de fortalecimento institucional das concepções de Reforma
Urbana, no Estado brasileiro e no Governo Federal, nos primeiros anos do século XXI, o
que se pode exemplificar através da aprovação do Estatuto das Cidades e da criação do
Ministério das Cidades e do Conselho Nacional das Cidades. Nessa perspectiva, sob a
gestão Luizianne Lins também houve dois movimentos políticos importantes: (1) a
incorporação de lideranças importantes do pólo popular, incluindo os setores mais
importantes da oposição à revisão do PD na gestão Juraci Magalhães; (2) a incorporação
de técnicos, comissionados e autoridades ao poder executivo municipal com referencial
no ideário da Reforma Urbana, o que permitiu, em alguns momentos, a efetivação de
pactuações formais e substantivas, geralmente implícitas, com os agentes populares.
Portanto, de forma geral, identificam-se elementos democráticos inovadores,
constituídos a partir das lutas e agentes populares e extrapolando a estrutura institucional
estatal, já durante a gestão Juraci Magalhães, contrapondo-se ao ordenamento e ao
exercício do poder hegemônicos durante esse período. Esses elementos democráticos
inovadores encontraram espaço para se desenvolver, e foram potencializados durante a
gestão Luizianne Lins, cabendo destacar alguns.
Em primeiro lugar, as formas de organização e articulação interinstitucional
desenvolvidas, no pólo popular, principalmente a criação do Núcleo de Habitação e Meio
Ambiente (NUHAB), uma rede que aglutinou em torno de 13 entidades, dentre
organizações não governamentais, segmentos da comunidade acadêmica, entidades de
associações de moradores e técnico-profissionais, e que também efetuou articulações e
diálogos com outros segmentos sociais e entidades em diferentes escalas territoriais.
Em algum momento entre o início da revisão da gestão Juraci Magalhães e o
primeiro período da revisão da gestão Luizianne Lins, o Plano Diretor tornou-se, na
avaliação coletiva do NUHAB, a prioridade estratégica de luta e mobilização social na
cidade, capaz de transcender as bandeiras setoriais dos segmentos em luta e promover
uma unidade considerada essencial àquele momento. Isto permitiu ao NUHAB cumprir um
papel essencial aglutinador e mobilizador no pólo popular do campo do planejamento
urbanod e Fortaleza, durante todo o processo de revisão.
9
Em segundo lugar, cabe destacar as articulações jurídico-políticas envolvendo
segmentos do pólo popular e entidades, estudantes e operadores do Direito, incluso o
Ministério Público Federal no Ceará, com impactos e rebatimentos significativos, inclusive
através da interposição de uma Ação Civil Pública e de uma Ação de Improbidade
Administrativa, no processo de revisão da gestão Juraci Magalhães (Machado, 2011, p.
248). A contestação efetivada pelo NUHAB e pelo MPF-CE articulou-se à efetivação da
participação popular enquanto elemento essencial à democratização:
Desde 2002, quando foram anunciadas ações municipais referentes à elaboração e revisão da legislação urbanística, iniciou-se em Fortaleza uma luta de diversos movimentos sociais, ONG’s, entidades profissionais e fortalezenses em geral, com o intuito de garantir maior participação popular nessas ações, o que não logrou êxito. Diante dessa repulsa, procurou-se observar a lisura do processo, quando se detectaram diversas irregularidades formais e materiais, apontando para a necessidade de anulação dos atos cometidos pelas rés4, notadamente os referentes aos atos envolvendo todos os efeitos do contrato para a elaboração do Projeto LEGFOR, maculados por irregularidade e evidente imoralidade administrativa (...) (Brasil, 2004).
Em terceiro lugar, cabe destacar o acúmulo, socialização e relativa aplicação de
saberes técnico-populares, com interfaces entre vários campos disciplinares e raízes que
podem ser rastreadas, pelo menos, até meados dos anos 1980. Desta forma, conformou-
se um conjunto de saberes práticos, gerados, manejados metodologicamente e aplicados
em experiências diversas de planejamento local e participativo, desenvolvidas por
entidades do pólo popular em um conjunto bastante amplo de bairros e localidades de
Fortaleza. Essas experiências e saberes práticos conformaram um patrimônio cultural
relevante, em sua maioria inscrito e recriado nas memórias, corpos, ações e interações
sociais cotidianamente reproduzidas nos espaços (inter)institucionais do pólo popular,
estruturando habitual e disposicionalmente as ações, escolhas e processos de formação
das decisões dos quais participaram esses técnicos e militantes na revisão do Plano
Diretor (Bourdieu, 2007; Giddens, 2009).
Em quarto lugar, as traduções que precisam compor um processo democrático de
planejamento urbano foram entendidas como desafios nas percepções e representações
coletivas, nas interlocuções e intencionalidades e nos processos e instâncias socialmente
constituídos. Essas traduções envolvem tanto os saberes como as práticas, buscando
criar “inteligibilidade, coerência e articulação” em um mundo enriquecido pela “diversidade
e multiplicidade” e, ao mesmo tempo, demarcado por estruturas e situações de opresão e
4 A Ação Civil Pública 99/2004 foi proposta pelo Ministério Público Federal e pela Federação das Entidades de Bairros e Favelas de Fortaleza, tendo como rés: o Município de Fortaleza, a Associação Técnico-Científica Engenheiro Paulo de Frontin – ASTEF e a Universidade Federal do Ceará – UFC.
10
desigualdades nas relações de poder (Santos, 2002, p. 267). Neste sentido, afirma
Santos (ibidem, p. 265):
O trabalho de tradução tanto pode ocorrer entre saberes hegemônicos e saberes não-hegemônicos como pode ocorrer entre diferentes saberes não-hegemônicos. A importância deste último trabalho de tradução reside e que só através da inteligibilidade recíproca e consequente possibilidade de agregação entre saberes não-hegemônicos é possível construir a contra-hegemonia. O segundo tipo de trabalho de tradução tem lugar entre práticas sociais e seus agentes. É evidente que todas as práticas sociais envolvem conhecimento e, nesse sentido, são também práticas de saber. Quando incide sobre as práticas, contudo, o trabalho de tradução visa criar inteligibilidade recíproca entre formas de organização e entre objetivos de acção. Por outras palavras, neste caso, o trabalho de tradução incide sobre os saberes enquanto saberes aplicados, transformados em práticas e materialidades.
Avalia-se que a revisão do Plano Diretor reconstituiu e reposicionou as “Zonas de
Contacto” onde se defrontaram sistemática e cotidianamente agentes governamentais,
empresariais e populares durante a revisão (idem, ibidem). Desta forma, democratizando-
se as zonas de contacto dentre os agentes sociais, houve um reordenamento das
relações de poder, das correlações de força, das mediações e formas de articulação e
convivência e dos processos de formação das decisões no campo do planejamento
urbano. Isto se articulou à ampliação das interlocuções, tendo em vista a presença
ampliada de agentes sociais, a maioria deles habitualmente excluídos desses processos,
evidenciando um conjunto denso de saberes, práticas e experiências, hegemônicos e não
hegemônicos. Nesse contexto, a revisão promoveu confrontos, tensões e contradições
sistemáticas e, ao mesmo tempo, reiterados processos de formação das decisões, de
pactuação e consenso, para além de um jogo de soma zero, transcendendo a mera
imposição calcada na vitória ou derrota absoluta e permanente das classes, grupos,
segmentos e instituições envolvidas. Neste sentido, Santos (2002, p. 268) afirma:
Zonas de contacto são campos sociais onde diferentes mundos-da-vida normativos, práticas e conhecimentos se encontram, chocam e interagem. As duas zonas de contacto constitutivas da modernidade ocidental são a zona epistemológica, onde se confrontaram a ciência moderna e o saber ordinário, e a zona colonial, onde se defrontaram o colonizador e o colonizado.
Em quinto lugar, e nesse contexto de ampliação das interfaces e interlocuções
dentre agentes bastante diferenciados em suas posições, trajetórias e disposições sociais
e conformando dinâmicas que tensionaram as fronteiras e as distinções sociais, a
participação de segmentos intelectuais e técnicos foi um elemento democrático inovador
(Bourdieu, 2007, 2001). Um conjunto relevante de intelectuais e técnicos engajou-se nos
processos de planejamento participativo e local anteriores à revisão e durante a mesma.
A partir de posições que permitiram diálogos consistentes e reiterados com as
11
experiências, saberes e práticas populares, cumpriram um papel importante nos
procedimentos de tradução, particularmente entre o técnico e o popular. Nesse contexto,
participaram da formulação e legitimação de diagnósticos, proposições formais e
substantivas e decisões diversas, socializando e objetivando conhecimentos e saberes e
viabilizando, também, diálogos entre diferentes áreas disciplinares.
Um sexto elemento inovador foi a constituição de um conjunto amplo e relevante de
referências e proposições democráticas, fundamentando os processos e compondo os
produtos do Plano Diretor, em contraposição e alternativa às matrizes tecnocrática e
estratégica de mercado de planejamento urbano, hegemônicas na cidade até então.
Neste sentido, objetivaram-se elementos importantes da matriz da reforma urbana no
processo da revisão e no Plano Diretor final aprovado, a partir da gestão Luizianne Lins.
Neste sentido, com algum grau de simplificação é possível apontar para a existência de
convivências e disputas entre três matrizes de planejamento urbano no Brasil, entre as
últimas décadas do século XX e o século XXI: (I) modernista-funcionalista de viés
tecnoburocratizante; (II); da reforma urbana; e (III) estratégica de mercado (Machado,
2011, p. 124).
A partir dessas reflexões, cabe perceber se a revisão na gestão Luizianne Lins
incorporou outras inovações democráticas.
A revisão na Gestão Municipal de Luizianne Lins (PT )
Os primeiros eventos do processo de revisão do Plano Diretor da gestão Luizianne
Lins envolveram capacitações e reuniões internas à Prefeitura, o lançamento público do
processo e oficinas de participação com caráter de leitura comunitária e capacitação da
população, entre fevereiro e abril de 2006. Também cabe destacar a criação do Núcleo
Gestor (NG) da revisão do PD.
O NG foi uma instância democrática importante da revisão do Plano Diretor,
definindo os critérios e objetivos da representação e da participação e de formação das
decisões, a quantidade de delegados por segmentos e a forma de escolha dos delegados
para as diferentes instâncias. Além disso, o Núcleo Gestor realizou uma série de diálogos
político-técnicos, com a presença de segmentos técnicos abordando diferentes temáticas,
com debates que geraram concepções e proposições substantivas e balizaram a
formatação estrutural das peças preliminares do Plano Diretor, produzidas pela Prefeitura
e postas à debate durante a revisão. Neste sentido, o NG assumiu funções e papéis que
12
sob a revisão do governo Juraci Magalhães estiveram circunscritos aos técnicos ou
coordenadores da Prefeitura e da Astef ou à CPPD e ao COMAM. Também cabe
destacar, comparando-se as composições da equipe político-técnica da ASTEF, da
CPPD, do COMAM e do NG, a significativa ampliação da representação dos movimentos
sociais e das entidades populares e de trabalhadores, mantendo-se também uma
diversificação relevante, inclusive através de amplos contingentes governamentais e
empresariais, como pode ser visto através da Tabela 1.
TABELA 1 – Composição quantitativa do Núcleo Gestor por segmentos Prefeitura 9 Câmara Municipal 3 Orçamento Participativo 6 Movimentos Sociais, entidades sindicais de trabalhadores e ONG's 9 Entidades profissionais 4 Entidades patronais 4 Universidades 3 Planefor 1 Total 39
Fonte: Elaboração própria
Neste sentido, o NG revelou-se como um espaço público relevante em suas
características democráticas, por alguns motivos. Fortaleceu a convivência sistemática
entre agentes sociais diversos, permitindo o debate dentre posições sociais, valores,
concepções e proposições divergentes e até antagônicas e, ao mesmo tempo,
fortalecendo dinâmicas de integração e coesão social, produção e difusão de consensos,
mediação e equacionamento de tensões e conflitos e o controle do poder pelo próprio
poder, como as vertentes democráticas pluralistas evidenciam. Neste sentido, e
institucionalizando o que os agentes populares vinham conquistando através das
mobilizações e das lutas sociais, o NG promoveu a contestação pública, a competição e a
inclusão política no campo do planejamento urbano (Dahl, 1997, p. 28).
O NG evidenciou uma dinamização do campo, o que teve continuidade através de
outras instâncias, eventos e atividades da revisão do PD sob o governo Luizianne Lins.
Neste sentido, o Núcleo Gestor instituiu uma primeira instância deliberativa, seguida por
outras – como os Fóruns, o Congresso e as Audiências Públicas Legislativas – que
mesclaram funções inscritas em duas vertentes da democracia deliberativa. De um lado
associando-se deliberação à constituição de consensos possíveis, à formação de
posições racionais que possam satisfazer maiorias e minorias, produzindo vinculações
comunicativas e também decisões, mas de forma indireta, ao pressionar publicamente os
tomadores de decisão. De outro lado, enquanto processo de formação das decisões,
13
constituindo-se vontades coletivas e valorizando-se, portanto, os processos decisórios e
os arranjos institucionais democráticos. Desta forma, é possível afirmar que, em
momentos e para situações diferentes, o NG funcionou enquanto um espaço público
deliberativo nos dois sentidos indicados (Machado, 2011).
O Núcleo Gestor do Plano Diretor Participativo de Fortaleza, em reunião ordinária
do dia 18 de maio de 2006, aprovou o Regimento Interno das Audiências Públicas
Territoriais e Temáticas e do II Fórum do Plano Diretor Participativo, definindo as
composições percentuais, por segmentos, para as delegações ao Congresso do PDPFor:
gestores, administradores públicos e legislativos com 40%; movimentos sociais e
populares com 13%; Entidades empresariais, entidades profissionais e Organizações não-
governamentais, cada segmento com 7%; Crianças e Adolescentes com 1%; Entidades
trabalhadoras com 3%; Entidades acadêmicas e de pesquisas com 2%; Delegados
territoriais com 20%.
Em 08 de abril de 2006 foi realizado o I Fórum do PDPFor – A cidade que temos –,
com a participação de aproximadamente oitocentas pessoas. No Fórum foram
apresentadas, pela equipe técnica da Prefeitura, as sínteses das leituras comunitárias,
realizadas nas primeiras reuniões com a população, e técnicas, buscando-se consolidar
um Diagnóstico capaz de identificar problemas da cidade, necessidades e prioridades da
população e, desta forma, definindo eixos estruturantes para o Plano Diretor. Entre maio e
junho de 2006 foram realizadas 14 Audiências Públicas Territoriais, uma em cada Área de
Participação5, elegendo-se 20% dos delegados ao Congresso do PDPFor. Em 30 de julho
de 2006 foi realizado o II Fórum – A Cidade que queremos –, com mais de 400 delegados
participantes, que pretendia eleger os demais 80% dos delegados ao Congresso. Porém,
como alguns segmentos sociais não preencheram suas vagas, o Núcleo Gestor “decidiu
realizar uma nova votação para estes segmentos”, no dia 16 de agosto, contemplando
organizações não governamentais, entidades empresariais e entidades profissionais, que
não atingiram sua cota.
Em janeiro e fevereiro de 2007 foi realizado o Congresso do PDPFor, tendo como
objetivo essencial “discutir e deliberar sobre o anteprojeto de Lei do Plano Diretor de
Fortaleza”. Teve como momentos centrais a discussão, proposição e deliberação em
Grupos de Trabalho e os debates e deliberações na Plenária Geral. Neste Congresso
iniciou-se efetivamente de forma mais ampla o debate substantivo das questões, temas e
5 A gestão Luizianne Lins estruturou a cidade em áreas de participação no orçamento participativo. Essa estruturação foi incorporada na revisão do Plano Diretor.
14
propostas que compõem o documento. Além disso, esta instância foi o grande espaço de
conquista do pólo popular, o que permitiu uma democratização substantiva no Plano
Diretor elaborado. Isto não invalida as derrotas parciais posteriores do pólo popular, tendo
em vista que algumas dessas conquistas foram revertidas, em benefício de segmentos do
pólo empresarial, nas Audiências Públicas na Câmara Municipal ou nas negociações
informais realizadas posteriormente às Audiências e antes das Sessões Legislativas de
aprovação do PD.
Na Lista de Delegados participantes dos Grupos de Trabalho do Congresso, com
um contingente de 409 delegados, o poder público municipal deteve maioria com 205
delegados contra 204 delegados, somados todos os demais segmentos. Os delegados
tiveram liberdade individual para se inscrever no Grupo de Trabalho (GT) de seu
interesse, sendo definido um número limite de inscritos de cada segmento para cada GT.6
Nos GT’s, o poder público municipal deteve maioria em três grupos (01, 04 e 06), sem
contar os possíveis delegados agregados à bancada da Prefeitura através do Núcleo
Gestor ou territorialmente.7 Quantitativamente, após a bancada do poder público
municipal, a bancada dos delegados territoriais possui o maior contingente, sendo
composta por indivíduos de variadas origens e vínculos, potencialmente dos três pólos
(governamental, empresarial e popular) do campo do planejamento urbano. Da mesma
forma, a bancada do Núcleo Gestor, o quarto maior contingente é composta por
representantes de várias origens. A terceira maior bancada é a dos movimentos sociais e
populares, a quinta a das entidades empresariais e em sexto lugar, empatadas as
bancadas das ONG’s, das entidades profissionais e das entidades acadêmicas e de
pesquisa. Por fim, como menor bancada, a das entidades dos trabalhadores e sindicatos.
TABELA 2 – Quantidade de delegados por Grupo de Tra balho por segmentos no Congresso do PDPFor – Total, poder público municipa l e outros segmentos
TOTAL Poder público municipal Outros segmentos Grupo 1 64 37 27 Grupo 2 70 32 38 Grupo 3 91 40 51 Grupo 4 49 29 20 Grupo 5 66 29 37 Grupo 6 69 38 31
Total 409 205 204 Fonte: Elaboração própria
6 Os Grupos de Trabalho foram os seguintes: Grupo 1 : Dos Princípios da Política Urbana e Objetivos do Plano Diretor, Das Diretrizes e Ações Estratégicas das Políticas Setoriais; Grupo 2 : Do Ordenamento Territorial, Capítulos 1 e 2; Grupo 3 : Do Ordenamento Territorial, Capítulos III a VII; Grupo 4 : Capítulo VIII Do Ordenamento Territorial; Grupo 5 : Capítulo IX Do Ordenamento Territorial; Grupo 6 : Títulos IV e V. 7 Os delegados territoriais foram eleitos nas 14 áreas de participação.
15
Após o Congresso, o Projeto de Lei foi entregue à Câmara Municipal em março de
2008, mais de um ano após o Congresso do PDPFor. Alguns meses depois, entre junho e
novembro de 2008, foram realizadas as Audiências Públicas do poder legislativo, outro
espaço participativo bastante importante na revisão do PD. Entre novembro e dezembro
de 2008 os indícios apontaram para a realização de negociações informais entre agentes
dos três pólos do campo do planejamento urbano, o que permitiu a votação consensual
na Câmara Municipal. Em dezembro o Projeto de Lei foi votado e aprovado na Câmara,
sendo sancionado pela Prefeita em fevereiro de 2009 e publicado no Diário Oficial do
Município em março do mesmo ano.
Avalia-se que as instâncias da revisão na gestão Luizianne Lins efetivaram uma
esfera pública democrática. Avritzer e Costa (2004, p.12) afirmam que nos marcos da
democracia deliberativa torna-se importante a extensão da “racionalidade comunicativa
aos processos decisórios, assegurando-se, institucionalmente, a existência de fóruns
deliberativos”. Desta forma, emerge um modelo discursivo de esfera pública,
compreendida como espaço de constituição democrática da opinião e da vontade
coletivas e de mediação entre a sociedade civil, o Estado e o sistema político. Nesse
sentido, para Avritzer e Costa (2004, p.07-08), apropriando-se criticamente das intuições
e referências habermasianas:
A fonte da legitimidade política não pode ser [...] a vontade dos cidadãos individuais, mas o resultado do processo comunicativo de formação da opinião e da vontade coletiva. É esse o processo que, operado dentro da esfera pública, estabelece a mediação entre o mundo da vida e o sistema político, permitindo que os impulsos provindos do mundo da vida cheguem até as instâncias de tomada de decisão instituídas pela ordem democrática [...].
Ao mesmo tempo, e esse aspecto é essencial, “Habermas insiste na necessidade
de autolimitação da influência dos atores da sociedade civil, sob dois aspectos
fundamentais” (Avritzer e Costa, 2004, p. 07-08). O primeiro remete à importância de
evitar que as organizações da sociedade civil, funcionando “como catalisadoras dos
processos espontâneos de formação da opinião”, não se transformem em “estruturas
formalizadas, dominadas pelos rituais burocráticos” (idem, ibidem, p. 07-08). O segundo
aspecto remete à questão do poder, pois:
Para Habermas, os atores da sociedade civil não podem exercer poder administrativo, isto é, a influência destes sobre a política se faz através das mensagens que, percorrendo os mecanismos institucionalizados do Estado constitucional, alcançam os núcleos decisórios. Dessa forma, procura-se afastar a idéia de que a sociedade civil possa assumir funções que cabem ao Estado (idem, ibidem, p. 07-08).
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A partir da perspectiva deliberativa habermasiana, a esfera pública torna-se o “local
de uma deliberação comunicativa na qual as diferentes concepções morais e as
diferentes identidades culturais se colocariam em contacto gerando uma rede de
procedimentos comunicativos” (Avritzer, 2000, p. 18). Porém, ao mesmo tempo, Avritzer
(2000, p. 18) identifica uma contradição essencial à perspectiva habermasiana, posto que
esta excluiria a “possibilidade de arranjos deliberativos ao nível público”. Desta forma,
Habermas não pensaria os “elementos institucionais e/ou [sic] decisórios do conceito de
deliberação argumentativa e, com isso, deixa de dar formato institucional ao que podemos
denominar de democracia deliberativa” (idem, ibidem, p. 18).
Em contraposição à esta vertente, outros autores, no âmbito da democracia
deliberativa, parecem abrir espaço para transformar o “processo de discussão
argumentativa” em um “processo de deliberação institucional” (idem, ibidem, 2000, p. 19).
Nesse sentido, Ribeiro (2008, p. 38) avalia que a democracia deliberativa teria duas
posições diferenciadas, estando em jogo fundamentalmente a institucionalização ou não
da esfera pública:
[...] alguns autores [...] defendem a tese segundo a qual apenas influências geradas na esfera pública são satisfatórias para afetar as decisões do sistema político [...] outros autores, atentando para os limites dessas formulações, destacam a necessidade de “empoderar” a esfera pública. Esse processo de “empoderamento” consistiria na criação de mecanismos institucionais capazes de garantir que as decisões tomadas na esfera pública sejam devidamente implementadas pelo sistema político. Assim, enquanto no primeiro caso as manifestações dos cidadãos na esfera pública precisariam ser ouvidas e problematizadas pelo sistema político para se tornarem decisões efetivas, no segundo caso os resultados efetivos da expressão política dos “não políticos” tomariam forma na esfera pública, cabendo aos atores sistêmicos apenas implementar o que foi anteriormente decidido.
Ao mesmo tempo, para compreender as inovações democráticas presentes na
revisão do PD de Fortaleza, cabe entender que, principalmente no período posterior ao
Congresso, evidenciaram-se mecanismos e práticas informais de formação das decisões,
agregadas às instâncias formais. Neste sentido, a revisão do Plano Diretor evidenciou a
existência de pólos de poder, redes e comitês enquanto elementos importantes a
estruturarem o campo do planejamento urbano de Fortaleza (Machado, 2011; Marques,
2006).
No que se refere aos comitês, cabe mobilizar as reflexões de Sartori (1994, p. 304-
305) que, contrapondo à democracia majoritária o que denomina de democracia
consociativa, destaca a importância dos comitês como órgãos decisórios, distinguindo
suas três características: a) um grupo pequeno de interação face a face; b) um grupo
durável e institucionalizado (institucionalizado no sentido de sua existência ser
17
reconhecida, legal ou informalmente e pelas tarefas a ele atribuídas; durável quando seus
membros agem como se fossem permanentes); c) um grupo que toma decisões em
relação a um fluxo de decisões, indicando um contexto decisório contínuo. Além disso,
Sartori (1994, p. 305-306) qualifica como os comitês realmente funcionam, indicando que
não funcionam nem com base na regra da maioria nem com base na regra da
unanimidade, caracterizando o que denomina de código operacional:
Em geral, os comitês chegam a um acordo unânime porque cada componente do grupo espera que aquilo que concede numa questão lhe seja devolvido, ou retribuído, em uma outra questão. Como esse é um acordo tácito, pode ser chamado de código operacional [...] As noções de ajuda mútua, negociação, solução de contemporização e acordo também se referem a esse modus operandi [...] O que é peculiar aos comitês é que seus membros se envolvem em trocas que vão além do momento presente, tendo especialmente em vista um tempo futuro [...] compensação recíproca retardada.
Neste momento, e tendo em vista os dados apresentados e as análises efetuadas,
cabe retornar ao objetivo deste texto, avaliando os limites de transformação do campo do
planejamento urbano na cidade, tendo em vista as inovações democráticas constituídas
durante a revisão do Plano Diretor de Fortaleza.
Considerações finais
Destacando as experiências desenvolvidas no hemisfério sul, ao final do século
XX, Santos e Avritzer (2002, p. 26) evidenciam como os atuais debates e lutas
democráticas enfatizam a “possibilidade da inovação entendida como participação
ampliada de atores sociais de diversos tipos em processos de tomada de decisão”. No
Brasil, a partir dos anos 1980 um conjunto de experiências, tais como os orçamentos
participativos e os conselhos gestores, tem ampliado a participação individual ou coletiva
e criado formas inovadoras de participação, representação e deliberação política (Avritzer,
2007). Neste cenário, a participação política de indivíduos e de entidades populares,
acadêmicas e associativas de diversas ordens, e representando diferenciados segmentos
da sociedade civil, potencialmente expressa processos de reconstituição das articulações
entre as classes, grupos e movimentos sociais. Braga (1995, p. 30) avalia que isto ocorre
na atualidade através de uma expansão quantitativa das relações entre a sociedade
política e a sociedade civil e da recriação das formas de participação, representação,
intervenção e administração.
Conceitualmente, é possível falar em uma articulação da democracia
representativa a mecanismos de democracia participativa ou direta, com a expansão de
instituições e sistemas participativos no planejamento, gestão e políticas públicas. Porém,
18
a própria compreensão da participação, ou seu lugar, sentido e caráter variam bastante,
em um continuum que vai da coerção à autogestão,8 em contextos mais ou menos
democráticos ou autoritários. Através de um conjunto de experiências e processos, e em
diferentes espaços institucionais, agentes da sociedade política e da sociedade civil
efetivam práticas e interações sociais democráticas e participativas diversas. As análises
que enfocam esse fenômeno englobam, por exemplo, o aumento da participação, as suas
formas institucionais, os impactos nos sistemas políticos e nos tecidos sociais e estatais,
as articulações entre participação, representação e deliberação, dentre outras questões.
As noções de comitês e de códigos operacionais originariamente inserem-se em
uma perspectiva teórica individualista e racionalista da ação social, que não situa os
agentes, ações e decisões em condicionamentos sociais objetivos e não abre espaço
para a percepção da complexidade das interações e ações sociais. Porém, achados
empíricos da pesquisa abrem espaço para potenciais articulações teóricas com outras
abordagens da teoria social, particularmente com autores e correntes que dialogam sobre
a estrutura e a ação, como as teorias de Giddens e Bourdieu (2007, 2001, 1996), o
interacionismo simbólico e a etnometodologia, visando qualificar as análises sobre os
processos de formação das decisões. Neste sentido, apenas para ilustrar, tendo em vista
os limites deste texto, dentre os elementos que abrem interfaces com essas vertentes
teóricas destacam-se a percepção da existência de interesses e demandas individuais e
coletivas diversas, constantemente se reconstituindo, defrontando e interpelando e, de
alguma forma, tendo que encontrar formas e modos de convivência e equacionamento
nos espaços sociais, processos e instâncias decisórias existentes. Além disso, o
pressuposto metodológico de valorização das interações e vínculos interpessoais e das
posições sociais nos processos de formação das decisões, e a percepção da
complexidade e sutileza dos saberes práticos e dos processos de estruturação reiterada
das falas, gestos e escolhas interindividuais. Neste sentido, a análise das relações de
poder e dos processos de formação das decisões, principalmente quando referida à
existência de inovações democráticas, deve valorizar os processos cotidianos e
permanentes de estruturação dos saberes, ações e práticas, cabendo sempre percebê-los
em um quadro relacional e situacional.
Outra conclusão do trabalho se refere às potencialidades das inovações
democráticas porventura constituídas. Na revisão promovida sob a gestão Juraci
Magalhães, não houve inovações democráticas, ao contrário, e sob diversos parâmetros e
8 Vide, por exemplo, a classificação dos “graus de abertura à participação popular” elaborada por Souza (2006, p. 414).
19
perspectivas de análise, o desenho institucional e a metodologia revelaram-se autoritários
e centralizadores, muito embora a mobilização e as lutas dos agentes populares tenham
constituído inovações democráticas, ao se contrapor e transcender a estrutura
institucional formal. Nesse contexto, a partir das lutas sociais e na gestão de Luizianne
Lins, efetivaram-se conquistas populares e inovações democráticas, que transformaram o
campo do planejamento urbano. Porém, essas transformações revelaram-se provisórias e
insuficientes para efetivar rupturas e mudanças significativas nos sistemas e redes de
poder e nas correlações de força dentre os vários agentes sociais envolvidos na produção
social do espaço urbano.
Um dos fatores que tornou provisórias e limitadas essas inovações democráticas
foi a existência de indivíduos, comitês e redes específicas, agregando políticos
profissionais, comissionados e técnicos, que detiveram posições de poder estratégicas no
campo do planejamento urbano, principalmente nas secretarias e órgãos públicos
municipais. Esses agentes mantiveram, durante todo o processo de revisão e após o seu
término, o monopólio dos atos de fiscalização, tributação, autorização, licenciamento,
dentre outros, que lhes permitiu serem os operadores privilegiados nos processos de
reprodução do espaço urbano em Fortaleza, mediando, com exclusividade, as relações e
os vínculos entre sociedade política e sociedade civil. Desta forma, esses indivíduos,
comitês e redes estruturaram o campo do planejamento urbano à revelia das decisões
das instâncias do PD, efetivando processos e dinâmicas de intermediação cotidiana das
decisões estatais, que potencialmente entravam em contradição e contrapunham-se às
inovações democráticas, processuais e substantivas, constituídas e afirmadas através da
revisão. Desta forma, reconhecendo as inovações democráticas processuais efetivadas,
avalia-se que a efetivação e ampliação das conquistas democráticas e populares
presentes no Plano Diretor pressupõe rupturas nas posições e nas estruturas de poder
que comandam os processos estatais de produção social do espaço urbano em Fortaleza.
Sem essas mudanças, os potenciais avanços, processuais e substantivos, podem ser
esvaziados, barrados ou desvirtuados sistemática e cotidianamente.
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