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IMÁGINÁRIOS DE UMA OUTRA DIÁSPORA: consumo, urbanidade e acontecimentos pós-periféricos 1 ANOTHER DIASPORA IMAGINARIES: consumption, urbanity and post-peripheral events Rose de Melo Rocha 2 Josimey Costa da Silva 3 Simone Luci Pereira 4 Resumo: Este texto busca apresentar e discutir alguns fenômenos que parecem colaborar com a construção teórica do que denominamos imaginários diaspóricos, sinalizadores de dinâmicas pós-periféricas, da circulação de fluxos. A cena pós-periférica que contextualiza fenômenos como os rolezinhos e o funk ostentação, revela sujeitos de ação e de discurso capacitados a atuar em uma região de bordas o que, afinal, caracteriza o mundo do consumo e das mídias digitais. Desta maneira, as relações entre consumo, entretimento e política se apresentam borradas e em associações conflituosas que exigem uma atenção às contradições, descontinuidades e complexidades que trazem à tona sobre juventudes, formas de participação política, usos midiáticos, dentre outros aspectos. Localizar pistas sobre contextos e atores envolvidos neste complexo campo é o caminho adotado neste artigo para mapear ações juvenis de presença na cena pública urbana e no caminho que a une ao universo digital. Palavras-chave: Pós-periférico. Consumo. Imaginários urbanos 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Imagens e Imaginários Midiáticos” do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM, do qual é atualmente coordenadora. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Nível 2, é doutora em Ciências da Comunicação (USP), com pós-doutorado em Ciências Sociais Antropologia (PUC/SP). [email protected] 3 Professora Associada da UFRN – PPG em Estudos da Mídia e PPG em Ciências Sociais. Pós-Doutoranda da Ecopós – UFRJ e Doutora em Ciências Sociais/Antropologia – PUC/SP. [email protected] 4 Professora Titular do PPG Comunicação e Culturas das Mídias - UNIP. Pós- Doutora pelo PPG Música- UNIRIO e Doutora em Ciências Sociaiis/Antropologia-PUC/SP. [email protected] 1

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IMÁGINÁRIOS DE UMA OUTRA DIÁSPORA: consumo, urbanidade e acontecimentos pós-periféricos1

ANOTHER DIASPORA IMAGINARIES: consumption, urbanity and post-peripheral events

Rose de Melo Rocha2

Josimey Costa da Silva3

Simone Luci Pereira4

Resumo: Este texto busca apresentar e discutir alguns fenômenos que parecem colaborar com a construção teórica do que denominamos imaginários diaspóricos, sinalizadores de dinâmicas pós-periféricas, da circulação de fluxos. A cena pós-periférica que contextualiza fenômenos como os rolezinhos e o funk ostentação, revela sujeitos de ação e de discurso capacitados a atuar em uma região de bordas o que, afinal, caracteriza o mundo do consumo e das mídias digitais. Desta maneira, as relações entre consumo, entretimento e política se apresentam borradas e em associações conflituosas que exigem uma atenção às contradições, descontinuidades e complexidades que trazem à tona sobre juventudes, formas de participação política, usos midiáticos, dentre outros aspectos. Localizar pistas sobre contextos e atores envolvidos neste complexo campo é o caminho adotado neste artigo para mapear ações juvenis de presença na cena pública urbana e no caminho que a une ao universo digital.

Palavras-chave: Pós-periférico. Consumo. Imaginários urbanos

Abstract: This article presents and discusses some phenomena that seem collaborate with the theoretical construction we call diasporic imaginary, which indicates post-peripheral dynamics and flow movements. The post-peripheral scene that contextualizes phenomena as rolezinhos and funk ostentação, reveals subjects of action and speech, able to actuate in a border area, which, after all, featuring the consumption and digital media world. Thus, the relationship between consumption, entertainment and politics appears as blurry and within conflicting associations that require attention to the contradictions, discontinuities and complexities that they bring up about youths, political participation forms, media uses, among other aspects. This paper’s approach to this complex field as an attempt to find evidences about contexts and actors that are involved in it, in order to map juvenile actions in urban public scene and its relationships with digital universe.

Keywords: Post-peripherical. Consumption. Urban sceneries/Urban

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Imagens e Imaginários Midiáticos” do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014.2 Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM, do qual é atualmente coordenadora. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Nível 2, é doutora em Ciências da Comunicação (USP), com pós-doutorado em Ciências Sociais Antropologia (PUC/SP). [email protected] 3 Professora Associada da UFRN – PPG em Estudos da Mídia e PPG em Ciências Sociais. Pós-Doutoranda da Ecopós – UFRJ e Doutora em Ciências Sociais/Antropologia – PUC/SP. [email protected] Professora Titular do PPG Comunicação e Culturas das Mídias - UNIP. Pós-Doutora pelo PPG Música- UNIRIO e Doutora em Ciências Sociaiis/Antropologia-PUC/SP. [email protected]

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1. Movimentos da periferia, imaginários diaspóricos, cenas pós-periféricasMapear estratégias midiáticas massivas adotadas na representação de outridades

periféricas (a periferia do mainstream, a periferia das cidades, a periferia do status quo

branco, conservador, de classe média, e do que, não sem igual generalismo, se denomina as

classes dominantes) e localizar pistas sobre contextos e atores envolvidos neste complexo

campo é o caminho adotado neste artigo para mapear ações juvenis de presença na cena

pública urbana e no que a une ao universo digital. Tal esforço analítico, aqui apresentado de

modo panorâmico, tem contribuído, nos estudos das pesquisadoras que assinam este texto,

para a construção teórica do que denominamos imaginários diaspóricos, sinalizadores, em

nossa percepção, de dinâmicas pós-periféricas e da circulação de fluxos buttom-up de

significação – de si, dos outros, do mundo em que se vive.

Em tempos de crescente apelo às dicotomias e às literalidades, chama atenção a

sistemática tentativa de veículos de comunicação tradicionais em disseminar, com rapidez e

intensamente, interpretações e circunscrições discursivas dedicadas a oferecer grades

possíveis de regulação e reincorporação estetizada de fenômenos como os denominados

rolezinhos, por exemplo. O lado B, o que parece estar sendo associado a anomias e rupturas

advindas de uma prática cultural e de sociabilidade articulada a recentes processos de

inclusão pelo consumo, tem efetivamente merecido reportagens de revistas como Veja, Época

e, igualmente, de inúmeros programas de redes televisas nacionais, dentre as quais a Rede

Globo e suas afiliadas em condição de protagonismo.

Esta fúria imagética, esta empreitada de regulação audiovisual lembra-nos uma

polêmica tese de Jean Lyotard (1994), para quem, ao contrário do que comumente

imaginamos, a forma mais efetiva de apagar fatos da memória é representando-os,

repetidamente, excessivamente, de todos os ângulos possíveis, em seus mínimos detalhes. O

filósofo ancora sua argumentação em um dos mais sangrentos capítulos da história mundial,

exatamente o genocídio dos judeus pelos comandos nazistas. Para o autor, as políticas de

esquecimento absoluto empreendidas pelos SS dependeram não apenas do ocultamento,

dependeram posteriormente do agenciamento da representação.

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E o que acontece quanto a empresa da representação se descentraliza? E quando a

mídia massiva convive, alimenta-se e é confrontada pela multiplicação exponencial de uma

ampla, plural e movente cena digital? Estudos recentes têm apontado a centralidade ocupada

pelas materialidades advindas do consumo e dos meios de comunicação, em especial as de

natureza tecnológica, na composição, desde ao menos quatro décadas, dos modos de ser e de

viver de inúmeros segmentos juvenis no Brasil. Em direção similar também se registra a

atuação dos processos de visibilidade midiática na caracterização de experiências e

identidades tipificadas como juvenis, tanto no que diz respeito aos processos de produção e

validação de representações e de promoção de estilos de vida, quanto na apropriação, por

parte de segmentos juvenis, de conteúdos, formas e meios para produzir e divulgar ações de

protagonismo comunicacional e cultural (Cf. Rocha: 2012).

Efetivamente, a cena pós-periférica que contextualiza fenômenos como os rolezinhos e

o funk ostentação, revela sujeitos de ação e de discurso (Reguillo: 2000) plenamente

capacitados a atuar em uma região de bordas e fronteiras o que, afinal, caracteriza o mundo

do consumo e das mídias digitais, bem como o uso dos conteúdos e objetos da mobilidade –

celulares, vídeos amadores, shows, marchas, mobilizações. O borramento de limites

estanques entre política e diversão é óbvio e profundamente incômodo aos setores que, por

diferentes razões, se postam na condição de aduaneiros de tais universos.

O grau e a natureza do incômodo aparecem em textos e imagens, dando importante

gramatura a visões de mundo, a imaginários sociais, bem como a preconceitos e estigmas.

Uma destas coleções nos parece paradigmática de esforços higienistas e ordenadores.

Reportagem especial da Revista Veja, de 29 de janeiro de 2014, apresenta a seus leitores as

boas vindas ao “país da periferia”, aquele que seria “formado pelas classes C, D e E” e

comporia um “universo de 155 milhões de pessoas que compram mais que a Suíça e a

Holanda”.

A periferia que ganha esta visibilidade capciosa, e que teria se espraiado por todo o

país, como advoga a reportagem acima citada, tem sido bastante demarcada pela notoriedade

adquirida pela atuação de jovens paulistanos, muitos deles experientes no trato da

celebrização pós-massiva, e que, muito antes dos rolezinhos, já colecionavam fãs e

“seguidores”, características de messianismo pop tão familiares a processos de idolatria de

sujeitos “comuns-incomuns”. A periferia paulistana, até então conhecida publicamente por

imagens e letras de grupos como os Racionais, é também a periferia de origem nordestina,

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como o é, igualmente, a periferia profundamente mediatizada e perpassada por políticas

públicas que reforçaram, nem sempre intencionalmente, a inclusão pelo entretenimento, pela

ação cultural e a intervenção urbana. Também é a periferia que consome e domina uma

peculiar cartografia de marcas e objetos, assim como é a periferia que inventou “lugares

seus” em shoppings, postos de gasolina, lojas de conveniência e lan houses (Cf. Borelli,

Oliveira, Rocha et alli: 2009) .

A história de jovens protagonistas de um trânsito não autorizado por templos do

consumo material – os shoppings – e por epicentros de consumo audiovisual digitalizado – o

youtube e o facebook – nos servem de norte para debater os meandros e implicações

possíveis deste fluxo diaspórico. Brechas identitárias aqui convivem com fraturas identitárias,

atualizando de modo exemplar a histórica aventura de normatização simbólica assumida por

setores burgueses.

A cena é de claro enfrentamento: a normatização, ou a tentativa de fazê-la, convive

com a presença desestabilizadora, que escapa e desafia. A guerra é, mais uma vez, uma luta

na seara das imagens, um enfrentamento, político, da ordem das políticas de visibilidade. E,

mais um dado, política aqui está visceralmente articulada ao campo do entretenimento. Em

sociedades cujo regime dominante parece o ser o de um capitalismo subjetivista e discursivo,

não surpreende o fato de a política, ela própria, ter se tornado um caso de imagem, o que nem

sempre vinha resultando em processos de visibilização de sujeitos sociais autônomos e ativos.

O cenário mudou, como o indicaram, antes dos rolezinhos, os movimentos sociais de junho e

julho de 2013, e como já o vinham fazendo inúmeras das marchas juvenis que, desde 2011, se

organizavam no país. O discurso do protagonismo e do empreendedorismo, tão caro aos

valores neoliberais, frutifica agora junto a setores de neo-incluídos, mas o fazem para afirmar

uma forma de autonomia que transita pendularmente pelo coletivismo auto-gestionário, pelo

anarquismo pós-midiático e, outras vezes, pelas searas do narcisismo e do culto a super-eus,

bens agora não mais exclusivos dos “bem nascidos”. Todos querem se divertir. Muitos

querem protestar. A polifonia daí resultante não é linear. Não propriamente revolucionária.

Não necessariamente reacionária.

Se é claro, desde a modernidade, que as culturas do consumo são mediadas por

processos comunicacionais, se, desde a pós-modernidade, esta mediação comunicacional é

ancorada em imagens, devemos destacar, para os fins de nosso argumento, o fato de o

consumo ser atravessado por processos de midiatização do social. Esta simbiose profunda

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participa ativamente da repercussão alcançada por acontecimentos pós-periféricos,

confirmando, ainda, o fato de serem fenômenos de lastro “glocal”, para lembrar o termo

popularizado por Armand Mattelard.

Augé (1998), em um de seus livros mais herméticos, é profundamente irônico ao

comentar a importância que a mídia assume em nossa (in)capacidade de lembrar, imaginar e

sonhar. Augé é um pessimista contumaz: as narrativas midiáticas estruturaram de tal modo

nosso cotidiano que ela se tornou o grande agenciador de nossos imaginários, tanto os

coletivos – dos mitos, ritos e símbolos –, quanto os individuais – dos sonhos propriamente

ditos. E por que isto se daria? Simples. O desenvolvimento das tecnologias comunicacionais

liberou um processo de ficcionalização da vida, que compete para a perda da memória e do

imaginário. Neste processo, o esmaecimento da nitidez que permitiria discernir o real do

ficcional levaria a um processo de mimetização curioso, no qual a nossa própria percepção e

capacidade de relatar o mundo vivido seria nada mais do que uma reprodução introjetada dos

discursos midiáticos.

Desmentindo parcialmente esta derivação, ou, talvez, revelando hackeamentos deste

sistema, chegamos, em março de 2009, a uma emblemática jovem, à época com apenas 17

anos, a argentina Agustina Viveros, retratada em reportagem do The New York Times como a

garota que conseguiu fazer de sua exposição pessoal na Internet um bem sucedido caso de

marketing. Dos blogs ao reconhecimento na rua, como ressalta a matéria, Viveros fez de seu

quarto, de seus amigos e de sua própria história o principal cenário de suas postagens,

acompanhadas de registros videográficos que a converteram em uma celebridade fronteiriça.

Jovem, mulher, homossexual, o grande acontecimento que a inscreve na pauta da mídia de

massa foi marcado pela passagem de seu universo de atuação da virtualidade para a

presencialidade.

O lugar escolhido para reunir seus fãs é paradigmático: um Shopping Center, que ao

determinar a proibição da entrada de “Cumbio”, seus amigos e fãs em suas dependências,

determinou também a eclosão de uma agregação improvisada, algumas brigas, e o definitivo

ingresso da jovem no universo do consumo cultural de massa, incluindo o patrocínio de

grandes marcas globais, a Nike na linha de frente, que se dispôs a alavancar sua imagem com

a associação à própria imagem de marca da contestadora, despretensiosa e self-made

Agustina (Cf. Rocha: 2012). O consumo participa ativamente na articulação desta produção

de si, sempre documentada, por opção, compulsão, ou compulsoriamente.

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2. Imaginários do consumo, corpo e identidadesComo esta cena pós-periférica se apresenta em estados que não os do eixo Rio-São

Paulo? Em Natal (RN) a explosão de fronteiras manifesta-se em um movimento denominado

“pinta natalense”, que provoca reações nas mídias digitais e na grande imprensa. O perfil

Todo natalense5 do Facebook está na categoria Entretenimento e é autodefinido como uma

página “potiguar pra informar e entreter, coisa séria e humor sarcástico, feita por quem é

apaixonado por essa cidade” 6. No final de 2013, o proprietário do perfil fez uma postagem

que gerou 1.096 curtições, 137 comentários e 53 compartilhamentos, entre defesas acaloradas

e críticas contundentes: Todo sábado agora tem briga no Midway Mall7 é? Esses pintas de merda passam a semana inteira juntando cinco reais para ir no Shopping arrumar "confusão" e "assustar" os raros momentos de lazer das famílias que passam a semana inteira trabalhando, e quando arruma (sic) um tempinho para passear com seus filhos acontece coisas desse tipo.

Entre as respostas, uma das mais enfáticas foi a de Jefferson Batista8: a “pior coisa nos

fins de Semana é pegar o 639 e vê aqueles |Pintas escutando Funk, antes era grafith, agora é

Fuck, ninguém merece isso !  Devia colocar todos os Pintas dentro de uma câmera de gás,

como os Nazistas usava (sic) !”10

No final de 2013, blogs da internet também sediados em Natal noticiaram brigas,

protestos e reforço de policiamento, todos referentes à frequência de jovens da periferia ao

shopping11. As imagens estão em vídeos na Internet, como no canal Noz Inventa12, do

Youtube13. Em 21 de dezembro de 2013, os diários Tribuna do Norte e Novo Jornal

noticiaram que o “Protesto dos Pintas”, uma manifestação marcada pelas redes sociais, foi

coibido com violência14. Na reportagem do Novo Jornal, há referências a um uniforme que

5 Sediado fisicamente em Natal, capital do Rio Grande do Norte.6 In: https://www.facebook.com/TodoNatalense. Postagens em 30/11/2013; consulta em 11/02/2014.7 Shopping center de grande porte localizado em bairro central de Natal (Lagoa Nova), que abriga marcas do consumo de luxo na cidade.8 In: https://www.facebook.com/jefferson.batista.3726. Postagens em 30/11/2013; consulta em 11/02/2014.9 Linha de ônibus urbano de Natal que liga bairros da zona sul à zona norte da cidade.10 In: https://www.facebook.com/TodoNatalense/posts/556771124401010.11 Algumas postagens: “Sábado está marcado o ‘protesto dos pinta’ no Shopping Midway Mall”. In: http://blogdoprimo.com.br/noticias/sabado-esta-marcado-o-protesto-dos-pinta-no-shopping-midway-mall/ ; “Noite de terror: protesto dos ‘pintas’ causa tumulto e pânico no Midway”. In: http://blogdobg.com.br/noite-de-terror-protesto-dos-pintas-causa-tumulto-e-panico-midway/; “PM reforçará segurança do Midway no dia 28-Dezembro. Publicado em 21/12/2013 por kezi44”. In: http://kezitadotco.wordpress.com/2013/12/21/pm-reforcara-seguranca-do-midway-no-dia-28-dezembro/ (consultados em 11/02/2014).12 In: http://www.youtube.com/user/nozinventa?feature=watch. (consultado em 11/02/2014).13 “Protesto Dos Pintas - 21/12/2013. In: http://www.youtube.com/watch?v=nHrCJX-TiFM. (consultado em 11/02/2014).

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seria dos Pintas e que outros jovens, por se vestirem de forma semelhante, acabaram sendo

abordados também de forma violenta.

Para os natalenses, o termo ‘pinta’ é familiar; designa jovens que fogem ao modo de

vestir usual daqueles com padrão de consumo médio alto. Em geral, quem se veste assim

mora em bairros periféricos, na zona norte da cidade, estudou em escolas públicas ou

comunitárias ou ainda é universitário com postura política afirmativa em favor da justiça

social. Segundo o blog Carta Potiguar, o “pinta é o único personagem tipicamente natalense.

Sua vestimenta comumente identificável – bermuda de praia, camiseta folgada, boné – é

perfeitamente adaptada ao clima de uma cidade quente e praieira. (...) O pinta é

essencialmente um antiplayboy.”15

O ‘pinta natalense’ em geral ouve como estilos de música preferidos forró, suingueira

ou funk, às vezes também música sertaneja ou brega. Se for universitário, pode ouvir tudo

isso ou reggae, MPB, rock. Na aparência e na atitude, o “pinta natalense” se aproxima dos

funkeiros da ostentação, os “reis do rolezinho” de São Paulo e dos meninos do “passinho”16

no Rio de Janeiro. Tanto os praticantes do rolezinho quanto os do passinho se inspiram

musical e visualmente nos MCs, ou Mestres de Cerimônias do funk17, responsáveis por

animar o público cantando suas letras de rap ou improvisando seu Freestyle.

A revista Veja, em matéria sobre os rolezinhos nos shoppings em São Paulo no início

de 2014, afirma que os “rolezeiros” querem se divertir e comprar roupas de marca longe da

“playboyzada”, indicando jovens da periferia como ícones de estilo: “Evandro Farias de

Almeida é a Lala Rudge da periferia paulistana”. 18 O texto refere-se à blogueira de moda19

como autoridade expressa em posts e ao rolezeiro como uma nulidade cheia de fãs da Zona

Leste de São Paulo, que consomem seus vídeos de piadinhas ingênuas fazendo com que os

14 “Protesto dos ‘pinta’ acaba em confusão no Midway”. In: http://tribunadonorte.com.br/news.php?not_id=270046 ; “Protesto acaba em confusão no Midway Mall: a manifestação "Protesto dos Pintas" foi marcada há duas semanas nas redes sociais; confronto entre policiais e manifestantes gerou a detenção de cinco pessoas. Publicado em 21/12/2013. In: http://www.novojornal.jor.br/_conteudo/2013/12/cidades/25326-protesto-acaba-em-confusao-no-midway-mall.php (consultados em 11/02/2014).15 “O pinta: cidadão natalense”. Por Túlio Madson. Publicado em 18/12/2013. In: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.cartapotiguar.com.br/2013/12/18/o-pinta-cidadao-natalense/16 Dança livre de jovens das comunidades dos morros e da periferia cariocas que mistura estilos do break, do funk, da salsa e outros.17 Cf. http://www.significados.com.br/mc/ (consultado em 10/02/2014).18 “Rolezinhos: Eu não quero ir no seu shopping”. Reportagem de lana Rizzo, Alexandre Aragão e Bela Megale. Revista Veja, Brasil, Cidades, publicada em 17/01/2014. In: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/rolezinho-eu-nao-quero-ir-no-seu-shopping (consultado em 11/02/2014).19 Cf. http://www.lalarudge.com.br/ (consultado em 11/02/2014).

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posts do rolezeiro alcancem 14 mil 644 visualizações e o seu perfil no Facebook tenha 13.107

seguidores20. O Pinta Natalense tem um desempenho ainda mais expressivo numericamente:

no seu perfil do Twitter, conta 48.900 seguidores; seu perfil do Facebook tem 17.345 curtidas

e seu blog do Wordpress registra 70.363 visitas21.

Em 2008, em Natal, os jovens dos bairros periféricos já frequentavam o shopping

Midway Mall, que mesmo localizado num bairro central, é passagem para ônibus que ligam

todas as zonas da cidade22. O poder de consumo e o direito de fruição estão ligados aos

andares de lojas: térreo/primeiro andar de lojas é sempre lotado e visivelmente mais

frequentado por pessoas de aparência mais simples, vestimentas populares e hábitos de

consumo mais modestos; o segundo, onde está a praça de alimentação e algumas lojas-

âncora, tem um trânsito de pessoas mais variado; e o terceiro andar, onde se localiza um

teatro sofisticado e griffes de luxo, é da elite social, reconhecível pelo modo de vestir roupas

caras, pela frequência aos restaurantes à la carte e livrarias.

“A periferia se cansou de esperar a oportunidade que nunca chegava, e que viria de

fora, do centro”, manifestou-se em 2007 Hermano Vianna23, numa frase que ainda hoje serve

de epígrafe ao blog Periferia em movimento: cultura, ação e cidadania, coletivo de

comunicação sobre, para e a partir das periferias24.  Segundo o blog, o funk é atualmente um

estilo musical que se divide em muitas vertentes. São citadas as do funk ostentação, a

consciente, a sensual e a de apologia às drogas e à violência. A cada uma dessas vertentes,

corresponde um estilo de apresentação visual, um modo de falar distintivo e uma gramática

próprias, semelhantes entre si, mas diferenciados em relação a outros movimentos culturais e

sociais que, no segmento jovem da população, estão sempre profundamente ligados à fruição

identitária de gêneros musicais.

20 Cf. http://www.youtube.com/user/Evandrob17 e https://www.facebook.com/fariasdealmeida (consultados em 11/02/2014).21 In: https://twitter.com/pintanatalense; https://www.facebook.com/pintanatalense22 Sobre esse assunto, cf. SILVA, Josimey; NEVES, Thiago e SOBRAL, Gustavo (2012).23 Em manifesto originalmente publicado na Revista Raiz – cultura do Brasil, em 02/01/2007. In: http://revistaraiz.uol.com.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=220&Itemid=180 (consultado em 11/02/2014).24 Segundo o próprio blog, ele foi criado e ainda é mantido “pelos jornalistas Aline Rodrigues, Ana Paula Fonseca, Sueli Carneiro e Thiago Borges nasceram e cresceram em bairros do Extremo Sul de São Paulo – uma região negligenciada por décadas pelo poder público e muito menos lembrada pelas grandes empresas. Em bairros como Grajaú, Pq. Residencial Cocaia, Jardim São Luiz, Campo Limpo e Guanhembú, de São Paulo/SP”. In: http://periferiaemmovimento.wordpress.com/. (consultado em 11/02/2014).

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Buscar o estilo de dança passinho no Google apresenta 266.000 resultados em 0.35

segundos25. Nesse buscador também estão imagens dos jovens que já são tema de reportagem

de jornais e TV e de pelo menos dois videodocumentários26. Crianças e rapazes ligados ao

funk, principalmente ao ostentação e ao passinho, cortam cabelo à navalha e com desenhos

geométricos ou figurativos, alguns chamados de “disfarçados” por causa das laterais

raspadas. Os fios às vezes são tinturados, “colombianos” ou corte “jaca” ou “jacá”,

“disfarçado” com referência ao Jacarezinho, origem da moda27. Mesmo os meninos depilam

as sobrancelhas e usam aparelhos nos dentes, ainda quando não precisam. Usam bonés de

forma particular (abas largas, maiores, de lado, para trás), unhas esmaltadas e longas, óculos

grandes e coloridos, roupas em cores fortes. As mulheres usam tudo isso, e algumas até o

cabelo navalhado na lateral com desenhos. Se usam calças compridas, a dos meninos é

folgada e a das meninas, justíssima, às vezes brilhantes. O funk ostentação tem tudo isso e

mais muitas correntes, anéis, tatuagens.

A música e a moda ligada a esses movimentos geram eventos que dão visibilidade aos

seus protagonistas e a outros moradores dos bairros periféricos, como o caso da Batalha dos

barbeiros, com realização prevista em Niterói/RJ para 30/03/201428. As manifestações

extrapolam os limites das periferias, muito pelas possibilidades que a comunicação na

internet oferece. Afirmação do eu em estilos próprios e marcadamente distintivos é a

principal emergência desse tipo de atitude, que pode ser encontrada em muitos jovens dessa

que hoje é uma pós-periferia.

Ao nos apropriarmos do pensamento de Heidegger, para quem não são os conceitos,

mas o cotidiano que nos aponta os problemas fundamentais, percebemos que, nesse

cotidiano, ser é “ser com os outros”. Esse é o “ser no mundo”, em sua cotidianidade e

fascinado por esse mundo que é o seu. Um ser que não pode ser uma simples presença

objetivada, mas antes, se apresenta como uma modificação existencial do “a gente”

25In: https://www.google.com.br/#q=estilo+passinho. Imagens sobre o tema estão em https://www.google.com.br/search?q=estilo+passinho&espv=210&es_sm=122&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=FLf6Uo2YCsTq0QHvsoCQDA&ved=0CAcQ_AUoAQ&biw=1024&bih=484 (consultado em 10/11/2014).26 Cf. http://oglobo.globo.com/cultura/documentarios-sobre-passinho-mostram-origem-a-nova-fase-do-estilo-de-danca-10257890 (consultado em 11/02/2014).27 Conferir a reportagem “Depois do passinho, a batalha dos cabelos”, publicada em 07/02/2014. In: http://oglobo.globo.com/cultura/depois-do-passinho-batalha-dos-cabelos-11526538, o teaser do documentário em realização “Deixa na régua”, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=AMWiox7R1B0 ou o perfil “Eu mando o corte do Jacá”. In: https://www.facebook.com/eumandocortedojaca (consultados em 11/02/2014).28 Cf. https://www.facebook.com/events/242769745900005/ (consultado em 10/02/2014).

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(HEIDEGGER, 1981). Nas diásporas pós-periféricas, é esse “a gente” que está em questão;

os protagonistas pós-periféricos partilham, com toda a sociedade em que vivem, um horizonte

de sentidos e de historicidade comum que se desvela nos acontecimentos e têm ocupado as

páginas do jornalismo e a preocupação das posições hegemônicas.

3. Funk ostentaçãoDiversas reportagens e artigos publicados entre o final de 2013 e início de 2014 sobre

os “rolezinhos” destacavam a apresentação e descrição das preferências culturais dos jovens

participantes moradores da periferia da cidade, em particular a música consumida, escutada e

cantada durante os “roles”. Numa clara construção da alteridade exótica e desconhecida, o

que se percebe em muitas publicações é a sensação do estranhamento e até repulsa por um

diferente, um apêndice, um “país dentro do Brasil”29, numa estratégia discursiva que segrega

e separa o subalterno, construindo múltiplas imagens e imaginários (ligadas à violência e

pobreza) acerca deste espaço geográfico e social que é a periferia, algo que não parece

pertencer ao país “real” do discurso midiático hegemônico. No que tange à escuta e à

paisagem sonora (Pereira, 2012) desta periferia, o que se diz constantemente nas

representações midiáticas e no senso comum é sobre sua qualidade inferior, a falta de

elementos estéticos e de distinção associados à chamada “boa música” e sua associação a

algo comercial, de entretenimento vazio e alienante.

Moscovici (2003), em sua noção de “representações sociais” nos ajuda a compreender

aspectos desta questão, das maneiras de falar e construir um Outro, não hegemônico e não

legitimado. Segundo ele, as representações sociais são “entidades quase tangíveis; elas

circulam, se entrecruzam, e se cristalizam continuamente”, e mostram-se como formas

privilegiadas e características de conhecimento do mundo e do diferente na Modernidade,

quando novas formas de legitimação e poder entraram em jogo. Isso não está isento de

conflitos e preconceitos, mas ao contrário, traz para o centro do debate as questões de poder,

hierarquias, estigmas e disputas por apropriações de espaços reais e simbólicos. Ana Enne

(2013) colabora com este debate, argumentando sobre a relação fundamental entre

representação social e construção social da realidade, bem como sua relação com os

processos midiáticos.

Tanto nas reportagens citadas, como também pelo que estudiosos da periferia de São

Paulo nos contam, um dos estilos ou gêneros de música mais consumidos por estes jovens 29 Reportagem da revista Veja, já citada.

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atualmente é o chamado “funk ostentação”.30 Compreender um pouco deste fenômeno, seus

agentes e sua música, pode aprofundar a discussão sobre estas diásporas pós-periféricas,

intimamente relacionadas ao consumo e ao entretenimento em cenários urbanos.

Derivado do “funk proibidão” carioca, o qual continha um ideário explícito de alusão e

promoção da criminalidade, drogas e violência, a versão “ostentação” traz alusões ao

consumo de grifes famosas, dinheiro, bebidas, carros e mulheres31, associadas a um padrão de

vida e consumo das classes altas, em clipes musicais (forma privilegiada de divulgação desta

música), que lembram o gangsta rap norte-americano. Os clipes mostram jovens rodeados

por estes ícones luxuosos, cobertos por correntes e anéis de ouro e roupas, óculos e bonés de

grifes como Oakley, Hyundai, Rolex, Tommy Hilfiger, Armani, Lacoste entre outras, onde

um certo imaginário de sucesso, prestígio, inclusão, mostra-se como um forte componente

ligado ao consumo. Carlos Palombini32, salienta que o “ostentação” é uma característica do

funk “proibidão” carioca há pelo menos sete anos, quando já se encontrava alguns versos ou

estrofes dedicadas “à opulência da vida no varejo de substâncias ilícitas”. Segundo

Palombini, a Ostentação per se, sem associação explícita com o varejo de substâncias ilícitas, resulta: 1. Da prisão dos MCs Frank, Max, Tikão, Didô e Smith em 15 de dezembro de 2010; 2. Das invasões e ocupação dos Complexos da Penha e do Alemão no final de novembro de 2010, e do consequente desaparecimento de muitos bailes de comunidade, entre eles, o principal, o da Chatuba; 3. Do fato que, sem bailes para realizar no Rio, e com a facção responsável pela narco-cultura brasileira maciçamente ameaçada, vários MCs cariocas encontraram mercado de trabalho em São Paulo. 33

Embora ainda não haja quase nenhum estudo mais aprofundado sobre este sub- gênero

do funk, já se tornou uma certa narrativa comum e aceita pelos seus próprios protagonistas

compreender o funk ostentação como algo paulista (ainda que originado de uma vertente do

proibidão carioca), criado em meados da década passada na Baixada Santista por MCs como

Boy do Charme (“Onde eu chego paro tudo”) e trazida para São Paulo em 2006. A partir daí,

espalhou-se pela periferia paulistana (principalmente a Zona Leste), contando com diversos

MCs (Guimê de “Plaque de 100”, Bio G3 e o “Bonde da Juju”, Dede e “Olha o Kit”,

Rodolfinho e “Como é bom ser vida loka”, Menor do Chapa e “Sou patrão, não funcionário”, 30 Cf o trabalho de Alexandre Barbosa Pereira, da UNIFESP, que parece ser o único em andamento sobre este fenômeno musical.31 Barbosa Pereira (2013) salienta que, no caso do proibidão e do ostentação, estão presentes de modos diferenciados um mesmo aspecto da realidade dos jovens das periferias: a presença do consumo e da violência, em diferentes formas de imaginação e experimentação. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/1387799473_348730.html Acesso em fev 2014. 32 Conforme entrevista concedida em fevereiro de 2014.33 Idem.

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do Rio de Janeiro, Daleste, assassinado no palco durante show em Campinas em 2013, entre

outros), produtores de clipes e shows, e até um filme lançado em 2012, chamado “Funk

O$TENTAÇÃO – o Filme”34 (dirigido por Konrad Dantas e Renato Barreiros).

Sobre os clipes, é notável o investimento em produções lançadas no Youtube, gerando

até vinte milhões de acesso em cada música, demonstrando usos das mídias digitais e internet

alternativos aos do mainstream (não apareciam até agora na grande mídia e tampouco gravam

cds), baseando-se nos shows em casas noturnas (com até cinco por apresentações por noite) e

views na internet, fazendo sua divulgação em flyers distribuídos na periferia (bairros como

Cidade Tiradentes, Guaianazes, Itaquera) e em redes sociais como Facebook e Twitter.

A Kondzilla (de Konrad Dantas, jovem de 25 anos, morador da Cidade Tiradentes) e a

Funk TV (que realizou vários clipes do MC Daleste), são empresas produtoras de muitos dos

clipes musicais, especializadas em produzi-los numa estética semelhante àquelas do gangsta

rap e de boa qualidade técnica, antes não vistas em produções destas músicas, numa intenção

de afirmar “bons valores” da periferia e não a criminalidade e drogas. Esta questão nos chama

a atenção pelo fato de serem os funkeiros falando sobre eles mesmos nos clipes e no filme;

não supomos aqui uma narrativa, por este motivo, livre, revolucionária, resistente aos

discursos hegemônicos, mas salientamos a possibilidade de representações contra-

hegemônicas que, de alguma forma, provocam dissonâncias e fissuras no discurso

hegemônico, ao buscarem sua inserção via consumo e afirmação de um imaginário das

classes altas, mas ao mesmo tempo e apesar disso, buscarem ocupar um lugar que sempre

lhes foi negado. Segundo Enne (2013, p. 177), isso enfatiza o caráter hegemônico e consensual das representações veiculadas pela indústria cultural e o movimento contra-hegemônico e conflitivo das representações que se espalham pela internet, evidenciando o quanto o campo das representações é arena de disputas discursivas em torno da política e da identidade, dentre outros eixos, algumas vezes implicando em negociações e emparelhamentos de sentido complexos e problemáticos.

Um paradoxal potencial político vai se esboçando em fenômenos como esse, com sua

possibilidade de cooptação pelas classes médias e altas como sendo um “funk do bem”,

domesticado e mais palatável em ideários que corroboram o status quo, tocado em casas

noturnas elitizadas por não exaltar a criminalidade e sim o consumo e o sucesso. Ao mesmo

tempo, mostra também sua potência ao tentar romper com aspectos de distinção e

exclusividade ligados ao consumo, reivindicando a inclusão em espaços reais e simbólicos,

34 Disponível em:< http://www.youtube.com/watch?v=5V3ZK6jAuNI> Acesso em fev 2014.

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onde a noção de separação de habitus e padrões de vida vai se tornando menos nítida no uso

que este jovens fazem das marcas e dos imaginários das elites socioeconômicas.

Segundo Alexandre Barbosa35, não há total separação entre o rap paulistano

“consciente”36 dos anos 1990, associado à politização, crítica social e resistência dos jovens

da periferia e o funk ostentação, exaltando explicitamente lazer, consumo e entretenimento,

considerados alienantes. De acordo com o antropólogo, muitos rappers aderiam ao

“ostentação”, sendo que nos shows de funk da atualidade, escuta-se também músicas de

grupos como Racionais MC, ícones do rap político. O que este fato parece nos lembrar é que

estes referenciais musicais se confundem na escuta dos jovens que vão aos shows e que

cantam e consomem estas músicas, uma vez que em ambos os casos o que surge para eles é o

potencial de afirmação e auto-estima da periferia pela via musical, seja num tom mais sério e

contestador, seja num tom de entretenimento e de leveza que os carros luxuosos, marcas de

roupas, óculos, relógios parecem querer trazer para a presença cotidiana.

Desta maneira, as relações entre consumo, entretimento e política vão mostrando-se em

associações conflituosas e que exigem uma atenção às contradições, descontinuidades e

complexidades que trazem à tona sobre juventudes, formas de participação política, usos

midiáticos, dentre outros aspectos. Se a exaltação de marcas e ideários do consumo no funk

ostentação aponta para uma possível domesticação das músicas dos jovens da periferia,

retirando-lhes o potencial revolucionário, lembramos que o consumo também motiva formas

de ser, estar, pensar e se inserir no mundo contemporâneo, onde a reinvindicação de lugares e

símbolos exclusivos das classes altas desafia um certo moralismo acadêmico que insiste em

tutelar os gostos, costumes e hábitos das classes baixas a um padrão iluminista e letrado.

Como bem lembra Barbosa, a reinvindicação pelo direito à “zoar”37 na cidade (gerando uma

disputa por espaços na metrópole) e pelas músicas, ainda que não possa ser encarada como

libertadora e nem opostamente como vilã alienante, aparece como uma forma de

insubordinação tácita, ainda que lazer, entretenimento e consumo não se mostrem como ações

e motivações políticas clássicas, esperadas ou desejadas, apontando para uma potência

contraditória e paradoxal deste fenômeno musical e suas práticas cotidianas correlatas.

35 Em entrevista a Eliane Brum. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/1387799473_348730.html Acesso em fev 2014. 36 Segundo expressão dos próprios funkeiros e rappers.37 Segundo Alexandre Barbosa, “zoar” significa chamar a atenção para si, se divertir, namorar, brincar e, se for preciso, brigar.

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Trotta (2013) alude com razão a certa emergência da periferia na cena musical

contemporânea ressaltando o quanto ela surge de maneira positivada, permitindo (re)elaborar

assimetrias e pertencimentos desiguais. Concordando com o autor, talvez pudéssemos pensar

em realidades pós-periféricas para refletir sobre esta presença midiática positivada até certo

ponto, que desafiam lógicas excludentes entre centro/periferia e maisntream/independente.

Pensando com Appadurai (2005) e seus panoramas/paisagens que acionam a “obra da

imaginação” – como característica constitutiva da subjetividade moderna, ajudando a criar

imaginários sociais novos que misturam, articulam e jogam em confronto diferentes fluxos –

salientamos que esta não se coloca como puramente emancipatória e nem totalmente

disciplinada, mostrando-se como um espaço de negociação, nos quais a noção de diferença,

alteridade, e também subalternidade, periferias se impõem para refletirmos sobre estes

deslocamentos e diásporas que envolvem espaços geográficos e semânticos, em pauta neste

artigo.

Refletir sobre realidades pós-periféricas mostra-se como um caminho que, longe de

abolir as hierarquias reais, simbólicas e discursivas, aponta para cenários em que as fronteiras

rígidas entre centro e periferia se encontram mais borradas e menos nítidas, exigindo uma

perspectiva epistêmica que possibilite a compreensão de realidades complexas.

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origem-a-nova-fase-do-estilo-de-danca-10257890 (consultado em 10/02/2014).

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