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Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional João Paulo Pereira do Amaral Da colonialidade do patrimônio ao patrimônio decolonial Rio de Janeiro 2015

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  • Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    Joo Paulo Pereira do Amaral

    Da colonialidade do patrimnio ao patrimnio decolonial

    Rio de Janeiro

    2015

  • Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    Joo Paulo Pereira do Amaral

    Da colonialidade do patrimnio ao patrimnio decolonial

    Dissertao apresentada ao curso de Mestrado

    Profissional do Instituto do Patrimnio

    Histrico e Artstico Nacional como pr-

    requisito para obteno do ttulo de Mestre em

    Preservao do Patrimnio Cultural.

    Orientadora: Prof. Dra. Carla Arouca Belas

    Rio de Janeiro

    2015

  • O objeto de estudo dessa pesquisa foi definido a partir de uma questo identificada no

    cotidiano da prtica profissional da Superintendncia do IPHAN no Mato Grosso do Sul.

    A485c

    Amaral, Joo Paulo Pereira do.

    Da colonialidade do patrimnio ao patrimnio decolonial / Joo Paulo

    Pereira do Amaral Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional,

    2015.

    166 f.: il.

    Orientadora: Carla Arouca Belas

    Dissertao (Mestrado) Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico

    Nacional, Mestrado Profissional em Preservao do Patrimnio Cultural,

    Rio de Janeiro, 2015.

    1. Patrimnio cultural Brasil. 2. Salvaguarda. 3. Colonialidade. 4. Giro

    decolonial. I. Belas, Carla Arouca. II. Instituto do Patrimnio Histrico e

    Artstico Nacional (Brasil). III. Ttulo.

    CDD 363.0981

  • Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    Joo Paulo Pereira do Amaral

    Da colonialidade do patrimnio ao patrimnio decolonial

    Dissertao apresentada ao curso de Mestrado Profissional do Instituto do Patrimnio

    Histrico e Artstico Nacional, como pr-requisito para obteno do ttulo de Mestre em

    Preservao do Patrimnio Cultural.

    Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 2015.

    Banca examinadora

    _________________________________

    Professora Dra. Carla Arouca Belas (orientadora) PEP/MP/ IPHAN

    _________________________________

    Professora Dra. Joseane Paiva Macedo Brando PEP/MP/ IPHAN

    _________________________________

    Professora Dra. Letcia Costa Rodrigues Viana UnB

  • Sou grato

  • RESUMO

    A atual Constituio Federal estabelece que o Estado proteger, com a colaborao da

    comunidade, as manifestaes das culturas populares, indgenas, afrodescendentes e das de

    outros grupos formadores da sociedade brasileira, definindo o patrimnio cultural do pas

    como os bens materiais e imateriais portadores de referncia memria, identidade e ao

    daqueles grupos. Tal orientao da poltica sobre os patrimnios culturais desloca o foco dos

    bens em si para a dinmica social de atribuio de valores, implicando numa gradativa

    aproximao do ponto de vista das/os que vivenciam diretamente as prticas culturais,

    trazendo-as/os arena decisria. Esta perspectiva abre a poltica federal sobre os patrimnios

    culturais no Brasil de hoje a novas prticas de gesto com vistas autonomia e

    sustentabilidade e suscitando uma nova relao epistemolgica, incluindo as/os detentoras/es

    das manifestaes culturais na construo de conhecimento sobre suas prticas e saberes.

    Nestas reflexes aparecem como especialmente relevantes as contribuies terico-

    metodolgicas do Grupo Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade. A partir de

    questionamentos acerca da classificao tnica sobre a qual os estados-nao latino-

    americanos se desenvolveram, as/os autoras/es do grupo refletem sobre as variadas dimenses

    e efeitos do processo colonial, no que se destaca a distino entre colonialismo e

    colonialidade. Enquanto o colonialismo denota uma relao poltica e econmica de

    dominao colonial de um povo ou nao sobre outro, a colonialidade se refere a um padro

    de poder que no se limita s relaes formais de explorao ou dominao colonial, mas

    envolvem tambm as diversas formas pelas quais as relaes intersubjetivas se articulam a

    partir de posies de domnio e subalternidade, podendo ser observada ao longo do tempo nas

    relaes de aprendizagem, no senso comum e na autoimagem dos povos.

    Ao movimento terico e prtico de resistncia poltica e epistemolgica lgica da

    colonialidade Nelson Maldonado-Torres (2005) chama de Giro decolonial, movimento que

    busca reconhecer que a colonialidade abrange mltiplas formas e, em seguida, prover

    alternativas a elas. Esta proposta destina-se a reivindicar os setores subalternos no s como

    sujeitos histricos - procurando recuperar processos, experincias e eventos significativos

    para segmentos, organizaes e movimentos sociais invisibilizados das narrativas dominantes

    -, mas tambm como sujeitos de conhecimento histrico, ou seja, valorizando as verses,

    categorias, discursos e seus prprios protagonistas, seja na reconstruo e interpretao

    daquelas narrativas, seja na elaborao e construo de novas.

    A partir destas questes, nesta dissertao pretendo refletir sobre os potenciais e

    limites de aproximao entre o pensamento decolonial e a poltica pblica sobre os

  • patrimnios culturais no Brasil de hoje, com destaque para a poltica de salvaguarda dos

    patrimnios imateriais Registrados. Para tanto, tomo como caso de referncia minha

    experincia profissional recente junto salvaguarda do modo de fazer a viola de cocho no

    Mato Grosso do Sul.

    Palavras-chave: patrimnio cultural; salvaguarda; colonialidade; giro decolonial.

    ABSTRACT

    The current Federal Constitution provides that the State shall protect in collaboration

    with the community manifestations of popular, indigenous, african-brazilian and other groups

    that form the brazilian society by setting the cultural heritage of the country as the tangible

    and intangible assets bearers reference to memory, identity and action of those groups. This

    shift in policy on cultural heritage shifts the focus of the property itself to the social dynamics

    of assigning values, implying a gradual approach from the perspective of those who

    experience the cultural practices directly, bringing them to the decision-making arena. This

    perspective opens the federal policy on cultural heritage to new management practices aimed

    at autonomy and sustainability and raises a new epistemological relationship, including the

    holders of cultural events in the construction of knowledge about their practices and

    knowledge.

    These reflections appear as particularly relevant theoretical and methodological

    contributions of Modernity/Coloniality/Decoloniality Group (MCD). From questions about

    ethnicity on which nation states in the region have developed, the group of authors reflect on

    the varied dimensions and effects of the colonial process, as it highlights the distinction

    between colonialism and coloniality. While colonialism denotes a political and economic

    relationship of colonial domination of a people or nation over another, coloniality refers to a

    pattern of power that is not limited to the formal relations of exploitation or colonial

    domination, but also involve the various ways the interpersonal relations are articulated from

    domain and subordinate positions, and can be observed over time in the relationship of

    learning, common sense and self-image of people.

    The theoretical and practical movement of epistemological and political resistance to

    the logic of colonialism Nelson Maldonado-Torres (2005) calls "decolonial turn", a movement

    that seeks to recognize that colonialism covers multiple ways and then provide alternatives to

    them. This proposal is intended to claim the subaltern sectors not only as historical subjects -

    seeking recovery processes, significant experiences and events for segments, organizations

    and social movements invisible the dominant narratives - but also as historical knowledge of

    subjects, namely, valuing versions, categories, discourse and their own protagonists, either in

  • the reconstruction and interpretation of those narratives, either in the design and construction

    of new ones.

    From these issues, this dissertation intend to reflect on the potential and approach

    boundaries between decolonial thought and public policy on cultural heritage in today's

    Brazil, with emphasis on the safeguarding policy of Registered intangible heritage. For this,

    take as reference case my recent experience with the safeguarding of the way to make the

    viola de cocho in Mato Grosso do Sul.

    Keywords: cultural heritage; safeguarding; coloniality; turning decolonial

    RESUMEM

    La actual Constitucin Federal establece que el Estado proteger en colaboracin con

    la comunidad las manifestaciones de grupos populares, indgenas, afro-brasileos y otros que

    forman la sociedad brasilea, estableciendo el patrimonio cultural del pas como los

    portadores, tangibles o intangibles, de referencias a la memoria, la identidad y la accin de

    esos grupos. Este cambio en la poltica sobre el patrimonio cultural pone el enfoque en la

    dinmica social de la asignacin de valores, lo que implica acercarse del punto de vista de

    las/los que experimentan las prcticas culturales directamente, trayndoles al mbito de toma

    de decisiones. Esta perspectiva abre la poltica federal sobre el patrimonio cultural a las

    nuevas prcticas de gestin orientadas a la autonoma y la sostenibilidad y plantea una nueva

    relacin epistemolgica, incluyendo las/los que detienen las culturales en la construccin del

    conocimiento sobre sus prcticas.

    En estas reflexiones aparecen como particularmente relevantes los aportes tericos y

    metodolgicos del Grupo Modernidad/colonialidad/decolonialidad. A partir de preguntas

    sobre el origen tnico en el que los estados nacionales de la regin han desarrollado,

    autoras/es del grupo reflexionan sobre las diversas dimensiones y efectos del proceso colonial,

    ya que pone de relieve la distincin entre colonialismo y colonialidad. Mientras que el

    colonialismo denota una relacin poltica y econmica de la dominacin colonial de un

    pueblo o nacin sobre otra, la colonialidad se refiere a un patrn de poder que no se limita a

    las relaciones formales de la explotacin o de la dominacin colonial, pero tambin implica

    las distintas formas las relaciones interpersonales que se articulan a partir de dominio y

    posiciones subordinadas, y que se pueden observar a travs del tiempo en la relacin de

    aprendizaje, el sentido comn y la propia imagen de las personas.

    El movimiento terico y prctico de la resistencia epistemolgico y poltico a la lgica

    de la colonialidad Nelson Maldonado-Torres (2005) llama "giro decolonial", un movimiento

  • que busca reconocer que el colonialismo cubre mltiples maneras y luego proporcionar

    alternativas a los mismos. Esta propuesta tiene por objeto reclamar los sectores subalternos no

    slo como sujetos histricos - que buscan procesos de recuperacin, experiencias

    significativas y eventos para los segmentos, organizaciones y movimientos sociales invisibles

    en las narrativas dominantes -, sino tambin como el conocimiento histrico de los sujetos, es

    decir, la valoracin de versiones, categoras, discurso y sus propios protagonistas, ya sea en la

    reconstruccin y interpretacin de los relatos, ya sea en el diseo y la construccin de otras

    nuevas.

    A partir de estas cuestiones, el presente trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre

    los lmites y potenciales de aproximacin entre el pensamiento deecolonial y las polticas

    pblicas sobre el patrimonio cultural en el actual Brasil, con nfasis en la poltica de

    salvaguardia del patrimonio inmaterial. Para ello, toma como caso de referencia mi reciente

    experiencia con la salvaguardia de la manera de hacer la viola de cocho en Mato Grosso do

    Sul.

    Palabras clave: patrimonio cultural; salvaguardia; colonialidad; giro decolonial

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................................................. 12 Captulo 1 ...................................................................................................................................................... 16 1 - MODERNIDADE, COLONIALIDADE E OS ESTUDOS SUBALTERNOS LATINO-AMERICANOS .... 16

    1.1 - Constituio........................................................................................................................................ 16 1.2 - Questes fundamentais ....................................................................................................................... 18 1.3 Colonialidades e as opes de(s)coloniais ........................................................................................... 19

    2 - NOTAS PARA UM GIRO DECOLONIAL SOBRE A PRESERVAO DOS PATRIMNIOS

    CULTURAIS NO BRASIL ............................................................................................................................ 22 2.1 - Antecedentes ...................................................................................................................................... 22 2.2 - Constituio e consolidao ................................................................................................................ 27

    2.2.1 - Interldio: eurocentrismo e esttica............................................................................................... 30 2.2.2 - A Exceo que Demonstra a Regra ............................................................................................... 35

    2.3 - Esttica, Colonialidade do Ser e Arte De(s)colonial ............................................................................. 38 3 - DOS NOVOS PATRIMNIOS AO PATRIMNIO DE(S)COLONIAL .................................................... 39

    3.1 - Novas ideias, novos patrimnios ......................................................................................................... 39 3.2 Referncias, patrimnios e sistemas culturais ...................................................................................... 44 3.3 - Patrimnios culturais e saber patrimonial. ........................................................................................... 48

    4 - COLONIALIDADE BRASILEIRA ....................................................................................................... 51 4.1 - Patrimonialismo, mandonismo, personalismo, servilismo, clientelismo e outros condimentos da

    colonialidade brasileira............................................................................................................................. 52 Captulo 2 ...................................................................................................................................................... 59 1 - O PATRIMNIO IMATERIAL ................................................................................................................ 59

    1.1 A poltica federal para o patrimnio imaterial no Brasil....................................................................... 60 1.1.2 Identificao e o INRC ................................................................................................................ 66 1.1.3 O Registro ................................................................................................................................... 67

    2 - A SALVAGUARDA DO PATRIMNIO CULTURAL IMATERIAL ....................................................... 68 2.1 - Antecedentes da salvaguarda ............................................................................................................... 69

    2.1.1 - O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) .......................................................... 70 2.2 - A poltica de salvaguarda .................................................................................................................... 72

    2.2.1 - Tipologia das Aes de Salvaguarda ............................................................................................. 73 2.3 - Um panorama da primeira dcada da poltica....................................................................................... 76

    3 - A SALVAGUARDA E A PROPOSTA DECOLONIAL ............................................................................ 80 3.1 - A pesquisa de co-labor ........................................................................................................................ 81 3.2 - Investigao/Pesquisa-Ao Participativa ............................................................................................ 82 3.2 - A Ecologia de Saberes ........................................................................................................................ 84 3.3 - Mediao, representao e a voz subalterna ......................................................................................... 89 3.4 - A escrita etnogrfica ........................................................................................................................... 91

    3.4.1 - A autoetnografia........................................................................................................................... 95 Caosptulo 3 ................................................................................................................................................... 98 1 - O MODO DE FAZER A VIOLA DE COCHO........................................................................................... 98

    1.1 - O bem cultural e o Registro ................................................................................................................. 98 2 - AS PRIMEIRAS AES DE SALVAGUARDA NO MATO GROSSO DO SUL ................................... 100 3 - AS AES RECENTES DE SALVAGUARDA NO MATO GROSSO DO SUL .................................... 102

    3.1 - Corumb........................................................................................................................................... 103 3.2 - As reunies de articulao e planejamento em 2012........................................................................... 104 3.3 - As aes planejadas para 2012/2013.................................................................................................. 107 3.4 As aes realizadas entre 2012 e 2013 e sua repercusso ................................................................... 110

    3.4.1 Os bices jurdicos .................................................................................................................... 112 3.4.1 - A transmisso intergeracional da cultura ..................................................................................... 117

    4 - AS AES DE SALVAGUARDA EM 2014 .......................................................................................... 120 4.1 - I Workshop do siriri e o modo de fazer a viola de cocho .................................................................... 120 4.2 - II Festival da Viola de Cocho ............................................................................................................ 122

  • 4.2.1 Segundo interldio: Os Guat .................................................................................................... 127 5 AES REALIZADAS EM 2015 .................................................................................................................. 132

    5.1 - O II Workshop do siriri e o modo de fazer a viola de cocho ............................................................... 132 6 - O LIMIAR ATUAL ................................................................................................................................ 136 7 CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................................. 144 REFERNCIAS ........................................................................................................................................... 150

  • 12

    INTRODUO

    O artigo 215 da atual Constituio Federal estabelece que o Estado proteger as

    manifestaes das culturas populares, indgenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos

    participantes do processo civilizatrio nacional. J no artigo seguinte define o patrimnio

    cultural do pas como os bens materiais e imateriais portadores de referncia identidade,

    ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Patrimnio que

    ser protegido pelo poder pblico e com a colaborao da comunidade, segundo acrescenta o

    pargrafo 1 do mesmo artigo 216.

    A perspectiva de orientar a poltica sobre os patrimnios culturais a partir de uma

    dimenso valorativa e referencial desloca o foco dos bens em si para a dinmica social de

    atribuio de valores, o que implica buscar formas de se aproximar do ponto de vista

    daquele/as que vivenciam diretamente as prticas culturais e traz-las/os arena decisria

    (FONSECA, 2003).Por outro lado, a partir da atual Constituio Federal a poltica sobre os

    patrimnios culturais abre-se a novas prticas de gesto participativa com vistas autonomia

    e sustentabilidade, o que torna propcio refletir sobre sua aproximao com uma nova relao

    epistemolgica e de poder, incluindo os chamados detentores das manifestaes culturais na

    elaborao e gesto de polticas pblicas e na construo de conhecimento sobre suas prticas

    e saberes.

    Nestas reflexes aparecem como especialmente relevantes as contribuies terico-

    metodolgicas do Grupo Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (MCD), que vem se

    desenvolvendo desde fins da dcada de 1990. Herdeiro do Grupo de Estudos Subalternos

    Latino-americanos, constitudo em 1992 e considerado por Arturo Escobar como um

    programa de investigao (ESCOBAR, 2003), o grupo de autoras/es vinculado ao grupo

    procura refletir sobre as variadas dimenses e efeitos do processo colonial, no que se destaca a

    distino entre colonialismo e colonialidade.

    Como assinalam Anbal Quijano (2014) e Enrique Dussel (1994), enquanto o

    colonialismo denota uma relao poltica e econmica de dominao colonial de um povo ou

    nao sobre outro, a colonialidade se refere a um padro de poder que no se limita s

    relaes formais de explorao ou dominao colonial, mas envolvem tambm as diversas

    formas pelas quais as relaes intersubjetivas se articulam a partir de posies de domnio e

    subalternidade. Neste sentido, a colonialidade sobrevive ao colonialismo, podendo ser

    observada nas relaes de aprendizagem, no senso comum e na autoimagem dos povos.

  • 13

    Ao movimento terico e prtico de resistncia poltica e epistemolgica lgica da

    colonialidade Nelson Maldonado-Torres (2005) chama de Giro decolonial. Segundo o

    autor,este movimentos e refere, em primeiro lugar, a reconhecer que as formas de poder

    coloniais so mltiplas e que tanto os conhecimentos como a experincia vivida dos sujeitos

    marcados pela colonialidade so altamente relevantes para entender as formas modernas de

    poder e, em seguida, prover alternativas a elas.

    Esta proposta investigativo-pedaggica de reconstruo coletiva da historia destina-se

    a reivindicar os setores subalternos no s como sujeitos histricos -procurando recuperar

    processos, experincias e eventos significativos para segmentos, organizaes e movimentos

    sociais invisibilizados das narrativas dominantes -, mas tambm como sujeitos de

    conhecimento histrico, ou seja, valorizando as verses, categorias, discursos e seus prprios

    protagonistas, seja na reconstruo e interpretao daquelas narrativas, seja na elaborao e

    construo de novas (CARRILLO, 2003).

    A proposta, portanto, passa a ser no s investigativa, mas tambm propositiva de

    descolonizao, o que traz um detalhe importante referente identidade do Coletivo MCD.

    Trata-se da sugesto feita por Catherine Walsh para a utilizao da expresso de-

    colonizao com ou sem hfen e no descolonizao (MIGNOLO, 2008 e 2010). A

    supresso da letra s marcaria a distino entre a proposta de rompimento com a

    colonialidade em seus mltiplos aspectos e a ideia do processo histrico de descolonizao

    via libertao poltica nacional das antigas metrpoles, do colonialismo.

    As relaes intersubjetivas de subalternidade, por sua vez, sugerem reflexes mais

    demoradas acerca das polticas pblicas baseadas na diversidade das referncias culturais e na

    participao social. A poltica local, as relaes histricas de poder e como se deram as

    interaes concretas ao longo do tempo daro as nuances especficas de cada caso, porm,

    informaro tambm ao processo de implementao e consolidao de uma poltica pblica

    seus potenciais e limites concretos. neste sentido que o objetivo principal desta dissertao

    apresentar uma reflexo sobre os potenciais e limites de aproximao entre o pensamento

    decolonial (ESCOBAR, 2005) e apoltica pblica sobre os patrimnios culturais no Brasil de

    hoje,com destaque para a poltica de salvaguarda dos patrimnios imateriais Registrados. Para

    tanto, tomo como caso de referncia minha experincia profissional recente junto

    salvaguarda do modo de fazer a viola de cocho no Mato Grosso do Sul.

    No primeiro captulo apresento em linhas gerais o pensamento decolonial, sua

    constituio e questes fundamentais, enfatizando aquelas que tocam mais de perto os

    objetivos deste trabalho. Neste ponto ressalto a questo da colonialidade como relao social

    de dominao e subalternidade e alguns de seus aspectos mais sutis e apresentoo duplo

  • 14

    aspecto de uma perspectiva decolonial: por um lado salientar a colonialidade e seus aspectos,

    reinscrevendo saberes e memrias ocultadas ou subalternizadas e, por outro, construir

    alternativas autnomas de ao futura.

    Tendo postas estas questes e inspirado pela perspectiva decolonial, apresento, ento,

    na sequncia do captulo um, uma leitura possvel sobre a constituio do campo da

    preservao dos patrimnios culturais no Brasil, ressaltando aspectos caros a uma perspectiva

    decolonial, a colonialidade do ser e a questo esttica e a colonialidade do saber na construo

    de conhecimento. Neste ponto sugiro uma abordagem constituio da preservao dos

    patrimnios culturais no Brasil, com destaque aos primeiros anos de atuao do atual Instituto

    do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN). Em seguida apresento a atual

    concepo sobre os patrimnios culturais no Brasil e um possvel entendimento terico sobre

    os patrimnios culturais, tendo o pensamento decolonial como perspectiva.

    Por fim, apresento algumas questes oriundas da teoria social brasileira, propondo-as

    como reflexo final e ponte necessria a uma contribuio mais frtil do pensamento

    decolonial elaborao e implementao de polticas pblicas sobre os patrimnios culturais

    no Brasil. O patrimonialismo, o mandonismo, o personalismo e o clientelismo, por exemplo,

    so debatidos de diversas maneiras por inmeras/os intrpretes do pensamento social

    brasileiro e, de diferentes formas, aparecem como caractersticas importantes da cultura

    poltica brasileira. Assim, para uma reflexo sobre colonialidades e opes decoloniais no

    mbito de uma poltica pblica no Brasil, como a salvaguarda dos bens culturais Registrados

    como Patrimnio Cultural, destaco autoras/es que consideram que o patriarcado e o

    patrimonialismo conformaram uma estrutura de poder sobre a qual se delineou a cultura

    poltica e o Estado brasileiro, desenvolvendo atavismos e arqutipos institucionais

    (SILVEIRA, 2006, p. 7). Para este trabalho tais questes aparecem como basilares para uma

    compreenso da colonialidade no Brasil e para uma reflexo acerca de uma proposta

    decolonial no mbito de uma poltica pblica, como a voltada para os patrimnios culturais.

    No segundo captulo, busco um passo mais na aproximao proposta entre o

    pensamento decolonial e a poltica federal para os patrimnios culturais no Brasil hoje,

    porm, no mais conceitual, mas terico-metodolgica, tendo como recorte a poltica federal

    de salvaguarda das manifestaes imateriais Registradas como Patrimnio Cultural brasileiro.

    Para tanto apresento inicialmente a poltica federal para o patrimnio cultural imaterial, suas

    concepes e principais instrumentos, com destaque para a poltica de salvaguarda dos bens

    culturais Registrados. Sugiro uma abordagem histrica breve, apresento algumas tipologias de

    aes de salvaguarda possveis e ressalto o carter participativo que as diretrizes do IPHAN

    para esta poltica pblica tm enfatizado em publicaes recentes.

  • 15

    Em seguida, apresento algumas reflexes e experincias terico-metodolgicas

    decoloniais procurando estabelecer alguns nexos com as concepes e instrumentos

    apresentados na primeira parte do captulo. Neste momento, ressalto os potenciais da

    perspectiva decolonial como referencial para a aplicao de alguns instrumentos do IPHAN,

    como o Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC) e para aes de salvaguarda dos

    bens culturais Registrados segundo as tipologias possveis apresentadas.

    Tendo abordado, no primeiro captulo, o pensamento decolonial e sua aproximao

    conceitual com a concepo atual sobre os patrimnios culturais do Brasil e, no segundo

    captulo, a poltica federal para o patrimnio imaterial e sua convergncia terico-

    metodolgica com reflexes e experincias decoloniais, destacadamente em relao poltica

    de salvaguarda, no terceiro e ltimo captulo reflito sobre os potenciais e limites desta

    aproximao a partir da prtica profissional junto salvaguarda recente do modo de fazer a

    viola de cocho no Mato Grosso do Sul, que tenho acompanhado desde 2012.

    Inicio o captulo apresentando o bem cultural Registrado, o modo de fazer a viola de

    cocho, seu Registro como Patrimnio Cultural brasileiro e as primeiras aes de salvaguarda

    no Estado sulmatogrossense. Em seguida, narro mais detidamente as aes implementadas

    desde 2012, evidenciando a partir da potenciais e limites para uma aproximao decolonial

    abordada conceitual e metodologicamente ao longo dos captulos anteriores. Busco uma

    narrativa cronolgica, pontuando ao longo do texto os eventuais nexos e paradoxos entre uma

    proposta decolonial e a salvaguarda dos patrimnios culturais Registrados no Brasil.

    Ocioso dizer, portanto, que no se trata de uma tentativa de aplicao do referencial

    decolonial a uma pesquisa de campo acerca do modo de fazer a viola de cocho no Mato

    Grosso do Sul, seu Registro e salvaguarda como Patrimnio Cultural brasileiro. Trata-se

    antes, como sobredito, de uma aproximao terico-metodolgica entre a poltica para os

    patrimnios culturais no Brasil de hoje e o pensamento decolonial, tendo o caso

    sulmatogrossense como ilustrativo das reflexes trazidas.

    Cabe esclarecer ainda, por fim, uma questo de nomenclatura. A instituio que hoje

    chamamos IPHAN aparece ao longo de sua histria com diferentes nomes e estruturas

    institucionais. Para esta dissertao e a fim de evitar confuses ao longo de sua composio e

    leitura, opto por pensar em dois grandes momentos de atuao do rgo, levando-se em conta

    as concepes sobre patrimnios culturais que os nortearam e que apresentarei ao longo do

    texto. Neste sentido, tratarei a instituio neste trabalho da seguinte maneira: por SPHAN,

    referindo-me, sobretudo, ao primeiro momento e atuao do Servio do Patrimnio

    Histrico e Artstico Nacional e, para designar a instituio em seu multifacetado momento

    seguinte, ps os anos 1970, utilizarei genericamente a denominao IPHAN.

  • 16

    Captulo 1

    A civilizao europeia na certa esculhamba a inteireza do nosso carter.

    (Mrio de Andrade, Macunama, 1928).

    Neste captulo, apresento em linhas gerais o pensamento decolonial (ESCOBAR,

    2005), sua constituio e questes fundamentais, enfatizando aquelas que tocam mais de perto

    os objetivos deste trabalho. Em seguida e a partir desta perspectiva sugiro uma narrativa para

    a constituio da preservao dos patrimnios culturais no Brasil e os primeiros anos do atual

    IPHAN, ressaltando na narrativa aspectos caros crtica decolonial. Por fim, esboo um

    possvel entendimento sobre os patrimnios culturais desde a Constituio Federal de 1988 e

    a partir de contribuies da proposta decolonial.

    1 - MODERNIDADE, COLONIALIDADE E OS ESTUDOS SUBALTERNOS

    LATINO-AMERICANOS

    1.1 - Constituio

    Na dcada de 1970 formava-se no sul asitico o Grupo de Estudos Subalternos, cujo

    principal projeto era analisar criticamente a historiografia da ndia feita por ocidentais

    europeus e tambm a historiografia eurocntrica produzida pelas/os prprias/os indianas/os.

    Segundo apresenta Florencia Mallon (2010), Ranajit Guha, historiador indiano, definiu o

    subalterno amplamente como qualquer subordinado "em termos de classe, casta, idade, sexo,

    profisso ou qualquer outro modo" (MALLON, 2010, p. 155), afirmando que todos os

    aspectos da vida subalterna - histricos, sociais, culturais, polticos ou econmicos - eram

    relevantes para o esforo de recuperar suas contribuies para a histria da ndia.

    Anos mais tarde, em 1992, constitudo o Grupo Latino-americano de Estudos

    Subalternos (GLES), que, a partir de questionamentos acerca da classificao tnica sobre a

    qual os estados-nao da regio se desenvolveram, procura refletir sobre as variadas

    dimenses e efeitos do processo colonial, destacadamente em sua dimenso subjetiva e

    epistmica, inserindo a Amrica Latina no debate ps-colonial (BALLESTRIN, 2013).

    Buscando, porm, afastar-se dos esteretipos que poderiam apresentar um subalterno

    tpico-ideal, como um sujeito passivo, que s pode ser mobilizado a partir de cima, autoras/es

    vinculadas/os ao GLES procuram evidenciar que os setores subalternos tambm atuam (no

  • 17

    s reagem), produzindo efeitos sociais visveis, ainda que ocultados e nem sempre

    compreensveis a partir de outras posies. Dentre as representaes sobre o subalterno que o

    GLES pretende refutar esto aquelas relacionadas a projetos de ordem que tm administrado

    as subjetividades sociais exercendo poder em nome do povo" (GLES, 1998).

    Seguindo o modelo do grupo indiano de intelectuais, o Manifesto latino-americano

    levantou a necessidade de uma releitura das narrativas nacionais para detectar a ausncia de

    representaes da ao e de narrativas das comunidades subalternas, destacadamente

    amerndias e de matriz africana. Os intelectuais signatrios do manifesto inaugural do GLES

    indicaram que as mudanas nas sociedades latino-americanas no incio dos anos noventa do

    sculo XX - a democratizao generalizada, o recrudescimento dos projetos revolucionrios, a

    crescente influncia da mdia de massa e da nova ordem econmica internacional - exigiam

    uma nova conceituao do lugar da subalternidade nestas sociedades multitnicas e

    culturalmente diversas.

    Ainda que partindo de elementos das teorias sul-asiticas para realizar uma crtica dos

    legados coloniais na Amrica Latina, o grupo de autoras/es latino-americanas/os em geral

    defende que as teses de Ranajit Guha, Gayatri Spivak, Homi Bhabha e outras/os tericas/os

    indianas/os no deveriam ser simplesmente assumidas e traduzidas para uma anlise do caso

    latino-americano. Autoras/es signatrias/os do GLES afirmam que as teorias ps-coloniais

    tm seu lcus de enunciao nas heranas coloniais do imprio britnico e que preciso, por

    isso, buscar uma categorizao crtica que tenha seu lcus na Amrica Latina e a partir das

    particularidades de nosso processo colonial (Mignolo, 1998).

    O argentino Walter Mignolo, em particular, denunciava o imperialismo dos estudos

    culturais, ps-coloniais e subalternos que no realizaram uma ruptura adequada com

    autoras/es eurocntricas/os (Mignolo, 1998). Herdeiros de ps-estruturalismo, os estudos ps-

    coloniais permitiram questionar concepes tradicionais de um sujeito histrico unitrio e da

    linguagem de poder do conhecimento, possibilitando reformular os debates sobre a dominao

    colonial. No obstante, Walter Mignolo (2010) ressalta a existncia de uma tradio de

    pensamento latino-americano anterior aos ps-estruturalistas que tinham j refletido sobre as

    contradies do mundo colonial latino-americano, a natureza geo-histrica dos discursos, suas

    representaes e continuidades nas relaes de poder.

    A partir destas questes que o Grupo Modernidade/Colonialidade (GM/C) foi sendo

    paulatinamente estruturado, sobretudo a partir de seminrios e publicaes, agregando ao

    longo dos anos nomes como Edgardo Lander, Arthuro Escobar, Walter Mignolo, Enrique

    Dussel, Anbal Quijano, Fernando Coronil, Zulma Palermo, Catherine Walsh, Nelson

    Maldonado-Torres, Boaventura de Sousa Santos, dentre outros. Muitos desses integrantes j

  • 18

    haviam desenvolvido, desde os anos 1970, linhas de pensamento crtico prprias, como o

    caso de Dussel e a Filosofia da Libertao, Quijano e a Teoria da Dependncia ou Wallerstein

    e a Teoria do Sistema-Mundo. A identidade grupal do GM/C, ecoando crticas do GLES,

    acabou herdando essas e outras influncias do pensamento crtico latino-americano do sculo

    XX (BALLESTRIN, 2013).

    O Grupo Modernidade/Colonialidade, segundo apresenta Arturo Escobar (2003), tem

    sua principal fora orientadora em uma reflexo continuada sobre a realidade cultural e

    poltica latino-americana, incluindo o conhecimento subalternizado dos grupos locais. O autor

    marca que o movimento terico-metodolgico em questo acabou dando origem escola de

    pensamento latino-americana denominada de estudos decoloniais, que se estruturou a partir

    do grupo Modernidade/Colonialidade, mas que atualmente leva o nome de

    Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (ESCOBAR, 2005).

    Aqui cabe acrescentar um detalhe importante referente identidade do Coletivo

    Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (CMCD). Trata-se da sugesto feita por

    Catherine Walsh para a utilizao da expresso de-colonizao com ou sem hfen e no

    descolonizao (MIGNOLO, 2008 e 2010). A supresso da letra s marcaria a distino

    entre a proposta de rompimento com a colonialidade em seus mltiplos aspectos e a ideia do

    processo histrico de descolonizao via libertao nacional das antigas metrpoles o

    colonialismo.

    1.2 - Questes fundamentais

    Das contribuies de ambos os grupos de autoras/es destaca-se a distino entre as

    noes de colonialismo e colonialidade. Enquanto o colonialismo denota uma relao poltica

    e econmica de dominao colonial de um povo ou nao sobre outro, a colonialidade se

    refere a um padro de poder que no se limita s relaes formais de explorao ou

    dominao colonial, mas envolvem tambm as diversas formas pelas quais as relaes

    intersubjetivas se articulam a partir de posies de domnio e subalternidade.

    Claro esteja que ambos colonialismo e colonialidade - como assinalam Anbal

    Quijano (2014) e Enrique Dussel (1994), se relacionam intimamente. O colonialismo pode ser

    visto como o processo de constituio de uma estrutura de poder que implicou na formao de

    novas relaes sociais intersubjetivas, fundamento de um novo tipo de poder colonial e que

    deu as bases da sociedade latino-americana como a conhecemos. A colonialidade, portanto,

    sobrevive ao colonialismo e se reproduz, segundo apresenta Walter Mignolo (2003), em uma

    tripla dimenso: a do poder, a do saber e a do ser. Cada uma destas dimenses dizem respeito

    s relaes polticas, epistemologia e s relaes intersubjetivas, respectivamente,

  • 19

    configurando-se como o lado obscuro e necessrio da modernidade; a sua parte

    indissociavelmente constitutiva (MIGNOLO, 2003, p. 30).

    A partir desta multifacetada colonialidade que se articularam o conjunto de

    narrativas nacionais que, desde o sculo XIX, vm forjando as identidades coletivas na

    Amrica latina, reproduzindo mecanismos geradores de alteridades e subjetividades

    subalternas (Castro-Gmez, 1998). Estes discursos de identidade e as memrias oficiais

    ganharo novo corpo nos Estados com os nacionalismos do sculo XX, com lugar de destaque

    para o papel dos chamados patrimnios histricos neste processo, como veremos.

    1.3 Colonialidades e as opes de(s)coloniais

    Desde meados dos anos 70, a ideia de que o conhecimento tambm um instrumento de

    poder e colonizao e que, portanto, a descolonizao implicaria necessariamente a

    descolonizao do saber e do ser (isto , da subjetividade) se expressou de vrias maneiras e em

    diferentes mbitos. Walter Mignolo (2010) credita ao antroplogo brasileiro Darcy Ribeiro uma

    das primeiras expresses de que el imprio marcha hacia las colnias com armas, libros,

    conceptos e pr-conceptos (MIGNOLO, 2010, p. 9). Porem a Anibal Quijano que Mignolo

    (2010) atribui a vinculao explcita entre a colonialidade do poder nas esferas poltica e

    econmica colonialidade do conhecimento, concluindo que se este instrumento de

    colonizao, uma tarefa urgente que se tem por diante descoloniz-lo.

    Este processo de descolonizao do conhecimento dar-se-ia por meio da critica do

    paradigma europeu de racionalidade moderna, porm, no consistiria da simples negao e

    rejeio de suas categorias nos discursos de conhecimento, mas sim na dissociao ou no

    desprendimento dos processos cognitivos de uma racionalidade colonial. Nas palavras de Walter

    Mignolo (2010) es la instrumentalizacin de la razn por el poder colonial, en primer lugar, lo

    que produjo paradigmas distorsionados de conocimiento y malogr las promesas liberadoras de la

    modernidad (Migmolo, 2010, p. 15). Para Anbal Quijano (2014), por sua vez, o que est em

    jogo num projeto descolonial so os fundamentos mesmos do paradigma cognitivo que

    permite tal instrumentalizao e na espinha dorsal deste paradigma estariam: a separao

    dicotmica sujeito-objeto; a exterioridade e desconexo entre os objetos, alm da linearidade

    sequencial entre causa e efeito, para assinalar algumas dimenses centrais para o autor.

    neste sentido que, para Quijano, em primeiro lugar necessria a descolonizao

    epistemolgica para, em seguida, ser possvel uma comunicao intercultural, um intercambio

    de experincias e de significaes que formem a base de uma racionalidade nova e que possa

    pretender, qui com mais legitimidade, a alguma universalidade.

    Pues nada menos racional, finalmente, que la pretensin de que la especfica

    cosmovisin de una etnia particular sea impuesta como la racionalidad

  • 20

    universal, aunque tal etnia se llama Europa occidental. Porque eso, en verdad, es pretender para un provincianismo el ttulo de universalidad.

    (Quijano, 1992, p. 447 apud MIGNOLO, 2007, p. 30).

    Conforme j assinalado, o conceito de colonialidade e a proposta decolonial tm aberto

    a possibilidade de reconstruo de historias silenciadas, subjetividades reprimidas, linguagens

    e conhecimentos subalternizados pela ideia de totalidade definida pela racionalidade moderna.

    A grande questo, porm, a ser colocada sobre a possibilidade de rompimento com a lgica

    da colonialidade sem, contudo, abandonar as contribuies do pensamento crtico

    eurodescendente para a prpria decolonizao (BALLESTRIN, 2013).

    Autoras/es ligadas/os ao pensamento decolonial (ESCOBAR, 2005) tm sido capazes

    de construir um marco conceitual e metodolgico novo e promissor para superar paradigmas e

    dar visibilidade colonialidade do poder e do saber. Estas/es autoras/es e debates tambm

    apontam para a necessidade de estarmos cientes de que as disciplinas acadmicas e

    instituies em geral esto inseridas em redes de poder hegemnico e que o conhecimento

    produzido por elas (e particularmente a forma de faz-lo) produto e reprodutor das mesmas

    relaes de poder. Neste sentido, a proposta decolonial trata de pensar e agir em vrias formas

    epistemolgicas complementares e paralelas aos movimentos sociais que se movem nas

    bordas e margens das estruturas de poder (MIGNOLO, 2008).

    Ao movimento terico e prtico de resistncia poltica e epistemolgica lgica da

    modernidade/colonialidade Nelson Maldonado-Torres (2005) chamar de Giro decolonial.

    Para o autor, tanto uma atitude como uma razo decoloniais so partes fundamentais deste

    giro, que se refere, fundamentalmente, percepo de que as formas de poder modernas tm

    produzido tecnologias de silenciamento, ocultao e morte que tm afetado de forma

    significativa diversos segmentos sociais ao longo do tempo. A partir da, h que reconhecer

    que as formas de poder coloniais so mltiplas e que tanto os conhecimentos como a

    experincia vivida dos sujeitos marcados pela colonialidade so altamente relevantes para

    entender as formas modernas de poder e prover alternativas a elas.

    Neste sentido, o giro decolonial no se trata de uma gramtica da colonialidade, mas a

    coloca no centro do debate como componente constitutivo da modernidade e da decolonizao

    como projeto (MALDONADO-TORRES, 2005). Para tanto, h que se lanar mo de uma

    srie de ferramentas conceituais e metodolgicas, um sem nmero de estratgias

    contestatrias que busquem uma mudana radical nas formas hegemnicas atuais de poder e

    dominao, destacadamente na construo de conhecimento, nas relaes intersubjetivas e na

    configurao das instituies.

    Assim, constituem o momento mais fundamental do giro decolonial, por um lado,

    investigar as formas pelas quais as estruturas de poder continuam produzindo a colonialidade

    e, por outro, fomentar a mudana de uma atitude racista, sexista ou aristorcrtica para uma

  • 21

    atitude decolonial. Uma vez que, para Maldonado-Torres, La descolonizacin no se puede

    llevar a cabo sin un cambio en el sujeto. (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 68).

    Atualmente, diversos autoras/es questionam o universalismo etnocntrico, o

    eurocentrismo terico, o nacionalismo analtico e o positivismo epistemolgico contidos no

    mainstream das cincias sociais. Essa busca tem informado um conjunto de elaboraes

    denominadas Teorias e Epistemologias do Sul (SANTOS e MENESES, 2010), as quais

    procuram valorizar e desenvolver perspectivas para a descolonizao das cincias sociais.

    Assim, as vozes do GLES e do CMCD somam-se a um movimento disruptivo

    transfronteirio.

    O surgimento de estudos que questionam os paradigmas hegemnicos responde

    necessidade de rever, problematizar e questionar um conjunto de conceitos definidos pela

    racionalidade moderna, como o discurso da histria, da nao, da cultura, das identidades e do

    conhecimento que, como "discursos de verdade", inevitavelmente levam ao silenciamento,

    invisibilidade, subestimao ou subordinao de todo o conhecimento diverso deste

    paradigma e seus/suas produtore/as. A questo, por fim, a enfatizar neste ponto que o

    primeiro passo para uma anlise decolonial deve ser uma desconstruo epistmica.

    Walter Mignolo (2008) apresenta a opo decolonial como essencialmente epistmica,

    ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genunos dos conceitos ocidentais e da

    acumulao de conhecimento (MIGNOLO, 2008). Esta desvinculao epistmica, como j

    assinalado, no significa necessariamente o abandono do instrumental epistemolgico que j

    foi construdo por todo o mundo, mas uma substituio ou justaposio da geopoltica do

    conhecimento eurocntrico predominante pela geopoltica de outras possveis subjetividades,

    lnguas, conceitos polticos, econmicos, artes, religies, etc. Conclui Mignolo que,

    consequentemente, a opo descolonial significa, entre outras coisas, aprender a

    desaprender (MIGNOLO, 2008, p. 290).

    Partindo do diagnstico de que tanto a retrica da modernidade e progresso como a

    lgica da colonialidade e controle esto sustentadas por um aparato cognitivo que patriarcal

    (normatizando as relaes de gnero) e racista (baseado em classificaes sociais racializadas)

    (MIGNOLO, 2008; QUIJANO, 2014), as opes decoloniais e o pensamento decolonial

    buscam, assim, uma genealogia de pensamento que no seja fundamentada exclusivamente no

    pensamento eurodescendente, mas que possa recorrer a categorias e discursos explicativos que

    emergiram nas lnguas e histrias dos povos amerndios e africanos subjugados. Como

    exemplo deste fazer descolonial e que sempre esteve presente na histria latino-americana

    Mignolo (2008) aponta os Candombls, a Santera, o Vud e a Capoeira, por exemplo.

  • 22

    Neste sentido, se, por um lado, a colonialidade a cara invisvel da modernidade

    tambm a energia que gera a de(s)colonialidade. (MIGNOLO, 2008, p. 10). A colonialidade,

    neste sentido, designa histrias, formas de vida, saberes e subjetividades colonizadas, mas que

    a partir das quais se construram respostas decoloniais.

    A partir da, como pretendo argumentar ao longo desta dissertao, o pensamento

    decolonial e a poltica sobre os patrimnios culturais no Brasil atual podem confluir,

    abrindo a possibilidade no s para a valorizao de manifestaes culturais antes

    ocultadas, mas, sobretudo, para que estas no sejam fetichizadas, esvaziadas de seu sentido

    histrico, perdendo o vis descolonial que tiveram e o potencial decolonial que tm, suas

    idiossincrasias, devires1 e possibilidades de futuro.

    2 - NOTAS PARA UM GIRO DECOLONIAL SOBRE A PRESERVAO DOS

    PATRIMNIOS CULTURAIS NO BRASIL

    Chandra Mohanty (2008 apud DOMNGUEZ, 2012) aponta que uma investigao

    descolonizada tem dois momentos: o primeiro funcionando de forma negativa, com uma

    crtica, desconstruo e desmantelamento da lgica dominante de investigao e buscando

    libertar-se dos esquemas mentais de domnio da colonialidade. O segundo, por seu turno,

    funcionaria de forma positiva, de criao e construo, buscando valorizar e reconhecer as

    criatividades e criaes locais e subalternizadas na ao social e construo de conhecimento.

    Tendo em mente o aporte de Mohanty, a partir daqui aproximarei mais detidamente as

    questes do pensamento decolonial com a poltica de preservao dos patrimnios culturais

    no Estado brasileiro, inicialmente a partir de uma leitura histrica, destacando os aspectos

    mais relevantes em relao colonialidade no mbito da preservao do patrimnio cultural

    no Brasil. Em seguida, ressalto possveis confluncias e possibilidades de aproximao entre o

    pensamento decolonial e a concepo vigente no pas sobre os patrimnios culturais.

    2.1 - Antecedentes

    Maria Ceclia Londres Fonseca (1997) aponta a gnese da preservao dos

    patrimnios culturais pelo Estado no Ocidente na Revoluo Francesa, em fins do sculo

    XVIII, surgida da inteno de preservao de bens que, confiscados de nobres e da Igreja, 1 Devir aparece neste trabalho como na obra de Deleuze e Guattari, como um eterno e necessrio vir-a-ser que perpassa a existncia individual e coletiva. O devir causa de si e substrato que engendra incontveis processos

    de diferenciao medida que a vida humana avana. Tais processos so, eles mesmos, os devires, no sentido de

    que importa menos a consubstanciao da potencia e seu resultado final e mais a qualidade do percurso e a

    potencia de sua continuao. (Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Mil plats - capitalismo e

    esquizofrenia. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995 e DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. O anti-dipo: capitalismo

    e esquizofrenia. So Paulo: Ed. 34, 2010).

  • 23

    vinham sendo destrudos. Virgolino Jorge (2000), por sua vez, assinala que um dos primeiros

    textos legislativos conhecidos sobre a proteo dos monumentos nacionais diz respeito a um

    alvar do rei portugus D. Joo V, de 20 de Agosto de 1721, no qual se determina que

    "nenhuma pessoa de qualquer estado, qualidade e condio que seja desfaa ou destrua em

    todo, nem em parte qualquer edifcio que mostre [antiguidade] ainda que em parte esteja

    arruinado" (JORGE, 2000, p. 6). Mais tarde, na segunda metade do sculo seguinte, D.

    Fernando II ordenara o restauro das ss de Lisboa e de Coimbra, alm de alguns conventos e

    da Torre de Belm (JORGE, 2000).

    Por outro lado, s possvel falar da criao de um rgo especificamente destinado

    proteo e preservao dos chamados patrimnios histricos com a Inspeo Geral de

    Monumentos Histricos criada na Frana em 1830. Apesar do pioneirismo na ao estatal

    sobre a preservao de edificaes histricas, Portugal s ter uma instituio para este fim

    com a Comisso dos Monumentos Nacionais, instituda em 1882 (SILVA, 2013, p. 5743).

    Entretanto, do ponto de vista da realidade colonial brasileira, um marco antecedente da

    preservao dos patrimnios culturais como os concebemos hoje (abrangendo a

    identificao,a construo de conhecimento e a chancela oficial, alm da preservao e

    salvaguarda sobre suas dimenses material e imaterial) pode incluir as Viagens Filosficas

    (1777-1822) lusitanas, quando naturalistas formados na Universidade de Coimbra foram

    enviados ao Brasil, Angola, Moambique e Cabo Verde (SILVA, 2013; JORGE, 2000).

    neste contexto que, em 1783, o baiano Alexandre Rodrigues Ferreira retorna de Portugal,

    onde exercera a funo de Preparador de Histria Natural na universidade de Coimbra, com a

    ordem de averiguar inscries, costumes, literaturas, comrcios, agriculturas, alm de fazer

    copiar tudo, cpias para irem e para ficarem (RAMINELLI, 2001, p. 7). A Viagem

    Filosfica a seu cargo percorreu as capitanias do Gro-Par, Rio Negro, Mato Grosso e

    Cuiab entre 1783 e 1792 (RAMINELLI, 2001).

    parte estes antecedentes e agora falando em termos mais propriamente

    institucionais, a gnese da construo da memria e identidades nacionais via seleo e

    preservao de patrimnios histricos no Estado brasileiro pode ser localizada no sculo XIX,

    tendo por marcos a fundao do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) e do

    Arquivo Nacional, ambos em 1838. Da parte do IHGB cabe aqui mencionar a Comisso

    Cientfica de Explorao (1856-1861), num breve histrico da investigao sobre o que hoje

    consideramos referncias culturais ou patrimnios culturais do Brasil, conforme ser exposto

    oportunamente.

    De acordo com Alex Gonalves Varela (2010), a Comisso Cientfica de Explorao

    pode ser apontada como a primeira expedio com fins exploratrios feita no pas somente

  • 24

    por brasileiros. Segundo o autor, a primeira expedio cientfica nacional, apoiada pelo Instituo

    Histrico e Geogrfico Brasileiro e pelo Imperador, teve origem no desejo do universo letrado de

    ento em constituir uma cincia brasileira, capaz de conhecer o Brasil (VARELA, 2010, p. 108).

    Ainda segundo Varela, a criao da Comisso Cientfica do Imprio foi o delineamento das

    estratgias de uma cincia nacional, vinculadas criao de identidades regionais na segunda

    metade do sculo XIX (VARELA, op. cit, p. 109).

    Ainda que timidamente comea a se delinear mais claramente os contornos de uma

    trajetria descontnua de aes sobre a investigao e construo de uma identidade nacional

    e o processo de seleo, preservao e promoo de marcos de uma histria nacional por

    narrar. desta poca a viagem de Joaquim Ferreira Moutinho, publicada em 1869 sob o ttulo

    Noticia sobre a provncia de Matto Grosso seguida d'um roteiro da viagem da sua capital a S.

    Paulo. Nesta publicao, a propsito, segundo lembra Marieta Alves no 17 nmero da

    Revista Brasileira do Folclore (1967), Moutinho deixar suas impresses sobre a viola-de-

    cocho e o cururu.

    quanto ao gosto pela msica entre as classes mais baixas e a gente do campo, resume-se elle no uso de um instrumento a que do o nome de ccho, que

    no mais do que uma viola grosseira, do adufo e do tambor que feito de

    pau co, coberto de couro de boi afinado ao calor do fogo. Ao som destes instrumentos dano o cururu, o mais inspido e

    extravagante divertimento a que temos assistido, depois da dana dos bugres.

    Formo uma roda composta de homens, um dos quaes toca o afamado

    ccho, e volteando burlescamente, canto porfia numa toada assaz desagradvel versos improvisados. [...]

    Para que se possa ter uma ida da veia poetica dos cururueiros, ahi vo

    alguns dos seus improvisos: Em cima daquelle morro

    Si dona,

    Tem um p de

    jatob; No h nada mais pi Ai, si dona

    Do que um home se cas.

    Dizem que a muy farssa To fara como rap

    Mas quem vendeu Jesus Christo

    Foi home, no foi muy (apud Alves, p. 6).

    Anos antes, os registros feitos por Castelnau, em 1845 do conta de que indgenas

    Guat sempre se reuniam, em volta de fogueira com muito cururu, viola de cocho e bebida

    alcolica, produzidas por eles mesmos ou gua ardente de cana (Martinelli, 2012, p. 94).

    Estes exemplos aparecem aqui a fim de ilustrar com menes ao bem cultural objeto

    deste trabalho um momento histrico de investigao e construo de conhecimento sobre a

    cultura brasileira, num breve histrico dos antecedentes das polticas patrimoniais no Brasil.

    Adiante nesta dissertao retomarei algumas questes apontadas aqui, como o julgamento

    esttico em relao sonoridade da viola de cocho e sua presena junto a indgenas guat ao

    longo do tempo.

  • 25

    Nas dcadas seguintes, sobretudo em funo do clima sociopoltico de derrubada da

    monarquia e instaurao da repblica, a questo da identidade nacional e o que chamamos de

    patrimnios culturais permanecero latentes na poltica brasileira, ainda que presentes em

    intelectuais e movimentos polticos. Uma proposta pioneira partiu do Instituto Histrico e

    Geogrfico da Bahia, atravs de Wanderley Pinho, em 1917, mas, que no seguiu adiante.

    Segundo Maria Lucia Bressan Pinheiro (2006), diversos projetos de proteo do patrimnio

    cultural foram propostos ao longo da dcada de 1920, dos quais a maioria fracassou. Em sua

    cronologia, a autora menciona em seguida o arquelogo e conservador de Antiguidades

    Clssicas do Museu Nacional, Professor Alberto Chide que, em 1920 apresenta Anteprojeto

    de lei de defesa do patrimnio artstico nacional com nfase nos bens arqueolgicos e com

    proposta de desapropriao dos bens. (PINHEIRO, 2006).

    Em 1922 criado o Museu Histrico Nacional, considerado poca o templo

    guardio da alma da nossa Nao, o espao adequado para a sua exaltao (NASCIMENTO,

    2008, p. 106). Neste ponto, parece pertinente para um giro decolonial sobre a preservao dos

    patrimnios culturais no Brasil atentar tambm para o contexto em que estavam imersos

    alguns dos principais personagens relacionados, como uma reflexo acerca da constituio do

    acervo do Museu Histrico Nacional sob a batuta de Gustavo Barroso e as bases lanadas por

    ele na rea.

    Alm do nacionalismo e militarismo caractersticos de Barroso, Nascimento (2008)

    aponta ainda as reflexes de Mrio Chagas, Solange Godoy (1995) e Jos Bittencourt (2002)

    sobre a relao de Vargas com os museus em seu perodo de governo ditatorial, com destaque

    ao Museu Histrico Nacional. Segundo Bittencourt (2002), Vargas interessava-se por esta

    instituio justamente pelo que chama de declarado culto s ideologias conservadoras. O

    autor afirma ainda que Barroso, assim como Alcindo Sodr, ento diretor do Museu Imperial,

    em Petrpolis-RJ, negavam qualquer papel ativo s populaes comuns e no as queriam em

    seus museus. (BITTENCOURT, 2002, p. 107).

    Ressaltar estas questes pode contribuir para entender melhor os silenciamentos e

    ocultaes na escrita da memria do pas via patrimnios e acervos, desconstruindo alguns

    discursos e dando espao para que se ponham outros no lugar.

    No ano de 1923, apresentado o projeto de organizao da defesa dos monumentos

    histricos e artsticos do pas, de autoria do Deputado Luiz Cedro, de Pernambuco. J em

    1924 apresentado um projeto visando proibir a sada de obras de arte tradicional brasileira,

    cujo autor fora o poeta e deputado mineiro Augusto de Lima (NASCIMENTO, 2008).

    Pinheiro (2006) fala ainda que, em 1925, ocorre a criao, em Minas Gerais, de uma comisso

    para estudar os efeitos do comrcio de antiguidades sobre o patrimnio histrico e artstico

  • 26

    das cidades mineiras e que resultou em esboo de anteprojeto de lei federal. J em 1927, uma

    lei estadual na Bahia criou a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais, anexa Diretoria

    do Arquivo Pblico e Museu Nacional e, em 1928, uma lei estadual de Pernambuco criara a

    Inspetoria Estadual dos Monumentos Nacionais.

    J em 1930, novamente o Deputado baiano Jos Wanderley de Arajo Pinho apresenta

    projeto de lei federal mais abrangente sobre a preservao do patrimnio histrico e artstico

    nacional, incluindo todas as coisas imveis ou mveis a que deva estender a sua proteo o

    estado, em razo de seu valor artstico, de sua significao histrica ou de sua peculiar e

    notvel beleza (PINHEIRO, 2006, p. 7). Porm, o Decreto n 22.928 de 1933, que erige a

    cidade de Ouro Preto em Monumento Nacional, que marca uma ao mais ampla em mbito

    federal em favor da preservao dos patrimnios culturais no Brasil.

    Estas iniciativas, desarticuladas e mais ou menos malogradas todas, esbarravam em

    geral na ausncia de respaldo constitucional para ao sobre os patrimnios culturais

    nacionais e na limitao legal de atuao sobre a propriedade privada, o que uma nova Carta

    Magna viria solucionar parcialmente. Em 1934 promulgada uma nova Constituio Federal

    que, em seu Captulo II artigo 148, afirma que:

    Cabe Unio, aos Estados e aos Municpios favorecer e animar o desenvolvimento das cincias, das artes, das letras e da cultura em geral,

    proteger os objetos de interesse histrico e o patrimnio artstico do Pas,

    bem como prestar assistncia ao trabalhador intelectual. (SPHAN/ProMemria, 1980).

    Ainda em 1934, o Decreto n 24.735 aprovou novo regulamento para o Museu

    Histrico Nacional, iniciando a organizao de um servio de proteo e delineando o que

    seriam os primeiros contornos de uma legislao federal sobre o que chamamos hoje de

    patrimnios culturais. O decreto e este novo regulamento para o Museu Histrico Nacional

    trazem diversas atribuies que cabero anos mais tarde ao Servio do Patrimnio Histrico e

    Artstico Nacional (SPHAN). O Artigo 72, por exemplo, dispe que os imveis classificados

    como monumentos nacionais no podero ser demolidos, reformados ou transformados sem a

    permisso e fiscalizao do Museu Histrico Nacional, a quem estava atribuda a classificao

    dos bens mais relevantes e a regulao de suas eventuais sadas do pas. Neste sentido, pode-

    se considerar a Inspetoria de Monumentos Nacionais a primeira repartio pblica do pas

    encarregada de um trabalho sistemtico sobre os patrimnios culturais ou histricos e

    artsticos nacionais.

    Outra meno importante num breve esboo histrico sobre a preservao do

    patrimnio cultural no Brasil a criao, em 1935, do Departamento Municipal de Cultura da

    cidade de So Paulo. O rgo empreendeu vrias e diversificadas atividades, como a criao

    das Bibliotecas Circulante e Infantil, da Sociedade de Etnologia e Folclore e a realizao do

  • 27

    Congresso de Lngua Nacional Cantada, o que permitiu ao ento Ministro da Educao e

    Sade, Gustavo Capanema, solicitar ao escritor e ento Diretor do Departamento de Cultura e

    Recreao da Prefeitura de So Paulo, Mario de Andrade, em 1936, um anteprojeto para a

    organizao do que viria a ser o SPHAN (PINHEIRO, 2006; SPHAN/PROMEMRIA,

    1980).

    2.2 - Constituio e consolidao

    A dcada de 30 do sculo passado foi palco de uma ampla reforma do Estado brasileiro

    que, iniciada durante o governo constitucional, teve seu pice a partir da instaurao do

    regime autoritrio, em 1937. Um conjunto de medidas foram implementadas visando uma

    reestruturao institucional e uma reconfigurao das estruturas de poder no pas com forte

    centralizao em detrimento das oligarquias regionais no bojo das quais se identifica, para

    alm de um modelo de Estado, um projeto de nao (SCHWARTZMAN, 2000; BOMENY,

    1999; BARBALHO & RUBIM, 2007).

    Ilustrativo sobre este contexto o poema Hino Nacional, do Livro Brejo das Almas,

    que Carlos Drummond de Andrade publica em 1934, ano de sua chegada ao ento Distrito

    Federal para trabalhar junto a Gustavo Capanema, no Ministrio da Educao e Sade (MES).

    Precisamos descobrir o Brasil!

    Escondido atrs das florestas,

    com a gua dos rios no meio, o Brasil est dormindo, coitado.

    Precisamos colonizar o Brasil.

    O que faremos importando francesas muito louras, de pele macia, alems

    gordas, russas nostlgicas para garonnettes dos restaurantes noturnos.

    E viro srias fidelssimas.

    No convm desprezar as japonesas.

    Precisamos educar o Brasil.

    Compraremos professores e livros,

    assimilaremos finas culturas, abriremos dancings

    e subvencionaremos as elites. Cada brasileiro ter sua casa

    com fogo e aquecedor eltricos, piscina,

    salo para conferncias cientficas. E cuidaremos do Estado Tcnico. [...]

    Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!

    To majestoso, to sem limites, to despropositado, ele quer repousar de nossos terrveis carinhos.

    O Brasil no nos quer! Est farto de ns!

    Nosso Brasil no outro mundo. Este no o Brasil.

    Nenhum Brasil existe. E acaso existiro os brasileiros?

    Neste contexto, o MES (que abrigou o SPHAN), sob o comando de Capanema de 1934

    a 1945, tem lugar de destaque. Criado em 1930, pouco depois da chamada revoluo de 1930,

    o Ministrio teve como primeiro titular Francisco Campos que, aps breve passagem do

  • 28

    mdico Washington Ferreira Pires, retorna pasta, dando lugar em seguida a Capanema.

    Ambos mineiros e aliados em diferentes momentos, Francisco Campos e Gustavo Capanema

    destacam-se como os dois grandes articuladores polticos da rea de educao e cultura no

    perodo, exercendo fortes influncias nas articulaes legislativas e administrativas. Estiveram

    juntos, por exemplo, na instalao da Legio de Outubro, organizao de jovens paramilitares

    de orientao fascista, criada em Minas Gerais em fevereiro de 1931, por Francisco Campos

    (ento Ministro da Educao) com o apoio de Gustavo Capanema (ento Secretrio do

    Interior e Justia do Estado de Minas Gerais), apoiando os golpes de 1937 e 1964 (AGUILAR

    FILHO, 2011; CARVALHO, 2010).

    Gustavo Capanema, em particular, assume o Ministrio da Educao e Sade meses

    aps a promulgao da Constituio de 1934 que, em seu Artigo 138, estabelece que

    Incumbe Unio, aos Estados e aos Municpios, nos termos das leis respectivas [...] b)

    estimular a educao eugnica (AGUILAR FILHO, 2011, p. 102), sendo eugenia definida

    pelo eugenista brasileiro Deodato de Morais como o

    o estudo e a aplicao dos fatores que melhoram os caracteres fsicos e

    intelectuais da raa. Esse melhoramento deve vir de dentro para fora, promovendo a conciencia [sic] da sade, o culto da beleza e a aquisio das

    boas heranas e dificultando as unies dos tipos inferiores de espcie.

    (MORAIS, 1941 apud Carvalho, 2010, p. 35).

    Some-se a isso o fato de que, parte a participao junto ao MES de figuras como

    Mrio de Andrade e Gilberto Freyre, por exemplo, mais comumente ressaltadas, Luiz Felipe

    de Carvalho (2010) evidencia o aumento da participao conservadora catlica junto s

    polticas educacionais. A manuteno de Gustavo Capanema a frente do Ministrio de 1934 a

    1945, demonstra que houve uma linha de ao que no se perdeu durante toda a primeira

    fase da era Vargas, no que diz respeito educao (CARVALHO, 2010, p. 97-98). Como

    veremos a seguir, cabe supor que esta configurao chave para um entendimento possvel

    sobre as tipologias de bens consagrados como patrimnio histrico pelo SPHAN, os valores

    que se pretendia consolidar e as ocultaes subjacentes.

    Os primeiros anos da gesto Capanema so tambm tempos de elaborao do Plano

    Nacional de Educao, lanado em 1937 e no qual a educao aparecia como o meio de criar

    uma cultura nacional comum e disciplinar as geraes, a fim de produzir uma nova elite para

    o pas. Uma elite catlica, masculina, de formao clssica e disciplina militar, segundo

    coloca Schwartzman (SCHWARTZMAN 2000, p. 218). Neste projeto que Helena Bomeny

    chama de a criao de um homem novo para um Estado Novo (BOMENY, 1999, p. 139),

    nas dcadas de 1930 e 1940 surgem diversas instituies culturais que, por um lado,

    projetaro a nao e, por outro, construiro para ela a ancestralidade que a justifique, como o

    Servio Nacional de Teatro, o Instituto Nacional do Livro, o Instituto Nacional do Cinema

  • 29

    Educativo e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) que coordenava diversas reas,

    como radiodifuso, teatro, cinema, turismo e imprensa (BARBALHO, 2007), alm do prprio

    SPHAN.

    Em uma exposio de motivos submetida ao presidente Getlio Vargas, em novembro

    de 1937, Gustavo Capanema enfatizava a necessidade de institucionalizao do SPHAN, de

    que fossem fixados os princpios fundamentais da proteo dos bens considerados de valor

    histrico ou artstico e que se estabelecessem penalidades sobre o dano aos mesmos

    (SPHAN/ProMemria, 1980). Elaborado o anteprojeto para a criao do Servio, o texto

    segue pelas casas legislativas, sendo aprovado pela Cmara dos Deputados, recebendo

    emendas no Senado Federal e voltando Cmara para nova apreciao. Neste nterim se d o

    golpe do Estado Novo, dissolvendo o Congresso Nacional, em 10 de Novembro de 1937.

    Vinte dias depois o texto do Decreto-Lei 25 , ento, promulgado pelo presidente Getlio

    Vargas, j no regime autoritrio, organizando a proteo do patrimnio histrico e artstico

    nacional (CHAGAS, 2009).

    De acordo com Paula Porta (2012), as primeiras dcadas de atuao do SPHAN - e

    que por sua vez ajudou a moldar as concepes e aes sobre os patrimnios culturais no pas

    (Motta, 2000) estiveram estritamente voltadas proteo do legado material da

    colonizao portuguesa e do perodo imperial (PORTA, 2012, p. 11). Considerando-se os

    estudos de Rubino (1991), Motta (2000) e Chuva (2009), pode-se dizer que o perodo inicial

    de atuao do SPHAN foi o perodo mais significativo na construo e disseminao de uma

    imagem e uma significao sobre o patrimnio histrico e artstico nacional e sua gesto e que

    no houve alterao nos critrios e na tipologia de bens tombados por longos anos. Conforme

    apresentado por Mario Chagas (2009), uma sntese proposta por Falco (1984), ao analisar os

    bens tombados em nvel federal nas primeiras dcadas de atuao do rgo:

    indica tratar-se de: a) monumento vinculado experincia vitoriosa branca;

    b) monumento vinculado experincia vitoriosa da religio catlica; c)

    monumento vinculado experincia vitoriosa do Estado (palcios, fortes,

    fruns, etc) e na sociedade (sedes de grandes fazendas, sobrados urbanos etc) da elite poltica e econmica do pas. (FALCO, 1984, p. 28 apud

    CHAGAS, 2009, p. 106).

    A constituio poltica sobre os patrimnios culturais no Estado brasileiro pode ser

    entendida, ento, a partir da poltica educacional/cultural de formao da nao, levadas a

    cabo na primeira metade do sculo XX. Entre o prestgio do discurso da intelectualidade, da

    arte e da poltica, o SPHAN consolidou ao longo dos anos uma srie de marcos sobre a cultura

    brasileira atribuindo a certos traos a privilegiada alcunha de patrimnios.

    Lia Motta (2000) aponta que

    O patrimnio construdo pelo IPHAN formou um quadro social da memria

    de referncia identidade nacional que alimenta a memria social dos

    brasileiros, para que se sintam membros pertencentes nao. Como

  • 30

    consequncia, ao fixar na lembrana a imagem do que foi preservado como patrimnio nacional, esse quadro consolidou tambm a noo de patrimnio

    cultural lato sensu. Ou seja, o que foi valorizado como referncia da

    memria nacional, com seus padres esttico-estilsticos eruditos e de excepcionalidade, se incorporou memria social como referncia de

    patrimnio cultural no seu sentido mais amplo, sendo referncia das prticas

    de preservao mesmo diante de novos conceitos para seu entendimento.

    (MOTTA, 2000, p. 18) (grifo meu).

    Esse sistema de classificao sobre os patrimnios culturais, os valores que o sustenta

    e os discursos de identidade que subjaz aos patrimnios que sero consagrados a partir do

    SPHAN, constituem, portanto, lugar privilegiado para um giro decolonial brasileira. No h

    novidade no estabelecimento de relaes entre histria, poder e identidade. Vrios autoras/es,

    em diferentes momentos e lugares tm abordado a questo e mostrado que um dos elementos-

    chave na estrutura das sociedades, das formas de dominao, dos movimentos sociais e das

    identidades coletivas tem sido a produo e controle de narrativas sobre o passado, o que abre

    espao para a reflexo sobre a construo dos patrimnios culturais como marcos deste

    processo. Se a partir de verses do passado e do controle sobre a memria social que as

    identidades sociais so estruturadas e legitimadas, tambm a partir destas questes que estes

    discursos so desafiados e as relaes de poder que atravessam o corpo social vo sendo

    redefinidas (CARRILLO, 2003).

    2.2.1 - Interldio: eurocentrismo e esttica

    Como j dito noutros pontos do captulo, uma proposta decolonial mais epistmica

    que cognitiva. Portanto, mais que uma justaposio de novos e abundantes fatos e fontes, um

    trabalho de desconstruo epistmica deve buscar escavar valores e processos sociais nos

    quais se apoiaram e basearam a conformao de discursos, prticas e silenciamentos ao longo

    do tempo. Apenas desvelando a colonialidade secular possvel construir alternativas

    decoloniais e perceber a intensidade que as novas prticas devem ter para configurar

    efetivamente novas realidades.

    Como se l na citao de Motta (2000) acima, a persistncia de determinadas prticas,

    mesmo diante de novos conceitos na poltica federal sobre os patrimnios culturais, instiga a

    uma investigao mais demorada sobre seus fundamentos. Assim, nesta seo, pretendo

    rastrear algumas questes que me parecem basilares nas concepes estticas e estilsticas

    sobre as quais se desenvolveu a ao pblica sobre os patrimnios culturais no Brasil e quais

    sentidos e discursos subjazem aos padres eleitos e disseminados pelo SPHAN em suas

    primeiras dcadas. Aps estas consideraes, qui seja mais fcil considerarmos a

    complexidade acerca da colonialidade e as demandas para novas prticas nas polticas

    pblicas sobre os patrimnios culturais.

  • 31

    Em seu ensaio Arte como Sistema Cultural (1997), o antroplogo estadunidense

    Clifford Geertz aponta que a abordagem que conhecemos sobre a arte se consolidou a partir

    do sculo XVIII, paralelamente noo peculiar de belas artes e uma srie de formalismos

    a priori para a sua execuo. Elsa Ballesteros (2003), por sua vez, aponta que a concepo

    ocidental de arte teve incio com as ideias de Plato e se desenvolveu sem grandes alteraes

    desde a esttica aristotlica e neoplatnica at a esttica kantiana. J Enrique Dussel (1997)

    apresenta o filsofo alemo Alexander Baumgarten como tendo desenvolvido a esttica como

    "teoria da sensibilidade", no sculo XVIII. De matriz platnica, como apresentado por

    Ballesteros, esta ideia se desenvolveu ao longo do tempo e das/os autoras/es em geral a partir

    de uma concepo segundo a qual to mais superior seria a arte quanto mais se aproximasse

    do belo como manifestao de uma ideia (eids) abstrata de beleza.

    Sob esta perspectiva, tanto mais bela e grandiosa seria uma obra quanto mais refletisse

    e manifestasse em si a ideia abstrata e geral do belo nela contida. A partir deste mesmo

    princpio a arte revelaria, ento, desde o gnio do artista que a produz at a evoluo da

    cultura e da civilizao da qual emerge. Com estas concepes que o padro de beleza

    eurodescendente se foi construindo historicamente como o mais prximo da ideia mesma do

    belo (DUSSEL,1997).

    Pari pasu a este processo, a palavra aesthesis, que se origina no grego antigo, passa s

    modernas lnguas europeias com seus significados relacionados ao processo de percepo via

    sentidos e girando entorno de vocbulos como sensao ou sensao visual, gustativa ou

    auditiva. A partir do sculo XVII, o conceito aesthesis entendido como a habilidade de

    perceber atravs dos sentidos se restringe, passando a predominar a esttica como teoria geral

    acerca do belo em si mesmo, o que constituir na colonizao (ou colonialidade) da aesthesis

    pela esttica. Se a aesthesis, quanto capacidade de percepo via sentidos, um fenmeno

    comum a todos os organismos viventes com sistema nervoso, a esttica, por outro lado, seria

    uma verso ou teoria particular e localizada sobre tais sensaes relacionadas com a beleza

    (MIGNOLO, 2010; TLOSTANOVA, 2011).

    Es decir, que no hay ninguna ley universal que haga necesaria la relacin

    entre aesthesis y belleza. Esta fue una ocurrencia del siglo XVIII europeo.

    Por razones complejas, que tienen que ver con la construccin de Europa a partir de 1492, la teorizacin particular de la experiencia estetica europea se

    universaliz deslegitimando e ocultando sus experiencias de satisfaccin de

    las sensaciones y el gusto por la creatividad en el lenguaje, en las imgenes, en los edificios, en las decoraciones, entre otros, de civilizaciones no

    europeas (MIGNOLO, 2010, p. 13-14).

    Em termos mais gerais, desde o sculo XVIII, especialmente a partir do Iluminismo,

    foi se construindo a ideia de que a Europa e os europeus constituiriam um nvel mais

    avanado numa escala evolutiva unilinear e unidirecional, distinguindo-se a partir desta

  • 32

    concepo a populao mundial entre superiores e inferiores, mais ou menos racionais, mais

    ou menos primitivos ou civilizados, tradicionais ou modernos (QUIJANO, 2014). Neste

    processo, tambm a vivncia eurodescendente sobre a beleza e sua concepo sobre arte e

    cultura se foram impondo como universalmente verdadeiras e sua experincia esttica como

    superior e sinnima de beleza (ou mais prxima do belo).

    Citando em particular o segundo volume de sua Filosofia da Histria Universal,

    Enrique Dussel (1994) apresenta como Hegel defendia que a Europa seria o centro e o fim do

    mundo antigo e do Ocidente como tal, enquanto a sia, o comeo. A Amrica e os amerndios

    eram identificados como a infncia da humanidade e a frica, por sua vez, com seus

    resqucios de animalidade, no teria propriamente histria e por isso no seria mais

    mencionada na obra do filsofo germnico. No seria, ento, parte do mundo histrico, no

    apresentando o que se poderia identificar como um movimento ou desenvolvimento histrico,

    algo aislado y sin historia, sumido todava por completo en el espritu natural, y que slo

    puede mencionarse aqu, en el umbral de la historia universal, segundo apresenta Dussel

    (DUSSEL, 1994, p. 17). Esta classificao, claro esteja, estaria manifesta nos mais diversos

    produtos da cultura material dos povos.

    A ideia, portanto, da civilizao europeia ocidental como a culminncia de uma trajetria

    desde um estado de natureza, mais prximo do qual estariam africanos e amerndios, traz consigo

    a concepo de que, justamente por essa posio na escala evolutiva, os europeus seriam os

    exclusivos criadores e protagonistas de um processo civilizatrio colonial de dimenses mundiais.

    neste sentido que Enrique Dussel recua o processo histrico de constituio da subjetividade

    moderna para quando a Europa confrontada com o outro nas Amricas poca dos

    chamados descobrimentos, quando teve incio a constituio propriamente de um ego europeu

    descobridor, colonizador e superior diante de um outro em geral. Outro que, para o autor,

    no fora des-coberto, mas en-coberto quanto si mesmo e construdo quanto outro.

    (DUSSEL, 1994).

    Esse eurocentrismo e seus escalonamentos esto na base de todo um processo de

    colonialidade, no s da poltica, mas tambm do ser e, claro, da esttica. Em raqzo mesmo

    da colonialidade e da socializao sob seus termos, segundo Anbal Quijano, o eurocentrismo

    no a perspectiva cognitiva exclusiva dos europeus, mas do conjunto de pessoas educadas

    sob sua hegemonia e que naturaliza este processo.

    Se trata de la perspectiva cognitiva producida en el largo tiempo del

    conjunto del mundo eurocentrado del capitalismo colonial/moderno, y que

    naturaliza la experiencia de las gentes en este patrn de poder. Esto es, la hace percibir como natural, en consecuencia, como dada, no susceptible de

    ser cuestionada. (QUIJANO, 2014, p 287)

  • 33

    Concluiria ainda Quijano que o mais notvel sobre isso no que os europeus pensem

    e imaginem a si mesmos e aos demais a partir de seu particular sistema de classificao o

    que no um privilgio exclusivo deles, claro est -, mas o fato de que foram capazes de

    disseminar e estabelecer essa perspectiva histrica como hegemnica dentro de um universo

    intersubjetivo (QUIJANO, 2014).

    Segundo Mrcia Chuva (2003), Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond

    de Andrade e Lucio Costa figuras chave na constituio e consolidao da ao sobre os

    patrimnios histricos no Brasil identificavam-se profundamente entre si pela crena na

    universalidade e origem comum da arte, sendo este um ponto crucial na concepo de nao

    que se consagrou no Brasil a partir do SPHAN. (CHUVA, 2003, p. 315). A partir desta

    concepo, a arquitetura tradicional foi classificada em tipologias das manifestaes da arte

    no Brasil, cronologicamente dividida em quatro perodos, correspondendo a cada qual um

    estilo especfico. Ainda segundo a autora,

    Trata-se de uma verdadeira tomada de posio, especialmente sob o aspecto da determinao de uma classificao evolutiva, que de forma sistmica

    consagrou uma tipologia que seria reconhecida no somente no interior do

    Servio, mas pela prpria historiografia da arte no Brasil uma

    historiografia da civilizao material brasileira. [...] Essa cronologia comportava, em no mais de 250 anos (fins do sculo XVI e

    comeo do XIX), as fases do processo civilizatrio do mundo europeu

    ocidental: o clssico grego; o romnico; o gtico; e o renascentista. Todas essas fases estavam reunidas por uma adjetivao comum a todas elas no

    Brasil o barroco , que colocava as origens da nao brasileira

    sincronizadas com a histria do mundo civilizado. (CHUVA, 2003, p.

    325-326)

    O prprio Mrio de Andrade, figura mtica qual se atribui a origem da busca pelas

    razes mais telricas nas polticas patrimoniais no Brasil, ainda assim no escapa (homem de

    seu tempo) concepo de que o paradigma de uma arte pura e superior deveria ser buscado

    no passado clssico europeu. Em seu Ensaio sobre a Msica Brasileira, escreve o autor de

    Macunama:

    E alis pela ponte lusitana que a nossa musicalidade se tradicionalisa e

    justifica na cultura europeia. Isso um bem vasto. o que evita que a

    msica brasileira se resuma curiosidade espordica e extica do tamelang

    javans, do canto achanti e outros atrativos deliciosos mas passageiros de exposio universal (ANDRADE, 1972 [1928], p. 28-29).

    Alm de pesquisas e publicaes, tambm cursos eram promovidos pelo SPHAN

    quando de sua constituio, dos quais Santos (1996) destaca Histria das Artes, ministrado

    por Hanna Levy, Arte Indgena, ministrado por Helosa Alberto Torres e Formao da

    Civilizao Brasileira, ministrado por Afonso Arinos de Melo Franco, em 1941. De suas aulas

    resultou o livro Desenvolvimento da Civilizao Material no Brasil, editado na srie

    Publicaes do SPHAN, em 1944 (TEIXEIRA, 2009, p. 01). Arinos publicara ainda, em

    1936, o livro intitulado Conceito de Civilizao Brasileira. Civilizao seria, para ele, a

  • 34

    unidade de culturas manifesta racional e tecnicamente. Cultura, por sua vez, seria

    compreendida como a conscincia comum, nascida e formada gradativa e coletivamente a

    partir de trs elementos bsicos, quais sejam: a raa, o espao e o tempo (SERPA &

    CAMPIGOTO, 2010).

    Segundo Serpa & Campigoto (2010), Arinos recorre pluralidade ainda numa

    perspectiva hierrquica, incorporando a ideia de cultura inferior e superior em suas anlises, a

    partir do eurocentrismo supramencionado. Nesse sentido e acerca de uma civilizao

    propriamente brasileira, Arinos considera necessrio examinar em seus diferentes lados o

    tringulo racial que a formara, tringulo retngulo no qual o cateto menor representa a linha

    indgena; o maior seria a linha africana e a hipotenusa seria a linha europeia (SERPA &

    CAMPIGOTO, 2010, p. 205). Escreveria Arinos:

    O desenvolvimento da nossa civilizao material de base portuguesa,

    entendida no seu complexo luso-afro-asitico. A contribuio negra e ndia,

    muito notvel na elaborao do psiquismo nacional, pouco importante na nossa civilizao material, no somente por ter sido absorvida no choque

    com um meio muito mais evoludo mas tambm porque as condies de

    sujeio em que viviam as raas negra e vermelha no permitiam a expanso

    plena das suas respectivas formas de cultura. Por isto mesmo, os elementos negros e ndios, presentes na nossa civilizao material, salvo um ou outro

    mais notveis, so de difcil identificao (MELO FRANCO, 2005, p. 24

    apud TEIXEIRA, 2009, p. 6).

    A civilizao brasileira, ento, seria o resultado da interpenetrao de trs culturas,

    com pesos distintos segundo a evoluo de cada uma. Assim, as contribuies advindas de

    indgenas e negras/os deixaram marcas na civilizao brasileira, porem residuais. A partir

    destas consideraes podemos compreender as bases da priorizao dos bens

    eurodescendentes na poltica patrimonial brasileira: representariam a ancestralidade e

    vinculao com o passado que se queria enfatizar para o futuro a construir. Em termos de

    configurao da tipologia dos patrimnios culturais consagrados a partir destas concepes,

    sintetiza Silvana Rubino:

    O SPHAN elegeu um Brasil antepassado que exclui alguns atores

    conte