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5 Revista História e Diversidade Vol. 2, nº. 1 (2013) ISSN: 2237-6569 Ana Carolina da Silva Borges Doutoranda em História UNICAMP E-mail: [email protected] RESUMO: O objetivo deste artigo é buscar refletir sobre as práticas de ensino operadas no ambiente norte pantaneiro, atentando-se para as relações de trabalho e a temporalidade local desenvolvida entre os agregados e camaradas nas grandes propriedades agrárias, entre os anos de 1870 a 1930. Ao longo desse período foi possível perceber o quanto os projetos de “instrução” pública estavam correlacionadas ao contexto “moderno”, de uma forma peculiar, uma vez que as modificações oriundas de um mercado mundial em expansão, carregadas de valores e preceitos “civilizados” atingiu o cotidiano local, ensejando uma nova percepção do tempo que era o “tempo moderno”, o “tempo industrial”, o “tempo das usinas”. Para percebermos esses aspectos utilizamos como tipologia documental os relatos dos viajantes, além dos relatórios e mensagens dos governantes provinciais e estaduais. Palavras-Chaves: Pantanal Norte, cotidiano, ensino. ABSTRACT: e purpose of this article is to reflect on teaching practices operated in the northern Pan- tanal environment, attending to the working relationships and the local temporality developed between “agregados” and comrades in large agrarian properties, from 1870 to 1930. roughout this period it was possible to realize how the public teaching projects were correlated with the “modern” context in a peculiar way, once that the modifications from an expanding global market laden with “civilized” values and standards reached the local lives occasioning a new perception of time which was the “modern time”, the “industrial era”, the “time of the mills”. In order to understand those aspects we used as documental typology reports of travelers in addition to records and messages from provincial and state governors. Keywords: Pantanal Norte, everyday, teaching No Brasil, apesar de alguns avanços no campo das pesquisas historiográficas que envolvam, como temática, a educação, existe uma lacuna em trabalhos que anali- sem as práticas educacionais desenvolvidas nos ambientes rurais em se tratando, sobre- tudo, de períodos históricos que tenha um grau de complexidade ainda maior em vir- tude das ideias e conceitos generalizantes, a exemplo da política coronelista, tendo em vista que as especificidades locais em torno desta política tiveram análises superficiais e simplificadas, com elucubrações de aspectos teóricos pré-concebidos. Esse fato pode ser ainda mais reforçado mediante regiões tidas como “periféricas” ou “longínquas” das demais áreas do país, como era o caso de Mato Grosso. “INSTRUÇÃO E MODERNIDADE”: POR UMA REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO E O TRABALHO NO PANTANAL NORTE (1870-1930)

“INSTRUÇÃO E MODERNIDADE”: POR UMA REFLEXÃO … · Esses fatores contribuíram para que os pro- ... xaram de ser a melhor opção para o escoamento da produção agropastoril

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ISSN: 2237-6569 ISSN: 2237-6569

Ana Carolina da Silva BorgesDoutoranda em História UNICAMP

E-mail: [email protected]

RESUMO: O objetivo deste artigo é buscar refletir sobre as práticas de ensino operadas no ambiente norte pantaneiro, atentando-se para as relações de trabalho e a temporalidade local desenvolvida entre os agregados e camaradas nas grandes propriedades agrárias, entre os anos de 1870 a 1930. Ao longo desse período foi possível perceber o quanto os projetos de “instrução” pública estavam correlacionadas ao contexto “moderno”, de uma forma peculiar, uma vez que as modificações oriundas de um mercado mundial em expansão, carregadas de valores e preceitos “civilizados” atingiu o cotidiano local, ensejando uma nova percepção do tempo que era o “tempo moderno”, o “tempo industrial”, o “tempo das usinas”. Para percebermos esses aspectos utilizamos como tipologia documental os relatos dos viajantes, além dos relatórios e mensagens dos governantes provinciais e estaduais.

Palavras-Chaves: Pantanal Norte, cotidiano, ensino.

ABSTRACT: The purpose of this article is to reflect on teaching practices operated in the northern Pan-tanal environment, attending to the working relationships and the local temporality developed between “agregados” and comrades in large agrarian properties, from 1870 to 1930. Throughout this period it was possible to realize how the public teaching projects were correlated with the “modern” context in a peculiar way, once that the modifications from an expanding global market laden with “civilized” values and standards reached the local lives occasioning a new perception of time which was the “modern time”, the “industrial era”, the “time of the mills”. In order to understand those aspects we used as documental typology reports of travelers in addition to records and messages from provincial and state governors.

Keywords: Pantanal Norte, everyday, teaching

No Brasil, apesar de alguns avanços no campo das pesquisas historiográficas que envolvam, como temática, a educação, existe uma lacuna em trabalhos que anali-sem as práticas educacionais desenvolvidas nos ambientes rurais em se tratando, sobre-tudo, de períodos históricos que tenha um grau de complexidade ainda maior em vir-tude das ideias e conceitos generalizantes, a exemplo da política coronelista, tendo em vista que as especificidades locais em torno desta política tiveram análises superficiais e simplificadas, com elucubrações de aspectos teóricos pré-concebidos. Esse fato pode ser ainda mais reforçado mediante regiões tidas como “periféricas” ou “longínquas” das demais áreas do país, como era o caso de Mato Grosso.

“INSTRUÇÃO E MODERNIDADE”: POR UMA REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO E O TRABALHO NO PANTANAL

NORTE (1870-1930)

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Tendo como recorte espacial uma parcela da região norte pantaneira, preten-demos neste artigo adentrar em um universo distante das grandes cidades e centros industriais do Brasil, mas que, no entanto, foram atingidos pelas transformações co-merciais mais amplas e são igualmente significativos para os trabalhos historiográficos. Em outras palavras buscaremos desmitificar a ideia de “isolamento” ainda fortemente presente sobre o Pantanal e a visão romântica criada sobre a relação estabelecida pelos moradores entre si e o seu meio, que seria marcada por uma intensa harmonia, mini-mizando o caráter de exploração dos recursos naturais entre os eles. Em virtude disso, daremos visibilidade ao “tempo útil”, ao “tempo industrial” que, aos poucos, tenta se impor sobre o “tempo natural”, que era o praticado anteriormente na extensa área ala-gável, mostrando o quanto essa nova temporalidade estava articulada com as formas de “instrução” ofertadas pelos governantes mato-grossenses.

Assim, temos como objetivo neste paper refletir sobre as práticas de ensino destinadas a atender os moradores locais estabelecidos nas proximidades das grandes propriedades agrárias localizadas ao longo dos rios Cuiabá e São Lourenço, adentrando também em seus cotidianos através de algumas reflexões sobre as relações de traba-lho interno. Enfatizando que daremos atenção especial aos trabalhadores conhecidos como agregados e camaradas. Para o efeito da pesquisa utilizaremos como balizas tem-porais os anos de 1870 a 1930.

Escolhemos o ano de 1870, pois com o fim da Guerra do Paraguai e a reabertura da navegação fluvial, Mato Grosso passou por grandes transformações, fazendo com que o comércio da província se intensificasse. É a partir de então que o barco a vapor passou a ser utilizado com maior regularidade, diminuindo o tempo das viagens, que chegavam a durar em torno de três a quatro meses, para um mês. Tais embarcações saíam do porto de Corumbá tendo como destino o porto de Cuiabá, inserindo a região a ser estudada no comércio internacional. Esses fatores contribuíram para que os pro-prietários do Pantanal passassem a auferir maiores lucros e investissem nas fazendas e usinas de açúcar ali existentes, ao mesmo tempo em que os moradores fixados à beira dos rios podiam ver aumentadas as trocas e vendas de produtos caseiros, de animais domésticos e principalmente silvestres, bem como de lenha, dentre outros produtos.

Como marco final de nosso recorte temporal, escolhemos o ano de 1930 por expressar mudanças na organização social, política e econômica no estado de Mato Grosso. A começar pelas construções das estradas de ferro (1914) e de rodagem que diminuíam as viagens de um mês para quinze dias. Diante disso as rotas fluviais dei-xaram de ser a melhor opção para o escoamento da produção agropastoril e para a co-mercialização de mercadorias em geral. Com o golpe de Getúlio Vargas (1930), quando houve o combate ao coronelismo e a intensificação da política de integração nacional, ocorreu no Pantanal Norte uma gradativa queda da exploração e exportação de produ-tos florestais e aquáticos. Esses fatos corroboraram para as modificações nas relações

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estabelecidas entre índios1, camaradas, agregados, donos de engenhos, fazendeiros, usineiros e “ribeirinhos”, assim como as relações de poder locais2.

Reiteramos que corremos sérios riscos de simplificar a lógica e as práticas que gravitavam em torno do ensino na região norte pantaneira, mas entendemos que trazer essas reflexões para o campo do debate acadêmico seria uma justificativa plausível em se tratando de uma temática cujas discussões e reflexões têm sido pouco exploradas.

Os agregados e camaradas no contexto coronelista

Mas afinal quem eram os agregados e camaradas do Pantanal Norte? As cama-das “subalternas” do meio rural, que os índios e os refugiados paraguaios ajudaram a compor, eram também constituídas por negros e mestiços. Estes trabalhadores do campo, Corrêa Filho denominou de “plebe rural”3. Embora tenha as fazendas como 1 No Pantanal Norte, havia os índios Borôro, Guaná e Guató que, nas primeiras décadas do sécu-lo XX, passaram a fazer parte dos trabalhadores rurais: minifundiários (zingueiro, caçador, criador, agricultor e outros), agregados e camaradas2 Entre as mudanças sociais e ambientais no período recortado, destacamos o aumento popu-lacional da região norte pantaneira e das unidades produtivas locais; o crescente desmatamento na beira dos rios, com a retirada da lenha para o reabastecimento das embarcações a vapor; a valorização da pesca e seus derivados; a incorporação do universo agrário norte pantaneiro de índios, ex-escravos e mesmo paraguaios fugidos da guerra (1870); a complexidade e a lógica das relações de troca e comércio locais com as embarcações fluviais e o com o comércio informal, como os mascates.3 O termo “Plebe rural” não é incorporado por este trabalho por acreditarmos que é inadequado, sendo referendado apenas como uma forma de localizar o leitor sobre o autor que está sendo citado (CORRÊA FILHO, 1946, p. 123). Ressaltamos, aqui, um grupo rural que não deve ser esquecido, já que o período que estamos analisando conta também com a sua presença: os es-cravos, que não são referenciados por Corrêa Filho, que constrói seu “panorama” com base nas primeiras décadas do século XX. Esses trabalhadores pobres se distinguiam consideravelmente dos demais, pois não se enquadravam como livres. Sabemos, porém, que algumas relações lhes propi-ciavam certa autonomia, por meio de uma pequena vantagem usufruída pelos escravos de campo em Mato Grosso, mais especificamente entre as redondezas de Cuiabá, na denominada “brecha camponesa”, muito bem destacada por Volpato, e que teve um “papel fundamental no processo de contenção dos escravos”. Segundo esta autora, os proprietários de escravos ao lhes propiciar a possibilidade de desenvolver uma pequena roça, ofereciam aos mesmos a oportunidade de re-alizarem “uma atividade lucrativa, que lhe ensejasse algum lucro e o acúmulo de um pecúlio que, por pequeno que fosse, era-lhes de grande importância. Essa pequena quantia poderia ser utiliza-da das mais diversas formas: servia para complementar a dieta alimentar com a compra de alguma guloseima, ou melhorar a maneira de se vestir, como a aquisição de alguma parelha de roupa. Após a provisão da Lei do Ventre Livre, tornou-se possível a acumulação de um pecúlio, visando à compra da liberdade” (VOLPATO, 1993, p. 143). Geralmente, os escravos criavam pequenos animais como porcos e galinhas, o que não exclui a possibilidade de criarem gado. A denominada “brecha camponesa” realizada no Pantanal Norte pode ser vislumbrada por meio de uma tipologia documental: os processos-crime. A exemplo mencionaremos um que nos revela a utilização desta relação entre senhor/escravo, nas proximidades das regiões em estudo, já que Florência Maria de Oliveira, moradora do Aricá, lavradora, queixou-se contra Agostinho Pereira Guimarães e José Guarim Fernandes responsáveis pela agressão física feito sobre seu escravo de nome Balbino. De

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objeto de estudo, esse autor informou que aí se desenvolvia a “plebe rural”, auscultando, nas entrelinhas de suas observações, pistas4 que apontassem para a composição deste grupo social.

[...] se desenvolve o trabalho coletivo, indispensáveis as operações de maior escala e o aparecimento da classe de inferior nível social, consti-tuída pelos agregados, camaradas e os que não se alistam em nenhum destes grupos, embora vivam desprovidos de haveres, como os ribeiri-nhos modestos. Incluem-se os primeiros no rol de pretendentes a morar em gleba pertencente a outrem, cujos favores são retribuídos periodi-camente por meio de trabalho. Em geral, o proprietário de terras, que lhe sobejam, consente na ocupação de pequeno lote a quem solicitar, mediante condições variáveis de um para outro estabelecimento.Terá ou não direito a criar algumas cabeças de gado, abrir roças, até certos limites, mas quase sempre será obrigado a atender aos avisos para auxiliar os trabalhos principais de senhorio5.

Os agregados, vivendo com suas famílias, eram também aqueles que possuíam uma relação de maior proximidade com os donos das grandes propriedades agrárias, com acesso contínuo à sua residência e liberdade para desenvolver algumas atividades autônomas, como a agricultura e a criação de animais, garantindo, desse modo, a con-tinuidade de sua reprodução social nas fazendas. Nesta altura, convém tecermos breves comentários sobre este grupo de trabalhadores rurais, mais especificamente sobre as questões relativas às suas atividades. A proximidade que se estabelecia entre agregados e patrão era marcada por códigos e comportamentos significativos para uma ordem desenvolvida nas propriedades no corrente do dia, consolidando uma relação de ajuda mútua e concomitantemente assimétrica. Estas relações de confiança não devem ser observadas sem a articulação com um funcionamento lógico - a fidelidade - que orien-acordo com a suplicante, teria Balbino arrendado uma pequena faixa de terra a Agostinho, que ao ser cobrado reagiu de forma violenta contra o escravo. O que mais nos importa neste documento é que a terra que o escravo Balbino arrendou era uma área cedida pela sua dona, na intenção de que este ali desenvolvesse qualquer atividade que lhe provesse (APMT, Tribunal de Relações, Caixa 17, ano de 1879, Juízo de Direito da Comarca de Cuiabá, Cx atual nº17, Doc. nº 154).4 Como metodologia para a análise documental teremos como referência a proposta estabelecida pelo historiador da cultura Carl Ginzburg em sua obra “O queijo e os Vermes”. O autor italiano através de um método “indiciário”, chama a atenção para as pequenas pistas, muitas vezes negli-genciadas quando o olhar do historiador sobre suas fontes concentra-se apenas nas grandes gen-eralizações, perdendo de vista o mais infinitesimal. É o caso dos sinais, das pistas aparentemente soltas nos registros, mas que, na verdade, são capazes de fazer emergir um conteúdo implícito, e nos apontar uma variedade de elementos significativos para a interpretação de uma cultura popu-lar, já que os documentos que nos chegam são duas vezes indiretas: primeiro porque foram escritas e depois por que foram produzidos pelos grupos dominantes. Em outros termos as informações que nos chegam passaram por filtros e intermediações deformantes. Cf: GINZBURG, 1987. 5 CORRÊA FILHO, V., op. cit., p. 122

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tava as atividades e as relações estabelecidas entre ambos – o dono da propriedade e o agregado - em que cada um no limite de suas forças buscava tirar vantagens sobre o ou-tro, pois como bem afirmou Anzai6, ao se referir aos empregados rurais livres de Goiás:

Este rígido sistema de dependência pessoal carregava as relações entre trabalhador e proprietário de elementos extra econômicos: dos agrega-dos, conforme já vistos, exigia-se não apenas o trabalho mas também, e talvez principalmente, demonstração de lealdade para com o patrão; a este por sua vez, cabia avaliar, formalmente diante da sociedade, a honradez e correção de princípios de seu agregado, este aval é que abria espaços ao trabalhador para uma série de atividades sociais7.

Os donos das grandes propriedades mediam sua confiança junto a seus empre-gados de acordo com os benefícios que cada trabalhador e sua família poderiam lhes proporcionar. A complexidade desta relação reside justamente nesse sistema de agre-gação, que de acordo com Anzai: “existia provavelmente em função da não existência da acumulação de capital, que não fazendo da terra uma mercadoria, permitia que a ela fosse cedida sem maiores problemas, devido principalmente à sua abundância e aos baixos impostos cobrados pelos fazendeiros”8.

Ser agregado, contudo, significava ser um trabalhador que tinha pelo menos a segurança de perpetuar suas atividades rurais, não correndo o risco da indefinição tão característica de outros moradores locais, como era o caso dos camaradas. De fato, como salientou Corrêa Filho: “Fora dos compromissos periódicos, vivem em relativa independência, ao contrário dos camaradas, a quem cabe um quinhão maior nos cam-peios e demais diligências, que se intensificam nas estiagens até o começo da época das águas”9.

Já em relação aos camaradas, as informações não são tão detalhadas. João Anto-nio Botelho Lucídio (1991), ao analisar a contribuição de Virgílio Corrêa Filho (1946), em Nos Confins do Império um Deserto de Homens Povoados por Bois: a ocupação do planalto sul Mato Grosso 1830-1870, apontou que

A descrição sobre os camaradas é menos minuciosa, entretanto, a abor-dagem assume uma perspectiva de resgate histórico da sua existência na formação social mato-grossense. Em linhas gerais, pode-se dizer que o camarada foi o elemento que, junto com os escravos, formavam

6 ANZAI, L. C., 1885.7 Ibid., ANZAI, L. C., 1885p. 25 8 Ibid., ANZAI, L. C., 1885, p. 44.9 Ibid., CORRÊA FILHO, 1946, p. 44.

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a mão-de-obra básica nos primeiros tempos de abertura das fazendas e usinas. À medida que os segundos foram diminuindo em quantidade esses foram paulatinamente ocupando seu lugar como força de traba-lho10.

Ainda sobre os camaradas, Corrêa Filho afirmou que

Empregam-se de acordo com as normas vigentes, mediante remunera-ção ajustada. Na região sulina já os nomeiam de peão por influência forasteira. Quando se iniciou a pecuária pantaneira, ser-lhe-ia diminuto o número, em confronto com o dos escravos, que então constituíam a maioria dos trabalhadores rurais. À medida, porém, que os segundo se reduziam, beneficiados pelas alforrias, aumentava aqueles em propor-ção11.

Enfim, os camaradas podem ser caracterizados como os trabalhadores que, com a “extinção” da escravidão, compunham um dos grupos sociais mais desfavore-cidos nas relações de trabalho no campo, ocupando um lugar muito próximo ao do trabalho compulsório. Algumas vezes denominados também de ”peões”, este grupo de trabalhadores rurais realizava trabalhos temporários nas fazendas, usinas e engenhos e estabeleciam uma relação diferenciada da que era conferida aos agregados, tendo em vista que era reduzido o compromisso com os laços de fidelidade com o seu patrão. Aliás, a própria qualificação de “peão” nos possibilita perceber certa dimensão da re-lação destes com as fazendas, que empregava uma mão de obra, sobretudo para a lida com o gado.

No que toca às atividades realizadas pelos camaradas nas grandes propriedades, nos engenhos e, especialmente, nas usinas, podemos traçar maiores comentários, ten-do em vista que representavam um número considerável dentre todos os trabalhadores rurais empregados nessas propriedades, sobretudo, nos períodos de safra, pois:

[...] os trabalhadores, agora chamados de “camaradas”, apesar de as-salariados, deixavam quase tudo que recebiam na usina, pois eram obrigados a fazer compras nos armazéns que ali existiam. Neles eram comercializadas roupas, calçados, tecidos, fumo, fósforo, utensílios de uso pessoal e até cachaça12.

10 LUCIDIO, 1991. p. 62.11 CORRÊA FILHO, V., op. cit., p. 122-123.12 SIQUEIRA, 1997, p. 68

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Muitas vezes, em virtude de dívidas que contraíram com despesas de moradia e alimentação, esses trabalhadores tinham seus nomes anotados em cadernetas, que in-dicavam seus débitos para com o proprietário, tornando-os irremediavelmente cativos de seus patrões. Nomes estes que, muito mais do que simples registros, apontavam o grau de controle exercido pelos senhores de engenho e usineiros.

Os donos das usinas e engenhos se utilizavam dessas estratégias como uma for-ma de domínio sobre as atividades diárias de seus trabalhadores e suas famílias. Como bem salientou Siqueira, “como os salários eram baixos, os camaradas estavam sem-pre devendo ao usineiro” e ainda afirma que “presos economicamente à usina estavam presos também seus corpos, pois mesmo que desejassem abandonar o emprego, não poderiam fazê-lo livremente, pois deviam ao usineiro13”. Mesmo com a abolição da es-cravatura (1888), os trabalhadores das usinas de açúcar de Mato Grosso, em sua grande parte, continuaram a se submeter às relações de trabalho muito próximas às do regime escravista14, ainda que não possuíssem, evidentemente, o mesmo valor de mercadoria aplicado aos escravos.

Nesse contexto seria interessante perceber que as modificações da racionalida-de local que se configuravam em novas relações diárias entre os agregados, camaradas e grandes proprietários rurais estavam diretamente correlacionadas com a abolição da escravidão (1888), a política do coronelismo e a intensificação das relações comerciais mais amplas, como já foi mencionado antes.

Mato Grosso no período pós-Guerra com o Paraguai e no contexto do discurso do “progresso”

A Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870) marcou profunda-mente a sociedade mato-grossense. Em 1870, com a reabertura da navegação via Bacia do rio da Prata, as feridas abertas no período da guerra (como a crise nos setores agrí-colas de exportação e abastecimento, a diminuição populacional diante da violência do conflito bélico e a epidemia da varíola que causou inúmeras mortes e deformações, além do registro de grandes enchentes, em 1865) estavam longe de cicatrizar.

A guerra, dessa forma, constitui-se num marco cronológico de grande signifi-

13 SIQUEIRA, E. M., op. cit., p. 68.14 Anzai chama nossa atenção para o fato de que na região de Goiás os agregados também eram uma mão de obra que supria consideravelmente a mão de obra escrava. Segundo a autora: “Enquanto perdurou a escravidão, os fazendeiros de Goiás deixaram de utilizar o trabalho escravo apenas em situações que colocassem em risco o seu patrimônio, em tais ocasiões, utilizava-se do trabalho do agregado, ou seja, pessoas que recebiam o lote de terras das fazendas em troca da prestação de serviços por um prazo estipulado”(p. 22).

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cação para a historiografia de Mato Grosso. Seus efeitos podem ser sentidos no ressur-gimento de antigos problemas voltados para as dificuldades de transportes no abasteci-mento de gêneros alimentícios e a proximidade com outras províncias do país, visando o estabelecimento de relações comerciais mais amplas demandando soluções adequa-das ainda no contexto das últimas décadas do século XIX. Nesse sentido, há que se des-tacar que, se a questão da fronteira havia sido resolvida, carecia acabar definitivamente com a distância do Centro-Oeste com as demais áreas do Brasil articulando um projeto que direcionasse, com maior intensidade, a região para o “caminho do progresso”.

Para resolver tal situação, foram desencadeadas por parte dos governantes pro-vinciais algumas medidas visando fomentar o comércio e, consequentemente, reativar o mercado local. A partir de 1869, por exemplo, os governantes locais favoreceram a entrada de investidores e grupos interessados em desenvolver transações comerciais, concedendo-lhes isenção de impostos na província de Mato Grosso, com a intenção de minimizar ao máximo possível os agravantes da crise provocada pela guerra15.

É nesse universo pós-guerra com o Paraguai, quando Mato Grosso tentava “virar a página” de sua história e iniciar uma nova fase mergulhando no mundo dos negócios, da circulação monetária e de mercadorias que nos deteremos. A documen-tação produzida por viajantes estrangeiros e governantes locais registram aspectos da sociedade e do ambiente natural, julgados como importantes e verdadeiros entraves ao “desenvolvimento”.

Em Mato Grosso a denominada elite local, diminuta em número, mas detentora de grande influência econômica e política em relação aos grupos constituídos por li-vres, libertos e escravos, era composta por vários segmentos: proprietários das usinas16, fazendeiros17, bancários, comerciantes e empresários estrangeiros e nacionais18, pro-prietários de grandes companhias que exploravam a borracha e erva mate19, profissio-nais liberais, além dos altos funcionários públicos civis e dos militares de alta patente.15 Relatório do presidente da província de Mato Grosso, Augusto Leverger Barão de Melgaço, apresentado na abertura da sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial, no dia 20 de setembro de 1869.16 CORRÊA, 1995, p. 7017 Cf: PERARO, 2001, p. 63. Este grupo acompanhou e se inseriu nas relações comerciais mais amplas cujas extensas faixas de terras estavam localizadas na região pantaneira. Assim como a exploração açucareira, a criação extensiva de gado aumentou nas últimas décadas do século XIX, quando a venda desses animais, mortos ou vivos, estavam incluídos entre os produtos mais comer-cializados em Mato. 18 Cf: PERARO, 2001, p. 7019 Cf: PERARO, 2001, p. 70: “Em 1878, iniciou-se a exploração dos ervais nativos da Província de Mato Grosso, porém, suas foram exportadas exportada como sendo de origem paraguaia até o final do Império, quando então recebeu uma concessão do governo. Com a República e com o apoio do banco Rio-Mato Grosso, organizou-se ‘em 1891 a Companhia Mate Laranjeira des-tinada a elaboração e comércio de erva mate”’. E, em 1902, transformou-se na firma Laranjeira, Mendes e Cia, com sede em Buenos Aires.

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É nesse ambiente heterogêneo, em que os grupos econômicos começaram a se delinear no período pós-guerra com o Paraguai (uns se reafirmando economicamente, outros buscando espaço entre as principais atividades) que ressurgirá algumas inicia-tivas governamentais ou não preocupados em implementar práticas educacionais no contexto do desenvolvimento econômico rumo ao discurso do “progresso”.

Modernidade e Educação no Pantanal Norte

Como nos ensina a ciência, o homem, a terra e o capital- são três termos do problema de produção. Mas o homem carece ser instruí-do, a terra cultivada com esmero e arte, e o capital mobilizado. Aqui, infelizmente, sente-se falta de braços; os meios de transporte são difí-ceis e caros; a epizootia não cessa de dizimar os campos; a iniciativa individual é cousa como que desconhecida; a descrença nos motores que facilitam trabalho é absoluta; a inércia entre as classe dos que poderão suprir a deficiência de escravos é surpreendedora; a falta de instrução industrial completa e os capitais realizados deixam de entrar em circulação para, serem convertidos em apólices, ou depositados nos estabelecimentos bancários. O conjunto de tantos elementos no-civos atrofia e mata inteiramente a lavoura, que nem se quer prove as exigências da Província. [...] É geral o clamor pela falta de braços úteis ao trabalho. [...] Porém, o que mais afeta o progresso da lavoura, no Mato Grosso é a indolência e a inércia. Aqui o proletário não pensa no dia de amanhã20.

O trecho do relatório do presidente da província apresentado à Assembleia Le-gislativa de Mato Grosso pelo coronel Francisco José Cardoso Junior, no ano de 1871, versa basicamente sobre uma preocupação central que é “o problema da produção” em Mato Grosso. Discorrendo sobre esse problema, Cardoso Júnior identificava três fato-res que entravavam solução: “o homem, a terra e o capital”.

Para tanto, reportemos aos atributos pejorativos que foram construídos sobre os extratos tidos como “inferiores” da sociedade mato-grossense, pois, segundo esse governante, os mesmos eram carentes de “iniciativa individual” e precisavam receber uma “instrução” especializada, profissionalizante.

Aliás, sobre isso deve ser destacada a própria palavra “instrução”, termo con-cebido positivamente. Nos relatórios, discursos, mensagens e falas dos presidentes de província a expressão “instrução” estava diretamente relacionada à “educação”21. Nestes 20 Relatório apresentado em Assembleia Legislativa da Província em 1872, no dia 4 de outubro de 1872, pelo presidente da mesma Província o exm. Srº Dr. Francisco José Cardoso Junior,p. 8621 Podemos visualizar este fato, no trecho do documento que se segue: “Dificuldades inúmeras a vencer , rudes trabalhos a executar , lamentações e queixas a ouvir e atender, despesas enormes

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documentos o subtítulo “Instrução Pública” tratava exclusivamente dos assuntos rela-cionados à escolarização.

Mediante tal fato a educação era vista como um dispositivo para o processo de inserção do trabalho formal na região, sendo sua função atrelada à qualificação de jovens para serviços remunerados, inserindo-os na lógica capitalista22. Não é por acaso, ou simples conveniência que a educação ao ser mencionada nestes registros oficiais, vinha acompanhada de conceitos como “progresso” e “civilização23”. Anos depois, o presidente de estado de Mato Grosso sinalizava o seu desejo em atrair para o estado um grupo de trabalhadores estrangeiros:

Entendo que a imigração que mais convém é a européia, porque são homens em geral laboriosos, inteligentes e industriosos e nesse sentido é que devem convergir os nossos esforços para atraí-los a nos, mas de maneira a ser aproveitada a despesa que com eles fizermos. Não basta, certamente, promovermos o povoamento do nosso território, é preciso também fazê-lo com bons elementos de produção, que compensem os sacrifícios feitos pelo Tesouro, com o concurso que prestem à riqueza pública, ao nosso progresso moral e material24.

Por meio da mensagem citada logo acima é possível traçar algumas observa-ções, pois para o presidente do Estado de Mato Grosso fazia-se necessário à imigração europeia, uma vez que estes eram “homens em geral laboriosos, inteligentes e indus-triosos”. Diante dessas características o presidente achava conveniente não medir “es-forços para atraí-los”, pois viabilizaria para Mato Grosso não apenas um povoamento “adequado” como traria consigo “bons elementos de produção”. Contudo, a esta altura a fazer, programas e métodos a escolher e discutir, tudo isto reunido ainda será por muito tempo entre nós assunto de preocupação constante dos governos e dos educadores antes que se tenha obtido resultado satisfatório na instrução primária do povo, e chegado o tempo de descansar usufruindo nesta matéria/ essa teoria tudo esta resolvido. Bons métodos, excelentes professores, direção e inspeção ativa e dirigente, possibilidade, disposição de vontade de aprender, são os mistérios desvendados do ensino e da instrução popular.” Relatório de presidente de província, na 1º sessão, da 26º Legislatura, apresentado pelo Exmo. Snr. Dr. Joaquim Galdino Pimentel, no dia 12 de Julho de 1886. Ver também em: Mensagem de presidente do estado de Mato Grosso, à As-sembléia Legislativa, dirigida pelo vice-presidente do estado em exercício, Coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa, ao instalar-se a 2º sessão da 8º legislatura, no dia 13 de maio de 1910, p. 7 e 23.22 Cf: SIQUEIRA, 199923 Relatório com que o presidente da província de Mato Grosso abriu a 1ª sessão da 23ª Legis-latura da Assembléia, apresentada pelo exm., snr General Barão de Marcajú, 1º de outubro de 1880. p. 29. /Ver também em: Relatório de Presidente de Província, apresentada em 1908, pelo Generoso P. L. de S. Ponce, p. 17. 24 Mensagem de Presidente do Estado de Mato Grosso, apresentada a Assembléia Legislativa no dia no dia 3 de fevereiro de 1900, pelo Coronel Antonio Alves Pedro de Barros, p. 31.

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seria interessante notarmos a que tipo de produção o Coronel Antonio Alves Pedro de Barros está se referindo: aquela feita em larga escala, que preconizasse máquinas sofisticadas e, consequentemente, um conhecimento técnico. Saberes estes tidos como importantes para a elite política local tanto em ambientes urbanos como em áreas ru-rais.

Não é a nossa intenção e nem temos espaço o suficiente para desenvolvermos qualquer tipo de discussão que envolva as relações de poderes políticos em Mato Gros-so, contudo seria pertinente fazermos algumas ponderações sobre o presidente que es-creveu a mensagem supracitada. Ocupando a função de presidente do estado, o coronel Antonio Alves Pedro Barros exerceu sua tarefa por três anos (1899 à 1902) tendo como sucessor o seu aliado o coronel Antonio Paes de Barros também conhecido como “Totó Paes”. No começo do século XIX, o estado passava por um momento conturbado no plano político em virtude das estratégias montadas em torno das disputas pelos cargos e privilégios dos poderes locais. Dentre os trágicos acontecimentos podemos destacar um evento que ocorreu no ano de 1906, quando uma crescente insatisfação política da oposição acabou culminando em uma denominada “revolta” comandada pelo então coronel Generoso Paes Lemes de Souza Pontes, que exilado em Concepción, Paraguai, conseguiu apoio político com lideranças do Sul e reunindo um significativo contingen-te de tropas em Corumbá, direcionou-se e ocupou alguns pontos em Cuiabá. Tal ato teve como um dos principais desdobramentos a morte do presidente de Mato Grosso: “Totó Paes”.

De fato é possível obter sinais de que o coronel “Totó Paes” compartilhava com a mesma ideia do seu antecessor a respeito da imigração estrangeira ao enfatizar a sua intenção em firmar um contrato que previa a vinda de uma leva de estrangeiros eslavos para Mato Grosso, na qual ao que tudo indica não obteve sucesso25.

Entretanto, além de desempenhar uma função expressiva no campo político, “Totó Paes” era também um renomado proprietário agrário na qual um dos seus imó-veis - uma usina de açúcar-, estava localizada na região norte pantaneira26. Nos anos de 1880 e 1890, algumas propriedades da extensa área alagável receberam equipamentos avançados e importados, adquiridos por meio dos empréstimos internacionais. Isso desembocou na soma de novos estabelecimentos que optaram por seguir o mesmo 25 “Pela resolução número 361, de 11 de maio de 1903, foi o governo organizado a contratar com a Empresa de Colonização Brasileira a introdução de 3. 000 integrantes eslavos por serem localizados no distrito da Chapada e no Sul do Estado. Não foi lavrado até hoje o respectivo con-trato, por não ter se apresentado, para este fim, representante algum da empresa concessionária”. Mensagem apresentada no dia 3 de maio de 1903, pelo presidente do Estado de Mato Grosso o Coronel Antonio Paes de Barros, p. 13.26 Aliás vale lembrar que o seu irmão “Tóto Paes” também possuía uma propriedade na região norte pantaneira chamada usina de Itaicy. Tal propriedade era considerada como símbolo de “prosperidade” tendo em vista não apenas as máquinas a vapor instaladas em uma estrutura física considerável, mas também a iluminação elétrica que atendia a demanda interna.

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caminho, através dos incentivos ofertados pelo capital estrangeiro disponível. Assim, as usinas de açúcar, em sua maioria, localizadas às margens do rio Cuiabá, tornaram-se economicamente importantes, constituindo-se na principal expressão de atividade industrial de Mato Grosso. Ou seja, a linha de pensamento traçada acima provinha de uma figura política e economicamente forte em Mato Grosso.

Aliás, sobre a política coronelista há de se reiterar que a atenção dos estudiosos se volta, muita mais, para a lógica de algumas relações estabelecidas entre os proprie-tários e seus empregados. Estamos nos referindo aqui à prática, sobretudo, da violên-cia e fidelidade que normalmente acaba maximizando o sentido coercitivo, “legítimo” e abusivo dos “coronéis” sobre seus trabalhadores. Uma vez que recorrentemente se destaca os castigos e as penalizações aplicadas sobre moradores instalados nas gran-des propriedades rurais. Entendemos que enveredar pela complexidade envolvida em torno dessas configurações políticas e cotidianas são significativas, mas não se esgota e nem se resume a isso. Sem perder de vista essas relações, deter-nos-emos, também, nas contradições e estratégias existentes no dia a dia das usinas.

Além das casas cedidas pelos usineiros e fazendeiros os camaradas e agregados podiam contar também com alguns tipos de “orientação”, na qual podemos mencionar a aula de música. O viajante Roosevelt27, ao passar pela fazenda São João, aludiu a uma banda de música que o recepcionou com fogos e com cantos, inclusive com o hino nacional norte-americano. Já o viajante Vicenzi faz referência a uma pequena escola situada em Barão de Melgaço, localidade de onde provinha uma parte dos trabalhado-res que atendia às atividades exigidas nas usinas de açúcar e fazendas de gado da região pesquisada. Este, ao adentrar na região, observou que apreciou “também a escola pú-blica que nas horas vagas, é tabelionato. Lá dentro, as crianças no b-a-ba; cá fora de um outro lado da porta, grandes pedras das que se usam nas escolas, com Avisos, Portarias, Editais, etc.28”. Possivelmente esta escola é a mesma da que foi mencionada pelo presi-dente do estado de Mato Grosso, Antonio Alves Pedro de Barros:

Tendo sido elevada a categoria de vila a freguesia de Santo Antonio do Rio Abaixo, e por isso devendo ter em vez de escola mista, uma para cada sexo em conformidade com o art. 3 da lei citada, dividi nesse sentido a única escola que lá existia, criando uma do sexo feminino, ato este que submete a vossa aprovação, visto ser exclusiva do poder legislativo a atribuição de criar escolas29.

27 ROOSEVELT, 1976, p. 78.28 VICENZI, snt, p. 81.29 Mensagem de Presidente do Estado de Mato Grosso, apresentada a Assembléia Legislativa no dia 3 de fevereiro de 1900, pelo Coronel Antonio Alves Pedro de Barros, p. 31.

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Para a historiadora Siqueira, as escolas no século XIX em Mato Grosso – e mes-mo no Brasil - de um modo geral, significavam não apenas uma nova reconfiguração do espaço e tempo, uma vez que a prática de ensino deixou de ser realizado em um espaço privado para tornar-se um projeto público, mas estava articulada a um projeto político maior, pois ela deveria convergir teoricamente toda a população que não sabia ler a fim de receber as “luzes” e a “razão” da “civilização”. A autora ainda nos chama atenção para o simples fato de que o sistema escolar desenvolvia uma hierarquia que tinha em sua base – o primário elementar – um lugar na qual os pensamentos, as ideias e os valores liberais mais amplamente se realizavam30.

Em Mato Grosso, no começo do século XX existia no estado um total de 62 escolas, das quais 57 eram elementares ou de primeiro grau e as outras 5 eram comple-mentares ou de segundo grau. No Pantanal norte, além da escola citada anteriormente, havia também as que se encontravam instaladas dentro das duas colônias indígenas ali existentes: a colônia Izabel e a Cristina31. Entretanto, resta lembrar que os governantes, em ambas as colônias, puderam contar com a grande contribuição da Igreja Católica, responsáveis pelo projeto de catequização indígena32. A aliança firmada entre as duas instituições decorreu da ineficácia das colônias militares, que em muitos casos não ob-tiveram sucesso em seus projetos de expansão do “progresso”.

Nesses termos faz-se necessário trazer à tona a pesquisa desenvolvia por Adil-son José Francisco, que trabalhou como temática a atuação dos padres salesianos em Mato Grosso. Para o autor havia uma aliança estabelecida entre a Igreja e o Estado que permitia aos primeiros desenvolver um projeto que se inseria no movimento de “Mo-dernização” que se deu no estado, sobretudo, entre o final do século XIX e no inicio do século XX. O estudioso nos chama a atenção para os simples fato de que mesmo que o Brasil tenha se tornado uma República e, consequentemente, ter se declarado como um país laico, não deixou de desenvolver uma relação direta com a Igreja, já que soube articular os patrocínios vindo dos religiosos da Itália, para criar maiores condições em se formar uma elite local ao mesmo tempo em que viabilizaria o processo de profissio-nalização e catequização junto aos indígenas33.

Em outras palavras, a preocupação governamental em inserir a população anal-fabeta mato-grossense no processo de expansão das relações comerciais mais amplas, sob a ótica “modernizante”, pautada no crivo da “razão” se deu de forma extensa, atin-gindo um raio de ação maior incluindo os próprios grupos indígenas. Entretanto não sejamos inconsistentes, já que não temos documentação o suficiente para afirmarmos que tal fato ocorreu em todos os ambientes urbanos e rurais, mas na extensa área ala-

30 Para obter mais informações a respeito da prática de ensino no Brasil e os parâmetros curricu-lares ler: BITTENCOURT, 2004. 31 Cf: VIERTLER, 1990/. FRANCISCO, 2010.32 Relatório ... 1 de outubro de 1880, p. 33 e 34.33 FRANCISCO, 2010.

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gável foi possível obter pequenos indícios do “desejo” dos governantes locais em inserir na região os valores e a lógica do “progresso”.

As temporalidades locais

Aos nos atentarmos para as práticas de ensino ensejadas no recorte espacial pesquisado, fica a seguinte questão: quais foram as modificações no cotidiano dos tra-balhadores rurais nas fazendas e usinas de açúcar? Como os valores liberais atingiram a lógica das atividades diárias dos moradores locais?34

Para tentarmos responder a essas perguntas achamos pertinente fazermos algu-mas reflexões em torno da noção de temporalidade. Em outras palavras percorreremos o “tempo das usinas”, o “tempo da navegação a vapor” e, consequentemente, as altera-ções que estes engendraram na paisagem e espacialização na beira dos rios. Contudo, a noção de tempo de um determinado grupo social para ser desnudada e apreendida necessita de uma análise que tenha como pressuposto a relevância dos princípios que norteiam as práticas, em torno das quais devem ser compreendidos os elementos de sua criação, que as provocam, que as fazem emergir e tornarem-se possíveis. Ou seja, o tempo tem a função e utilidade no dia-a-dia. E nesse sentido que traçaremos uma conexão entre a prática de ensino e o mundo do trabalho na área de estudo em questão.

Para começarmos nossas reflexões recorreremos ao historiador inglês E. P. Thompson. Este estudioso nos alerta que, mesmo em sociedades industriais, a mudan-ça na percepção de tempo dos trabalhadores é questionada, segundo o autor:

Entretanto, é improvável que esse impressionismo grosseiro faça avan-çar a presente investigação: até que ponto, e de que maneira, essa mudança no senso do tempo afetou a disciplina de trabalho, e até que ponto influenciou a percepção interna de tempo dos trabalhadores? Se a transição para a sociedade industrial madura acarretou uma restru-turação rigorosa dos hábitos de trabalho- novas disciplinas, novos estí-

34 Faz-se necessário enfatizar nesse momento as observações feitas pelo filósofo francês Michael de Foucault. O autor sinaliza em sua obra “Vigiar e Punir” o quanto o processo de disciplinarização e adestramento processado nos cárceres eram semelhantes nos seminários, nos quartéis, nas es-colas, nas indústrias, e outros espaços em que a própria supressão do tempo é forte aliado na operação da sujeição do corpo e na maximização de todas as funções ou utilidades que o tempo poderia ofertar ao sistema capitalista. Estudando a Europa, sobretudo o contexto histórico da França, Foucault analisa a mudança de paradigma ao longo dos séculos XVIII e XIX através de um contrato social, mediante uma mudança nas relações sociais causada, especialmente, pela mudança de mercado, pela circulação de bens de consumo pela nova dinâmica do poder do Cap-ital. FOUCAULT, 2009./ Essas relações atingiram outras regiões tidas como interioranas, sobretudo ao longo do século XIX, como afirma o historiador inglês Eric Hobsbawm, em sua obra “A era do Capital”. Obviamente que cada região absorveu este mercado em expansão de formas distintas e não homogêneas. Neste pequeno artigo estamos tentando vislumbrar a maneira como tal fato se deu na região norte pantaneira. Cf: HOBSBAWM, 2002.

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mulos, e uma nova natureza humana em que esses estímulos atuassem efetivamente-, até que ponto tudo isso se relaciona com mudanças na notação interna do tempo?35

Para esse historiador a disciplina no trabalho não se configurou enquanto ele-mento novo nesses períodos de transformações. Ela já existia. O que modificou foi a sua importância e, principalmente, os tipos de disciplina que passaram a ser engendra-das a partir de então, assim como as novas leis e valores. São esses aspectos que devem ser pensados no estudo sobre a percepção de tempo.

Achar que entre os grupos ou comunidades “tradicionais” não havia uma orga-nização interna que preconizasse uma ordem, uma divisão de tarefas, é submeter a aná-lise desses trabalhadores a críticas vagas e ausentes de sustentabilidade. Internamente, a noção de tempo contava com regras e lógicas próprias que norteavam e redistribuíam as funções entre os integrantes da comunidade comumente ligados por laços familia-res.

De acordo com Thompson entre os denominados “‘povos primitivos’ a medição do tempo está diretamente relacionada com os processos familiares nos ciclos dos tra-balhos ou das tarefas diárias36”. Nesse caso, o tempo não é moeda, as atividades diárias empreendidas por cada trabalhador não obedecem a regras de algum patrão com ho-rários específicos e padronizados, tendo cada minuto, cada segundo vigiado e marcado pelo relógio; mas, pelo contrário, o tempo é controlado pelo próprio trabalhador.

Estamos aqui tratando do que Thompson define como “tempo da natureza”, praticado nas “sociedades camponesas”, fossem elas compostas por agricultores, pes-cadores, caçadores, extrativistas, ou outros. É a respeito desse tempo que discutiremos empreendendo um retorno ao ambiente agrário em que os camaradas e agregados aju-davam a formar. Levando em consideração que pretendemos aqui dar uma pequena dimensão do quanto o cotidiano local poderia ser marcada, de forma distinta, pelos 35 THOMPSON, 1998, p. 269.36 THOMPSON, op. cit., p. 269. Seria interessante dar continuidade a citação tendo em vista os exemplos que serão citados pelo autor “Evans- Pratchard analisou o senso de tempo dos nuer: ‘ O relógio diário é do gado, a rotina das tarefas pastorais, e para um nuer as horas do dia e a passagem do tempo são basicamente a sucessão dessas tarefas e a sua relação mútua’. Entre os nandi, a definição ocupacional do tempo evoluiu, abrangendo não apenas cada hora, mas cada meia hora do dia- às 5h30 da manhã os bois já foram para o pasto, às 6 h as ovelhas foram soltas, às 6h30 o sol nasceu, às 7 h tonou-se quente, às 7h30 os bodes já foram para o pasto etc.- uma economia inusitadamente bem regulada. De modo semelhante, os termos evolui para a medição de intervalos de tempo. Em Madagascar, o tempo podia ser medido pelo ‘cozimento do arroz’ (cerca de meia hora) ou pelo ‘fritar de um gafanhoto’ (um momento). Registrou-se que os nativos de Cross River dizem: ‘ o homem morreu em menos tempo do que leva o milho para assar” (menos de quinze minutos)”. p. 269-270.

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valores inerentes às sociedades que se pretendiam “civilizada”. É possível perceber que a intensificação do tráfico das embarcações a vapor, na região pantaneira, a partir de 1870, não tiveram implicações tão somente nas relações de troca e comércio – já que houve um aumento significativo do uso dos recursos naturais37 -, mas ocasionaram também conflitos simbólicos relacionados a valores, crenças e ideias locais. Estudar como esse fato corroborou para as questões relativas a noções de temporalidades, ou seja, como o tempo veloz e industrial, aos poucos, tenta impor-se sobre o tempo lento, natural que era o praticado internamente, permite entender como se deram as estra-tégias38 para as reproduções rurais na região norte pantaneira, e também como os tra-balhadores locais racionalizaram as pressões externas no processo de “modernização”, por meio dos contornos peculiares.

A discussão de Thompson sobre a relação entre o “tempo da natureza” e o cum-primento de tarefas é significativa para discutirmos este aspecto. Para o autor:

37 Neste caso podemos mencionar algumas tabelas de importação e exportação de Mato Grosso que aponta os principais produtos explorados no estado, dentre os quais uma parte considerável eram provenientes da região pantaneira a exemplo das peles e penas de animais, gado e seus derivados entre outros. Cf: Relatório de Presidente de Província... julho de 1886, p. 90/ Mensagem do Presidente do Estado de Mato Grosso... 1921/Mensagem do Presidente do Estado de Mato Grosso... 1921, p. 64. No que toca a criação de animais domésticos e as relações de troca e comércio é possível encontrarmos indícios nos relatos de viagens: PROENÇA, 1958, p. 53. Já a pesca foi citada no: Relatório do Presidente do Estado de Mato Grosso... 1872. Cf: CASTRO, 2001. / CASTRO, M. I. & GALETTI, 1994.38 Gostaríamos de destacar que, na presente pesquisa, utilizaremos a definição de “estratégia” atribuída pelo estudioso italiano G. Levi. Este autor buscou romper com a ideia de que as forças externas impunham à “sociedade camponesa” modificações intensas em suas práticas e relações sociais, pois “a opinião corrente era a de que este mundo era imóvel, defensivo, conservador, fragmentado pela força das relações totalmente externa e incapazes de por si só, engendrarem iniciativas autônomas e, portanto, dedicado tão somente ao esforço para se readaptar e recompor continuamente uma racionalidade própria, que se tornava progressivamente anacrônica e falha”. (p. 43). O que este historiador da economia apontou foi que, se por um lado, muitas “sociedades camponesas” sofreram modificações decorrentes de fatores externos que atingiram seus comporta-mentos diários, por outro lado, o contrário também ocorreu, ou seja, estes grupos rurais mudaram até certo ponto a face da sociedade externa “dominante”, não enquanto uma forma de reação ou resistência, mas sim como um caráter estratégico, que estava ligado diretamente à reprodução de suas práticas e lógicas compartilhadas comunitariamente. Portanto, era uma modificação mútua do interno com o externo, um transformava o outro em uma correlação contínua, de acordo com os valores e comportamentos das sociedades ou grupos envolvidos. É nesse ponto que Thompson sofreu algumas críticas desse autor, em relação ao conceito de “Economia Moral”. Assim, a noção de estratégia utilizada por G. Levi difere daquela desenvolvida por M. Certeau, em A invenção do cotidiano. De acordo com Levi: “A hipótese da qual partimos é, portanto, a da assunção de uma racionalidade especifica do mundo camponês; porém, não em termos de uma realidade cultural inconsciente da existência de uma sociedade complexa destinada a sufocá-la progressivamente. Essa racionalidade pode ser bem descrita se admitirmos que ela se expressava não através de resistência à nova sociedade que se expandia, mas fosse também empregada na obra de trans-formação e utilização do mundo social e natural. É nesse sentido que usei a palavra estratégia”. (p.45). LEVI, 2000/ CERTEAU, 1994.

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É possível propor três questões sobre a orientação pelas tarefas. Pri-meiro, há a interpretação de que é mais humanamente compreensível do que o trabalho de horário marcado. O camponês ou trabalhador parece cuidar do que é uma necessidade. Segundo, na comunidade em que a orientação pelas tarefas é comum parece haver pouca separação entre o “trabalho” e a “vida”. As relações sociais e o trabalho são mis-turados- o dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tarefa- e não há nada grande senso de conflito entre o trabalho e “passar do dia”. Terceiro, aos homens acostumados com o trabalho marcado pelo relógio, essa atitude para com o trabalho parece perdulária e carente de urgência39.

A interpretação de que o tempo orientado por tarefas “é mais humanamente compreensível”, se deve ao fato de que é um tempo norteado por funções e controlado individualmente. No “tempo da natureza” existe uma flexibilidade com o horário dos afazeres diários, diminuta exigência sobre um número de excedentes e a viabilidade da diversificação dos serviços realizados. Essas características nos levam a refletir sobre a elasticidade que essa temporalidade permite no que se refere às modificações que giram ao redor do cotidiano familiar. E mais, a ausência de uma fronteira específica e rígida entre o “trabalho” e a “vida” nos leva a defender a hipótese de que as ações diá-rias não se constituem enquanto obrigação, um compromisso alienado tendo que ser cumprido a qualquer custo pelos trabalhadores locais. Ao contrário, a “vida” assume um caráter simbiótico entre o prazer e as tarefas rurais.

Entre os agregados e camaradas das grandes propriedades rurais norte panta-neiras, foi vislumbrado anteriormente a possibilidade da variação das tarefas cotidia-nas permitidas pelos “senhores” locais mediante a possibilidade da prática da caça, da pesca, da criação de gado em pequena escala, da criação de animais domésticos, da retirada de lenhas para o reabastecimento das embarcações a vapores e outros. Por se tratarem de populações tradicionais e seguindo a linha de raciocínio aludida por Thompson, seria automático e, ao mesmo tempo, reducionista elevarmos a noção de temporalidade dos trabalhadores agrários das fazendas de gado e usinas de açúcar à perspectiva da “natureza”.

Contudo, entendemos que o cotidiano local perpassava por uma complexida-de maior, pois quando nos referimos aos camaradas e agregados que desempenhavam suas funções, conforme ordens dadas pelos grandes proprietários rurais, a situação se modificava. O tempo não estava mais sob controle individual e, sim, sob o domínio de seus “senhores”, cujo “labuta” diária era marcada por uma maratona de obrigações rigi-damente pré-determinadas e vigiadas, sobretudo no que toca a agricultura. Nas usinas, assim era marcado o tempo de trabalho:

39 THOMPSON, E. P., op. cit., p. 271-272.

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Horário de jornada de trabalho diário nos períodos de safra:4: 00 h-Badalavam os sinos:despertar/ - “quebra torto” (café da ma-nhã)40 feito individualmente, em casa do trabalhador.5:00 h- Início dos trabalhos9:00 h- Café com pão: servido a todos os trabalhadores no local do trabalho e oferecido pelo usineiro11:00 h- Almoço- a refeição era feita em casa dos trabalhadores 13:00 h- Recomeçam os trabalhos20:00 h- Término dos trabalhos- no período de plantio e entre-safras23:00 h- Término dos trabalhos por ocasião das safras.41

Siqueira nos revela que as atividades obedeciam a uma regularidade diária mui-to bem estruturada. A disciplina metódica, ordenada, monótona e principalmente re-petitiva, revelando que nessas grandes propriedades do Pantanal Norte não imperava o “tempo da natureza”, mas sim o “tempo industrial” identificado como o tempo do “pro-gresso”, das “máquinas”, que exigiam uma repetição contínua de movimentos, mesmo sendo desenvolvidas em ambiente agrário. “Trabalho” e “diversão” entre os emprega-dos são duas noções bem distintas e separadas, em que a produtividade cronometrada minimizava ao trabalhador a possibilidade de atualizar práticas costumeiras frente a um novo contexto42.

Ainda sobre a jornada de trabalho realizada nas grandes propriedades das usi-nas de açúcar no Pantanal, podemos identificar outro elemento: a utilização do sino, instrumento usado para acordar os trabalhadores rurais, pode ser considerado como um bom artifício no que tange ao controle do tempo e do trabalho, pois “o som era muito mais eficaz que a visão”43, sendo seu efeito satisfatório, pois seu raio de ação não atingia apenas um trabalhador mas a todos, não prescrevendo a presença física de algum patrão.

Contudo, nas fazendas nas quais os trabalhadores rurais tinham suas obriga-ções direcionadas para a “lida” com o gado e com a mata fechada o tempo não era marcado de forma rigorosa. Vejamos um outro trecho do relato do viajante Roosevelt, que nos oferece vestígios sobre o tipo de trabalho desenvolvido nas fazendas:

40 Comida típica local que diz respeito a mistura de arroz, farinha, ovos e carne.41 SIQUEIRA, 1995. /PÓVOAS, 1983. 42 Interessante destacar que nas usinas norte pantaneiras, perante a instalação de máquinas sofis-ticadas havia, além da agricultura, o trabalho rural nas fábricas de açúcar e álcool. Nesse sentido um conhecimento técnico e industrial era exigido entre os chamados operários. A usina de Itaicy, por exemplo, era tida como o símbolo do “progresso”, em virtude sobretudo da energia elétrica fornecida pelo proprietário, fato este não destinado as demais populações mato-grossenses.43 THOMPSON, op. cit. p. 275.

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As seis da manhã, cada um de nós partiu montado num belo animal. O dia estava carrancudo. Trazíamos conosco uma dúzia de cães, porém somente um ou dois eram de valor. Três ou quatro vaqueiros nos acom-panharam; eram homens de sangue indígena, que em outras partes do Brasil se diriam peões ou caboclos, mas que ali eram chamados de “camaradas”. Foram naturalmente escolhidos entre aqueles que en-tendiam de caçadas e cada um trazia uma comprida zagaia, um tanto pesada e rústica44.

Assim, os camaradas tinham uma variedade de atividades nas propriedades que eram cumpridas conforme as ordens dadas pelos seus “senhores”. Poderiam de-dicar-se temporariamente a ações rurais mais específicas, ou diversificá-las ao longo do dia em virtude da necessidade dos proprietários. Um dos principais motivos para o estabelecimento da relação de dependência entre os camaradas e “patrões” se dava em torno da importância econômica dos armazéns, responsáveis pela comercialização de pele de animais entre as grandes propriedades rurais e as embarcações fluviais, nas paragens realizadas nos portos espalhadas ao longo dos rios, responsáveis pelo reabas-tecimento de lenha.

Nesse caso, a caça enquanto prática estava carregada de elementos do “tempo da natureza”, isto é, não seguia uma repetição de ações diárias, mas um caráter opos-to, já que suas atitudes decorriam de acordo com os lugares onde se encontravam os animais, em que eram empreendidas inúmeras estratégias no que toca às variações ambientais, alimentação e reprodução dos “bichos” a serem apanhados. Não havia um horário fixo ditando cada passo a ser trilhado no transcorrer do dia e, principalmente, essa atividade ao ser desenvolvida poderia adquirir um significado de “descontração” e “prazer”.

Contudo, não sejamos ingênuos, pois a caça, entre os camaradas só era permi-tida na medida em que os recursos naturais provindos dessa prática rural fossem nego-ciados com os proprietários das fazendas ou vendidos em suas propriedades. Eram eles, que escolhiam as peles e penas das espécies de animais a serem capturados e que faziam as transações econômicas internamente, ocupando lugar de “intermediários”. Isto é, o controle, revestido com novas ferramentas, estava em fluxo contínuo, demonstrando que mesmo a distância, os “senhores” comandavam as condutas de seus “camaradas”.

Percebe-se então, que a reabertura do comércio com a bacia do Prata provo-cou redimensionamento das atividades rurais desenvolvidas no Pantanal Norte e a consequente mudança do intercâmbio de homens, mulheres e crianças entre si e com a natureza. O mais interessante foi ter uma pequena dimensão do quanto o “tempo mo-derno”, veloz, padronizado e disciplinador, com seus contornos específicos, utilizou-se 44 ROOSEVELT, op. cit., p. 80.

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Revista História e DiversidadeVol. 2, nº. 1 (2013)

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ISSN: 2237-6569 ISSN: 2237-6569

de algumas ferramentas a exemplo do ensino, que localmente inseria as ideias e lógicas liberais entre os trabalhadores rurais e os próprios grupos indígenas no contexto da reabertura fluvial e da política coronelista.

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