Integracao Brasil Argentina

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    AINTEGRAOBRASIL-ARGENTINA.HISTRIADEUMAIDEIANA

    VISODOOUTRO

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    MINISTRIODASRELAESEXTERIORES

    Ministro de Estado Embaixador Celso AmorimSecretrio-Geral Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

    FUNDAOALEXANDREDEGUSMO

    Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo

    INSTITUTORIOBRANCO

    Diretor-Geral Embaixador Georges Lamazire

    AFundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada aoMinistrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaessobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionaise para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 Braslia, DFTelefones: (61) 3411-6033/6034Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.br

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    Braslia, 2010

    ALESSANDROCANDEAS

    A integrao Brasil-Argentina.Histria de uma ideia na

    viso do outro

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    Copyright Fundao Alexandre de GusmoMinistrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco H

    Anexo II, Trreo70170-900 Braslia DFTelefones: (61) 3411-6033/6034Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conformeLei n 10.994, de 14/12/2004.

    Equipe Tcnica:

    Cntia Rejane Sousa Arajo GonalvesErika Silva NascimentoFabio Fonseca RodriguesJlia Lima Thomaz de GodoyJuliana Corra de Freitas

    Programao Visual e Diagramao:Juliana Orem e Maria Loureiro

    Impresso no Brasil 2010

    Capa:Emanoel Arajo, Sem TtuloXilogravura, 105 x 70 cm, 1984.

    C223i Candeas, Alessandro.A integrao Brasil-Argentina: histria de umaideia na viso do outro / Alessandro Candeas. Braslia : FUNAG, 2010.324p. : il.

    ISBN: 978.85.7631.209-3

    1. Relaes internacionais.. 2. Relaes bilaterais-Brasil-Argentina. 3. MERCOSUL. I. Ttulo.

    CDU: 341.76(81:82)

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    Agradecimentos

    Paulo Freire ensina que a aprendizagem no um processo meramentecognitivo, mas, sobretudo, um processo relacional, humano, dialgico. Omesmo ocorre com a elaborao de um trabalho acadmico. As pginas quese seguem, portanto, no so o resultado de simples pesquisa, reflexo e

    anlise, mas, acima de tudo, o resultado da amizade, da generosidade, dapacincia, da solidariedade, dos conselhos e do incentivo de dezenas depessoas familiares, amigos, colegas de profisso, funcionrios.

    Assim, MUITO OBRIGADOA minha esposa, Ana Paula, e a minha filha, Catarina,Ao ex-Ministro Celso Lafer,Ao ex-Ministro Oscar Camilin, ao ex-Vice-Ministro Andrs Cisneros,Aos Embaixadores Pio Corra, Luis Felipe de Seixas Corra, Jos

    Botafogo Gonalves, Augusto Santos Neves, Jeronimo Moscardo, MauroIecker Vieira, Jorge Taunay Filho, Washington Lus Pereira de Souza Neto eEnio Cordeiro,

    A Aldo Ferrer, Amado Cervo, Anbal Jozami, Antonio Henrique LucenaSilva, Ariel Palcios, Alain Berod, Benoni Belli, Carlos Escud, CarlosRaimundi, Deputado Rosinha, Eduardo Madrid, Eduardo Surez, Flix Pea,Fulvio Pompeo, Graciela Romer, Henrique Madeira Garcia Alves, HorcioLenz, Joo Luiz Pereira Pinto, Jorge Castro, Jorge Luiz Dias FilhoChula, Jorge Raventos, Jos Eduardo Lampreia, Jos Flavio Sombra

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    Saraiva, Jos Paradiso, Juan Carlos Iorio, Juan Carlos Mazzn, Juan GabrielTokatlin, Juan Jos Sebrelli, Marcelo Adamo, Mario Granero (in

    memoriam), Mario Rapoport, Mauricio Mazzn, Monica Hirst, Manuel Moray Araujo, Norberto Consani, Orlando Olmos, Oscar Casal, Panelli Csar,Paula Alexim, Paula Montoya, Paulo Roberto de Almeida, Roberto Russell,Rui Samarcos Lra, Sergio Berensztein, Maria Marta Cezar Lopes,

    Aos colegas e funcionrios da Embaixada em Buenos Aires eAos meus alunos da Universidad del Salvador, em Buenos Aires.

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    Sumrio

    Prefcio, 11

    Introduo, 17

    Captulo I. Consideraes tericas, 29

    i. Opes metodolgicas, 29ii. Cordialidade na inteligncia poltica: ethos e tecnologia diplomtica,30iii. O estudo das Relaes Internacionais na Argentina, 37iv. Por uma teoria da integrao, 39v. Constantes da poltica externa argentina, 45

    Captulo II. O Brasil e a integrao como ideias polticas, 51

    i. Percepes do Brasil na sociedade argentina,51ii. Tempos, mitos e vises: excepcionalidade, decadncia e destino,60iii. Entre o europesmo e o americanismo,64iv. O liberalismo,70v. O nacionalismo e o militarismo,74vi. O radicalismo, 80vii. O peronismo, 83

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    viii. A terceira posio e a autonomia heterodoxa, 91ix. O desenvolvimentismo, 99

    x. O menemismo: uma miragem do Primeiro Mundo, 106xi. O realismo perifrico e sua crtica, 112xii. A rivalidade, 121xiii. Cooperao e integrao, 132

    Captulo III. Uma Histria de sntese das relaes bilaterais, 143

    1 Momento: instabilidade estruturali. Com predomnio da rivalidade (1810-1851), 147

    ii. Com predomnio da cooperao (1852-1870), 149iii. Com novo predomnio da rivalidade (1870-1880), 153

    2 Momento: instabilidade conjunturali. Com perodos curtos de cooperao e rivalidade (1880-1915), 155

    Paz e administrao. O fim do contencioso territorial, 155Zeballos. Nacionalismo e armamentismo, 158

    ii. A busca de cooperao, com momentos de rivalidade (1915-1961), 161O ABC e a cordial inteligncia poltica, 161A era Yrigoyen, 166Justo e Vargas, 168A Segunda Guerra, 172A era Pern e o novo ABC, 178A Revolucin Libertadora, 186Frondizi e Uruguaiana, 186A interrupo do esprito de Uruguaiana: os regimes militares, 191

    3 Momento: construo da estabilidade estruturali. Pela cooperao (1979-1988), 202

    O salto qualitativo: Itaipu e os programas nucleares, 202Os acordos Alfonsn-Sarney, 213

    ii. Pela integrao (desde 1988), 218O Tratado de Integrao, 218A era Menem: entre a aliana estratgica e a OTAN, 220Fernando de la Ra e a crise terminal, 226

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    Captulo IV. Brasil e integrao na crise e recuperao da

    Argentina, 229

    i. Duhalde: a Argentina toca o fundo do poo, 229ii. As eleies de 2003, 234iii. A era Kirchner, 236

    Concluses e perspectivas, 257

    Bibliografia, 269

    Glossrio, 301

    Anexos

    I. Ranking da percepo das potncias mundiais , 305II. Percepo sobre protagonismo mundial , 306III. Percepo sobre o lugar da Argentina no mundo, 307IV. Percepo sobre o processo de integrao, 308V. Objetivos da poltica externa argentina, 309VI. Percepo das relaes com o Brasil, 310VII. Relaes bilaterais preferenciais, 310VIII. O Brasil visto como mercado, 312IX. Imagem do Brasil segundo a atitude em relao ao Estado argentino, 312X. Imagem do Brasil segundo a capacidade competitiva do cidadoargentino, 313XI. Imagem do Brasil segundo a imagem de Nstor Kirchner, 313XII. Imagem do Brasil segundo a imagem de Elisa Carri, 314XIII. Imagem do Brasil segundo a imagem de Lopez Murphy, 314XIV. Atributos sociais do brasileiro na viso argentina, 315

    XV. Principais problemas do Brasil na viso argentina, 315XVI. Viso da relao Argentina-Brasil, 316XVII. Preferncias de consumo, 316XVIII. Beneficirios do MERCOSUL, 317XIX. Pases com os quais a Argentina deveria estreitar relaes, 317XX. Investimento estrangeiro na Argentina, 318XXI. Interesses argentinos na cultura brasileira, 319

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    XXII. Conceitos associados ao Brasil, 320XXIII. Se o Brasil vai bem, a Argentina..., 320

    XXIV. Impacto do investimento brasileiro, 321XXV. Relao com outros pases, 322

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    Prefcio

    A relao estratgica com a Argentina certamente a mais intensa, amais profunda e a mais antiga de nossa histria diplomtica.

    Desde os acontecimentos relacionados com o processo de independncia,a relao bilateral transitou por momentos de rivalidade e cooperao que

    so diligentemente estudados nesta dissertao a partir de uma viso histricae conceitual.O momento definitivo de inflexo bastante recente. A partir da dcada

    de 1980, com o abandono definitivo das hipteses de conflito entre os doispases, verifica-se uma intensificao cada vez maior das relaes bilaterais.

    O projeto de integrao bilateral fruto da reconstruo da democracianos dois pases e da criao de confiana a partir da abertura recproca dos

    programas nucleares.Desde ento foi possvel a superao progressiva da lgica da rivalidade

    pela lgica da amizade e da integrao.Na transio dos temas da Bacia do Prata para a agenda do

    MERCOSUL, firmou-se na poltica externa dos dois pases a viso do outroj no como adversrio, mas sim como um scio necessrio e aliado natural.

    O projeto de integrao hoje um patrimnio comum que faz parte daidentidade dos dois pases. Reflete no plano governamental uma deciso

    poltica de aproximao que encontra profundo respaldo nas aspiraescomuns da cidadania.

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    ENIOCORDEIRO

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    A profundidade e o grau de confiana alcanado nas relaes bilateraispermitiram ao Brasil e Argentina projetar uma viso comum de integrao

    regional, que ganhou densidade no mbito do MERCOSUL e da UNASUL.Sem uma viso compartilhada entre o Brasil e Argentina, no seria possvel

    avanar na integrao regional.Num primeiro plano, a integrao regional o ponto de partida para o

    fortalecimento de nossa presena no mundo. Sem articulao de interessesno plano regional necessariamente menor a capacidade de participao ede influncia de qualquer pas no tratamento dos diferentes temas da agendainternacional. Esse o sentido prtico da integrao como instrumento deao internacional.

    Num segundo plano (e talvez ainda mais importante do que no primeiro),todo pas precisa cultivar relaes harmnicas com seus vizinhos. Essa acondio primeira da paz. No mesmo diapaso, Brasil e Argentina precisamcultivar uma viso regional de seu projeto de desenvolvimento econmico esocial.

    Integrar-se organizar a vizinhana em torno de um projeto comum.Trata-se aqui de agregar s relaes bilaterais uma nova dimenso com basenas realidades prprias da vizinhana.

    Isso cria para a poltica externa o mltiplo desafio de atuar simultaneamentena intensificao das relaes bilaterais com todos os pases vizinhos, nofortalecimento do MERCOSUL, na construo da UNASUL, e naarticulao de iniciativas de concertao poltica e de cooperao entre os

    pases da Amrica do Sul, da Amrica Central e do Caribe.As idias-fora do processo de integrao sul-americana so: i) promoo

    do dilogo e concertao poltica como instrumento para a soluo deconflitos e para assegurar a estabilidade institucional e democrtica; ii)integrao econmica e comercial para a promoo de prosperidade comum;iii) integrao da infra-estrutura fsica de transportes, energia e comunicaes;iv) integrao cidad, para promover maior aproximao cultural, liberdade

    de circulao e a construo progressiva de uma verdadeira cidadania sul-americana; e v) integrao fronteiria, que apie a transformao das zonasde fronteira em plos de desenvolvimento e aproximao.

    Em todos esses campos cabe destacar a centralidade da relao Brasil-Argentina. Na perspectiva dos dois pases, o entendimento bilateral o eixocentral a partir do qual se projetam, em crculos concntricos, os demaismbitos de articulao regional.

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    PREFCIO

    No plano multilateral, Brasil e Argentina alcanaram, nas ltimas dcadas,uma ampla convergncia de posies no tratamento dos temas da agenda

    internacional, como o fortalecimento das Naes Unidas e das instituiesmultilaterais, a promoo dos valores democrticos e dos direitos humanos,e a defesa do meio ambiente. Os dois pases atuam conjuntamente no mbitodo G-20 financeiro e do G-20 comercial na busca de uma regulao maiseficaz das transaes financeiras internacionais e de um regime mais justo eequilibrado no comrcio internacional.

    H posies divergentes, que apesar de estarem sempre presentes nochegam a turvar a relao bilateral. A diferena mais visvel, no plano poltico,diz respeito reforma do Conselho de Segurana. No momento em que a

    reforma seja possvel, Brasil e Argentina tero de encaminhar adequadamenteessa diferena. Outro tema est ligado disposio argentina de aceitar controlesmais intrusivos em matria de no-proliferao. H, no entanto, um canal dedilogo que assegura o respeito necessidade de atuao conjunta nessa matria.

    Nas negociaes comerciais da OMC, as diferenas episdicas estorelacionadas com uma posio mais defensiva da Argentina em bens industriais.

    No plano bilateral, as relaes Brasil-Argentina encontram-se no seumelhor momento.

    H uma perfeita fluidez de dilogo em todas as reas, com reuniesfreqentes em nvel presidencial e ministerial, que asseguram acompanhamentoadequado e impulso poltico aos grandes projetos de cooperao bilateral.

    Os dois pases construram uma slida aliana estratgica e as dificuldadespontuais, de natureza estritamente comercial, refletem a prpria intensidadedo relacionamento. Numa aliana estratgica, as diferenas so tratadas comnaturalidade. O importante que encontrem canal institucional para seremresolvidas. Muito mais do que a fotografia de qualquer momento especfico,o que importa o quadro mais amplo dos interesses de longo prazo.

    O Brasil e a Argentina estabeleceram importantes projetos de cooperaoem setores estratgicos, incluindo a rea nuclear (projeto de reator de pesquisa,

    combustveis, empresa binacional, radiofrmacos), espacial (satlite deobservao costeira e ocenica), biotecnologia, nanotecnologia, farmacopia,indstria aeronutica, indstria naval, indstria de defesa, infra-estrutura (novas

    pontes, integrao ferroviria), integrao energtica (suprimento recprocoe aproveitamento hidreltrico binacional), comunicaes e TV digital,integrao cidad, livre circulao e facilitao de residncia, integraofinanceira e pagamentos em moeda nacional.

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    Ressalta no quadro das relaes bilaterais a importncia recproca eprofundidade da parceria econmica. O setor privado estabeleceu uma densa

    rede de negcios entre os dois pases, o que permite seguramente afirmarque h muito mais integrao entre as duas economias do que normalmentetransparece.

    Os investimentos de empresas brasileiras na economia argentina jtotalizam (2010) um valor acumulado de mais de US$ 9,5 bilhes em setoresque vo desde a explorao, transporte e distribuio de petrleo e gs, construo civil, produo de cimento, indstria txtil, frigorficos, indstriade alimentos, explorao de minrios, setor automotivo, bancos, transporteareo, logstica, cosmticos e informtica. Empreiteiras brasileiras vm

    ocupando espao crescente nas obras de infra-estrutura com o benefcio definanciamentos do BNDES.Por sua vez, os investimentos de empresas argentinas na economia

    brasileira alcanaram um total de US$ 3,5 bilhes em setores que incluem asiderurgia, indstria de alimentos, agronegcio, energia, indstria alimentcia,e construo.

    O comrcio bilateral cresceu de US$ 7 bilhes em 2002 para quase US$31 bilhes em 2008 (4,5 vezes em 6 anos). Cabe ressaltar a qualidade ediversificao desse intercmbio, cujo crescimento alimentado pela maiordemanda de bens de consumo e bens de capital nos dois pases. A Argentinaimporta do Brasil um tero de suas importaes. No sentido inverso, a Argentinaexporta para o Brasil um quinto de todas as suas exportaes. Os produtosmanufaturados constituem 95% das exportaes do Brasil para a Argentina e75% das exportaes da Argentina para o Brasil. O setor automotivo representaum tero do intercmbio bilateral. O Brasil tem absorvido, nos ltimos anos,60% da produo de automveis na Argentina. Em 2009, de cada 10 veculosexportados pela Argentina, 9 destinaram-se ao mercado brasileiro.

    Em 2009 o comrcio bilateral sofreu impacto adverso da criseinternacional e caiu cerca de 24% em conseqncia de uma reduo da

    produo e demanda nos dois pases e da adoo de medidas restritivascomo a imposio de licenas no-automticas de importao. Os primeirosmeses de 2010 apontam, no entanto, para uma recuperao anualizada daordem de 60%, o que permite supor que ser superado neste ano o valor dointercmbio alcanado antes da crise.

    Esse o quadro geral em que se desenvolvem atualmente as relaesbilaterais.

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    PREFCIO

    A construo progressiva dessa parceria estratgica, fundamental paraos interesses dos dois pases, assim como as vicissitudes e tropeos de

    percurso ao longo de dois sculos de histria, so o material de estudo destadissertao em que o autor colocou todo o esforo de sua aplicada dilignciaintelectual. Antecipo a todos o prazer de sua leitura.

    (Enio Cordeiro)Embaixador

    Buenos Aires, 12 de abril de 2010.

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    Este livro pretende contribuir para uma poltica externa de integraocomo construo poltica, ideolgica e histrica. Seu objeto a anlise darelao Brasil-Argentina numa perspectiva de integrao, tendo em mente aforma como os interesses nacionais do principal scio de nosso Pas foram

    moldados por sua mentalidade poltica e sua Histria. No momento em que celebrado o Bicentenrio argentino, seu objetivo reafirmar a relevncia doaprofundamento do estudo da relao bilateral, nos diversos nveis e camposacadmicos, com o parceiro estratgico do Brasil.

    lugar comum afirmar que as relaes Brasil-Argentina foram errticas.A real dimenso das convergncias e divergncias , contudo, menos evidentenuma viso histrica de longo prazo. Um exame objetivo dos ciclos de avanose recuos, conforme esquematizado no grfico da pgina 19, demonstra queos laos bilaterais alcanaram desde a dcada de 1980 patamares superioresde estabilidade no mbito da diretriz de integrao, fazendo com que asvariaes conjunturais poltico-econmicas exeram impacto mais reduzidona estrutura da relao. Alm disso, desde a dcada de 1990, orelacionamento sofre as tenses naturais de uma transio entrecomportamentos de cooperao e de integrao em outras palavras, entreo esquema clssico intergovernamental, com maior autonomia, e ocompromisso de profunda interao poltica, econmica e cultural que envolve,alm dos governos, atores da sociedade civil.

    Introduo

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    A dissertao parte de uma constatao e est estruturada sobre umahiptese normativa e uma hiptese explicativa, que por sua vez se orientam

    em direo a uma proposta.A constatao parte da perspectiva argentina a viso do outro e

    assinala que a diplomacia desse pas frequentemente percebida como errticae incongruente1. Isto se explicaem grande parte pelo fato de que o Estadoargentino no goza de adequada autonomia em relao s elites polticas e

    patrimoniais, o que gera uma poltica externa profundamente influenciada porfatores internos de poder, dificultando a afirmao de interesses nacionais ediretrizes estratgicas permanentes.

    A poltica externa argentina muitas vezes projeo seno refm da

    poltica interna2

    . A ao determinada pela Casa Rosada e pelo San Martn altamente permevel a injunes poltico-partidrias e a influncias setoriais econjunturais amplificadas pela imprensa. Como resultado, sua diplomaciatrafega entre dependncia e autonomia, principismo e pragmatismo,sobreatuao e isolacionismo, veleidades de liderana e alinhamentos carnaisseguidos de desalinhamentos. Analistas argentinos assinalam o contrastecom a estabilidade da diplomacia brasileira, sua coerncia estratgica e o

    papel central do Itamaraty em sua elaborao e execuo.Em um contexto de frequentes injunes polticas, que dificultam a

    formao de amplo consenso em torno de interesses nacionais de longo prazo,a diplomacia argentina se apresenta muitas vezes como poltica de Governo,e no como poltica de Estado.

    1Analistas crticos da poltica externa argentina a qualificam de forma depreciativacomo esquizofrnica, idealista, displicente, inconsistente, errtica,improvisada, sem interesses nacionais claros.PREZ LLANA, Carlos.Reinsercinargentina en el mundo. Entre la poltica exterior esquizofrnica y la poltica exteriorindependiente. Buenos Aires, El Cid Editor, 1983. MUOZ, Heraldo, e TULCHIN,Joseph. Entre la autonoma y la subordinacin: pol ti cas ex teriores de los paseslatino-americanos. Buenos Aires, GEL, 1984. ESCUD, Carlos.Real ismo peri fri co .Buenos Aires, Planeta Poltica y Sociedad, 1992. PARADISO, Jos. De ba tes ytrayectoria de la poltica exterior argentina. Buenos Aires, Grupo Editor Latino-americano, 1993. Outros autores c rticos so mencionados ao longo do livro.2 Jos Paradiso assinala que as relaes entre poltica interna e externa constituemcaptulo pouco desenvolvido nas relaes internacionais. A exceo a vertente analticaque examina a relao entre o tipo de regime poltico interno e o comportamentoexterno de confrontao ou cooperao, ou a relao entre estruturas polticas eprocessos dec isrios. Em ambos os casos, no se penetra na complexidade da polt icainterna. PARADISO, Jos. Brasil-Argentina: as complexas vias da convergncia. InGUIMARES, Samuel Pinheiro e LLADS, Jos Maria (orgs.).Perspect ivas Brasil eArgent ina. Braslia, IPRI/FUNAG, 2000, vol. 1, p. 138.

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    Justamente por isso de grande relevncia o fato de que desde osanos 1980 a relao com o Brasil se inscreve cada vez mais na categoria

    de poltica de Estado, integrando interesses nacionais argentinospermanentes, como resultado de sua reafirmao por sucessivas polticasde Governos (Alfonsn, Menem, De la Ra, Duhalde, Kirchner). Emcontraste com as diversas rupturas entre os citados governos e seusantecessores, a integrao com o Brasil se manteve como elemento decontinuidade um dos raros pontos consensuais da agenda diplomticaargentina , o que confere relao bilateral um perfil cada vez maisestrutural.

    Esse ltimo aspecto da constatao conduz a uma hiptese normativa.

    Juan Carlos Puig nota que h uma coerncia estrutural por trs aincongruncia epidrmica da poltica externa argentina3. Investigar aexistncia de uma coerncia estrutural na relao Brasil-Argentina implicacomparar os momentos de avanos e recuos, com base numa visohistrica de tempo longo. o que se pretende com grfico da pginaanterior.

    O grfico demonstra que as aproximaes tiveram poucasustentabilidade at os anos 1970 perpassando regimes to diversos comoos de Urquiza, Mitre, Roca, Senz Pea, Justo, Pern e Frondizi , mas seintensificaram desde 1979 passando igualmente por governos todspares como os de Videla, Alfonsn, Menem, De la Ra, Duhalde eKirchner. At a dcada de 1980 os picos de bom relacionamentocorrespondem assinatura dos Tratados da Trplice Aliana (1865) e deLimites (1898), da Declarao de Uruguaiana (1961) e do AcordoTripartite (1979). A partir deste ltimo, a estrutura do relacionamentoalcana um patamar estvel de cooperao, que se eleva em 1988 para onvel da integrao. As oscilaes na relao bilateral continuamocorrendo, mas em um delta cada vez mais reduzido, no se verificandoas bruscas variaes e rupturas que marcaram os perodos anteriores.

    Os vales registrados desde a desvalorizao do Real, em 1999, at oBrazil bashing da gesto Cavallo em 2001 no desceram o nvel darelao para um patamar inferior ao alcanado em 1979; tampouco os

    3 PUIG, Juan Carlos. La poltica exterior argentina: incongruencia epidrmica ycoherencia estructural. In PUIG, Juan Carlos (comp.). Am r ica La ti na: po l ti ca sexteriores comparadas. Buenos Aires, GEL, 1984.

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    INTRODUO

    atritos econmicos das gestes dos Presidentes Nestor e Cristina Kirchnerreduziram a relao ao patamar anterior crise de 2001.

    possvel, portanto, afirmar que houve mudana na natureza dorelacionamento bilateral. Os laos nasceram com uma carga gentica decontraposio (Seixas Corra) herdada do perodo colonial, que imprime relao uma instabilidade estrutural no sculo XIX, passaram pelas fases deinstabilidade conjuntural com momentos de rivalidade ou cooperao,ingressaram em uma etapa de construo da estabilidade estrutural pelacooperao e, no sculo XXI, avanam rumo estabilidade estrutural pelaintegrao.

    Nesse percurso, a diplomacia brasileira se orientou por atitudes de rivalidade

    estratgica durante a instabilidade estrutural (sculo XIX); de oscilao entrecordialidade e obstruo, durante os momentos de instabilidade conjunturalcom cooperao e rivalidade (por sete dcadas no sculo XX); de predomnioda obstruo e ttica defait accomplina dcada de 1970; e de cooperaoaprofundada tendente integrao desde a dcada de 1980. Em sntese, atrajetria das relaes Brasil-Argentina vai da rivalidade estratgica integrao,

    passando pelas etapas de cordialidade, obstruo e cooperao4.A hiptese normativa a de que a relao Brasil-Argentina caminha em

    direo a uma estabilidade estrutural de longo prazo em um patamar elevadona forma de integrao (estado mais avanado que a cooperao ou suavariante, a aliana estratgica). A construo dessa estabilidade constituia coerncia estrutural do relacionamento embora no siga um cursolinear , independentemente do regime poltico (democracia, ditadura) ouda conjuntura econmica (inflao, estabilidade, crescimento, crise).

    A Histria destaca pelo menos dez momentos de aproximao entre oBrasil e a Argentina ps-Caseros (1852):

    4Amado Cervo identifica quatro paradigmas na relao bilateral: i) a rivalidade, teorizadapor Miguel ngel Scenna, com nfase no controle do Esturio do Prata; ii ) cooperao

    e conflito, com nfase na continuidade histrica (bicentenria) da parceria comercial,na aliana poltica, no paralelismo dos projetos de desenvolvimento e na conscinciada convivncia necessria; iii) relaes cclicas, que obedecem s injunes dosmovimentos de opinio pblica, das intervenes pessoais de estadistas e dasinterferncias das potncias centrais; e iv) relaes em eixo, teorizadas por MonizBandeira, Samuel Pinheiro Guimares, Seixas Corra e Mario Rapoport. CERVO ,Amado Luiz. Os paradigmas das relaes Brasil-Argentina no contexto da Amrica doSul. In PRESIDNCIA DA REPBLICA.Reunio de Estudos: Brasi l-Argentina: umarelao estratgica. Braslia, Gabinete de Segurana Institucional, Secretaria deAcompanhamento e Estudos Institucionais, 2006, pp. 38 a 43.

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    i) o Tratado da Trplice Aliana (1865);ii) a assinatura do Tratado de Limites e as visitas Presidenciais Roca-

    Salles (1898-1900);iii) a visita do Presidente Senz Pea e a construo da cordial inteligncia

    poltica articulada pelo Baro do Rio Branco, que conduziu ao Tratado doABC (1910-1915);

    iv) as visitas dos Presidentes Vargas-Justo (1933 e 1935), os acordosassinados e a concertao em torno das iniciativas de paz (Guerra do Chaco,Pacto Antiblico);

    v) a tentativa de reedio do ABC por Pern (1953);vi) os Acordos de Uruguaiana firmados por Jnio Quadros e Frondizi

    (1961);vii) o Acordo Tripartite (Itaipu e Corpus) e os Acordos sobre TemasNucleares (1979 e 1980);

    viii) os Acordos de Iguau celebrados entre Sarney e Alfonsn, o PICEe o Tratado de Integrao (1985-1988);

    ix) o Mercosul liderado pelos Presidentes Collor de Mello, FernandoHenrique Cardoso e Carlos Menem (1991-1999); e

    x) o atual momento de consolidao poltica, econmica e institucionalda relao bilateral e do MERCOSUL liderado pelos Presidentes Lula e

    Nstor e Cristina Kirchner (desde 2003).

    Durante mais de um sculo e meio as adversidades neutralizaramos impulsos de aproximao Brasil-Argentina: os momentos decooperao tiveram bases polticas e econmicas frgeis at a dcadade 1970, fazendo com que as foras de aproximao fossem vencidas

    pelos impulsos de afastamento. Somente a partir dos acordos de 1979-1980 inverte-se a tendncia, as foras centrfugas passando a serneutralizadas pelo fortalecimento dos laos bilaterais.

    A diretriz de integrao evidenciada pelo fato de ter-se mantido e

    aprofundado nos ltimos vinte anos ao longo de governos argentinos de perfilde centro-direita e centro-esquerda, populistas e ortodoxos, durante criseseconmico-institucionais e momentos de reconstruo nacional, golpeada por

    perodos de hiperinflao, crescimento, estagnao e depresso, bruscasvariaes cambiais e crises em mercados emergentes, contra os panos defundo da Guerra Fria, do ps-Guerra Fria e da globalizao. Se o interessemtuo na integrao no fosse poderoso e relativamente autnomo, o contnuo

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    INTRODUO

    aprofundamento da relao bilateral no teria sobrevivido a tantas injunese turbulncias.

    Mais que isso: a convergncia poltica e a abertura comercialultrapassaram a dimenso bilateral e se irradiaram para o plano regional,fundando o ncleo do MERCOSUL e um dos eixos centrais daUNASUL, consolidando um espao de estabilidade estratgica naAmrica do Sul e de interlocuo de peso nas negociaes multilaterais.

    A hiptese explicativasustenta que a relao bilateral pertence a umacategoria autnoma e possui dinmica prpria, que resulta de dois fatores: i)o desequilbrio de poder relativo entre Brasil e Argentina; e ii) a utilidade dorelacionamento para a consecuo dos objetivos individuais da poltica externa

    de cada pas.Essa hiptese presume que a relao Brasil-Argentina est sempre diantede dois caminhos: a busca da conteno ou do reequilbrio com atenuaodas assimetrias (jogo de soma zero) ou a construo de poder compartilhado(soma positiva).

    Por um lado, historicamente, diante das desconfianas geradas pelaassimetria bilateral, ambos os pases buscaram envolver terceiros parareequilibrar o diferencial de poder: Gr-Bretanha, Uruguai, Paraguai, Chile,Estados Unidos, Mxico, Venezuela.

    Por outro, em termos realistas clssicos, a soma dos recursos depoder de ambos os pases representa cerca de dois teros do territrio,do PIB e da populao da Amrica do Sul. A construo de poder

    pode se dar em dois nveis de densidade poltica e econmica:cooperao e integrao. A aliana estratgica, variante dacooperao, qualifica a relevncia de laos que o Brasil mantm nosomente com a Argentina, mas tambm com Estados Unidos, China,Venezuela e Unio Europeia. J com alguns outros a relao adjetivadade parceria estratgica: Alemanha, Espanha, Frana, ndia, Itlia, Peru,Portugal, Reino Unido e Rssia.

    Este livro prope uma construo poltica da integrao, que requer umadiplomacia conceitual, metodolgica e qualitativamente diferenciada dadiplomacia da cooperao.

    Para a anlise mais objetiva da cultura poltica argentina, sero empregadaspesquisas de opinio pblica, instrumento que mereceria ser cada vez maisutilizado na anlise poltico-diplomtica, sobretudo em processos deintegrao. Nessa perspectiva, sero analisados os resultados de pesquisas

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    feitas pelo CARI junto a lderes e populao em geral em 1998, 2002 e2006 momentos de declnio, crise e recuperao sobre La opinin

    pblica argentina sobre poltica exterior y defensa5. Os grficos e tabelasencontram-se no Anexo.

    Nos ltimos oito anos, as crises econmicas e polticas modificaramsignificativamente, na opinio pblica e nos lderes, a percepo deimportncia da Argentina no mundo. Em 1998, prevalecia a opinio deuma importncia mdia do pas (45 % da populao e 61 % dos lderes);em 2002, no auge da crise, a impresso de importncia baixa era majoritria(69 % da populao e 55 % dos lderes); j em 2006, a impresso deimportncia alta majoritria (66 % da populao e 52 % dos lderes).

    Praticamente o mesmo percentual oscilou de baixo para alto nos ltimosquatro anos, o que demonstra a volatilidade da opinio pblica em relao imagem externa do pas e a imediata relao entre esta e o contexto poltico-econmico interno6. A populao (66 %) e os lderes (52 %) acreditam que,nos prximos dez anos, ser elevada a importncia do pas.

    A poltica externa argentina, ao contrrio do que explica a escola realista,responde mais s vicissitudes do sistema poltico-ideolgico interno do queaos recursos clssicos de poder territrio, populao, dotao de recursosnaturais e humanos, desenvolvimento industrial e tecnolgico e capacidademilitar. O lugar argentino no mundo, na viso da elite e da populao, pareceestar sempre muito alm ou muito aqum do que lhe permitem os recursos dehard power. Disto decorrem erros de avaliao, sobrevalorizao dosatributos de poder e prestgio e atitudes de autonomia ou isolamentoinsustentveis. A associao com o Brasil, por outro lado, por seu estilo e

    savoir faire diplomtico, pode contribuir para que a Argentina tenha uma

    5CARI Consejo Argentino para las Relaciones Internacionales.La opinin pbli caargentina sobre poltica exterior y defensa. Buenos Aires, 1998, 2002 e 2006. Assondagens foram realizadas pelo Centro de Estudios Nueva Mayora, dirigido por

    Rosendo Fraga. Os lderes de opinio, nessa pesquisa, so personalidades que, porsua posio institucional e/ou representatividade, participam em processos decisriosde carter poltico, econmico e social e podem ser escutados e vistos por umavasta audincia acadmicos, administradores, dirigentes polticos, eclesisticos,empresrios, militares, jornalistas e sindicalistas (Idem, 2002, p. 12).6A percepo de importncia do pas varia de maneira significativa entre segmentosideolgicos e etrios. Os lderes de centro so mais otimistas, ao contrrio dos daesquerda e da direita, que opinam de forma neutra ou negativa. A populao entre 18e 55 anos e os eleitores de esquerda so mais otimistas, ao passo que os de ma is de 55anos opinam que o pas cada vez menos importante. Idem , 2006, pp. 35 e 36.

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    INTRODUO

    viso mais concreta de suas efetivas potencialidades e ajuste sua ao externaaos reais elementos de poder.

    Quanto aos objetivos da poltica exterior argentina, a hierarquizao dasmetas responde a dois posicionamentos: de um lado, os que consideram quea diplomacia constitui instrumento para maximizar o poder nacional, reduziras assimetrias e ampliar os espaos de autonomia; de outro, os que sublinhamque a poltica externa deve maximizar o bem-estar da populao. Tanto a

    populao quanto os lderes aderem, hoje, a essa segunda posio: o bem-estar deve preceder autonomia e ao prestgio poltico. relevante que a

    partir dessa viso destacam-se como prioridades (nessa ordem) o comrciointernacional e a integrao regional7. Direita, centro e esquerda convergem

    nessas duas prioridades importante novidade em relao tradicional faltade consensos.Os lderes de opinio destacaram a integrao como a maior prioridade

    at 2002, passando ao segundo lugar em 2006; de sua parte, a populaoelevou a integrao ao primeiro lugar no auge da crise, em 2002.

    No que tange ao MERCOSUL8, crescente o apoio da opinio pblica participao da Argentina (76 % em 1998, 77 % em plena crise de 2002 e86 % em 2006). tambm quase unnime o apoio dos lderes de opinio(98 % em 1998, pequena queda durante a crise 90 % em 2002 erecuperao em 2006 91 %).

    Vale ressaltar aspecto interessante: a viso positiva do MERCOSUL semantm apesar de que tanto lderes quanto a populao geral consideremque o Brasil foi o pas mais beneficiado pela Unio Aduaneira e apesar doreconhecimento das dificuldades do processo de integrao, tendo em vistaas elevadas expectativas de dilogo e cooperao9. Uma das provas doingresso na etapa de integrao o continuado pertencimento ao bloco,apesar da percepo de que os benefcios ficam aqum dos ganhos efetivos.

    No plano das relaes bilaterais, as preferncias respondem a critriosde geografia (Brasil), histria (Europa) e poder (Estados Unidos)10. Invertem-

    se os desejos entre populao e lderes em torno de que relaes devem ser

    7Idem,pp. 36 e 37.8Idem , p. 31. A percepo de maior integrao majoritria na populao geral (54 %)e entre os lderes (60%), com maior apoio entre os setores de centro e de esquerda e osegmento de 30 a 42 anos.9Idem , p. 32.10Idem , p. 42.

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    privilegiadas: a opinio pblica prefere, nessa ordem, Europa (27 %), Brasil(18 %) e Estados Unidos (9 %), ao passo que os lderes optam por Estados

    Unidos (19 %), Brasil (17 %) e Europa (16 %).Observa-se outro consenso: o Brasil se mantm na segunda posio

    nas preferncias tanto de lderes quanto da opinio pblica. Dois dadoschamam ateno: i) a queda do desejo de associao da populaocom nosso Pas na crise de 2002 e sua rpida recuperao em 2006,a opo pelo Brasil (18 %) quase idntica ao perodo anterior desvalorizao do Real (19 % em 1998); ii) a queda da opo peloBrasil entre os lderes de opinio. Reverter essa queda deve ser um dosalvos da inteligncia poltica.

    Tanto lderes (59 %) quanto a populao (30 %) acreditam que o Brasilser o pas da regio com maior protagonismo internacional. A avaliao doestado das relaes bilaterais positiva junto aos lderes (52%) e populao(60 %). O Presidente Lula o lder mundial com imagem mais positiva junto opinio pblica argentina (66 %); para os lderes de opinio, o PresidenteLula se situa em terceiro lugar (72 %).

    Outras pesquisas de opinio sero apresentadas e analisadas no captulo II.Neste livro, a relao bilateral e a construo da integrao sero

    problematizadas a partir de trs matrizes: ideolgica, histrica e poltica. Taismatrizes constituem trs nveis de anlise e formaro os trs captulos.

    Antes de adentrar no exame da relao bilateral propriamente dita, oprimeiro captulo apresenta, de forma sucinta, as consideraes tericas queorientaram a anlise do objeto.

    O segundo captulo investiga de forma sinttica a matriz ideolgica (emseu conceito elementar, definido como conjunto ou acervo de ideias) paranela analisar o lugar do Brasil e da integrao na histria das ideias polticasda Argentina.

    No terceiro captulo, a matriz histrica constitui a base emprica dapesquisa: investigam-se de forma sinttica dois sculos de relao bilateral,

    articulando-se conceitos de estabilidade e instabilidade, estrutural econjuntural, rivalidade, cooperao e integrao.

    O quarto captulo, tambm de corte emprico, aplica a matriz polticaao momento de crise e refundao da Argentina durante as gestes dosPresidentes Eduardo Duhalde, Nstor e Cristina Kirchner. Ser dadaateno particular disputa presidencial de 2003, quando a sociedade,diante de projetos distintos de pas (propostos por Kirchner, Menem,

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    INTRODUO

    Rodrguez Sa, Lpez Murphy e Elisa Carri), optou peloneodesenvolvimentismo apoiado na integrao regional um projeto

    politicamente sustentado pelo peronismo nacional-popular de centro-esquerda.

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    Captulo I - Consideraes tericas

    i. Opes metodolgicas

    Este livro se baseia em trs opes de mtodo: a anlise da relaobilateral por meio da viso do outro; o estudo da cultura poltica por meio

    da histria das ideias; e a perspectiva histrico-estrutural de longo prazo.A anlise brasileira da poltica externa argentina tem sidotradicionalmente feita a partir de trs perspectivas: i) bilateral, desde o pontode vista do Brasil; ii) triangular Brasil-Argentina-Estados Unidos, com nfasenas interferncias da potncia hegemnica; e iii) historiografia comparadaBrasil-Argentina.

    Sem perder de vista tais perspectivas, esta dissertao trilha um caminhodistinto: a viso do outro11(a Argentina). A tomada de conscincia daviso do outro constitui elemento defeedback til para avaliar a aodiplomtica e apontar caminhos no evidentes em uma poltica externaautoreferenciada, formulada sem contrapontos e unicamente baseada naauto-percepo.

    11 Inspirada na linha dos seminrios organizados entre 1997 e 1999 pela FUNAG epe la FU NCE B, apr of und a-se a pe rspe cti va de alte ri dade a part ir do qu adr o dereferncias composto por ideias e percepes da sociedade poltica argentina. Essaopo metodolgica exigiu privilegiar, na bibliografia, autores argentinos. FUNAG.Aviso do outro: seminrio Brasil-Argentina. Braslia, FUNAG, 2000.

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    O estudo da cultura poltica por meio da histria das ideias empregado,aqui, como forma de penetrar na viso do outro. Essa modalidade ser

    desenvolvida no captulo II.A perspectiva histrico-estrutural de longo prazo se prope a ir mais

    alm, no plano analtico, do que permite a histoire vnementielle oficial(contra a qual se insurge aEcole des Annales) que predomina em nossahistria diplomtica. Essa anlise de tempo longo, desenvolvida no captuloIII, tem como objetivo investigar tendncias e constantes que no emergemde uma pesquisa limitada do ponto de vista histrico-temporal, concentradaem governos especficos, ou na discusso de temas da agenda bilateral. Seuma anlise de curto prazo pode deixar perplexo o observador, que

    naturalmente tender a qualificar de errtica ou incongruente o perfil darelao bilateral, em especial da ao argentina, a viso de longo prazo traz luz padres lgicos no perceptveis ao observador que limita no tempo ouna agenda um objeto profundamente cambiante.

    ii. Cordialidade na inteligncia poltica: ethos e tecnologiadiplomtica

    A Diplomacia no se baseia apenas nos recursos de poder ou nosinteresses racionais do Estado, segundo prope a tradio realista. Tantorecursos de poder quando interesses so interpretados e definidos a partirdo quadro de referncias culturais.

    A Diplomacia constitui uma das expresses do ethosde um povo. Nessaperspectiva, de um lado, a cultura nacional torna a realidade mundial inteligvelao formulador e executor da poltica externa e orienta a ao do seu pas nocenrio mundial, com base em suas necessidades e expectativas. De outro,cada cultura define um estilo prprio de sociabilidade internacional e deatuao junto aos demais atores mundiais. A sociabilidade grociana seexpressa de maneira especfica em cada nao ou grupo de naes que

    partilham razes identitrias comuns.Ao contrrio das regras e prticas impessoais do Estado burocrtico

    moderno teorizado por Max Weber, a diplomacia uma poltica de Estadomarcada por forte subjetividade. Nesse sentido, se a passagem do plano

    particular para o pblico na formao do Estado deve ser feita em prejuzode valores personalistas (Sergio Buarque de Holanda assinala que hdescontinuidade e at oposio na passagem do crculo familiar ao do

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    CONSIDERAESTERICAS

    Estado12), a poltica externa de um pas recupera e projeta no cenriointernacional valores vigentes nos planos da famlia e de modalidades

    comunitrias de relaes sociais. Do patamar do Estado para o cenriointernacional, rompe-se com a impessoalidade burocrtica, e se retomamvalores comunitrios e da intimidade familiar de um povo.

    Uma das caractersticas tradicionais da diplomacia brasileira, inscrita econsagrada no Tratado de Cordial Inteligncia Poltica idealizado pelo Barodo Rio Branco entre Argentina, Brasil e Chile (ABC), deriva em linha diretade um dos principais traos que conformam o ethosbrasileiro: a cordialidade.

    Nas palavras de Sergio Buarque de Holanda,

    J se disse, numa expresso feliz, que a contribuio brasileira paraa civilizao ser de cordialidade daremos ao mundo o homemcordial. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudesto gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito,um trao definitivo do carter brasileiro, na medida, ao menos, emque permanece ativa e fecunda a influncia ancestral dos padresde convvio humano, informados no meio rural e patriarcal13.

    Por outro lado, este livro no adota a interpretao negativa de SergioBuarque do conceito ambguo de homem cordial, que, segundo este, iludena aparncia, mas o sentido original dado por Ribeiro Couto: a cordialidadecomo trao de uma civilizao miscigenada tnica e culturalmente14.

    12HOLANDA, Srgio Buarque de.Razes do Brasi l. So Paulo, Companhia das Letras,1998, p. 141.13Idem, p. 146 e Nota.14A expresso foi cunhada por Ribeiro Couto em ca rta dirigida a Alfonso Reyes em1931, na qual enuncia o homem cordial como uma raa nova, produto da fu sodo homem ibrico com a terra nova e as raas primitivas, que gera um sent imentoamericano (latino). A interpretao feita por Sergio Buarque negativa, em sua crtica acepo dada por Cassiano Ricardo a de um capital sentimento dos brasileiros,

    uma certa tcnica da bondade, uma bondade mais envolvente, mais poltica, maisassimiladora. Sergio Buarque alerta que a palavra cordial h de s er tomada, nestecaso, em seu sentido exato e estritamente etimolgico, que remete ao corao (cor,cordis); nesse sentido, homem cordial no sinnimo de bom e gentil, mas o que agemovido pelos afetos e pela emoo, no pela razo. Assim, nota Buarque, a inimizadebem pode ser to cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do corao(...), da esfera do ntimo, do f amiliar, do privado. E acrescenta: Seria engano suporque essas virtudes possam significar boas maneiras, c ivilidade. So antes de tudoexpresses legtimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Nacivilidade h qualquer coisa de coercitivo ela pode exprimir-se em mandamentos e

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    Nessa perspectiva, se o brasileiro um homem cordial, se a principalcontribuio do Pas para a civilizao a cordialidade e se a diplomacia reflete

    o ethosde um povo, possvel afirmar que a cordialidade brasileira constituia projeo externa de um trao identitrio nacional. A cordialidade dadiplomacia brasileira contm um sentimento de solidariedade o que explica elegitima, para alm da geografia, dos investimentos e dos interesses comerciais,o desejo de aprofundar as relaes com a frica e a Amrica Latina.

    Essa cordialidade, que lana razes em valores familiares e de crculosde amizade presentes na cultura nacional e que, como dito acima, fica emsuspenso (com as conhecidas dificuldades) quando se passa do plano familiar

    para o do Estado burocrtico weberiano, volta a se manifestar no plano das

    relaes externas. Trata-se, tambm, de elemento basilar da intelignciapoltica da diplomacia brasileira15.

    em sentenas. Nenhum povo est mais distante dessa noo ritual ista da vida do queo brasileiro. Nossa forma ordinria de convvio social , no fundo, o contrrio dapolidez. Ela pode il udir na aparncia e is so expl ica pelo fa to de a at it ude polidaconsistir precisamente uma espcie de mmica deliberada de manifestaes que soespontneas do homem cordial: a forma natural e viva que se converteu emfrmu la . Al m di ss o a po li dez , de al gum modo , or gani zao de de fe sa an te asociedade. Detm-se na parte ex terior, epidrmica do indivduo, podendo mesmo servir,quando necessrio, de pea de resistncia. Equivale a um disfarce que permitir acada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoes. Por meio de semelhante

    padronizao das f ormas ext er iores da cordial idade, que no prec isam ser l egt imaspara se mani festarem, revela-se um deci sivo tr iunfo do espr it o sobre a vida. Armadodessa mscara, o indivduo consegue manter sua supremacia ante o social. E,efetivamente, a polidez implica uma presena contnua e soberana do indivduo. Nohomem cordial, a vida em sociedade , de certo modo, uma verdadeira li bertaodo pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si prprio emtodas as circunstncias da existncia. Sua maneira de expanso para com os outrosreduz o indivduo, cada vez mais, parcela social, perifrica, que no brasileiro como bom americano tende a ser a que mais importa. Ela antes um viver nosoutros (...)Nada mais signif icat ivo dessa averso ao rituali smo socia l, que exige, porvezes, uma personalidade fortemente homognea e equilibrada em todas as suaspart es , do que a di fi cu ldade em que se sent em, geralmente , os brasil ei ros, de umareverncia prolongada ante um superior. Nosso temperamento admite frmulas de

    reverncia, e at de bom grado, mas quase somente enquanto no suprimam de todoa possibilidade de convvio mais familiar. A manifestao normal do respeito emoutros povos tem aqui sua rplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade.E i sso tanto ma is espec fico , quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, toprx imos de ns em t antos aspec tos, aos t t ulos e s inais de reverncia.HOLANDA,Srgio Buarque de.Razes do Brasil , op . ci t., p. 146 e Nota.15Define-se, aqui, inteligncia poltica como tecnologia ou arte (no sentido clssico)diplomtica. A inteligncia capac idade mental de compreender, raciocinar, resolverproblemas, planejar e agir se mani festa de vrias formas, uma das quais a social(habilidade social skil l). Inteligncia poltica constitui uma variante da inteligncia

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    Mas na diplomacia, como em qualquer relao social, alm deconhecimento aplicado ao clculo de poder (tcnica racional), a inteligncia

    poltica tambm requer sensibilidade ao outro e, em especial, acordialidade. Com esta, pode-se alcanar os mesmos objetivos de formamais eficiente (sem o emprego de recursos custosos de poder, em suasdimenses poltica, econmica ou militar), e sem gerar traumas e tenses.

    A cordial inteligncia poltica pode ser considerada expresso datecnologia diplomtica brasileira. Acrescentar inteligncia poltica oadjetivo cordial, sob inspirao da entente cordiale franco-britnica de1904 (mesmo ano da proposta que o Baro do Rio Branco faz Argentina),significa ir alm de clculos de poder e buscar uma convergncia sustentada

    em uma tica de valores e objetivos partilhados.A construo da integrao regional, em particular o estado atual darelao Brasil-Argentina, recomenda o aprofundamento e a atualizao doconceito de cordial inteligncia poltica empregado pelo Baro do Rio Branco.

    Gilberto Freyre, ao analisar em seu Ordem e Progresso o momento detransio da cultura nacional no perodo da Repblica Velha, assinala que,sob a direo de Rio Branco, o Itamaraty constitua um sistema mais quediplomtico (...) de organizao e de definio de valores superiormentenacionais16.

    O comentrio arguto do socilogo-antroplogo demonstra a influnciadireta e recproca entre poltica externa e manifestao de valores nacionais

    profundos, muito alm da manipulao de elementos essencialmente polticose de poder.

    A obra diplomtica de Rio Branco deixa claro que, em sua visoestratgica, a consolidao da Nao brasileira estava assentada sobre dois

    pilares estruturais poltico-geogrficos: a definio de seu mapa (suas fronteiras)

    social aplicada aosavoir fa ire das relaes internacionais. Por seu turno, tecnologia

    constitui um discurso sobre a tcnica. Como tecnologia ou arte, a intelignciapoltica o conjunto de tcnicas que compreendem a aplicao de conhecimentos teis interao social em contextos de poder (para alcanar interesses e objetivos outcomes). Como tecnologia ou arte diplomtica, o objetivo da inteligncia poltica a construo de um ambiente internacional de entendimento (entente) que viabilize apromoo dos in teresses nacionais.16FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Processo de desintegrao das sociedadespatr iarcal e semipatr iarcal no Brasil sob o regime de trabalho li vre: aspectos de umquase meio sculo de transio do trabalho escravo para o trabalho livre e daMonarquia para a Repbl ica. Rio de Janeiro, Record, 4edio, 1990, p. CLI.

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    e a relao amistosa com os vizinhos sul-americanos, a partir da relao coma Argentina e o Chile. Nesse sentido, confessaria ao Embaixador argentino

    Ramn Crcano, a quem apresenta a proposta do ABC:

    J constru o mapa do Brasil. Agora meu programa o de contribuirpara a unio e a amizade entre os pases sul-americanos. Uma dascolunas dessa obra dever ser o ABC17.

    O programa estratgico de Rio Branco para a consolidao nacional doBrasil tem, portanto, dois momentos. O Chanceler conseguiu construir o

    primeiro, com o reconhecimento e a consagrao histrica que lhe

    corresponde, mas no viveu para ver o segundo. As relaes de poder, aescassez dos laos econmico-comerciais e, sobretudo, as profundasdesconfianas e rivalidades impediram a efetivao do ABC, como ser vistoabaixo. Hoje, entretanto, o processo de integrao trilha o mesmo espao ese inspira na mesma viso tida por Rio Branco no incio do sculo passado.

    A respeito do ethosnacional refletido no homem cordial, Rubens Ricuperose junta a Gilberto Freyre ao qualificar Rio Branco de definidor de valoresnacionais, e comenta que o Chanceler

    vai ao encontro da aspirao da identidade externa que os brasileirosgostariam que se aplicasse a si prprios. Gostamos de pensar quesomos povo mestio tnico-culturalmente. Nos agrada pensar quesomos generosos, desinteressados, pacficos, no agressivos,moderados, impulsionados por valores de afetividade. dessainclinao que procede a deturpao do conceito de homem cordial18.

    Nessa linha de pensamento, a diplomacia brasileira emerge, de certaforma, como alter egoda identidade nacional a projeo idealizada decomo nos imaginamos ou que gostaramos de ser como sociedade nacional,

    ou pretendemos ser no futuro. Naturalmente, surgem da incongruncias entreretrica externa e realidade interna: o Brasil deseja um mundo com maior

    17LINS, Alvaro. Rio Branco. Biogra fia. So Paulo, Editora Alfa-mega / FUNAG,1996, p. 432.18 RICUPERO, Rubens. Rio Branco, definidor de valores nacionais. In CARDIM,Carlos Henrique e ALMINO, Joo (orgs.), Rio Branco, a Amrica do Sul e aModernizao do Brasil, Braslia, FUNAG/IPRI, 2002, p. 90.

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    equidade, mas a sociedade brasileira extremamente desigual e injusta; oBrasil deseja um mundo pacfico, mas a sociedade brasileira extremamente

    violenta; o Brasil propugna pelo desenvolvimento, mas persistem bolses demisria; o Brasil luta pelo imprio do direito internacional e pela justia, masa sociedade brasileira ainda sofre com o desrespeito lei, a corrupo e asimpunidade; o Brasil clama por solidariedade mundial, mas a sociedade

    brasileira profundamente individualista na prtica; o Brasil defendeu comveemncia a descolonizao, mas a sociedade brasileira ainda conserva, emsuas prticas quotidianas, elementos e preconceitos coloniais, dos quais sonotrios alguns casos de escravido rural e racismo, ainda que velado.

    O Brasil, medida que se desenvolve em direo a padres sociais mais

    equitativos, avana na boa direo, fortalecendo a legitimidade da defesa, noplano mundial, de seus valores nacionais. Cabe destacar, em especial, asolidariedade com a frica e a Amrica Latina, que no se explica por simplesclculos de poder geopoltico, nem por interesses empresariais (ainda queestes existam, no esto na base do impulso diplomtico). A tentativa decompreenso dessa solidariedade ser incompleta se no levar em conta osentimento de solidariedade nacional para com tais pases, aos quais nos

    prendem muito alm da pura retrica laos histricos, tnicos e afetivos.Os elementos acima comentados conduzem afirmao que caberia

    ser estudada mais em detalhe em outra pesquisa de um estilo de lideranabrasileira, derivada da tecnologia diplomtica que emerge da cordialinteligncia poltica. medida que o Brasil cresce em poder e capacidadede mobilizao, torna-se necessrio compreender e desenvolver um tipoespecfico desavoir faire, de tecnologia de liderana, de natureza maiscomplexa que a utilizada at agora para a defesa dos interesses nacionais.

    A diplomacia brasileira desenvolveu uma tecnologia reconhecidamenteeficiente de defesa de seus interesses nacionais: consolidao do territrio,entorno regional pacfico, desenvolvimento econmico (comrcio,industrializao, investimentos). Essa tecnologia diplomtica tradicional,

    entretanto, insuficiente para o novo patamar de poder ao qual o Brasil estacedendo. O estudo sobre o processo de integrao regional ofereceaprecivel campo de pesquisa para elucidar qual o estilo prprio que o Brasiladota na nova etapa de sua histria diplomtica.

    A cordial inteligncia poltica requer o desenvolvimento de umadiplomacia total. Sem desvirtuar-se em pretenses dirigistas e hegemnicas,o conceito que se inspira nos modelos de histria total e histria das

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    mentalidades daEcole des Annales significa a necessidade de ir alm dorelacionamento formal entre Governos da diplomacia tradicional. A integrao

    exige uma diplomacia mais ativa, mais atenta a aspectos histricos, culturais eideolgicos e com uma interlocuo mais complexa, que envolve umamultiplicidade de atores sociais e integra mais sistematicamente em sua agendaos campos da cultura, educao, cincia, imprensa, esportes, cincia etecnologia e poltica. Seu objetivo atuar diretamente junto s bases polticas,governamentais e no governamentais, acadmicas e sociais que elaboramos interesses nacionais dos pases-scios no caso, a Argentina , com ganhosde legitimidade e eficincia.

    Entram, nesse campo, diversos elementos no contemplados na

    diplomacia tradicional. Se tudo Histria para aEcole des Annales, decerta forma tudo Diplomacia num processo de integrao. Surge, da, anecessidade de uma ateno maior ao dilogo com interlocutores notradicionais (universidades, think tanks, imprensa, lderes polticos, gruposde interesse e comunidade artstica e desportiva).

    No caso especfico argentino, isso se reveste de interesse particular,tendo em mente o elevado grau de fragmentao da elaborao dosinteresses nacionais daquele pas, que so capturados por grupos setoriaisem constante pugna. Esse aspecto aumenta o nmero de variveis em jogo,

    produzindo um quadro causal e um ambiente de entendimento maiscomplexo.

    O conhecimento da viso do outro convida a uma maiorsensibilidade ao interlocutor, como aspecto da cordialidade,desenvolvendo a empatia, respeitando seus cdigos e significadoshistricos e culturais, suas prevenes psicolgicas, identificando eexplorando elementos quadro de referncias que favorecem uma relaomais estreita com o Brasil.

    Seixas Corra alerta contra um pragmatismo autoreferente do Brasil,que por vezes resvala para a insensibilidade. No mesmo diapaso, Rego

    Barros assinala que no haver liderana brasileira contra resistncia argentina.Conforme se sublinhar no captulo IV, para a Argentina, o Brasil

    se encontra diante de uma disjuntiva: um projeto hegemnico ou umprojeto integracionista. O primeiro, um patronazgo inaceitvel paraseus vizinhos, dadas suas caractersticas subimperiais. O segundo,um liderazgo associativo. A Argentina poderia, em algumascircunstncias e em alguns campos, tolerar o liderazgo do Brasil, com

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    ou sem reservas, conquanto lhe seja assegurado um espao na definiode mtodos e prioridades, mas jamais um patronazgo. O primeiro

    pressupe representatividade e legitimidade sobre bases consensuais,uma soft leadership sem desgnios hegemnicos. Por seu turno, osegundo pressupe hegemonia, imposio de alinhamento automtico esubstituio dos atores regionais, posio que francamente rejeitadaat mesmo pelos vizinhos simpatizantes do Brasil.

    iii. O estudo das Relaes Internacionais na Argentina

    Antes de adentrar no exame da histria das ideias polticas na Argentina,

    aplicando-a no contexto histrico de dois sculos da relao bilateral, cabemalguns comentrios sobre as principais correntes que orientaram as relaesinternacionais nesse pas.

    O estudo das relaes internacionais na Argentina19recebeu forte influnciada escola francesa, por meio da histria diplomtica, e do enfoque idealistaracionalista-grociano de cunho jurdico-normativo. Juan Carlos Puig lanaas bases de uma escola realista perifrica, que (nos anos 1960) rejeita o

    status quomundial e defende a ao multilateral para descongelar o podere reverter a condio perifrica.

    Por seu turno, os autores da corrente geopoltica, quase todos militares,com produo acadmica no mbito dos Institutos Superiores das ForasArmadas e do Crculo Militar, combinam aportes de autores clssicos comoRatzel, Mackinder e Spykman com as doutrinas de segurana hemisfricadesenvolvidas no contexto da Guerra Fria. Os governos militares enfatizam amilitncia ocidental informada pela doutrina da Segurana Nacional e osconflitos de poder sub-regional.

    A geopoltica argentina dos anos 1970 reage ao pensamento de Golberydo Couto e Silva e assinala como contrrias aos interesses nacionais aconcentrao demogrfica no Sul do Brasil e a crescente influncia na Bacia

    do Amazonas, por meio da qual o Brasil poderia chegar ao Pacfico.Autores como Gualco tendem a separar o Brasil dos projetos de

    integrao no Cone Sul, na medida em que o v como gendarme armado

    19A anlise como base a obra RUSSELL, Roberto.Enfoques tericos y metodolgicospara el es tudio de la pol ti ca ex te rior, Buenos Aires, GEL, 1992, pp. 9 a 14, e ocaptulo de TREVISN, Miriam Colacrai de. Pe rspectivas tericas en la bibliografiade poltica exterior argentina, pp. 22 a 41.

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    da Amrica do Sul e satlite privilegiado dos Estados Unidos, dado o grau dedesnacionalizao de sua economia.

    A partir de meados dos anos 1970 e sobretudo na dcada de 1980aprimorou-se o campo analtico das relaes internacionais na Argentina,com conceitos e mtodos de investigao mais rigorosos. Aredemocratizao traz novos campos de pesquisa para os quais se tornaminsuficientes os tradicionais enfoques jurdicos, histricos e geopolticos.Os novos estudos so municiados com o arsenal terico fornecido porescolas norte-americanas, com enfoques na poltica burocrtica, nainterdependncia complexa (Keohane, Nye), nas ideologias, imagens e

    percepes (Jervis, George) e no processo de tomada de decises (Synder,

    Bruck, Sapin). A reflexo enriquecida pelos trabalhos de Juan CarlosPuig, Carlos Prez Llana e Flix Pea.Cresce o interesse nos determinantes internos da poltica exterior, que

    trazem para a anlise o impacto causal de uma vasta gama de variveis atento inditas, que incluem as relaes entre cultura e poltica exterior (Escud)e o processo de tomada de decises, com ateno no sistema de crenasdos lderes (Russell). A redemocratizao inspira estudos sobre o sistema

    poltico interno como varivel independente, rompendo com a hegemoniametodolgica dos fatores externos e buscando um quadro causal maiscomplexo.

    Nesse perodo, estudos meramente descritivos e cronolgicos cedemespao para uma reflexo mais sofisticada que vincula a histria diplomticas dinmicas polticas interna e internacional. Vale destacar os trabalhos deJuan Archibaldo Lans, Mario Rapoport e Carlos Escud, que analisam a

    partir de perspectivas distintas, seno opostas, as relaes entre a Argentinae as grandes potncias, o papel das elites dirigentes na conformao dosinteresses nacionais e a tese da declinacin.

    fundamental o fato de que, na Argentina, a teoria da dependncia sedesenvolveu no campo econmico, nunca tendo chegado ao contrrio do

    Brasil a orientar a poltica exterior, limitando-se a constituir um marco tericodescritivo e explicativo do subdesenvolvimento.

    Nas duas ltimas dcadas, cresceu na Argentina o interesse na teoria dainterdependncia complexa, que transcende as vises estado-cntricas dorealismo, cujos pressupostos so questionados.

    A redemocratizao estimulou a reflexo sobre as relaes de cooperaoe integrao com o Brasil, tese que passou a ser predominante, em detrimento

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    das hipteses conflitivas, que perderam a credibilidade acadmica, estratgicae poltica. Nesse marco, prope-se inclusive uma geopoltica da integrao20.

    Esse aperfeioamento dos paradigmas tericos ocorreu de formasincrnica distenso poltica na relao com o Brasil, agregando legitimidadecientfica ao impulso de cooperao do novo patamar dos laos bilaterais. Aevoluo terica foi influenciada, no plano emprico, pelas polticas deaproximao, ao mesmo tempo em que sustentou sua racionalidade. Nessa

    perspectiva, relevante que questes como a Bacia do Prata, tratadas pelaArgentina nas dcadas anteriores a partir de enfoques jurisdicistas egeopolticos, tenham evoludo para abordagens de interdependncia ecooperao.

    Nos anos 1990, o realismo perifrico e sua crtica dominaram o debateno campo das relaes internacionais na Argentina. Se, de um lado, para orealismo clssico a estratgia de insero externa deve derivar da materialidadedo poder, de outro lado, a aplicao equivocada de um realismo perifricolevou a Argentina a inverter a equao, colocando os recursos de poder em

    posio subordinada. O predomnio da ideologia neoliberal lida em clavemenemista fez com que recursos de poder fossem deliberadamentedesmobilizados indstria, produo cientfico-tecnolgica na crena deuma globalizao benigna e dos favores da potncia hegemnica. Isso seranalisado em maior detalhe no captulo II.

    A crise argentina do incio da atual dcada imps a perda de credibilidadedesse ltimo paradigma, e a reconsiderao do universo terico em relaesinternacionais. No h, hoje, uma nica corrente com ascendncia sobre asdemais.

    iv. Por uma teoria da integrao

    Este livro pretende apresentar elementos que contribuam para a construode uma teoria da integrao, embora no pertena ao escopo do trabalho

    20Ao contrrio da opinio corrente, a perspec tiva geopoltica argentina no sempreantibrasileira. Autores como Turdera criticam a tese de um Brasil como hiptese deguerra mais provvel, assinalando que a hiptese de integrao era igualmente provvel.Outros, como Guglialmelli, defendem a cooperao com o Brasil com vistas a umaintegracin para la liberacin, a fim de obter maior capacidade autnoma de deciso,evitando confrontaes que possam ser aproveitadas por interesses alheios. GmezRueda defende a integrao regional como uma das dimenses essenciais da geopolticaargentina em um mundo que se organiza em blocos.

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    realizar uma reviso da literatura sobre o tema21. No plano conceitual, integraotem sido definida como processo pelo qual atores polticos nacionais transferem

    suas lealdades, expectativas e atividades polticas para um novo centro (Haas),gerando um sentido de comunidade e de instituies e prticas fortes (Deutsch).

    21A vasta literatura sobre integrao, cuja inspirao terica nasce de teses federalistase da construo da paz pelo comrcio, inclui autores que vo desde clssicos comoImmanuel Kant e Hugo Grotius at tericos contemporneos como John Gerald Ruggie,James E. Dougherty, Robert L. Pfaltzgraff Jr. e Jean Monnet. Cumpre mencionar,como aportes centrais nesse campo, a abordagem transnacionalista ou comunicacionalde Karl Deutsch, que emprega tcnicas behavioristas, a interdependncia complexa deKeohane e Nye, a teoria dos regimes internacionais de Stephen Krasner e o paradigmadas relaes em eixo (Moniz Bandeira e Amado Cervo). PATRCIO, Raquel Cristina

    de Caria.As relaes em eixo franco-alems e as relaes em eixo argentino-brasileiras .Gnese dos processos de integrao. Tese de Doutorado. Braslia, Universidade deBraslia, 2005, pp. 34, 35, 42, 46, 47 e 49. CERVO , Amado Luiz. RelaesIn te rnac ionais da Amr ica La ti na Velhos e Novos Paradigmas. Braslia, IBRI/FUNAG, 2001. Cabe ainda destacar: GARNETT, In tern at ion al co op era tio n an dinstitutional choice: The European Communitys international market(1992); HAAS,Ernst. The uniting of Europe (1958),Internat ional integration: The European and theuniversal process(1961) e Why collaborate? Issue-linkage and international regimesin DOUGHERTY, James E. e PFALTZGRAFF Jr., Robert L.,Re laes in ternacionais teorias em confronto(2003);HAAS, Ernst e SCHMITTER, Philippe, Economicsand differential patterns of political organization: projections about unity in LatinAmer ica(1964); SCHMITTER, Philippe, A revised theory of regional integration, inInternational Organization(1970); KRASNER, Stephen,Int ernational regimes(1995);KEOHANE, Robert, e NYE, Joseph, Power and In terdependence(2001); DEUTSCH,Karl,Anl ise das relaes in ternacionais cap. XVIII Como alcanar e conservara integrao(1977); MILNER, Helen,Internat ional t heories o f cooperation amongnations: strengths and weaknesses (World Politics, 1992); MITRANY, David, Aworking peace system (Londres, Royal Institute of International Affairs, 1943);MONNET, Jean, Memrias A Construo da Unidade Europeia (Braslia, UnB,1986); RUGGIE, John Gerard, Mult il ateral ism matt ers: The theory and praxis of aninstitutional form (New York, Columbia University Press, 1993); SCHARF, Fritz,The joint decision trap: Lessons from German federalism and European integration(1988). No contexto do Mercosul, cabe mencionar: RAPOPORT, Mario (coord.), LaComunidad Europea y el Mercosur Una Evaluacin Comparada(1993), RAPOPORT,Mario (org.),Argent ina y Brasi l en el Mercosur. Polticas comunes y al ianzas regionales(Buenos Aires, GEL e Fundacin Konrad Adenauer, 1995); MADRID, Eduardo,Argent ina-Brasil . La suma del Sur(Buenos Aires, Editora Caviar Bleu, 2003), Ideas yproyec tos de complementac in e integrac in econmicas entre la Argent ina y Bras ilen el siglo XX, in Jornadas de Investigacin(documento de trabalho no. 1. BuenosAires, 1999); ARNAUD, Vicente Guillermo, Mercosur, Unin Europea , NAFTA y lo sproces os de int egra ci n regi onal (Buenos Aires, 1996); BERNAL-MEZA, Raul,Sistema mundial y Mercosur (Buenos Aires, 2000); BOUZAS, Roberto e LUSTIG,Nora,Liberalizacin comercial e integracin regional de NAFTA a Mercosur(BuenosAires, 1992); LANUS, Juan A., La in tegracin econmica de Amrica Lat ina(BuenosAires , 1972) ; BECKERMAN, Marta Argent ina y Brasi l : hacia una mayor complementacin productiva?, (in Ciclos en la historia, la economa y la sociedad,Buenos Aires, no. 18, segundo semestre de 1998).

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    A integrao22vai alm da cooperao, esta ltima definida como o padrode comportamento baseado em relaes no regidas pela coao ou pelo

    constrangimento, mas legitimadas pelo consentimento mtuo com vistas obtenode vantagens recprocas. Questo central da teoria da cooperao, que se baseiano clculo egosta dos pases, o grau em que as recompensas mtuas superama concepo de interesse baseada na ao unilateral e na competio23. A chavedo comportamento cooperativo a crena na reciprocidade, sem o que os

    participantes no se comportam da maneira pretendida.A integrao vai alm da competio, sobretudo porque supera a etapa do clculo

    egosta do interesse dos participantes que passa a se limitar a questes conjunturaistpicas , j tendo sido internalizado na cultura poltica o pertencimento ao grupo

    regional. Na cooperao, comparam-se os incentivos e dividendos da ao conjuntae da ao unilateral; na integrao, a ao unilateral descartada como opo, e oclculo de incentivos e dividendos fica restringido discusso sobre o nvel adequadode aprofundamento, no se questionando a relao privilegiada.

    Como j dito, Brasil e Argentina vivem as tenses prprias da transioentre o padro de comportamento regido pela cooperao intergovernamental(com o clculo egosta de custos e benefcios) e um perfil mais profundo deinterao social e de construo de uma identidade regional, regida pelaintegrao no mbito do MERCOSUL.

    A teoria funcionalista lanou as bases da construo terica da integraonos anos 195024. David Mitrany afirma o conceito de spill over como

    22A construo poltica da integrao necessita de pelo menos cinco elementos: i)quadro histrico-cultural-ideolgico sustentvel; ii) relaes polticas estveis, comampla convergncia em torno da viso do cenrio mundial e regional, o que no excluioscilaes e desinteligncias conjunturais e tpicas, desde que no constituam fatoresde ruptura; iii) quadro institucional adequado: mecanismos de consulta, concertao eao poltica conjunta; iv) slida infraestrutura fsica e de comunicaes; e v) crescentevolume de comrcio, investimentos e integrao de cadeias produtivas. Este livroenfatizar os dois primeiros elementos. Os trs ltimos sero abordados semaprofundamento, na medida em que demonstrem os elementos anteriores, ao mesmo

    tempo em que so por eles beneficiados. O quinto aspecto frgil, se buscadoisoladamente, para respaldar um processo de integrao, na ausncia de slidas base sculturais, polticas e institucionais.23DOUGHERTY, James E. e PFALTZGRAFF Jr., Robert L. Re laes in ternac ionais as teorias em confronto.Lisboa, Editora Gradiva, 2003, pp. 642 e 643.24 Na dcada de 1950, David Mitrany rejeita a viso tradicional dos modelosconstitucionais e federalistas de integrao, que apontavam para um governo mundial,e sustenta a ideia de que o critrio central so as funes que a instituio regionalpretende adotar. DOUGHERTY, James E. e PFALTZGRAFF Jr. , op. cit., pp. 650 e651. PATRCIO, Raquel Cristina de Caria, op. cit., p. 48.

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    fundamental: a cooperao iniciada em um setor estratgico tender a espalhar-se para outros setores, o que gera a necessidade de instrumentos de

    coordenao tcnica, que podem evoluir para o campo da poltica. Foi essaa lgica seguida por Jean Monnet e Roberto Schumann na integrao graduale setorial das Comunidades Europeias.

    Na dcada de 1960, o neofuncionalismo (Ernst Haas, PhilippeSchmitter, Joseph Nye e Robert Keohane), com base na experinciaeuropeia, sublinha o papel das elites e burocracias com interessestransnacionais e o efeito despill over setorial, geogrfico, poltico e tcnico,com seus reflexos institucionais25. Schmitter assinala que o crescimentosetorial gera efeitos despill arounde buildup expanso das funes, da

    autoridade e da autonomia decisria das instncias integradoras em direo supranacionalidade.Influenciado pelo behaviorismo na Cincia Poltica, o neofuncionalismo

    v a integrao como a melhor forma de os Estados organizarem ocomportamento cooperativo. A combinao de aspectos do regimeinternacional (Krasner) com as noes de jogo interativo (Ruggie) ereciprocidade difusa (Keohane) permite afirmar que pases inscritos em umregime ou jogo de trocas so ora ganhadores, ora perdedores, mas no tmvantagem em retirar-se do jogo e caminhar isoladamente ou retroceder (spillback), j que o comportamento cooperativo constitui a melhor estratgia nolongo prazo26.

    Ainda na dcada de 1960, sob influncia da tradio realista, surge acorrente institucionalista governamental, que busca reabilitar o papel do Estadofrente s elites transnacionais (enfatizadas pelo neofuncionalismo) e substituiro fenmeno dospill overpelo conceito de interesses nacionais organizadosem issue areas27.

    25Haas demonstra que as elites europeias (polticos, sindicalistas), inicialmente cticasem relao CECA, passaram a defender a Comunidade, colocando-se na vanguarda

    do processo. Os setores da elite que haviam obtido vantagens com a formao deinstituies supranacionais passam a promover a integrao em outros setores,ramificando-se para novos contextos funcionais e envolvendo outros segmentos deelites e burocracias. DOUGHERTY, James E. e PFALTZGRAFF Jr., op. cit., pp. 651a 654. PATRCIO, Raquel Cristina de Caria, op. cit., p. 48.26PATRCIO, Raquel Cristina de Caria, op. cit., p. 42.27O intergovernamentalismo uma abordagem terica da integrao europeia feitape la academia no rte -a meri ca na . Stanl ey Ho ff man de st aca o ap rof un da men to dacooperao entre Estados, que pode resultar em uma pool ed sovereignt y. PATRCIO,Raquel Cristina de Caria, op. cit., p. 50.

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    Nos anos 1980 e 1990, o for talecimento insti tucional dasComunidades Europeias respalda certo retorno ao neofuncionalismo,

    em reao ao estadocentrismo do intergovernamentalismo, comrenovada nfase na convergncia de interesses das eli testransnacionalizadas28.

    Joseph Nye aperfeioa a teoria neofuncionalista de integrao eanalisa mecanismos processuais da politizao e do spill over29.Merecem destaque a socializao das elites, a formao de grupos nogovernamentais e associaes transnacionais de mbito regional e aatrao ideolgica e identitria. Alm disso, Nye assinala condiesque definem o potencial integrador, das quais vale sublinhar trs: a simetria

    dos nveis de desenvolvimento, a complementaridade das elites e opluralismo dos grupos sociais. Sobre os tipos de percepo afetadospelo processo de integrao, vale assinalar a eqidade na distribuiode dividendos.

    Nye ainda indica quatro condies que podem caracterizar o processode integrao: maior densidade poltica, a fim de solucionar problemas edistribuir equitativamente os benefcios; redistribuio, com vistas reduodas assimetrias; reduo do nmero de opes alternativas integrao(mesma lgica de a ALCA uma opo, o MERCOSUL um destino); econvergncia da poltica externa, com a adoo de posies comuns frente ano membros. Tendo em mente a dificuldade de explicar a complexidade daintegrao europeia desde os anos 1990 pela tica neofuncionalista,abordagens tericas mais recentes atribuem maior importncia convergncia

    28 PATRCIO, Raquel Cristina de Caria, op. cit., pp. 51 e 53. Este livro, entretanto, nose prope a discutir um dos aspectos relevantes do neo-neofuncionalismo, que acriao de instituies comunitrias (abordado pelo neoinstitucionalismo). Em outraspalavras, no se pre tende aqui contribui r para uma teoria da integrao que desemboquena supranacional idade. A perspect iva deste l ivro no es tadocnt r ica (asupranacionalidade constitui uma verso de Estado em nvel superior), mas a anlise dacultura poltica nacional que pode desembocar em um novo sentido de identidade regional.29

    Nye destaca sete mecanismos processuais: articulao funcionalista de tarefas (sp il lover); acrscimo das transaes; articulaes e formao de coligaes; socializaodas elites; formao de grupos no governamentais transnacionais regionais; atraoideolgica e identitria; e envolvimento de outros atores no processo como elementoscatalisadores. Sublinha quatro condies do potencial integrador: simetria ou igualdadeeconmica das unidades; complementaridade das elites; pluralismo dos grupos deapoio; e capacidade de adaptao e resposta dos Estados-membros. Nye ainda apresentatrs tipos de percepo: a equidade em relao distribuio dos benefcios; a coernciaexterna do grupo; e o nvel dos custos da integrao. DOUGHERTY, James E. ePFALTZGRAFF Jr., op. cit., pp. 654 a 658.

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    poltica e cooperao intergovernamental entre os principais pases dobloco30.

    Como espao de governabilidade, a integrao regional contribui para agovernana global, conformando um regime internacional prprio. Embora oestudo da integrao como governana e como regime escape ao objetivodeste livro, cabe recordar que a teoria dos regimes internacionais explica acooperao como resultado dos interesses nacionais31.

    Vale por fim sublinhar que o processo de integrao pode ser visto sob oenfoque terico construtivista (Stephen Walt, Nicholas Onuf)32. Segundo essaviso, os sistemas de ideias, crenas, valores e percepes histricas exercem

    profunda influncia na ao social e poltica, moldando os interesses nacionais,

    definindo as expectativas dos Estados e condicionando sua poltica exterior.As estruturas fundamentais da poltica internacional so socioculturais, antesque materiais.

    Feita essa breve incurso sobre as escolas de estudo da integrao,cumpre esclarecer que este livro, sem se orientar exclusivamente por umanica corrente j que todas abordam a questo a partir de ngulos e mtodos

    parciais e insuficientes , emprega elementos das seguintes teorias: i)neofuncionalista (papel das elites e burocracias e conceito despill over, semaprofundar a vertente institucional); ii) institucionalista intergovernamental(papel do Estado e interesses nacionais); iii) construtivista (papel dos valores,

    30 Andrew Moravcsik argumenta que o processo de integrao caracterizado poriniciativas acordadas pelos Chefes de Governo com base em compromissos que refletempresses e interesses domsticos. Recorde-se que a abordagem intergovernamental eradefendida por De Gaul le , ao passo que Jean Monnet prefer ia o cr i tr io dasupranacionalidade. DOUGHERTY, James E. e PFALTZGRAFF Jr., op. cit., pp. 663e 664. PATRCIO, Raquel Cristina de Caria, op. cit.31 Stephen Krasner conceitua regime internacional como o conjunto de princpios,normas, regras e procedimentos de tomada de decises em torno dos quais convergemas expectativas de cada ator. De sua parte, John Ruggie o define como um conjunto deexpectativas, regras e regulamentos, planos, entidades organizacionais e compromissos

    financeiros aceitos por um grupo de Estados. Os regimes podem ser marcados pordiversos nveis de desenvolvimento institucional e englobar reas to distintas comodefesa, comrcio , pol t ica monetr ia e d i rei to . DOUGHERTY, James E. ePFALTZGRAFF Jr., op. cit., pp. 669, 670, 673 e 674. PATRCIO, Raquel Cristina deCaria, op. cit., p. 54.32RUSSELL, Roberto, e TOKATLIAN, Juan Gabriel.El lugar de Brasi l en la pol t icaexterior argentina. Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica, 2003, p. 10. ONUF,Nicholas . World of our making: rules and rule in social theory and internationalrelations. South Carolina, University of South Carolina Press, 1989. PATRCIO,Raquel Cristina de Caria, op. cit., p. 43.

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    percepes e da identidade na formao do interesse nacional); e, em menorgrau, iv) governana global e regimes internacionais (estabilidade regional).

    Dito isto, o livro segue os parmetros assinalados a seguir. Do ponto devista histrico-emprico, no se adota o mtodo tradicional dos estudos

    parciais, focados em perodos delimitados. Como j assinalado, o objetoemprico uma histria de sntese, estrutural, para a explicao e interpretaode processos sociais e polticos amplos e tendncias e constantes de longadurao que interferem na relao Argentina-Brasil. No so objeto de

    pesquisa os temas tradicionais de integrao do MERCOSUL economia,comrcio , nem questes geopolticas e estratgico-militares. As refernciasao MERCOSUL se limitaro a sublinhar o quanto refletem a convergncia

    Brasil-Argentina. As unidades de anlise so o Estado (Executivo CasaRosada, San Martn, e em menor grau o Ministrio de Economia eLegislativo) e sua burocracia, os partidos polticos (sobretudo o PJ

    peronista), as elites patrimoniais, os grupos militares e a comunidadeacadmica. A nfase recai sobre a influncia das soft variables da polticaexterior argentina sobre a definio dos interesses nacionais que emergem dacultura poltica (sistema de crenas dos principais atores, suas percepes,valores e experincias histricas).

    v. Constantes da poltica externa argentina

    O exame das constantes da poltica exterior argentina parte quase semprede uma constatao negativa, na qual coincidem personalidades to dsparescomo Alberdi, Sarmiento, Avellaneda, Zeballos, Ferrari, Figari e Escud, entreoutros: a falta de uma diplomacia coerente33. Ironicamente, a inconstncia

    33Sarmiento, em sua mensagem ao Congresso de 1874, afirmava que a Argentina notinha poltica exterior, como Cobden aconsejaba a la Inglaterra y Gladstone puso enprcti ca. Alberdi, recordando o axioma de Cobden peace wil l all nations, al li ance

    with none comentava com ironia que fora justamente uma repblica sem governoconstitudo (a de Rosas) que havia posto em prtica a proposta de Cobden-Gladstone.Tais comentrios se referem, de forma crtica, a Mitre e aliana com o Brasil naGuerra do Paraguai. Nicols Avellaneda assinalava em 1881 que nada hay taninconsistente como nuestra poltica exterior. Uma das provas apontadas de ausnciade uma poltica internacional a desorganizao do arquivo da Chancelaria: la cuestincon el Brasil por las Misiones Orientales se perdi en 1895 por la deficiencia deelementos tcnicos y documentales que respaldaran nuestros derechos. FERRARI,Gustavo.Esquema de l a pol t ica ext er ior argentina. Buenos Aires, Eudeba, 1981, pp.2 e 4.

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    parece ser sua maior constante, em contraste com o que analistas argentinospercebem como estilo constante da diplomacia brasileira.

    Gustavo Ferrari identifica seis constantes da poltica exterior: pacifismo,moralismo, isolacionismo, evaso pelo Direito, enfrentamento com os EstadosUnidos e europesmo e desmembramento territorial34.

    O pacifismo, como princpio e ideologia da diplomacia argentina,pressuposto da prosperidade, foi implementado com xito pelo Presidente-General Roca (cujo lema era paz e administrao). Um dos principais crticosdessa corrente Zeballos, que defendia uma poltica sudamericana viril,criticando a diplomacia desarmada:

    la Argentina negocia sin escuadras, sin soldados, sin arsenales (),negocia evanglicamente, como los santos obispos que recorren lasantesalas de los ministerios gestionando mercedes para sus templos35.

    O excessivo moralismo, considerado, por analistas argentinos,caracterstica ingnua da diplomacia do pas, est ligado ao pacifismo. Odogma da paz est presente no ABC, na adeso ao mtodo arbitral, noTratado Antiblico, na soluo da Guerra do Chaco e na neutralidade duranteas Guerras Mundiais. Por outro lado, foi abandonado pela ditadura militar nocontencioso com o Chile e desastrosamente rompido na Guerra das Malvinas.

    O isolacionismo reflete tanto a circunstncia geogrfica argentina quantoo desgnio europesta frente ao americanismo. Esse princpio se traduziu emabstencionismo, obstrucionismo e neutralidade. No sculo XIX, a Argentinarejeitou todas as propostas de articulao latino-americana nos Congressosde Lima e Panam; na primeira metade do sculo XX, no participou daconcertao pan-americana e manteve postura neutra nas duas GuerrasMundiais. A mudana dessa postura se inicia com a terceira posiouniversalista do peronismo. Por outro lado, a Argentina se viu em posio

    praticamente isolada durante a Guerra das Malvinas e na ltima crise de 2001-

    34FERRARI, Gustavo, op. cit., pp. 6 a 17.35Zeballos, Estanislao S.Diplomacia desarmada. Buenos Aires, Eudeba, 1974.ApudFIGARI, Guillermo Miguel.Pasado, presente y futuro de la pol t ica exterior argentina.Buenos Aires, Biblos, 1993, p. 120. PARADISO, Jos. Debate s y trayec toria de lapol ti ca ex terior argent ina, op. cit., pp. 32 e 33. Miguel ngel Scenna afirma queZeballos era impulsado por un nacionalismo primario, agresivo, ingenuo. ApudMONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto.Argen tina , Brasi l y Es tados Unidos. De la TripleAl ianza al Mercosur. Buenos Aires, Grupo Editorial Norma, 2004, p. 92.

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    CONSIDERAESTERICAS

    2002. Hoje, o isolacionismo unanimemente rejeitado: sondagens realizadaspelo CARI detectaram percentual de 0 % em favor dessa postura, tanto na

    populao, quanto nos lderes de opinio36. Outro consenso relevante.A evaso por meio do direito constitui a tendncia de eludir a

    realidade e os problemas internacionais, reduzindo-os a umaracionalidade jurdico-formal. Essa constante reflete a condio defragilidade poltica, econmica e militar do pas que busca encontrar,no direito, a defesa frente s grandes potncias. A adeso aos mtodosde soluo pacfica das controvrsias especialmente a arbitragem se insere nesse princpio. Essa postura foi consagrada com grande

    prestgio pela Doutrina Drago37e pelo Tratado Antiblico proposto por

    Saavedra Lamas (vide infra).Segundo Russell, historicamente, a Argentina apresenta uma atitude maisgrociana, personificada na ao de Bernardo de Irigoyen, Drago e SaavedraLamas, ao passo