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INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA – PROJETOS E PERSPECTIVAS ESTRATÉGICAS 1 RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS “PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF. PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, RJ. [email protected] A integração sul-americana está na ordem do dia. O Brasil tem assinado regularmente os tratados e acordos internacionais, que conduzem a reforçar os laços de união e de cooperação com os países da região. Só para mencionar os documentos mais significativos que têm sido aprovados no decorrer dos poucos anos deste século, lembremos que, em agosto de 2000, foi assinado o “Comunicado de Brasília” pelos chefes de Estado de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela; em julho de 2001 foi assinada, pelos ministros de relações exteriores do Mercosul, da Comunidade Andina de Nações e do Chile, a “Declaração Ministerial de La Paz sobre a Institucionalização do Diálogo Político Comunidade Andina – Mercosul – Chile”; em julho de 2002 foi assinado pelos chefes de Estado sul-americanos o “Consenso de Guayaquil sobre Integração, Segurança e Infra-Estrutura para o Desenvolvimento”; em dezembro de 2004 foi assinada, pelos chefes de Estado sul- americanos, a “Declaração de Cusco”, mediante a qual foi criada oficialmente a 1 Comunicação apresentada no VI Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, 9 de outubro de 2006.

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INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA – PROJETOS E PERSPECTIVAS

ESTRATÉGICAS1

RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ

COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS “PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF. PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, RJ.

[email protected]

A integração sul-americana está na ordem do dia. O Brasil tem assinado

regularmente os tratados e acordos internacionais, que conduzem a reforçar os laços de

união e de cooperação com os países da região. Só para mencionar os documentos mais

significativos que têm sido aprovados no decorrer dos poucos anos deste século, lembremos

que, em agosto de 2000, foi assinado o “Comunicado de Brasília” pelos chefes de Estado

de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru,

Suriname, Uruguai e Venezuela; em julho de 2001 foi assinada, pelos ministros de relações

exteriores do Mercosul, da Comunidade Andina de Nações e do Chile, a “Declaração

Ministerial de La Paz sobre a Institucionalização do Diálogo Político Comunidade Andina

– Mercosul – Chile”; em julho de 2002 foi assinado pelos chefes de Estado sul-americanos

o “Consenso de Guayaquil sobre Integração, Segurança e Infra-Estrutura para o

Desenvolvimento”; em dezembro de 2004 foi assinada, pelos chefes de Estado sul-

americanos, a “Declaração de Cusco”, mediante a qual foi criada oficialmente a

1 Comunicação apresentada no VI Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, 9 de outubro de 2006.

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Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN); no final de 2005 foram assinados dois

importantes documentos: a “Declaração de Brasília”, ao ensejo da 1a. Reunião dos Chefes

de Estado da Comunidade Sul-Americana de Nações, bem como a “Declaração de

Montevidéu”, com motivo da Sessão Extraordinária da Reunião de Chefes de Estado da

Comunidade Sul-Americana de Nações.

A integração continental não é, contudo, realidade nova. É ideal que corresponde a

projetos antigos. Gostaria de chamar a atenção para o fato de que, ao longo da história de

quatro séculos deste continente, houve já várias propostas, portadoras de características

culturais muito peculiares. Sem levarmos em consideração essas perspectivas, mal podemos

compreender o que se passa, hoje, em termos de integração. Porque as opções do presente

estão condicionadas pelos pressupostos que iluminaram as opções do passado. Não digo

que “os vivos são governados pelos mortos”, como frisava Comte. Mas considero, seguindo

o pensamento de François Guizot, que sem levarmos em consideração os traços da história,

mal poderemos planejar o futuro. A gestão do Estado é como a condução de um automóvel:

se somente enxergarmos para frente, sem olharmos pelo retrovisor, corremos o risco de

sermos abalroados por quem vem de trás. Mas, de outro lado, se somente olharmos para o

retrovisor, bateremos, com certeza, na primeira curva da estrada. Temos de olhar para o

futuro, não esquecendo de enxergar o passado.

O Libertador Simon Bolívar, primeiro idealizador da Integração Sul-Americana.

Há sobre o tapete do nosso desenvolvimento histórico, considerando as coisas do

ângulo da filosofia política, duas modalidades de integração: a proveniente do conceito

unanimista da política e a nascida no contexto da concepção que denominaria de

construtivista ou dialética. A primeira alternativa teórica desenvolveu-se ao ensejo da

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filosofia de Jean-Jacques Rousseau, ao passo que a segunda seguiu a trilha do liberalismo

anglo-saxão de John Locke, sendo adotada, no pensamento continental europeu, pelos

denominados doutrinários franceses, de cuja herança contratualista abeberaram-se tanto

Alexis de Tocqueville quanto os estadistas que deram forma às nossas instituições

imperiais. Hodiernamente, essa corrente é adotada por numerosos pensadores sociais como,

por exemplo, Miguel Reale, Roque Spencer Maciel de Barros, Jürgen Habermas, e outros.

Ora, as propostas integracionistas do continente sul-americano surgiram, inicialmente, no

contexto da concepção unanimista da filosofia de Rousseau, como terei oportunidade de

mostrar a seguir.

I - A primeira proposta integracionista foi a elaborada pelo Libertador Simon

Bolívar. O pano de fundo sobre o qual se desenhou a sua visão da Grã Colômbia foi o da

integração dos vice-reinados do Peru e da Nova Granada ao redor de uma autoridade moral,

que pairasse, inconteste, sobre todos os poderes locais. Bolívar imaginava uma grande

nação pautada por um Legislador, ele próprio, que seria uma força moral aglutinadora,

porque encarnava o ponto de vista da salvaguarda dos interesses públicos, contrariamente

aos que pretendiam defender os interesses particulares, como ponto de partida para a

construção das novas nacionalidades. Pesou muito, no Libertador, a doutrina filosófica de

Jean-Jacques Rousseau, que considerava que a única forma de superar a degradação

causada nas sociedades modernas pelo materialismo e o individualismo, seria fazendo

surgir, na comunidade política, indivíduos puros que tivessem renunciado à defesa dos seus

interesses particulares, em prol da afirmação do grande interesse público, identificado com

o Reino da Virtude. Ele, Simon Bolívar, encarnaria essa máxima autoridade, que agiria

como uma espécie de poder supra-individual e supranacional. Resultado: Bolívar libertou

os países que integravam a Grã Colômbia, mas não conseguiu dar estrutura administrativa

às nações por ele libertadas, que terminaram ensejando várias repúblicas, ao redor dos

núcleos de defesa dos interesses mais poderosos. Surgiram assim, do contexto de conflitos

civis que cobriram todo o século XIX, a Bolívia, o Peru, o Equador, a Venezuela e a

Colômbia. O grande herói terminou falecendo fora da sua pátria de nascimento.

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Bolívar foi um furacão revolucionário, um general de grande valor, um estrategista

magnífico – à maneira de Bonaparte – mas, quando se tratou de consolidar o poder

arrancado aos espanhóis, não conseguiu solidifica-lo em instituições duradouras. Pesou

muito, no fracasso do ideal bolivariano, o rousseaunianismo que o empolgava. Porque o

filósofo de Genebra estruturou um modelo de libertação dos indivíduos para que vivessem

em pequenas pátrias, governadas de maneira plebiscitária. O seu modelo de democracia

direta não se ajustava ao governo de grandes extensões territoriais, como as das novas

nações hispano-americanas. E a concepção rousseauniana de política, como reino da

unanimidade, certamente seria eficaz para aglutinar as forças que combateram os

espanhóis, mas revelou-se uma faca de dois gumes quando se tratou de organizar o poder

nacional. Construir unanimidades implica em destroçar qualquer dissidência, como

aconselhava o filósofo genebrino no 8o. Capítulo do seu Contrato Social.2 Ora,

convenhamos que isso, em matéria de administração pública, é utópico. A política consiste

mais na arte de fazer surgir, das divergências naturais entre os indivíduos, consensos que

tornem administrável o Estado (esta é a característica fundamental do modelo integrador

construtivista ou dialético, mencionado atrás). O rousseaunianismo não dá lugar a tal

atitude conciliatória. A resultante da utopia unanimista foi o isolamento do Libertador,

como belamente mostrou García Márquez nessa magnífica síntese literário-historiográfica

que constitui o seu romance O general no seu labirinto.3

II - Segundo momento integracionista sul-americano: a proposta de criação do

Grande Paraguai pelo general Solano López. Este era filho do presidente Carlos Antonio

López (que sucedeu ao famoso ditador Gaspar Rodríguez de Francia). Aos 18 anos de

idade, foi nomeado general-de-brigada. Comandou por duas vezes (1846 e 1849) as forças

de seu país enviadas à província de Corrientes para combater o governo argentino de Juan

Manuel Rosas. No período compreendido entre 1853 e 1856 viajou diversas vezes à

Europa, onde estudou questões estratégicas e se familiarizou com o sistema militar

prussiano, bem como com a organização do Exército francês. O jovem general-diplomata

contratou técnicos estrangeiros nas áreas de siderurgia, telecomunicações e ferrovias, e

2 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Garnier / Flammarion, 1966. 3 Cf. GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. El general en su laberinto. Bogotá: Editora La Oveja Negra, 1989.

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conseguiu, de outro lado, a ratificação de tratados comerciais com a França e com a

Inglaterra, além de freqüentar a corte de Napoleão III, de quem se tornou fervoroso

admirador. A proposta estratégica do presidente Carlos Antonio López era a de tornar o

Paraguai uma potência militar no Continente sul-americano, a fim de contrabalançar o

crescente poderio do Império do Brasil.

Ao ser nomeado pelo pai ministro da Guerra e da Marinha, Solano López adotou,

nas forças armadas paraguaias, o sistema militar aprendido na Europa, dando ensejo a uma

tripla estrutura, em que se misturavam a organização prussiana, a estratégia napoleônica e

os rigorosos regulamentos herdados da tradição militar espanhola. Após a morte de Carlos

Antonio López, Solano reuniu um congresso especialmente convocado para elegê-lo

presidente da república por dez anos, em outubro de 1862.

O problema estratégico fundamental do Paraguai era a saída ao mar. Um país

fluvial, considerava Solano López, dependia de quem controlasse o curso dos rios. Daí por

que o jovem general centrou a parte inicial da sua ofensiva na tentativa de dominar o Rio da

Prata. Esse era, para o Paraguai, o único caminho existente para o mar. Ora, essa via estava

sob controle estrangeiro. Com a finalidade de obter uma saída independente para o oceano,

Solano preparou uma tropa de cerca de oitenta mil homens. Aproveitando-se da intervenção

do Brasil na guerra civil uruguaia, o general ordenou a captura do navio brasileiro Marquês

de Olinda, da Marinha Mercante Imperial, que subia pelo Rio Paraguai em direção ao Mato

Grosso. Os paraguaios invadiram essa província brasileira, expulsaram as autoridades

imperiais e assassinaram numerosos cidadãos. Com esta atitude, o governo paraguaio

afetou de maneira negativa os interesses de três países sul-americanos: a Argentina, o

Uruguai e o Brasil, que observavam com desconfiança crescente o surgimento de uma

poderosa máquina de guerra, chefiada por um jovem guerreiro com espírito expansionista.

O presidente paraguaio Francisco Solano López, idealizador do Grande Paraguai, que aglutinaria, num Império por ele conduzido, os antigos Vice-Reinados espanhóis do Rio da Prata e do Paraguai.

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As Nações ameaçadas, como é sabido, constituíram a Tríplice Aliança e deflagraram a

guerra em defesa dos seus interesses postos em risco pelo mais bem estruturado exército do

continente sul-americano.

Mas a estratégia de Solano López não parava na pretensão de dominar o curso do

Rio da Prata. As suas ambições iam mais longe. O jovem general pretendia reconstruir, em

torno à Assunção, a antiga Província espanhola do Paraguai, equivalente a um enorme

território que compreendia a região de Corrientes, na Argentina, além, evidentemente, das

terras do Paraguai moderno. Uma vez incorporada essa província, pensava Solano López,

seria fácil anexar a de Buenos Aires, bem como a restante parte do território argentino e

algumas províncias brasileiras como o Rio Grande do Sul e o Mato Grosso. A seguir, a

anexação do Uruguai seria fácil de imaginar. O sonho do general paraguaio era se tornar

uma espécie de Bonaparte dos trópicos, que construiria um grande império hispano-

americano, que rivalizaria diretamente com o Império do Brasil, a fim de lhe disputar a

hegemonia continental. O sonho de outro déspota da época, Luis Napoleão III da França,

era colocar um pé em cada um dos continentes americanos, o do norte, com Maximiliano

de Habsburgo, e o do sul, com o marechal Solano López, que seria erguido à dignidade

imperial por um plebiscito que o jovem general ganharia facilmente.

No início do conflito, Solano obteve êxitos militares significativos. Porém, logo a

guerra evoluiu de forma adversa para o Paraguai. Pesou muito, na mudança do curso do

conflito, a rigorosa política deflagrada pelo Império brasileiro contra o país agressor: o

Brasil não aceitaria negociar com quem atentou contra a integridade do território nacional e

assassinou súditos do Imperador. Foram postas a serviço da defesa do território nacional

todas as forças vivas do país, a armada imperial, o exército, a guarda nacional, a banca, a

diplomacia, a nossa rudimentar indústria e a já testada capacidade dos gaúchos para criar

rebanhos vacuns e de cavalos. Os estadistas imperiais não pouparam esforços para

organizar uma força armada que conseguisse se sobrepor ao poderoso exército paraguaio,

incorporando o que de mais avançado havia em armamento ofensivo e tático. Embora quem

chefiava nominalmente a coalizão era o general argentino Mitre, quem de fato exerceu a

liderança foi o nosso marquês de Caxias.

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O sonho de Solano López foi rio abaixo, basicamente por duas razões: no plano

internacional, porque consolidou uma poderosa máquina de guerra posta a serviço dos seus

ideais expansionistas, não apenas da defesa dos legítimos interesses paraguaios para obter

uma saída ao mar; no plano interno, porque não conseguiu ensejar instituições duradouras,

por fora da todo-poderosa vontade do general-presidente. O Paraguai, pensava Solano, era

ele próprio. O general paraguaio ficou preso a uma concepção rousseauniano-bonapartista

do poder, que lhe impedia compartilha-lo no contexto de um modelo republicano

representativo. Qualquer divergência, no círculo dos que o acompanhavam, era punida

rigorosamente como crime de lesa-pátria. A unanimidade ao redor da sua figura era a única

atitude possível.

III - Terceiro momento integracionista pensado no contexto da América do

Sul: a revolução bolivariana do presidente Chávez. O líder venezuelano, como se

depreende da sua longa entrevista concedida a Marta Harnecker, em 2002,4 recebeu as

seguintes influências, todas elas decisivas, na sua formação política: em primeiro lugar, a

leitura da obra de Rousseau, que o empolgou já desde os seus anos juvenis nos estudos

secundários, na cidade natal de Barinas. Em segundo lugar, as idéias marxistas, aprendidas

desde a juventude, nas veladas de estudos históricos realizadas na residência do professor

José Esteban Ruiz Guevara, nessa cidade; a formação marxista de Chávez recebeu um

complemento importante da sua amizade com um velho líder comunista venezuelano, Luis

Miquilena. Em terceiro lugar, pesou na formação do líder a influência do populismo militar

de figuras importantes da política latino-americana, na segunda parte do século XX: os

generais Omar Torrijos, do Panamá, e Juan Velasco Alvarado, do Peru. Em quarto lugar,

influiu decisivamente na sua idéia de uma “revolução constitucionalista”, a avaliação crítica

do “constitucionalismo burguês”, feita por um ex-guerrilheiro colombiano, Carlos Navarro

Wolf, com quem Chávez teve contato em Bogotá, após a proclamação da Constituição

colombiana de 1991. E, por último, em quinto lugar, pesou evidentemente a formação

militar do presidente venezuelano, de onde tirou duas influências importantes: de um lado,

4 Cf. CHÁVEZ Frías, Hugo. Un hombre, un pueblo. (Entrevista concedida a Marta Harnecker). Caracas, 2002. In: www.angelfire.com/nb/17m/chavez/hombrepueblo.html, (consultado em 26/10/2006).

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a convicção de que o exército deve ser um agente de transformação social (idéia contida na

leitura da obra de Claude Heller) e, em segundo lugar, a percepção de que o exército

tradicionalmente era composto, na Venezuela dominada pelas oligarquias, por jovens

camponeses treinados para matar jovens camponeses acidentalmente arregimentados pela

guerrilha. Essa percepção o levaria à revolta contra a estratégia antiguerrilheira e as

instituições republicanas arcaicas.

O ponto forte do chavismo é a idéia do presidente venezuelano de que a Revolução

Bolivariana, da qual ele é o mentor, deverá efetivar a unidade das cinco repúblicas

libertadas por Simon Bolívar, numa primeira fase, a fim de enveredar, numa segunda etapa,

pela via da unificação política da América do Sul. A unidade das repúblicas bolivarianas

far-se-á a partir da irradiação do ideal libertador, que deverá fluir do coração do continente

sul-americano, a Bolívia. Um duplo movimento é imaginado pelo líder venezuelano para

levar a termo a sua missão: em primeiro lugar, consolidar, pela forma do plebiscito

constitucional, as reformas básicas que lhe darão meios para efetivar a unificação das

repúblicas bolivarianas. O constitucionalismo chavista parte do pressuposto de que, ao

nível das localidades, é possível fazer emergir uma unanimidade revolucionária, que se

transfira, a seguir, aos grandes centros de decisões. As reformas constitucionais almejadas

têm como finalidade solidificar um poder central forte, encarnado na presidência da

República Bolivariana da Venezuela, que presidirá a ação do exército libertador, como

agente de transformação. Diríamos que Chávez, influenciado pela idéia rousseauniana de

fazer emergir a unanimidade, pretende reforçar um núcleo de poder integrado pelos

denominados “puros” que, totalmente identificados com o interesse público, espraiem essa

mística pelo resto do corpo social, utilizando a coerção, se necessário. É a velha fórmula

jacobina. Há um elemento heterodoxo no rousseaunianismo chavista: se o líder encarna o

poder moral do Legislador previsto pelo filósofo genebrino, ele, por outro lado, deve estar à

O presidente venezuelano Hugo Chávez, mentor e líder da “Revolução Bolivariana”, que pretende aglutinar, numa única Nação, todos os países sul-americanos.

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frente do exército bolivariano, que será o agente transformador por excelência. O presidente

Chávez vincula, na mesma missão libertadora, os ideais do Legislador rousseauniano e o

bonapartismo do chefe armado, que garantirá a consolidação da nova ordem e o nascimento

do Homem Novo.

A Revolução Bolivariana do Presidente Chávez está em marcha e é uma realidade

palpável. Possuidor de um indiscutível carisma pessoal, financiado pelos abundantes

petrodólares de que dispõe, o mandatário venezuelano tem deflagrado eficaz política de

ocupação de espaços no continente sul-americano (e a nível global, também). Providências

estratégicas de longo curso estão sendo tomadas na República Bolivariana da Venezuela,

como a organização, além das Forças regulares, de um exército de milicianos de mais de

cem mil homens comandados por um oficial de alta patente, a construção de uma fábrica de

rifles kalashnikov, a renovação total da Força Aérea com caças-bombardeiros Shukov

vendidos pela Rússia, a compra de navios de guerra na Espanha e a aquisição de

significativo volume de armamento leve, notadamente fuzis de assalto. O custo dessa

renovação bélica chega, segundo cálculos de estudiosos, aos trinta bilhões de dólares, a

ponto de a Venezuela ter-se tornado o primeiro comprador internacional de equipamentos

militares.

Os presidentes da Bolívia e da Venezuela, Evo Morales e Hugo Chávez, parceiros da “Revolução Bolivariana”.

De outro lado, o Presidente Chávez, em convênio com o Presidente Morales, da

Bolívia, planeja construir, neste país andino, 20 bases militares (estrategicamente situadas

nas fronteiras com o Chile, o Peru, o Paraguai, a Argentina e o Brasil e operadas por

militares venezuelanos e cubanos, com a ajuda dos soldados bolivianos). Esse fato leva a

crer que a idéia chavista de que “o exército deve ser um agente de transformação social”

não ficará apenas no papel, mas será posta em prática, nos próximos anos, na realização da

mais ambiciosa e agressiva proposta integracionista da América do Sul.

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Essa política dá uma nova tônica às relações entre os países do Continente, levando

em consideração que, até agora, o clima dos vários documentos assinados pelas autoridades

referia-se a políticas de integração que respeitassem a autodeterminação dos povos, a índole

pacífica da Comunidade Sul-Americana de Nações, a exclusão de qualquer tipo de

hegemonia de um país sul-americano sobre os outros, bem como o interesse de preservar,

perante os outros blocos políticos, no cenário mundial, uma atitude de não confronto e de

cooperação pacífica, embora se destacassem, sempre, as idéias de preservação da

identidade cultural das Nações Sul-Americanas e o princípio da não intervenção de forças

estranhas na solução dos problemas regionais e nacionais.

No que tange à defesa continental, esboçam-se três tendências bem definidas,

segundo o estudioso Edgar Otálvora: em primeiro lugar, a dos que defendem uma

cooperação, no plano militar, com a participação dos Estados Unidos e da OTAN (tal seria

o caso, por exemplo, do denominado “Plano Colômbia”). Em segundo lugar, a posição de

países que defendem acordos binacionais criando uma força comum, sul-americana, para

realizar operações no exterior (tais seriam, por exemplo, os acordos assinados entre Chile e

Argentina, bem como o recente acordo de defesa Brasil-Argentina. Esses acordos, em que

pese o fato de defenderem uma posição autonomista, não aderem, no entanto, a uma

posição de confronto com os Estados Unidos). Em terceiro lugar, aparece, como novidade,

a posição (defendida hoje pelo Eixo Venezuela, Bolívia e Cuba), no sentido de dar ensejo a

um esquema de defesa cuja variável aglutinante seriam “elementos doutrinários e

discursivos esquerdistas e antiestadunidenses”. Referindo-se a esta nova tendência, Edgar

Otálvora, escrevia recentemente:

Apresenta-se como um pacto trinacional para reagir em conjunto contra os Estados Unidos. O pacto militar incluiria a eventual mobilização das forças armadas institucionais próprias da guerra convencional e as organizações paramilitares próprias de guerras de resistência. Mas também a incorporação, como combatentes, de membros de organizações de civis treinados e armados com campos de ação extranacionais. A assinatura de um acordo de cooperação militar entre Venezuela e Bolívia, a presença de militares venezuelanos na Bolívia em tarefas de engenharia militar, apoio logístico aéreo e de outros tipos que não foram precisados publicamente, revelam que o governo venezuelano está na direção de destinar recursos para ampliar a sua presença militar na Bolívia, entendendo este país como uma ampliação territorial da área de influência do Eixo. Porque outro elemento relevante desse terceiro esquema de defesa na região é o do evidente armamentismo venezuelano, que está associado ao público interesse do governo venezuelano de se tornar uma potência sub-regional. Caracas fala agora de zonas de influência e a linguagem oficial, além de militarista, maquiou-se de geopolítica (...). Tudo indica que essa terceira tendência de defesa sub-

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regional somente conta com o apoio dos atuais governos de Venezuela e Bolívia e de poucos grupos radicalizados de esquerda do continente.5

Conclusão: dizia no início da minha comunicação que os projetos de integração

latino-americana devem olhar para o pano de fundo de cultura histórica em que foram

desenhados. E que, no tapete das soluções integracionistas, contrapunham-se dois modelos:

o unanimista (que vingou fortemente no universo hispano-americano) e o construtivista

(que prevaleceu no Brasil e que se encontra, também, em vários momentos da história dos

países hispano-americanos). O denominador comum de representativas propostas

integradoras hispano-americanas, de Bolívar a Chávez, consiste em que a filosofia

rousseauniana da política como unanimidade é o sustentáculo ideológico mais importante

das estratégias apresentadas. Destaquei, no meu comentário, o caráter pouco realista dessa

proposta, havida conta de que a política, tanto a nacional quanto a internacional, não se faz

na base da busca inicial das unanimidades, mas pelo caminho mais complicado e mais

penoso da construção de consensos, a partir de interesses naturalmente divergentes.

Ora, o caminho trilhado pelo Brasil, desde meados do século XIX até os finais do

século XX tem sido, invariavelmente, o da paciente negociação entre interesses

internacionais divergentes, procurando, sempre, manter preservados os interesses da Nação

Brasileira. Assim aconteceu no decorrer dos conflitos no Rio da Prata, essa foi a tônica

durante a Guerra do Paraguai, ao ensejo da Tríplice Aliança, esse foi o pano de fundo que

pautou a nossa política exterior, comandada inicialmente pelo Barão do Rio Branco e,

depois, pelas gerações de diplomatas que se formaram no Instituto que leva o seu nome. As

nossas Forças Armadas estiveram sempre de prontidão para defender a integridade do

território nacional e garantir, quando convocadas, as soluções negociadas e assinadas nos

Tratados Internacionais. Exemplos desse espírito de negociação e de integração pacífica

são, sem dúvida nenhuma, a constituição, há já mais de vinte anos, da Itaipu Binacional,

bem como os denodados esforços dos nossos diplomatas e funcionários oficiais em prol da

paciente criação dos mecanismos de integração econômica e cultural no Mercosul e na

Comunidade Sul-Americana de Nações. Diríamos que o pano de fundo ideológico sobre o

5 OTÁLVORA, Edgar C. Cooperación, integración o fusión militar en Suramérica. Quito: ILDIS (Instituto Latinoamericano de Investigaciones Sociales), 2006, p. 20.

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qual tudo isso aconteceu é o de um sadio pragmatismo responsável. A comunidade

internacional, com certeza, espera do Brasil, nesta importante quadra da integração sul-

americana, que faça valer o peso dessa sua tradição de negociação, moderação e realismo,

fatores que são, hoje, mais do que nunca, os melhores aliados da paz continental e mundial.

Os presidentes Fidel Castro, de Cuba, e Hugo Chávez, da Venezuela, leitores de Rousseau e parceiros da “Revolução

Bolivariana”.

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BIBLIOGRAFIA

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