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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
INTELECTUAIS NEGRAS: PROSA NEGRO-BRASILEIRA CONTEMPORNEA
Mirian Cristina dos Santos1
Resumo: Objetivando discutir o papel da mulher negra enquanto intelectual engajada na luta pela
transformao da sociedade brasileira, a partir de narrativas afro-brasileiras contemporneas, esta
apresentao tem como corpus os livros Becos da Memria (2006) e Mulher Mat(r)iz (2011), das
escritoras Conceio Evaristo e Miriam Alves, respectivamente. Para isso, analisarei, os textos das
escritoras supracitadas a partir de questes sobre o pblico e o privado (PISCITELLI, 2005),
polticas do cotidiano (hooks, 1995), o papel do intelectual (SAID, 2005) e, mais
especificamente, sobre a intelectual negro-brasileira (SOUZA, 2010).
Palavras-chave: Intelectuais negras. Conceio Evaristo. Miriam Alves.
Ao pensar a intelectual negra, a partir de narrativas de escritoras negro-brasileiras, h que se
considerar reflexes acerca da noo de intelectual2. Edward Said (2005), ao refletir sobre as facetas
do intelectual, aponta que: A questo central para mim, penso, o fato de o intelectual ser um
indivduo dotado de uma vocao para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto
de vista, uma atitude, filosofia ou opinio para (e tambm por) um pblico (SAID, 2005, p. 25).
Sendo assim, o intelectual pode ser considerado um sujeito que assume para si responsabilidades
para com os outros, a partir da produo de conhecimentos.
Atualmente h alguns trabalhos esparsos sobre os intelectuais negros no Brasil. Em
proporo ainda menor, algumas consideraes acerca da intelectual negra j comeam a ser
observadas. Nessas anlises so pontuadas reivindicaes desse grupo para a insero na sociedade
brasileira: Desejam produzir, circular e legitimar-se no campo dos saberes ligados tradio
ocidental e, por outro lado, produzir, fazer circular pensamentos que evidenciem uma viso crtica
desses saberes (SOUZA, 2010, p. 184). Ainda de acordo com Florentina Souza, essa luta por um
lugar no espao cultural brasileiro leva a uma necessidade de investir contra um dos principais
mveis ideolgicos do pensamento ocidental: a discriminao e a excluso. (op. cit.). Tal
questionamento necessrio e legtimo dos intelectuais negros, de forma geral, certamente leva a
discusso para questes mais amplas, uma vez que o espao restrito ocupado e reservado ao negro na
sociedade brasileira fica em evidncia. Assim, em torno dessa questo, temas como alfabetizao,
1 Doutoranda em Letras, Estudos Literrios, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora, MG, Brasil. Agncia de Fomento: Capes. E-mail: [email protected]
2 Este artigo representa um recorte de uma discusso mais ampla que ser apresentada quando da defesa da tese Intelectuais negras: prosa negro-brasileira contempornea, que se encontra em andamento, orientada pela Prof. Dra. Mrcia de Almeida, no Programa
de Ps-graduao em Letras-Estudos Literrios da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
mailto:[email protected]2
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emprego, moradia, representao, violncia e autorepresentao afloram na literatura negro-
brasileira.
Em seus livros, Conceio Evaristo e Miriam Alves abordam as principais demandas da
mulher negra na contemporaneidade, do visibilidade s culturas africanas e afro-brasileiras,
denunciam a condio marginalizada e subalternizada do negro e fazem da literatura negra escrita
por mulheres local de fora, resistncia, afirmao e denncia. Sendo assim, objetivando discutir o
papel da mulher negra enquanto intelectual engajada na luta pela transformao da sociedade
brasileira, a partir de narrativas negro-brasileiras contemporneas, este artigo tem como corpus os
livros Becos da Memria (2006) e Mulher Mat(r)iz (2011), das escritoras supracitadas. Para isso,
observarei o texto literrio dessas escritoras enquanto espao de luta por participao e
transformao poltico-social.
Fernanda Figueiredo (2009), ao analisar contos dos Cadernos Negros, observa como a
violncia, em suas diferentes nuances, se faz recorrente nas narrativas, fato tambm observado em
Becos da memria e Mulher Mat(r)iz. De acordo com a pesquisadora, as cenas, personagens e
enredos carregam a dor e a amargura entrelaadas s malhas do texto, num movimento constante,
revelando as marcas que o preconceito deixa na histria individual (p. 44). Tais fatos, bastante
pertinentes, revelam, atravs do texto literrio, a realidade vivida por milhares de brasileiros, que
carregam a mancha de sculos de escravido.
Consoante uma proposta de anlise das referidas obras, lembro o lema da luta feminista por
emancipao, de que o pessoal poltico. Diante dessa ampliao da discusso sobre o pblico e
o privado, poltica passava a envolver qualquer relao de poder, independentemente de estar, ou
no, relacionada com a esfera pblica (PISCITELLI, 2005, p. 47). Assim, para essa leitura,
considerarei a importncia de repensar os espaos privados, juntamente com suas implicaes nas
experincias de mulheres negras. Nessa perspectiva, devido a questes socioculturais, histricas e
de formao, a produo da mulher negra intelectual tambm est no acmulo de tudo que ouviu e
viveu (DUARTE, 2010, p. 231). nesse aspecto que a associao entre a intelectual negra e a
poltica do cotidiano, proposta por hooks (1995), se faz pertinente, uma vez que a escrita na
literatura negra no se d dissociada da realidade.
Conceio Evaristo: pelas malhas da violncia
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Becos da Memria, publicado em 2006, traz luz o cotidiano de pessoas que vivem em uma
favela. As personagens dessa narrativa vivem margem da sociedade: empregadas domsticas,
diaristas, prostitutas, pedreiros, ex-escravos, lavadeiras, desempregados. Na narrativa de Conceio
Evaristo, as violncias so muitas, e as mulheres, por vezes, so as maiores vtimas de inmeras
agresses. Nesse processo, olhos e ouvidos testemunham barbaridades, e nem sempre a interveno
de terceiros suficiente para modificar a realidade. Nessa trilha pelo cotidiano das pessoas da
favela, o espao privado da menina Fuizinha aparece permeado pelas violncias fsicas e de gnero.
A me da menina, passiva e temerosa (EVARISTO, 2006, p.75)3, apanha at a morte.
Ao relembrar Fiuzinha, Maria-Nova aponta me e filha como vtimas da misria do homem:
Um tipo de misria que nem o amor de pessoas como V Rita, como Bondade e como Negro
Alrio, que chegou ali bem mais tarde, podia resolver (BM, p. 74). Isto , embora vrias pessoas
tentem intervir, a humilhao e a violncia persistem naquele barraco.
O pai, Fuinha conversava, andava, falava, trabalhava normalmente. Aparecia no armazm
de seu Ladislau, [...] bebia uns goles de pinga, falava e at ria um pouco para alguns (BM, p. 75),
comportamento tpico de um homem comum. Fuinha desconta as frustraes cotidianas naquelas
que possuem menos fora. Apesar de o seu nome estar no diminutivo, dentro de seu barraco esse
homem torna-se grande e mostra para todos, mediante a escuta de gritos das mulheres, a potncia
de sua masculinidade. Pode-se observar que este tipo de violncia sofrida pela personagem
Fuizinha, que aparece-nos nos mais diversos meios tnicos, sociais, religiosos e culturais em geral,
constitui uma forma de dominao ou de imposio do poder da parte agressora sobre a
vitimizada (CANTERA, 2007 apud SOUZA, 2011, p.134, grifos da autora), estabelecendo-se
tambm como uma opresso etria.
Nesse processo, considera-se que trazer para a literatura a representao da violncia contra
mulheres negras torna-se necessrio, uma vez que a recorrncia da violncia faz parte da realidade
de muitas mulheres brasileiras. Consoante isso, Conceio Evaristo faz da literatura territrio de
denncia desse grave e recorrente problema social. Dessa forma, escrita de dentro (e fora) do
espao marginalizado, a obra contaminada da angstia coletiva, testemunha a banalizao do mal,
da morte, a opresso de classe, gnero e etnia (DUARTE, 2010, p. 233). E nesse espao que,
assim como Fuizinha e sua me, Custdia tambm se apresenta como vtima da violncia
domstica. No entanto, diferentemente daquelas, que so agredidas por um homem, esta por vezes
sofre com agresses fsicas da sogra, especialmente quando se encontra grvida.
3 Doravante o texto ser referenciado como BM, seguido do nmero da pgina.
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Acerca dessa relao conflituosa, seguem alguns apontamentos. De acordo com Saffioti,
apesar de o vetor mais amplamente difundido da violncia de gnero caminha[r] no sentido
homem contra mulher (SAFFIOTI, 2015, p. 75, grifo da autora), a violncia de gnero tambm
pode ser praticada por um homem contra outro ou por uma mulher contra outra. Em vertente
semelhante, a pesquisadora Snia Maria Arajo Couto entende a violncia domstica como
masculina, no importando o sexo do agressor, pois corresponde ao esteretipo de
macho/dominador que considera que da condio natural que os grandes oprimam os pequenos
(COUTO, 2005, p. 25). Nesse sentido, a violncia familiar, compreendida na violncia de gnero,
engloba todos os membros da famlia.
Mediante declaraes acerca da violncia sofrida, Custdia apresenta-se como uma mulher
aparentemente conformada com a vida que tem, relevando at mesmo o problema de alcoolismo do
marido. Neste percurso, o alcoolismo constante perdoado devido s dificuldades do cotidiano.
Tonho bebia o cansao da semana anterior e o cansao da semana posterior. Bebia pelo msero
salrio. Bebia pelas compras, os quilinhos de arroz quebradinho, o feijo duro que era preciso pr
de molho, o acar que era regado durante toda a semana (BM, p. 79). No entanto, o vcio do
marido tambm justificado pela presena da me, que, na manuteno do controle, invalida a
masculinidade do filho: Tambm, ele ali ajudaria to pouco!... Se a sogra ainda no existisse,
talvez fizesse alguma coisa. Por que o Tonho deixava que a me mandasse tanto nele? (BM, p. 78).
O questionamento acerca da relao de Dona Santinha e Tonho sinaliza um desejo de mudana,
principalmente porque Custdia, por delegao, tambm faz parte dessa cadeia de controle.
O nome da sogra, Dona Santinha, tambm deve ser observado. Aos olhos de Custdia, a
mulher que vive sempre rezando e com a Bblia na mo no pode ser a responsvel pela morte de
seu filho, ainda no ventre: Custdia apanhava da sogra, que gritava como se fosse Tonho o
agressor (BM, p. 80). Conforme a narrativa, a sogra figura-se ainda mais cruel quando se observa
que ela aproveita-se da situao em que Tonho chega bbado para bater em Custdia, e livrar-se do
neto indesejado.
No momento da mudana, a mulher violentada ainda sofre hemorragia: Custdia no
entendia por que Dona Santinha fizera aquilo (BM, p. 80). No entanto, embora se admita o
requinte de crueldade da situao, percebe-se que, diante da vida difcil que levam, ainda mais
considerando o processo de desfavelizao, mais uma criana sinaliza mais dificuldades, mais
faltas, mais misria. Principalmente quando se leva em conta que Tonho tambm bebe pela
frustrao em no poder realizar os pequenos desejos dos quatro filhos: Sonhos to pobres, mas
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que ele no podia realizar. Uma semana ou outra, em vez de beber, eram doces e biscoitos que ele
levava para casa. Ento ficava de garganta seca, engolindo o dio que tinha da vida. Eram os piores
dias (BM, p. 79). Talvez, a ao de Dona Santinha embora questionvel do ponto de vista
religioso, j que se aprecia a vida como um bem maior, e essa no uma atitude esperada de
algum que anda com a Bblia na mo possa ser interpretada como uma tentativa de amenizar o
sofrimento do filho. Nesse processo, as reflexes da professora e pesquisadora Constncia Lima
Duarte sobre as narrativas de Evaristo tornam-se pertinentes: A autora pontua poeticamente
mesmo as passagens mais brutais, e cada personagem tem a conscincia de pertencimento a um
grupo social oprimido, e traz na pele a cor da excluso (DUARTE, 2010, p. 230). Assim, a histria
de Custdia, mais do que a soma de mais uma narrativa de violncia na favela, ou de uma ttica de
esterilizao da mulher negra, ou ainda da perversidade de uma mulher que carrega a Bblia, pode
ser entendida como uma atitude desesperada de uma mulher-negra-me, que revela a personagem
de Dona Santinha, consciente das precrias condies de sobrevivncia da maioria dos negros
brasileiros, para suavizar o sofrimento do filho.
Ainda sobre a violncia constante sofrida pelas moradoras da favela, a personagem Ditinha
aparece enquanto vtima das violncias tnica, fsica e social, ao ocupar um ambiente fora da favela,
ainda que esse espao ainda fosse o privado. Essa mulher mora junto com os filhos, o pai paraltico
e a irm prostituta. A misria e a solido para cuidar das coisas prticas da vida so companheiras
constantes nos dois pequenos cmodos do barraco. Assim como a maior parte das mulheres negras,
Ditinha empregada domstica. Na casa grande, bairro nobre onde trabalha, os elogios da patroa
so para o trabalho da empregada, que sente o contraste entre ela e a patroa: Como D. Laura era
bonita! Muito alta, loira, com os olhos da cor daquela pedra de joias. [...] Olhando e admirando a
beleza de D. Laura, Ditinha se sentiu mais feia ainda (BM, p. 94). mediante comparaes entre
as duas mulheres que se d o embate entre suas casas e aparncias, j que a ideia de bonito ligada ao
consumismo e ao branqueamento perpassa o discurso: o bairro nobre e a favela, a casa e o barraco,
uma bonita e a outra feia.
Ao ocuparem o mesmo ambiente, Ditinha sente-se incomodada: Olhou-se no espelho e
sentiu-se to feia, mais feia do que normalmente se sentia (BM, p. 93). A moa nem sequer se
permite a hiptese de possuir as joias, sapatos e roupas da patroa, visto que no possui boa
aparncia: E se eu tivesse vestidos e sapatos e soubesse arrumar os meus cabelos? (Ditinha
detestava o cabelo dela). Mesmo assim eu no assentaria com essas joias (BM, p. 93). Os
esteretipos de mulher feia, favelada, que no sabe se vestir, nem mesmo se tivesse os desejados
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produtos de consumo, fazem Ditinha se sentir como uma mulher submissa e incapaz. Ento, um
impulso, um furto, uma ao inconsciente no sabe sequer o que fazer com a joia leva-a para a
priso, um outro espao perifrico tambm relegado principalmente para a populao negra: E a
vergonha?! Ela j tinha tanta vergonha de Dona Laura. Julgava a patroa to limpa, ela to suja. E
agora, ainda por cima, ladra (BM, p. 111). Em virtude do acontecido, Ditinha amargar sete
meses no presdio de onde retorna inerte, culpada, sem nimo para recomear a vida, e sem
coragem para enfrentar o olhar dos outros (SCHMIDT, 2010, p. 211). Nesse processo, uma
mistura de culpa e medo o estopim para desencadear uma srie de cobranas, que sustentam o
sentimento de fracasso.
Enfim, trazer o corpo negro para a literatura brasileira enquanto proposta poltica requer
revisitar de forma crtica histrias das diferenas e das desigualdades, a exemplo da representao
das personagens Fiuzinha, Custdia e Ditinha ainda pode-se lembrar das personagens Outra,
Cidinha-Cidoca e Fil Gazognia, todas vtimas de uma espcie de violncia social , para sinalizar
um projeto de mudana, a partir da construo de uma nova histria, permeada pela constatao da
dura realidade vivida, mas marcada pelo desejo de transformao dessa mesma realidade.
Miriam Alves: outras violncias
Na coletnea de contos Mulher Mat(r)iz (2011), de Miriam Alves, das onze narrativas
reunidas, a violncia atravessa pelo menos nove delas. Mesmo quando ela no aparece enquanto
principal elemento ou de forma explcita, ela tangencia temas centrais e se insere no desenrolar das
histrias. No conto Um s gole, atravs de um surto de conscincia da narradora-personagem,
tem-se acesso aos danos causados pela violncia do racismo. Em meio a reflexes sobre suas
angstias e pensamentos suicidas, a narradora relembra o racismo sofrido na infncia, o que teria
desencadeado a vontade do no-viver.
Pela ocasio do Natal, Ergos faria representar o nascimento de Jesus. Na escolha das
personagens, eu escolhi ser Maria. Foi um riso s. Ria Ergos. Riam os meus colegas, menos
o Joozinho, que queria ser Jos Carpinteiro. Fiquei olhando todos, magoada, sem entender.
Ergos tentou convencer-me a fazer a camponesa No, dizia eu. Afinal, tinha me sado
bem no papel anterior. Os risos aumentavam de intensidade. Diante de minha obstinao,
Ergos disse: - Maria no pode ser da sua cor. Chorei. Lgrimas corriam entrecortadas por
soluos. Isto fazia a hilaridade da crianada que improvisava o coro: - Maria no preta,
Nossa Senhora. Maria no preta, me de Jesus (ALVES, 2011, p. 82)4.
4 Doravante o texto ser referenciado como MM, seguido do nmero da pgina.
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Percebe-se que Maria Pretinha, ao ocupar o espao pblico, a escola, se depara com as
consequncias da escravido. A menina negra, personagem ideal para representar a escrava
humilhada, no se encaixa no papel de Maria, me de Jesus. De acordo com as lembranas da
moa, foi a partir da que ela comeou a ausentar-se de [si] (op. cit., p. 82). Assim, ferida pelo
racismo, a narradora, ainda criana, j comea a sofrer os traumas advindos do preconceito. Trauma
este que a acompanhar, rumo margem, ao longo de sua vida: Afastei-me para nunca mais
voltar (op. cit.).
Um s gole passa-se predominantemente nas margens do rio ftido, lugar relegado
narradora personagem. Os meus ps levam-me sem rumo, como sempre. O que importam os
rumos? Num estalo de segundo, percebi que eu estava margeando o rio Mandaqui, andando numa
marcha abobalhada, de l para c, daqui para l (MM, p. 80). Contudo, esse (no)lugar vivido por
Maria Pretinha bastante sintomtico na narrativa, uma vez que, conforme apontado pela
professora Regina Dalcastagn (2012), ao observar o espao urbano na literatura brasileira
contempornea, para essas pessoas, ocupar um espao sinnimo de se contentar com os restos
as favelas, a periferia, os bairros decadentes, os prdios em runas. Mesmo o trnsito por
determinados lugares e ruas lhes vetado (2012, p. 120). Sendo assim, de fato, o espao da cidade
acaba se consolidando enquanto territrio de segregao (op. cit.), onde a mulher negra fadada
margem, pobreza, submisso.
J em outra narrativa da coletnea, Alice est morta, a mulher negra nela representada no
consegue livrar-se dos percalos cotidianos: tomava grandes porres de esperanas que a deixava
aturdida quando a bebedeira passava (MM, p. 37). Neste texto, diferentemente dos demais, o ento
companheiro de Alice quem narra seus descompassos. A moa, que se embriagava de esperana,
fumando estranhos cigarros de crena [,] dopava-se (MM, p. 38) mesmo antes de ir morar com o
narrador. Ele, desquitado h anos, com mulher e filhos espalhados neste mundo de Deus, tratava-a
como amiga (op. cit.). Ambos trabalhavam fora e tentavam lidar com a nova relao. Relao essa
descrita como de mtua dependncia.
O conto fala de amor, de dor, de cuidado e de morte. A narrativa comea e termina da
mesma forma, o narrador com Alice, semelhante boneca negra de pano (MM, p. 37), no cho, nos
braos, no colo. Ao discutir as principais nuances desse texto, o reconhecimento do prprio
narrador da adorao que ele sente pela moa faz-se importante, uma vez que naquela mesma noite
ele mata-a. Nesse processo, considerando que a literatura escrita por mulheres negras
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constantemente revisita a histria ficcionalizando as vivncias da populao negra, principalmente
, o assassinato do ente querido pode ser interpretado enquanto prova de amor ou empatia pela
situao vivida, visto que a morte pode ser interpretada como privao do martrio. apegado a isso
que o narrador-personagem justifica o assassinato de Alice:
Comeou a esmurrar-me. Exigia suas alegrias de volta. Arranhou-me o rosto na altura da
barba recm escanhoada. Doeu. Doeu mais no ter o que ela pedia. No havia nem pra
mim. O poo estava seco. Tinha apenas para continuar acordando, dormindo, trabalhando,
tomando cerveja nos dias de pagamento (MM, p. 40).
No entanto, embora haja a possibilidade por mim escolhida de aproximar literatura e aluso
histrica para justificar a escolha do narrador, no se pode deixar de destacar o comportamento
machista do narrador-personagem ao decidir o destino da moa, mesmo considerando uma dita
inteno boa de acabar com o sofrimento da mesma. Nota-se que a relao saudvel e ideal
enquanto Alice no impe nenhuma condio: era o meu par perfeito. No exigia nada (MM, p.
38). Nesse sentido, a escolha do ttulo, Alice est morta, aponta para uma corrente interpretativa
que j estabelece o (no)lugar da moa na histria: Ela resmungava e choramingava. Queria vida.
Ser que ela sabia o que isto significava? (MM, p. 39). Mais uma vez, a fala do homem paternal
vem indicar um caminho, nesse caso, apontando a morte como opo.
Dessa forma, percebe-se que a escritora Miriam Alves denuncia a situao precria vivida
por mulheres negras atravs da literatura. Assim, nos contos supracitados, a violncia atravessa os
espaos pblicos e privados ocupados por essas mulheres. De forma que o racismo aparece
enquanto causa e elemento desencadeador da narrativa, no texto Um s gole, ou tangenciando-a,
em Alice est morta, quando nos deparamos com a violncia simblica vivenciada no cotidiano
de mulheres negras, que procuram recursos em bebidas alcolicas, nos cigarros ou nas drogas como
forma de suprir a carncia, a depresso ou o preterimento.
A violncia do racismo, respaldada por um racismo brasileira5, atravessa outros contos de
Mulher Mat(r)iz, por exemplo, Os Olhos verdes de Esmeralda. Nessa narrativa, as personagens
so agredidas fsica e emocionalmente tambm em virtude de sua condio tnica. Nesse sentido, o
trecho um processo correndo sem testemunhas (MM, p. 69), fechamento do texto, denuncia a
fragilidade da lei: s so consideradas discriminatrias atitudes preconceituosas tomadas em
pblico. Atos privados ou ofensas de carter pessoal no so imputveis, mesmo porque
5 De acordo com a pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz (2012), Tudo indica que estamos diante de um tipo particular de racismo,
um racismo silencioso e sem cara que se esconde por trs de uma suposta garantia da universalidade e da igualdade das leis, e que
lana para o terreno do privado o jogo da discriminao (p. 182).
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precisariam de testemunha para a confirmao (SCHWARCZ, 2012, p. 209). Salvo ressalva que as
moas foram agredidas no espao pblico, esse aspecto tambm se aproxima de Um s gole.
Contudo, testemunhas no so suficientes para denunciar a violncia sofrida, uma vez que, nas
narrativas, essas tambm so coniventes com o racismo.
Em A cega e a negra uma fbula, Miriam Alves mais uma vez traz a mesma denncia.
Aqui, o racismo brasileira mais argucioso, no confronta o sujeito negro diretamente, mas se
vale de estratgias sutis para selecionar ou restringir o acesso desse a determinados espaos.
justamente a partir da percepo de tais restries que a personagem Ceclia questiona: No
entendia por que as portas giratrias no giravam na sua vez de adentrar o recinto. Passou a no
portar mais bolsa, somente o necessrio nos bolsos. Mesmo assim, l vinha a voz do segurana:
Tem chave? Guarda-chuva? Celular? Moedas? Objetos metlicos? (MM, p. 33). No texto, a unio
de Ceclia, mulher negra, com Flora, deficiente visual, faz-se potente no combate ao racismo,
sobretudo, porque se subentende que Flora seja rica, logo, Ceclia livrava-se das travas das portas
do mundo. Os porteiros e seguranas, com salamaleques, abriam as portas, envoltos em sentimentos
de piedade e puxa-saquismo (MM, p. 35).
Fechando a coletnea, o conto Brincadeira volta a trazer a violncia do racismo como
foco. Nessa narrativa, diferentemente das demais, a vtima reage brincadeira racista e faz justia
com as prprias mos.
Zinho resolveu ignorar e seguir em frente. No queria se atrasar para a aula. Os maiores
cercaram-lhe o caminho, derrubando-o. Livros e cadernos espalhados no cho da rua
enlameada. O esforo do seu Raimundo coberto de lama vermelha. Zinho no mediu
tamanho nem idade. Atingiu um deles na perna, derrubando-o. Continuou fazendo justia.
Empunhava a lei. Batia. Batia. Batia, ignorando os gritos vindos do cho. Os outros
tentaram apazigu-lo: Ei, menino, brincadeira (MM, p. 87).
Brincadeira, texto curto, de longo flego, incomoda e aponta a violncia das brincadeiras
racistas. Joo, o menino inteligente, que sabia o peso das responsabilidades em relao aos sonhos
da famlia, bate e mata, cobrando de seus agressores o suor do pai para comprar o material escolar.
Mas, ao mesmo tempo, o sangue de seu algoz tingia o material escolar novinho, melando o sonho
de Joo, Raimundo e Josefa (MM, p. 87), e impingindo Joo, o Zinho, garoto inteligente, rosto
negro e mido, sorriso brilhante, portador de uma felicidade infantil, a uma espcie de morte
social (Cf., Cruz, 2010).
bastante sintomtico observar que o ltimo conto da coleo apresenta a violncia do
racismo levada s ltimas consequncias. Uma leitura possvel denuncia o quanto o racismo
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perverso, roubando sonhos e transformando vtimas em algozes. Nesse sentido, ao aproximar essa
representao a um realismo social, questiona-se quantos meninos negros, menores infratores, no
carregam consigo as consequncias de uma brincadeira racista, sendo condenados pela sociedade
mesmo antes de crescerem plenamente.
Logo, percebe-se que nos contos supracitados o preconceito racial atravessa as narrativas
negro-brasileiras que trazem a representao das possveis consequncias advindas dessa violncia.
A escrita ser, portanto, um espao de resistncia, a literatura afro-brasileira abrir caminhos
dantes obliterados pelos preconceitos, lanando mo da crtica e reflexo como substratos
(FIGUEIREDO, 2009, p. 103). Para isso, a escritora e intelectual Miriam Alves faz da escrita negra
instrumento de reivindicao e denncia, afinal, conforme afirmado pela autora em entrevista, a
ao de militante maior de um escritor escrever, produzir textos [...]. Escrever uma ao
poltica (ALVES, 2016, p. 175).
Consideraes finais
Tratando-se especificamente da mulher intelectual negra, bell hooks afirma que os trabalhos
das mulheres so raramente reconhecidos como atividades intelectuais, uma vez que, quando se
pensa em intelectuais negros, quase sempre vida e obras de homens so lembradas, embora as
mulheres negras tivessem tido um papel importante em suas comunidades, enquanto professoras,
crticas, entre outros (hooks, 1995). A pesquisadora ainda associa trabalho intelectual e poltica do
cotidiano, pois seria por meio do conhecimento que a intelectual entenderia a sua realidade e o
mundo a sua volta (p. 466). Dessa forma, nota-se essa aproximao entre a atividade intelectual e a
realidade do seu grupo condizente com anlises da produo de mulheres negras brasileiras na
atualidade, j que constantemente as diversas violncias do cotidiano, bem como suas vivncias, se
fazem presentes.
Em Becos da Memria, de Conceio Evaristo, constri-se uma memria coletiva de uma
localidade em crise, ao se narrar histrias de submisso, opresso e violncia tnica, etria, de
gnero e de classe, como de Fuizinha, Custdia e Ditinha, e a narradora-personagem Maria-Nova
percebe que outra histria possvel, mas para isso ser necessrio (re)contar a histria e (re)nascer,
mediante a construo de uma nova histria, permeada pela constatao da dura realidade vivida,
mas marcada pelo desejo de transformao dessa mesma realidade.
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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
J em Mulher Mat(r)iz, de Miriam Alves, considerando alguns contos da coletnea Olhos
Verdes de Esmeralda, Um s gole, Xeque-mate, A cega e a Negra, Alice est morta ,
sintomtico o espao predestinado s mulheres: Maria Pretinha passa a maior parte da narrativa s
margens de um rio ftido; Alice jogada ainda viva em uma ribanceira usada como lixo e desova
de presunto de polcia (MM, p. 40); Irene, Marina e Esmeralda tm seus corpos violados, enquanto
Ceclia luta para destravar todas as portas do preconceito. Nessas representaes possvel
empreender a denncia do corpo negro, principalmente o feminino, tido como sujo e violado, por
isso ocupando o espao das margens ou da submisso, o que denuncia uma (des)ordem social que
enquadra o (no)lugar da mulher negra na sociedade.
Nessa perspectiva, ao pensar a mulher negra intelectual na contemporaneidade, Conceio
Evaristo e Miriam Alves carecem ser consideradas, uma vez que a literatura afrofeminina aqui
apresentada funciona como um lugar para repensar uma realidade social em crise e, ainda mais, atua
como espao de reflexo para problematizar as relaes sociais e culturais assimtricas e inquas
que tm perpetuado divises de gnero e tnico-sociais ao longo da histria do Brasil.
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Black woman intellectuals: contemporary black-brazilian prose
Astract: Aiming to discuss the role of the black woman as an intellectual, engaged in the struggle
for the transformation of Brazilian society, this presentation has as corpus the contemporary afro-
brazilian women narratives Becos da Memria (2006) and Mulher Mat(r)iz (2011), by Conceio
Evaristo and Miriam Alves, respectively. For this, I will analyze the texts of these women writers,
dealing with questions like "the public and the private" (PISCITELLI, 2005), "everyday politics"
(hooks, 1995), "the role of the intellectual (SAID, 2005), and, more specifically, about the black-
brazilian woman intellectuals (SOUZA, 2010).
Keywords: Black woman intellectuals. Conceio Evaristo. Miriam Alves.