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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
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Interações Mediadas na Página SP Invisível: Convocações a Novos Olhares e Formas
de Viver a Cidade1
Mayara Luma LOBATO2
Filipe de Oliveira COSTA3
Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo, SP
Resumo
Neste trabalho, nosso propósito é discutir os mecanismos de convocação e interação
mediada da página do Facebook SP Invisível, que aborda histórias de vida, relatos e
depoimentos de diversas pessoas enquadradas como invisíveis urbanos – como mendigos,
malabaristas, usuários de drogas, prostitutas e transeuntes. A partir de referenciais teóricos
do campo da comunicação e dos estudos sobre subjetividade, incluindo Sibilia (2008),
Aidar Prado (2013), Sevcenko (2002) e Thompson (1998), é feita uma análise dos
comentários de seguidores e dos depoimentos publicados na página, a fim de problematizar
as ferramentas e os modos de interpelação nela existentes. Ao fim, nota-se a adoção de
estratégias de convocação que enfatizam o acionamento afetivo do internauta, que visam à
mobilização e à deliberação sobre os modos de vida dos personagens retratados.
Palavras-chave: comunicação; interfaces comunicacionais; interação mediada; SP
Invisível; subjetividade.
Introdução
Diariamente, muitas são as pessoas que se cruzam em ruas e esquinas dos grandes
centros urbanos. A vida apressada em cidades como São Paulo, muitas vezes, empurra seus
habitantes para uma espécie de visão seletiva: dentro de sua rotina, veem apenas aquilo que
desejam e fecham os olhos para uma infinidade de histórias, cenários, afetos, sensações.
Esses personagens urbanos somos todos nós, que, muitas vezes, insistimos em esquecer que
a cidade é sempre um ambiente compartilhado, que dividimos com muitas outras pessoas;
algumas a nós se assemelham e oferecemos a elas o nosso olhar, outras se mantêm
invisíveis nos variados espaços pelos quais transitamos cotidianamente.
1 Trabalho apresentado no GP Comunicação e Culturas Urbanas do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em
Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM/SP. Mestre em
Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. Professora do Centro Universitário FIAM-FAAM. Mediadora do Núcleo de
Estudos de Gênero e Sexualidade (NUGE - FIAM-FAAM), e-mail: [email protected].
3 Graduado em Comunicação Social com Habilitação em Publicidade e Propaganda – Estácio CEUT-PI. Mestrando do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM/SP, na Linha de Pesquisa Lógicas de
Produção e Estratégias Midiáticas Articuladas ao Consumo, e-mail: [email protected].
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Comumente, pessoas em situação de rua compõem esse cenário dos invisíveis
urbanos: “mendigos”, malabaristas de farol, limpadores de para-brisas, usuários de drogas,
prostitutas... Se, usando a vida apressada como argumento, insistimos em tornar essas
pessoas invisíveis, a página no Facebook SP Invisível, cuja proposta é dar voz a esses
indivíduos, publicando fotos e depoimentos seus, convoca-nos (AIDAR PRADO, 2013) a
vê-los, a conhecer suas histórias. Tendo como suporte a mídia, o Facebook, uma rede social
digital, o projeto usa a tecnologia para conseguir se efetivar, representando um dos vários
exemplos atuais do que Thompson (1998) chama de “interação mediada” ou “quase-
interação mediada”.
Neste artigo, propomo-nos a fazer uma análise sobre a página SP Invisível,
considerando os depoimentos publicados e os comentários de seguidores, muitos deles
dedicados à ideia de oferecer um novo olhar à cidade e àqueles “outros” pelos quais
passamos todos os dias. A partir dessas observações, consideramos que SP Invisível propõe
um novo tipo de interação entre os habitantes que dividem um mesmo espaço urbano. Além
de Aidar Prado (2013) e Thompson (1998), os debates de autores como Sevcenko (2002) e
Sibilia (2008) tiveram contribuição fundamental para esta pesquisa.
SP Invisível: uma breve contextualização
O coletivo SP Invisível – fundado por Vinicius Lima e André Soler – intitula-se
como um movimento e não um projeto, pois, para os fundadores, um movimento está em
constante evolução, ao contrário do segundo modelo. O movimento trata-se de uma
divulgação de histórias de pessoas que vivem nas ruas da cidade de São Paulo, com a
proposta de um olhar humanizado que visa a um relacionamento de forma horizontal entre a
população “visível” e a população estigmatizada e esquecida – incluindo trabalhadores
comuns, artistas independentes, moradores de rua, travestis e prostitutas, por exemplo.
Segundo os fundadores4 do movimento, “o SP invisível surgiu de um incômodo com a
situação que vivemos hoje em São Paulo, um monte de pessoas andando que se encaram e
se esbarram, mas ninguém se olha ou percebem umas às outras”.
O movimento SP Invisível começou na rede social digital Facebook5, com a
divulgação de fotos e depoimentos dos habitantes “invisíveis” de São Paulo; normalmente
4 Disponível em: http://www.ideafixa.com/sp-invisivel. Acesso em 4 mai. 2016.
5 Disponível em: https://www.facebook.com/spinvisivel. Acesso em 4 mai. 2016.
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os relatos continham a explicação sobre como e por que a pessoa estava morando na rua.
Com o tempo, o movimento obteve uma maior visibilidade nas mídias digitais e não digitais
e, assim, foi migrando para outras plataformas digitais e outras cidades pelo Brasil.
Atualmente, o movimento ampliou-se para lugares como Porto Alegre (RS), Salvador (BA),
Fortaleza (CE), Rio de Janeiro (RJ) e Manaus (AM).
O foco da comunicação continua na rede social digital Facebook, porém, o
movimento conta também com um website oficial6, interessante em especial para
estrangeiros que, nele, podem ter acesso à história do movimento em inglês.
Interações mediadas e convocações nos espaços urbanos
Com quantas pessoas cruzamos, em um dia, numa grande cidade como São Paulo?
Quantas oferecem seu olhar ao nosso e para quantos negligenciamos atenção? Diversos são
os autores que falam da vida apressada nas grandes cidades, que se estabelecem no século
XIX, durante a modernidade, como Benjamin (2010) e Simmel (2009). Edgar Allan Poe
também teve como um dos principais temas de sua literatura o cotidiano urbano. Em “O
homem na multidão”, o escritor, sentado junto à janela de um café londrino, propõe-se a
observar os transeuntes. Seu texto, publicado há mais de um século, continua atual:
A grande maioria dos que passavam tinha uma atitude satisfeita e
eficiente, e parecia só pensar em abrir caminho na torrente. Tinham as
sobrancelhas franzidas e moviam os olhos com rapidez; quando
esbarrados por outros passantes, não expressavam nenhum sinal de
impaciência, apenas ajeitavam a roupa e seguiam se apressando. Outros,
de uma classe também numerosa, tinham movimentos agitados, o rosto
vermelho e falavam e gesticulavam sozinhos, como que se sentindo
solitários exatamente por causa da densidade do agrupamento à sua volta
(POE, 2014, p.2).
Sevcenko (2002, p.84) também reconhece o impacto da “Revolução Científico-
Tecnológica, que em fins do século 19 desencadeou os grandes processos migratórios que
deram origem às metrópoles contemporâneas”. O autor atualiza esse debate, considerando
em especial os novos aspectos econômicos que geram mudanças nos espaços urbanos e, por
consequência, em seus usos e nas formas de vida daqueles que os habitam. Para ele,
vivemos na “era das grandes corporações”, ou da globalização, em que essas empresas
“fragmentaram sua estrutura funcional, espalhando seus negócios pelos diferentes
6 Disponível em: http://spinvisivel.com. Acesso em 4 mai. 2016
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quadrantes do mundo” (SEVCENKO, 2002, p.79). Aspecto esse que, é claro, afeta a
estrutura urbana: “os processos de transformação nas cidades devem, portanto, ser
compreendidos em consonância e como um efeito dessas mudanças profundas que estão
ocorrendo no sistema econômico internacional (SEVCENKO, 2002, p.81).
Segundo o autor, o próprio crescimento urbano “multiplica a desigualdade e a
pobreza, ao invés de corrigi-los, como outrora se esperava” (SEVCENKO, 2002, p.85).
Assim, uma das grandes marcas das cidades é o “aumento da polarização entre os extremos
de um núcleo cada vez mais concentrado de altos salários, de um lado, e uma ampla pressão
conducente à disseminação da baixa remuneração, do outro” (SEVCENKO, 2002, p.84).
Para ele, isso gera um processo de “secessão dos bem-sucedidos” (SEVCENKO, 2002,
p.84), ajudado pela tecnologia de que dispomos na atualidade:
Os yuppies, bobos e digeratis preferem viver em íntima relação com seus
aparatos eletrônicos, computadores, telefones celulares, máquinas de fax,
bippers, modem e a internet, dispensando cada vez mais o contato com
pessoas reais, sobretudo se essas pessoas são estranhas e pobres
(SEVCENKO, 2002, p.85, grifos do autor).
Em oposição a Sevcenko (2002), Thompson (1998), no livro Mídia e Modernidade,
acredita que a mídia, inegavelmente, depende da tecnologia e impulsiona a socialidade. Ao
contrário de dificultar o contato com outras pessoas e com o ambiente, provoca novas
formas de viver, ver e sentir as cidades. Para o autor, “o desenvolvimento da mídia é assim
uma parte integrante de uma característica dinâmica mais ampla das sociedades modernas,
[...] que se pode descrever como o efeito recíproco de complexidade e experiência prática”
(THOMPSON, 1998, p.189). Segundo Thompson (1998, p.202), “parece claro que a
estrutura da experiência mudou de várias e significativas maneiras”, o que, em grande
medida, é provocado pela mídia, que “tanto contribui para o crescimento da complexidade
social quanto proporciona uma fonte constante de conselhos sobre como enfrentá-la”
(THOMPSON, 1998, p.190).
Além da “experiência vivida”, passamos a contar também no mundo atual com uma
experiência mediada, classificada pelo autor como “interação mediada” ou “quase-interação
mediada” (THOMPSON, 1998): “a mídia aumentou a capacidade dos indivíduos
experimentarem [...] fenômenos que dificilmente poderiam encontrar na rotina ordinária de
suas vidas” (THOMPSON, 1998, p.182). De forma simples, a diferença entre as duas é que
a primeira é dialógica e é orientada a receptores específicos, ou seja, “os indivíduos podem
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estabelecer uma forma de intimidade recíproca”; já a quase-interação mediada é
monológica e se destina a um número indefinido de receptores potenciais, por isso, “os
indivíduos podem criar e estabelecer uma forma de intimidade essencialmente não
recíproca” (THOMPSON, 1998, p.181-182).
Considerando essas novas possibilidades de experimentação, segundo o autor, a
mídia tornaria nosso cotidiano também mais complexo, pois “produz um contínuo
entrelaçamento de diferentes formas de experiência, uma mistura que torna o dia-a-dia de
muitos indivíduos hoje bastante diferente do experimentado por gerações anteriores”
(THOMPSON, 1998, p.197). Ainda nas palavras do autor:
[...] experimentar eventos através da mídia é experimentar eventos que,
em sua grande maioria, estão distantes espacialmente (e talvez também
temporalmente) dos contextos práticos da vida diária. São eventos que
dificilmente seriam presenciados diretamente no curso das atividades
normais da vida diária. Por isso, eles são eventos que, para os indivíduos
que os assistem pela mídia, têm um caráter refratário: isto é, são
acontecimentos que muito provavelmente serão afetados pelas ações
destes indivíduos. Eles estão fora do alcance e, portanto, fora do controle
de quem os assiste (THOMPSON, 1998, p.197-198).
Esses eventos, portanto, aos quais só temos acesso pela mídia, segundo o autor,
aumentam nossos horizontes e referências, pois a interação não mais está limitada ao face a
face, podendo acontecer em contextos temporais e espaciais distintos. E mais: se, antes, a
vivência de uma experiência comum estava restrita àqueles que partilhavam um mesmo
espaço, agora, “os indivíduos podem ter experiências similares através da mídia sem
compartilhar os mesmos contextos de vida” (THOMPSON, 1998, p.200).
Para que isso aconteça, as experiências mediadas assumem sempre um caráter
recontextualizador, pois “são reimplantadas, através da recepção e apropriação dos produtos
da mídia, nos contextos práticos da vida diária” (THOMPSON, 2002, p.198). Mas o autor
faz uma ressalva: os contextos em que cada um está inserido afetam de forma determinante
a maneira como são feitas a recepção, a apropriação e a incorporação dos produtos
midiáticos. E é isso que faz com que a experiência mediada não seja igual para todos,
podendo gerar choques e situações desconcertantes por conta dos contrastes entre os
contextos envolvidos.
Como Thompson (2002), Aidar Prado (2013, p.13) concorda que, hoje, as vivências
do tempo e do espaço são diferentes, em alguns aspectos, por conta também dos media –
termo priorizado pelo autor –, que, entre muitas outras coisas, “teriam democratizado as
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visões de mundo” (AIDAR PRADO, 2013, p.16). Para ele, a mídia funciona como um
dispositivo comunicacional de convocação, “um empuxo à interatividade [...], o objetivo é
apenas o de fazer participar, de fazer ser interativo para criar um ambiente repleto de
intensidades [...]” (AIDAR PRADO, 2013, p.40). Por meio desse dispositivo, somos
instados a participar socialmente do que quer que seja que se esteja promovendo:
Nessa direção os media são dispositivos convocadores e orientadores de
ação de primeira ordem no capitalismo contemporâneo. As convocações
dos sistemas dos media e da publicidade buscam a adesão a programas
que se propõem capacitar o leitor em um campo e modalizá-lo para ser o
melhor, para sentir-se bem, bem adaptado ao mundo [...] (AIDAR
PRADO, 2013, p.60).
Evocando Agamben, o autor explica que a força dos dispositivos está organizada em
torno de três tópicos: é um conjunto heterogêneo, sua organização se dá em rede e inclui
vários discursos, instituições e proposições (AIDAR PRADO, 2013, p.59). A convocação
que esse dispositivo promove também está estruturada em três fases: a captura da atenção, a
interpelação propriamente e o retorno, o feedback do processo (AIDAR PRADO, 2013,
p.51-53).
Em seu livro “Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais”, o autor
se vale principalmente de exemplos de meios de comunicação tradicionais, como as
revistas, para explicar como a mídia assume o papel de convocadora da sociedade. Porém,
suas ideias são aplicáveis também à internet e às redes sociais digitais, como o próprio autor
prevê:
Para que as pessoas buscam “textos”, sejam na internet, sejam em revistas,
sejam na televisão? A resposta não é somente “para se informar”, mas:
para se integrar, ao se informar, para se localizar, para ter narrativas de
enquadramento no mundo, para saber qual é o meu mundo, como ele
funciona, como eu posso pertencer melhor a esse que já é o meu mundo
(AIDAR PRADO, 2013, p.54).
E é buscando se informar, entender melhor o seu mundo, conseguir nele se localizar
e a ele pertencer, que muitos usuários do Facebook buscam a página SP Invisível, objeto de
análise deste estudo que se conecta às ideias aqui apresentadas
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Olhares e convocações em SP Invisível
A pergunta que fizemos no início do tópico acima – com quantas pessoas cruzamos
todos os dias sem nos dar conta em uma grande cidade? – encontra uma possível resposta
na página do Facebook SP Invisível. Sua proposta é trazer depoimentos de pessoas que
estão em situação de rua, em especial moradores e usuários de drogas. Há também algumas
séries especiais, como “Crianças Invisíveis”, em que a página contou não histórias de
crianças que vivem nas ruas, mas, sim, daquelas que vivem em comunidades pobres da
cidade. Atualmente, a SP Invisível conta com cerca de 300 mil curtidas.
A página, em primeiro lugar, reverbera os pensamentos de Aidar Prado (2013), pois
é parte dos media, que, segundo o autor, “teriam trazido à luz e à voz discursos que
anteriormente só viviam no subúrbio das sociedades modernas” (AIDAR PRADO, 2013,
p.16). SP Invisível tenta, ainda, romper com as chamadas análises conservadoras de que
trata o mesmo autor, para as quais “a existência dos sem-teto, dos habitantes dos guetos,
dos desempregados crônicos é exceção e não um fracasso estrutural do capitalismo”
(AIDAR PRADO, 2013, p.40).
Um movimento como o analisado aqui só tem espaço para existir e crescer em
centros urbanos como os que temos estabelecidos hoje, em especial na América Latina,
frutos de um sistema econômico internacional em desequilíbrio. Segundo Sevcenko (2002,
p.80), as grandes empresas controlam mundialmente operações econômicas, financeiras e
comerciais, sem, no entanto, promover investimentos em desenvolvimento científico,
tecnológico e em atividades culturais. E acabam sendo as cidades do Terceiro Mundo7 que
mais sentem os efeitos negativos disso:
Em vista da desigualdade estrutural sobre a qual se baseia a estratégia das
empresas, os lucros tendem a se acumular nas matrizes, sendo então
desviados dos processos produtivos e redirecionados para mais altamente
lucrativa das atividades, que [...] é a especulação cambial e financeira.
Assim desviados, eles se beneficiam ainda de isenções de impostos, são
canalizados via paraísos fiscais ou quaisquer outros mecanismos de
evasão, de forma que o que deixam de reaplicar na economia deixam
igualmente de reverter para sustentar os serviços públicos, atividades e
serviços de interesse social. O quadro que se cria é o da estagnação
econômica, desemprego ascendente e queda na massa salarial, muito
embora a lucratividade, os balanços e as ações das empresas continuem
crescendo (SEVCENKO, 2002, p.81, grifos nossos).
7 O termo caiu em desuso, mas ainda é usado por Sevcenko (2002), por isso, optamos por mantê-lo ao explicar as ideias do
autor.
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Como propõe o autor, os processos de transformação por que passam as cidades
devem, portanto, ser entendidos em consenso com o sistema econômico internacional, o
qual também passa por mudanças profundas (SEVCENKO, 2002). E entre as consequências
mais alarmantes dessas transformações, como o autor também aponta, está o aumento da
polarização entre as classes sociais e, portanto, entre os habitantes das cidades
(SEVCENKO, 2002). Muitas vezes, essa polarização não se dá espacialmente, mas pelos
estilos de vida, pelos hábitos de consumo, pelos modos de habitação, pelos usos do espaço
urbano etc. É o que observamos na SP Invisível, que em certa medida tenta romper com a
barreira do “outro”, da comum oposição entre “nós” e “eles”, reforçando que todos
habitamos e dividimos o mesmo espaço urbano.
Se, como propõe o autor, o processo de crise urbana é sentido de forma mais
acentuado “nas cidades periféricas do que nas globais8 e muito mais acentuado nas grandes
cidades do que nas pequenas” (SEVCENKO, 2002 p.84), a página em questão tem muitas
histórias de vida para explorar. Nela, há depoimentos como o de Rosana9, uma advogada
que perdeu o emprego e hoje oferece faxina em um farol na região do Paraíso; ou como o
de um jovem10 de 17 anos que era religioso, cantava no coral da igreja, mas começou a usar
drogas e agora vive com a namorada nas ruas; ou, ainda, como o de Carlos Augusto11, de 58
anos, de Maceió (AL), que está na rua há quatro meses, tentando juntar dinheiro com o que
ganha do Programa Bolsa Família e alguns “bicos” para conseguir alugar uma casa.
8 Para o autor, cidades globais são aquelas que se beneficiam de um sistema econômico em desequilíbrio, detendo 75% do
produto bruto mundial, como algumas da Europa, Estados Unidos e Japão (SEVCENKO, 2002, p.80). 9 Link para este depoimento: https://www.facebook.com/spinvisivel/photos/pb.598268693591136.-
2207520000.1463428930./941994062551929/?type=3&theater 10 Link para este depoimento: https://www.facebook.com/spinvisivel/photos/pb.598268693591136.-
2207520000.1465147621./1016476208437047/?type=3&theater 11 Link para este depoimento: https://www.facebook.com/spinvisivel/photos/pb.598268693591136.-
2207520000.1465147668./1021507444600590/?type=3&theater
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Figura 1. Foto que acompanha o depoimento da advogada Rosana à página. Autor: SP Invisível.
Todos esses exemplos de personagens em situação de vulnerabilidade social
ilustram as reflexões de Sevcenko (2002, p.84) sobre a atual situação das metrópoles
globais:
[...] as cidades grandes, sobretudo nos países subdesenvolvidos, sofrem
um influxo maior e mais constante de populações flutuantes. São grandes
contingentes de vários tipos: populações migrantes, grupos
marginalizados, trabalhadores eventuais, fluxos sazonais e a pressão
sempre crescente das novas gerações de jovens nascidas dessas mesmas
coletividades, mas que já têm com relação à cidade um nível de
familiaridade, expectativas e frustrações incomparavelmente maiores. No
conjunto, esses contingentes crescentes dão ensejo a efeitos que recaem
sobre eles mesmos e sobre outros setores vulneráveis da população
urbana, na medida em que aumentam a oferta de trabalho, deprimem a
escala salarial, facilitando os trajetos paralelos da “terceirização”, da
“flexibilização” e da chamada “economia informal” (SEVCENKO, 2002
p.84, grifos do autor).
Ao mesmo tempo, só temos acesso a todas essas histórias pela experiência mediada
de que trata Thompson (1998). Na verdade, fisicamente, muitas vezes, estamos próximos
daqueles apresentados na SP Invisível, mas, pela lógica de funcionamento das grandes
cidades, não teríamos muitas outras formas de conhecer suas histórias e com eles
estabelecer relações de intimidade, nos termos de que trata o autor, se não fosse pela
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mediação da rede social em questão. Aspecto esse que se observa no comentário de Nívea
Carvalho na página: “As vezes a gente tem medo ou as vezes a correria nos cega”12.
O que se estabelece entre os que acompanham a página e seus “invisíveis” é um
processo de quase-interação mediada, pois é monológico e orientado a um número
indefinido de receptores. Alguns comentários são emblemáticos nesse sentido, como este:
“A gente anda por essa cidade todos os dias e não imagina a quantidade de historias
incriveis que as pessoas carregam consigo”, de Bruna Brasil. E, ainda: “Eu trabalho na Rua
Estela e a vejo [a depoente] todos os dias. Desde que trabalho neste local (cerca de 1 mês) a
observo. Já pensei em falar com ela e pedir uma foto p postar. Afim de tentar ajudá-la. Fico
feliz que a imagem dela está sendo divulgada!”, de Natalia Antunes. Na quase-interação
mediada, o que se estabelece é uma espécie de “intimidade à distância”, que, nos termos do
autor, “não é dialógica, [...] não tem caráter recíproco [...], é um tipo de intimidade que
deixa os indivíduos com a liberdade de definir os termos de engajamento e de intimidade
que desejam ter com os outros” (THOMPSON, 1998, p.191).
As ideias de Thompson (1998) podem ser conectadas também às de Paula Sibilia
(2008), que entende que a internet e as interações sociais por ela proporcionadas, em
especial nas redes sociais digitais, acabam por gerar mudanças profundas nos processos de
construção do eu, chegando mesmo a suscitar a composição de novas subjetividades. É o
que acontece na página SP Invisível, à medida em que proporciona, entre outros elementos
e situações, a “intimidade à distância”: quem acompanha os depoimentos publicados se
aproxima e passa a conhecer detalhes da vida dos depoentes, sem que estes saibam qualquer
coisa da vida de quem lê suas histórias13.
Para além da quase-interação mediada, a SP Invisível, ao dar voz a populações
marginalizadas e tentar orientar nosso olhar a elas, propõe novas formas do que Thompson
chama de “experiência vivida”, já que “pode haver conexões causais entre os eventos
experimentados através da mídia e os contextos práticos da vida cotidiana” (THOMPSON,
1998, p.198). Elemento esse que pode ser observado nos comentários a seguir, por
exemplo: “Quero ajudar esse moco, vamos comprar uma passagem para ele !”, de
Constanza Munhoz, sobre a história de um homem que deseja voltar a sua cidade natal, mas
não tem dinheiro para a passagem.
12 Aqui e no restante deste trabalho, mantivemos os erros de digitação e grafia dos comentários da página. 13 Sempre é importante lembrar que esta distância nem sempre é física, podendo ser também de classes sociais, estilos de
vida, realidades vividas etc.
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Outro caso marcante: “Acredito que o Haddad tem feito muita coisa bacana, como
os centros de apoio aos lgbt. Acredito que a página de vocês é material muifo forte para
reivindicar novas políticas que visem os moradores de rua. Questão de articulação!
Podemos articular uma carta/projeto/assinaturas. A página tem visibilidde pra isso. Que
tal?”, de Mayara Paiva Nuernberg. Claro está que as experiências proporcionadas pela
página também afetam de forma profunda as subjetividades de quem a acompanha, nos
moldes propostos por Sibilia (2008).
Figura 2. Imagem do relato de Luiz, usuário de drogas que vive nas ruas de São Paulo. Autor: SP Invisível.
Comentários como os selecionados aqui são bons exemplos de como as interações
mediadas e quase-interações mediadas se tornam experiências importantes na vida das
pessoas, capazes de promover outros tipos de experiências vividas, até com vistas a tentar
mudar o cenário dos espaços urbanos com políticas públicas voltadas à população em
situação de rua, como observamos no comentário acima de Mayara. Pessoas como ela,
Constanza e tantas outras da página, depois de passar pelos dois primeiros estágios da
convocação de que trata Aidar Prado (2013), captura da atenção e interpelação, chegam à
fase do feedback, oferecendo retornos aos estímulos convocatórios. Elas se enquadram
também nas ideias de Thompson (1998):
Viver num mundo mediado significa uma nova carga de responsabilidade
que pesa gravemente sobre os ombros de alguns. Provoca uma nova
dinâmica na qual o imediatismo da experiência vivida e as reinvindicações
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morais associadas à interação face a face jogam constantemente contra as
demandas e as responsabilidades provenientes da experiência mediada.
Alguns indivíduos se fazem cegos e surdos a estes últimos apelos e
procuram manter distância de acontecimentos que estão, de algum modo,
distantes das pressões rotineiras da vida. Outros, estimulados pelas
imagens e relatos da mídia, se lançam em campanhas em favor de grupos
e de causas distantes14 (THOMPSON, 1998, p.202).
Interações mediadas ou quase-interações mediadas, como o caso analisado aqui,
convocam-nos a uma nova responsabilidade, a não fechar os olhos para determinadas
situações que demandam atenção e às quais, não fosse a experiência mediada,
provavelmente não teríamos acesso. Nas palavras de Aidar Prado (2013, p.12): “a
convocação oferece, portanto, não uma satisfação pura e simples para uma necessidade
‘natural’, mas dá forma a uma demanda latente” (grifos do autor). Para o autor, essas
convocações apelam à emoção e à experiência, o que SP Invisível também faz e pode ser
observado em comentários como o de Katre Danilevicius: “Meu coração sempre aperta com
esses relatos!”; ou o de Day Lopes: “Me emocionou de verdade! Me doi ver tanta gente
precisando de amor, de ajuda... Que vida dura ela tem!”.
Comentários como os transcritos acima provam que, ao ser interpelada, “a pessoa
tem de sentir o chamado no corpo, tem de responder com o corpo” (AIDAR PRADO, 2013,
p.58). Isso porque “o enunciador, para se fazer ouvir, trabalha o texto em sua força de
apelo, de interpelação, de narrativa carregada de sentidos ligados ao mundo cotidiano”
(AIDAR PRADO, 2013, p.58) – o que, inegavelmente, faz a página, por meio dos
depoimentos que publica.
Considerações finais
Como se observou ao longo do desenvolvimento deste artigo, as ideias de Aidar
Prado (2013), Sevcenko (2002) e, em especial, Thompson (1998) foram fundamentais para
compreender as novas formas de interação, conhecimento e contato com o mundo
proporcionadas pela internet, principalmente considerando as peculiaridades latino-
americanas que marcam a cidade de São Paulo, uma das maiores do mundo. Nesse sentido,
a análise da página SP Invisível, objeto de estudo desta pesquisa, mostrou-se profícua por
ilustrar de forma exemplar muitas das ideias dos autores.
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Durante o desenvolvimento da pesquisa, observamos, ainda, que o estudo da página
em questão pode se desdobrar em muitas outras direções. É possível, por exemplo, fazer um
estudo de recepção com pessoas que acompanham a SP Invisível para compreender como
os depoimentos com os quais tiveram contato transformaram suas experiências vividas,
como é a relação estabelecida com os espaços urbanos, a forma de olhar para as pessoas em
situação de rua ou vulnerabilidade, como se dá o engajamento em causas sociais etc. Nesse
sentido, estudos sobre modulação da subjetividade em tempos digitais, como os de Sibilia
(2008), também nos pareceram interessantes. O assunto se mostra bem mais complexo do
que o explorado aqui e aponta para novas direções, em pesquisas futuras que podem ser
desenvolvidas.
Resgatando as ideias de Poe apresentadas anteriormente, é como se a página nos
convidasse a ser o observador, em moldes próximos ao do escritor ao construir seu conto
“O homem na multidão”. No lugar do café, temos um assento qualquer, uma cadeira de
escritório, um banco de ônibus ou de metrô; ao invés de uma janela, temos a tela de um
computador, tablet ou celular, que, de forma figurada, representa, hoje, algumas de nossas
grandes janelas de acesso ao mundo.
Referências bibliográficas
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