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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 1 Biopolítica e a crise dos refugiados na Europa: apátridas e campos de exceção 1 Alexandre MANDUCA 2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP Resumo Em meio a guerras e ocupações de grupos extremistas na África e Oriente Médio, uma movimentação de refugiados sem precedentes nos últimos 50 anos provocou na Europa impasses que vão da xenofobia à comoção. O refugiado, a princípio, não dispõe de direitos de cidadão tornando-se sem pátria enquanto tenta encontrar uma nova identidade em outro país agarrando-se ao direito que lhe compete de ser humano. Este trabalho propõe discutir o tema pelo viés da biopolítica, além de expor como a imprensa tratou o assunto tendo como delimitação a morte do menino sírio Aylan, símbolo dessa crise de refugiados, que solaparam a estabilidade do Estado-nação. Palavras-chave: comunicação; cidadania; biopolítica; refugiados. Introdução O espectro dos refugiados ronda a Europa há décadas, mas tomou proporções desmedidas nos últimos três anos. Em 2015 o número chega a 1,2 milhão e deve dobrar em 2016 tornando-se um problema de Estado difícil de controlar. Para diminuir este impacto, alguns países, em especial Hungria e Polônia fecharam suas fronteiras e criaram campos de exceção à espera de ajuda humanitária. Outros países decidiram aceitar os refugiados que foram confinados em campos na Grécia e Alemanha aguardando o fim dos conflitos para serem deportados. Em outros países eles foram aceitos como imigrantes e passaram a conviver com os autóctones. Esta situação, que tem grande impacto econômico na Europa, gerou ondas de xenofobia e discursos de extrema direita fomentando grupos políticos contrários à imigração, inclusive fora do bloco europeu. Nos Estados Unidos o candidato republicano à presidência Donald Trump iniciou sua campanha com discurso xenofóbico dizendo que iria “cortar a cabeça” do Estado Islâmico e fortalecer o muro na fronteira com o México (CARTA CAPITAL, 2016). O cenário apresenta uma movimentação de pessoas que suscita discussões sobre direitos e políticas de inclusão e exclusão. Divergem algumas interpretações de quem são 1 Trabalho apresentado no GP Comunicação para a Cidadania do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, email: [email protected].

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Biopolítica e a crise dos refugiados na Europa: apátridas e campos de exceção1

Alexandre MANDUCA2

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP

Resumo

Em meio a guerras e ocupações de grupos extremistas na África e Oriente Médio, uma

movimentação de refugiados sem precedentes nos últimos 50 anos provocou na Europa

impasses que vão da xenofobia à comoção. O refugiado, a princípio, não dispõe de direitos

de cidadão tornando-se sem pátria enquanto tenta encontrar uma nova identidade em outro

país agarrando-se ao direito que lhe compete de ser humano. Este trabalho propõe discutir o

tema pelo viés da biopolítica, além de expor como a imprensa tratou o assunto tendo como

delimitação a morte do menino sírio Aylan, símbolo dessa crise de refugiados, que

solaparam a estabilidade do Estado-nação.

Palavras-chave: comunicação; cidadania; biopolítica; refugiados.

Introdução

O espectro dos refugiados ronda a Europa há décadas, mas tomou proporções

desmedidas nos últimos três anos. Em 2015 o número chega a 1,2 milhão e deve dobrar em

2016 tornando-se um problema de Estado difícil de controlar.

Para diminuir este impacto, alguns países, em especial Hungria e Polônia fecharam

suas fronteiras e criaram campos de exceção à espera de ajuda humanitária. Outros países

decidiram aceitar os refugiados que foram confinados em campos na Grécia e Alemanha

aguardando o fim dos conflitos para serem deportados. Em outros países eles foram aceitos

como imigrantes e passaram a conviver com os autóctones.

Esta situação, que tem grande impacto econômico na Europa, gerou ondas de

xenofobia e discursos de extrema direita fomentando grupos políticos contrários à

imigração, inclusive fora do bloco europeu. Nos Estados Unidos o candidato republicano à

presidência Donald Trump iniciou sua campanha com discurso xenofóbico dizendo que iria

“cortar a cabeça” do Estado Islâmico e fortalecer o muro na fronteira com o México

(CARTA CAPITAL, 2016).

O cenário apresenta uma movimentação de pessoas que suscita discussões sobre

direitos e políticas de inclusão e exclusão. Divergem algumas interpretações de quem são

1 Trabalho apresentado no GP Comunicação para a Cidadania do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação,

evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2 Doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, email: [email protected].

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estas pessoas e o que querem ao ingressarem em novos países e colocam em dúvida os

direitos para humanos e cidadãos em várias esferas políticas.

O refugiado torna-se uma nova categoria de cidadão onde sua condição biopolítica

lhe confere direitos e deveres diferentes de outros imigrantes que tentam acessar outros

países em busca de melhores condições de vida. Fica a dúvida: qual a diferença entre

imigrantes que tentam acessar outros países através da clandestinidade em busca de

trabalho e os refugiados, senão sua condição biopolítica? Este trabalho tenta elucidar isto e

de que forma a biopolítica e a mídia, através de pesquisa de análise de conteúdo, trata o

assunto que despertou o interesse da população.

Biopolítica e políticas de inclusão e exclusão

Michel Foucault no auspicioso texto “Direito de morte e poder sobre a vida” (2014,

p. 143-174) no primeiro livro sobre a História da sexualidade, apresenta o cenário de que

por muito tempo o direito de vida e morte era um privilégio do poder soberano. Um direito

herdado do termo patria potestas que concedia ao pai de família o direito de dispor da vida

de seus filhos e de seus escravos porque, a princípio, está retirando o que lhe foi dado.

Este direito também era exercido pelo soberano na defesa de sua vida ou seu reino,

expondo seus súditos às guerras ou demais ameaças, garantindo sua sobrevivência. “O

soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida exercendo seu direito de matar ou

contendo-o” e que “o direito que é formulado como ‘de vida e de morte’ é, de fato, o direito

de causar a morte ou de deixar viver”. (FOUCAULT, 2014, p. 146).

Isto também era aplicado no caso de revoltas ou insurgências contra o reino, que

dava o direito de exercer o poder sobre a morte, dando o direito à vida, como suplício ou o

poder sobre a vida, levando à morte, como castigo. Este direito do soberano significa que

ele pode fazer morrer e deixar viver dando ao súdito o direito de estar vivo e eventualmente,

ser morto. É como se o súdito fosse nem vivo nem morto, visto que este direito está com o

soberano.

No decorrer do século XVIII este poder sobre a vida sofreu mudanças em seus

mecanismos. O direito de morte se deslocou para um poder que gere vida invertendo a ação

do soberano em garantir a vida, mantê-la e desenvolvê-la. Neste cenário onde o poder tem a

função de gerir a vida, Foucault apresenta o termo biopolítica, onde “o velho direito de

causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à

morte” (2014, p. 149) num cálculo que o poder faz sobre a vida. A vida passa a ser regida

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pela estatística, onde possibilidades de manter a vida e evitar a morte passa a ser um dever

dos governantes.

Esta era de um biopoder que Foucault anuncia é marcada pelo aparecimento de

controle sobre populações, controle de natalidade, controle sobre doenças e epidemias e

sobre os corpos, sendo fundamental para o desenvolvimento do capitalismo em um

ajustamento da população aos processos econômicos (FOUCAULT, 2014, p. 152). A era da

biopolítica, desenvolvida na segunda metade do século XVIII, passa a preocupar-se também

com a proporção de nascimentos, com os óbitos, taxas de reprodução, fecundidade de uma

população, natalidade e longevidade. Os interesses do capital sobre a vida impulsionaram a

medicina, os aparatos do Estado com instituições de poder (escolas, hospitais, polícia etc.) e

seus dispositivos, a segregação e hierarquização social, ajustamento do capital ao humano e

expansão das forças produtivas.

O biopoder também contribuiu para a melhoria da vida em geral com os avanços no

controle de doenças, melhoria de técnicas agrícolas, desenvolvimento do conhecimento

sobre a vida e morte, novos medicamentos, vacinas e próteses para ampliar a vida e dirimir

a morte numa intervenção sem limites, administração de saúde individual e coletiva. Trata-

se da introdução de uma medicina que passa a ter a função de higienização pública,

combater epidemias, normatização e centralização de informações. Na ótica capitalista o

aumento da longevidade e da vida saudável amplia a força de trabalho e, ao mesmo tempo,

contribuiu para a geração de capital. O fato do poder encarregar-se disso entra no domínio

dos cálculos explícitos e da estatística tentando o domínio sobre a vida. Um poder cada vez

menos preocupado com o direito de fazer morrer e interferindo no fazer viver, na maneira

de viver e como viver. (FOUCAULT, 2010, p. 205-208).

Este novo poder apresenta-se em dois campos distintos: a centralização de

informação e medicalização da população e a todo conjunto de fenômenos universais ou

acidentais como incapacidade e velhice na introdução de instituições de assistência

economicamente racionais como seguros, de poupança, de seguridade, dentre outros. A

biopolítica vai ocupar-se aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população e

implementar mecanismos de controle e regulamentação.

Segundo Foucault este poder:

Aquém, portanto, do grande poder absoluto, dramático, sóbrio que era o

poder da soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece

agora, com essa tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder

sobre a “população” enquanto tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um

poder contínuo, científico, que é o poder de “fazer viver”. A soberania

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fazia morrer e deixar viver. E eis que agora aparece um poder que eu

chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e

em deixar morrer (FOUCAULT, 2010, p. 207).

Esta regulamentação seria o motivo para a desqualificação progressiva da morte que

deixa de ser uma cerimônia que todos participavam para ser algo que se esconde, algo

privado e vergonhoso, numa transformação das tecnologias de poder.

Dentro da esteia destes conceitos, Giorgio Agamben polemiza a discussão sobre

politização da vida, a partir de Foucault quando propõe que:

por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal

vivente, e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é

um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente.

(AGAMBEN, 2010, p. 116)

Esta mudança do homem antigo para o moderno, ao constituir-se como sujeito,

levou a um poder de controle externo transferido para o governante. Esta nova constituição

fica evidente nos estados totalitários dos séculos 19 e 20 colocando ao extremo a condição

humana principalmente na Alemanha Nazista e suas consequências no pós-guerra.

Agamben, desta forma, evidencia que o Estado-nação decreta o fim dos direitos do homem

e apresenta o controle extremo pela violência e encarceramento, em um novo tratado entre o

homem e o cidadão.

Isto remete ao próprio título “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão” de

1789 (USP, 2016) que deixa dúvidas se separa o que é ser humano e cidadão ou deixa

implícito se o primeiro já inclui o segundo. De qualquer forma, a declaração francesa faz a

passagem do soberano para o governante e do súdito para o cidadão, mas não deixa claro se

o nascimento o torna cidadão ou se os direitos são atribuídos ao homem quando nascem ou

só quando se torna cidadão (AGAMBEN, 2010, p. 125).

Os estados fascistas e nazistas colocam à prova estes direitos quando atribuem ao

sangue a natureza do cidadão e a desqualificação do humano. O nazismo introduz a

pergunta “quem, e o que é alemão?” e por consequência “quem, e o que não é” numa

redefinição do que é o homem e o cidadão.

Somente este vínculo entre os direitos do homem e a nova determinação

biopolítica da soberania permite compreender corretamente o singular

fenômeno, muitas vezes observado pelos historiadores da Revolução

Francesa, pelo qual, em imediata consequência com a declaração dos

direitos de nascimento inalienáveis e imprescritíveis, os direitos do

homem em geral foram distintos em ativos e passivos (...). Uma das

características essenciais da biopolítica moderna é sua necessidade de

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redefinir continuamente, na vida, o limiar que articula e separa aquilo que

está dentro daquilo que está fora. (AGAMBEN, 2010, p. 127)

Definir o que está dentro e o que está fora, o que é e o que não é cidadão, tem seu

exemplo mais nefasto no campo de concentração3 nazista levado a denominar-se,

posteriormente, campo de extermínio. Numa breve reflexão, o campo de concentração é um

espaço de exceção onde se confunde o humano do cidadão, onde pode-se cometer crimes ou

simplesmente encarcerar despido de qualquer direito.

Esta mescla entre humano e cidadão veio à tona na recente crise dos refugiados que

se assemelha às grandes movimentações europeias iniciadas a partir da primeira Guerra

Mundial e que teve seu ápice na segunda Grande Guerra.

O fim da primeira Guerra Mundial trouxe uma nova acomodação para a Europa,

resultado na desintegração dos últimos impérios e da própria reconfiguração geopolítica

provocada pelo conflito. O resultado imediato foi um sem número de nações desprovidas de

governos e identidade e o surgimento de apátridas ou povos sem Estado. Este fenômeno

colocou em crise, segundo Hannah Arendt, os elementos da democracia, o Estado-nação, a

soberania e os direitos humanos:

As modernas condições do poder, que, exceto para os Estados gigantes,

transformam a soberania nacional em pilhéria, junto com o advento do

imperialismo e dos movimentos de unificação étnica, foram fatores

externos que solaparam a estabilidade do sistema europeu de

Estados-nações. Nenhum deles adviera diretamente da tradição e das

instituições dos próprios Estados-nações. Sua desintegração interna só

começou após a Primeira Guerra Mundial, em consequência do

surgimento das minorias criadas pelos Tratados de Paz, e do movimento

crescente de refugiados, resultado de revoluções. (ARENDT, 1989, p.

303)

Uns dos grandes problemas dos refugiados aos Estados-nações, foi a abolição do

direito de asilo, para proteger os cidadãos, e a dupla constatação de que “era impossível

desfazer-se deles e era impossível transformá-los em cidadãos do país de refúgio,

principalmente porque todos concordavam em que só havia duas maneiras de resolver o

problema: repatriação ou naturalização” (ARENDT, 1989, p. 314). Este reflexo seria mais

desastroso no pós-Segunda Guerra Mundial, quando a devastação do conflito é maior e as

movimentação para outras regiões na Europa e fora dela serão igualmente maiores.

3 Os historiadores discutem a primeira aparição dos campos entre os campos de concentraciones criados pelos espanhóis

em Cuba, em 1896, para reprimir a insurreição da população da colônia, ou nos concentration camps nos quais os

ingleses, no início do século XX, mataram os bôeres (descendentes de colonos calvinistas)

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O impasse faz com que os refugiados percam, desta forma, todo seu direito de

cidadão tornando-se sem pátria enquanto tentam encontrar uma nova identidade em outro

país agarrando-se ao direito que compete de ser humano. Segundo Agamben o refugiado

representa um elemento tão inquietante porque rompe “a identidade de homem e cidadão,

entre natividade e nacionalidade, põe em crise a ficção originária da soberania” (2015, p.

29) obrigando as nações a oferecerem asilo pelo lado humano, longe do direito do cidadão,

carregando uma marca biopolítica apátrida.

Crise dos refugiados

A recente crise dos refugiados na Europa iniciada em 2013 tem seu ápice em 2015 e

2016 com cidadãos originados principalmente da Somália, Nigéria, Gâmbia, Eritreia,

Afeganistão, Paquistão e Síria. Eles fazem a travessia do Mar Mediterrâneo rumo a Itália e

Grécia ou acessam a Europa Central por meio da fronteira da Turquia fugindo de guerras

civis ou de ocupações do Estado Islâmico. Os números são imprecisos e a mídia fala na

maior movimentação humana deste a Segunda Guerra Mundial, igualmente carente de

números precisos.

Até o final de 2014 a principal “porta de entrada” para a Europa era a ilha de

Lampedusa, na Itália, principalmente nos primeiros meses do ano, quando a maré do Mar

Mediterrâneo é mais baixa, facilitando o acesso dos barcos com refugiados oriundos da

África Central. Segundo a Organização Internacional de Migração (IOM, 2016) mais de

163 mil pessoas foram resgatadas a caminho da Itália, mais que em 2013 (42.925). Estima-

se que mais de 3.000 morreram no trajeto, marcado por oscilações de temperaturas, ventos

de 150 km/h e travessias que duram de dois a cinco dias em condições precárias. O ano de

2013 ficou marcado pela trágica morte de 366 africanos a cerca de um quilômetro de

Lampedusa, quando a embarcação virou pelos fortes ventos (IOM, 2016).

Em 2015 e 2016 a rota de imigrantes se intensificou na divisa da Turquia e Síria

onde campos de refugiados foram instalados. Outra rota passa pela Grécia, Hungria e

Áustria para tentarem chegar a Alemanha e Itália onde acreditam ter melhores condições de

serem acolhidos. A crise resultou em diversas manifestações dos governos tanto em aceitar

os refugiados como em deportá-los imediatamente ou em fechar fronteiras com grandes

cercas de arame farpado. Isto levou a discussões nos parlamentos europeus e colou em

cheque os direitos do homem e do cidadão criando espaços de exceção.

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O fato mais emblemático desta crise foi a imagem do menino sírio Aylan Kurdi, de

três anos, encontrado morto em uma praia de Bodrum na Turquia em 2 de setembro de

2015, depois que duas embarcações com refugiados naufragaram (COLON; FLECK, 2015).

Ele, sua família e dezenas de refugiados tentavam chegar à ilha grega de Kos para

posteriormente chegarem à Alemanha. As fotos, feitas por autoridades turcas, despertaram

grande comoção e o olhar do mundo para a gravidade do fato, desencadeando uma série de

permissões e ações dos governos europeus. As imagens repercutiram nas redes sociais

como Facebook e Instagram como uma cobrança às autoridades com a crise.

Entre estas permissões estão campos de refugiados na França, Itália, Grécia, dentre

outros, mas ainda endurece os governos da Alemanha e Hungria que estendem muros para

impedir a entrada das pessoas ou deportam os estrangeiros, depois de auxílio humanitário,

uma prática recorrente principalmente na Itália nos últimos anos. Entre as entidades não-

governamentais que ajudam nos campos estão a ONG Médicos Sem Fronteiras e a Anistia

Internacional.

Metodologia de investigação e análise de resultados

Este trabalho propõe a investigação e discussão de como a mídia brasileira tem

tratado o fato e o que, de certa forma, mudou diante dos fatos recentes. Para analisar e

discutir estas informações colidas na mídia online buscou-se o método denominado Análise

de Conteúdo que se trata de um conjunto de técnicas de análise com vasta aplicação no

campo das comunicações.

Segundo Bardin (2011) existem três fases que envolvem a análise de conteúdo: a

pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados. A primeira fase está no

planejamento da pesquisa, na escolha dos documentos a serem analisados, quais as

hipóteses e os objetivos que se almeja alcançar. A segunda fase consiste na análise em si,

no trabalho realizado sobre os documentos. E a última fase trata de interpretação dos

resultados obtidos, de forma que, a pesquisa torne-se válida e significativa.

Para proceder a análise é importante definir categorias que serão alvo de dados

coletados e analisados. Bardin (2011, p.117) descreve esta técnica de categorização como

“uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por

diferenciação, e seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), com os

critérios previamente definidos”. Estes critérios, para este presente estudo, tentam identifica

o discurso da mídia e regimes de sentido para aceitação ou negação com relação aos

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refugiados divididos em reportagens e em textos de caráter opinativos (editoriais, artigos,

colunas etc.)

Para a estratégia de busca foi eleito o jornal Folha de S. Paulo em sua versão online

por tratar-se do maior veículo do país (ANJ, 2016) em circulação média diária e de acesso

ao portal web. O site do veículo possui um sistema de busca própria que mantém em um

banco de dados edições na integra desde a década de 1920. O recorte do período para esta

pesquisa vai de seis meses antes e seis meses depois da morte do menino sírio Aylan Kurdi

compreendendo o período de março de 2015 a fevereiro de 2016 considerado como símbolo

do auge da crise dos refugiados. A palavra chave para a busca foi “refugiados” e teve como

critérios de inclusão e exclusão “refugiados na Europa”, “crise dos refugiados” e

“Comunidade Europeia”. Só foram considerados textos que tratam do assunto na parte

interna do jornal. Desconsiderando capa, chamadas no cabeçalho dos cadernos, opiniões de

leitores e erratas.

Para operacionalizar a análise temática foi percorrida as seguintes etapas:

identificação das ideias centrais do texto; comparação entre os diferentes núcleos de sentido

presentes na produção bibliográfica; descoberta de eixos temáticos e discussão das

categorias temáticas encontradas.

Neste processo foram identificados os termos mais citados e que agrupados

formaram categorias de classificação para as conclusões do estudo que geraram dados para

a pesquisa quantitativa. Na aplicação do método na versão online do jornal Folha de S.

Paulo foram encontrados 83 textos dentro dos critérios de inclusão e exclusão, sendo 36

antes (Tabela 1) e 47 após (Tabela 2) do fato da morte do menino Aylan.

Tabela 1 – Resultados da busca dentro da categorização antes do fato Aylan

Categoria Quantidade %

Imigrantes 15 42

Refugiados 9 25

Xenofobia 7 20

Naufrágio 3 9

Fugitivos 1 2

Ilegais 1 2

Total 36 100%

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Tabela 2 – Resultados da busca dentro da categorização depois do fato Aylan

Categoria Quantidade %

Refugiados 30 64

Xenofobia 9 20

Asilo 3 6

Migrantes 2 4

Imigrantes 1 2

Naufrágio 1 2

Crise migratória 1 2

Total 47 100%

Com base nos números pode-se elencar uma série de análises e inferências diante do

comportamento do jornal e do uso dos termos para cada situação.

Antes dos fatos envolvendo a morte do menino Aylan o tratamento do tema pelo

jornal nos títulos de reportagem e em seu conteúdo dão destaque para 42% como imigrantes

e 25% como refugiados. Depois dos fatos foram 64% como refugiados e 2% como

imigrantes. Estes números são idênticos com reportagens sobre xenofobia mantendo-se em

20%, embora os números absolutos sejam diferentes (5 antes e 9 depois). Termos comuns

no noticiário como ilegais e náufragos, principalmente com relação aos casos no Mar

Mediterrâneo, diminuíram ou não foram encontrados. O termo asilo também passou a

permear as reportagens depois que alguns países aceitaram os refugiados.

Aparentemente o jornal não tem uma política editorial com relação ao termo mais

indicado. Pela característica do conteúdo das reportagens nem sempre o imigrante é tratado

por refugiado, se veio para ficar em busca de asilo (três reportagens tratam do assunto) ou

se por um período transitório, mas o rótulo “refugiado” parece resolver isso, sem

comprometer o conteúdo dos textos.

Uma reportagem de um correspondente internacional publicada no jornal Folha de

S. Paulo discute o uso dos termos para descrever a crise (RITTER, 2015). O texto relata

como alguns veículos e agências internacionais de notícias (BBC, Associated Press) usam

os termos, sendo bem parecido com a forma que a Folha usa: rotula como refugiados por

não conhecer suas intenções. Talvez isso explique o aumento do uso do termo refugiados

em detrimento a imigrante em um segundo momento (pós-Aylan), tão evidente nesta

pesquisa.

Com relação aos editoriais, que a princípio expõe a opinião do veículo, o tema dos

refugiados é retratado pela Folha uma vez antes (26/08/15) e três após o fator Aylan

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(14/09/15; 07/02/16; 24/02/16). Em todos os casos o jornal se posicionou a favor dos

direitos humanos ante a recusa ou xenofobia dos governos europeus.

A crise dos refugiados também foi tema de um caderno especial em 22 de setembro

de 2015, 20 dias depois da morte de Aylan. O periódico aborda principalmente os fatos na

Europa, mas trata de casos brasileiros como sírios e haitianos que chegaram ao país. A bem

estilo da Folha, o veículo traz reportagens, infográficos e textos com articulistas em temas

como: entenda a crise; quem são os refugiados; rotas migratórias; principais conflitos;

imagens; como ajudar. O caderno em sua versão online traz imagens e infográficos

animados de forma bem didática. (FOLHA DE S. PAULO, 2015)

Uma característica bem contundente do período pós-Aylan é a dedicação do

tamanho das reportagens sobre refugiados. Antes o jornal dava destaque para no máximo

meia página com 12 chamadas de capa para o tema. No período posterior foram 31

chamadas de capa sobre o assunto com reportagens de página inteira. Com relação aos

textos de colunistas, no pós-Aylan foram três artigos que tratavam do tema, enquanto antes,

nenhum foi encontrado.

Mesmo fazendo parte do critério de exclusão, as cartas de leitores tiveram mais

espaço no jornal. Foram 27 cartas publicadas contra 11 antes do fato que delimita a

pesquisa. De forma geral, o destaque para o caso teve proporções maiores no veículo,

mesmo levando em conta que o conteúdo das reportagens tenha sido o mesmo, sem fatos

novos.

Conclusão

Embora os números sejam inconclusivos, a crise dos refugiados não encontra

precedentes nos últimos 50 anos na Europa. Impulsionados principalmente pelas guerras

civis na África e Ásia o êxodo dos imigrantes provocaram um período de contingência com

dilemas sobre o Estado-nação e os direitos humanos.

O referencial teórico deste trabalho aborda que as movimentações de populações na

Europa já colocaram em discussão as fragilidades do Estado nos dois pós-guerras (I e II

conflitos mundiais) conforme Arendt e Agamben.

Esta discussão é debatida nos dias atuais pelo noticiário que num primeiro momento

(dentro da análise de conteúdo deste trabalho) tratavam os refugiados como imigrantes,

quando na sua essência não são.

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Com o advento da trágica morte do menino Aylan em uma praia mediterrânea na

Turquia, o veículo estudado ampliou o destaque ao tema, principalmente pelo interesse do

leitor sobre o assunto e sobre a mobilização nos governos europeus sobre o tema.

Os refugiados estão à porta da Europa querendo ser aceitos, nem tanto como

cidadãos, mas como humanos que são. Este cenário abre caminho para uma discussão

biopolítica a partir de seu fundamento em Foucault que é o controle de populações e o

poder sobre a vida para evitar a morte. Tanto com base nesta definição como em Agamben

as políticas da vida colocam sobre os refugiados um rótulo que imprimi sua identidade. O

refugiado não é apenas um imigrante, porque não atinge condições como tal. Da mesma

forma não pode ser incluído como cidadão porque é atacado por correntes xenofóbicas e

carece de direitos no Estado-nação. Ademais, sua condição biopolítica está enraizada em

sua própria concepção de ser, por natureza, humano.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2010.

_____________. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015

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http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil/ Acesso em: 29/05/2016

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BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011

CARTA CAPITAL. Xenofobia pauta estreia da campanha de Donald Trump na TV

americana. Rio de Janeiro: Editora Confiança, Internacional, 05/01/2016. Disponível em:

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