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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 1 “Por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”: fragmentos da construção da identidade feminina a partir da narrativa de poder em House of Cards Larissa ROSA 1 Simonetta PERSICHETTI 2 Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, SP Resumo Historicamente, o casamento é um dos mais importantes pilares que estruturam as relações sociais entre homens e mulheres. Diante disso, este artigo é uma análise sobre a relação entre o poder e construção da identidade feminina no matrimônio de Claire e Frank Underwood, protagonistas da série estadunidense House of Cards. Se por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher, cabe a nós questionar o que há, afinal, por trás de uma grande mulher. Palavras-chave: ficção; House of Cards; Claire Underwood; primeira-dama; mulher. Introdução O presente artigo tem como objetivo a análise da construção narrativa da primeira-dama Claire Underwood, interpretada por Robin Wright em House of Cards, sob uma perspectiva que permita refletir a respeito das relações entre a personagem, a posição social e política que ocupa a esposa de um presidente e a construção da identidade feminina. Analisar a construção de uma personagem, neste caso, implicará na observação de escolhas visuais, por meio de imagens e descrições, ao mesmo passo que implicará na análise de comportamentos e diálogos nenhuma escolha acerca da personagem será interpretada como aleatória: tudo poderá nos contar mais sobre a sua figura e nos ajudar a identificar as mudanças narrativas pelas quais ela passa no decorrer dos episódios. Mas, se a intenção é propor uma reflexão sobre um tema tão atemporal e arraigado à realidade como a condição feminina, por que fazê-lo por meio de uma obra de ficção? Porque o discurso sob o qual as mulheres existiram e existem, o discurso sob o qual as primeiras-damas existiram e existem, se apresenta como elemento instituidor de 1 Estudante do 3º ano de jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, onde trabalha como monitora da Pós-graduação e é pesquisadora de Iniciação Científica pelo Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP). E-mail: [email protected] 2 Orientadora do trabalho. Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. E-mail: [email protected]

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“Por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”: fragmentos da

construção da identidade feminina a partir da narrativa de poder em House of

Cards

Larissa ROSA1

Simonetta PERSICHETTI2

Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, SP

Resumo

Historicamente, o casamento é um dos mais importantes pilares que estruturam as

relações sociais entre homens e mulheres. Diante disso, este artigo é uma análise sobre a

relação entre o poder e construção da identidade feminina no matrimônio de Claire e

Frank Underwood, protagonistas da série estadunidense House of Cards. Se “por trás de

um grande homem, há sempre uma grande mulher”, cabe a nós questionar o que há, afinal,

por trás de uma grande mulher.

Palavras-chave: ficção; House of Cards; Claire Underwood; primeira-dama; mulher.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo a análise da construção narrativa da primeira-dama

Claire Underwood, interpretada por Robin Wright em House of Cards, sob uma

perspectiva que permita refletir a respeito das relações entre a personagem, a posição

social e política que ocupa a esposa de um presidente e a construção da identidade

feminina. Analisar a construção de uma personagem, neste caso, implicará na observação

de escolhas visuais, por meio de imagens e descrições, ao mesmo passo que implicará na

análise de comportamentos e diálogos – nenhuma escolha acerca da personagem será

interpretada como aleatória: tudo poderá nos contar mais sobre a sua figura e nos ajudar

a identificar as mudanças narrativas pelas quais ela passa no decorrer dos episódios.

Mas, se a intenção é propor uma reflexão sobre um tema tão atemporal e arraigado à

realidade como a condição feminina, por que fazê-lo por meio de uma obra de ficção?

Porque o discurso sob o qual as mulheres existiram e existem, o discurso sob o qual as

primeiras-damas existiram e existem, se apresenta como elemento instituidor de

1 Estudante do 3º ano de jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, onde trabalha como monitora da Pós-graduação e é pesquisadora de Iniciação Científica pelo Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP). E-mail: [email protected] 2 Orientadora do trabalho. Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. E-mail: [email protected]

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realidades e também por elas instituído (Soares, 2010); e, neste caso, entende-se a

importância da ficção como sinalizadora, reprodutora e também tecedora de discursos

que regem práticas e épocas.

Podemos afirmar que o factual e o ficcional – como pode ser percebido não só no

jornalismo, mas também no cinema, na teledramaturgia ou no reality shows – são campos

que têm borrado, cada vez mais, os limites entre suas fronteiras, afastando-se da distinção

comumente a eles atribuída entre relatos verdadeiros ou falsos, reais ou imaginários. (...)

As noções de verdade, realidade e linguagem (atravessando as teorias da representação e

da apresentação do mundo) são tidas como fundamentais no debate acadêmico sobre as

formações discursivas constituintes do imaginário contemporâneo e sobre o estatuto das

imagens (Soares, 2010, p. 59-60).

House of Cards é uma série norte-americana de drama político criada por Beau Willimon

para o serviço de streaming Netflix. Atualmente, em 2016, o seriado está em sua quarta

temporada; a primeira estreou em fevereiro de 2013 e, desde então, as temporadas são

disponibilizadas no início de cada ano e têm 13 episódios cada – o recorte deste artigo

nos permitirá a análise de episódios das duas primeiras temporadas. A trama se passa na

emblemática cidade de Washington, D.C., o centro do poder da maior potência mundial,

os Estados Unidos da América. Frank Underwood, o protagonista interpretado por Kevin

Spacey, é um congressista ambicioso e pragmático que vive para conquistar cada vez

mais territórios políticos.

“Dinheiro é a mansão no bairro errado que começa a desmoronar após 10 anos; poder é

o velho edifício de pedra que se mantém de pé por séculos”, o protagonista já esclarece

no segundo episódio da série, “eu não respeito quem não sabe distinguir os dois”, ele

conclui o pensamento. Para além de coligações partidárias, jornalistas e agentes do

Serviço Secreto, há um pilar sem o qual o edifício de poder que Frank Underwood

cuidadosamente constrói se tornaria insustentável: sua esposa, Claire Underwood. Ainda

que com essa certeza, com o desenrolar da história é difícil saber ao certo quais são as

possibilidades para uma mulher que se encontra diante de um homem poderoso – levando

em consideração, neste caso, que o poder de Frank não se dá unicamente por suas

conquistas políticas, mas por uma condição primária: a relação de gênero. E, se partimos

da ideia de poder como o velho edifício de pedra que se mantém de pé por séculos, cabe

a nós refletir sobre as estruturas que sustentam a dominação masculina enquanto um dos

mais antigos edifícios humanos. Diante da complexidade do tema, este artigo não se

pretende algo além de uma provocação.

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O olhar construtor

A disposição das camisas, a iluminação e o cenário indicam com clareza qual momento

esta cena representa. Em meados dos sete minutos iniciais do 6º episódio da 1ª temporada

de House of Cards, o que vemos são dois homens de meia idade, cujo tipo das camisas se

antecipa em dizer que se trata de duas pessoas importantes, ao passo que as mangas

arregaçadas e a gola afrouxada, em conjunto com a baixa iluminação do lugar que parece

ser o fundo de uma casa, nos remete ao final de um dia de trabalho, tão tumultuado que

precisou ser estendido e tomou conta, inclusive, daquele que seria “momento de

descanso”. No quintal, repleto de plantas que quase encobrem os muros de tijolos à vista,

a iluminação se dá pontualmente por algumas arandelas e faz com que a preocupação e a

seriedade na expressão facial daqueles homens sejam realçadas pelas sombras que estão

em contraste com a pouca luz do ambiente.

Atrelado às suas feições, a visão de que entre eles, que estão de pé e inquietos, há uma

mesa cheia de documentos e cadernos com anotações, faz com que o público possa intuir,

antes de qualquer contextualização, que ali uma decisão importante está sendo pensada.

Nos atentando ao diálogo, agora, podemos pensar no que está sendo discutido: a conversa

se dá, basicamente, por sugestões de frases impactantes. Eles estão pensando em um

slogan. Para entender a trama que envolve tal slogan, no entanto, é necessário ter

acompanhado os episódios anteriores.

A narrativa construída até agora se dá, basicamente, em volta da tentativa do deputado

Frank Underwood, que compõe o Congresso estadunidense, de aprovar um projeto de lei

de sua criação que dará espaço para a reforma educacional sob o discurso da qual se

elegeu o presidente Garrett Walker, com o apoio de Frank. O caminho que o protagonista

precisa percorrer para alcançar seu objetivo, entretanto, implica em derrubar Marty

Spinella, que lidera uma greve de professores em Washinton tentando impedir que o

projeto avance. Na cena descrita anteriormente, portanto, o deputado, ao lado de Doug

Stamper, seu diretor de estratégia, pensa em unir algumas palavras fortes o suficiente

para, com o auxílio midiático, tirarem toda a credibilidade daquele que vem atrapalhando

seus planos. “Queremos uma frase de efeito, algo específico, algo que aponte diretamente

para Spinella”, Frank descreve com exatidão o que precisam enquanto se mostra perplexo

pela dificuldade em encontrarem.

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“Precisamos de algo vívido, algo que não saia da cabeça”, ele prossegue no diálogo com

Stamper. E é justamente ao final da última frase que, ao fundo, o barulho de um caminhar

sobre saltos indica a chegada de uma mulher. Aquela não é qualquer mulher. E esta não

é qualquer cena. Ao marido, ela entrega uma cerveja; ao que acompanha o marido, ela

entrega um copo com o que parece ser vinho. Os homens precisam trabalhar e isso exige

alguns estímulos. Um “obrigado”, um olhar, qualquer coisa: a mulher que adentra a cena

não é digna de nada, e parece estar tranquila em relação a isso. É rápida no que foi fazer

e o faz de forma tão automática quanto a forma com que é recebida por aqueles que

conversam. “Precisamos de algo que faça de Spinella o vilão”, Frank insiste diante das

tentativas frustradas de Stamper. A essa altura, Claire, a nossa personagem que tem um

nome, já está de costas e voltando para dentro da casa. Ao alcançar a porta, seu corpo se

volta novamente aos homens e ela diz, com muita clareza e tranquilidade: “trabalho

desorganizado”. Claire Underwood não espera pela reação que sua fala causa, não

demonstra ter interesse em fazer parte da discussão, de receber críticas ou elogios – ao

contrário, faz a sugestão certeira e continua o seu caminho na direção oposta à que a

conversa acontece. A reação de Frank Underwood e Doug Stamper podem ser verificadas

nas imagens seguintes:

Figura 1: A reação de Frank Underwood à sugestão de Claire

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Figura 2: A reação de Doug Stamper à sugestão de Claire

A surpresa estampada na face dos dois homens é o ato final da cena. Logo em seguida,

vemos trechos de vários telejornais referindo-se à greve dos professores como “trabalho

desorganizado” – o que indica claramente que a sugestão de Claire Underwood não foi

somente acatada pelo deputado, mas bem-sucedida quando colocada em prática. Durante

os poucos segundos em que a cena descrita se desenrola, temos um bom exemplo de como

público e privado, opostos por excelência, se entrelaçam em teias complexas no que tange

a atuação de uma primeira-dama – no caso de Claire, é bom dizer, não se trata até o

momento da esposa de um presidente da República; ainda assim, a narrativa que antecede

a nomeação do protagonista como presidente é essencial para entender a construção de

Claire como primeira-dama, esposa política, antes mesmo que ela o seja de fato.

Apesar de simbólica, a cena descrita não é a única desse tipo: são diversos os momentos,

nas quatro temporadas de House of Cards, em que Frank aparece em sua casa, discutindo

assuntos de trabalho com outros homens, e Claire surge para servir alguma bebida ao

marido e aos colegas. Quieta, muito mais observadora do que participante, também não é

raro quando, ao final da cena, Claire faz algum comentário curinga – bem como o foi a

sugestão de “trabalho desorganizado”. Nesses momentos, Claire parece ser construída

pela série a partir do olhar desses homens. É mesmo difícil fugir do tom surpreso e

encantado de tais olhares; neste artigo, afinal, pareceu fundamental iniciar a apresentação

da personagem por alguns deles. Mas Frank também não escapa da construção que se faz

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pelo olhar do outro: quando Claire faz algum comentário esperto, seja em tom de conselho

político, seja em tom de brincadeira, é ela, como mulher, que reafirma ou retira a honra

do marido perante os demais.

Claire, sob o domínio de quem?

Na passagem da primeira para a segunda temporada, após muitas manobras políticas,

Frank Underwood é nomeado vice-presidente dos Estados Unidos durante o mandato do

presidente Garrett Walker. Com o novo cargo, novas responsabilidades surgem na vida

do protagonista e, por conseguinte, na vida de Claire, cada vez mais próxima de ser a

primeira-dama do país. A primeira grande mudança na vida do casal acontece quando a

casa em que moram precisa passar por uma grande reforma para atender aos padrões de

segurança sob os quais um vice-presidente e sua família devem viver. Em uma das

conversas iniciais sobre a nova agenda – herdada da esposa do ex-vice-presidente que

acabara de deixar o cargo –, Claire analisa o próximo evento que deverá participar ao lado

do marido: uma homenagem a dois novos generais da Marinha comissionados. O

problema surge quando ela se depara com o nome de um dos generais, Dalton McGinnis,

com quem estudou em Harvard e por quem foi estuprada. Ao marido, Claire fala

superficialmente que não gostaria de participar, mas não explica a situação; Frank

responde que é importante eles aparecerem juntos em seu primeiro evento no novo cargo

e a mulher não rebate.

Na cerimônia, Claire e Frank Underwood estão sentados à mesa com outros convidados

quando o general McGinnis vai cumprimentá-los. Quando o vice-presidente apresenta

Claire como sua esposa ao homenageado da noite, McGinnis diz que é bom vê-la. Frank,

surpreso, afirma que não sabia que os dois se conheciam. O general brinca que eles

namoraram “por mais ou menos cinco minutos”. Entre sorrisos amarelos e expressões de

desprezo, Claire ignora todos os comentários, mas, quando McGinnis se despede e sai da

mesa, ela se levanta visivelmente aborrecida. É no banheiro, tentando conter o choro, que

Frank a encontra. “Foi ele”, são as primeiras palavras de Claire, indicando que o marido

tem conhecimento do estupro e das circunstâncias sob as quais ele aconteceu, mas não

sobre a identidade do agressor. Ao se dar conta a que a esposa se refere, Frank perde o

controle. Esta é uma cena rara de House of Cards.

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De certo, o deputado da primeira temporada não alcançaria rapidamente a vice-

presidência, e depois a presidência da República, se fosse um homem médio, ponderado,

sensato. Sabe-se bem disso. Todavia, entre desvios éticos e legais, mesmo as maiores

burrices e atrocidades cometidas por Frank Underwood são milimetricamente calculadas.

Seu pragmatismo, pelo qual é conhecido dentro da trama e também fora dela, não permite

que seus atos sejam guiados por fortes emoções. Ao saber que estava prestes a colocar

uma medalha e homenagear o homem que violou o corpo de sua esposa, no entanto, o

vice-presidente perdeu o controle totalmente. “Eu não vou colocar uma medalha naquele

homem”, “Ele não merece uma medalha, ele merece levar um tiro”, são algumas das

frases que Frank diz para Claire, convencido, minutos antes da cerimônia, de que seria

capaz de fazer um escândalo em sua primeira aparição no cargo. Claire, consciente de

que um escândalo, naquelas circunstâncias, significaria suicídio político, implora para

que o marido se controle. Frank se volta para a parede e projeta sua fúria no primeiro

objeto que encontra: captura um abajur e o atira contra a parede com toda a força que

pode; a futura primeira-dama reage consolando o marido, repousando a mão sutilmente

sobre seu ombro.

Figura 3: Cena do episódio 2 da segunda temporada de House of Cards em que Frank é consolado pela

esposa

É curioso que a cena termine com o marido da vítima sendo consolado pela própria

vítima. Não há dúvidas, é claro, que é difícil para o protagonista, após conquistar tanto

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poder, se ver à mercê daquele que tomou conta, também por um decreto de poder, do

corpo de sua esposa. Como define o escritor Andrew Solomon em Longe da árvore, o

estupro “não é exclusivamente sexo nem exclusivamente violência; é a expressão

humilhante de um diferencial de poder que une com agressividade esses dois motivos e

comportamentos” (2013, p. 558). E House of Cards não é, afinal, uma obra sobre homens

poderosos? Ainda de acordo com Solomon, é digno de nota que “historicamente, o

estupro é visto menos como a violação de uma mulher do que como um roubo praticado

contra o marido, ou pai, a quem essa mulher pertencia” (2013, pág. 556). Em seguida,

temos Frank representando os Estados Unidos da América ao entregar uma medalha ao

general McGinnis. O vice-presidente sabe que não havia outra opção, então o melhor que

consegue fazer para manter sua dignidade é encarar o general com profundo desprezo

enquanto realiza a formalidade.

O casamento e a fabricação política de si

Simone de Beauvoir não foi a primeira, tampouco a única. Mas foi ela quem, em 1949,

publicou a obra que é, hoje, uma das mais importantes referências nos estudos da

condição feminina: os dois densos volumes de O segundo sexo. Neles, a filósofa se

debruça sobre uma questão primordial: o que ser mulher, afinal? Em seus estudos, ela

chega a afirmar a inexistência de uma essência feminina, daí a famosa frase: “não se nasce

mulher, torna-se mulher”. A questão que guiou a intelectual é em muito parecida com o

que guia este artigo. Aqui, no entanto, faz-se um recorte específico: de que maneira o ser

esposa – e mais: ser esposa de um homem poderoso tanto quanto pode ser um presidente

da República – manifesta-se de acordo com a ideia de “tornar-se mulher”, e não o ser

genuinamente. A fim de reafirmar a ideia de que o que se faz da mulher tem aspecto

majoritariamente social, Beauvoir discorre: “nenhum destino biológico, psíquico,

econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto

da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que

qualificam de feminino” (1949, p. 9).

O desenvolvimento de uma menina é por ela descrito como passando por uma primeira

infância em “igualdade” – e aqui as aspas são essenciais para entender a relatividade da

palavra – com os meninos, e então, com o amadurecimento, sobretudo físico, meninas e

meninos passam a tomar caminhos opostos dentro da sociedade em que estão inseridos.

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Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima, instala-se em seu corpo, torna-se a

realidade mais concreta. Conserva o caráter fatal que sempre teve; enquanto o adolescente

se encaminha ativamente para a idade adulta, a jovem aguarda o início desse período

novo, imprevisível, cuja trama já se acha traçada e para o qual o tempo a arrasta. Já

desligada de seu passado de criança, o presente só lhe apresenta como uma transição; ela

não descobre nele nenhum fim válido, mas tão somente ocupações. De uma maneira mais

ou menos velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. Sem

dúvida, o adolescente também sonha com a mulher, deseja-a; mas ela será apenas um

elemento de sua vida: não resume seu destino (Beauvoir, p. 66, 1949).

É de se notar, já no início de O segundo sexo, que o casamento exerce importante papel

na vida de uma mulher. Não é só uma questão de status social, embora em grande parte

também o seja. O desejo pelo casamento nos moldes tradicionais, que significa o desejo

e a procura por um homem, é uma ideia que penetra, sobretudo, a subjetividade feminina,

tornando-se para as mulheres uma meta sem a qual estariam fadadas à infelicidade e à

incompletude. E o que significa, afinal, casar-se? A historiadora Mary Del Priore, ao

estudar a sexualidade e o erotismo na história do Brasil, faz observações pertinentes não

apenas àqueles que buscam entender o país de análise, mas a prática matrimonial do

mundo ocidental como um todo. De acordo com ela, o vínculo conjugal e a sua relevância

social foram moldados principalmente de acordo com as rígidas normas da Igreja

Católica.

A reprodução é tida, então, como o pilar do matrimônio: é com a finalidade de reproduzir-

se que homens e mulheres devem dedicar suas vidas conjugais. O casamento serve,

também, como uma maneira de apresentar-se diante da sociedade em que se vive: em prol

disso, sobrevivem até hoje os rótulos de “mulher para casar” e “mulher para passar a

noite”, identificadas historicamente por Del Priore como “senhoras” e “belas”. Nada é tão

capaz de deslegitimar um homem quanto a maneira com que é visto e tratado pela mulher

que cultiva dentro de sua casa; é fato que nada pode aspirar tanta respeitabilidade para ele

do que o mesmo fator. Se anteriormente falávamos sobre a construção da personagem de

Claire Underwood a partir do olhar masculino, é também verdade que um homem é

construído pelo olhar feminino, ainda que sejam duas construções assimétricas dentro de

uma estrutura hierárquica de gênero. Essa lógica, no caso dos homens públicos, podemos

imaginar, é ainda mais intensa.

Quando Frank atinge a vice-presidência da República, as grandes mudanças não se

limitam à agenda do casal Underwood: se um congressista já precisa se preocupar com a

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própria imagem, é de se supor que um vice-presidente e sua família precisem ter um

cuidado ainda mais especial com essa parte. Enquanto Frank está ocupado em reuniões

com o presidente, alianças e outras decisões políticas, House of Cards mostra ao público

que Claire é a encarregada pela escolha daquele que será responsável por moldá-los, o

assessor de imprensa.

Uma parte importante da vida de certo tipo de casal consiste em exibir-se publicamente.

Às vezes, este constitui o aspecto mais investido de sua união, podendo até, conforme o

caso, chegar a ser quase a única coisa que os une. (...) Ele, na rua, compete com outros

machos, batalhando pelo reconhecimento, a credibilidade, o prestígio – o poder – para si

mesmo, para ela e para os filhos. (...) Ele tem que “vencer”, custe o que custar. Ela, por

sua vez, fica em casa, administrando a vida daquele que tem que vencer. Ela cuida das

coisas e dos sentimentos da família, mesmo quando trabalha fora. É responsável pela

aparência de todos. Se ele tem que ficar ligado na cotação da bolsa de valores econômicos,

para não dar bola fora em sua inabalável ânsia de ascensão, ela tem que ficar ligada na

cotação da bolsa de valores de expressão, para não dar bola fora na maneira como deve

se apresentar a família daquele que tem que vencer (Rolnik, 1989, p. 131).

Após escolher aquele que melhor representaria os interesses político-midiáticos do casal,

Claire é preparada por Connor Ellis, o novo assessor, para a primeira entrevista televisiva

após a nomeação de Frank como vice-presidente. Durante o processo de seleção para o

cargo, inclusive, o assessor faz um comentário sobre a primeira entrevista do casal

Underwood, realizada em 1986, que em muito nos é valioso aqui: “há um momento em

que você passa os dedos pelo cabelo dele. É íntimo. Humano. Aquele momento teria me

convencido a votar no seu marido”.

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Figura 4: No episódio 4 da segunda temporada, enquanto Claire escolhe a roupa que vestirá para a

entrevista, o assessor de imprensa adianta o roteiro da conversa

Claire é relutante à informação que recebe na imagem acima: “achei que tínhamos

concordado em não falar sobre isso”. Em seguida, Connor explica que a entrevistadora

insistiu para que o assunto fosse abordado, e então Claire mostra-se mais disposta: “tudo

bem, já me perguntaram isso antes, eu sei como responder”. Esta é a primeira vez que a

série adentra o tema com o mínimo de profundidade. Ainda que estejam juntos há 27

anos, Frank e Claire Underwood nunca tiveram filhos.

Quando o programa vai ao ar, Ashleigh, a entrevistadora, inicia a conversa falando sobre

“Claire Underwood antes de conhecer o marido, no Texas”. Àqueles que são

telespectadores assíduos do seriado norte-americano, é provavelmente um susto, nesta

cena, lembrar-se da existência de uma Claire anterior a Frank, bem como de um Frank

anterior à Claire. Conforme responde às questões referentes à infância, juventude e

família, a senhora Underwood encanta aqueles que a assistem, inclusive seu assessor e

seu marido.

Figura 5: Claire sendo em entrevista para a TV norte-americana após a nomeação de Frank Underwood

como vice-presidente, episódio 4, segunda temporada

Quando as perguntas se voltam ao casamento, no entanto, Claire ameaça começar a

tropeçar nas palavras. “Alguns acham que seu casamento pode ser mais calculado do que

você diz”, é a primeira invasiva da entrevistadora, que começa a questionar se Frank teria

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vencido a primeira eleição para a qual concorreu sem o apoio financeiro do pai de Claire,

sugerindo que o interesse poderia ter motivado a união. O seguinte diálogo vem na

sequência:

- [Você está] sempre em segundo plano. Trocando as suas metas pelas metas dele.

- Eu não vejo dessa forma. Somos duas pessoas muito independentes que decidiram juntar

suas vidas. Eu o apoio. Ele me apoia.

- O que nos traz de volta à parceria política.

- Meu marido é político e eu trabalho com política, mas a nossa parceria vai muito além

disso.

É à essa altura que o assunto adiantado pelo assessor de imprensa e evitado por Claire

surge: filhos. Quando a entrevistadora questiona se não ter filhos foi um sacrifício, nossa

primeira-dama mantém-se firme e começa o discurso que ensaiara antes da entrevista e,

aparentemente, por muitos anos antes também: “Francis e eu queríamos dedicar nossas

vidas ao serviço público, e achamos que não conseguiríamos fazer isso e ser os pais que

queríamos ser”. Ao finalizar, no entanto, Claire se vê acuada por Ashleigh, que se

preparou para esse momento tanto quanto ela mesma: “Já ouvimos essa resposta antes.

Você deu exatamente a mesma resposta em outras entrevistas. Desculpe-me, mas carreira

e timing são respostas muito convenientes”. Quando Claire cede e fala superficialmente

sobre seus desejos, diz que nunca teve certeza se queria ou não ter filhos, a entrevistadora

pergunta se ela nunca sentiu “a pressão e o instinto materno”. “Porque é incomum, mesmo

agora, que políticos do nível executivo não tenham filhos”, ela completa.

Considerações finais

Fazer a análise de uma série não é tarefa fácil. A proposta de um artigo acadêmico

restringe em muito, sobretudo pela limitação do tamanho, as possibilidades para o assunto

abordado. No caso de uma obra de ficção em que cada episódio apresenta uma riqueza

imensa, o recorte e a escolha sobre quais cenas abordar podem podar as intenções com as

quais se inicia a escrita. Percebe-se, logo no início da atividade, a inviabilidade do desejo

de esgotar o tema – no decorrer da escrita, no entanto, é perceptível que, caso fosse

possível esgotar um tema em um artigo, talvez fosse o caso de repensar a sua pertinência.

Diante disso, a decisão aqui foi clara em sua pontualidade: uma análise que contemplasse

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as tramas das duas primeiras temporadas de House of Cards, com a perspectiva da relação

entre o poder, tema central do drama político, e a condição feminina. Com a seleção, não

somente fica de fora a outra metade da série, que atualmente tem quatro temporadas, mas

algumas nuances das próprias temporadas analisadas – a escolha por discorrer

longamente sobre alguns detalhes, por exemplo, algumas informações precisem ser

negligenciadas.

Mesmo que, como exposto na introdução deste trabalho, a análise tenha sido voltada à

fase da série em que Frank Underwood ainda não é presidente da República, mas

congressista e depois vice-presidente, é importante ressaltar que House of Cards constrói

Claire Underwood como uma primeira-dama desde o primeiro episódio, ou seja, desde

antes da personagem o ser de fato. Por isso, então, é fundamental nos atentarmos a essa

construção para entender quem é, afinal, a esposa política que Claire representa. Mas,

após todas essas reflexões, é possível afirmar que alguma esposa não é política? Por serem

peça fundamental da manutenção ou da subversão da estrutura de poder masculina sobre

a qual a sociedade se ergue, tendo a pensar que toda esposa, e toda não-esposa, ou seja,

todas as mulheres, carregam em si uma forte potência transformadora – seus atos,

justamente por importarem, são políticos.

A ideia de que “por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher” desperta

minha curiosidade e minha perplexidade justamente pelo tom elogioso às mulheres com

o qual se dissimula. À medida em que todas as características de Claire parecem existir

em função da carreira política do marido, em uma busca incessante do casal por um poder

que não sabem ao certo o que significa, o ditado popular pode ser visto pela sua face

pejorativa que se esconde atrás do elogio simplista. Para uma mulher, quais são as

possibilidades de ser grande quando não à sombra de um grande homem?

Referências

DE BEAUVOIR, Simone. Infância. In: O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, v. 1, 2009.

DE BEAUVOIR, Simone. A moça. In: O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, v. 1, 2009.

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora

Planeta do Brasil, 2011.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora

Estação Liberdade, 1989.

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SOARES, Rosana de Lima. Pequeno inventário de narrativas midiáticas: verdade e ficção em discursos

audiovisuais. Revista Significação, n. 34, p. 55-71, 2010.

SOLOMON, Andrew. Estupro. In: Longe da árvore. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.