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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
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“Por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”: fragmentos da
construção da identidade feminina a partir da narrativa de poder em House of
Cards
Larissa ROSA1
Simonetta PERSICHETTI2
Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, SP
Resumo
Historicamente, o casamento é um dos mais importantes pilares que estruturam as
relações sociais entre homens e mulheres. Diante disso, este artigo é uma análise sobre a
relação entre o poder e construção da identidade feminina no matrimônio de Claire e
Frank Underwood, protagonistas da série estadunidense House of Cards. Se “por trás de
um grande homem, há sempre uma grande mulher”, cabe a nós questionar o que há, afinal,
por trás de uma grande mulher.
Palavras-chave: ficção; House of Cards; Claire Underwood; primeira-dama; mulher.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo a análise da construção narrativa da primeira-dama
Claire Underwood, interpretada por Robin Wright em House of Cards, sob uma
perspectiva que permita refletir a respeito das relações entre a personagem, a posição
social e política que ocupa a esposa de um presidente e a construção da identidade
feminina. Analisar a construção de uma personagem, neste caso, implicará na observação
de escolhas visuais, por meio de imagens e descrições, ao mesmo passo que implicará na
análise de comportamentos e diálogos – nenhuma escolha acerca da personagem será
interpretada como aleatória: tudo poderá nos contar mais sobre a sua figura e nos ajudar
a identificar as mudanças narrativas pelas quais ela passa no decorrer dos episódios.
Mas, se a intenção é propor uma reflexão sobre um tema tão atemporal e arraigado à
realidade como a condição feminina, por que fazê-lo por meio de uma obra de ficção?
Porque o discurso sob o qual as mulheres existiram e existem, o discurso sob o qual as
primeiras-damas existiram e existem, se apresenta como elemento instituidor de
1 Estudante do 3º ano de jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, onde trabalha como monitora da Pós-graduação e é pesquisadora de Iniciação Científica pelo Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP). E-mail: [email protected] 2 Orientadora do trabalho. Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. E-mail: [email protected]
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realidades e também por elas instituído (Soares, 2010); e, neste caso, entende-se a
importância da ficção como sinalizadora, reprodutora e também tecedora de discursos
que regem práticas e épocas.
Podemos afirmar que o factual e o ficcional – como pode ser percebido não só no
jornalismo, mas também no cinema, na teledramaturgia ou no reality shows – são campos
que têm borrado, cada vez mais, os limites entre suas fronteiras, afastando-se da distinção
comumente a eles atribuída entre relatos verdadeiros ou falsos, reais ou imaginários. (...)
As noções de verdade, realidade e linguagem (atravessando as teorias da representação e
da apresentação do mundo) são tidas como fundamentais no debate acadêmico sobre as
formações discursivas constituintes do imaginário contemporâneo e sobre o estatuto das
imagens (Soares, 2010, p. 59-60).
House of Cards é uma série norte-americana de drama político criada por Beau Willimon
para o serviço de streaming Netflix. Atualmente, em 2016, o seriado está em sua quarta
temporada; a primeira estreou em fevereiro de 2013 e, desde então, as temporadas são
disponibilizadas no início de cada ano e têm 13 episódios cada – o recorte deste artigo
nos permitirá a análise de episódios das duas primeiras temporadas. A trama se passa na
emblemática cidade de Washington, D.C., o centro do poder da maior potência mundial,
os Estados Unidos da América. Frank Underwood, o protagonista interpretado por Kevin
Spacey, é um congressista ambicioso e pragmático que vive para conquistar cada vez
mais territórios políticos.
“Dinheiro é a mansão no bairro errado que começa a desmoronar após 10 anos; poder é
o velho edifício de pedra que se mantém de pé por séculos”, o protagonista já esclarece
no segundo episódio da série, “eu não respeito quem não sabe distinguir os dois”, ele
conclui o pensamento. Para além de coligações partidárias, jornalistas e agentes do
Serviço Secreto, há um pilar sem o qual o edifício de poder que Frank Underwood
cuidadosamente constrói se tornaria insustentável: sua esposa, Claire Underwood. Ainda
que com essa certeza, com o desenrolar da história é difícil saber ao certo quais são as
possibilidades para uma mulher que se encontra diante de um homem poderoso – levando
em consideração, neste caso, que o poder de Frank não se dá unicamente por suas
conquistas políticas, mas por uma condição primária: a relação de gênero. E, se partimos
da ideia de poder como o velho edifício de pedra que se mantém de pé por séculos, cabe
a nós refletir sobre as estruturas que sustentam a dominação masculina enquanto um dos
mais antigos edifícios humanos. Diante da complexidade do tema, este artigo não se
pretende algo além de uma provocação.
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O olhar construtor
A disposição das camisas, a iluminação e o cenário indicam com clareza qual momento
esta cena representa. Em meados dos sete minutos iniciais do 6º episódio da 1ª temporada
de House of Cards, o que vemos são dois homens de meia idade, cujo tipo das camisas se
antecipa em dizer que se trata de duas pessoas importantes, ao passo que as mangas
arregaçadas e a gola afrouxada, em conjunto com a baixa iluminação do lugar que parece
ser o fundo de uma casa, nos remete ao final de um dia de trabalho, tão tumultuado que
precisou ser estendido e tomou conta, inclusive, daquele que seria “momento de
descanso”. No quintal, repleto de plantas que quase encobrem os muros de tijolos à vista,
a iluminação se dá pontualmente por algumas arandelas e faz com que a preocupação e a
seriedade na expressão facial daqueles homens sejam realçadas pelas sombras que estão
em contraste com a pouca luz do ambiente.
Atrelado às suas feições, a visão de que entre eles, que estão de pé e inquietos, há uma
mesa cheia de documentos e cadernos com anotações, faz com que o público possa intuir,
antes de qualquer contextualização, que ali uma decisão importante está sendo pensada.
Nos atentando ao diálogo, agora, podemos pensar no que está sendo discutido: a conversa
se dá, basicamente, por sugestões de frases impactantes. Eles estão pensando em um
slogan. Para entender a trama que envolve tal slogan, no entanto, é necessário ter
acompanhado os episódios anteriores.
A narrativa construída até agora se dá, basicamente, em volta da tentativa do deputado
Frank Underwood, que compõe o Congresso estadunidense, de aprovar um projeto de lei
de sua criação que dará espaço para a reforma educacional sob o discurso da qual se
elegeu o presidente Garrett Walker, com o apoio de Frank. O caminho que o protagonista
precisa percorrer para alcançar seu objetivo, entretanto, implica em derrubar Marty
Spinella, que lidera uma greve de professores em Washinton tentando impedir que o
projeto avance. Na cena descrita anteriormente, portanto, o deputado, ao lado de Doug
Stamper, seu diretor de estratégia, pensa em unir algumas palavras fortes o suficiente
para, com o auxílio midiático, tirarem toda a credibilidade daquele que vem atrapalhando
seus planos. “Queremos uma frase de efeito, algo específico, algo que aponte diretamente
para Spinella”, Frank descreve com exatidão o que precisam enquanto se mostra perplexo
pela dificuldade em encontrarem.
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“Precisamos de algo vívido, algo que não saia da cabeça”, ele prossegue no diálogo com
Stamper. E é justamente ao final da última frase que, ao fundo, o barulho de um caminhar
sobre saltos indica a chegada de uma mulher. Aquela não é qualquer mulher. E esta não
é qualquer cena. Ao marido, ela entrega uma cerveja; ao que acompanha o marido, ela
entrega um copo com o que parece ser vinho. Os homens precisam trabalhar e isso exige
alguns estímulos. Um “obrigado”, um olhar, qualquer coisa: a mulher que adentra a cena
não é digna de nada, e parece estar tranquila em relação a isso. É rápida no que foi fazer
e o faz de forma tão automática quanto a forma com que é recebida por aqueles que
conversam. “Precisamos de algo que faça de Spinella o vilão”, Frank insiste diante das
tentativas frustradas de Stamper. A essa altura, Claire, a nossa personagem que tem um
nome, já está de costas e voltando para dentro da casa. Ao alcançar a porta, seu corpo se
volta novamente aos homens e ela diz, com muita clareza e tranquilidade: “trabalho
desorganizado”. Claire Underwood não espera pela reação que sua fala causa, não
demonstra ter interesse em fazer parte da discussão, de receber críticas ou elogios – ao
contrário, faz a sugestão certeira e continua o seu caminho na direção oposta à que a
conversa acontece. A reação de Frank Underwood e Doug Stamper podem ser verificadas
nas imagens seguintes:
Figura 1: A reação de Frank Underwood à sugestão de Claire
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Figura 2: A reação de Doug Stamper à sugestão de Claire
A surpresa estampada na face dos dois homens é o ato final da cena. Logo em seguida,
vemos trechos de vários telejornais referindo-se à greve dos professores como “trabalho
desorganizado” – o que indica claramente que a sugestão de Claire Underwood não foi
somente acatada pelo deputado, mas bem-sucedida quando colocada em prática. Durante
os poucos segundos em que a cena descrita se desenrola, temos um bom exemplo de como
público e privado, opostos por excelência, se entrelaçam em teias complexas no que tange
a atuação de uma primeira-dama – no caso de Claire, é bom dizer, não se trata até o
momento da esposa de um presidente da República; ainda assim, a narrativa que antecede
a nomeação do protagonista como presidente é essencial para entender a construção de
Claire como primeira-dama, esposa política, antes mesmo que ela o seja de fato.
Apesar de simbólica, a cena descrita não é a única desse tipo: são diversos os momentos,
nas quatro temporadas de House of Cards, em que Frank aparece em sua casa, discutindo
assuntos de trabalho com outros homens, e Claire surge para servir alguma bebida ao
marido e aos colegas. Quieta, muito mais observadora do que participante, também não é
raro quando, ao final da cena, Claire faz algum comentário curinga – bem como o foi a
sugestão de “trabalho desorganizado”. Nesses momentos, Claire parece ser construída
pela série a partir do olhar desses homens. É mesmo difícil fugir do tom surpreso e
encantado de tais olhares; neste artigo, afinal, pareceu fundamental iniciar a apresentação
da personagem por alguns deles. Mas Frank também não escapa da construção que se faz
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pelo olhar do outro: quando Claire faz algum comentário esperto, seja em tom de conselho
político, seja em tom de brincadeira, é ela, como mulher, que reafirma ou retira a honra
do marido perante os demais.
Claire, sob o domínio de quem?
Na passagem da primeira para a segunda temporada, após muitas manobras políticas,
Frank Underwood é nomeado vice-presidente dos Estados Unidos durante o mandato do
presidente Garrett Walker. Com o novo cargo, novas responsabilidades surgem na vida
do protagonista e, por conseguinte, na vida de Claire, cada vez mais próxima de ser a
primeira-dama do país. A primeira grande mudança na vida do casal acontece quando a
casa em que moram precisa passar por uma grande reforma para atender aos padrões de
segurança sob os quais um vice-presidente e sua família devem viver. Em uma das
conversas iniciais sobre a nova agenda – herdada da esposa do ex-vice-presidente que
acabara de deixar o cargo –, Claire analisa o próximo evento que deverá participar ao lado
do marido: uma homenagem a dois novos generais da Marinha comissionados. O
problema surge quando ela se depara com o nome de um dos generais, Dalton McGinnis,
com quem estudou em Harvard e por quem foi estuprada. Ao marido, Claire fala
superficialmente que não gostaria de participar, mas não explica a situação; Frank
responde que é importante eles aparecerem juntos em seu primeiro evento no novo cargo
e a mulher não rebate.
Na cerimônia, Claire e Frank Underwood estão sentados à mesa com outros convidados
quando o general McGinnis vai cumprimentá-los. Quando o vice-presidente apresenta
Claire como sua esposa ao homenageado da noite, McGinnis diz que é bom vê-la. Frank,
surpreso, afirma que não sabia que os dois se conheciam. O general brinca que eles
namoraram “por mais ou menos cinco minutos”. Entre sorrisos amarelos e expressões de
desprezo, Claire ignora todos os comentários, mas, quando McGinnis se despede e sai da
mesa, ela se levanta visivelmente aborrecida. É no banheiro, tentando conter o choro, que
Frank a encontra. “Foi ele”, são as primeiras palavras de Claire, indicando que o marido
tem conhecimento do estupro e das circunstâncias sob as quais ele aconteceu, mas não
sobre a identidade do agressor. Ao se dar conta a que a esposa se refere, Frank perde o
controle. Esta é uma cena rara de House of Cards.
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De certo, o deputado da primeira temporada não alcançaria rapidamente a vice-
presidência, e depois a presidência da República, se fosse um homem médio, ponderado,
sensato. Sabe-se bem disso. Todavia, entre desvios éticos e legais, mesmo as maiores
burrices e atrocidades cometidas por Frank Underwood são milimetricamente calculadas.
Seu pragmatismo, pelo qual é conhecido dentro da trama e também fora dela, não permite
que seus atos sejam guiados por fortes emoções. Ao saber que estava prestes a colocar
uma medalha e homenagear o homem que violou o corpo de sua esposa, no entanto, o
vice-presidente perdeu o controle totalmente. “Eu não vou colocar uma medalha naquele
homem”, “Ele não merece uma medalha, ele merece levar um tiro”, são algumas das
frases que Frank diz para Claire, convencido, minutos antes da cerimônia, de que seria
capaz de fazer um escândalo em sua primeira aparição no cargo. Claire, consciente de
que um escândalo, naquelas circunstâncias, significaria suicídio político, implora para
que o marido se controle. Frank se volta para a parede e projeta sua fúria no primeiro
objeto que encontra: captura um abajur e o atira contra a parede com toda a força que
pode; a futura primeira-dama reage consolando o marido, repousando a mão sutilmente
sobre seu ombro.
Figura 3: Cena do episódio 2 da segunda temporada de House of Cards em que Frank é consolado pela
esposa
É curioso que a cena termine com o marido da vítima sendo consolado pela própria
vítima. Não há dúvidas, é claro, que é difícil para o protagonista, após conquistar tanto
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poder, se ver à mercê daquele que tomou conta, também por um decreto de poder, do
corpo de sua esposa. Como define o escritor Andrew Solomon em Longe da árvore, o
estupro “não é exclusivamente sexo nem exclusivamente violência; é a expressão
humilhante de um diferencial de poder que une com agressividade esses dois motivos e
comportamentos” (2013, p. 558). E House of Cards não é, afinal, uma obra sobre homens
poderosos? Ainda de acordo com Solomon, é digno de nota que “historicamente, o
estupro é visto menos como a violação de uma mulher do que como um roubo praticado
contra o marido, ou pai, a quem essa mulher pertencia” (2013, pág. 556). Em seguida,
temos Frank representando os Estados Unidos da América ao entregar uma medalha ao
general McGinnis. O vice-presidente sabe que não havia outra opção, então o melhor que
consegue fazer para manter sua dignidade é encarar o general com profundo desprezo
enquanto realiza a formalidade.
O casamento e a fabricação política de si
Simone de Beauvoir não foi a primeira, tampouco a única. Mas foi ela quem, em 1949,
publicou a obra que é, hoje, uma das mais importantes referências nos estudos da
condição feminina: os dois densos volumes de O segundo sexo. Neles, a filósofa se
debruça sobre uma questão primordial: o que ser mulher, afinal? Em seus estudos, ela
chega a afirmar a inexistência de uma essência feminina, daí a famosa frase: “não se nasce
mulher, torna-se mulher”. A questão que guiou a intelectual é em muito parecida com o
que guia este artigo. Aqui, no entanto, faz-se um recorte específico: de que maneira o ser
esposa – e mais: ser esposa de um homem poderoso tanto quanto pode ser um presidente
da República – manifesta-se de acordo com a ideia de “tornar-se mulher”, e não o ser
genuinamente. A fim de reafirmar a ideia de que o que se faz da mulher tem aspecto
majoritariamente social, Beauvoir discorre: “nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto
da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que
qualificam de feminino” (1949, p. 9).
O desenvolvimento de uma menina é por ela descrito como passando por uma primeira
infância em “igualdade” – e aqui as aspas são essenciais para entender a relatividade da
palavra – com os meninos, e então, com o amadurecimento, sobretudo físico, meninas e
meninos passam a tomar caminhos opostos dentro da sociedade em que estão inseridos.
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Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima, instala-se em seu corpo, torna-se a
realidade mais concreta. Conserva o caráter fatal que sempre teve; enquanto o adolescente
se encaminha ativamente para a idade adulta, a jovem aguarda o início desse período
novo, imprevisível, cuja trama já se acha traçada e para o qual o tempo a arrasta. Já
desligada de seu passado de criança, o presente só lhe apresenta como uma transição; ela
não descobre nele nenhum fim válido, mas tão somente ocupações. De uma maneira mais
ou menos velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. Sem
dúvida, o adolescente também sonha com a mulher, deseja-a; mas ela será apenas um
elemento de sua vida: não resume seu destino (Beauvoir, p. 66, 1949).
É de se notar, já no início de O segundo sexo, que o casamento exerce importante papel
na vida de uma mulher. Não é só uma questão de status social, embora em grande parte
também o seja. O desejo pelo casamento nos moldes tradicionais, que significa o desejo
e a procura por um homem, é uma ideia que penetra, sobretudo, a subjetividade feminina,
tornando-se para as mulheres uma meta sem a qual estariam fadadas à infelicidade e à
incompletude. E o que significa, afinal, casar-se? A historiadora Mary Del Priore, ao
estudar a sexualidade e o erotismo na história do Brasil, faz observações pertinentes não
apenas àqueles que buscam entender o país de análise, mas a prática matrimonial do
mundo ocidental como um todo. De acordo com ela, o vínculo conjugal e a sua relevância
social foram moldados principalmente de acordo com as rígidas normas da Igreja
Católica.
A reprodução é tida, então, como o pilar do matrimônio: é com a finalidade de reproduzir-
se que homens e mulheres devem dedicar suas vidas conjugais. O casamento serve,
também, como uma maneira de apresentar-se diante da sociedade em que se vive: em prol
disso, sobrevivem até hoje os rótulos de “mulher para casar” e “mulher para passar a
noite”, identificadas historicamente por Del Priore como “senhoras” e “belas”. Nada é tão
capaz de deslegitimar um homem quanto a maneira com que é visto e tratado pela mulher
que cultiva dentro de sua casa; é fato que nada pode aspirar tanta respeitabilidade para ele
do que o mesmo fator. Se anteriormente falávamos sobre a construção da personagem de
Claire Underwood a partir do olhar masculino, é também verdade que um homem é
construído pelo olhar feminino, ainda que sejam duas construções assimétricas dentro de
uma estrutura hierárquica de gênero. Essa lógica, no caso dos homens públicos, podemos
imaginar, é ainda mais intensa.
Quando Frank atinge a vice-presidência da República, as grandes mudanças não se
limitam à agenda do casal Underwood: se um congressista já precisa se preocupar com a
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própria imagem, é de se supor que um vice-presidente e sua família precisem ter um
cuidado ainda mais especial com essa parte. Enquanto Frank está ocupado em reuniões
com o presidente, alianças e outras decisões políticas, House of Cards mostra ao público
que Claire é a encarregada pela escolha daquele que será responsável por moldá-los, o
assessor de imprensa.
Uma parte importante da vida de certo tipo de casal consiste em exibir-se publicamente.
Às vezes, este constitui o aspecto mais investido de sua união, podendo até, conforme o
caso, chegar a ser quase a única coisa que os une. (...) Ele, na rua, compete com outros
machos, batalhando pelo reconhecimento, a credibilidade, o prestígio – o poder – para si
mesmo, para ela e para os filhos. (...) Ele tem que “vencer”, custe o que custar. Ela, por
sua vez, fica em casa, administrando a vida daquele que tem que vencer. Ela cuida das
coisas e dos sentimentos da família, mesmo quando trabalha fora. É responsável pela
aparência de todos. Se ele tem que ficar ligado na cotação da bolsa de valores econômicos,
para não dar bola fora em sua inabalável ânsia de ascensão, ela tem que ficar ligada na
cotação da bolsa de valores de expressão, para não dar bola fora na maneira como deve
se apresentar a família daquele que tem que vencer (Rolnik, 1989, p. 131).
Após escolher aquele que melhor representaria os interesses político-midiáticos do casal,
Claire é preparada por Connor Ellis, o novo assessor, para a primeira entrevista televisiva
após a nomeação de Frank como vice-presidente. Durante o processo de seleção para o
cargo, inclusive, o assessor faz um comentário sobre a primeira entrevista do casal
Underwood, realizada em 1986, que em muito nos é valioso aqui: “há um momento em
que você passa os dedos pelo cabelo dele. É íntimo. Humano. Aquele momento teria me
convencido a votar no seu marido”.
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Figura 4: No episódio 4 da segunda temporada, enquanto Claire escolhe a roupa que vestirá para a
entrevista, o assessor de imprensa adianta o roteiro da conversa
Claire é relutante à informação que recebe na imagem acima: “achei que tínhamos
concordado em não falar sobre isso”. Em seguida, Connor explica que a entrevistadora
insistiu para que o assunto fosse abordado, e então Claire mostra-se mais disposta: “tudo
bem, já me perguntaram isso antes, eu sei como responder”. Esta é a primeira vez que a
série adentra o tema com o mínimo de profundidade. Ainda que estejam juntos há 27
anos, Frank e Claire Underwood nunca tiveram filhos.
Quando o programa vai ao ar, Ashleigh, a entrevistadora, inicia a conversa falando sobre
“Claire Underwood antes de conhecer o marido, no Texas”. Àqueles que são
telespectadores assíduos do seriado norte-americano, é provavelmente um susto, nesta
cena, lembrar-se da existência de uma Claire anterior a Frank, bem como de um Frank
anterior à Claire. Conforme responde às questões referentes à infância, juventude e
família, a senhora Underwood encanta aqueles que a assistem, inclusive seu assessor e
seu marido.
Figura 5: Claire sendo em entrevista para a TV norte-americana após a nomeação de Frank Underwood
como vice-presidente, episódio 4, segunda temporada
Quando as perguntas se voltam ao casamento, no entanto, Claire ameaça começar a
tropeçar nas palavras. “Alguns acham que seu casamento pode ser mais calculado do que
você diz”, é a primeira invasiva da entrevistadora, que começa a questionar se Frank teria
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vencido a primeira eleição para a qual concorreu sem o apoio financeiro do pai de Claire,
sugerindo que o interesse poderia ter motivado a união. O seguinte diálogo vem na
sequência:
- [Você está] sempre em segundo plano. Trocando as suas metas pelas metas dele.
- Eu não vejo dessa forma. Somos duas pessoas muito independentes que decidiram juntar
suas vidas. Eu o apoio. Ele me apoia.
- O que nos traz de volta à parceria política.
- Meu marido é político e eu trabalho com política, mas a nossa parceria vai muito além
disso.
É à essa altura que o assunto adiantado pelo assessor de imprensa e evitado por Claire
surge: filhos. Quando a entrevistadora questiona se não ter filhos foi um sacrifício, nossa
primeira-dama mantém-se firme e começa o discurso que ensaiara antes da entrevista e,
aparentemente, por muitos anos antes também: “Francis e eu queríamos dedicar nossas
vidas ao serviço público, e achamos que não conseguiríamos fazer isso e ser os pais que
queríamos ser”. Ao finalizar, no entanto, Claire se vê acuada por Ashleigh, que se
preparou para esse momento tanto quanto ela mesma: “Já ouvimos essa resposta antes.
Você deu exatamente a mesma resposta em outras entrevistas. Desculpe-me, mas carreira
e timing são respostas muito convenientes”. Quando Claire cede e fala superficialmente
sobre seus desejos, diz que nunca teve certeza se queria ou não ter filhos, a entrevistadora
pergunta se ela nunca sentiu “a pressão e o instinto materno”. “Porque é incomum, mesmo
agora, que políticos do nível executivo não tenham filhos”, ela completa.
Considerações finais
Fazer a análise de uma série não é tarefa fácil. A proposta de um artigo acadêmico
restringe em muito, sobretudo pela limitação do tamanho, as possibilidades para o assunto
abordado. No caso de uma obra de ficção em que cada episódio apresenta uma riqueza
imensa, o recorte e a escolha sobre quais cenas abordar podem podar as intenções com as
quais se inicia a escrita. Percebe-se, logo no início da atividade, a inviabilidade do desejo
de esgotar o tema – no decorrer da escrita, no entanto, é perceptível que, caso fosse
possível esgotar um tema em um artigo, talvez fosse o caso de repensar a sua pertinência.
Diante disso, a decisão aqui foi clara em sua pontualidade: uma análise que contemplasse
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as tramas das duas primeiras temporadas de House of Cards, com a perspectiva da relação
entre o poder, tema central do drama político, e a condição feminina. Com a seleção, não
somente fica de fora a outra metade da série, que atualmente tem quatro temporadas, mas
algumas nuances das próprias temporadas analisadas – a escolha por discorrer
longamente sobre alguns detalhes, por exemplo, algumas informações precisem ser
negligenciadas.
Mesmo que, como exposto na introdução deste trabalho, a análise tenha sido voltada à
fase da série em que Frank Underwood ainda não é presidente da República, mas
congressista e depois vice-presidente, é importante ressaltar que House of Cards constrói
Claire Underwood como uma primeira-dama desde o primeiro episódio, ou seja, desde
antes da personagem o ser de fato. Por isso, então, é fundamental nos atentarmos a essa
construção para entender quem é, afinal, a esposa política que Claire representa. Mas,
após todas essas reflexões, é possível afirmar que alguma esposa não é política? Por serem
peça fundamental da manutenção ou da subversão da estrutura de poder masculina sobre
a qual a sociedade se ergue, tendo a pensar que toda esposa, e toda não-esposa, ou seja,
todas as mulheres, carregam em si uma forte potência transformadora – seus atos,
justamente por importarem, são políticos.
A ideia de que “por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher” desperta
minha curiosidade e minha perplexidade justamente pelo tom elogioso às mulheres com
o qual se dissimula. À medida em que todas as características de Claire parecem existir
em função da carreira política do marido, em uma busca incessante do casal por um poder
que não sabem ao certo o que significa, o ditado popular pode ser visto pela sua face
pejorativa que se esconde atrás do elogio simplista. Para uma mulher, quais são as
possibilidades de ser grande quando não à sombra de um grande homem?
Referências
DE BEAUVOIR, Simone. Infância. In: O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, v. 1, 2009.
DE BEAUVOIR, Simone. A moça. In: O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, v. 1, 2009.
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora
Planeta do Brasil, 2011.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora
Estação Liberdade, 1989.
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SOARES, Rosana de Lima. Pequeno inventário de narrativas midiáticas: verdade e ficção em discursos
audiovisuais. Revista Significação, n. 34, p. 55-71, 2010.
SOLOMON, Andrew. Estupro. In: Longe da árvore. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.