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Interessar, Motivar, Criar -três estratégias para o ensino de ciências- Luis Carlos de Menezes Instituto de Física Universidade de São Paulo [email protected] Resumo Tomar o ensino de ciências como a promoção de seu aprendizado é compreender que isso começa por interessar quem aprende pelas ciências, e desenvolver instrumentos teóricos e práticos para investigar e compreender a natureza e as técnicas. Desde processos de consolidado interesse tecnológico, como as diferentes formas de condução elétrica, até a discussão da energética das estrelas, há uma infinidade de temas que fazem ambas as funções, que é estimular a curiosidade e a imaginação e dar visão de mundo e recursos par a vida. Ciência é isso tudo. Palavras-Chave: Ciências Naturais, Ensino Básico, Motivação e Investigação, Instrumento e Visão de Mundo. Praticamente qualquer tema das ciências da natureza e das tecnologias a elas associadas, da dinâmica de astronaves ao brilho das estrelas, da condução eletrolítica aos semicondutores, da interdependência na biosfera á evolução das espécies, dos insetos venenosos aos alimentos transgênicos, pode interessar, motivar, envolver ou mesmo entusiasmar crianças e jovens, por sua beleza, pelos instrumentos de interpretação e ação que propicia, pelas linguagens que desenvolve, desde que o objetivo seja interessar, motivar, envolver e entusiasmar. Aliás, ensinar e aprender ciências depende disso, e não vice-versa. Para ser mais explícito, penso que os jovens aprendem ciências quando se interessam por elas, e não interessam por elas simplesmente porque têm de aprender. A partir dessa convicção, procurarei ilustrar a afirmação acima de forma mais intuitiva do que “científica”, tratando precisamente de alguns dos exemplos aleatoriamente apontados acima, especialmente dos mais próximos à física, tendo como único critério ilustrar alguns aspectos mais “contemplativos”, onde a beleza do conhecimento é dominante, e aspectos mais “práticos”, em que as linguagens e instrumentos da ciência parecem ser principais. Quanto ao público alvo, penso em jovens do ensino médio ou das últimas séries do fundamental ainda que, dependendo da idade, seria importante fazer ajustes de linguagem ou de abordagem. Não pressuponho, aliás, que qualquer jovem se interessará por todos esses temas, mas sim por alguns deles, e imagino que diferentes grupos de alunos de uma mesma turma trabalhariam em distintos assuntos, relatando depois aos demais colegas suas descobertas ou conclusões. Em todos os casos, a idéia geral é que o professor apresente uma questão estimulante, a partir de algumas afirmações que lhe dêem contexto, que inicialmente ajude na investigação do tema pelos alunos que se motivarem e, ao final, oriente a apresentação que eles farão aos colegas, relatando as respostas que encontraram. Essa função de cada grupo de informar e instruir seus colegas nos assuntos sob sua responsabilidade não é meramente incidental, pois explicita o caráter cooperativo e comunicativo da ciência e reforça um sentido solidário que se deveria imprimir às atividades de aprendizado escolar. 1

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Interessar, Motivar, Criar -três estratégias para o ensino de ciências- Luis Carlos de Menezes Instituto de Física Universidade de São Paulo [email protected]

Resumo Tomar o ensino de ciências como a promoção de seu aprendizado é compreender que isso começa por interessar quem aprende pelas ciências, e desenvolver instrumentos teóricos e práticos para investigar e compreender a natureza e as técnicas. Desde processos de consolidado interesse tecnológico, como as diferentes formas de condução elétrica, até a discussão da energética das estrelas, há uma infinidade de temas que fazem ambas as funções, que é estimular a curiosidade e a imaginação e dar visão de mundo e recursos par a vida. Ciência é isso tudo.

Palavras-Chave: Ciências Naturais, Ensino Básico, Motivação e Investigação, Instrumento e Visão de Mundo.

Praticamente qualquer tema das ciências da natureza e das tecnologias a elas associadas, da dinâmica de astronaves ao brilho das estrelas, da condução eletrolítica aos semicondutores, da interdependência na biosfera á evolução das espécies, dos insetos venenosos aos alimentos transgênicos, pode interessar, motivar, envolver ou mesmo entusiasmar crianças e jovens, por sua beleza, pelos instrumentos de interpretação e ação que propicia, pelas linguagens que desenvolve, desde que o objetivo seja interessar, motivar, envolver e entusiasmar.

Aliás, ensinar e aprender ciências depende disso, e não vice-versa. Para ser mais explícito, penso que os jovens aprendem ciências quando se interessam por elas, e não interessam por elas simplesmente porque têm de aprender. A partir dessa convicção, procurarei ilustrar a afirmação acima de forma mais intuitiva do que “científica”, tratando precisamente de alguns dos exemplos aleatoriamente apontados acima, especialmente dos mais próximos à física, tendo como único critério ilustrar alguns aspectos mais “contemplativos”, onde a beleza do conhecimento é dominante, e aspectos mais “práticos”, em que as linguagens e instrumentos da ciência parecem ser principais. Quanto ao público alvo, penso em jovens do ensino médio ou das últimas séries do fundamental ainda que, dependendo da idade, seria importante fazer ajustes de linguagem ou de abordagem. Não pressuponho, aliás, que qualquer jovem se interessará por todos esses temas, mas sim por alguns deles, e imagino que diferentes grupos de alunos de uma mesma turma trabalhariam em distintos assuntos, relatando depois aos demais colegas suas descobertas ou conclusões. Em todos os casos, a idéia geral é que o professor apresente uma questão estimulante, a partir de algumas afirmações que lhe dêem contexto, que inicialmente ajude na investigação do tema pelos alunos que se motivarem e, ao final, oriente a apresentação que eles farão aos colegas, relatando as respostas que encontraram. Essa função de cada grupo de informar e instruir seus colegas nos assuntos sob sua responsabilidade não é meramente incidental, pois explicita o caráter cooperativo e comunicativo da ciência e reforça um sentido solidário que se deveria imprimir às atividades de aprendizado escolar.

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I - A dinâmica das naves e das astronaves.

Os aviões têm asas, defletores e lemes para se apoiarem no ar, para subir, descer ou orientar seus movimentos em curvas, assim como têm hélices ou turbinas para avançarem ao empurrar o ar para trás. Os cascos, lemes e hélices dos navios têm funções semelhantes. Isso pode sugerir uma investigação comparativa, até mesmo experimental se for desejado, discutindo em cada caso forças, impulsões, gravidade e empuxo. No entanto, a pergunta central é : “Como se movem e se direcionam as astronaves, sem ar nem água em que se apoiar ou

para empurrar, como as demais naves?”. Não se pressupõe que já se saiba como aviões e navios se movem, mas que sejam investigados como etapa para responder à questão. Pesquisam-se, explicam-se e compreendem-se os mecanismos de deslocamento desses veículos para estudantes já de “mordidos” por essa pergunta sobre astronaves. A perspectiva didático-metodológica é partir de uma investigação fenomenológica semiquantitativa relativamente singela, para explicitar as forças recíprocas entre veículos e meios nos quais se deslocam, convergindo as explicações para as quantidades de movimento, sua variação e sua conservação.

Pode-se fazer mini-foguetes ilustrativos rudimentares ou chegar a fazer estimativas das condições para que se consiga colocar em órbita o estágio mais avançado de foguetes para o lançamento de satélites, dependendo da série e do nível formal da turma. O qualitativo e o quantitativo, o “experimental” e o “teórico” não precisam ser necessariamente acoplados ou proporcionais. Um resultado formal esperado é uma compreensão mais efetiva dos princípios de conservação e das leis de Newton e, por isso, haveria conveniência – mas não a obrigatoriedade – de essa investigação ser feita na série em que isso será trabalhado.

II - A condução metálica, a eletrolítica, a iônica e a dos semicondutores Grande número de livros e cursos de física escolares ainda hoje concentra ou mesmo reduz o aprendizado da condução elétrica no comportamento dito “ôhmico”, ou seja, o que apresenta relação linear entre tensão e corrente. É compreensível que se dê ênfase a tais processos, que além de relevantes permitem formalização mais simples. O que é inaceitável é que não se trate do efeito do calor, da luz e da presença de solutos nas propriedades elétricas de inúmeras substâncias, processos de alta relevância prática e conceitual, pois especialmente no ensino médio, parece que há um veto ao aprendizado qualitativo da física, como se o notável desenvolvimento tecnológico contemporâneo pudesse ser expresso em um punhado de fórmulas... Há um conjunto de perguntas, que poderiam ser apresentadas a diferentes grupos de alunos de uma turma, e que convergiriam a uma compreensão rica e multifacetada dos processos elétricos, térmicos e ópticos de nosso dia-a-dia: 1 – “Porque as lâmpadas fosforescentes são frias se as convencionais são quentes?” 2 – “Que relação tem as portas automáticas que se abrem à nossa aproximação e as cópias xerográficas?” 3 – “Que relação têm os “secadores de papel”, sempre junto das copiadoras, e a condutividade elétrica informada nos recipientes de águas minerais?”

É claro que são de natureza quântica os fenômenos e as explicações envolvidas em cada uma dessas perguntas, mas é impensável que alguém complete a educação de base sem saber responder a elas, ou sem ser apresentado formalmente a fenômenos de sua vida diária de interação entre luz e matéria, e haveria alguma conveniência em se tratarem estas questões no âmbito do aprendizado de eletricidade do

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ensino médio, ou mesmo ao final do fundamental, certamente simplificando-se algumas dessas questões, assim como a ambição explicativa.

A investigação da primeira pergunta levará à compreensão dos transformadores e relês (popularmente conhecidos como “reatores”) que promovem e controlam as tensões de ionização no extremo das lâmpadas e à aceleração de íons e elétrons ao longo delas. A investigação da segunda revelará que os cilindros das copiadoras guardam a “imagem eletrostática” da imagem óptica do original, por serem feitos de material semicondutor tanto quanto são as fotocélulas das portas automáticas, cuja condução está condicionada á exposição de um feixe luminoso. Finalmente, a terceira questão vai mostrar que o papel úmido, tanto quanto a água mineral, possui eletrólitos, ou seja, substâncias como o cloreto de sódio que na água se dissocia em íons, e assim se tornam condutoras. Faça-se uma cópia com papel úmido... e a imagem eletrostática vai sair borrada!

III - O brilho (e o destino) das estrelas Há muito se percebe que há estrelas com brilhos de diferentes intensidades e cores, e basta olhar para o céu noturno para se confirmar isso. Ptolomeu classificou mais de mil delas há dois milênios e, há um século, foi elaborado um diagrama que as classifica ao mesmo tempo por luminosidade (magnitude) e cor (temperatura). A partir desse diagrama H-R (de Hertzprung & Russel, que o desenvolveram) e da descoberta da energia liberada na fusão nucelar, foi estabelecido um modelo para a compreensão da energética estelar (Hans Bethe) e para a interpretação do nascimento, a vida o envelhecimento e morte das estrelas. A questão que poderia dar partida à investigação poderia ser:

Como conseguem as estrelas, como o nosso Sol, brilhar por bilhões de anos, com uma luminosidade que exigiria bilhões de bilhões de bilhões de baterias elétricas, se não tem ninguém pra trocar suas baterias? (ou como um deus faria isso?). O grupo de alunos que se dispusesse a conduzir a investigação, em livros, enciclopédias e pela internet, deveria ser estimulado a estimar a energia que chega à Terra por segundo e, a partir da estimativa do ângulo sólido coberto pela Terra, estimar a energia total que estará sendo emitida pelo Sol. Será difícil pensar em processos terrestres com tal potência, mas será possível avaliar quantas bombas H deveriam estar sendo detonadas continuamente para produzi-la... Um entendimento qualitativo das bombas de fusão, assim como da razão pela qual o elemento Hélio ganhou este nome (que é designação grega do Sol), deveriam ser precedentes à modelagem da seqüência evolutiva “autogravitação-fusão-radiação” e à descrição do equilíbrio dinâmico transitório que se dá entre pressão de radiação e gravitação nas diferentes fases da vida de uma estrela, tanto das menores que se murcharão como anãs marrons, como nas maiores que explodirão como supernovas. O fato de núcleos atômicos serem essenciais nesse processo recomendaria, mas não obrigaria, que essa questão fosse formulada nas séries finais da educação de base. É possível aprender e ensinar ciências com prazer e realização permanente

O trabalho individual e coletivo de investigação envolvido em cada um dos exemplos acima, nas simples observações e experimentações, como no caso das copiadoras, ou na busca bibliográfica e pela internet, como no caso dos processos estelares, e o trabalho subseqüente de preparar uma apresentação dos resultados a seus colegas, envolvem

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uma grande variedade de habilidades, de conhecimentos, de competências, constituindo assim desafios construtivos. O estímulo que têm os alunos que apresentam e os que ouvem os relatos é muito diferente e maior do que aquele recebido quando o professor ocupa permanente o papel de “ensinador”.

Aliás, na proposição e na assessoria dessas questões-projetos, a função do professor é essencial, não só para orientar as buscas e as apresentações, mas para elaborar pontes entre cada temática específica e o plano mais amplo do conhecimento disciplinar, preparando sínteses que sistematizem os princípios gerais envolvidos, os conceitos utilizados e as linguagens apreendidas. Com certeza, o professor trabalha mais e com mais eficácia do que como mero expositor de saberes, assim como também aprende mais e continuamente, à medida que acompanhe a investigação de diferentes temas feita por diferentes grupos de alunos. Em turmas grandes, não se deve ter a pretensão de que todos os alunos se envolvam com a mesma determinação. Dois ou três grupos que se dediquem a questões como as aqui ilustradas já constituirão sinalizações preciosas de como trabalhar em equipe, buscar e partilhar conhecimentos.

As três qualidades que podem estar presentes no aprendizado das ciências e que deram título a este breve artigo, beleza, instrumento e linguagem, poderiam ser motes a partir dos quais os professores poderiam selecionar temas para estas investigações em suas disciplinas, que serão diferentes dos exemplos que eu trouxe, da física. Em biologia, a herança matrilinear do DNA mitocondrial, associado à natureza procarionte das mitocôndrias, tem uma incrível beleza, reveladora do caráter sistêmico e evolutivo da biosfera. Em química, o estudo das ocorrências de substâncias na litosfera, na hidrosfera, na atmosfera e na biosfera, associado a um levantamento de seu uso na

produção de energia, na construção civil, e nos diferentes setores industriais, tem um inestimável sentido instrumental e de desenvolvimento de linguagens. A sensibilidade e a cultura pessoal de cada professor, assim como o projeto pedagógico de cada escola, pode dar margem a incontáveis leituras dessas poucas sugestões, uma riqueza que eu certamente não seria capaz de imaginar. Por certo não trouxe aqui de idéias exatamente novas, mas talvez seja nova a maneira direta e informal com que as apresento aqui, nesta conversa de um professor para outro. Sobre o autor Luis Carlos de Menezes é físico e educador, tem escrito e coordenado livros sobre a física, sobre formação de professores e sobre a universidade brasileira. Na Universidade de São Paulo, é professor do Instituto de Física e orientador dos Programas Pós-Graduação em Educação e em Ensino de Ciências.

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To attract attention (Interest), to motivate, to create - three strategies for teaching science –

Abstract To think about science education and about the promotion of science learning involves to understand that it starts with the development of both an interest in the learner and of theoretical and practical tools to investigate and understand nature and technology. From consolidated processes of technological interest, such as different forms of electrical conduction, up to the discussion of the energy of the stars, there are a multitude of themes that supply both functions, which are to stimulate curiosity and imagination, and to provide world views and the resources for life. Science means all that. Keywords: natural sciences, education, motivation and imagination, instruments and world view

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