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8 NEUSA DE ARAÚJO FERNANDES INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO NO DISCURSO ARGUMENTATIVO DE EDITORIAIS DE O JEQUITINHONHA, DE DIAMANTINA, NO SÉCULO XIX (1868-1869) PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS BELO HORIZONTE 2001

INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO NO DISCURSO … · Di ssertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC ... 4.2.1.3. Editorial de 27 -12 -1868 –

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NEUSA DE ARAÚJO FERNANDES

INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO

NO DISCURSO ARGUMENTATIVO DE EDITORIAIS DE

O JEQUITINHONHA, DE DIAMANTINA, NO SÉCULO XIX

(1868-1869)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

BELO HORIZONTE

2001

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NEUSA DE ARAÚJO FERNANDES

INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO

NO DISCURSO ARGUMENTATIVO DE EDITORIAIS DE

O JEQUITINHONHA, DE DIAMANTINA, NO SÉCULO XIX

(1868-1869)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como parte dos

requisitos para a obtenção do grau de Mestre em

Língua Portuguesa, elaborada sob orientação do

Prof. Dr. Johnny José Mafra.

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Belo Horizonte

2001

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Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC

Minas e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora

________________________________________

________________________________________

________________________________________

Belo Horizonte, de de 2001.

Profa. Dra. Ivete Lara Camargos Walty

Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras

PUC Minas

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DEDICO

À memória: de papai e mamãe (Bileu e Conceição), que, bem cedo, mostraram-me a

importância do trabalho como forma de realização pessoal e, recentemente, partindo dessa vida, deram, com o aceno de benção, sua última lição de força e coragem para enfrentar adversidades, expressões eloqüentes do amor de pais educadores.

de Luiz, meu marido, que, se nesta terra estivesse, estaria, por certo, neste

momento, ao meu lado, como sempre o fez durante toda nossa convivência de amor, trabalho, alegrias e tristezas. Na saudade, eu o vejo presente e isso é para mim um lenitivo.

de Marilane, minha filha, que ao ter a sua vida interrompida aos 21 anos, deixou

uma grande saudade, imenso vazio, só, em parte, preenchido por um trabalho mais intenso e prolongado, sempre motivado pelo pensamento de que essa era a forma de compensar um pouquinho do que ela não pôde fazer. Assine este, Marilane, porque é seu.

Aos meus filhos, companheiros do dia-a-dia, Leônidas, Gleice, Jefferson, Ronaldo e Luiz Orlando, a quem este trabalho roubou um pouco da minha atenção, não raras vezes. Às noras e ao genro que, por certo, compensaram muito bem a minha falta.

Aos netos, Rafael, Túlio, Pietro, Luíza, Larissa e Lara, esperando que, mais tarde, leiam, com

benevolência, as “esquisitices” da vovó. À Diamantina e à FAFIDIA, onde o amadurecimento de vida tem acontecido permeado de alegrias

e angústias.

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AGRADEÇO

A Deus que nunca me deixou faltar a vontade de estar sempre recomeçando. A meus familiares, cujo apoio irrestrito foi fundamental para realização do Curso de

Mestrado. A D. Ângela, Coordenadora e professora do programa de Pós-graduação em Letras da

PUC Minas, pela sua prestimosa atenção e pelas freqüentes lições de vida que sempre permeiam as suas aulas.

Ao prof. Johnny José Mafra, que à sua competente orientação de trabalho sempre

acrescenta uma palavra amiga de incentivo. Aos professores Milton, Hugo Mari, Vanda, Johnny, Malu Matencio e Beatriz Decat pela

valiosa contribuição para a construção do conhecimento que me possibilitou refletir sobre Lingüística durante o Curso.

À Fundação Educacional do Vale do Jequitinhonha e à Faculdade de Filosofia e Letras

de Diamantina, pelo apoio constante e pela ajuda financeira. Aos colegas de Curso, pelo companheirismo, cooperação e amizade. Às secretárias Vera e Marieta, pelo habitual sorriso de acolhimento aos pedidos e

reclamações.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................................08

CAPÍTULO I - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS....................11 1.1. A Lingüística Textual.................................................................................................................12 1.2. Análise de Discurso....................................................................................................................13 1.3. Retórica.......................................................................................................................................16 1.4. A História....................................................................................................................................18 1.5. A Mitologia.................................................................................................................................19 1.6. A Ideologia.................................................................................................................................20 1.7. A Literatura.................................................................................................................................20

CAPÍTULO II – OS EDITORIAIS: uma atividade lingüística.......................................................22 2.1. Os sujeitos da interlocução: locutor/alocutário...........................................................................23

2.1.1. Locutor(es) e enunciadores..............................................................................................26 2.1.2. Os sujeitos-alocutários (Interlocutores)...........................................................................30

2.1.2.1. Os Diamantinenses.............................................................................................31 2.1.2.2. Os Políticos Brasileiros......................................................................................33 2.1.2.3. A Corte, O Governo Imperial.............................................................................33

2.2. A referência: ‘EU – TU / ELE’...................................................................................................34 2.3. O contexto espácio-temporal......................................................................................................35

2.3.1. Brasil – Século XIX.........................................................................................................36 2.3.2. Diamantina: apogeu de sua prosperidade........................................................................37

CAPÍTULO III – OS EDITORIAIS: SUA ORGANIZAÇÃO TEXTUAL....................................39 3.1. A infra-estrutura geral dos editoriais..........................................................................................40

3.1.1. O plano geral: o conteúdo temático.................................................................................40 3.1.2. Tipologia do discurso: gênero discursivo e tipos textuais...............................................42

3.1.2.1. Gêneros discursivos............................................................................................43 3.1.2.2. O editorial: um gênero discursivo......................................................................45 3.1.2.3. O editorial: tipos textuais ou seqüências lingüísticas do texto...........................47

3.1.2.3.1. A intercambialidade de tipos nos editoriais........................................48 3.1.3. A seqüencialidade argumentativa dos editoriais.............................................................50

CAPÍTULO IV – A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DOS EDITORIAIS: REFERÊNCIA, INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO........................................................................................54 4.1. O conhecimento lingüístico no processamento textual..............................................................55

4.1.1. Os mecanisnmos de coesão nominal...............................................................................56 4.1.2. A seleção lexical: norma lingüística e contexto sócio-cultural........................................62

4.2. Os conhecimentos enciclopédicos..............................................................................................68 4.2.1. Intertextualidade e erudição nos editoriais......................................................................69

4.2.1.1. Editorial de 04-10-1868 – Crítica ao Ministro da Fazenda................................73 4.2.1.2. Editorial de 15-1-1868 – Crítica à Imprensa Imperial........................................77 4.2.1.3. Editorial de 27-12-1868 – Crítica ao governo absolutista de D. Pedro II..........82 4.2.1.4. Editorial de 24-01-1869 – Crítica ao cesarismo do Governo Imperial de D. Pedro II............................................................................................................................85 4.2.1.5. Editorial de 07-03-1869 – Crítica ao Diário do Rio de Janeiro pela sua bajulação ao Governo Imperial........................................................................................89 4.2.1.6. Editorial de 06-05-1869 – Crítica ao Parlamento Brasileiro..............................94

4.3. Conclusão...................................................................................................................................95

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CAPÍTULO V – A ARGUMENTAÇÃO NOS EDITORIAIS: SUA CONSTRUÇÃO..................97 5.2. Condições da argumentação.......................................................................................................98

5.2.1. Proposição de uma tese....................................................................................................98 5.2.2. O acordo prévio: a adesão inicial.....................................................................................99

5.2.2.1. Os fatos...............................................................................................................99 5.2.2.2. As verdades.......................................................................................................101 5.2.2.3. As presunções...................................................................................................102 5.2.2.4. Os valores.........................................................................................................103

5.3. A construção dos argumentos: técnicas....................................................................................106 5.3.1. Os esquemas argumentativos.........................................................................................106 5.3.2. As técnicas argumentativas: tipos de argumentos.........................................................107

5.3.2.1. Argumentos quase lógicos................................................................................107 5.3.2.1.1. Compatibilidade/incompatibilidade: o ridículo................................108 5.3.2.1.2. As definições....................................................................................110 5.3.2.1.3. A comparação...................................................................................112

5.3.2.2. Os argumentos fundados na estrutura do real...................................................113 5.3.2.2.1. As ligações de sucessão....................................................................113 5.3.2.2.2. As ligações de Coexistência.............................................................115 5.3.2.2.2. Os símbolos......................................................................................117

5.3.2.3. Argumentos que fundamentam a estrutura do real...........................................118 5.3.2.3.1. O exemplo.........................................................................................119 5.3.2.3.2. A ilustração.......................................................................................121 5.3.2.3.3. Modelo e antimodelo........................................................................122 5.3.2.3.4. As analogias e as metáforas..............................................................123

5.3.2.4. Argumentos por dissociação.............................................................................125 5.3.3. Persuasão e figuras de retórica.......................................................................................126

5.3.3.1. Conceito e tipos................................................................................................126 5.3.3.1.1. Os metassememas.............................................................................127

5.3.3.1.1.1. A antonomásia................................................................128 5.3.3.1.1.2. A metáfora......................................................................130

5.3.3.1.2. Os metalogismos: a ironia................................................................134 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................140 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................145

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RESUMO

Esta dissertação apresenta uma análise de editoriais de O Jequitinhonha sob a

perspectiva semântico-argumentativa, identificando as marcas lingüísticas da

intertextualidade erudita na construção de sentido dos textos, para produzir argumentos.

Mostra que a estratégia de referenciação, usando itens lexicais, concentra-se,

preferencialmente, na designação por nome próprio, o que lhe confere força persuasiva, em

virtude de uso de personalidades históricas do mundo erudito europeu como referidores.

O objetivo é mostrar que havia em Diamantina, no século XIX, uma elite

intelectual, dela tendo sido um representante, Joaquim Felício dos Santos, que interagia,

através da imprensa, com interlocutores locais e nacionais, com um discurso político

liberal erudito e, fortemente, argumentativo, para combater o Governo Imperial.

Palavras-chave: Discurso Argumentativo

Referência e Intertextualidade

Erudição

Contexto sócio-cultural

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Neusa de Araújo Fernandes

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INTRODUÇÃO

O motivo inicial para realização de uma pesquisa lingüística em textos de arquivo

foi, para mim, professora de Língua Portuguesa, de Filologia e de História da Língua,

investigar a produção escrita de Diamantina, desde o tempo colonial até os dias atuais, ou

seja, ter uma visão diacrônica do processo de produção de textos, analisando características

da norma culta, presumivelmente, existentes nos textos e em possível mudança ao longo do

tempo. Iniciadas, no entanto, as atividades de pesquisa e, refletindo sobre a proposta,

diante da amplitude do assunto, acabei por optar por um estudo mais restrito, menos

ambicioso. Assim, de uma visão diacrônica, passei a realizar uma análise do discurso

argumentativo de alguns editoriais de O Jequitinhonha, jornal publicado em Diamantina,

no século XIX.

A escolha de textos dessa época justifica-se pelo fato de esses editoriais terem

sido escritos em Diamantina, num período histórico, em que a cidade se afirmava, não só

como pólo comercial de uma região em franco desenvolvimento, mas também como

referência cultural mineira, pela atenção dispensada à educação, à arte e à cultura, quando

políticos e escritores ousavam levantar sua voz diante do governo em discursos

combativos, veiculados na imprensa local e, até mesmo, na imprensa da Corte.

A escolha do objeto desta pesquisa deveu-se a uma série de indagações suscitadas

pela leitura de jornais antigos e peças de defesas criminais arquivadas na Biblioteca

“Antônio Torres” do Patrimônio Histórico, de Diamantina, em que percebia o uso de

norma lingüística culta, com freqüentes marcas de erudição, o que, de certa forma, trouxe-

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me encantamento e admiração por essas produções escritas e despertou-me a vontade de

conhecê-las melhor.

Entre as indagações sobre o assunto, destacam-se: por que os jornalistas da época,

de uma cidade do interior, usavam uma linguagem erudita, estratégias discursivas que

exigiam grandes conhecimentos enciclopédicos? Haveria leitores para esses jornais na

Diamantina oitocentista? Quais os sujeitos envolvidos nessa interlocução?

O objetivo deste trabalho é mostrar a erudição no discurso argumentativo de

editoriais de O Jequitinhonha, através das marcas de intertextualidade nos processos de

referenciação utilizados pelo autor.

Para isso, dediquei-me à leitura de grande parte dos editoriais do referido

periódico, formei um corpus de, apenas, seis textos - anos 1868 e 1869 - para neles analisar

as marcas lingüísticas da intertextualidade erudita, na construção de um discurso

argumentativo. Nesse conjunto de editoriais nota-se uma certa unidade semântica, marcada

por uma cadeia de referenciação coerente e estruturada, que possibilita perceber a

recorrência à estratégia em foco.

O quadro teórico-metodológico adotado no desenvolvimento deste trabalho

resultou da associação da Lingüística Textual, da Análise de Discurso e da Retórica com

a História Universal e do Brasil, além de outras disciplinas afins, o que torna o meu

trabalho transdisciplinar.

Diante disso, a análise é feita considerando-se todo o processo interlocutivo: os

editoriais (textos) são vistos como resultantes (produtos) de uma atividade de linguagem

(processo) em que a interação é realizada entre sujeitos, ocupantes de lugares sociais com

suas representações de mundo. A intencionalidade e a necessidade de comunicação, num

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contexto sócio-histórico, determinam a escolha de mecanismos de construção de

argumentos dentre os disponíveis na língua.

É oportuno considerar que não assumo posições radicais quanto aos rigores

conceituais dos quadros teóricos adotados, buscando, tão somente, utilizar os pressupostos

que propiciem o delineamento de uma metodologia de análise para atendimento do

objetivo a que me propus.

Este trabalho está dividido em capítulos, assim distribuídos: no primeiro, são

feitas considerações teórico-metodológicas para explicação de alguns conceitos adotados

sobre aspectos teóricos necessários à execução da análise; no segundo, são descritos os

editoriais como práticas discursivas e não enunciados abstraídos de suas condições de

produção; no terceiro, caracteriza-se a infra-estrutura textual dos editoriais como um

gênero de discurso composto de tipos textuais articulados; no quarto, analisa-se a

intertextualidade, com suas marcas de erudição, nas estratégias de referenciação,

responsáveis pela progressão temática dos editoriais; no quinto, a construção dos

argumentos, o uso dos recursos retóricos são explicados. Por último, as considerações

finais, a título de conclusão, fazem o fechamento do trabalho.

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CAPÍTULO I

Algumas considerações teórico-metodológicas

A análise do discurso argumentativo de editoriais de O Jequitinhonha, como já

se disse, é feita a partir de um quadro teórico-metodológico de Lingüística Textual, da

Análise de Discurso e da Retórica, que têm um ponto convergente importante: o estudo do

texto como unidade semântica, formal e sociocomunicativa.

Como disciplinas auxiliares, a História, a Mitologia, a Ideologia, a Literatura

prestam a sua contribuição à análise da semântica argumentativa dos editoriais, oferecendo

subsídios indispensáveis à compreensão do texto.

Diante disso, são feitas, neste capítulo, breves considerações sobre esses

referenciais teóricos, apenas como molduras na delimitação de algumas perspectivas sob

as quais procurou-se enxergar o corpus, reservando o delineamento conceitual,

propriamente dito, para ser feito como suporte da própria análise ao longo do trabalho, em

cada capítulo.

1.1. A Lingüística Textual

A Lingüística Textual tem a sua origem na Retórica, que a partir da Grécia

Clássica, já se constituía em um corpo de reflexões sobre o discurso, sob a perspectiva

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pragmática: a interação entre sujeitos para produzir persuasão. Além da Retórica, a

Estilística foi também precursora da Lingüística Textual, uma vez que estuda as relações

textuais para verificar sua expressividade, os efeitos estilísticos, não se restringindo,

portanto, aos limites da frase.

É no século XX, no entanto, que, com os progressos dos estudos lingüísticos, o

texto, o discurso, como unidade de análise, começa a merecer a atenção dos lingüistas. O

interesse pelos fenômenos lingüísticos que ocorriam além das frases isoladas (estudadas

como unidades maiores pela Gramática) foi-se firmando através da análise transfrástica, da

organização da Gramática Textual, culminando com as Teorias de Texto e Lingüistica

Textual.

A Lingüística Textual estuda enunciados completos, busca esclarecer o que é e

como se produz um texto, sua natureza e os fatores envolvidos na sua produção e recepção

(Costa Val, 1994: 1). Como um novo ramo da Lingüística, seu desenvolvimento se

acelerou, a partir da década de 60, na Europa, e, hoje, concentra a atenção dos lingüistas.

Embora haja um objeto de estudo definido – o texto – não há uma unidade teórica

na Lingüística Textual. Europeus que tomam esse objeto de estudo para suas investigações

apresentam teorias diversificadas, mas que são, todas, sem dúvida, valiosas contribuições

para a sistematização desse novo ramo da Lingüística. Fávero e Koch (1998: 37-105) citam

alguns, dada a importância de suas posições para os pressupostos técnicos construídos:

Halliday propõe o estudo numa linha funcionalista; Weinrich postula a necessidade do

estudo da macrossintaxe do discurso; Ducrot e Carlos Vogt, estruturalistas, defendem um

estruturalismo do discurso, do estudo macrossintático ou semântico-argumentatico da

língua e consideram o ato de argumentar como o ato lingüístico fundamental, isto é,

defendem que argumentatividade se acha implícita na própria língua; Isemberg tem como

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objetivo principal construir, ainda que parcialmente, uma gramática de texto modelo de

competência lingüística do falante; Lang apresenta várias acepções de texto, para

identificar os fatos que não podem ser descritos pela gramática de frase; Dressler tem por

principal objetivo construir um mecanismo para a construção de textos; Van Dijk postula

que ao texto subjazem estruturas peculiares: a macroestrutura, a microestrutura e a

superestrutura, e Petöfi propõe uma teoria de texto que considera na constituição do texto

um componente gramatical e um semântico-extensional, o primeiro co-textual (dêixis,

anáfora, catáfora) e o segundo, contextual, que procura dar conta dos aspectos pragmáticos.

Importa, apesar das variações das vertentes teóricas dos estudiosos, a soma de todas essas

contribuições para o desenvolvimento desse ramo dos estudos lingüísticos, tão importante

nos dias de hoje e do qual não se pode prescindir para a realização de um estudo sobre o

texto.

No Brasil, Koch, Fávero e Marcuschi têm-se dedicado ao assunto e divulgado

orientações sobre a prática da análise lingüística de textos, sendo considerados autoridades

em Lingüística Textual, que tem sido importante área de concentração nos estudos

lingüísticos brasileiros.

1.2. Análise de Discurso

Um dos setores mais desenvolvidos da pesquisa lingüística, nos dias atuais, é o da

Análise de Discurso. Enquanto a Lingüística se preocupa com a língua como sistema de

signos e a Gramática com estabelecimento de normas do uso da língua ou com outros

aspectos, conforme a sua especificidade, a Análise de Discurso, de maneira particular,

estuda a linguagem como Discurso. Orlandi (1999: 15) diz que a “palavra discurso,

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etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento”.

Define, também, o objetivo da Análise de Discurso, que procura “compreender a língua

fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo

do homem e de sua história”. Vê-se, portanto, o texto enquanto unidade significativa e não

apenas como unidade formal: assim ao estudo da unidade significativa acrescenta-se a

pragmática, “aquela em cujo processo de significação também entram os elementos do

contexto situacional” (Orlandi, 1987: 116).

A Análise de Discurso procura descrever, explicar e avaliar, criticamente, os

processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados aos produtos

culturais empíricos criados por eventos comunicacionais, anúncios publicitários, textos

jornalísticos impressos, discursos políticos (Pinto, 1999). Por isso ela não trabalha a língua

fechada em si mesma, mas o discurso, que é um objeto sócio-histórico em que o lingüístico

intervém como pressuposto.

A Análise de Discurso, como a Lingüística textual, teve sua origem na Retórica.

No entanto, é da Filologia que recebe a maior contribuição, pois, como afirma

Maingueneau (1989: 10), ela “ocupou uma grande parte do território liberado pela

Filologia, porém com pressupostos teóricos e métodos totalmente distintos”. A Filologia

estudava os textos antigos como um legado cultural, buscando interpretá-los de forma mais

original possível. Era praticada através da Hermenêutica (disciplina especializada na

interpretação de textos) e da Exegese (técnica que orientava a classificação dos textos de

acordo com sua genealogia, suas versões, em busca dos textos originais ou de versões mais

confiáveis).

Maingueneau considera ainda que o analista de discurso vem, de maneira especial,

trazer sua contribuição às hermenêuticas contemporâneas. Como todo hermeneuta, o

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analista supõe um sentido oculto, que deve ser captado, o qual sem uma técnica apropriada

permanece inacessível. No entanto, Maingueneau (1989: 11) lembra a posição de Pêcheux:

a análise de discurso não pretende ser especialista da interpretação, dominando “o” sentido dos textos, mas busca construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito. (...). O desafio crucial é o de construir interpretações, sem jamais neutralizá-las (...).

Como a Lingüística textual, a história moderna da Análise de Discurso teve início

com “os formalistas russos que abriram espaço nos estudos lingüísticos daquilo que mais

tarde foi denominado discurso”, conforme Brandão (s/d: 15). Eles construíram uma linha

de Análise de Discurso que superava a abordagem filológica ou impressionista que até

então dominava os estudos da língua, mas ainda ligada a uma abordagem imanente do

texto, não conteudística, mas com interesse, sobretudo, literário. Portanto, o deslocamento

do foco do conteúdo marcou o início da Análise do Discurso.

Na História da Análise do Discurso, são significativas as contribuições de Harris

(1952), de Jakobson, de Benveniste, que realça o papel da subjetividade, quando afirma

que “o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor

por índices específicos”, de Pêcheux, que, partindo, criticamente, de colocações sobre

linguagem, feitas por Saussure e dos deslocamentos por elas provocados na lingüística,

conceitua o que vem a ser funcionamento discursivo, condição de produção, processos

discursivos, dando uma série de orientações conceituais para a abordagem do discurso por

ele denominada Análise Automática do Discurso.

Também, como na Lingüística Textual, a Análise de Discurso apresenta vertentes

diferentes, conforme diferentes perspectivas de se pensar a teoria do discurso.

Atualmente, duas vertentes se destacam pelos seus pressupostos teóricos não

coincidentes, a AD Francesa e a AD Anglo-saxã (como são denominadas). A AD Francesa

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dá relevo ao papel do sujeito falante no processo da enunciação, considera a relação entre o

locutor, seu enunciado e o mundo, sua posição sócio-histórica; parte da relação necessária

entre o dizer e as condições de produção desse dizer; considera o discurso o modelo teórico

que articula o lingüístico ao sócio-histórico; o sujeito é psicanalítico, social e histórico.

Constitui-se a vertente francesa na relação entre a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise.

A AD anglo-saxã considera a linguagem constitutiva do sujeito e de suas relações

sociais e considera o sujeito, ser social e cognitivo, que opera sobre o sistema lingüístico; a

prática lingüística é uma ação mútua entre os sujeitos: interação; um evento de interação

implica uma troca comunicativa; a atividade discursiva é uma forma estratégica de

atualização de recursos lingüísticos na produção de um texto.

Diante desses dois quadros da Análise de Discurso, pelos pressupostos teóricos

em que cada um se embasa, a análise de editoriais, proposta neste trabalho, será feita,

buscando subsídios em referenciais teóricos da linha anglo-saxã, e, assim, os editoriais são

vistos como resultantes de uma interação lingüística entre locutores/alocutários, num

contexto sócio-cultural.

1.3. Retórica

Para análise de um discurso argumentativo, é indispensável a consideração de

alguns ensinamentos da Retórica, como um sistema constituído de técnicas para se

produzir a persuasão pelo discurso.

A história da Retórica revela seus dias de glória, sua decadência, seu

ressurgimento sob novas perspectivas, o que oferece subsídios para o estudo dos editoriais,

como um discurso argumentativo, veiculado pela imprensa.

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Nascida na Grécia Clássica, a Retória, já no Século V a. C. fazia parte da cultura

ateniense, com caráter pragmático, em virtude de seu uso em situações reais de disputas de

propriedades, quando a vitória se associava ao desempenho dos retores nos embates

discursivos travados. Aristóteles repensa a Retórica, transformando-a num sistema de

normas, “uma arte de achar os meios de persuasão que cada caso comporta”. Assim,

Aristóteles dá à Retórica uma definição mais modesta, mas de utilidade na comunicação

verbal com função conativa, apelativa (cf. Reboul, 2000: 24).

Além dos gregos, os romanos aderiram e assimilaram a Retórica, sendo

significativos exemplos de seus cultores Cícero e Quintiliano, que em suas obras

teorizavam sobre suas práticas.

No Século XIX, declina o apreço pelos estudos da Retórica, diante do surgimento

do positivismo, e do romantismo. O primeiro a rejeita em nome da verdade científica,

substituindo-a pela Filologia e a História científica das literaturas, e o segundo em nome da

sinceridade. Por isso, passou a ser vista, apenas, como o uso de mecanismos capazes de

tornar o discurso mais pomposo, como, principalmente, o das figuras de linguagem, para

embelezamento do discurso literário, e a sua função no discurso argumentativo ficou

relegada a segundo plano.

Finalmente, a partir dos anos 60, na Europa, a Retórica, que na verdade nunca

morreu, ressurge com um campo mais amplo de aplicação: na literatura, nos discursos

jurídicos e políticos e na comunicação de massa, ou seja, apodera-se de todas as espécies

de produções verbais e não verbais, admitindo-se uma retórica do cartaz, do cinema, da

música e outras, reconhecendo-se, dessa forma, a sua utilidade na construção das diversas

linguagens, de que se vale o ser humano na sua interrelação comunicacional.

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Para Ducrot e Ascombre a argumentação se inscreve na própria língua, dada a

natureza argumentativa da linguagem. Mosca (1999: 17), partindo desse princípio de que

“a argumentatividade está em toda e qualquer atividade discursiva” e de que “argumentar

significa considerar o outro como capaz de reagir diante das propostas e teses que lhe são

apresentadas”, vem confirmar a ampliação do estudo e emprego da Retórica Moderna.

Assim, as teorias retóricas modernas passaram a ter como objeto de estudo o discurso em

geral, no que ele traz de persuasivo, de argumentativo, de interativo.

À atitude de descrença nos efeitos da Retórica, segue-se, portanto, a convicção de

que é no mundo da opinião, da doxa, que são tecidas as relações sociais, políticas e

econômicas, uma vez que é a esta que se tem acesso e não ao que chamaria mundo da

verdade, comenta Mosca (1999: 21).

Para trilhar os caminhos dessa Nova Retórica tem-se considerado a importante

obra francesa, publicada em 1958, de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca – O

tratado da Argumentação, a nova retórica – que retoma as concepções de Aristóteles,

Isócrates e Quintiliano, constituindo-se realmente em uma teoria do discurso persuasivo.

Nela foram buscados fundamentos para a análise dos argumentos construídos nos editoriais

de O Jequitinhonha, no capítulo V deste trabalho.

1.4. A História

A História configura o contexto sócio-cultural da realização da atividade

lingüística, oferece dados indispensáveis à interpretação e análise do discurso, representa

o “aqui-agora” do evento enunciativo, único, ou seja, possibilita ao analista uma volta ao

espaço e tempo da realização do ato dos interlocutores. A História de Civilização –

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Antigüidade e Idade Média, Moderna e Contemporânea – dá subsídios para uma visão

geral da caminhada do homem sobre a terra, com sua organização social, política e

religiosa, própria de cada período, de cada espaço, geográfica e politicamente, delimitado.

Assim, explicar a intertextualidade no processo de referenciação dos editoriais obrigou ao

analista um vôo rápido sobre fatos políticos, sociais do mundo antigo e moderno,

especialmente da Europa.

1.5. A Mitologia

As histórias dos deuses e heróis, presentes na vida dos povos politeístas da

antigüidade, constituem intertextos freqüentes, usados por escritores, poetas e oradores

modernos, através de alusões, na tentativa de tornar o discurso, além de mais significativo,

mais belo, mais erudito e, algumas vezes, mais convincente, conforme o uso que é feito das

referências mitológicas. Assim, divindades gregas, habitantes do Monte Olimpo e

divindades romanas povoam os discursos, e o conhecimento da Mitologia torna-se

necessário para uma perfeita interação entre os interlocutores dos editoriais que devem

compartilhar conhecimentos enciclopédicos básicos da construção do(s) sentido(s) neles

construído(s).

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1.6. A Ideologia

A ideologia é vista como um mecanismo estruturante do processo de significação,

se considerada, a partir da linguagem e não sociologicamente como visão de mundo. É o

que se pode deduzir das afirmações de Orlandi, quando diz (1999: 95-69):

É a Ideologia que torna possível a relação palavra/coisa. Para isso tem-se as condições de base, que é a língua, e o processo que é discurso, onde a ideologia torna possível a relação entre o pensamento a linguagem e o mundo. (...) a ideologia se materializa na linguagem. (...) a ideologia se liga inextrincavelmente à interpretação enquanto fato fundamental que atesta a relação da história com a língua, na medida que esta significa, A conjunção língua/história também só pode se dar pelo funcionamento da ideologia.

O discurso político dos editoriais é marcado pela ideologia do Partido Liberal de

quem o editorialista se torna porta-voz e militante convicto.

1.7. A Literatura

O gênero textual editorial tem características de produção literária, uma vez seu

autor empenha-se em torná-lo bem estruturado, estilo agradável, de leitura prazeirosa,

recorrendo para isso ao uso da linguagem de forma artística, extrapolando o nível da sua

função referencial para o da função poética. A conotação é, às vezes, mais presente que a

denotação na semantização do texto; a subjetividade sobrepõe-se à objetividade; a função

expressiva torna-se predominante. Textos literários produzidos na Europa constituíram

intertextos dos editoriais e o reconhecimento deles é fundamental na compreensão do

novo discurso, em que a atualização do “já dito”, como se pode comprovar pela leitura

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desses discursos, imprime um sentido ao dizer do editorialista, adequado à sua intenção

persuasiva.

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CAPÍTULO II

OS EDITORIAIS: UMA ATIVIDADE LINGÜÍSTICA

Diante dos editoriais, duas alternativas básicas de análise se apresentam: a

primeira consiste em vê-los, apenas, como um enunciado, que se estrutura em um código

ou um sistema, composto de regras fonológicas, léxicas, sintáticas, relativamente estáveis,

usando, para isso, um procedimento metodológico que faça abstração das condições da

produção de linguagem e, somente, descreva o funcionamento desse código, através das

características do texto, ou seja, uma análise numa linha imanentista; a segunda consiste

em perceber os editoriais como produções verbais em suas dimensões empíricas, concretas,

o que determina, em conseqüência, a análise do discurso, do “homem falando”, da “língua

em funcionamento concreto”, “a palavra em movimento” (Orlandi, 1999).

Adotada a segunda alternativa, volta-se a atenção para o processo discursivo, uma

interação entre sujeitos, realizada num contexto espácio-temporal, ou seja, um processo de

enunciação.

Para estabelecer uma metodologia de análise dessa interlocução, foi adotado um

roteiro, sugerido por Reboul (2000: 142-143), composto de algumas perguntas feitas ao

texto, o que torna bastante claras as diversas funções dos elementos que compõem a cena

enunciativa. As respostas às perguntas passam a constituir os dados da análise do discurso

que se propôs realizar.

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As perguntas-roteiro são as seguintes: Quem fala? A quem se fala? Por quê? Para

quê? De que se fala? Ou contra quê? Onde? Quando? Como?

2.1. Os sujeitos da interlocução: locutor/alocutário

Duas figuras na posição de parceiros são alternativamente protagonistas da

enunciação locutor/alocutário (Benveniste, 1989). Fazendo-se ao enunciado a primeira

pergunta, proposta no item anterior – Quem fala? – , identifica-se o primeiro protagonista:

o locutor; fazendo-se a segunda – A quem se fala? – , tem-se o alocutário, que interage

com o locutor, assumindo posição de protagonista da interação verbal.

As diversas correntes de estudos lingüísticos apresentam divergências quanto à

concepção de sujeito do discurso.

Numa abordagem lingüística imanente, por exemplo, o sujeito está, praticamente,

excluído do sistema lingüístico; a língua, sistema lingüístico já estruturado, é anterior à

própria constituição do falante. Estuda-se o sistema em si, independente, autônomo.

As diferenças de concepção, portanto, estão nas teorias lingüísticas modernas e

acentuam-se entre linhas de pensamento, assumindo o sujeito lugares distintos, desde o da

fonte do sentido até o do sujeito que se torna assujeitado no discurso.

Orlandi (1983) apud Brandão (s/d, 46) analisa o percurso da concepção de sujeito

em diversas teorias lingüísticas e distingue três etapas: na primeira, a interlocução, é

marcada pela interação, troca entre o eu e o tu; na segunda, passa-se à idéia de conflito, em

que a relação entre os sujeitos – eu e tu – é marcada pela tensão, caracterizada pela

determinação pela segunda pessoa daquilo que a primeira diz. É uma concepção

influenciada pela Retórica; a terceira, em que a Análise de Discurso reconhece o sujeito

como incompleto e buscando a sua complementação no Outro. O centro da relação está no

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espaço discursivo e não no EU nem no TU: o sujeito só se completa na interação com o

outro.

Nesse percurso, podem ser destacadas algumas concepções: 1) o sujeito é fonte e

origem do sentido, está no centro do sistema lingüístico – é o subjetivismo, o egocentrismo

da teoria de Benveniste. O Eu se propõe como locutor e implanta o Outro, o TU; há

transcendência da primeira pessoa Eu sobre a segunda Tu. 2) O sujeito é descentrado – o

sujeito é essencialmente histórico, marcado espacial e temporalmente. Sua fala é um

recorte das representações de um tempo histórico de um espaço social; na sua fala outras

vozes também falam. A concepção de linguagem muda nessa teoria, passando de uma

noção de homogeneidade para uma linguagem que não é mais evidência, transparência de

sentido, produzida por um ser uno, um ego, mas resultante do espaço discursivo entre o EU

e o TU. Nessa linha de pensamento, incluem-se a heterogeneidade discursiva de Authier-

Revuz (1982) que indica algumas formas de heterogeneidade que atestam a presença do

outro; do dialogismo de Bakhtin (1929) elabora a sua teoria da polifonia e considera que “a

verdadeira substância da língua é constituída pelo fenômeno social da interação verbal”; da

teoria polifônica de Ducrot, que retoma o conceito de Bakhtin, na perspectiva da

Semântica da Enunciação, e contesta a tese da unicidade do sujeito falante. Ele concebe o

sujeito como: a) produtor físico do enunciado (o autor, produtor empírico); b) aquele que

realiza atos ilocutórios (ameaça, pergunta, promessa, etc) e c) o ser designado como autor,

reconhecido pelas marcas da primeira pessoa (locutor). As três funções podem ser

desempenhadas às vezes, pela mesma pessoa. Os sujeitos podem ser: locutor, sujeito

falante e enunciador. Locutor: a quem cabe a responsabilidade do enunciado, a que se

refere o pronome Eu e as outras marcas da primeira pessoa; o sujeito falante: o ser

empírico, o autor, aquele que produziu o enunciado; enunciadores – são seres cujas vozes

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estão presentes na enunciação, sem que lhe possa, entretanto atribuir palavras precisas,

pois eles efetivamente não falam, mas o seu ponto de vista é expresso pela enunciação.

No nível do locutor, pode haver um desdobramento de sua figura, no caso do

discurso direto, assim, num mesmo enunciado produzido por um dos locutores (L 1)

aparece a fala de outro locutor (L 2) autor da citação feita.

3) Na análise de Discurso, a polaridade, ora centrada no EU, ora no TU, vai se

perdendo em função da construção do sujeito na interação entre ambos, no espaço

discursivo por eles criado. Assim, as idéias de sentido e de sujeito são construídas no

discurso.

Na visão francesa da Análise de Discurso o sujeito é social, histórico, constituído

pela ideologia.

As correntes interacionistas apresentam uma visão de sujeito: ele “é psicossocial,

uma vez que o sujeito e a ordem social não se separam”. Bronckart (1999: 32-34) falando

da relação indivíduo, sociedade e linguagem, afirma que “o agir comunicativo é

constitutivo do social e que as representações coletivas do meio se configuram como

mundos representados de que os indivíduos se apropriam para a re(a)apresentação do

mundo.” Há portanto, um descentramento do sujeito em relação à teoria da Enunciação,

conforme proposta de Benveniste.

Neste trabalho, é adotada a visão de um sujeito não propriamente individuado,

mas um ser social que não totalmente consciente põe em funcionamento a língua e,

atualizando imagens e representações armazenadas na memória, realiza a atividade

discursiva, num evento enunciativo. Não há unicidade do sujeito, outras “vozes” são

ouvidas: de outros locutores e de enunciadores; há o que se caracteriza como discurso

polifônico.

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2.1.1. Locutor(es) e enunciadores

Nos editoriais de O Jequitinhonha, a teoria polifônica de Ducrot é considerada na

identificação, não de um sujeito único, mas há uma diversidade de “vozes” que o sujeito

designado como autor busca harmonizar no discurso: 1) a voz do Partido Liberal1 de que

emanam as idéias marcadas pela ideologia dos seus princípios políticos; 2) a voz da

Instituição, o jornal O Jequitinhonha2, que como militante coletivo do partido faz

veicularem suas idéias e 3) a voz do editorialista, autor, que, não sendo apenas um

jornalista escritor, mas político militante, formador de opiniões, prega os princípios do

Partido Liberal, buscando uma verdadeira conversão dos sujeitos alocutários – seus

leitores.

1 O partido liberal – Século XIX

A defesa das idéias liberais no cenário político brasileiro, do século XIX, não constitui um fato isolado: é reflexo de movimentos da Europa para conquista das almejadas liberdades civis, políticas, em oposição à prepotência, ao despotismo, à tirania dos governos absolutistas. No Brasil, após a sua independência, três partidos debatem-se no Parlamento, na imprensa e não raro nos campos de batalha: “os liberais moderados ou puros (chimangos) que querem a monarquia – autoritária sem “excessos de liberdade”, mas não o despotismo à moda de D. Pedro I; os liberais restauradores (caramurus) que querem a volta de D. Pedro I; os liberais patriotas são considerados exaltados (jururubas) pregam o fim do poder moderador, do senado Vitalício e do Conselho de Estado, extensão de direito de voto, federalismo (ou autonomia provincial), liberdade de imprensa. A esse último grupo pertenciam os militantes liberais de O Jequitinhonha.

2 “O Jequitinhonha” José Teixeira Neves e Alexandre Eulálio em Memórias do Distrito Diamantino (Santos, 1978: 23-36) falam sobre a história do jornal “O Jequitinhonha”. Foi criado por Joaquim Felício dos Santos em parceria com seu cunhado Josefino Vieira Machado – Barão de Guaicuí – sendo responsável pela edição Geraldo Pacheco de Melo, que usou o prelo de madeira que servira a Teófilo Otoni para editar o “Sentinela do Serro”. O primeiro número de “O Jequitinhonha” circulou em Diamantina em 30 de dezembro de 1860. Este semanário proponha-se a servir não ao homem, mas ao ideal, sintetizado para Joaquim Felício dos Santos, no respeito à integridade da lei e na dignidade da pessoa humana. Era “jornal de combate”, que “literário, comercial e noticioso”, havia de ser fundamentalmente político. “O Jequitinhonha” representava todo um programa e tinha como objetivo principal o esclarecimento da opinião”, quem sabe, conversão política do povo de toda aquela zona. Em 1869, apresenta um cunho acentuadamente radical. Em 1871, inicia, abertamente, a pregação das idéias republicanas, no que antecipa a toda imprensa mineira. O Jequitinhonha manteve-se em circulação por mais de quatorze anos, não sem algumas interrupções.

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O locutor-autor, o falante, dá existência a enunciadores de quem organiza os

pontos de vista e atitudes e traz também para o seu discurso outras “vozes” de locutores,

através dos discursos relatados.

Nessa perspectiva, são enunciadores o Partido Liberal – a fonte do dizer, a

Instituição do jornal – O Jequitinhonha, que produz junto com o partido esse dizer,

também como fonte do dizer. Além disso, o sujeito-locutor traz outros locutores, através de

discursos relatados, de citações, que são freqüentes e que serão analisados no Capítulo IV

como formas de intertextualidade.

Assim, para melhor compreender o discurso político dos editoriais, faz-se

necessário admitir essa pluralidade de vozes: a do Partido Liberal, a do jornal O

Jequitinhonha e a voz do locutor-autor.

Couto (1954: 74-76) retrata bem a função da imprensa, do jornal como

veiculadores de idéias políticas em Diamantina.

Achando o homem do Tijuco que suas idéias não podiam ficar fechadas naquele círculo de pedras, resolve levá-las a todos os recantos da província por intermédio da imprensa, O espírito de rebeldia do tijucano, qualidade que se aprimora, no cadinho do sofrimento na época colonial, tinha necessidade de combater o governo de D. Pedro I que já se esboçava em 1828 despótico e tirano. Liberais ferrenhos e obstinados, achando ineficazes as pregações nas esquinas, nas boticas e nos barrancos do garimpo, porque palavras levava-as o vento, resolveram dar-lhes formas imprimi-las para que o jornal, indo ao recesso dos lares, lido nos serões, sob a luz mortiça dos candieiros, fizesse o tribunal familiar perder a serenidade, inflamando-se numa condenação formal ao desregrado governo, cujas rédeas estavam presas aos bordados das anáguas das marquesas.

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O Jequitinhonha define-se como “folha política, literária e noticiosa”. A posição

de “política” em primeiro lugar parece não ser aleatória, pois esse combativo periódico é,

principalmente, político e seus editoriais (considerado o período analisado 1868-1869) são

discursos políticos, na medida em que criticam a realidade político-administrativa do

Brasil, criticam os feitos da “Coroa” e propõem uma ação saneadora dos males que

grassam no cenário brasileiro do Segundo Império. Também é Couto (1954) que diz;

“muitos jornais orientavam a opinião pública pelas brilhantes penas de seus redatores”.

O nome O Jequitinhonha, dado ao jornal revela um enunciador coletivo: povo do

Vale do Jequitinhonha de quem o jornal pretende ser uma voz vibrante e legítima, assumir

uma posição política, abertamente, até mesmo em relação às contendas partidárias como se

pode ver no editorial de 29-11-1868 de O Jequitinhonha.

Queremos pois reformas (...) O nosso programa é pois em geral o que foi apresentado pela ilustrada redação da opinião e hoje geralmente aceito pela partido Liberal do Brasil (...) Lutar pela realisação dessas idéias é a nossa missão, mais sublime sem dúvida de que servir à ambições dos Braganças, dos Orleans e dos Saxes Coburgos. Aos especuladores políticos pertence explorar essas minas. Que lhes sejam de proveito: outro é o nosso fim.

Em 20-12-1868, reforça a sua posição:

As próprias folhas da Côrte, os orgãos do partido liberal, tem as mesmas ideias democraticas do “Jequitinhonha”. A differença é que nós nos expressamos sem circumloquios, em linguagem franca e ao alcance de todas as inteligencias. Quizeramos que os colegas usassem da mesma franqueza.

A presença da primeira pessoa do plural (nós), nesses editoriais, denuncia a

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existência de um locutor-autor que organiza, materializa de forma empírica o discurso, mas

assumindo-se como um sujeito coletivo, não individual.

Considerada a história do Partido Liberal, pode-se afirmar que esse locutor-

redator era uma voz legitimada pela posição que ocupava como fundador do jornal,

militante do Partido Liberal, cujos ideais pregava, vigorosamente; detentor de cargos

políticos no cenário nacional e, acima de tudo, cidadão diamentinense com o extremado

amor a sua terra, sendo, portanto, uma voz representativa das comunidades regional e local

de direito e de fato. Seu nome: Joaquim Felício dos Santos.3

Como indivíduo integrante do sujeito coletivo da enunciação – protagonista nesta

cena enunciativa – Joaquim Felício interage com seus alocutários, movido por razões,

motivos bem explicitados ao longo de seu discurso e por uma intenção bem determinada:

mudança do sistema político-administrativo do Brasil.

Conforme Reboul, uma leitura retórica sugere também as perguntas: Por quê? Que

motivos direcionaram os sujeitos. Que intenção ou intenções subjazem à prática dessa

atividade lingüística?

Searle (1995) diz que “a linguagem é derivada da intencionalidade”, a ação

lingüística nasce de uma intenção do sujeito.

3 Joaquim Felício dos Santos (1828-1895)

Conforme José Teixeira Neves e Alexandre Eulálio, os Editoriais de “O Jequitinhonha” são de autoria de Joaquim Felício dos Santos, também fundador do jornal e responsável pela orientação do periódico do primeiro ao último número. Joaquim Felício foi advogado, professor, jornalista, escritor, historiador, político, deputado, senador, considerado um dos homens mais ilustres da Demarcação Diamantina. Nasceu (1º-02-1828) na Vila Príncipe (Serro), transferindo-se com 10 anos para Diamantina. Publicou várias obras, entre elas “Memórias do Distrito Diamantino”, “Acayaca”, “Teatro”, várias novelas e contos. Como civilista, foi autor de um “Projeto do Código Civil Brasileiro”, de “Comentários ao Projeto do Código Civil Brasileiro”, e “Projeto de “Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil”. Faleceu em 1895, em Biribiri, onde foi sepultado. Em 1911 foram transladados seus restos mortais para a Igreja do Carmo de Diamantina.

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Nos Editoriais, a intenção, origem do discurso argumentativo, está bastante

explícita, como se pode perceber nos editoriais de 20-11 e 20-12-1868.

O que queremos é nossa carta de alforria, e é essa convicção que não podemos havê-la com as instituições vigentes (...) Marchar pela linha reata [não política de linhas curvas e quebradas] é reformar a constituição e as leis ordinárias repugnantes à liberdade, inoculando n’ellas o espírito democrático (...) Lutar pela realisação dessas idéias é a nossa missão (...) Já estamos cançados, nós os provincianos, verdadeiramente cançados com a contínua e eterna luta de partidos com que nos tem entretido a política machiavélica do segundo reinado (...) O Partido liberal hoje o que aspira são as reformas radicais na constituição com a supressão da dinastia de Bragança. (grifo nosso)

Não se deixa, portanto, dúvida de que a intenção bem clara dava vigor à voz do

locutor-autor – levar o Brasil, os políticos, as autoridades a, crendo em seu discurso,

partirem para uma ação política, que ele qualifica de radical – uma mudança do sistema de

governo do Brasil. Enfim, com intenção nitidamente persuasiva, dá origem ao discurso

retórico-argumentativo.

Subordinados à intenção geral, os editoriais mostram intenções localizadas em

cada um, mas que não se afastam do motivo central – combate ao Regime Monárquico.

2.1.2. Os sujeitos-alocutários (Interlocutores)

O EU, ao se constituir como sujeito, institui seu alocutário, um sujeito

interlocutor, instalando-se uma alocução, confirmando o que Benveniste afirma (1989: 84):

“Toda enunciação é, explicita ou implicitamente uma alocução, ela postula um alocutário”.

Assim, todo discurso se dirige a um alocutário, em função do qual ele é pensado e

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estruturado – a linguagem é essencialmente dialógica. Os sujeitos alocutários

(interlocutores) de O Jequitinhonha podem ser divididos em três grupos: 1 –

diamantinenses (políticos e não políticios); 2- políticos da província e de outras regiões do

Brasil; 3- autoridades brasileiras, notadamente, o governo imperial de D. Pedro II,

representado pelo Imperador que acumula a função de “alocutário” e “referente”, uma vez

que é “dele” próprio que se fala, ou melhor, é contra ele que se fala nos diversos editoriais.

2.1.2.1. Os Diamantinenses

O primeiro alocutário do editorialista eram os diamentineneses. Reboul (2000:

142-143), a propósito e alocutário, propõe critérios de classificação do “auditório”,

sugerindo tamanho, caraterísticas psicológicas, competência determinada pelos

conhecimentos prévios a serem atualizados na prática discursiva, ideologia, seja ela

política, religiosa ou outra, que influenciará no uso dos argumentos, nas estratégias de

persuasão. Os diamantinenses interlocutores de Joaquim Felício, pela competência, podem

ser classificados como uma elite intelectual.

Diamantina, no século XIX, experimenta momentos de franco progresso,

passando de uma comunidade mineradora a um centro comercial de uma vasta rede de

abastecimento, torna-se uma referência cultural de todo o norte mineiro e sul da Bahia. Os

jovens, filhos das famílias ricas, faziam os seus cursos fora do Brasil, na Corte, ou em

cursos superiores já instalados no país, como o de Estudos Jurídicos. Estabelecimentos de

ensino como o Ateneu4, São Vicente de Paulo, o Seminário Diocesano5 e o Colégio N. Sra.

4 Ateneu S. Vicente de Paulo – Instituto de instrução secundária, fundado pelo Cônego João Antônio dos

Santos, em 1852. Eleito bispo, em 1859, D. João deixa a direção do Ateneu que é fechado em 1864. Funcionava na Casa do Contrato em que foi instalado o seminário Diocesano, hoje Palácio Arquidiocesano.

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Das Dores6, implantados por D. João Antônio dos Santos, mostraram a preocupação de

Diamantina pela educação, pela instrução. Havia, também, os autodidatas, que, com

orgulho, rivalizavam com os doutores, formados na Corte (Portugal) ou em cursos

brasileiros, como em São Paulo. Por isso, uma elite intelectual, sedenta de conhecimentos,

de informações, valia-se da imprensa para colocar-se em contato com o mundo das idéias,

dos fatos políticos e sociais, da modernidade já buscada com entusiasmo, nessa época.

Selecionados pela competência ou pela ideologia política dos liberais, os leitores

de O Jequitinhonha, não-políticos ou políticos, diamantinenses, (nascidos ou adotados)

sedimentaram a sua formação intelectual, fortaleceram seu espírito de luta, o que

possibilitou a muitos deles desempenharem eficientemente, importantes funções sociais,

em diversos campos de atuação, como religiosos, políticos, administradores, magistrados,

causídicos, professores, médicos e outros.

Enfim, a Diamantina culta era um interlocutor, um alocutário de O

Jequitinhonha, ao mesmo tempo que exercia também a função de enunciador, com suas

idéias e reivindicações políticas, expressas nos editoriais.

5 O Seminário foi fundado pelo bispo D. João Antônio dos Santos em 1865, sendo entregue aos lazaristas, em

12-02-1867. Passou a funcionar em seu prédio próprio, na Praça S. Coração de Jesus em 1868. Teve os seus cursos abertos à mocidade em geral, como Colégio Diocesano, voltando em 1925 a dedicar-se, apenas, à formação de novos padres. Tornou-se celeiro de vultos eminentes em diversos campos profissionais: Direito, Medicina, Política, Administração, Engenharia, Magistério, além de contribuir para a formação moral e religiosa da mocidade da região, dos homens que, como cidadãos, tiveram uma função social a ser desempenhada. O clero de Diamantina gozou de prestígio, fama por ser formado de padres cultos, bons oradores, bons ministros de Deus.

6 Colégio Nossa Senhora das Dores – também criação de D. João Antônio dos Santos em 1866, entregue às filhas de S. Vicente, Congregação Religiosa francesa, que assumiu a direção do Estabelecimento em 21-07-1867, na antiga Casa do Intendente Câmara, na Rua da Glória, D. João criou, ainda, como anexo, o Orfanato para Meninas, custeado pelas pensionistas e pelos trabalhos de artesanato feitos pelas próprias órfãs maiores. Muitas delas estudavam e se formavam professoras.

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2.1.2.2. Os Políticos Brasileiros

Como instituições políticas ou políticos militantes independentes, interlocutores

de O Jequitinhonha buscavam em suas páginas, especialmente nos editoriais combustível

para alimentar a chama dos calorosos debates políticos, argumentos capazes de fazê-los

mais se aproximarem do locutor ou mais dele se distanciarem, ou seja, correligionários e

adversários liam os editoriais. Entre as instituições que se ocupavam com as lides

partidárias estavam os jornais da época que, com abertura, firmeza e audácia travavam

discussões à distância.

Couto (1954) confirma isso quando relata: “os editoriais do Jequitinhonha de pena

de Joaquim Felício eram sempre transcritos pela imprensa da corte e não raro recebiam a

réplica dos órgãos conservadores da capital do país”.

O editorial de 15-11-1868 refere-se a esse embate lingüístico que se travava entre

jornais de posições políticas contrárias:

A imprensa imperial agita-se convulsa contra nós: nada mais natural. Não se toca debalde nas mataduras supurantes; daí esses estremecimentos de cólera. Em artigo especial o ‘Diário do Rio’ investe furibundo contra o Jequitinhonha e o Constituinte apresentando-se como defensor do imperador (...) Para que esse arreganho de paladino antigo em defesa da dama de seus pensares?

2.1.2.3. A Corte, O Governo Imperial

Os textos jornalísticos têm a particularidade: dirigem-se aos leitores comuns, mas

passam “recados” a determinados grupos a quem pretendem atingir.

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No entanto, em 20-12-1868, o editorial dirige-se, diretamente, à Corte,

especialmente, às autoridades imperiais, pois a D. Pedro II e seus seguidores caberia o

desencadeamento das reformas pretendidas, sendo, portanto, para o periódico os

interlocutores preferenciais, como se pode notar:

Os ilustrados membros do ‘Centro Liberal’, senadores residentes no Rio de Janeiro não poderão devidamente apreciar as necessidades do partido nas províncias: não se julgue pela corte o que se passa nas outras localidades (...) Nós os provincianos devemos esquecer nossas dissenções particulares e unir-nos em um pensamento comum, para libertarmo-nos da tutella da metropole do segundo reinado, que suga-nos a vida enquanto definhamos na miséria. Estamos cansados de “rolar eternamente o infernal rochedo ao píncaro da montanha e sempre a cahir (...) Se o mesmo D. Pedro II viesse dar um passeio pelas províncias correria risco de se tornar republicano.

No Editorial 27-12-1868 o discurso é dirigido ao próprio D. Pedro II ...“Vossa

soberania de direito divino é uma mentira, como todas as invenções do absolutismo”.

Pode-se concluir que há nos editoriais um discurso político do Partido Liberal, de

O Jequitinhonha (seu corpo editorial), de Joaquim Felício dos Santos, que materializa as

idéias através do texto publicado com clara intenção de influenciar sobre o comportamento

de seus alocutários, quer sejam correligionários, quer adversários políticos. Caracteriza-se,

dessa forma, uma atividade de interação sócio-discursiva em que sujeitos-locutores e

sujeitos-alocutários efetivam uma interação lingüística, num evento enunciativo.

2.2. A referência: ‘EU – TU / ELE’

Retornando à abordagem enunciativa da interação verbal, através dos editoriais,

de novo, busca-se fundamento em Benveniste (1989) que, ao descrever o processo da

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enunciação, identifica duas oposições: uma pessoal, o ‘eu-tu’, e outra, não pessoal, o ‘eu-

tu/ele’, o que possibilita a operação de “referência”, ou seja, que o discurso fale sobre

alguma coisa, sobre aquilo que não é, propriamente, alocução (relação eu-tu).

Assim, na interação verbal entre sujeitos, há a referência como parte integrante da

enunciação. Estabelecem os interlocutores uma relação com o mundo, descrevendo,

conceituando, interpretando a natureza, as experiências, a sociedade, sob óticas diferentes,

conforme suas representações, a sua realidade construída, a partir do real perceptível,

existente empiricamente.

A busca da referência, nos editoriais significa responder à pergunta, já

inicialmente feita: sobre o que eles falam, ou melhor, contra quem ou o que?

A análise semântica dos editoriais vai mostrar a referência, no capítulo que

se segue, o conteúdo temático, construído em função da crítica à realidade político-

administrativa do Império, ao seu representante legal, D. Pedro II, e a todos os seus

seguidores e auxiliares de governo.

2.3. O contexto espácio-temporal

Completando o quadro do processo enunciativo, Benveniste diz que o falante se

insere no discurso enquanto participante da sociedade e por isso a enunciação se dá no

espaço e no tempo, o que chama de contexto do ‘aqui-agora’, referindo-se ao momento do

evento enunciativo.

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Buscar o ‘aqui-agora’ dos editoriais é responder às perguntas: Onde? Quando? O

que implica uma volta ao Século XIX, o espaço Brasil – Minas – Diamantina dessa época,

identificando, em linhas gerais, as condições de produção do discurso, dos editoriais.

2.3.1. Brasil – Século XIX

O Brasil, no século XIX, é marcado por decisivos fatos históricos que o colocam

numa nova posição entre os países: torna-se Reino com a vinda da Família Real com seus

15.000 acompanhantes portugueses para instalação da sede do governo lusitano; declara-se

independente de Portugal; avança no campo social pondo fim ao trabalho escravo e,

finalmente, proclama-se República. Vive, neste século, longo e polêmico governo

monárquico, em quase todo o seu período. Experimenta momentos difíceis, mas conquista

vitórias; uma delas a sua integração na nova ordem mundial capitalista com o

reconhecimento de suas potencialidades econômicas pelas nações com que mantém

relações comerciais intensas. Vê crescer, em ritmo acelerado, a indústria têxtil de algodão,

a mineração das minas subterrâneas auríferas e diamantíferas, torna-se líder mundial como

produtor de café, tem seu comércio invadido por produtos importados em todos os setores

da economia. Enfim, efetivam-se grandes e significativas mudanças sócio-econômicas,

naturalmente acompanhadas de outras no campo da cultura, das ciências. Adeptos do

positivismo de Comte pregam os seus ideais da redenção da sociedade pela ciência, tendo

o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim.

A revolução liberal da Europa lança suas influências no Brasil, que inicia a sua

luta por mudanças radicais político-sociais, culminadas pela proclamação da república. O

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romantismo, bandeira literária, prega o nacionalismo e o brasileiro busca paradigmas para

formação de sua identidade nacional, que não se identifique com a da metrópole

portuguesa, considerada nefasta aos interesses brasileiros; surgem cursos superiores entre

eles o de Estudos Jurídicos, formando uma elite de bacharéis, muitos dos quais políticos

liberais militantes, como o editorialista de O Jequitinhonha, Joaquim Felício dos Santos.

2.3.2. Diamantina: apogeu de sua prosperidade

Enfim, registra-se, no Século XIX uma mudança política, econômica e sócio-

cultural profunda, que alicerça a construção de padrões da sonhada modernidade. É neste

contexto de avanços, de progresso, de modernidade que Minas e Diamantina se inserem,

registrando-se como espaços em ativo progresso. É um tempo que possibilitou às cidades

um desenvolvimento equilibrado, condicionado a suas potencialidades e a suas

especificidades.

Joaquim Felício dos Santos fala, com entusiasmo, sobre essa realidade:

A Diamantina, no apogeu da prosperidade, é, no momento, o centro mais importante da província, graças ao desenvolvimento da produção e comércio do diamante, a florescente indústria de ourivesaria, e, no plano intelectual ao Ateneu de São Vicente de Paulo.

Nesse clima de euforia vivido por brasileiros do Século XIX, é oportuno ver

Diamantina sob a ótica de Couto (1954: 74-76) que descreve o Arraial pós-independência:

O grande arraial entrava numa fase de progresso. A riqueza particular crescia e respirava-se livremente. Erguem-se novas e belas vivendas e o comércio torna grande incremento, tornando-se o empório do norte. Das

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terras diamantinas não mais sairia o ouro e diamantes para o sustento de uma corte dissoluta e tirânica. Tudo seria agora utilizado para a grandeza e prosperidade de nossa terra.

Era, pois, uma Diamantina que se descobria como livre, com possibilidades de

vôos altos e, assim, pôs-se em ação; tornou-se pólo cultural, central de abastecimento,

centro comercial; solidificou sua tradição de cidade histórica, culta e hospitaleira, para os

freqüentes visitantes brasileiros e estrangeiros, que se encantavam com os hábitos da

sociedade diamantinense bem semelhantes aos de países da Europa, por influência da

longa permanência de portugueses, durante o monopólio da extração do diamante pela

Coroa.

Pode-se concluir este capítulo, afirmando, novamente, que, ao se analisarem os

editoriais, passa-se a sentir o movimento da linguagem, posta em funcionamento por

protagonistas – sujeitos – que, numa ação dialogal, interagem e, ao se colocarem em seus

discursos, trazem as marcas indeléveis de sua formação sócio-cultural, pelos papéis que

lhes são conferidos pela sociedade; o espaço, o mundo, o contexto, é referido em

consonância com relação real-simbólico, já referida.

Assim, de textos arquivados, os editoriais passam a ser vistos como

discursos – linguagem em movimento – em que políticos, jornalistas, autoridades,

instituições entram numa cena enunciativa, num embate lingüístico para colocarem suas

posições políticas, utilizando da melhor forma, os recursos lingüísticos de que dispõe o

sistema, naquele ‘aqui-agora’ do evento enunciativo.

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CAPÍTULO III

OS EDITORIAIS: SUA ORGANIZAÇÃO TEXTUAL

Neste capítulo, serão feitas algumas considerações sobre a organização textual

dos editoriais, como suporte do discurso argumentativo de Joaquim Felício dos Santos, a

partir da proposta teórico-metodológica de Bronckart (1999: 119) para análise de

textos/discursos, numa vertente do interacionismo sócio-discursivo da linguagem.

O autor concebe a arquitetura de um texto como um folhado constituído de três

camadas superpostas: a) sua infra-estrutura geral; b) mecanismos de textualização; c)

mecanismos enunciativos. A infra-estrutura é constituída pelo plano mais geral do texto,

pelos tipos de discurso, pelas modalidades de articulação entre os tipos de discurso e pelas

seqüências que nele eventualmente aparecem; os mecanismos de textualização

encarregam-se de garantir a coerência temática do texto, explicitam, tendo em vista o

destinatário, as grandes articulações hierárquicas, lógicas e/ou temporais do texto, pelos

mecanismos: conexão, coesão nominal e coesão verbal e os mecanismos enunciativos são

relacionados aos aspectos da interação que se estabelece entre o agente-produtor e seus

destinatários.

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3.1. A infra-estrutura geral dos editoriais

Esse nível de organização textual é constituído: 1) plano geral; 2) tipos de

discurso e suas articulações no texto; 3) a seqüencialidade como modos de planificação da

linguagem no interior do plano geral.

3.1.1. O plano geral: o conteúdo temático

De que se fala nos editoriais? Ou contra quê? Responder a essas questões,

implica, em princípio, a identificação do Conteúdo Temático dos textos, sua malha tópica,

a planificação, a identificação dos mecanismos lingüísticos de que o editorialista se valeu,

para realizar a semantização de seu discurso, construir o sentido da sua atividade

lingüística.

Para Bronckart (1999), as informações que compõem o conteúdo temático de um

texto são representações construídas pelo sujeito-locutor como conhecimentos, que variam

de acordo com as experiências desse sujeito e que estão armazenados e organizadas

previamente na memória. Entende-se, pois, que, no processo de interação lingüística com

seu interlocutor, esse locutor atualiza experiências, toma decisões, realiza escolhas, cria um

discurso adequado ao objetivo visado, aos valores do lugar social que ocupa e ao auditório

ou interlocutor a que se destina a sua produção textual.

Assim considerando, pode-se perceber que os editoriais em estudo constituem

unidades semânticas específicas, são representações construídas pelo editorialista, diante

de

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vários fatos políticos, os quais são interpretados, julgados de acordo com a sua intenção

comunicacional. Nota-se, também, que há entre as unidades semânticas, elementos

comuns, idéias recorrentes que formam uma unidade temática maior, soma coerente de

representações várias da realidade político-administrativa do Brasil Império, feitas pelo

editorialista de O Jequitinhonha, Joaquim Felício dos Santos.

É conveniente admitir-se, porém, que um trabalho interpretativo de uma produção

textual requer que se considerem as proposições nela construídas como unidade cognitivas,

não propriamente transparentes, portanto, sujeitas a várias interpretações, condicionadas a

fatores cognitivos, sociais, ideológicos do sujeito-alocutário. Assim posto, valoriza-se,

neste trabalho de análise de discurso, não a identificação propriamente de um determinado

conteúdo temático, mas uma análise de alguns recursos lingüísticos, de mecanismos

discursivos utilizados na semantização dos editoriais, como produção lingüística,

materializada na modalidade de língua escrita da norma culta da época.

O quadro seguinte, num enfoque enunciativo, mostra, na visão do analista,

conteúdos temáticos dos editoriais, sintetizados em títulos-tema, sem explicitação do plano

geral da organização das idéias de cada um dos seis textos analisados, uma vez que é

considerada a unidade semântica, numa estrutura mais ampla, do conjunto dos editoriais,

sem esquecimento das observações do parágrafo anterior.

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Contexto espácio-temporal: Brasil, século XIX (1868-1869). Objetivo do autor: combater o governo monárquico do Brasil.

Locutores

01. Crítica ao Ministro das Finanças

02. Crítica à Imprensa Imperial

03. Crítica ao Absolutismo (D. Pedro II)

Atividade Enunciação Enunciados 04. Crítica ao “Cesarismo” (D. Pedro II)

Lingüística (processo) (editoriais) 05. Crítica ao Governo Imperial

06. Crítica ao parlamento brasileiro Alocutários

3.1.2. Tipologia do discurso: gênero discursivo e tipos textuais

Todas as análises de discurso propõem o conhecimento de tipologia de discurso,

que é um princípio metodológico, organizador, que possibilita a generalização de certas

características e particularização de outras. No entanto, há grande variedade e

complexidade na classificação das tipologias, condicionada a fatores diversos como a

concepção de linguagem e de discurso que se adota, assim como o contexto que se

considera, os referenciais teóricos adotados com seus paradigmas conceituais.

A literatura registra várias tipologias de discurso e, entre as arroladas por Orlandi

(1987: 217-228), destacam-se:

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1- Maingueneau, que articula os modelos de discurso às condições de produção e

coloca o discurso teológico (independente das condições) e o discurso político

fica numa posição intermediária (equilíbrio entre condições e discurso).

2- Dubois – distingue o discurso didático do discurso polêmico. Também propõe

distinção de tipos de discurso, seguindo a tensão, a distância, a modalidade e a

transparência.

3- Há uma tipologia do discurso citado, tendo como critério o modo de

enunciação, distinguindo-se o discurso direto, o indireto e indireto livre.

4- Há, ainda, uma tipologia relacionada à existência de instituições que

produzem o discurso: o jurídico, o político, o religioso, o jornalístico, o

filosófico, o poético. Essa classificação parte de distinções apriorísticas, já

traçadas pelos campos de conhecimento que os determinam.

Além disso, as diferentes disciplinas que estudam os fenômenos textuais-

discursivos têm usado as expressões tipo textual e gênero discursivo como sinônimos. A

esse respeito, Bronckart (1999: 139) considera que, na maioria delas, a noção de gênero

está associada á de discurso e a noção de tipo, à de textos, dizendo-se, portanto, gênero de

discurso e tipos textuais, o que em conseqüência coloca a dimensão textual subordinada à

dimensão discursiva.

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3.1.2.1. Gêneros discursivos

Desde Aristóteles, na Antigüidade Grega, já havia preocupação pela divisão do

discurso em gêneros, correspondentes aos seus fins e aos interlocutores a que se

destinavam:

A retórica comporta três gêneros, o gênero deliberativo, o gênero demonstrativo ou epidídico e o gênero judiciário, de acordo com a categoria de ouvintes do discurso. São gêneros de discursos oratórios, em que o primeiro, o deliberativo, tem o fim de aconselhar ou desaconselhar. O segundo – demonstrativo ou epidídico comporta duas partes: o elogio e a censura e o terceiro – o judiciário – é uma ação judiciária composta de acusação e defesa. Cada um destes gêneros tem finalidade diferente: porque há três gêneros, há três fins distintos

(Arte Retórica e Arte Poética, 1964: 30-32)

Bakhtin (1992: 279) diz que “qualquer enunciado considerado isoladamente é,

claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente

estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso”.

Continua comentando sua riqueza e variedade de gêneros e sua infinitude, dada a

variedade das atividades humanas, comportando cada esfera um repertório de gêneros do

discurso e sobre a presença inevitável dos gêneros de discurso na comunicação verbal.

Afirma (op. cit. p. 301)

Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo. (grifo nosso)

Os estudos bakhtinianos, com essa visão mais pragmática e mais ampla,

distinguem os gêneros discursivos em primários e secundários. Os primários constituem-

se em situações discursivas em instâncias privadas (conversação espontânea produzida no

âmbito familiar, entre amigos, cartas, bilhetes, diários, anotações, convites informais,

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escritos ou orais) e os secundários figuram em situações discursivas construídas em

instâncias públicas, de caráter mais formal (conferências, palestras, entrevistas, assembléia,

reuniões, aula, culto religioso, sermões, cartas comerciais, atas, relatórios, formulários,

biografias, documentos e ritos jurídicos, documentos legislativos, receitas culinárias

(também privados), médicas, editorial, reportagem, notícia, propagandas de um modo

geral, romance, contos, crônicas, lendas, fábulas, poemas, teatro, novela, artigos de

vulgarização científica, tese, monografia, etc.). Não há um limite definitivo entre os dois

grupos, pois, às vezes, um pode ser absorvido pelo outro (Silva, 1999: 95).

Uso, forma, conteúdo temático são dimensões a serem contempladas na

classificação dos gêneros discursivos, mas, mesmo assim, toda classificação é incompleta e

precária, dada a diversidade de situações comunicacionais, como já se afirmou.

3.1.2.2. O editorial: um gênero discursivo

Para Reboul (2000: 143) “uma questão capital na leitura retórica é a de gênero

que comanda estritamente o conteúdo persuasivo do discurso”. O gênero determina certos

parâmetros: segundo a escolha do gênero que se faz para tratar de um assunto, já se define

uma maneira específica de dizer: o gênero circunscreve o pensamento.

O Editorial, diante das considerações do item anterior, é um gênero secundário,

construído em instâncias públicas, de caráter mais ou menos formal, veiculado em um

suporte específico: o jornal impresso. Como artigo-de-fundo, em geral, sem assinatura,

representa uma posição da instituição jornalística, diante de certos fatos ou determinados

temas, explicando-os, segundo a sua postura ideológica, com objetivos persuasivos, sendo,

portanto, um discurso argumentativo.

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O editorial ocupa, portanto, um lugar de destaque em um periódico, é peça

importante para o seu conceito, porque é a expressão da consciência, valores e crenças do

jornal.

Os editorialistas, tanto para produzir editoriais mais gerais, como os

especializados, em geral, possuem um suficiente conhecimento enciclopédico, um

domínino da língua e um estilo que foge da vulgaridade, sem deixar de ser vivo, agradável,

para incentivar ao leitor uma leitura freqüente e desejada.

Mais do que comentar, julgar fatos com seus próprios critérios, o editorialista

tem, no editorial, um instrumento eficaz para orientação dos leitores, desenvolvimento de

campanhas ideológicas e, até mesmo, manipulação da opinião pública. No século XIX,

época da publicação de O Jequitinhonha era no espaço do editorial que se encontrava a

maior possibilidade de influenciar o leitor. Atualmente, também, o editorial é leitura

obrigatória para os que buscam entender os problemas sócio-políticos, especialmente, para

tomar uma posição consciente diante deles.

Há editoriais informativos, interpretativos; há os humorísticos, satíricos,

divertidos; há editoriais provocantes, combativos, que tomando uma posição diante de um

fato, defendem-na com força e coragem. Nessa última categoria estão os editoriais de O

Jequitinhonha, em que se desenvolve uma campanha político-ideológica do Partido

Liberal contra a política do Governo Monárquico de D. Pedro II.

Moran Torres (1888), ao escrever sobre o gênero editorial, compara a sua

estrutura à das sentenças judiciais: “primeiro expõem-se os fatos que dão motivo ao

comentário editorial. Em seguida, no corpo do artigo desenvolvem-se as idéias e o

editorialista se lança, então, na análise dos antecedentes e das possíveis conseqüências. Ele

explica os dados, se polemiza, se argüe, discute, raciocina, se debate, analisa, se questiona

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e, finalmente, chega a uma conclusão em vista das considerações feitas e oferece uma

solução para o problema proposto. Este é o parecer final de uma sentença judicial”.

Exemplifica esse tipo de estrutura o editorial de 27-12-1868 de O Jequitinhonha.

Primeiro, através de uma citação, Joaquim Felício traz os fatos da queda da Rainha da

Espanha e de outros príncipes da Europa e a análise da causa desses acontecimentos

freqüentes: “é que quizerão obstinados antepor sua vontade e caprichos à razão de todo

mundo”. Em seguida, o editorialista compara os fatos à situação do Imperador do Brasil,

D. Pedro II; analisa os pontos de semelhança, julga as atitudes do Imperador, faz uma

acusação direta ao monarca, como um mentiroso produto das mentiras do “absolutismo” e,

finalmente, expõe a sua conclusão como decisão do partido, em nome do qual posiciona-

se:

Temos princípios, e não queremos continuar a servir de

instrumentos do imperador nos interesses da realeza. Não são nossas palavras nascidas do despeito; expressão elas

convicções sinceras. Queremos o engradecimento de nossa patria e a fraternidade

todos os brasileiros.

3.1.2.3. O editorial: tipos textuais ou seqüências lingüísticas do texto

Qualquer que seja o gênero a que pertençam, os textos são constituídos, segundo

modalidades variáveis, por segmentos de estatutos diferentes, que apresentam certas

regularidades de organização e estruturação lingüística, são os diferentes tipos, isto é,

formas específicas de semiotização do discurso.

Silva (1999: 100-101), considerando os estudos da lingüística textual, define tipo

textual como sendo “uma noção que remete ao funcionamento da constituição estrutural do

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texto pertencente a um dado gênero discursivo”; trata os “tipos textuais”, segundo

Charaudeau, como “modos enunciativos de organização do discurso no texto, efetivados

por operações textual-discursivas, construídas pelo locutor em função de sua atitude

discursiva em relação ao seu objeto do dizer e ao seu interlocutor”.

Bronckart, como parte de seu estudo sobre os tipos textuais expõe a teoria de

Adam (1991), que apresenta esses tipos como seqüências a que denomina de protótipos,

concretizados em cinco tipos básicos que são as seqüências: narrativa, descrtiva,

argumentativa, explicativa e dialogal.

Essas seqüências são também consideradas por Silva como operações (op. cit.

101) , que podem modalizar-se na forma de: narração, seqüência de fatos, acontecimentos;

descrição, seqüência de aspectos, caracterização de um objeto para que se torne conhecido;

dissertação/argumentação, seqüência de idéias e/ou argumentos para refletir, avaliar,

explicar, comentar, expor pontos de vista para dar a conhecer, fazer crer, associando-se a

análise à interpretação e a injunção, seqüência de ordens e conselhos para incitar o

interlocutor à realizar uma ação, a agir.

3.1.2.3.1. A intercambialidade de tipos nos editoriais

As diferentes seqüências, operações discursivas podem ser combinadas em uma

produção textual, gerando e a heterogeneidade composicional da maioria dos textos; assim

um texto, pertencente a um gênero discursivo, pode trazer, na sua configuração, vários

tipos textuais, que são limitados, identificando-se como mecanismos de textualização,

enquanto os gêneros de discurso são infinitos, como decorrentes da multiplicidade das

atividades lingüísticas humanas.

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Nos editoriais em estudo, há a combinação, conjugação de determinados tipos

textuais, ou seqüências lingüísticas, havendo predominância do tipo dissertativo-

argumentativo, uma vez que o gênero editorial é caracterizado como um texto de opinião,

que informa, seja narrando, descrevendo, ou expondo, para colocar pontos de vista e

construir seus argumentos, visando à persuasão, ao convencimento do sujeito-interlocutor.

Pode-se perceber, claramente, a intercambialidade dos tipos, no editorial de 04-

10-1868, quando Joaquim Felício conjuga narração-descrição-dissertação/argumentação,

na composição textual:

Não há muito tempo que voltava da Europa o Sr. De Itaborathy. O thezouro andava mal. Dizia-se que mais dias menos dias a bancarrota daria cabo do paiz. Na tribuna, na imprensa os planos financeiros rolavão como arêa do mar. No meio de tão grande anciedade procurava-se um salvador. Esperava-se de braços abertos o homem da situação. Chegou então o actual ministro das finanças. (...) O ministro ‘indicado’ tinha feito seu gyro por entre o povo das experiências. Tinha visto, tinha lido, tinha meditado.

Na textualização do fato (volta do ministro), a coesão temporal entre o pretérito

inconcluso – imperfeito – “voltava”, “andava”, “dizia-se”, “rolavam”, “procurava-se”,

“esperava-se” e o pretérito concluso – perfeito – “chegou” e o mais-que-perfieto – “tinha

feito”, “tinha meditado” marcam a presença de um discurso narrativo.

Ao lado das seqüências narrativas percebe-se uma relação descritiva da situação:

“o tesouro andava mal”, “os planos financeiros rolavam como as areias do mar”,

“esperava-se de braços abertos”, em que, obviamente, há um julgamento, um ponto-de-

vista do locutor-observador, sob a ótica de sua intenção enunciativa: a persuasão.

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Já predominantemente descritivo, o fragmento abaixo constitui a figura

hipotipose, que consiste em descrever um espetáculo ou um acontecimento de modo tão

vivo que o auditório acredite vê-lo diante dos olhos.

E pois, o homem passou envolto na sua capa. Na capa envolto era mais soberbo mais altaneiro do que o romano que na toga levava ou a paz ou a guerra. Ampla fieira de gente fez-lhe orquito... (...) Ia-lhe no couce a tribu famelica dos jogadores de cambio. Parou a pompa às portas do palácio. Cesar recebeu nos braços o ministro futuro.

A seguir avalia-se o fato, a viagem do Ministro à Europa, mostra-se ao

interlocutor, ironicamente, a significação do ato; busca-se convencer o leitor do absurdo

das medidas econômicas adotadas pelo ministro, num tipo de discurso

dissertativo/argumentativo, ou, como querem alguns estudiosos do assunto,

argumentativo/dissertativo, uma vez que a informação está em função da argumentação,

que se constrói ao longo do editorial.

Não é debalde que se dá um passeio à Europa, que se visita a França, que se vai assistir na Inglaterra ao debate de um povo livre em um parlamento soberano. O ministro ‘indicado’ tinha feito o giro por entre o povo das experiências. Tinha visto, tinha lido, tinha meditado. E o fizera em bem. (...) Novos ares, novas idéias. Na fronte de bemvindo estava sem dúvida occulto o pensamento salvador.

3.1.3. A seqüencialidade argumentativa dos editoriais

Os editoriais, como já se disse no item anterior, têm, na sua planificação textual, a

predominância de seqüência dissertativo/argumentativa, apresentam uma estruturação

composicional em que se conjugam, também, seqüências narrativas e explicativas.

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Dada a sua predominância, apenas a seqüencialidade da argumentação é aqui

descrita, uma vez que o objetivo argumentativo dos editoriais tem merecido maior atenção,

durante a construção da análise do discurso de Joaquim Felício dos Santos.

A semiotização do raciocínio argumentativo numa produção textual é feita através

de uma planificação, que Brockart (op. cit.: 226-227) denomina como o protótipo da

seqüência argumentativa, composta de uma sucessão de quatro fases.

- a fase de premissas (ou dados) em que se propõe uma constatação de partida;

- a fase de apresentação de argumentos, isto é, de elementos que orientam para

uma conclusão provável;

- a fase de apresentação de contra-argumentos, que operam uma restrição em

relação à orientação argumentativa e que podem ser apoiados ou refutados por

lugares comuns, exemplos, etc.

- a fase de conclusão (ou de tese), que integra os efeitos dos argumentos e

contra-argumentos.

O editorial de 24-01-1869 traz, bem clara, a seqüencialidade argumentativa, como

se pode perceber.

1) A premissa: o espírito dos povos, sua nobreza de sentimentos, a sublimidade

de suas aspirações são turvados pela audácia, perfídia e a hipocrisia dos

governos absolutistas.

2) Apresentação dos argumentos que confirmam a premissa, a tese inicial

– Exemplos de tiranias:

• César, ditador romano conspira apunhalando a liberdade romana.

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• Cromwel, ditador inglês, e Bonaparte, imperador francês, seqüestraram a

liberdade do povo.

• 1º e 2º reinados – uma emboscada na destruição dos princípios da moral.

• Espanha, França, Brasil – afogaram o movimento nacional da libertação.

3) Contra-argumentação: fatos contrários aos exemplos apresentados como

argumentos a favor da tese.

Exemplos:

• Na França: a queda de Carlos X – catástrofe de 1848 – a democracia podia ter surgido.

• No Brasil: 07 de abril de 1834 – semi revolução, poderia ter vingado a democracia.

4) Conclusão: Diante dos fatos, exemplos (argumentos) e dos contra-argumentos

(fatos com orientação argumentativa contrária) permanece a tese inicial e ela

se torna vencedora: “Quem observando a nossa marcha política deixará de

enxergar a conspiração constante do ‘imperialismo’ contra as instituições?”

Finalmente, uma tomada de posição: a onda da democracia está subindo como

enchente, conforme diz Reyer Collard, na França. “Hoje, precisa-se organizá-la, quebrando

os laços que a manietavam e habilitando-a a viver vida própria”.

Joaquim Felício reforça a sua tese: o imperialismo brasileiro deve acabar e faz

reverência à Europa, onde já nascia a onda da democracia, como “enchente impetuosa”.

Toda a sua argumentação converge para a sua tese maior, e a premissa, a tese inicial, foi o

ponto de partida, garantindo o acordo prévio com seus interlocutores, como início de um

processo de persuasão, convencimento, a que se propôs.

Assim, pode-se afirmar que os editoriais, como produto concreto de um discurso

argumentativo, são textos, que apresentam uma organização estrutural, caracterizada

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como gênero discursivo, que é composto de seqüências lingüísticas ou tipos textuais

combinados, o que lhe garante a unidade semântica, formal e sócio-comunicativa. O plano

geral dos editoriais se desenvolve em função da coesão e da coerência, possibilitando a

construção do conteúdo temático, da semantização do texto, em conformidade com a

intenção do locutor que é a de influenciar o seu interlocutor, fazendo-o comungar de suas

idéias sobre a política administrativa do Brasil.

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CAPÍTULO IV

A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DOS EDITORIAIS:

REFERÊNCIA, INTERTEXTUALIDADE E ERUDIÇÃO

No capítulo anterior, para responder à pergunta de que falam os editoriais, fez-se

uma síntese de seus conteúdos temáticos, caracterizados como uma crítica à monarquia

brasileira, seguida de uma proposta de sua extinção, uma vez que considerada como

instituição “velha”, “caduca” e “anacrônica”. Joaquim Felício realiza a sua ação verbal,

concentrando a sua crítica em D. Pedro II, representante legal do sistema político de

governo, como Imperador do Brasil.

Neste capítulo, para responder à indagação como se construiu esse discurso

político, pretende-se explicitar os mecanismos lingüísticos de que se valeu o editorialista

para realizar a interlocução.

A atividade interinvidual de linguagem pressupõe um processamento textual, para

o qual contribuem três grandes sistemas de conhecimento, conforme Heinemann e

Vichweger, 1991, apud Koch (1998: 26). São os conhecimentos: lingüístico, enciclopédico

e interacional. O primeiro diz respeito ao conhecimento gramatical e lexical; o segundo

refere-se ao conhecimento de mundo utilizado, que se encontra disponível na memória de

cada indivíduo e o terceiro é o conhecimento sobre as formas de interagir com seu

interlocutor através da linguagem, é o conhecimento sócio-interacional. Apenas os dois

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primeiros serão objeto de considerações, uma vez que o terceiro já foi considerado no

Capítulo III.

4.1. O conhecimento lingüístico no processamento textual

O conhecimento lingüístico no processamento textual é responsável pela

organização do material na superfície textual, pelo uso dos meios coesivos que a língua põe

à disposição de seus usuários para efetuar a remissão ou a seqüenciação textual, pela

seleção lexical adequada ao tema e/ou aos modelos cognitivos ativados.

Bronckart (1999: 119) propõe três mecanismo de textualização: 1) a conexão –

articulação da progressão temática realizada por organizadores textuais; 2) a coesão

nominal, responsável pela introdução, preservação, continuidade e identificação dos

referentes textuais e pela progressão tópica que diz respeito ao(s) assunto(s) tratado(s) ao

longo do texto e 3) a coesão verbal, que trata da organização temporal e/ou hierárquica dos

processos (estados, acontecimentos ou ações) verbalizados no texto.

As considerações feitas, neste capítulo, referem-se ao segundo mecanismo de

textualização a coesão nominal, dada a sua importância na semantização dos editoriais.

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4.1.1. Os mecanismos de coesão nominal

Um aspecto central da textualização é a organização referencial que dá

continuidade e estabilidade ao texto, responsabilizando-se pela coesão e coerência do

discurso, garantindo a unidade formal e semântica do enunciado.

A coesão nominal resulta da organização referencial, como já se disse, é

responsável pela introdução, preservação, continuidade, identificação dos referentes

textuais e pela progressão tópica, que possibilita o desenvolvimento do assunto, ordenação

de seus tópicos, ao longo do texto, usando para isso vários recursos lingüísticos: pronomes

pessoais, relativos, demonstrativos, possessivos e sintagmas nominais. Assim, a relação

entre linguagem, mundo e pensamento estabelecida no discurso, é realizada através da

organização referencial no texto com o uso das estratégias de referenciação.

Segundo observam Sanfor e Garrod (1982: 100) apud Marcuschi (1998) o

processo de resolução da referência é essencial em qualquer estudo que busque dar conta

da compreensão textual.

Ducrot (1972: 232) enumera os recursos lingüísticos responsáveis pelo processo

de referenciação no texto:

Chamam-se freqüentemente referenciais as expressões que permitem ao locutor designar para o destinatário um ou mais objetos particulares do universo do discurso (quer este seja ‘real’ quer seja imaginário). Nessa categoria incluem-se, notadamente, 1º os nomes próprios como Napoleão, Pedro cujo emprego exige que se possam aplicar-se, no contexto da enunciação, a uma pessoa, acrescentando-se-lhes expressões de nomes próprios, como a Lua; O Rei-Sol; 2º os pronomes substantivos demonstrativos (este livro, estas crianças); 4º os pronomes pessoais (eu, tu bem como ele, quando a um ser exterior e não a um segmento do discurso); 5º os grupos nominais precedidos de artigo definido, ou seja, segundo a expressão de Russel, as ‘descrições definidas’ (o Rei da

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França, o zelador, as crianças de Tiago, o cavalo branco de Henrique); 6º os grupos nominais precedido de um possessivo (minha tese, minhas crianças) com possibilidade o 6º e o 5º se fun direm = se admitir que

minhas crianças = crianças de mim.

Duas funções de coesão nominal podem ser distinguidas: a de introdução do

referente que consiste em marcar no texto a inserção de uma unidade de significação nova,

denominada de unidade-fonte que é a origem da cadeia anafórica, e a de retomada, que

pode reformular essa unidade-fonte (ou antecedente) no decorrer do texto.

Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995: 228) fazem uma distinção entre referentes

mundanos e objetos-de-discurso. Os objetos-de-discurso não pré-existem ao discurso como

tal, mas são construídos no seu interior. São esses objetos que os itens lexicais vão

designar o não propriamente algo que esteja fora da mente, algo mundano.

A referenciação é, nessa visão, um processo discursivo não podendo ser definida

aprioristicamente, mas em relação direta com o discurso em que está inserida, a sua

significação será sempre contextualizada. A realidade empírica passa a ser uma construção

da relação da pessoa com a realidade. Assim, a retomada dos referentes no texto, na sua

progressão referencial, não implica necessariamente a repetição dos mesmos referenciais,

mesmos itens lexicais, mas pode haver, o que é bastante freqüente, modificação,

recategorizações. Os referentes mundanos são retomados como objetos-de-discurso e estes

são usados pelo locutor de acordo com suas intenções comunicacionais, dessa forma, certas

anáforas recategorizam seus objetos com uma visão argumentativa, a expressão verbal

direciona-se à formação de argumentos, em forma de metáforas ou palavras que revelam

uma avaliação, um juízo de valor (como se pode perceber nos exemplos dos editoriais a

seguir). É, portanto, um processo discursivo.

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Para realizar o processo de referenciação, o locutor tem à sua disposição uma série

de alternativas já elencadas por Ducrot, em citação feita anteriormente, podendo, realizar o

processo da recategorização com o uso dessas mesmas alternativas.

Apothélez e Reichler-Béguelin (1995: 247) consideram como principais

transformações que a anáfora pode operar no referente:

1) recategorização lexical explícita

2) recategorização lexical implícita

3) modificação da extensão do objeto

1) A recategorização lexical explícita produz uma predicação de atributos. Pode-

se retomar o mesmo item lexical e acrescentar-lhe modificadores ou tomar um item lexical

recategorizador, ou seja, nova expressão lexical. O que vai importar não é mais a

referência empírica, mas o objeto-de-discurso construído pelo locutor. A nova expressão

que retoma o objeto mundano, acresce-lhe novos conhecimentos e atributos, modificando o

sentido e a orientação da referenciação.

No editorial de O Jequitinhonha, de 04-10-1868, o referente empírico O Sr. de

Itaboraboy é introduzido no texto e passa a uma unidade-fonte, que dá origem à cadeia

anafórica para retomada desse referente. Percebe-se, a seguir, que a retomada é feita

através do processo de recategorização explícita. Ao objeto mundano são enxertadas

predicações, com claras intenções persuasivas, pelo editorialista, como se pode perceber:

Não há muito tempo voltava da Europa o Sr. De Itaborahy (...) Esperam-se de braços abertos o homem da situação. (...) Chegou então o atual Ministro das Finanças. (...) O Ministro ‘indicado’ tinha feito um giro por entre o povo das experiências. (...) Assim foi que, logo ao desembarque do novo Pill... (...) Cesar recebeu nos braços o ministro futuro. (...) Os olhos volveram-se para o ‘grande’ ministro (...) O ministro-programa começou por balbuciar uma desculpa... (...) Assim, o papel do Messias da Fazenda limitou-se a. (...) Hosanna ao Ministro!

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As expressões nominais que retomam o referente, algumas vezes, conservam o

item lexical ministro, acrescentando-lhe atributos e, outras vezes, constituem-se em novos

itens, como: o homem da situação, o novo Pill, o Messias da Fazenda.

Vê-se nessa recategorização explícita uma orientação argumentativa, que será

explicada no próximo capítulo, na identificação da construção dos argumentos.

2) A recategorização lexical implícita é feita através de um pronome anfórico que

remete a um referente e o retoma, mas modificando algum aspecto. As três funções que lhe

são atribuídas pelos autores citados (op. cit. p. 253-254) são de redução de ambigüidade

referencial, sugestão de uma correlação particular em que uma mudança de gênero do

pronome refere algo implicitamente conotado.

3) Modificação da extensão do objeto

A recategorização com a modificação da extensão do objeto ou de seu estatuto

lógico nem sempre implica uma recategorização lexical, mas de outro tipo: formal.

Ex.: Em Belo Horizonte há muitos restaurantes e bares.

Aqui eles vivem buscando esse tipo de lazer a semana toda.

O pronome eles não tem referente explícito, mas um domínio referencial extraído

do estatuto lógico: quem freqüenta bares e restaurantes são os habitantes da cidade, logo

justifica-se o emprego do pronome eles.

Há outros tipos dessa categoria que não serão analisados, por não serem

pertinentes ao trabalho.

Ainda no editorial de 04-10-1868, há um referente D. Pedro II, cujo nome próprio

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não aparece nem uma vez. Transformado em César7 pela designação feita pelo

editorialista, a progressão textual ocorre com as retomadas freqüentes da designação e o

sentido próprio do referente só é possível pela leitura de outros editoriais ou pela inferência

a partir de alguns enunciados:

Parou a pompa às portas do palácio, Cesar recebeu nos braços o

ministro futuro, O ministro-programa começou por balbuciar uma desculpa.

Desapontamento de Cesar, espanto geral! O ministro vai emitir mais quarenta mil contos de papel moeda! Cesar o quer, Cesar o mandou” Louvor a César! (grifo nosso)

Vê-se que os enunciados se referem à autoridade máxima do Brasil, seu

governante, portanto, a D. Pedro II. É um exemplo bem significativo de uma anáfora

recategorizada por um novo item lexical, metaforicamente construído – César – para

atender a objetivos comunicacionais do locutor. Como objeto-de-discurso-, à referência

característica, do referido, são lhe acrescidos os atributos necessários a uma nova visão do

referente empírico. Joaquim Felício não julgou necessário, nesse editorial, colocar a idéia-

fonte, o nome do referente empírico, D. Pedro II, porque o que lhe interessava era a figura

administrativa, que no discurso, era descrita como César, o Imperador Romano, o ditador,

o absolutista, o poderoso. Assim, o nome próprio usado (no próximo capítulo tratado como

uma figura retórica, antomásia) é uma estratégia de referenciação, com grande valor

argumentativo, que mantém a coesão nominal do texto.

7 César: ditador romano (101-44 a. C.). Caius Tulius Ceasar conquista várias regiões para Roma e se torna o

homem mais célebre do primeiro triunvirato. Tinha uma ambição ilimitada, tinha sede de poder, sonhava tornar-se senhor de Roma. Foi governador da Espanha; em Roma foi pretor, sumo pontífice, tribuno, cônsul (presidente). Recebeu honrarias como se fosse senhor do universo. Foi em 44 a. C. assassinado por Marcus Brutus, em pleno Senado. Segundo Chateaubriant, César é o homem mais completo da História porque reuniu tríplice qualidades: político, escritor e guerreiro. Diz a História que ao lado de sua coragem inexcedível, de um sangue frio extraordinário, o traço dominante de seu caráter foi a ambição desenfreada.

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Além da designação de “César”, para a pessoa do Imperador D. Pedro II, o

editorialista fez várias outras, buscando mostrar traços da personalidade do monarca

brasileiro, através de comparações com personalidades históricas, personagens de obras

literárias, em que a tônica foi sempre a mesma: denegrir a imagem do Imperador, diante de

seus interlocutores; foi mostrar aspectos negativos de seu comportamento, através dos

defeitos das personalidades aludidas, hipoteticamente, já conhecidas pelos interlocutores.

O “nosso César”, como foi chamado D. Pedro II, foi lembrado por Joaquim

Felício, explícita ou implicitamente, como Nero, Calígula, Luiz Felipe, Luiz XVI, Carlos

X, Isabel II, Cromwel, Napoleão Bonaparte, Tibério, Saturno e outros. São nomes

próprios, referidores, que reforçaram a intenção do editorialista: mostrá-lo como alguém

que perdeu o poder, depois de um domínio absoluto.

Ironicamente, Joaquim Felício comparou D. Pedro a Marco Aurélio, a Augusto, a

Carlos Magno, a D. Pedro, o Africano (de Portugal), deixando ver que desses o referido

não tinha as qualidades que buscava demonstrar, como pode ser apreendido através da

leitura dos editoriais.

Enfim, nomes próprios de pessoas, deuses, monarcas somaram-se mais de

sessenta marcas lingüísticas de referenciação, nos seis editoriais, não sendo nenhum

desses nomes relacionado à realidade brasileira, mas a maioria, à européia e raras vezes, à

americana.

A significação de cada designação implica o conhecimento da personalidade, de

sua história, de suas características ou feitos a serem colocados a serviço do plano

argumentativo do locutor, demonstrando o que se reafirmou, várias vezes, os editoriais são

atualizações históricas que os tornam textos eruditos.

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4.1.2. A seleção lexical: norma lingüística e contexto sócio-cultural

Os três mecanismos de textualização: conexão, coesão nominal, coesão verbal são

realizados a partir de uma seleção lexical adequada, condizente com gênero do texto, a

norma lingüística usada, o contexto sócio-cultural da veiculação dos discursos, do

conhecimento da língua do locutor, na verbalização de seu conhecimento de mundo e de

suas intenções comunicacionais.

Joaquim Felício dos Santos revela-se como um escritor erudito, quanto ao manejo

da língua culta, na modalidade escrita da época. Atualizar as experiências culturais

armazenadas em sua memória, fez-lhe utilizar um vocabulário com fortes raízes na cultura

clássica e construir os seus discursos políticos exigiu-lhe domínio amplo da leitura de

autores consagrados da literatura universal de várias especializações. Isso confirma o que

Bakhtin (1997: 147): “A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo psicológicas, mas

das relações sociais estáveis dos falantes”.

Benveniste (1989) também fala sobre a relação língua sociedade, mostrando que a

língua enquanto prática humana interpreta a sociedade e, portanto, ela varia de acordo com

as comunidades humanas:

A língua nasce e desenvolve no seio da comunidade humana, ela se elabora pelo mesmo processo que a sociedade, pelo esforço de produzir os meios de subsistência de transformar a natureza e multiplicar os instrumentos. É nesse trabalho coletivo e por este trabalho coletivo que a língua se diferencia em suas atividades materiais e intelectuais.

Continua o autor explicando que, para isso, ela deve preencher duas condições: 1-

como interpretante, não pode, diferenciar nos moldes da sociedade que muda, evolui, ora

lenta, ora rapidamente, porque ela [a língua] estabelece uma semiologia geral, uma

estrutura mais estável, capaz de registrar, de designar e mesmo orientar as

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mudanças que sobrevêm no interpretado – a sociedade. 2- mas a língua muda, lentamente,

sobre a pressão das necessidades internas ao longo de muitas gerações.

Portanto, há uma relativa estabilidade – unidades significantes básicas ao lado de

diferenciações no interior da linguagem comum – que revelam o uso particular que dela

fazem os grupos ou classes sociais, numa rede complexa de relações espácio-temporais.

Sintetizando, a Sociolingüística admite que toda língua varia de acordo com a

classe social (variação diastrática), de acordo com o espaço em que a comunidade

lingüística vive (variação diatópica) e muda com o tempo (variação diacrônica).

Diante dessa realidade, analisar enunciados produzidos em uma sociedade do

Século XIX implica, naturalmente, buscar informações sobre a variedade lingüística

utilizada pelo autor na organização textual dos discursos – os editoriais.

Conhecer, pois, a situação lingüística do Brasil no Século XIX pode contribuir

para melhor explicar algumas características das organizações textuais, como a seleção

lexical, os processos de referenciação na construção semântica dos enunciados, recursos

retóricos utilizados na construção dos argumentos.

Numa rápida retrospectiva histórica, vê-se que Serafim da Silva Neto (1963: 73-

100) divide a História da Língua Portuguesa no Brasil em três fases: 1ª fase (1532 -1654),

do início da colonização até a expulsão definitiva dos holandeses do território; 2ª fase

(1654-1808), da expulsão dos holandeses com o conseqüente incremento da emigração do

reino para a colônia à chegada do Príncipe Regente e da Corte portuguesa ao Rio de

Janeiro; 3ª fase (1808 até o presente), da chegada de D. João VI (Príncipe regente) e da

corte portuguesa, que transformaram o Rio de Janeiro na Capital do mundo português, até

os dias atuais.

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Interessa a este estudo a terceira fase que foi marcada pelos treze anos de reinado

americano de D. João VI, o rápido fenômeno da urbanização brasileira, o crescente

movimento migratório e a difusão lenta mas progressiva do falar urbano que se constitui

em norma padrão lingüística das classes bem dotadas no Brasil.

Foi nesse cenário de “relusitanização” do Brasil, convivendo com a complexidade

do fenômeno da aculturação, resultante do contato direto e contínuo de culturas diversas, a

indígena, a africana, a européia que se formou o escritor brasileiro do Século XIX.

Solange Leda Galo (1996) faz a pergunta: “Qual é efetivamente a língua do Brasil

no Século XIX? Em seguida, tentando responder à sua indagação, mostra a situação

lingüística do Brasil, no século XVI, com centenas de línguas orais, não-grafadas, que

entraram em confronto com a língua do colonizador português, resultando o que Mattoso

Câmara define como ‘tupi jesuíta’, acrescido mais tarde por outras línguas faladas pelos

imigrantes que chegaram ao Brasil. Mas a língua escrita apresenta-se como normativa,

excluído o que não segue suas normas, sendo os textos orais considerados ilegítimos, não

nacionais em relação à unidade da língua portuguesa e, assim, a “língua brasileira” é

ignorada.

Conforme a autora “estabelece-se, então, a partir desses fatos, uma relação direta e

paradoxal entre a norma lingüística e a nacionalidade: “quanto mais de acordo com as

normas da língua disciplinar (a portuguesa), mais brasileira” era considerada a produção

textual.

Conclui a autora que ensinar a língua no Brasil é “ensinar a reproduzir a língua

escrita já reproduzida”. Isso significa uma aceitação passiva dos brasileiros, mas uma

opção clara pela norma do português europeu. Martins (1888: 8-55) afirma haver sim uma

bifurcação do português nas variantes de Portugal e do Brasil, que se vinha processando

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mais claramente no Século XVIII, acentua-se no Século XIX, suscitando numerosos

debates, polêmicas, estudos alguns mais apaixonados, outros mais objetivos, constituindo a

chamada “questão da língua brasileira”. Os escritores fundem, em proporções variáveis, a

língua apreendida no meio familiar e social com a aprendida na escola e pelas leituras

feitas.

Tecendo considerações sobre a educação dos escritores do Século XIX, afirma

que recebiam um ensino essencialmente humanístico, constituído da gramática, da retórica,

da literatura e as línguas estrangeiras tinham particular relevo; o português escolar estava

divorciado da língua falada do povo, cuja maioria era analfabeta.

No Século XIX, sobretudo na segunda metade, aumenta consideravelmente o

número de gramáticas da língua portuguesa empenhadas em manter a tradição clássica

lusitana. As gramáticas escritas no Século XIX refletiam mais a língua dos tempos

passados, colocando os modelos clássicos como o ideal absoluto. Não obstante os protestos

renovador do anticlassismo, do Romantismo e inegáveis inovações no manuscrito da

língua, a reverência aos clássicos continuava viva.

Machado de Assis era considerado um escritor que mantinha certo equilíbrio,

evitava atitudes extremas, reconhecia a evolução das línguas, mas refutava a opinião de

que se deviam aceitar todas as alterações da linguagem visto haver limites para a influência

popular.

Alusões à gramatiquice do Século XIX e críticas ao ensino da língua foram feitas

nas primeiras décadas do Século e críticas ao ensino da língua foram feitas nas primeiras

décadas do Século XX e até mesmo nos dias atuais, como se pode ver. Roberto Pompeu de

Toledo, sem seu Ensaio na revista Veja de 28-02-2001, ao comparar o Senado de 1860

com o atual, de 2001, escreve:

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Brincava-se de parlamentarismo à inglesa num país de escravos O Senado era como um Salão de Madame. Conta Machado de Assis que o Senador José de Araújo Ribeiro mantinha um dicionário sobre o tapete perto ao pé de sua cadeira. Sempre que ouvia, de um orador, um vocábulo que lhe parecia de incerta origem ou duvidosa aceitação, recolhia o volume do chão, para conferir. Vigiava-se o idioma numa nação de senzalas, capitães-do-mato e golpes de açoite.

A Retórica era ensinada nas escolas, nos seminários, era cultivada nas academias,

nas reuniões literárias, no púlpito e na tribuna e teve grande importância nas campanhas da

Independência, a Abolição e da República. Afirma Martins (1988: 12)

Ao lado da retórica benéfica, que serviu a causas progressistas, floresceu também uma retórica inútil, que alimentou muita eloqüência vazia, ‘tesa, engomada e chocha’, conforme a metafórica adjetivação de Brás Cubas. A retórica que atesta a importância da oralidade num pais em que o hábito de leitura era muito restrito impregnou, de forma ora mais, ora menos acentuada, não só a imprensa de caráter político, como também o teatro, a poesia e o romance do período.

As frases oratórias, períodos enfáticos, com intenção clara de convencer o

interlocutor aparecem na poesia de Gonçalves Dias, de Castro Alves, em Alencar,

Bernardo Guimarães ou Coelho Neto.

O Latim, no Século XIX, era a língua de prestígio, merecendo toda atenção o seu

ensino, como sendo essencial à formação da juventude. Os latinismos, empréstimos ou

citações, conferiam pompa, dignidade, nobreza ao estilo e às vezes um tom afetado.

Eduardo Guimarães, em artigo “Sinopse dos estudos do português no Brasil: a

‘gramaticalização brasileira’, centra a sua atenção no estudo da língua portuguesa no Brasil

a partir do final do Século XIX, quando já se discute a diferença entre o português do

Brasil e o de Portugal, quando ocorrem as célebres polêmicas entre José de Alencar e

Pinheiro Chagas e Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, quando se fundam os estudos

brasileiros sobre o Português. Ao descrever esse período, o autor observa:

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(...) é interessante observar que neste período há uma grande onda purista no Brasil que procura dar como norma para a língua a gramática dos textos clássicos portugueses.

Foi neste contexto, rapidamente descrito, que se formou o editorialista de O

Jequitinhonha, Joaquim Felício dos Santos, que mostra em seus editoriais uma opção bem

nítida por uma língua culta em que a organização textual, a seleção lexical, as figuras de

retórica na construção dos argumentos, os processos de referenciação e progresso textual a

tornam uma modalidade culta, erudita, ou seja, uma relação caracterizada pelo

refinamento: uma tessitura lingüística trabalhada, burilada. Entre as marcas lingüísticas

dessa erudição destaca-se a intertextualidade que lembra as culturas clássicas,

especialmente da Grécia e Roma, através de citações latinas, referências mitológicas e

históricas, alusões a personalidades célebres do mundo político cultural, que se tornaram

universalmente conhecidas pelos seus feitos, suas idéias.

Essa universalidade de conhecimento leva a crer que os ensinamentos de Cícero e

Quintiliano estiveram presentes na formação do editorialista de O Jequitinhonha, uma vez

que pregaram que só a cultura geral, Humanistas, permitia exprimir-se de modo justo e

apropriado, elevar o debate da ‘causa’ à ‘thesis’, do caso particular à questão geral

subjacente. Para Quintiliano “a retórica é o sinônimo de cultura e a formação do orador é

um tratado completo de educação, a partir da primeira infância, nele incluindo a gramática,

como explicação de textos, a retórica como técnica de argumentação”.

O uso de uma norma culta, erudita, nos editoriais é, sem dúvida, uma

conseqüência da formação do editorialista, que, embora residindo no interior das Minas

Gerais, vivia os movimentos culturais da Corte, no Brasil, e revivia a cultura européia, o

que bem atesta o marcante fenômeno da intertextualidade erudita em seus editoriais.

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A evocação do passado, no Século XIX, era uma forma de valorização da língua,

da revitalização do classicismo; a dependência dos grandes centros europeus fazia os

escritores brasileiros verem nos modelos da Europa o ideal da literatura e, assim,

importavam o seu estilo.

Por toda a parte, no fim do século XIX, vive-se na dependência dos grandes centros industriais da Europa. O surto da Inglaterra e da França polariza de tal forma a atenção do mundo, que todos estão a plagiar-lhe a arte e o modo de viver.

(Barros Latif, apud Luciano Trigo, 2001: 25)

4.2. Os conhecimentos enciclopédicos

Retomando Koch (1198), que propõe a conjunção de três grandes sistemas de

conhecimento para o exercício da atividade interindividual de linguagem: o lingüístico, o

enciclopédico e o interacional, tem-se, neste item, o objetivo de explicitar como é visto o

segundo sistema: conhecimento enciclopédico, na leitura dos editoriais.

O conhecimento de mundo de Joaquim Felício, revelado através das referências à

cultura clássica, à História da Europa, deixa bem claro tratar-se de um leitor, de um

estudioso de autores eruditos da Literatura universal, da História da Civilização. Crítico

contumaz e corajoso da realidade político-administrativa do Brasil Império, ele constrói a

interlocução (EU-TU), como homem culto, através da referência (EU-TU/ELE), erudita,

numa relação com o mundo, conforme suas representações do real, marcadas pela

atualização de discursos “já ditos”, caracterizados no uso do mecanismo da

intertextualidade como se pode perceber nas considerações que serão feitas no item

seguinte.

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4.2.1. Intertextualidade e erudição nos editoriais

Nos estudos de Análise de Discurso, atualmente, é indispensável conhecer os

fenômenos do dialogismo, heterogeneidade, polifonia e intertextualidade; suas diferenças

e/ou equivalências, como também sua(s) utilização(ões) na semantização do discurso, no

processo de sua textualização e na atividade de compreensão textual. Vários estudiosos

posicionaram-se sobre esses fenômenos, sendo exemplos significativos:

Bakhtin (1929) introduziu nas Ciências da línguagem o conceito de polifonia,

mostrando o caráter dialógico da linguagem, em oposição ao monológico que, para ele, não

existe realmente.

Barthes (1974) procurou mostrar que todo texto é um intertexto e que os discursos

são construídos de fragmentos de outros discursos.

Ducrot (1984) propôs uma Teoria da polifonia concebendo vários sujeitos

responsáveis pela produção de um discurso na cena enunciativa: o locutor, o falante, o

enunciador, como já foi comentado no primeiro capítulo deste trabalho, quando foram

tecidas rápidas considerações sobre o sujeito do discurso.

Maingueneau (1989: 75) considera a heterogeneidade do discurso em dois planos:

a heterogeneidade ‘mostrada’ e a heterogeneidade ‘constitutiva’. A ‘mostrada’ é

constituída pelas manifestações explícitas, recuperáveis, a partir da diversidade de fontes

de enunciação, ou seja, marcada pelo desdobramento da figura do locutor, enquanto a

heterogeneidade constitutiva não é marcada na superfície do enunciado, mas através do

interdiscurso, do “já dito”, que é fundamental na construção de todo discurso.

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Também Pêcheux (1969) considera que um discurso se estabelece sempre sobre

um discurso prévio, com ele construindo uma relação de concordância, discordância,

aproveitamento de partes e destruição de outras.

Kock (1998: 46-57) com o objetivo de refletir sobre a relação intertextualidade e

polifonia, discute se esses dois termos designam um só fenômeno ou não, concluindo que

não há coincidência total entre os dois conceitos e explica:

Na intertextualidade, a alteridade é necessariamente atestada pela presença de um intertexto; ou a fonte é explicitamente mencionada no texto que o incorpora ou o seu produtor está presente em situações de comunicação oral; ou, ainda, trata-se de provérbios, frases feitas, expressões estereotipadas ou formuladas de autoria anônima, mas que fazem parte de um repertório partilhado por uma comunidade de fala. Em polifonia basta que a alteridade seja encenada, isto é, incorporam-se ao texto vozes de enunciadores reais ou virtuais, que representam perspectivas, pontos de vista diversos, ou põe em jogo ‘topoi’ diferentes, com os quais o locutor se identifica ou não. Desse modo, a meu ver, o conceito de polifonia recobre o de intertextualidade, isto é, todo caso de intertextualidade é um caso de polifonia, não sendo, porém verdadeira a recíproca: há casos de polifonia que não podem ser vistos como manifestações de intertextualidade.

A autora considera, ainda, a intertextualidade em dois sentidos: amplo, condição

de existência ao próprio discurso, que pode ser aproximada do que se denomina

interdiscursividade na Análise de Discurso da linha francesa, ou heterogeneidade

constitutiva conforme definição de Maingueneau e restrito, que é a relação de um texto,

com outros previamente existentes, isto é, produzidos.

A intertextualidade em sentido restrito será explícita, quando há citação da fonte

do intertexto como no discurso relatado (direto, indireto, indireto livre), nas referências,

resumos, resenhas e traduções e será implícita, quando não ocorre a citação expressa da

fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido do texto,

como nas alusões, na paródia, em certos tipos de paráfrase e de ironia.

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Koch estabelece, ainda, a diferença entre a intertextualidade das semelhanças,

quando “o texto incorpora o intertexto para seguir-lhe a orientação argumentativa e para

apoiar nele a argumentação” e a intertextualidade das diferenças, “o texto incorpora o

intertexto para ridicularizá-lo, mostrar sua improcedência ou, pelo menos, colocá-lo em

questão” ( paródia, ironia, estratégia argumentativa da concessão ou concordância parcial).

Neste trabalho, considera-se a intertextualidade em sentido amplo e em sentido

restrito e esta, tanto explícita quanto implícita, uma vez que se constitui de freqüentes

discursos citados e inúmeras referências à História Universal, à Mitologia, à produção

cultural, a que Joaquim Felício dos Santos recorreu como intertexto de sues editoriais.

A leitura dos editoriais mostra, de imediato, que a intertextualidade é crucial na

construção do seu sentido, na sua semantização, cabendo, ao sujeito alocutário, o leitor, a

imprescindível tarefa de atualizar os seus “conhecimentos enciclopédicos”, não só do

mundo atual, imediato, mas de um mundo referido através de textos clássicos bem

anteriores ao Século XIX.

Para analisar algumas marcas de intertextualidade, propõe-se tomar cada editorial,

pela data de publicação (a seguir) e comentá-las em fragmentos onde se encontram, o que

não dispensará a leitura integral de cada texto, para assegurar melhor entendimento do uso

dessa intertextualidade e da intenção do autor ao selecioná-la.

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O JEQUITINHONHA DIAMANTINA, 4 DE OUTUBRO

DE 1868.

Não há muito tempo que voltava da Europa o Sr. De Itaborahy.

O thezouro andava mal. Dizia-se que mais dias menos dias, a bancarrota daria cabo do paiz.

Na tribuna, na imprensa, os planos financeiros rolavão como as arêas do mar.

No meio de tão grande anciedade, procurava-se um salvador. Esperava-se de braços abertos o homem da situação.

Chegou então o actual ministro das finanças.

Não é debalde que se dá um passeio à Europa, que se visita a França, que se vai assistir na Inglaterra ao debate de um povo livre em um parlamento soberano.

O ministro “indicado” tinha feito seu gyro por entre o povo das experiencias.

Tinha visto, tinha lido, tinha meditado.

E o fizera em bem. Entre os povos antigos era esse o uso Nenhum legislador lia na praça publica seu programma de salvação sem que tivesse ido consultar o oraculo, ouvir a sybilla ou inspirar-se na sabedoria de alguma nympha Egeria

Era-lhe condição obrigada quer se chamasse Solon, Lycurgo ou mesmo rei Numa.

Novos ares, novas idéas. Na

fronte do bemvindo estava sem dúvida oculto o pensamento salvador.

Assim foi que, logo ao desembarque do novo Pill, o paiz enfiou curioso olhar pela sua bolsa de viagem, no intuito de surprehender uma folhasinha do projecto suspirado.

Debalde. No alto do Sinay não é só por

entre o fogo, por entre o fumo e por entre os raios que a lei apparece? Um salvador não é qualquer cousa que se toque assim com o dedo!

E pois, o homem passou envolto na sua capa.

Na capa envolto era mais soberbo, mais altaneiro do que o romano que na toga levava ou a paz ou a guerra.

Ampla fieira de gente fez-lhe sequito.

Representava a guarda de honra o agiota que entrara hontem de alforge e hoje sahira de milhão, graças ao fluctuar da alta e da baixa, em um momento de sorte.

Ia-lhe no couce a tribu famelica dos jogadores do cambio.

Parou a pompa às portas do palacio, Cesar recebeu nos braços o ministro futuro.

Parabens a Cesar! D’aquelle abraço ia datar a

salvação do thesouro, restabelecimento do credito, restauração das finanças, terminação da guerra.

Paz no ceu, paz na terra! Veio o dia 16 de julho. O partido

conservador galgou as escadas do poder.

Houve um longo silencio em todo o paiz.

Os olhos volverão para o

“grande” ministro: esperava-se o milagre.

O ministro-programa começou por balbuciar uma desculpa. Desapontamento de Cesar, espanto geral!

Mostrou que o paiz está gravemente enfermo, que já nada pode em tamanha extenuação... chorou, pesou as onças de sangue vertido e... terminou exigindo uma sangria, uma “sangria” ainda!

O ministerio vai emitir mais quarenta mil contos, de papel moeda!

Cesar o quer, Cesar o mandou! Assim, o papel de Messias da

Fazenda limitou-se à: Reproduzir o que o Sr. Zacarias

fizera contra a opposição de ambos os partidos.

A forçar de antemão o consenso da camara, impondo-lhe um “bill” de idemtidade.

Levou de vencida o voto do Sr. Paulino que declarára, quando deputado, que o papel moeda era “peste”.

Tomou de assalto o assentimento do sr. Paranhos que chamara um “roubo” a emissão transada!

Arrebatou, entre carinhos, a assignatura do Sr. Cotegipe que equiparara este systema ao de um “moedeiro falso!”

Gloria nas alturas, na terra, gloria!

Que sublimado programma! Pois não é de “notabilidade”

financeira dourar a pilula para que o paiz a engula sem careta?

Hosanna ao ministro! Louvor a Cesar!

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4.2.1.1.1. Editorial de 04-10-1868 – Crítica ao Ministro da Fazenda

Neste editorial, a intertextualidade usada é em sentido restrito, implícita,

constituindo-se de alusões, que, retoricamente, são ilustrações que impressionam,

sensibilizam o interlocutor pela similitude apresentada, (conforme a versão do autor) com

fatos históricos relativos à cultura do mundo pagão e à do mundo cristão, respectivamente.

Entre os povos antigos era esse o uso. Nenhum legislador lia em praça pública seu programa de salvação sem que tivesse ido consultar o oráculo8, ouvir a sybilla9 ou inspirar-se na sabedoria de alguma nimpha Egeria10. Era-lhe condição obrigatória quer se chamasse Solon11 Licurgo12 ou mesmo Numa13.

O editorialista faz uma alusão aos costumes antigos, através da intertextualidade,

retomando um discurso, presumivelmente, conhecido dos leitores. É um exemplo que não

8 Oráculo – era o lugar onde se supunha que as divindades consultadas davam respostas a respeito do futuro;

designava também a própria resposta dada. O mais célebre oráculo era o de Apolo em Delfos; o mais antigo o de Júpiter em Dodona. Havia o de Trofônio, na Beócia, o de Ápis em Menfi, todos tinham a função de ajudar as pessoas a tomar decisões.

9 Sibila – Figura mitológica que dizia não ser deusa, mas ser mortal. Tinha poderes proféticos, escrevia em folhas de árvores os nomes e destinos dos indivíduos. Essas folhas eram “catalogadas” e colocadas nas cavernas, os oráculos, para as respostas às consultas deitas pelos homens. Sibila acompanhou Enéas até as regiões infernais para que ele se encontrasse com seu pai Anquises (Virgílio, em Eneida). Conta a mitologia que ela, tendo recusada o amor do deus Apolo, como castigo, não teve o favor da juventude eterna, vivendo mil anos por concessão de Apolo um pedido que Sibila lhe fez para viver o número de anos conforme o número de grão de areia que conseguisse fechar em uma das suas mãos.

10 Ninfa Egéria. Ninfas eram espíritos da natureza na mitologia grega: eram seres tutelares. A ninfa Egéria, ninfa dos montes protegia Numa, rei de Roma e, em encontros secretos com ele dava-lhe lições de sabedoria e direito, que foram aplicadas nas instituições da jovem nação. Depois da morte de Numa, a ninfa Egéria foi se definhando até morrer de pesar e transformou-se numa fonte.

11 Sólon – Um dos sete sábios da Grécia (639-559 a. C.) foi considerado o verdadeiro fundador da chamada democracia ateniense. Dividiu a sociedade em quatro classes e deu à Quarta (a dos cidadãos mais pobres o direito de voto).

12 Licurgo – Jurista e legislador espartano de existência semi-lendária. São lhe atribuídos um código, a criação do senado, a fixação do direito da plebe a distribuição do povo em tribos e as repartição das terras entre cidadãos livres, bem como a instituição das refeições públicas, da educação em comum e a organização do exército.

13 Numa Pompílio – Segundo rei de Roma (Século VII a. C.), legislador, organizou a economia pública, incrementou a agricultura, prescreveu leis civis. Dizia-se protegido pela Ninfa Egéria, para dar maior autoridade às suas leis. Monarca essencialmente pacífico, alargou as relações comerciais com os povos vizinhos.

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é colocado para provar o fato político antes narrado – a ida do ministro á Europa – mas é,

apenas, uma ilustração, cuja função argumentativa está no fato de estabelecer uma relação

entre a busca da orientação do Sr. de Itaboray com as consultas ao “oráculo” pelos

legisladores e administradores na era pagã.

Vê-se que proteção, orientação, adivinhação, profecia, sugeridas pela alusão

constituem uma oposição às idéias liberais do Século XIX, em que, para solução de

problemas econômico-financeiros, só era esperado o uso da competência, do planejamento,

ou seja, um tratamento científico dos dados, além da discussão democrática das decisões

político-administrativas do governo com os representantes do povo no Parlamento. Essa

contraposição entre o esperado e o realizado está clara nos parágrafos 13, 14 e 15.

na fronte do bem-vindo estava sem dúvida oculto o pensamento salvador (...) o país enfiou curioso olhar pela sua bolsa de viagem, no intuito de surpreender uma folhazinha do projeto suspirado. (...) Debalde. (grifo nosso)

Estabelece-se, dessa forma, entre as duas expressões grifadas uma comparação

entre práticas antigas, obsoletas, de acordo com os costumes do paganismo e as desejadas

práticas da administração moderna, baseadas na capacidade humana, não no poder dos

deuses, dos espíritos.

O editorialista deu sentido ao fato narrado – a viagem – como um sinal de

incompetência do Ministro para o exercício do cargo, de falta de conhecimento de métodos

de administração das finanças brasileiras na modernidade.

Ao relatar a inexistência do “projeto” (Debalde), o autor utiliza, novamente, uma

alusão, não mais ligada à cultura do mundo pagão, mas à cultura cristã, para mostrar ao

interlocutor a busca das soluções “milagreiras” pelo Governo Imperial, diante da

incompetência do Ministro das Finanças ‘indicado’, o “Messias da Fazenda”.

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Os parágrafos 16, 17, 25, 28, 39, 42 e 43 comparam a cena do encontro entre D.

Pedro II e o Ministro com a cena da entrega a Moisés das Tábuas da Lei por Deus, no

Monte Sinai e registram as saudações usadas pelo cristianismo ao Cristo Redentor.

No alto do Sinai não é por entre o fogo, por entre o fumo e por entre os raios que a lei aparece? Um Salvador não é qualquer coisa que se toque assim com o dedo! E, pois, o homem passou envolto na sua capa (...) Paz no céu, paz na terra! (...) Os olhos volveram-se para o “grande” ministro: Esperava-se o milagre (...) Glória nas alturas, na terra, glória! (...) Hosana ao Ministro! Louvor a César!

A designação de César a D. Pedro II é um recurso de intertextualidade explícita,

através de uma referência a uma personalidade da História Romana. Como ficou

evidenciado no item 4.1.1., trata-se de uma anáfora recategorizada, através de uma figura

de linguagem, a antonomásia. César traz toda a evocação dos defeitos do Ditador romano e

essa evocação é o intertexto que se funde nos editoriais e, como já se tem percebido, é uma

intertextualidade que comprova a preferência do autor por fontes eruditas de suas alusões,

referências e comparações, que muito enriquecem o processo argumentativo dos editoriais.

A intertextualidade utilizada constrói a coerência do texto que tem como objetivo

ironizar a figura de D. Pedro II e o anacronismo de suas atitudes como Imperador do

Brasil. Joaquim Felício rememora, sinteticamente, toda a história da religiosidade do

homem, da era do paganismo, do politeísmo ao cristianismo, marcada com figuras

lendárias, deuses e heróis, buscando salientar o absurdo do tratamento dado à realidade

político-administrativa do Brasil, por D. Pedro II. O autor mostra nesse discurso, a sua

erudição, sua formação literária, a sua visão da História da Antigüidade Clássica, no uso

adequado das referências nos editoriais.

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O JEQUITINHONHA

DIAMANTINA, 15 DE NOVEMBRO DE 1868.

A imprensa imperial agita-se

convulsa contra nós: nada mais natural.

Não se toca debalde nas mataduras suppurantes; d’ahi esses estremecimentos de colera.

Em artigo especial « Diario do Rio » investe furibundo especificadamente contra o Jequitinhonha e o Constituinte apresentando-se como defensor do imperador.

Não conhecemos infelizmente o Constituinte e cavalheiro distincto e « Sans peur et sans reproche: » pelo menos reflecte a consciencia do povo disendo sem rebuço o que sente, aliás não atrahiria os raios do Vaticano imperial.

O que singnifica essa indignação do « Diario » contra nós, obscuros jornalistas de provincia?

Para que esse arreganho de paladino antigo em defesa da dama de seus pensares?

Quando consideramos a admiração da imprensa imperial pelas virtudes políticas, civis e domesticas do chefe do Estado, pela sua alta intelligencia, criterio, imparcialidade, genio, etc.; e quando o confrontamos com a declaração do « Diari o» que do « imperador só conhece o nome e os direitos, » ficamos perplexos. Se não fôra essa declaração acreditariamos achar-nos de frente com um representante d’aquele elemento servil que se não cuida em emancipar.

Concedemos pois: não há ali mercenario requerendo estipendio.

O « Diario » extasia-se sinceramente

« por sua vez » perante a sagrada sabedoria que nos rege; é uma apreciação individual, cujos motivos não indagaremos, nem discutiremos, respeitamos. Isso nada significa.

Não faltarão coroas, premios e arcos triumphaes a Nero nem a Calligula, –- nem as musas do Lacio envergonhavão-se de cantar esses monstros como disse o poeta. Esses documentos porém servem à história? Náo, o Diario o sabe.

D’essas baixesas e adulações torpes nasce sempre a oppressão.

Tiberio foi uma consequencia logica da vilesa dos senadores; elle mesmo exclamou; vendo-os prostados a seus pés. Oh! Homens talhados para a escravidão!!!

Elogiar aos Reis é pois desservi-los. V. Hugo exproba a phrase adulatoria de Bossuet – Deus tem na mão o coração dos reis – disendo “dupla mentira, nem Deus tem mão, nem os reis coração”.

O exilado Jersey não foi muito exacto: os Reis tem um coração immenso, hypertrophiado quando attendem aos elogios dos seus panegyristas.

Os excessos destes fazem nascer no animo dos principes uma presumpção perigosa para o povo e para elles.

Os bons amigos « nem são indulgentes em excesso » nem defensores extemporaneos.

Se não é pois com o fim de preparar a historia, nem para agradar ao principe que o « Diario » nos acomete, busquemos outro motivo. Lembre-se a insistencia com que a imprensa imperial exproba os excessos dos jornaes opposionistas e pede - « um correctivo salutar contra essa licença, para que se firme a verdadeira liberdade » a phrase é de Mercantil.

A ameaça ha de ser levada a effeito; tudo esperamos do governo actual e da futura camara: alguma cousa tambem esperamos do povo...

Venha pois a rolha se não pode sem ella viver o systema monarchico-constitucional – representativo e hereditario.

Nós nos calaremos, não escreveremos, transcreveremos: temos o Independente, o Tynandro, A conferencia dos Divinos, as cartas de Erasmo e dezenas de artigos de jornaes conservadores, antes da metamorphose actual; quando os Gracchos erão Gracchos e não Tribouletz, quando os tribunos não erão titeres do paço.

Se formos arrastados às masmmorras, marcharemos de par com os illustres auctores desses eloquentes escriptos, e o mesmo e nos cingira o pescoço. Oh! Que honra subida...

Uma falha cometeu o « Diario » apresentando o

Jequitinhonha como orgão de uma propaganda a favor do Sr. Conde a d’Eu.

Disse um escriptor, que, com uma linha destacada do livro, mais orthodoxo se poderia queimar o auctor como herege.

O « Diario » só leu um numero do nosso jornal, se tivesse este a honra de ser lido mais vezes, seria comprehendido melhor o nosso pensamento. Ei-lo: Não temos os receios d’aquella velhinha de Syracusa. Uma mudança actualmente, não pode ser para peior, porém, nos poremos em guarda contra as mystificações.

Não teremos a simplicidade dos Lafayetes nem confiamos cegamente em Luiz Fellippe, suppondo-o a melhor das republicas possiveis.

Repele o « Diario » o Sr. Conde d’Eu por ser principe estrangeiro!!! Lá se avenha com o Sr. de S. Vicent.

« Res nostra non agitur »

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4.2.1.2. Editorial de 15-11-1868 – Crítica à Imprensa Imperial

A intertextualidade é, também, neste editorial, a mola-mestra de sua

semantização. Os parágrafos 11, 13, 15, 16 e 25 são exemplos de intertextualidade

explícita; há reprodução de discursos atribuídos a autores nominados ou não.

Não faltarão corôas, premios e arcos triunphaes a Nero14 nem a Calligula15, - nem as musas do Lacio envergonharão-se de cantar esses monstros como disse o poeta

O locutor 1, o editorialista, traz para o seu enunciado o locutor 2, o poeta,

caracterizando o discurso relatado, direto, para com esse discurso confirmar a sua

assertiva: os maus também são laureados, homenageados. Essa era a atitude da Imprensa

Oficial que elogiava, adulava a D. Pedro II, ironicamente considerado como “a sagrada

sabedoria que nos rege”. O intertexto da fala do poeta compara o Imperador D. Pedro II a

duas personalidades históricas: Nero, considerado um tirano, um carrasco monstruoso que

mandou matar a própria esposa e a mãe, foi acusado de ter incendiado Roma e ter

perseguido cruelmente os cristãos e tinha obsessão por aplausos e condecorações; Calígula

fez-se adorar como deus, nomeou seu cavalo como cônsul, foi tirano, louco, cínico,

conforme a História. Portanto, se esses dois “monstros” tiveram coroas, prêmios e arcos

14 Nero- Imperador romano (37-68). Durante os primeiros cinco anos de seu governo foi moderado, devido

aos conselhos do filósofo Sêneca. Levado pelos seus terríveis instintos, tornou-se um tirano ridículo, vaidoso, um carrasco monstruoso. Manda matar sua esposa Otávia para se casar com Popéia; procura matar a mãe que é massacrada pelos pretorianos. Envenena seu irmão. Faz apresentações públicas e exige os aplausos. Quando regressa a Roma vindo da Grécia traz 1800 coroas, pagas principalmente às cidades helênicas. É acusado de incendiar bairros populosos de Roma. Persegue cruelmente os cristãos. Por ser perseguido, atira-se sobre a espada, suicidando-se.

15 Calígula (12-41) – Sucessor de Tibério, devido a uma doença que sofrera na infância tornou-se um verdadeiro louco, tocado pelo delírio das grandezas, um tirano cínico e feroz. Faz-se adorar como deus; nomeia o seu cavalo “Incítatus” como cônsul. Desejava, dizia, ele “que o povo romano tivesse uma única cabeça para a decepar de um só golpe. É assassinado por um guarda pretoriano. Seu nome era Caio César, o apelido Calígula foi dado por causa do calçado militar que usava na infância: Caligoe.

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em seu louvor e foram “cantados” pelas musas, também elogios a D. Pedro podem ser

feitos pela Imprensa.

Em seguida, afirma o autor que dessas baixezas nasce a opressão, e, para

comprovar o que diz, traz um argumento de autoridade: “Tiberio16 foi uma conseqüência

lógica da vilesa dos senadores: ele mesmo exclamou vendo-os prostrados a seus pés: Oh!

Homens talhados para a escravidão!!”

Novamente foi usado o discurso direto: o locutor 2 – Tibério – fala o que o locutor

1 – o editorialista precisa para reforçar a sua idéia: servidão e adulação estão juntas.

Continuando a sua argumentação contra a atitude dos jornalistas aduladores,

Joaquim Felício traz mais dois intertextos, através das citações:

Victor Hugo17 exproba a phrase adulatoria de Bossuet18 – Deus tem na mão o coração dos Reis – disendo “dupla mentira, nem Deus tem mão, nem os Reis coração... O exilado Jersey19 não foi muito exacto: os Reis tem um coração immenso, hypertrophiado quando attendem aos elogios dos seus panegyristas.

Nesses enunciados há dois outros locutores 2: Victor Hugo e Jersey com seus

discursos inseridos no discurso do locutor1: (Joaquim Felício). Novamente, o intertexto é

citado para confirmar o ponto de vista do autor: reis adulados são reis tiranos, “sem

16 Tibério – Imperador romano (Séc. I d. C.). A princípio bom administrador do Império, mudando depois

em cruel e sanguinário. O senado vive, durante cinco anos, aterrado e trêmulo de medo; os carrascos percorriam a Itália e levavam a morte aos mais ricos cidadãos; os denunciadores recebiam em recompensa um quarto dos bens de cada condenado. Foi assassinado por pessoas de sua intimidade.

17 Vitor Hugo – Poeta e romancista francês (1802-1885). Em política foi chefe da esquerda democrática, pai da França, deputado e senador. Em literatura iniciou-se como romântico e lírico, passando depois para o simbolismo. De estilo inimitável, com a melodia e a perfeição da forma, a originalidade e a grandiosidade de pensamento. Entre suas obras: Notre dame de Paris, Lucrécia Borgia, Maria Tudor, Chants du Crepuscule.

18 Bossuet. O maior dos oradores sacros da França (1627-1704). Homem de cultura sólida, de caráter austero, de um catolicismo plenamente ortodoxo. Não teve a preocupação da glória; somente um de seus sermões foi publicado em vida. Escreveu 200 sermões. Foi preceptor de Luiz XIV, para quem escreveu tratado do conhecimento de Deus e de si mesmo.

19 Jersey – Referência não encontrada.

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coração”. Victor Hugo e Bossuet, franceses de prestígio intelectual, ao falarem,

representam uma voz autorizada e isso vem dar maior credibilidade ao que o editorialista

diz.

Para acusar o jornal O Diário de ter feito uma leitura incompleta de editoriais de

O Jequitinhonha, é, novamente, utilizada a intertextualidade, através do discurso

relatado, nesse caso indireto:

Disse um escritor que com uma linha destacada do livro mais ortodoxo se poderia queimar o autor como herege.

Assim como um autor ortodoxo poderia ser queimado como herege, se a leitura de

seu livro fosse fragmentária, também, O Jequitinhonha só foi visto como órgão de

propaganda a favor do Sr. Conde d’Eu, porque O ‘Diário’ só leu um número desse

periódico e, portanto, não compreendeu o pensamento enunciado.

No mesmo editorial, Joaquim Felício anuncia que se o seu jornal fosse proibido de

circular, seriam transcritos os artigos em outros jornais conservadores, de “antes da

metamorphose actual; quando os Gracchos erão Gracchos20 e não Triboulets, quando os

tibunos não eram titeres do paço”, numa alusão aos dois irmãos tribunos de Roma que

pertenciam à classe dos patrícios e se celebrizaram pela sua ação democrática. O primeiro,

Tibério, tendo conseguido passar no Senado uma lei agrária foi assassinado por uma

sublevação de senadores; o segundo, Caio vingou a morte do irmão, restringiu o poder do

Senado e adotou medidas que favoreciam a plebe. Isso provocou revolta no Forum e Caio

Graco foi morto por seus partidários. Triboulets – é uma referência ao bufão,

20 Tibério Graco (133 a. C.) e Caio Graco (123 a. C.) tribunos que se notabilizaram pelos trabalhos de

reforma agrária para redistribuição de terras e restabelecimento da classe média rural. Ambos foram assassinados.

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bobo, ator com papéis de comicidade grosseira nas apresentações textuais na Corte

Francesa (1498-1536).

Joaquim Felício cita também os Lafayetes e Luiz Felippe: Não teremos a

simplicidade dos Lafayetes21 nem confiamos cegamente em Luiz Felippe22, suppondo-a a

melhor das repúblicas possíveis. Lafayetes, numa alusão ao político e general francês

(1557), e o que foi defensor da família real e do regime monárquico e foi preso ao tentar

fugir, depois da queda do regime e ao Rei da França, Luiz Felipe (1830-1848) que

proclamou a 2ª República francesa e foi conhecido como “rei cidadão”. Desapontando, no

entanto, os franceses pois se revelou mais tarde, não um democrata, mas um monarca

autoritário, cometendo vários crimes que levaram o povo à revolução de 1848, em que saiu

derrotado fugindo para a Inglaterra. “Não teremos a simplicidade dos Lafayetes, nem

confiamos cegamente em Luiz Fellipe, supondo-o o melhor das republicas possível.”

Vê-se, enfim, que o sentido deste editorial é construído pela sucessão de discursos

de outros autores, alusões e referências a fatos históricos e personalidades que fazem parte

da História Universal, constituindo esses intertextos atualizações que Joaquim Felício usou

para estabelecer um paralelo entre a realidade da monarquia brasileira e a história de suas

antecessoras no Velho Mundo, selecionando exemplos que prestassem serviço ao seu

objetivo: traçar um perfil do Imperador do Brasil como um monarca que não merecia os

elogios que recebia, que, como ditador, tirano absolutista, deveria perder o seu trono, em

favor da instalação do regime republicano.

21 Lafayete – político francês, comandou a guarda nacional na época da Revolução de 1830, recebeu Luiz

Felipe no Hotel de Ville de Paris, passando depois a militar na oposição monarquista. 22 Luiz Felipe – reinou na França de 1830 a 1848. Foi levado ao trono por uma revolução liberal, começou

como um democrata e foi conhecido como “rei-cidadão”. Lafayette diz-lhe –‘Senhor, vós sois a melhor das repúblicas! A partir de 1836, Luiz Felipe começa a mostrar suas intenções: ser autoritário e governar com liberdade. Houve descontentamento geral e em 1848 surge a revolução. Luiz Felipe é vencido. Proclamou-se a República.

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O JEQUITINHONHA

Ao publico.

Estando marcada a ultima dominga de Janeiro proximo para a eleição de eleitores de deputados à Assembléia geral ficou suspenso o recrutamento desde o dia 1 do corrente em virtude da terminante disposição do art. 108 da lei de 19 de agosto de 1846.

Outrossim pelo mesmo artigo da referida lei ficão prohibidos os arrumamentos de tropas e ostentações de força militar no dia da eleição primaria á uma distancia menor de uma legua do lugar da eleição.

_________________________

DIAMANTINA, 27 DE DEZEMBRO DE 1868.

Apreciando os recentes

acontecimentos da Hespanha, diz o Sr. Ch. De Mazade:

« ... Não foi certamente por excessos de liberalismo que cahio a rainha da Hespanha. Porque forão desthronisados esses principes, que hoje protestão na Europa, e constituem uma verdadeira tribu de vagabundos, á espia de um throno onde se assentem? É que fecharão os olhos á todas as luzes e nunca souberão ceder quando era tempo; é que quizerão obstinados antepor sua vontade e caprichos à razão e todo o mundo. »

« E onde encontraremos um principe desthronisado por ter sido sincera e lealmente liberal, por ter seguido as inspirações da opinião , por ter sabido deixar-se levar pelo movimento social? A rainha Isabel vai augmentar o cortejo das realezas do exilio, ultimo e frisante imagem desses monarchas enganados, que se julgão garantidos pela resistencia, que confiados na força bruta para absolver-lhes os crimes cavão sua ruina. »

Não nos parece que o Sr. de Mazade escrevera estas palavras com applicação ao Brasil?

Isabel II fôra elevada ao throno pelas

baionetas de um exercito liberal; tambem o Sr. D. Pedro II foi elevado ao throno pelo partido liberal, que elle depois trahio por um desses actos de ingratidão proprios da casa bragantina.

O Sr. D. Pedro II, como a rainha da Hespanha, tem fechado os ouvidos às reclamações patrioticas dos brasileiros, não vê, senão pelos olhos dos cortesãos, que corromperão-lhe o espírito e o coração com o nocivo veneno da lisonja, não attende senão aos interesses da côrte.

Quando os brasileiros, estragados com lutas estereis pedem a paz, a harmonia, a confraternização, o Sr. D. Pedro II os divide em partidos rivaes em guerra sem treguas. Quando os brasileiros pedem auxilio à industria, vias de comunicação melhoramentos moraes e materias, seu capricho e obstinação empenha o paiz em uma guerra desastrada, que consome todas as duas forças.

Tem sido a politica do Sr. D. Pedro II enfraquecer o paiz, corromper os caracteres mais distinctos, desharmonisar todas as forças políiticas, concentrar todos os poderes em sua pessoa, convergir toda a actividade social em um centro único, matar o individualismo, aniquilar os elementos vitaes da localidade para consagrar o absolutismo.

Tudo isso realisou a sombra do systema das ficções que nos rege.

Ultimamente, depois de absorver em si todos os poderes por uma politica manhosa, lançou a mascara.

Hoje surdo às vozes da opinião, e confiado nas forças artificiaes de um partido, que julga seu fiel alliado no desmoronamento das liberdades publicas, segue impavido na senda do absolutismo de facto. Ministros desprestigiados no conceito do paiz são cegos instrumentos de suas vontades caprichosas. Trahido pelo imperador, que sempre obstou à realização de suas nobres aspirações, o partido liberal hoje também o olha sem confiança.

Já se forão os tempos em que o povo via nos monarchas entidades sagradas, na realeza uma garantia de estabillidade. Os vaivens do destino que os tem precipitado dos thronos desenganarão os mais obseccados. O

estado de atraso e miseria em que vivemos faz-nos invejar a sorte de nossas irmãs, as republicas visinhas, que vão sempre em caminho do progresso. Illude-se o Sr. D. Pedro II, quando com ideias anchronicas, dos seculos passados julga-se bastante forte para supplantar a soberania popular. Assim, pensarão na França, Luiz XVI, Carlos X, Luiz Felippe, assim pensou Isabel II da Hespanha, e seus thronos forão pulverisados pelo sopro popular.

Vossa soberania de direito divino é uma mentira, como todas as invenções do absolutismo.

Na mesma China que dizeis ser a terra classica do absolutismo, já disse um de seus sabios da antiguidade, Mengeu-Iset: « O povo é o que há de mais nobre ao mundo, o principe é o que há de menos importancia. Deus vê pelos olhos do povo; Deus ouve pelos ouvidos do povo. » Locke definia a revolução « o direito de appelar para Deus. »

Hoje o partido liberal do Brasil, indignado de tanto eynismo, tambem arrancou a mascara. Não queremos o poder, repetiremos sempre, não combatemos para suplantar nossos contrarios.

Se, por um d’esses factos extraordinarios inexplicaveis, que soem acontecer no Brasil, contra todos os princípios da previdencia humana, o Sr. D. Pedro II lembrar-se de retirar do poder o partido actualmente dominante, protestamos em nome dos liberaes não apoiaremos qualquer outra politica enquanto durar o presente estado de coisas.

Já estamos enfastiados com as contínuas mystificações dos 28 anos do segundo reinado. Os homens que desenteressadamente meditão sobre os negocios do Brasil se convencem de que com o Sr. D. Pedro II no throno nunca o partido liberal poderá realizar suas aspirações. Temos princípios, e não queremos continuar a servir de instrumentos do imperador nos interesses da realeza.

Não são nossas palavras nascidas do despeito; são expressão das convicções sinceras.

Queremos o engradecimento de nossa patria e a fraternidade de todos os brasileiros.

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4.2.1.3. Editorial de 27-12-1868 – Crítica ao governo absolutista de D. Pedro II

Novamente, a intertextualidade toma a forma de um discurso direto, sendo a fonte

expressa do intertexto o Sr. Ch. De Mazade, que analisa as causas da queda de monarcas,

apontando a insensibilidade deles às aspirações do povo como a grande razão de terem

perdido seus tronos e estarem soltos no espaço “à espia de um trono onde se assentem”,

como afirma o comentarista. O exemplo citado é o da Rainha da Espanha, Isabel II, numa

nova referência intertextual:

Apreciando os recentes acontecimentos da Espanha, diz o Sr. Ch. De

Mazade: “(...) não foi certamente por excessos de liberalismo que cahio a rainha da Hespanha.21 Porque forão desthronisados esses prícipes, que hoje portestam na Europa, e constituem uma verdadeira tribu de vagabundos, à espia de um trono onde se assentem? É que fecharão os olhos à todas as luzes, e nunca souberão ceder quando ainda era tempo; é que quiserão obstinados antepor sua vontade e caprichos à razão de todo o mundo. E onde encontraremos um príncipe desthronisado por ter sido sincera e lealmente liberal, por ter seguido as inspirações da opinião, por Ter sabido deixar-se levar pelo movimento social? A rainha Isabel vai augmentar o cortejo das realezas do exílio, último e frisante imagem desses moanrcas enganados, que se julgão garantidos pela resistência, que confiados na força bruta para absolver-lhes os crimes cavão sua ruína.

Comentário e aplicação do fato, pelo editorialista Joaquim Felício dos Santos,

estabelecem entre Isabel II e D. Pedro II, quanto ao absolutismo, à indiferença às

reclamações do povo, tudo isso causado pelos elogios e adulações dos súditos:

Não nos parece que o Sr. De Mazade escrevera estas palavras com aplicação ao Brasil? Isabel II fôra elevada ao trono pelas baionetas de um exército liberal; também o Ser. D. Pedro II foi elevado ao trono pelo partido liberal, que elle depois trahio por um desses atos de ingratidão proprios da casa bragantina.

21 Isabel II – rainha da Espanha, filha de Fernando VII. Teve sua maioridade em 1843. A Espanha foi

dividida em dois partidos: os carlistas defendiam os direitos de D. Carlos para Rei e os cristinos – os direitos de Isabel II.

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O Sr. D. Pedro II, como a rainha da Hespanha, tem fechado os ouvidos às reclamações patrióticas dos brasileiros, não vê senão pelos olhos dos cortesãos, que corromperão-lhe o espirito e o coração com o nocivo veneno da lisonja, não attende senão aos interesses da côrte.

No parágrafo 14, nova alusão a reis da Europa:

Ilude-se o Sr. D. Pedro II, quando com ideias anachronicas, dos seculos passados julga-se bastante forte para supplantar a soberania popular. Assim pensarão na França Luiz XVI, Carlos X e Luiz Felippe, assim pensou Isabel II da Hespanha,. e seus thronos forão pulverisados pelo sopro popular.

No parágrafo 15 e 16, Joaquim Felício se dirige a D. Pedro, acusando-o pelo

absolutismo e para reforçar a sua crítica, cita discursos de personalidade de reconhecido

mérito, filósofos, um chinês e um inglês, como argumentos de autoridade, mais uma vez,

construindo o sentido, a partir da intertextualidade:

Vossa soberania de direito é uma mentira como todas as invenções do absolutismo Na mesma China que dizeis ser a terra clássica do absolutismo, já disse um de seus sábios da antigüidade, Mengue Isen22. “O povo é o que há de mais nobre no mundo, o príncipe é o que há de menos importância. Deus vê pelos olhos do povo. Deus ouve pelos ouvidos do povo.

Locke23 definia a revolução “o direito de appelar para Deus.”

22 Mengue Isen – um dos principais propagadores do Confucionismo (372 a C.) preocupava-se com o

problema do bom governo, fundamentou a doutrina num conjunto de normas morais coletivas orientadas pela razão e pela retidão. Somente assim a sociedade permaneceria igualmente afastada da tirania e da anarquia, pensava ele.

23 Locke – filósofo inglês (1632-1704) político ativo, escritor cujas obras geraram controvérsias na Inglaterra e toda a Europa.

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O JEQUITINHONHA

Ao publico.

Estando marcada a ultima dominga

do corrente mez para a eleição de eleitores de deputados à Assembléia geral ficou suspenso o recrutamento desde o dia 1 do de dezembro p.p. em virtude da terminantes disposição do art. 108da lei de 19 de agosto de 1846.

Outrossim pelo mesmo artigo da referida lei ficão prohibidos os arrumamentos de tropas e ostentações primaria á uma distancia menor de uma legua do lugar da eleição.

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DIAMANTINA, 24 DE JANEIRO DE 1869.

No longo e doloroso peregrinar da

civilisação um grande desvio se observa – a audacia, a perfidia e a hypocrisia hão conseguido, com sucesso mais ou menos duradouro, turvar no espirito dos povos a nobreza de seus sentimentos, sublimidade de suas aspirações.

Cesar alevantado nos favores do povo conspira; e triumpha do patriotismo de Catão, apunhalando a liberdade romana.

Cromwel, Bonaparte! Aventureiros audazes, e felizes, que, sequestrarão as liberdades da patria, uzurpando os direitos magestaticos da nação.

A soberanis dos povos está, perante a história em luta permanente com as paixões grosseiras, as ambições insensatas dos que se considerão – predestinados – ao mando absoluto. Por outra: fôra impossível estreitar-se o abysmo entre a tyrannia e a liberdade.

Na vida política do Brasil desenhão-se, à luz da evidencia, essas tendencias oppostas, à que alludimos, entre o paiz e « o supremo poder. »

O 1º e o 2º reinados resumem-se no embate franco, ou de emboscada de taes tendencias.

A nação confiante, magnanima em sua dedicação tem sido suffocada por um elemento estranho, que a amesqunha – o Cesarismo.

No 1º período os golpes que soffrera em suas liberdades forão desferidos por mão atrevida: no ultimo, o que atravessamos, as tramas machiavelicas, « as recordações » da politica de Luiz Phelippe, tentão a degradação dos caracteres, a materialisação do espirito nacional, para na perversão dos costumes, na indifferença da opinião, alçar-se bem alto um absolutismo tacanho e esteril.

Esclarecido pelo desfecho do drama no 1º reinado, o Cesarismo, no 2º troca as vestes de cavalheiro pela mascara de Tartufo.

Appellando para uma legalidade em que não crê, e que desdenha, seu pensamento invariavel, seu empenho indefesso há sido a mistificação dos partidos, agorentando, sophisnando, e inutilisando a constituição, na qual a nação, tão à largas, aquinhoou o poder irresponsável.

Entretanto houve um momento, em que a democracia podia triumphar. Mas como na Hespanha de nossos dias, como na França, de 1830 os Prins e Laffayetes afogarão, no Brasil o movimento nacional, supprimindo as naturaes consequencias que delle devião decorrer, e unicas que o justificavão.

O 7 de abril de 1831 é uma semi-revolução, que poderia tornar-se completa, se vingassem integralmente as aspirações reformistas.

Deixou-se escapar a occasião; e esse erro fatal legou-nos todos os males do presente.

A França que em todo o curso deste seculo tem-se achado em acto de revolução, ora palpitante, ora suffocada pela manopla do despotismo, é a prova em acção de que as emi-revoluções são sempre funestas e prejudiciais aos motivos que as determinarão. No dia em que Carlos X cahio, a democracia deveria Ter surgido do solo francês.. A abdicação da revolução na pessoa do rei – cidadão chamou de novo ao paiz calamidades, e tornou inevitavel a catastrophe de 1848, no meio da qual vimos – invalido – um rei ingrato que perdia o diadema, e errante fugia por montanhas e selvas, perseguido pelas maldições do povo, que trahira...

Os partidos, com os homens, educão-se com as lições da experiencia.

Hoje seria impossivel a illusão para o Brasil.

Quem observando a nossa marcha politica deixará de enxergar a conspiração constante do « imperialismo » contra as instituições?

Esse estado de cousas é assustador. E attento o falseamento do systema, o

servilismo que vai invadindo as moleculas do corpo social será para estranhar-se que em um momento de « spleen » se decapite no governo actrual o partido dominante, e por mero-deleite de variedade se levante nova politica?

É contra uma tal eventualidade cuja realisação na 1ª parte depende simplesmente da vontade irresponsavel, que em nomee das ideias, da historia, e da honra do partido liberal protestamos.

Seria o suicidio para elle se enexperiente ou ambicioso, chamado ao poder, por elicito de « uma escamotagem, » com tantas outras, se resignassse a acompnahar as tendencias do – Cesarismo » -

Não, não queremos o poder, salvo com a segurança do triunpho dos nossos principios. Toda a transacção será traição, e attentado por parte daquelles que a estipularem.

Venha o poder; mas cortejado pelas reformas que constituem, e garantem o imperio da democracia; se não, não.

Outra não pode ser a legenda do partido liberal. Crentes na sabedoria, e patriotismo dos nossos chefes temos confiança que elles a saberão respeitar.

Soldados e chefes, lembremo-nos todos daquellas palavras solemnes de Laboulaye.

« Há quarenta annos que, em sua linguagem de propheta, Reyer Collard annunciava à França; e ao mundo que a onda da democracia subia como enchente impetuosa. Desde então o rio não entrou mais no leito. Hoje toda a questão é organisar a democracia, não incerrando-a em formas esterieis, mas quebrando os laços que a manietavão, e habilitando-a viver vida própria. »

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4.2.1.4. Editorial de 24-01-1869 – Crítica ao cesarismo do Governo Imperial de

D. Pedro II

Joaquim Felício recorre a figuras históricas na semantização de seu discurso

político, fazendo referência a César, Cromwel e Bonaparte como exemplos de monarcas

cuja audácia, perfídia e hipocrisia conseguiam sequestrar as liberdades do povo e cita,

também, Catão, mas como exemplo de patriotismo romano, em oposição a César.

Compara a vida política do Brasil à dos países governados pelos usurpadores da liberdade:

“Na vida política do Brasil desenhão-se à luz da evidência, essas tendências oppostas, à

que aludimos, entre o paiz e o supremo poder. Faz alusão, novamente, a Luiz Felipe, Rei

da França, aos Prins e Lafaietes franceses, a Tartufo, exigindo do seu leitor uma

recuperação do sentido da História para o entendimento do editorial.

César alevantado nos favores do povo conspira, e triunfa do patriotismo de Catão24, apunhalando a liberdade romana.

24 Catão: 234-149 – General e estadista romano. Foi questor, pretor, edil e cônsul. Eleito censor combateu a

inovação dos costumes e o luxo excessivo, criando pesados impostos sobre os vestidos ricos e o uso de carruagens. Foi governador de Sardenha e embaixador em Cartago, cuja destruição defendeu mais tarde. Era uma pessoa de costumes austeros. Deixou uma admirável obra histórica e sobre outros assuntos.

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Cromwel25, Bonaparte26, aventureiros audazes, e felizes. Que sequestrarão as liberdades da pátria, usurpando os direitos magestáticos da nação. (...) A nação confiante, magnânima em sua dedicação tem sido sufocada por um elemento estranho, que a amesquinha – O Cesarismo (...) no ultimo [período do império], o que atravessamos, as tramas machiavelicas27, as “recordações” da política de Luiz Philiphe1 tentarão a degradação dos caracteres... (...) Esclarecido pelo desfecho do drama no primeiro reinado, o Cesarismo no 2º troca as vestes de cavalheiro pela máscara de Tartufo28. (...) Entretanto houve um momento, em que a democracia podia triumphar. Mas como na Hespanha de nossos dias, como na França de 1830 os Prins e Laffayetes afogarão no Brasil, o movimento nacional, supprimindo as naturaes conseqüências que delle devião decorrer, e únicas que o justificavão. (...) No dia em que Carlos X29 cahio, a democracia deveria ter surgido do solo francês... (...) Há quarenta annos que, em sua linguagem propheta, Reyer Collard30 annunciava à França; e ao mundo que a onda da democracia subia como enchente impetuosa...

E concluiu o autor:

Os partidos, com os homens, educão-se com as lições da experiência.

25 Cromwell – Estadista inglês, membro do Parlamento, 1590-1658 – opôs-se às medidas do Rei Carlos I, a

quem combateu e tornou prisioneiro. Carlos I foi julgado e executado. Morto Carlos I, o Parlamento aboliu a Realeza, bem como a Câmara dos Lordes e proclamou a República Cromwell. Seu governo foi impopular, criou inimigos que Cromwell combateu vigorosamente. Fez a dissolução do Parlamento, expulsou os parlamentares, insultou-os grosseiramente, chamando-os de ladrões, covardes, fechou a porta do Parlamento e pos a chave no bolso. Governou de forma tirânica, era vulgar, violento, religioso fanático. Mas era bom soldado, prático, organizado. Tornou-se ditador.

26 Bonaparte (Napoleão) – Imperador dos Franceses – 1769-1821. Em uma Revolução dirigiu o assédio a Toulon e foi promovido a general de brigada. Em 1804 foi aclamado imperador pelo Senado e pelo povo. A Europa monárquica-hereditária se rebelou. Apossou-se de Nápoles, expulsou os Bourbons, subjugou e reorganizou a Alemanha e criou a confederação do Reno. Venceu a Prússia, determinou o bloqueio continental, invadiu a Espanha e Portugal, prendeu o Papa, repudiou sua esposa, a Imperatriz Josefina, casando-se com Maria Luiza, arquiduquesa da Áustria. Em 1812 invadiu a Rússia. Em 1814, viu-se obrigado a abdicar e retirar-se para Elba, donde saiu para reorganizar os seus exércitos, sendo vencido por Blucher em Waterloo. Preso foi recolhido a Santa Helena, onde morreu.

27 Maquiavel – autor de O Príncipe onde expõe a doutrina política que coloca o estado como senhor absoluto do indivíduo, dizendo que o Estado é o bem soberano a que se devem sacrificar todas as causas e em cuja conservação se podem licitamente empregar todos os meios, inclusive pôr de lado a moral. Aos poucos o termo: maquiavelismo, tramas maquiavélicas passaram a significa preparações de planos diabólicos, vergonhosos.

28 Tartufo – Falso devoto, fingido, hipócrita, é personagem da comédia de Le Tartuffe de Moliere. 29 Carlos X – Com a morte de Luiz XVIII, Rei da França (1824), sobe ao trono seu irmão Carlos X.

Inteligente mas fraco, os ministros dirigem a política. Suspendeu a liberdade de imprensa, dissolveu a câmara, mudou o sistema eleitoral com decretos inconstitucionais e intempestivos. Foi exilado pela revolução de 1830, feita pelos realistas liberais, unidos aos republicanos e bonapartistas.

30 Royer Collard (Pierre Paul) político francês, advogado, partidário da monarquia constitucional, chefe dos deputados doutrinários, redigiu dos 221 (1830). Professor de História da Filosofia na Sorbonne 1811-1816.

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Alusões a fatos históricos, personalidades, são formas da heterogeneidade

‘constitutiva’ (intertextualidade em sentido amplo), não há um enunciado como intertxto já

existente, mas o ‘já-dito’ está implícito e é fundamental na construção da semântica do

texto.

O discurso sobre a realidade político-administrativa brasileira se funda na

realidade da política da Europa, antiga e moderna, além das alusões significativas a

Maquiavel (tramas maquiavélicas) e à personagens da comédia de Moliére: Le Tartufee,

significando homem hipócrita, fingido, no texto, sempre em relação a D. Pedro II e seus

seguidores.

Cabe, mais uma vez, ao leitor-interlocutor entender o sentido do texto, através do

seu conhecimento das alusões feitas, dos fatos aludidos, das personalidades e obras trazidas

ao novo texto, à nova situação interacional pelo editorialista, o que caracteriza a

intertextualidade como fundamento do sentido, dos editoriais.

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O JEQUITINHONHA _________________________ DIAMANTINA, 7 DE MARÇO

DE 1869.

O servilismo, quietum servilium de Tacito, é e foi em todos os tempos, o supremo almejo do despotismo. Reinar sobre um povo de escravos, imperar sobre cadaveres ambulantes, instituir o mutismo com a mola real da governação depois de estabelecer o indiferentismo, como a primeira virtude do cidadão, eis ao que tendem sempre os despotas.

Antes porém de conseguir-se esse resultado, antes do completo narcotismo do povo há um período afllictivo, espectaculo tristíssimo que confrange o coração patriotico... É o dilírio, dos fascinados, é a jactitação tripudiante dos lacaios, é a ridícula intolerância dos eunucos do paço.

Assumpto digno de observação! Qualquer que seja o genero de embriaguez este periodo manifesta-se sempre e invariavelmente. Lêde o Diario do Rio de Janeiro: vêde como o desgraçado possesso em furor arremessa-se contra a democracia que ouza contestar a Cesar a sua natureza de emanação da divindade, de providencia e que vela incessantemente sobre os destinos do paiz, equilibrando e harmonisando os poderes e os partidos; Vêde como em relação à guerra diz a imprensa imperialista:

« Desde que o imperador é o representante da nação, o que ele quer devemos querer. »

A sciencia descobrio modernamente uma singular affecção nervosa caraterizada por convulsões desordenadas e vesania transitória.

Chama-se a esse estado morbido – bypnoptismo.

Os nossos cortezãos, heliosistas decididos, cahirão em furor hypnoptico, em consequencia da sua adoração imprudente; lastimemos os coitados.

Panen et circenses – era o narcotico dos horriveis Cesares romanos. Festa, Farina, Furca, plagiavão os Bourbons de Napoles. O Jesuitismo era o systema dos Bourbons de França. Austerlitz, Marengo, Wagran era o de Napoleão. Tudo isso era dado ao povo em troca de liberdade e todas essas nações passarão pela adulação frenetica e apodrecerão na escravidão.

Para conseguir igual fim, o nosso Cesar não tem confiança, em um systema único: como os medicos discrentes atirou-se à polypharmacia. Cruzes, fitas, chaves, bugigangas, officios, amistosos, beneficios pingues, o usofructo de um poder nominal, a especulação com as paixões partidárias e com os odios pessoaes, a glorificação dos aduladores, como estimulo aos remissos mais do que como premio da lisonja, a perseguição dos recalcitrantes pelos seus servos, emquanto elle ostenta calculada magnimidade e estende a mão aos seus detractores convertidos eis em poucos traços delineado o mesquinho governo pessoal heterotropo, que nos acabrunha na livre America.

Tambem um dia Cesar sonhou com a gloria militar para coroar a obra. Soldado bisonho enfiou as botas napoleonicas, pigmeu sopesou a espada de Carlos Magno e cercado de Roldões caricados revistio-se do título de D. Pedro o Uruguayano, como um dos seus avós fôra Affonso o Africano.

Malfadada empreza! Aniquilou as finanaças de seu

paiz, dizimou a população viril,cobrio de luto as famílias e, precipitando-se em um cometimento impossível e odioso, perdeo as sympathias das nações civilisadas e começou a desacreditar-se no animo do seu povo.

Debalde os poetas mercenarios, o Instituto dos laureados, os vis instrumentos da dictadura, e os renegados epicuristas apregoão suas virtudes: os homens sensatos passão silenciosos e creem tanto

n’esses elogios como na dor das carpideiras stipendiadas, que outr’ora acompanhavão o feretro dos potentados. Debalde o glozador de sobremezas personificava em atrevida prosopopéa a cataracta de Paulo Affonso e mostrava o gigante do S. Francisco « enfiado » diante da magestade de D. Pedro e terminava.

E la das plagas do janeiro O monarcha brazileiro Quis... bastou... veio ver-te Em vão os sabios e artistas

officiaes, dedicão suas obras em prefacios pomposos « ao muito alto e poderoso » principe protector das artes e das sciencias. Em vão o instituto extasia-se lendo a quadrinha Imperial ao « fiel povo Ituano » e a compara com o mimoso canto derradeiro de Marco Aurelio ou com as strophes de Augusto.

Em vão o declarão mathematico, juris-consulto, medico, theologo, astronomo, chimico, physico, estadista, botanico, poeta, cirurgião, economista, literatro, crítico, archeologo, versado nas letras divinas e humanas, conhecedor « de omni re scibili e, quibusdam aliis »

... « Ora, sendo assim, que nos » « importa a liberdade... volvemos a idade de ouro » governando Saturno, » exclamão em côro os aduladores, as ingratas andorinhas de Tobias.

Outros menos descarados, dizem: « O que querem os democratas? O nosso systema de governo não é monarchico constitucional hereditário e representativo; querem mais algum adjectivo? Não temos poderes divididos e harmonisados, servindo a corôa apenas de equilibrista? O rei reina e o povo governa eis a theoria.

Mas o povo, ao menos o das provincias, já tem reconhecido que aquella é a theoria, mas que a pratica é outra: eil-a.

O rei governa. O ministro reina. E o povo... paga o imposto e

geme.

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4.2.1.5. Editorial de 07-03-1869 – Crítica ao Diário do Rio de Janeiro pela sua

bajulação ao Governo Imperial

O autor, neste editorial, inicia o seu discurso com um entimema, que é uma

proposição, que procura confirmar através de exemplos. Mas, até mesmo para a sua

declaração inicial de opinião, ponto de vista, ele recorre à heterogeneidade ‘constitutiva’,

intertextualidade em sentido amplo e a ‘mostrada’ citando fragmentos de intertexto

(hipoteticamente, conhecidos pelo interlocutor), em língua latina, confirmando, mais uma

vez, o seu conhecimento da cultura erudita.

O servilismo, o ‘quietum servilium’ de Tácito31, é e foi em todos os tempos o supremo almejo do despotismo. Reinar sobre um povo de escravo, imperar sobre cadaveres ambulantes...

No final do 2º parágrafo, Joaquim Felício recorre à referência:

É o delírio dos fascinados, é a jactitação tripudiante dos lacaios, é a ridícula intolerância dos eunucos do paço.

Entender o sentido completo do fragmento exige que se compreenda a alusão aos

“eunucos” – homens anulados e subservientes, como os homens castrados que vigiavam os

haréns orientais – numa referência aos aduladores e defensores de D. Pedro II,

estabelecendo uma comparação entre essas duas classes.

No parágrafo 8, para explicar os métodos adotados por D. Pedro II para anular as

reações populares, hipnotizar mentalmente o povo, reduzir os brasileiros a “cadáveres

31 Tácito (Cornelius Tacitus) – Notável historiador e estilista latino (55-117). Foi político, escritor, deixando

grande obra. O seu estilo foi considerado o mais original e pessoal de toda a literatura latina. Foi um historiador sincero e imparcial.

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ambulantes”, implantar o servilismo, ‘o quietum servilium’, o editorialista vale-se da

intertextualidade, mais uma vez, e refere-se aos métodos para submissão dos povos,

adotados pelos Césares Romanos, pelos nobres Bourbons de Nápoles e França, por

Napoleão nas vitórias contra ateus e austríacos em Austerlitz, Marengo e Wagram. Todas

as referências reforçam o sentido de aniquilamento da vontade popular, sua submissão ao

Rei, às autoridades, que Joaquim Felício denuncia na política do Brasil.

Como se pode observar:

Panem et circenses era o narcótico dos horríveis Césares romanos: “Festa Farina Furca plagiavão os Bourbons de Nápoles. O Jesuitismo era o sistema dos Bourbons de França: Austerlitz, Marengo, Wagram era o de Napoleão. Tudo isso era dado ao povo em troca da liberdade e todas essas nações passarão pela adulação frenetica e apodrecerão na escravidão.

No parágrafo 10, há alusões, que combinadas, tornam o enunciado denso e sua

compreensão implica, também, o resgate de fatos históricos, também europeus, como na

maioria das referências usadas por Joaquim Felício:

Tambem um dia Cesar sonhou com a glória militar para coroar a obra. Soldado bisonho enfiou as botas napoleonicas, pigmeu sopesou a espada de Carlos Magno32 e cercado de Roldões33 caricatos revestiu-se do titulo de D. Pedro o Uruguaiano, como um dos seus avós fôra Affonso o Africano34

32 Carlos Magno – Rei dos francos e Imperador do Ocidente (742-814). Em seu longo reinado (46 anos)

guerreou contra todos que ameaçavam o seu governo. Suas forças bem organizadas e o seu gênio de esclarecido político e militar garantiram-lhe a dominação da maior parte da Europa. Foi sagrado pelo papa Leão III, Imperador do Ocidente. Foi talvez a maior figura da Idade Média, inspirando escritores, especialmente poetas.

33 Roldão – Pertencente ao exército de Carlos Magno nas guerras com a Espanha sendo assassinado (778) pelos bascos. Era sobrinho de Carlos Magno. Sua atuação deu origem a canção de gesta francesa “Chanson de Roland”. É considerado modelo dos paladinos.

34 Afonso o Africano – Afonso V – O africano (1438-1481). D. Pedro, tio de Afonso V, governou Portugal em nome do sobrinho. Nesse tempo os portugueses conquistaram no norte da África três cidades, sendo D. Afonso cognominado O africano.

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Com essas alusões, Joaquim Felício critica a participação, a atuação de D. Pedro

II nas guerras cisplatinas, a sua política com os países vizinhos, criando uma rede de

referências a fatos e personalidade históricas que resulta na construção de uma ironia ao

Imperador “guerreiro”.

No final do parágrafo 15 e 17, Joaquim Felício critica o Imperador D. Pedro II

como poeta elogiado por seus aduladores, os cortesãos:

Em vão o instituto extasia-se lendo a quadrinha imperial ao “fiel povo Ituano” e a compara com o mimoso canto derradeiro de Marco Aurélio35 ou com as estrofes de Augusto36.

Novamente, Joaquim Felício recorre à História de Roma e cita os nomes de dois

imperadores – Marco Aurélio e Augusto – a quem os aduladores de D. Pedro II o teriam

comparado, pelo fato de Ter escrito algumas “quadrinhas” ao povo de Itu. Essa referência

constitui uma ironia feita pelo editorialista, reforçando a idéia de que D. Pedro II era

bajulado pelos seus seguidores, a ponto de verem nele qualidades de que não era

possuidor.

Também diante da figura de D. Pedro, “versado em letras divinas e humanas”,

conforme seus aduladores, Joaquim Felício “reproduz” um discurso hipotético desses

próprios bajuladores do Rei e nele faz alusões ao deus Saturno e à figura bíblica de

Tobias.

Ora, sendo assim, que nos importa a liberdade... volvemos a idade de ouro, governando Saturno37, exclamão em côro os aduladores, as ingratas andorinhas de Tobias38.

35 Marco Aurélio (161-180) – Imperador Romano filósofo, dotado de grandes qualidades morais. 36 Augusto – Imperador Romano (31 a. C. – 14 d. C.). O título Augusto dava-lhe uma auréola sagrada. Foi

proclamado pai da Pátria, adorado como um deus. Seu Império foi considerado o mais brilhante. 37 Saturno – deus primitivo e, expulso do Olimpo, por seus filhos, organizou uma sociedade numa região de

extensos bosques habitados por faunas e ninfas e deu-lhes leis, constituindo o início de Roma. Seguiu-se tanta paz e fartura que deram a esse período o nome de “idade do ouro”, o do reinado de Saturno e Roma a cidade “Satúrnia”, na alusão feita por Virgílio.

38 Tobias – figura bíblica, do Antigo testamento que tratava de andorinhas, quando as fezes de uma caíram-lhe nos olhos, tornando-o cego. Foi curado por milagre de Deus.

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Assim, este editorial também é um desfiar de intertextos, alusões, referências,

todos marcados pela erudição do editorialista que, com facilidade, enxerta nos editoriais

uma grande quantidade de informações transplantadas da História, dado o vasto

conhecimento enciclopédico que aciona como escritor culto.

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O JEQUITINHONHA

DIAMANTINA, 6 DE MAIO DE 1869.

Depois de muito aguçada a curiosidade publica, no dia 11 de Maio de 1869, anno da graça, abrirão-se de par em par as portas do parlamento.

Foi mais um dia de festa accrescido na folhinha de Laemert.

O povo, que vai cahindo de dia à dia na desillusão tremenda dos factos, vendo à luz da experiencia que as promessas do governo são completamente mentidas, e os programmas « imperiaes » são « programmas de cartazes, » que se soprão à canudos, resolveu tomar a coisa como ella é na realidade.

Vestio sua melhor roupa de ver a Deus, e foi acotovelar-se nas ruas, para ver passar o prestito carnavalesco dos « catopés » da monarchia.

S. M. com todo seu « trem » poz-se na rua, e ficou « azul » de ver o riso « amarelo » do bom povo « carioca »

O povo mostrava os dentes! Subindo os degraus do throno

com as pernas tropegas querendo encontrar firmesa no chão « movediço » o rubor a tingir-lhe as faces, os olhos baixos, desenrolou com mão tremula um pergaminho, que trazia apertado á seu « peito de tucano » com voz de « canna rachada » recitou os seguintes trechos:

« Augustos e dignissimos Srs, representantes da nação – A reunião da assembléia geral, sempre grata para mim, desperta em todos os brasileiros lisongeiras esperanças. Nunca precisou mais o governo do auxílio de vossas luzes e patriotismo. »

Representantes da nação! Palavra de escarneo atirada às bochechas do paiz, depois de comprimir-se todas as valvulas onde podia ter respiro a sua vontade!

Amordação a liberdade, algemão os pulsos do cidadão, armão a dictadura, dimitem o funccionario publico, corrompem os magistrados, recrutão os adversarios, fazem uma camara de « escravos » e

proclamão os « designados da policia « augustos e degnissimos Srs. Representantes da nação! »

«A reunião da assembléia geral desperta em todos os brasileiros lisongeiras esperanças” »

Não se illuda o thròno, como não se illude o povo.

A esperança, com este reinado, está morta no coração nacional, e as vinte provincias do Imperio já suspirão para que chegue a desejada hora de sua emancipação.

Um deputado que parte é mais um actor contractado para a grande comedia nacional, é um gladiador que vae para o torneio imperial, um membro do Jockey-club: nada mais.

Em vez de emitir bonds, papel-moeda, fazer contrato de dócas, o Sr. V. de Itaboraly (perdoe que um neophyto queira aconselhar o Messias financeiro) podia dar um córte n’uma insignificante « bagatella » de 730.000 de despesas com senadores, deputados, e respectivas ajudas de custo.

Não precisamnos d’isso. Disse S. Magestade. «Tenho a maior satisfação em

annunciar-vos que a tranquilidade publica permanece inalteravel, graças à boa indole de nossos concidadãos, seu amor às instituições e respeito às leis. »

Seria necessario ter os ouvidos surdos aos gemidos do paiz, estrangulado pelas garras sanguinarias dos « thugs » d’esta actualidade nefasta, para diser-se do alto do throno « – a tranquilidade publica permanece inalteravel! »

Mas não... S. M. vê e ouve perfeitamente, e se compraz com a representação d’estas scenas, ensaiadas no seu próprio gabinete. Se assim não fosse, estamos certos, elle já teria enxotado das cadeiras do poder esses carrascos sanguinarios de seus mesmos concidadãos.

Pois S. M., não lê os jornais publicos, onde de dia á dia se revelão occurrências espantosas, e que a mente humana possue-se de horror, por ver de quanto é

capaz a perversidade de seu semelhante?

S. Christovão é uma forja de raios, e os « Cyclopes » trabalhão continuadamente debaixo das ordens do « Vulcano » imperial.

Mui amargas provanças tem produzido no paiz a instituição já velha e caduca da monarchia e dos reis! Elles são « na ordem moral o que os monstros são na ordem physica. As Côrtes são a officina de todos os crimes. A historia dos reis é o martyrologio das nações. »

Povo! – dizia Guadet – eis ahi a eloquencia dos tyrannos: abafar os accentos: do homem livre, para com o silencio cobrir seus crimes!

Reina em verdade a paz no Imperio; porém é a paz de Varsovia. –

Continuou S. Magestade: « São amigaveis as

reclamações do Imperio com os governos das nações extrangeiras, excepto a do Paraguay, onde tem proseguido co’ honra e gloria para o Brasil e para a guerra a que nos provocou o presidente Lopez. »

S. M. mette á bulha o paiz. Antes mais verdade podia dizer: « nutrimos as relações de amizade com as velhas monarchias da Europa. »

Sem compenetrar-se dos grandes principios que devião dictar uma politica francamaente « americana, e Segundo aquel’a expressiva phrase de Polk: « A Europa é dos Europeus, a America é dos Americanos » o governo imperial vive em luta aberta com as antipathias, os ciumes, as queixas de todos os povos do novo continente »

Senão – vede a prova com o facto recente dos Estados Unidos.

O Sr. James Watson Webb, o « fidus Achates » do Sr. D. Pedro II, que ainda há pouco ergueo-o aos cornos da lua, o seu apaniguado e conselheiro, « rompe bruscamente as relações internacionaes com o Brasil, e pede e obtem seus passaportes! »

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4.2.1.6. Editorial de 06-05-1869 – Crítica ao Parlamento Brasileiro

A abertura do Parlamento é, inicialmente, colocada por Joaquim Felício já com

uma referência a Laemert, como editor e livreiro.

Depois de muito aguçada a curiosidade pública, no dia 11 de Maio de 1869, ano de graça, abriram-se de par em par as portas do parlamento. Foi mais um dia de festa acrescido na folhinha de Laemert39

Em seguida, são feitos comentários sobre o fato, sobre o pronunciamento de D.

Pedro II, sobre a desilusão do povo com o governo imperial e sobre o papel do parlamento

que o autor, assim resume:

Um deputado que parte é mais um actor contratado para a grande comédia nacional, é um gladiador que vai para o torneio imperial, um membro do Jockey Club.

A figura do gladiador romano é colocada, também, como mais um termo

comparativo, fazendo lembrar a semelhança entre o governo de D. Pedro II e o governo

dilatorial dos Césares, dos Imperadores romanos e ironiza o parlamento como “teatro”,

representação, entretenimento apenas.

No parágrafo 21, o uso da heterogeneidade ‘constitutiva’ volta a funcionar na

construção de argumento contra o governo monarquista, na alusão às figuras lendárias de

Ciclopes e Vulcano como forjadores de raios, gigantes maus, também numa referência a D.

Pedro II:

39 Laemert – Livreiro, editor alemão. No Brasil, organizou e começou a publicar o Almanaque Laemert com

a colaboração dos maiores nomes das Letras nacionais do Século XIX.

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S. Cristovão é uma forja de raios e os ‘Cyclopes’40 trabalhão continuamente debaixo do Vulcano41 Imperial.

Ainda usa o autor o discurso direto, como argumento de autoridade nos parágrafos

23 e 28:

Povo – dizia Guadet42 – eis a eloqüência dos tyranhos abafar os accentos do homem livre para com o silencio cobrir seus crimes! (...) Sem compenetrar-se dos grandes princípios que devião ditar uma política francamente ‘americana’, segundo aquela expressiva frase de Polk43: ‘A Europa é dos europeus, a América é dos Americano’ o governo imperial vive em luta aberta com as antipathias, os ciumes, as queixas de todos os povos do nosso continente.

4.3. Conclusão

Enfim, percebeu-se que a heterogeneidade, a intertextualidade, sob formas

diferentes, está na construção do sentido dos editoriais, na construção dos argumentos,

estabelecendo unidade semântica no conjunto dos editoriais analisados.

Como se pôde notar, há predominância de intertextos, de alusões da cultura

clássica européia que fundamentou toda a formação do escritor brasileiro no século XIX.

Além disso, a intertextualidade usada tem um valor argumentativo considerável,

na medida em que a monarquia brasileira que se estruturou e se manteve sob a égide dos

modelos monárquicos europeus é considerada obsoleta pelos liberais e republicanos que

querem o seu fim.

40 Ciclopes – Entre os gregos, gigantes com um só olho, filhos de Urano e Gea, isto é, do Céu e da Terra,

construtores de muralhas, fabricantes de armas, servidores de Júpiter, para o qual preparam os raios em castigo de terem tentado a escalada do Olimpo. Seu Chefe chamava-se Hefaístos na Grécia e Vulcano em Roma.

41 Vulcano – Chefe dos ciclopes em Roma, preparadores das armas, gigantes forjadores e ferreiros. 42 Guadet (Marguerite Elie) - Político francês (1758-1796). Deputado na Assembléia Legislativa e também na

Convenção. Condenado à morte em 1793, sendo executado. 43 Polk (James Knox) - Político norte americano, deputado, governador do Tennessee foi presidente da União

(1844). A guerra contra o México permitiu-lhe anexar aos EUA o Texas, o Novo México e a Califórnia.

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Assim considerando, a intertextualidade erudita, além de ser expressão de uma

cultura clássica dos escritores brasileiros, cumpre uma função discursiva bem definida:

convencer o interlocutor de que a experiência do velho mundo, da civilização de

notoriedade reconhecida e glorificada, no passado, não pode servir de paradigma político-

administrativo do ‘sistema monárquico constituicional-representativo e hereditário’ em

funcionamento no Brasil, razão suficiente para se propor uma mudança, como se vê nos

parágrafos 13 e 22.

A esperança, com este reinado, está morta no coração nacional e as vinte províncias do Império já suspirão para que chegue a desejada hora de sua emancipação. (...) Mui amargas provanças tem produzido no paiz a instituição já velha e caduca da monarchia e dos reis! Elles são ‘na ordem moral o que os monstros são na ordem physica. As Côrtes são a oficina de todos os crimes. A história dos reis é o martyrológico das nações’.

Como já ficou evidenciado, a intertextualidade é a base da construção semântica

dos editoriais, do processo de referenciação, da coerência da temática textual e ela se

constitui de intertextos, alusões e referências com marcas de erudição.

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CAPÍTULO V

A ARGUMENTAÇÃO NOS EDITORIAIS: SUA CONSTRUÇÃO

5.1. Considerações preliminares

Neste capítulo, o que se propõe é explicitar a utilização do conteúdo temático, de

seus mecanismos de estruturação, nos editoriais de O Jequitinhonha, para a construção do

discurso argumentativo de Joaquim Felício dos Santos contra o Governo Imperial de D.

Pedro II.

Preliminarmente, duas considerações se fazem necessárias. A primeira diz

respeito ao sentido dos textos, construído não rigorosamente em uma relação lógica com o

mundo sócio-histórico evocado por Joaquim Felício, mas em função da diretividade que

ele imprime no seu dizer com a intenção de levar o seu leitor a acreditar em algo posto

como verdade. Dessa forma, a sua representação do real é feita de acordo com seu objetivo

de convencer e persuadir seu interlocutor.

A segunda refere-se à conseqüência dessa semantização que não é uma

demonstração, ou seja, uma apresentação de provas restritas à lógica formal, mas uma

argumentação pessoal, baseada em opiniões, pontos-de-vista, colocados numa discussão,

num embate verbal com seus leitores particulares, os políticos da época.

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5.2. Condições da argumentação

O editorialista, imbuído do “desejo de se comunicar com alguém” para buscar a sua

adesão, seu consentimento, “sua participação mental”, com o objetivo de formar uma

“efetiva comunidade de espíritos”, estrutura o seu discurso em uma “linguagem comum”

aos seus interlocutores, cumprindo, assim, as condições iniciais de um processo

argumentativo, conforme propõe Perelman e Tyteca em seu Tratado da Argumentação

(1996).

5.2.1. Proposição de uma tese

Joaquim Felício define a sua “tese”, que pode ser sintetizada na proposição de

uma mudança do sistema de governo do Brasil, ou seja, substituição do regime

monárquico pelo republicano, com a “supressão da dinastia de Bragança” (Editorial de 20-

12-1868). Acredita ele que a única solução para os problemas sociais, políticos, financeiros

do Brasil estava no ideário do Partido Liberal. Assim, critica duramente a monarquia,

como se pode notar no Editorial de 06-05-1869, parágrafo 22:

Mui amargas provanças tem produzido no paiz a instituição já velha e caduca da monarchia e dos reis! Eles são ‘na ordem moral o que os monstros são na ordem physica. As Côrtes são a officina de todos os crimes. A historia dos reis é o martyrologio das nações’.

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5.2.2. O acordo prévio: a adesão inicial

Definida a “tese”, o editorialista, para garantir a “adesão inicial” de seus

interlocutores, procura estabelecer a relação entre o que é conhecido por eles e a

proposição que defende, numa espécie de “acordo prévio”, a partir de fatos, verdades,

presunções e valores, presumivelmente, compartilhados pelos participantes do processo

interlocucional, “a efetiva comunidade de espíritos”.

5.2.2.1. Os fatos

O relato de fatos, acontecimentos, torna a tarefa de argumentar mais prática, mais

real. Há sempre nos editoriais um fato que provoca o desencadeamento de um discurso

argumentativo. Pode-se perceber essa ligação de fatos à “tese” principal defendida por

Joaquim Felício, observando os editoriais, identificados pela data de publicação.

No editorial de 04-10-1868, um fato real fundamenta todo o discurso do autor: a

viagem do Ministro das Finanças à Europa, antes de sua posse, em busca de “inspiração”

para o exercício de seu cargo. Joaquim Felício descreve a sua volta, sua recepção por D.

Pedro II, o Imperador, transformando o fato em premissa – tese inicial – que se articula

com a tese principal. Considera o Imperador, o “César”, responsável pela indicação de um

ministro incompetente, um “salvador” em potencial. O autor faz a aplicação do fato em

benefício de sua “Tese”, usando uma visão bem pessoal e tendenciosa, para mostrar ao

leitor a incompatibilidade dos atos do Imperador com os tempos modernos do século XIX.

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Outro fato é evocado por Joaquim Felício, no editorial de 15-11-1868: a

publicação pelo “Diário do Rio” de uma crítica aos jornais O Jequitinhonha e O

Constituinte. Desse fato o autor parte para uma acusação ao que ele chama de “sistema

monárquico-constitucional-representativo e hereditário” que não pode viver sem a

repressão à liberdade de imprensa, metaforicamente, denominada “rolha”. Entre outros

comentários sobre a atitude de “O Diário”, diz:

O “Diário” extasia-se sinceramente ‘por esta vez’ perante a sagrada sabedoria que nos rege; é uma apreciação individual, cujos motivos não indagaremos, nem discutiremos, respeitamos. Isso nada significa.

No Editorial de 27-12-1868, o autor registra o fato de os brasileiros estarem

sentindo inveja das repúblicas vizinhas “que vão sempre em caminho do progresso”, dado

o estado de penúria e sofrimento do povo brasileiro, envolvido em lutas estéreis.

Quando os brasileiros, estragados com lutas esterieis pedem a paz, o Sr. D. Pedro II os divide em partidos rivaes em guerra sem tréguas...

Depois de uma avaliação da situação brasileira, o autor conclui: “Tudo isso

realizou a sombra do systema das ficções que nos rege.”

No editorial de 24-01-1869, também o discurso em defesa da democracia se

alicerça no comentário de um fato real ocorrido em 07-04-1834, classificado por Joaquim

Felício como uma “simi-revolução” que foi sufocada, apelando-se para a legalidade das

instituições políticas e governamentais. Considera então o editorialista que “deixou-se

escapar a ocasião; e esse erro fatal legou-nos todos os males do presente.”

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Novamente, no editorial de 07-03-1869, uma matéria divulgada pelo Diário do

Rio de Janeiro desencadeia a condenação do regime monárquico de Império de D. Pedro II

e o autor termina o seu discurso: “O rei governa. O ministro reina. E o povo... paga o

imposto e geme.”

Não é diferente o editorial de 06-05-1869, que é iniciado com o relato da abertura

do Parlamento. Uma crítica é feita pelo editorialista ao discurso de D. Pedro II, iniciado

com a invocação: “Augustos e digníssimos Srs. Representantes da nação”, o que ele

considera um escárneo chamar os deputados de “representantes da nação”, uma vez que os

considera “escravos” de um regime autoritário e diz “S. Cristovão é uma forja de raios e os

‘Cyclopes’ trabalham continuamente debaixo das ordens do ‘Vulcano’.

5.2.2.2. As verdades

As verdades, presumivelmente, aceitas pelos interlocutores, são base do “acordo

prévio”. Definidas por Perelman-Tyteca (1996: 77) como “crenças que nos prestam

serviço”, são construídas em ‘teorias científicas ou concepções filosóficas ou religiosas.

Assim, interlocutores de uma determinada comunidade, em uma determinada época,

sujeitos a uma situação sócio-histórica comum têm “verdades” compartilhadas, aceitas

integralmente ou não. A partir delas, Joaquim Felício estrutura a argumentação em defesa

de sua “tese”.

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Que “verdades” básicas são aceitas, inicialmente, nos editoriais? Não se

pretendendo explorá-las à exaustividade, pode-se perceber a presença de algumas nos

editoriais já citados e aqui identificados pela ordem da referência feita.

No primeiro: o exercício do mistério das finanças exige a busca de novas

esperiências significativas em países mais experientes; no segundo: os brasileiros querem

paz, desenvolvimento das vias de comunicação, da indústria; melhoramentos materiais e

morais; no terceiro: reis que não ouvem a voz do povo não podem governar; no quarto: o

povo, tratado com tirania pelo poder governamental, torna-se desiludido, sem esperanças,

apático; no quinto: o despotismo, para exercício pleno de seu poder, busca hipnotizar o

povo, anular-lhe as reações e no sexto: há um desejo do povo de se livrar do jugo, como se

pode notar no fragmento:

A esperança com este reinado, está morta no coração nacional, e as vinte províncias do Imperio já suspirão para que chegue a desejada hora de sua emancipação.

5.2.2.3. As presunções

Fatos e verdades levam a presunções, que são suposições fundamentadas dentro

daquilo que é normal, verossímil, esperado. Busca, também, o editorialista a adesão dos

interlocutores para as presunções construídas a partir de indícios observados. Essas

presunções são reforçadas por argumentos para que funcionem como prováveis e, portanto,

admissíveis.

Um exemplo bem expressivo de uma presunção, naturalmente aceita em um

“acordo prévio”, é a descrita no editorial de 04-10-1868, a partir da realização da viagem

do Sr. De Itaboray à Europa, antes de sua posse como ministro das Finanças.

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O fato (a viagem do ministro), a verdade aceita (o exercício de um cargo de

ministro deve exigir o contato com experiências de povos mais experientes) geram a

presunção de que tenha o Sr. Ministro trazido um “projeto”. Diante da realidade da não

existência do sonhado projeto – presumível – Joaquim Felício constrói um discurso em que

ironiza a figura do “Ministro – programa” e busca a “adesão inicial” de seus interlocutores,

mostrando o absurdo da situação.

Outra presunção que motiva a indignação do editorialista é a de que a publicação

de suas críticas pelo periódico O Jequitinhonha seriam proibidas com a sugestão de o

Mercantil do Rio de Janeiro de se aplicar um corretivo aos jornais O Constituinte e o

próprio O Jequitinhonha, que se insurgiam contra o Imperador. Joaquim Felício, então,

exclama: “que venha a rolha se não pode sem ela viver o sistema monárquico-institucional

– representativo e hereditário. Nó nos calaremos, não escreveremos...”

5.2.2.4. Os valores Ao lado dos fatos, das verdades e das presunções que têm um caráter mais geral,

podendo ser utilizados como base de um “acordo prévio” com interlocutores mais

diversificados quanto à cultura, existem os Valores, suas hierarquias e critérios de escolha

que se prestam mais a embasar uma argumentação diante de interlocutores pertencentes a

grupos particulares, uma vez que os valores são convenções que variam de acordo com

fatores culturais, sociais, morais e, até mesmo, religiosos. Há valores universais mas com

conteúdos variáveis. A justiça, por exemplo, é um valor universal, mas o que é justo para

uma sociedade pode não ser considerado justo por outra. Assim, Joaquim Felício, para

motivar o interlocutor a fazer certas escolhas, para direcionar-lhes o julgamento, embasa

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sua discussão em valores que reputa essenciais à manutenção da vida social, política e

administrativa de uma nação que se desponta para a modernidade.

Um desses valores aceitos e defendidos pela humanidade é a liberdade e o

editorialista, recorre, várias vezes a esse motivo de ação verbal para mudança de

comportamento da sociedade brasileira, como nos enunciados do Editorial de 27-12-1868:

Hoje surdo às vozes de opinião, e confiado nas forças artificiais de um partido, que julga seu fiel aliado no desmoronamento das liberdades públicas, segue impavido na senda do absolutismo de facto. (grifo nosso)

No editorial de 24-01-1869, Joaquim Felício reforça a defesa da liberdade, aliada

aos bons costumes, à democracia:

No primeiro período os golpes que soffrera em suas liberdades forão desferidos por mão atrevida: no último, o que atravessamos, as tramas machiavelicas, ‘as recordações’ da política de Luiz Phelippe, tentão a degradação dos caracteres, a materializaçõdo espirito nacional, para perversão dos costumes, na indifferença da opinião, alçar-se bem alto um absolutismo tacanho e esteril.

Na construção do processo argumentativo, as hierarquias de valores, os critérios

adotados para se fazer essa hierarquiezação auxiliam na defesa da tese principal,

funcionamento como elementos constitutivos do “acordo prévio”, da aceitação inicial por

parte dos interlocutores.

No Editorial de 27-09-1868, Joaquim Felício cita uma hierarquia de valores

proposta por um sábio da antigüidade chinesa, para mostrar o valor da participação popular

em contraposição ao absolutismo dos reis.

O povo é o que há de mais nobre no mundo, o príncipe é o que há de menos importância. Deus vê pelos olhos do povo; Deus ouve pelos ouvidos do povo.

A comparar “Deus” e “povo”, foi estabelecida uma hierarquia de valores, baseada

em escolhas, “lugares do preferível” em que se privilegiou a qualidade, a especialidade da

situação que é a relação povo/Deus.

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O juízo de valor feito evidencia a presença da ideologia religiosa. A citação foi

realizada para reforçar o argumento do editorialista contra a presunção dos nobres, ou a

“verdade” aceita por eles de que a soberania dos reis era de direito divino, como se vê no

Editorial de 27-12-1868:

Vossa soberania de direito divino é uma mentira, como todas as invenções do absolutismo.

Pode-se concluir que fatos, verdades, presunções, os valores e suas hierarquias são

premissas do processo de argumentação, são a preparação do terreno para se firmarem os

pilares dos argumentos na construção do discurso argumentativo; construção essa

resultante da utilização de esquemas argumentativos diversificados e adequados ao

processo interacional.

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5.3. A construção dos argumentos: técnicas

Uma análise mais detalhada do discurso argumentativo dos editoriais mostra a

diversidade de técnicas de que Joaquim Felício dos Santos se valeu, os vários mecanismos

propostos pela Retórica que usou, os tipos de argumentos que ele combinou e que se

prenderam na teia argumentativa tecida ao longo de seus editoriais, para prender os seus

interlocutores aos seus raciocínios, construídos em função da intencionalidade que orientou

toda a sua ação lingüística.

5.3.1. Os esquemas argumentativos Ao argumentar, o editorialista usa dois esquemas que se contrapõem: a ligação e a

dissociação. No esquema por associação ele aproxima elementos distintos, estabelecendo

entre eles uma solidariedade que visa valorizar um pela semelhança com o outro, ou seja,

buscar uma confirmação de uma proposição feita pela sua relação com outra semelhante,

como se vê no Editorial de 27-12-1868:

O Sr. D. Pedro II, como a rainha da Hespanha, tem fechado os ouvidos ás reclamações patrioticas dos brasileiros, não vê senão pelos olhos dos cortesãos, que corromperão-lhe o espirito e o coração com o nocivo veneno da lisonja, não attende senão aos interesses da côrte.

No esquema por dissociação, ao contrário, propõe a separação de um par de

noções como teoria/prática para reforçar a sua proposição, explora a dissociação entre a

aparência e a realidade, no editorial de 06-05-1869, quando relata o fato da abertura do

Parlamento e critica o cumprimento que D. Pedro II fez aos deputados “Augustos e

digníssimos Srs. Representantes da nação” e se contrapõe:

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Representantes da nação! Palavra de escarneo atirada às bochechas do paiz depois de comprimir-se todas as valvulas onde podia ter respiro a sua vontade.

Amordação a liberdade, algemão os pulsos do cidadão, armão a dictadura, demittem o funccionario publico, corrompem os magistrados, recrutão os adversarios, fazem uma camara de ‘escravos’ e proclamão os ‘designados’ da policia augustos e dignissimos Srs. Representantes da nação!

5.3.2. As técnicas argumentativas: tipos de argumentos

Perelman-Tyteca (1996) dividem os argumentos em quatro tipos conforme as

técnicas utilizadas na sua construção: 1) argumentos quase lógicos; 2) argumentos

fundados na estrutura do real; 3) argumentos que fundamentam a estrutura do real e 4)

argumentos por dissociação de noções.

Os três primeiros tipos são construídos pelo processo de associação definido no

item 5.3.1. São eles os mais utilizados nos editoriais como se passará a explicitar através de

fragmentos textuais analisados.

5.3.2.1 Argumentos quase lógicos

A denominação de “quase lógicos”, dada a um tipo de técnica argumentativa

exige uma explicação que se justifique o porquê de sua utilização. Os raciocínios lógicos

obedecem aos princípios da lógica formal, propõem a demonstração, através de provas

irrefutáveis, de uma verdade aceita como certa. Por exemplo: o homem é um ser

mortal, portanto ele morre. Seria uma contradição afirmar que o homem é um ser mortal,

mas não morre.

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Diz-se, pois, que o argumento é quase lógico porque aproxima-se do lógico por ser

feito “a priori”, ou seja, sem apelo à experiência, por ser resultado de um raciocínio, mas

que não tem a precisão, a lógica formal própria da demonstração. Ele pode ser refutado

porque não depende de aspectos puramente formais e sim da natureza das coisas ou das

interpretações humanas, são baseados em opiniões.

5.3.2.1.1. Compatibilidade/incompatibilidade: o ridículo

Joaquim Felício, editorial de 04-10-1868, procura demonstrar que a “tese” da

adesão inicial, premissa aceita pelos interlocutores, é incompatível com a “tese” principal

implícita no próprio editorial, que se expressa no seguinte silogismo: um Ministro da

Fazenda precisa de planejar suas ações; para planejar, precisa de experiências; o novo

ministro foi observar as experiências de países desenvolvidos, logo deve trazer algum

projeto para propor à nação.

Diante da não existência do projeto, como se pode perceber: “o paiz enfiou

curioso olhar pela bolsa de viagem, no intuito de surpreender uma folhasinha do projecto

suspirado”. “Debalde”, o editorialista mostra a incompatibilidade dessa situação com o

raciocínio feito pela sociedade, dentro da lógica estabelecida a priori sobre as atribuições

de um Ministro da Fazenda, ou seja, há o não ajustamento às regras criadas por essa

comunidade, e a situação se torna atípica, incompatível com o esperado.

A partir dessa constatação, o autor explora o ridículo da situação, conforme

explica Reboul (2000: 169):

O ridículo está para a argumentação assim como o absurdo está para a demonstração: é preciso ressaltar uma incompatibilidade, e a ironia é a figura que condensa esse argumento pelo riso.

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Daí para frente, o editorialista transforma o seu texto em uma expressão de ironia,

de sarcasmo, considerando o “Ministro-programa”, o “indicado” o “salvador”, “o Messias

da Fazenda”, uma figura sobrenatural, um deus. Também a D. Pedro, o “Cesar”, Joaquim

Felício glorifica, torna uma verdadeira apoteose o encontro dele com o Ministro e com

saudações de louvor, constrói mais uma expressão de mordaz ironia:

Paz no ceu, paz na terra! Cesar o quer, Cesar o mandou! Glória nas alturas, na terra glória! Hosana ao ministro! Louvor à Cesar!

Ao longo dos editoriais analisados, percebe-se a recorrência da figura da ironia,

sempre que o autor conclui pela existência de incompatibilidade entre as premissas, aquilo

que é aceito (ou se presume seja) pelos interlocutores e a tese principal defendida.

No editorial de 07-03-1869, Joaquim Felício criticando os aduladores, “os nossos

cortesãos, heliosistas decididos” pela adulação a D. Pedro II, que o consideram o sábio

‘muito alto e poderoso’ príncipe protetor das “artes das sciencias”, classifica como

absurdo, como uma incompatibilidade entre a “verdade” e “o que dizem” e constrói ironias

em seus enunciados seguintes:

Em vão o instituto [“cortesãos” “artistas officiaes”] extasia-se lendo a quadrinha imperial ao ‘fiel povo Ituano’ e a compara com o mimoso

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canto derradeiro de Marco Aurélio ou com as strophes de Augusto. Em vão o declarão mathemático, jurisconsulto, medico, Theologo, astronomo, chimico, physico, estadista, botânico, poeta, cirurgião, economista, litterato,critico, archeologo, alchimista, astrologo, pedagogo, versado nas letras divinas e humanas, conhecedor ‘de omni re scibili et quibusdam aliis.

5.3.2.1.2. As definições Uma das técnicas essenciais da argumentação baseadas em raciocínio e não em

experiência é a definição, que consiste na identificação de traços idênticos ou semelhantes,

entre seres, entre acontecimentos ou entre conceitos para melhor se explicar a proposição

feita no discurso.

As definições são consideradas argumentação quase lógica, quando não fazem

parte do sistema formal, mas pretendem, no entanto, identificar o definido e o que se

define, sem que sejam propriamente fundamentadas nas relações nocionais, com clareza

evidente. Na realidade, toda definição é um argumento, pois impõe determinado sentido

em detrimento dos outros.

Reboul (2000: 172) interpreta o estudo sobre definição feito por Perelman-Tyteca

e considera quatro tipos de definição: 1) a normativa – indica o sentido que se quer dar a

uma palavra em um determinado discurso; 2) a descritiva ou real ou lógica –

identifica o definido com suas propriedades específicas, reais, tem compromisso com

a lógica; 3) condensada – definição descritiva que se restringe às características

essenciais e 4) oratória – definição imperfeita, pois o que define e o que é definido não

são realmente permutáveis, mas é usada para reforçar o sentido especial que se quer dar a

determinada proposição argumentativa.

Pode-se acrescentar a essas quatro a definição etimológica que é fundamentada na

origem da palavra que se quer usar.

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No editorial de 07-03-1869, Joaquim Felício usa uma definição descritiva de

hypnoptismo que se presta como premissa do “acordo prévio” com o interlocutor e, a partir

dela, avalia a atitude dos cortesãos, “os vis instrumentos da dictactura”, mostrando o seu

estado hipnótico e as estratégias usadas pelos déspotas para controle do povo sua aceitação

pacífica da tirania governamental.

A sciencia descobrio modernamente uma singular affecção nervosa carcterisada por convulsões desrodenadas e vesania transitoria.

Chama-se a esse estado morbido – hypnotismo. No editorial de 27-12-1886, o autor cita uma definição oratória, expressiva, que

procura identificar a revolução como um desrespeito às leis humanas e um apelo ao poder

de interferência de Deus na realidade existente: “Locke definia a revolução ‘o direito de

appelar para Deus.”

Há, diluídas no discurso do Joaquim Felício, definições que são determinados

sentidos dados às coisas em detrimento de outros usados em seu ataque verbal ao

Imperador D. Pedro II, que, personificando a Monarquia, torna-se a origem de todos os

problemas sócio-políticos do Brasil daquela época, conforme reiteradas declarações do

editorialista.

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5.3.2.1.3. A comparação A comparação consiste em cotejar vários objetos para avaliá-los em relação a

outro. Pode se dar por oposição, por ordenamento e por ordenação quantitativa.

Nos editoriais são feitas comparações de igualdade entre as mentiras e de

superioridade e inferioridade entre Deus e o príncipe, resultantes de avaliações do

editorialista em função de sua tese principal, como se pode notar no editorial de 27-12-

1868, parágrafo 15:

Vossa soberania de direito divino é uma mentira, como todas as invenções do absolutismo. Na mesma China que dizeis ser a terra classica do absolutismo, já disse um de seus sabios da antiguidade, Menga-Isen: ‘O povo é o que há de mais nobre no mundo, o príncipe é o que há de menos importânica.’

No editorial 07-03-1869, Joaquim Felício estabelece uma comparação entre dois

grupos de aduladores: os primeiros classifica implicitamente como “descarados”, quando

afirma:

Outros menos descarados, dizem: ‘O que querem os democratas? O nosso systema de governo não é monarchico constitucional hereditario representativo, querem mais algum adjetivo? Não temos poderes divididos e harmonisados, servindo a corôa apenas de equilibrista? O rei reina e o povo governa eis a theoria.

Para mostrar a incompatibilidade entre a teoria e a prática, Joaquim Felício

continua, fazendo, também, uma comparação entre as atribuições do rei, dos ministros e do

povo.

Mas o povo, ao menos o das provincias, já tem reconhecido que aquella é a theoria, mas que a pratica é outra: eil – a

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O rei governa. O ministro reina. E o povo... paga o imposto e geme.

Enfim, o raciocínio por comparação está na verdade incluído nos argumentos

fundamentados na estrutura do real e nos que fundamentam o real, razão por que Reboul

coloca a comparação como técnica incluída em argumentos do terceiro tipo “que fundam a

estrutura do real” (2000: 183).

5.3.2.2. Os argumentos fundados na estrutura do real

No item 5.2.2.1, já se mostrou como fatos fundamentam o discurso do autor em

todos os editoriais analisados. Esses fatos, acontecimentos reais, funcionam como

premissas que facilitam a Joaquim Felício a defesa de sua tese principal: a mudança do

sistema de governo brasileiro com a conseqüente queda de D. Pedro II, o “Cesar”

brasileiro, na visão do autor e a implantação do regime republicano.

Ao estabelecer as relações entre os acontecimentos e a sua proposição, o

editorialista invoca, especialmente as ligações de sucessão e as ligações de coexistência.

5.3.2.2.1. As ligações de sucessão

As ligações de sucessão consistem em se avaliarem os fatos, seus efeitos, suas

conseqüências, em função da tese que se defende, portanto, uma avaliação bem pessoal, às

vezes, não baseada na lógica.

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No editorial de 24-01-1869, o editorialista busca um vínculo causal, uma causa

comum que ele denomina ‘Cesarismo”, para os fatos que analisa:

A nação confiante, magnanima em sua dedicação tem sido suffocada por um elemento estranho, que a amesquinha – O Cesarismo. No primeiro período os golpes que soffrera em suas liberdades foram desferidos por mão atrevida; no último, o que atravessamos, as tramas machiavelicas, ‘as recordações’ da política de Luiz Phelippe, tentão a degradação dos carcteres, a materialisação do espirito nacional, para perversão dos costumes, na indiferença da opinião, alçar-se bem alto um absolutismo tacanho e esteril. Esclarecido pelo desfecho do drama, no 1º Reinado, o Cesarismo do 2º troca as vestes de cavalheiro pelas mascara de Tartugo. (Parágrafos 7, 8 e 9) Quem observando a nossa marcha política deixará de enxergar a conspiração constante do ‘imperialismo’ contra as instituições? (Parágrafo 18) Seria o suicidio para elle [partido liberal] se inexperiente ou ambicioso, chamado ao poder, por officio de ‘uma escamotagem’ como tantas outras, se resignasse a acompanhar as tendencias do – ‘Cesarismo’.

Cesarismo, imperialismo, absolutismo são denominações para a centralização do

poder – causa comum de uma série de fatos políticos e atitudes do Imperador.

Também se observa nessa análise uma avaliação, uma apreciação dos atos de D.

Pedro, as suas conseqüências desfavoráveis ao Brasil. Trata-se, portanto, de argumentos

denominados por Perelman-Tyteca (1976: 358) de “pragmáticos”.

Nos parágrafos 8, 11 e 12 do editorial de 27-12-1868, é feita uma avaliação dos

fins e das conseqüências nefastas da política de D. Pedro II, é feito um juízo de valor, com

base nos “lugares do preferível” (critérios de escolha) adotados pelo autor.

Tem sido a politica do Sr. D. Pedro II enfraquecer o paiz, corromper os caracteres mais distinctos, desharmonisar todas as forças politicas, concentrar todos os poderes em sua pessoa, convergir toda a actividade social em um centro único, matar o individualismo, aniquilar os elementos vitaes das localidades para consagrar o absolutismo. Hoje, surdo às vozes da opinião, é centrado nas forças artificiaes de um partido, que julga seu fiel alliado no desmoronamento das liberdades publicas, segue impavido na senda do absolutismo de facto. Ministros

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desprestigiados no conceito do povo são instrumentos de suas vontades caprichosas. Trahido pelo Imperador, que sempre obstou a realisação de suas nobres aspirações o partido liberal hoje também o olha sem confiança.

5.3.2.2.2. As ligações de Coexistência Ligações de coexistência entre atributo com sua essência, entre atos com suas

pessoas, entre pessoas são feitas nos editoriais.

No editorial de 27-12-1869, há um julgamento de um ato de D. Pedro II, como

sendo resultante de sua origem, mostrando uma relação de estabilidade entre pessoa e ato.

(...) O Sr. D. Pedro II foi elevado ao throno pelo partido liberal, que ele depois trahio por um desses atos de ingratidão proprios da casa bragantina.

Os argumentos de autoridade estão incluídos nos argumentos de pessoas e seu

valor depende do prestígio de que goza essa pessoa no meio específico, particular, em que

o argumento é empregado.

Quando o editorialista faz citação de pensamentos, de frases, posicionamentos de

personalidades reconhecidamente aceitas como “expert” no assunto, ele busca legitimação

para as suas proposições, e aceitação dos argumentos pelos interlocutores. Joaquim Felício

recorre a essa técnica freqüentemente, em especial, buscando nomes estrangeiros de

diversos campos do conhecimento, da vida política de países reconhecidos como destaque

em diferentes épocas. Essa argumentação por autoridade imprime também ao discurso de

Joaquim Felício forte marca de erudição pelas fontes buscadas, pela relação estabelecida

entre Brasil e outros países.

No editorial de 15-11-1869, há um significativo exemplo dessa prática:

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Vitor Hugo exproba a phrase adulatoria de Bossuet – Deus tem na mão o coração dos Reis – disendo ‘dupla mentira, nem Deus tem mão, nem os reis coração’ O exilado Jersey não foi muito exacto: os Reis tem um coração immenso, hypertrofiado quando attendem aos elogios de seus panegynistas.

O autor procura mostrar que Vitor Hugo e Jersey criticavam, como ele as

adulações, os elogios e conclui: “os bons amigos nem são indulgentes em excesso nem

defensores extemporaneos”.

O argumento ad hominem é o argumento de autoridade invertido: refuta-se a

proposição porque vem de uma personalidade que não merece crédito; procura-se ressaltar

as fraquezas de quem a enuncia ou, até mesmo, por ser uma pessoa odiosa, non grata na

comunidade, que está interagindo pela linguagem.

No editorial de 07-03-1869, Joaquim Felício critica o Diário do Rio de Janeiro e

seguidores do Imperador pelos elogios que fazem a D. Pedro II e procura mostrar que não

se deve levar em consideração esses discursos que partem de “os nossos cortesãos,

heliosistas decididos”... “poetas mercenários”, o “Instituto dos laureados”, “os vis

instrumentos da dictadura”, “os renegados epicuristas”, “os sábios artistas officiaes”. Em

contraposição, coloca a atitude dos homens sensatos.

(...) os homens sensatos passão silenciosos e creem tanto n’esses elogios como na dôr das carpideiras stipendiadas, que outr’ora acompanharão o feretro dos potentados.

Assim os exemplos são citados para sem refutados como falsos, não merecedores

de crédito.

5.3.2.2.2 Os símbolos

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No Editorial de 15-1-1868, o autor refuta as críticas de “O Diário”, acusando esse

periódico de se extasiar diante da “sagrada sabedoria que nos rege”, referindo-se a D.

Pedro II. Em seguida, mostra como são feitos elogios a pessoas que realmente não

merecem, usando os símbolos de consagração dos reis e imperadores, símbolos de vitória,

de nobreza: “corôas, arcos triunfais, prêmios:

Não faltarão corôas, prêmios e arcos triumphaes a Nero nem a Calligula... (grifo nosso)

Seres, objetos, pessoas ou atos podem se tornar símbolos do que representam de

acordo com o reconhecimento da tradição, das instituições. A ligação simbólica acarreta

transferência entre símbolo e simbolizado; o vínculo entre eles não é uma ligação objetiva,

mas uma ligação reconhecida, unicamente, pelos membros do grupo. O símbolo pode ser

usado como signo desde que se integre numa linguagem compreendida pelos membros de

uma comunidade lingüística.

‘Panem et circenses’ era o narcotico dos horriveis Cesares romanos (...) Para conseguir igual fim, o nosso Cesar não tem confiança em seu systema único: como os medicos discrentes atirou-se a polypharmacia Cruzes, fitas, chaves, bugigangas, officios amistosos, os benefícios pingues, o uso fructo de um poder nominal... (grifo nosso)

“Pão e circo” são palavras que denotam a comida e o entretenimento, realmente,

usados pelos imperadores romanos, mas que passaram a símbolos de instrumentos usados

pelos governantes despóticos para manter o controle do povo. O uso de cruzes, fitas,

chaves, bugigangas é simbólico, e esses vocábulos passam a signos, cujo significante é o

nome do objeto e o significado vai depender da comunidade lingüística que os usa. No

caso presente, pode-se interpretar os símbolos como: cruzes, símbolo da religião católica,

fitas, símbolo de distintivos de associações religiosas ou institucionais, títulos de nobreza,

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chaves, símbolo de posse de propriedades, riquezas e bugigangas como todo o conjunto

estereotipado de conderações, distintivos de cargos, marcas de honorabilidade com que os

Reis distinguiam determinadas pessoas com objetivos, às vezes, sérios, outras vezes

escusos.

5.3.2.2.Argumentos que fundamentam a estrutura do real

Também esses argumentos, como os do segundo tipo, relacionam-se com o

mundo empírico, mas não se apoiam na estrutura do real; vão, ao contrário criá-la ou

completá-la. É uma estratégia que vai reforçar o nexo entre as premissas do “acordo

prévio” apresentadas pelo autor e a “tese” que é defendida. Esses argumentos podem ser

apresentados em forma de exemplos, ilustração, modelo, analogia e metáfora. A realidade

passa a ser construída, explicada pela evocação de ações, atitudes, situações conhecidas.

Joaquim Felício dos Santos apresenta uma rica argumentação desse tipo,

evocando fatos, personalidades, situações da História Universal e é, pelo uso dessas

estratégias que ele revela a sua erudição, tornando a intertextualidade uma presença

dominante no processo da semantização de seu texto, como se buscou explicitar no quarto

capítulo.

Assim, o editorialista para convencer e persuadir o seu interlocutor traz exemplos,

constrói ilustrações, compara atitudes do Imperador a modelos ou anti-modelos; recorre a

analogias para melhor pintar a realidade brasileira, enfim lança mão de expressivos

recursos retóricos visando a alcançar o seu objetivo.

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5.3.2.3.1. O exemplo Nos parágrafos 5 e 14, do Editorial de 27-12-1868, os exemplos apresentados

fundamentam a regra: a falta de consideração à vontade popular leva o trono a sua

decadência, ao desaparecimento.

Isabel II fôra levada ao throno pelas baionetas de um exercito liberal; também o Sr. D. Pedro II foi elevado ao trono pelo partido liberal, que elle depois traiu por um desses actos de ingratidão próprios da casa bragantina (par. 5) Ilude-se o Sr. D. Pedro II, quando com suas idéias anachronicas dos séculos passados, julga-se bastante forte para suplantar a soberania popular. Assim pensarão na França Luiz XVI, Carlos X, Luiz Felippe, assim pensou Isabel II da Hespanha, e seus thronos forão pulverisados pelo sopro popular.

O autor evoca os fatos da destronização de reis da França e da Rainha da Espanha

como exemplos, fatos verídicos, cuja causa é comum: a não escuta da voz do povo, a

centralização do poder na própria pessoa que governa e cujo desfecho é o mesmo: a queda

dos Reis e da Rainha (Isabel II). Há uma comparação entre uma regra geral formulada: reis

sem apoio popular são destronados e uma regra particular do Brasil: D. Pedro, que também,

não considera a vontade popular, deve cair.

No Editorial de 15-1-1868, o editorialista quer provar que “elogiar aos Reis” é

desservi-los e que dessas “baixesas e adulações torpes nasce sempre a oppressão”, e cita o

exemplo:

Tiberio foi uma consequencia logica da vilesa dos senadores; elle mesmo exclamou, vendo-os prostrados a seus pés. Oh! hmens talhados para a escravidão!!

Esse exemplo foi usado para criticar o “Diário” pelos elogios e pela suibmissão a

D. Pedro II.

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No editorial de 24-01-1869, novamente exemplos foram buscados para

fundamentar a regra defendida por Joaquim Felício: a soberania dos povos está em luta

com o governo absolutista dos reis, sua ambição, suas paixões grosseiras.

Cesar alevantado nos favores do povo conspira; e triumpha do patriotismo de Catão, apunhalando a liberdade romana.

Cromwel, Bonaparte aventureiros audazes, e felizes, que sequestrão as liberdades da patria, uzurpando os direitos magestaticos da nação...

No mesmo editorial, para reforçar sua tese, o autor cita exemplos de vários

monarcas da Espanha e da França que tiveram os seus governos despóticos acabados

através de revoluções, da ação popular. Joaquim Felício insinua a todo momento que é

preciso acabar com o governo de D. Pedro II e, buscando os exemplos, sugere que cabe ao

povo desencadear ações que permitam atingir esse objetivo, buscado com decisão e

pertinácia pelo partido Liberal.

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5.3.2.3.2. A ilustração A ilustração difere do exemplo, pois este é incumbido de fundamentar a regra,

enquanto a ilustração tem a função de reforçar a adesão a uma regra conhecida e aceita,

fornecendo casos particulares que esclarecem o enunciado geral, mostram a sua validade,

aumentando-lhe a presença na consciência; a ilustração impressiona, ativa a imaginação,

dá força à proposição feita, mas não constitui prova.

No editorial de 04-10-1868, a ilustração torna mais evidente a semelhança entre a

ida do Ministro da Fazenda à Europa em busca de novas experiências para o exercício de

cargo e as consultas ao “Oráculo”, feitas pelos administradores, legisladores da Europa

Antiga. Não é colocada essa ilustração para provar nenhuma regra, mas para mostrar ao

interlocutor o absurdo da “indicação” de um ministro incompetente, por D. Pedro II, uma

atitude condizente com um tempo remoto, da época do politeismo, quando os deuses

davam respostas às indagações dos governantes, em determinados lugares.

Joaquim Felício, para ironizar a figura de D. Pedro II, elogiada pelos seus

aduladores, os “heliosistas decididos”, no Editorial de 07-03-1868, constrói uma ilustração

densa de alusões a personalidades da História, ao falar da participação do Brasil nas

guerras com as nações vizinhas Uruguai e Paraguai:

Tambem um dia Cesar sonhou com a gloria militar para coroar a obra Soldado bisonho enfiou as botras napoleonicas, pigmeu sopesou a espada de Carlos Magno e cercado de Roldões caricatos revistio-se do título de D. Pedro o Uruguayano, como um dos seus avós fôra Affonso o Africano.

Assim, Joaquim Felicio, para mostrar a figura de D. Pedro II sob a ótica de seus

aduladores que o consideram conhecedor de omini re scibili et quibusdam aliis, traça-lhe,

também, o perfil do “grande” guerreiro usando comparações irônicas soldado bisonho X

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lutas napoleônicas; pigmeu X Carlos Magno e seus Roldões; D. Pedro Uruguaiano X

Afonso o Africano, em que o primeiro elemento é uma referência ao Imperador do Brasil e

o segundo a conquistadores europeus, que se notabilizaram como guerreiros.

5.3.2.3.3. Modelo e antimodelo A argumentação pelo modelo é uma variação da argumentação pelo exemplo; é

um exemplo dado como algo digno de imitação. O antimodelo, ao contrário, é o exemplo

que não se deve imitar, fundamenta o argumento no seu contrário.

Joaquim Felício, ao descrever o encontro do Ministro das Finanças e D. Pedro II

no editorial de 04-10-1868, quer mostrar como a cena imita o modelo da entrega das

Tábuas da Lei a Moisés pelo Senhor do Universo – Deus – no Monte Sinai. Uma situação é

criada para imitar a outra

No alto do Sinay não é por entre o fogo, por ente o fumo e por entre os raios que a lei apparece? Um salvador não é qualquer cousa que se toque assim com o dedo! E pois, o homem passou envolto na sua capa. Na capa envolto era mais soberbo, mais altaneiro do que o romano, que na toga leva ou a paz ou a guerra. Ampla fieira de gente fez-lhe sequito. Representava a guarda de honra e agiota que entrava hontem de alforge e hoje sahira de milhão, graças ao fluctuar da alta e da baixa, em um momento de sorte. Ia-lhe no couce a tribu famelica dos jogadores do cambio. Parou a pompa às portas do palacio. Cesar recebeu nos braços o ministro futuro.

Como antimodelos, Joaquim Felício coloca o próprio Cesar romano, que parece

encarnar todos os vícios do político, do administrador, do nobre e da pessoa humana. Entre

outras referências a Cesar, ele evoca a de traidor do povo romano:

Cesar alevantado nos favores do povo conspira; triunpha do patriotismo de Catão, apunhalando a liberdade romana.

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Nero e Caligula são claramente colocados como “monstros” da História, pelo

editorialista.

Não faltarão corôas, premios e arcos triumphais a Nero nem a Calligula, – nem as musas dos Lacios envergonhavão de cantar esses monstros como disse o poeta.

E são a essas personalidades que D. Pedro é comparado por Joaquim Felício, são

os símbolos de administradores, imperadores não aceitos pelos seus súditos e pela História

que procuram julgá-los e condená-los como aqueles que não devem ser seguidos:

antimodelos.

5.3.2.3.4. As analogias e as metáforas Quando se quer argumentar por analogia, utiliza-se como tese da adesão inicial

um fato que tenha uma relação analógica, e não lógica, com a tese principal. A metáfora é

uma analogia condensada. Analogia e metáfora são embasadas em uma similitude de

estruturas que devem pertencer a áreas diferentes, campos semânticos diversos. Entre os

argumentos desses tipos encontram-se, nos editoriais de O Jequitinhonha, vários de valor

bastante expressivo, mas apenas alguns são objeto de considerações no item 5.3.3.1.1.2.

Para ilustrar temos os exemplos:

No Editorial de 04-10-1868:

Mostrou [o ministro das Finanças] que o paiz está gravemente enfermo, que já não pode em tamanha extenuação... chorou, pesou as onças de sangue vertido e... terminou exingindo uma sangria, uma ‘sangria’ ainda! O ministério vai emitir mais quarenta mil contos de papel moeda.

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Pois não é de ‘notabilidade’ financeira dourar a pilula para que o paiz a engula, sem careta?

No Editorial de 15-11-1868:

Venha pois a rolha se não pode sem ella viver o systema monarquico – constitucional – representativo e hereditário.

No Editorial de 27-12-1868

Hoje o partido Liberal do Brasil, indignado de tanto cynismo, também arrancou a mascara.

No Editorial de 24-01-1869, o autor cita Reyer Collard que anunciava ‘a onda da

democracia subia como enchente impetuosa. Desde então o rio não entrou mais no leito’.

No Editorial de 07-03-1869:

Reinar sobre um povo de escravos, imperar sobre cadaveres ambulantes, instituir o mutismo como mola real da Governação depois de estabelecer o indifferentismo, como a primeira virtude do cidadão, eis ao que tendem sempre os despotas.

No Editorial de 06-09-1869, o uso de analogias é mais intenso, quando o autor

descreve a reabertura do Parlamento e a descrença do povo diante da nova fase do governo

imperial no Brasil.

Vestio [o povo] sua melhor roupa de ver a Deus e foi acotovelar-se nas ruas, para ver passar o prestito carnavalesco dos ‘catopès’ da monarchia. S. M. com todo seu ‘trem’ poz-se na rua, e ficou ‘azul’ de ver o riso ‘amarello’ do bom povo ‘carioca’. O povo mostrava os dentes! Subindo os degraus do throno com as pernas tropegas, querendo encontrar frimeza no chão ‘movediço’, e ‘o rubor’ à tingir-lhe as faces, os olhos baixos, desenrolou com mão tremula um pergaminho, que trazia apertado à seu ‘peito de tucano’ e com voz de canna rachada’ recitou os seguintes trechos...

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5.3.2.4. Argumentos por dissociação Esse tipo de argumento representa uma ruptura de ligação; é a dissociação de

unidades pressupostamente unidas em uma unidade primitiva.

São exemplos dessa ruptura os paradoxos e as antíteses, fortes recursos retóricos

que impressionam, ressaltando os contrastes.

No editorial de 06-05-1869, Joaquim Felício faz uma citação para mostrar que “a

história dos reis é o martyrologio das nações”.

Povo! – dizia Guadet – eis ahi a eloquencia dos tyranos: abafar os accentos do homem livre para com o silencio cobrir os seus crimes.

“Eloqüência dos “tiranos” se opõe a “silêncio” dos homens livres. Eloqüência

supõe fala expressiva, no entanto, vai-se aproximar de “silencio”, que significa ausência de

fala. É a evidência de uma incompatibilidade entre aspectos do real, unem-se palavras que

se opõem.

Outro argumento construído numa antítese está no Editorial de 07-03-1869

... imperar sobre cadaveres ambulantes, instituir o mutismo como mola real da governação...

Também a oposição entre à imobilidade inerente a cadáver e a mobilidade de

“ambulantes”, que caminham.

5.3.3. Persuasão e figuras de retórica As figuras de retórica são recursos lingüísticos utilizados, especialmente, a serviço

da persuasão, porque dá mais ênfase, vivacidade e colorido à comunicação, atuando sobre

a sensibilidade do interlocutor, tornando-o mais vulnerável à adesão à tese defendida pelo

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locutor. Devem-se distinguir esses recursos que têm caráter funcional no discurso

argumentativo das figuras estilísticas, cujo objetivo é causar emoção estética e são usados,

em geral, nos textos literários.

5.3.3.1. Conceito e tipos

Dubois e outros (1974: 57-66) conceituam figuras de linguagem como um desvio

da norma lingüística, que constitui o ‘grau zero’, ponto de partida da ortografia, da

gramática, do sentido das palavras. Assim, a linguagem figurada se manifesta pela

substituição de elementos próprios de um discurso fixado pelos cânones da língua por

elementos anormais, no sentido de diferentes do pré-estabelecido,

Esses autores constroem um quadro geral das categorias das figuras de linguagem,

denominadas metáboles, classificando-as em gramaticais, relativas ao código lingüístico e

lógicas, as que remetem ao referente. As figuras gramaticais são figuras de expressão

(forma) que compreendem os metaplasmos, operação que altera a continuidade fônica ou

gráfica da mensagem e metataxes que são figuras de sintaxe. As figuras lógicas são figuras

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de conteúdo e são denominadas metassememas (sentido) as que consistem em substituir

um semema (palavra) por outro, isto é, modificam os conjuntos de semas de ‘grau zero’, e,

metalogismos as que modificam o valor lógico da frase, sem ser submetidas a restrições

lingüísticas, ou seja, não há substituições, modificações na forma, apenas o valor assertivo

da frase é alterado.

Neste trabalho, que a análise dos editoriais é feita numa perspectiva semântico-

argumentativa, são objeto de algumas considerações as figuras dos dois últimos tipos: os

metamsememas e os metalogismos.

5.3.3.1.1. Os metassememas Constituem-se tipos de metassememas: a sinédoque e a antonomasia, a metáfora

e a metonímia. A sinédoque e a antonomásia baseiam-se no mesmo princípio: “designação

de uma coisa pela outra que tenha com ela uma relação de necessidade” (Reboul, 2000:

252). Já a metáfora não é propriamente uma substituição de sentido, mas uma modificação

do conteúdo semântico de um termo, pela analogia. A metonímia é uma figura que consiste

em designar um objeto pelo nome de outro que tenha com ele um vínculo habitual. Diz-se,

portanto, que na metáfora há uma relação de similitude, enquanto na metonímia, uma

relação de contigüidade.

Nos editoriais de O Jequitinhonha, têm um função persuasiva considerável a

antonomásia e a metáfora e alguns exemplos são destacados para breves considerações.

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5.3.3.1.1.1. A antonomásia

A antonomásia é uma sinédoque que designa uma espécie pelo nome de um

indivíduo ou um indivíduo pelo nome de uma espécie.

Nos editoriais, Joaquim Felício usa tanto a autonomásia generalizante como a

particularizante, ou seja, um nome próprio é a designação de uma classe inteira de que o

dono desse nome constitui um símbolo, um representante singular, como é o caso de César,

tomado como símbolo dos ditadores, tiranos e absolutistas de toda a História. Também usa

o nome de uma espécie, “o romano” para designar, apenas, a César, como se perceberá nos

exemplos a seguir.

O editorialista, através da comparação (argumentos quase lógicos, item 5.3.2.1.3

deste trabalho) designa, em vários editoriais o Imperador do Brasil, D. Pedro II, de César,

com intenção persuasiva. O processo comparativo desencadeado tem o objetivo de traçar o

perfil de D. Pedro II à imagem da figura-símbolo dos ditadores: o César romano, para que

assim o vejam os brasileiros e se convençam da veracidade das proposições políticas do

Partido Liberal, de quem João Felício é uma voz legítima. A D. Pedro são transferidos os

presumíveis “defeitos” do César romano, reforçando-se a tese: o governo monárquico

brasileiro é nefasto ao Brasil, tem como representante um Imperador ditador, absolutista,

tirano, devendo, portanto, ter o seu fim com a mudança do regime monárquico para

republicano. Assim, a antonomásia é utilizada reiteradas vezes, enfatizando a visão do

editorialista sobre O Imperador brasileiro como um clone do Imperador romano. São

exemplos contundentes dessa freqüente utilização:

Editorial de 04-10-1868, parágrafos 18, 22, 23, 29, 32 e 43.

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Na capa envolto era mais soberbo, Mais altaneiro do que o romano que Na toga levava ou a paz ou a guerra.

Parou a pompa às portas do palácio, Cesar recebeu nos braços o ministro futuro.

Parabens a Cesar! O ministro-programma começou por balbuciar uma desculpa. Desapontamento de Cesar, espanto geral.

Cesar o quer, Cesar o mandou! Louvor a Cesar!

Lêde o Diario do Rio de Janeiro: Vêde como o desgraçado possesso Em furor arremessa-se contra a democracia que ouza contestar a Cesar a sua natureza .............. de divindade... ‘Panem et Circenses’ era o narcotico dos horriveis Cesares romanos (...) Para conseguir igual fim, o nosso Cesar não tem confiança num sistema único... Tembém um dia Cesar sonhou com A gloria militar...

No editorial de 24-01-1869, da antonomásia – César –, o editorialista passa a usar

a palavra derivada – Cesarismo –, significando o conjunto de ações e atitudes do

Imperador D. Pedro II, que o tornam o Cesar romano: tirano, absolutista, ditador, conforme

a concepção que enfatiza reiteradamente.

A nação confiante, magnanima Em sua dedicação tem sido suffocada por um elemento estranho, que a amesquinha – o Cesarismo. Esclarecido pelo desfecho do

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Drama no 1 reinado, o Cesarismo No 2 troca as vestes de cavalheiro Pela mascara de Tartufo.

Pode-se perceber, portanto, que o uso da antonomásia – César – tem a função

persuasiva nos editoriais, não é apenas um recurso estilístico.

5.3.3.1.1.2. A metáfora

Definida no item 5.3.2.3.4. deste trabalho como uma analogia condensada, a

metáfora se caracteriza pela designação de uma coisa pelo nome de outra que se lhe

assemelha, modificando o conteúdo semântico do termo usado.

A linguagem metafórica imprime um sentido novo, surpreendente, que

impressiona o interlocutor, reforçando-lhe a adesão à tese do locutor, daí o seu valor como

recurso persuasivo no discurso argumentativo, como é o caso dos editoriais em estudo.

O estudo da metáfora pode ser feito sob óticas diferentes. J. V. Jensen, apud

Abreu (2001: 112), propõe uma classificação das metáforas de acordo com os conteúdos

analógicos que o sujeito aciona na sua construção. O autor divide as metáforas em: 1)

metáforas de restauração; 2) metáforas de percurso; 3) metáforas de unificação, 4)

metáforas criativas e 5) metáforas naturais.

As metáforas de restauração partem do princípio de que algo sofreu algum tipo de

avaria e há necessidade de reparação. São elas: metáfora médica, de roubo, de conserto, e

de limpeza; as de percurso associam a resolução de problemas a uma jornada; metáforas de

unificação apelam para as relações de parentesco, reunião de pastoral, de agremiação

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esportiva; as criativas priorizam os aspectos de organização, da contribuição das partes na

construção de um todo significativo como o da construção, edificação de um prédio, a

tecelagem que vê a sociedade como um tecido em que os fios se unem e se cruzam, uma

composição musical em que os sons se harmonizam; um plantio em que lavradores se

empenham no preparo da terra, no trabalho freqüente até a colheita, seu objetivo e as

metáforas naturais resultantes de comparações com a natureza, seus fenomenos, incluindo

as metáforas relacionadas com a vida dos seres, a biologia.

No editorial, podem-se perceber exemplos de matáforas que se relacionam com

essas analogias, que são base desses tipos descritos. A primeira metáfora, classificada

como de restauração, é encontrada no editorial de 04-10-1868, numa perspectiva de reparar

os danos de uma organização, que são vistos como doença, falta de saúde, no presente

caso, “saúde” financeira.

Mostrou que o paiz está gravemente enferno, que já não pode em tamanha extenuação...

Chorou, pesou as onças de sangue vertido e... terminou exigindo uma sangria, uma ‘sangria’ ainda!

O ministro vai emitir mais quarenta mil contos de papel moeda!

Que sublimado programma! Pois não é de ‘notabilidade’ financeira dourar a pilula para que o paiz a engula sem careta?

A metáfora da restauração – médica – tem grande valor argumentativo pois

representa um apelo universal, conforme Abreu (op. cit. 113).

Compara-se, nos exemplos, o Brasil como um ser humano que doente precisa de

se tornar saudável. Assim, as palavras “enfermo”, “extenuação”, “sangue vertido”,

“sangria” “pílula” do campo do tratamento da saúde corporal estende-se ao da saúde

financeira. Ao

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Brasil fragilizado, doente, receita-se um tratamento radical usado pela

medicina primitiva – a “sangria” - significando a emissão de mais papel moeda. Como

remédio para a “doença financeira”, a “pílula” da aceitação dos brasileiros à medida

aplicada deve ser tomada “sem careta” porque “dourada” pela circunstâncias de sua

aplicação descritas, ironicamente, pelo editorialista, isto é, de visual mais agradável,

embora no seu interior esconda o amargo, o gosto repugnante de “remédio”, de substância

química repelida pela “gustação” do brasileiro, no caso.

No editorial de 15-11-1868, há, novamente, o emprego de metáfora

relacionada à saúde doença, em que alguém toca a “ferida” da sociedade.

A imprensa imperial agita-se convulsa contra nós: nada mais natural. Não se toca debalde nas mataduras supurantes, d’ahi esses

estremecimentos de colera! Uma metáfora que pode ser considerada do tipo “metáforas de percurso” aparece

no editorial de 15-11-1868, que vai mostrar a relação de prisão, cativeiro, em que deveria

ficar o jornal O Jequitinhonha, não podendo fazer circular, dar livre trânsito a suas idéias

sobre o governo imperial, alvo constante de suas críticas.

Venha pois a rolha se não pode sem ella viver o sistema monarchino -

constitucional - representativo e hereditário. O percurso livre das notícias deverá ser interceptado pela “rolha”, que na

linguagem denotativa, ‘grau zero’, tem a função de tampar, fechar, para que o líquido fique

preso, não se escoe, não se evapore, espalhando-se no ambiente.

É sem dúvida uma figura forte, de fácil compreensão, com poder de empatia entre

locutor-interlocutor, por representar um ato de violência contra a liberdade de expressão de

um periódico.

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Joaquim Felício constrói também uma metáfora de percurso, relacionada a

cativeiro, á falta de liberdade de ação, no editorial de 06-05-1869:

Amordação a liberdade, algemão os pulsos do cidadão, armão a

dictadura, demittem o funccionario publico, corrompem os magistrados, recrutão os fazem umacamara de escravos...

“Amordação”, “algemão”, “escravos” remetem a um atentado à liberdade do

cidadão, retratando a situação brasileira como em condições sub-humanas, portanto, com

necessidade de uma mudança.

Metáforas pertencentes ao grupo das chamadas “metáforas naturais, relacionadas

a fenômeno da natureza, também, encontram exemplos nos editoriais de O Jequitinhonha,

sendo expressivas as do Editorial de 27-12-1868:

Assim pensarão na França Luiz XVI, Carlos X, Luiz Felippe, assim

pensou Isabel II da Hespanha e seus thronos forão pulverisados pelo sopro popular.

Vê-se o “vento” soprando e tornando “poeira”, “pó”; os governos monárquicos

“que quizerão obstinados antepor sua vontade e caprichos à razão de todo o mundo”. O

povo é o agente da natureza a desencadear o fenômeno destruidor.

Essa metáfora insinua o fim que deve ter o governo de D. Pedro II, também

absolutista, como os governos dos monarcas citados, vindo dessa forma corroborar a tese

do editorialista da necessidade de uma mudança, acabando com a “monarquia” no Brasil,

fazendo-a “ir aos ares”.

5.3.3.1.2. Os metalogismos: a ironia

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Metalogismos são figuras de pensamento que modificam o valor lógico da frase,

sem alterar a sua forma lingüística.

Entre as várias categorias de metalogismos (litotes, reticências, hipérbole,

pleonasmo, antítese, eufemismo, alegoria, parábola, fábula, ironia, paradoxo, antífrase e

outras) na análise dos editoriais ocupa lugar de destaque a ironia de que foram

selecionados alguns exemplos para comentário. A ironia está difusa em todos os editoriais,

constituindo-se em poderosa arma verbal que Joaquim Felício impunha, com vigor, contra

o seu alvo: D. Pedro II e todo o seu governo.

Maingueneau (1989: 98-100), nos estudos de Análise do Discurso, explica a

ironia como uma heterogeneidade ‘mostrada’ no discurso, uma voz diferente da voz do

locutor, a de um enunciador expressa seu ponto de vista insustentável, e a ironia subverte a

fronteira entre o que é assumido e o que não é pelo locutor, opondo-se ao discurso indireto

livre. Assim, o locutor coloca em cena um enunciador, que adota uma posição absurda e

cuja alocução não pode assumir e esse distanciamento pode ser marcado por diferentes

índices: lingüísticos, gestuais, situacionais. Na impossibilidade de se recorrer à entonação,

à mímica, recorre-se ao contexto para nele recuperar-se a contradição existente.

Sob a perspectiva argumentativa, Reboul (2000: 132) fala sobre a ironia:

Na Ironia, zomba-se dizendo o contrário do que se quer dizer. Sua

matéria é a antífrase, seu objetivo o sarcasmo (...). Por certo há sempre uma dose de alegria sádica na ironia, o ‘prazer maligno de ver a bola murchar, de ver o esfrangalhamento das pretensões de poder, saber e

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virtude exatamente porque quem faz a ironia parece levá-las a sério. Figura do patos e do etos – põe do seu lado quem ri – a ironia também é figura do logos, por ressaltar um argumento de incompatibilidade pelo ridículo.

Joaquim Felício, nos editoriais, valeu-se intensamente da ironia como recurso

retórico, buscando mostrar ao seu leitor o absurdo, o ridículo das situações político-

administrativas criadas pelo governo do Imperador D. Pedro II, no Brasil, Constitui

significativo exemplo o editorial de 04-10-1868, em que o autor ironiza D. Pedro II pela

‘indicação’ do Sr. de Itaborahy para ministro das Finanças, pela viagem do Ministro á

Europa, seu encontro com o Imperador, sua incompetência não trazendo um projeto de

trabalho e, acima de tudo, a medida adotada como forma de “salvar” as finanças

brasileiras: emissão de mais papel moeda, mais dinheiro.

São estratégias na construção da ironia neste editorial:

1) a recategorização lexical das anáforas referentes ao Ministro, construindo uma

cadeia anafórica com as expressões: o Sr. de Itaborahy, Ministro das Finanças, o ministro

‘indicado’, o novo Pill, o ministro futuro, o ‘grande’ ministro, o ministro programma, o

Messias da Fazenda e, finalmente, o Ministro, na saudação final: Hosanna ao Ministro! A

figura do ministro, a partir de sua origem como cidadão comum – Sr. de Itaborahy – vai

tomando proporções de grandeza até ser considerado verdadeiro deus, merecedor do

cumprimento: Hosanna.

2) As aspas, colocadas em indicado, sangria, bill, peste, grande (ministro, roubo,

moedeiro falso, notabilidade, são recursos para mostrar o sentido especial de cada palavra,

denunciando as intenções irônicas do locutor no seu uso.

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3) Alusões a personalidades históricas, mitológicas têm a função argumentativa de

provar anacronismo das medidas administrativas na área econômica adotadas pelo Império.

4) Comparações, sendo o ministro comparado ao Messias, o salvador. As cenas

do encontro entre D. Pedro II (César) e o Ministro são comparadas a da entrega das Tábuas

da Lei a Moisés por Deus, às solenidades de aparição pública dos Imperadores romanos,

marcadas pela pompa, pelo ritual rigoroso.

5) As metáforas de “restauração” de um Brasil doente, centralizadas na ‘sangria’,

como última forma de salvar sua vida financeira.

6) As saudações finais são, essencialmente, irônicas, quando se presta

homenagem àqueles que são criticados por terem errado. O quadro da ironia é construído

em todo o editorial e o que se diz não é, propriamente, o que o locutor pode assumir,

havendo o ‘enunciador’, outra voz, a dizer o que está enunciado, A ironia ressalta o

argumento da incompatibilidade pelo ridículo.

Conforme Maingueneau (1989: 99) “é conveniente jamais perder de vista que a

ironia é um gesto dirigido a um destinatário, não uma atividade lúdica, desinteressada”.

Assim, pode-se afirmar que Joaquim Felício teve intenção clara de ridicularizar,

denegrir a imagem de D. Pedro II e a dos seus auxiliares no governo monárquico, usando

ironias.

No editorial de 07-03-1869, Joaquim Felício critica os “aduladores” de D. Pedro,

os seus seguidores, com um discurso extremamente irônico. Dele, apenas, serão destacados

três trechos bastante significativos. O primeiro mostra o D. Pedro II em luta com os países

vizinhos do Brasil, no caso o Uruguai.

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Também um dia Cesar sonhou com a glória militar para coroar a sua obra. Soldado bisonho enfiou as botas napoleônicas, pigmeu sopesou a espada de Carlos Magno e cercado de Roldões caricatos revistio-se do titulo de D. Pedro o Uruguayano, como um dos seus avós fôra Affonso o Africano.

O quadro comparativo construído tem a função argumentativa de mostrar ao leitor

o ridículo de D. Pedro II como guerreiro.

A contraposição soldado bisonho X botas napoleônicas, pigmeu X espada de

Carlos Magno; Roldões Caricatos X Roldão, D. Pedro Uruguayano X Affonso o Africano

mostra a pequenez do guerreiro brasileiro diante da magnitude dos conquistadores da

História da Europa.

O segundo fragmento do mesmo editorial, que se distingue pelo tom irônico que o

autor lhe imprime, descreve as atitudes dos aduladores de D. Pedro diante de seus dons

poéticos e de sua ampla sabedoria.

Em vão os sabios e artistas officiaes dedicão suas obras em prefacios pomposos ‘ao muito alto e poderoso’ príncipe protector das artes e das siencias. Em vão o instituto extasia-se lendo a quadrinha imperial ao ‘fiel povo Ituano’ e a compara com o mimoso canto derradeiro de Marco Aurelio ou com as strophes de Augusto.

Em vão o declarão mathematico, jurisconsulto, medico, theologo,

astronomo, chimico, physico, estadista, botanico, poeta, cirurgião, economista, litterato, critico, archeologo, alchimista, astrologo, pedagogo, versado nas letras ‘de omni re scibili et quibus dam aliis’.

A universalidade de conhecimento atribuída a D. Pedro, a enumeração de títulos

tão diversos e conflitantes para uma mesma pessoa humana confirma a incompatibilidade

existente entre o que se diz e a verdade, caracterizando assim uma situação ridícula,

expressa pela figura da ironia.

A comparação feita entre D. Pedro e Marco Aurelio e Augusto é também uma

forma de ironia. A poesia atinge o seu apogeu em Roma sob a proteção de Augusto (29 a.

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C – 14 d. C ) e seu amigo Mecenas e Marco Aurélio, também Imperador Romano (161-

180) é filosofo pertencente à escola dos estóicos.

O último fragmento ironiza os aduladores de D. Pedro II a quem o editorialista

atribui uma falta de reconhecimento das extraordinárias condições da sociedade brasileira,

governada pelo “gênio” D. Pedro II.

... ‘Ora, sendo assim, que nos importa a liberdade... volvemos a idade de ouro... governando Saturno’ exclamão em coro os aduladores, as ingratas andorinhas de Tobias.

Diante da visão do governo imperial, descrita por Joaquim Felício, a voz dos

aduladores constitui um contraste construído para mostrar a “cegueira” dos heliosistas, os

cortesãos, que comparam o governo de D. Pedro ao governo de Saturno, na idade do ouro,

uma alusão ao deus Saturno pai de Júpiter (Zeus). Dizem que o seu reino constitui a idade

de ouro, da inocência e da pureza. Saturno foi destronado por Júpiter, seu filho, que dividiu

os domínios paternos com seus irmãos Netuno e Plutão.

A designação dos aduladores com o aposto, “as ingratas andorinhas de Tobias” é

uma alusão ao Antigo Testamento, em que Tobias é representado como protetor das

andorinhas a quem alimenta diariamente. No entanto, uma das andorinhas lançou suas

fezes nos olhos de Tobias que ficou cego. Conta a história que mais tarde Tobias foi

curado por Deus.

Vê-se nessa referência uma ironia, uma crítica aos aduladores e sua relação com

D. Pedro II. Deixa Joaquim Felício a dúvida: são amigos os aduladores ou ingratos que

“atiram fezes” para cegar o Imperador? Mostra, dessa forma, o ridículo da situação.

Em síntese, pode-se afirmar que Joaquim Felício na construção de seu discurso

argumentativo tirou proveito do uso de várias figuras de retórica, destacando,

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principalmente a antomásia pelo seu efeito de evocação da figura do ditador, do tirano que

ele via em César, a metáfora, como forma de reforçar suas idéias, pelas imagens

conhecidas pelos interlocutores que tornaram essas idéias mais claras, dando-lhe

concretude e a ironia, que perpassa por todo o discurso dos editoriais, para pintar o

inusitado, o absurdo da situação político-administrativa do Brasil, em que D. Pedro II é

responsabilizado por tudo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste trabalho foi realizar uma análise do discurso argumentativo de

seis editoriais do jornal O Jequitinhonha, para comprovar a afirmação inicial: praticava-

se, em Diamantina, no Século XIX uma norma lingüística com significativas marcas de

erudição e, diante disso, explicitar os mecanismos lingüísticos utilizados na semantização

dos editoriais e na construção de seus argumentos.

Pela análise do corpus escolhido, constatou-se, de imediato, que Joaquim Felício

dos Santos – o editorialista – movido pelo seu ideal político de militante do Partido

Liberal, criou o jornal O Jequtinhonha para defesa da democracia, da liberdade e, para

isso, fez de seus editoriais uma arma de combate a tudo que ele reputava como empecilho à

concretização dos princípios que defendia.

Por isso, os editoriais tiveram um alvo bem definido: o governo monárquico

brasileiro e, como seu representante legal, O Imperador D. Pedro II foi fortemente atacado

como o protótipo do monarca absolutista, tirânico, indiferente aos clamores do povo e, por

essa razão, foi cognominado de César, numa referência ao ditador romano, Júlio César, o

que é reiterado ao longo de todo o discurso.

Assim, com o objetivo bem definido de mostrar aos brasileiros – seus

interlocutores – as inconveniências do governo imperial para o progresso do Brasil e para o

exercício da liberdade de seu povo, Joaquim Felício construiu o seu discurso

argumentativo em defesa da extinção da monarquia e implantação do regime republicano

de governo, buscando a adesão de seus leitores a suas idéias, à tese que defendeu

vigorosamente.

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Na construção desse discurso, o editorialista usou recursos retóricos

diversificados, mostrando certa familiaridade com a Arte Grega, fazendo sobressaírem os

argumentos por exemplificação, quando realidades da política administrativa européia

fundamentaram a acusação às instituições políticas brasileiras, especialmente, o Império, o

Parlamento e o Ministério. Para isso, referências, alusões, comparações, citações

marcaram o uso freqüente e preferencial do mecanismo da intertextualidade, como recurso

de semantização dos editoriais em função da sua argumentatividade.

Mostrou-se, então, que Joaquim Felício, no uso da intertextualidade, valeu-se,

predominantemente, de intertextos da História da Roma clássica, o que teve a função de

provar o anacronismo das idéias e das práticas governamentais do Imperador D. Pedro II.

Para isso, o editorialista provou a semelhança existente entre o governo de D. Pedro II e o

de César, ambos seguindo os mesmos paradigmas político-administrativos, que não se

coadunavam com a crescente modernidade do Século XIX.

Ficou visto, também, que para reforçar a tese da extinção da monarquia brasileira,

Joaquim Felício fez alusões a vários Imperadores e ditadores da História da França,

Espanha e Inglaterra que, por motivo da vitória dos ideais democráticos sobre o

Imperialismo, perderam os seus tronos.

Outro mecanismo de argumentação evidenciado no discurso de Joaquim Felício,

foi o argumento de autoridade pelo uso da citação de discursos de sábios, filósofos,

políticos que foram defensores do povo, da liberdade e, frontalmente contra o

imperialismo. As citações conferiram mais credibilidade ao discurso dos editoriais, porque

são vozes de pessoas de reconhecido valor, de comprovada competência no assunto.

Foi também marcante na argumentação de Joaquim Felício a alusão a figuras

mitológicas: deuses, ninfas e heróis, também com o objetivo de reforçar o argumento de

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que as instituições governamentais do Brasil ainda usavam métodos arcaicos,

desconsiderando a realidade, os métodos modernos, científicos, para irem em busca de

soluções milagreiras e esotéricas.

Joaquim Felício marcou, a todo momento, o seu discurso argumentativo com o

uso da figura retórica, a ironia, como arma fina e pontiaguda, para ferir D. Pedro e seus

seguidores, deles zombando, visando a tornar claro aos leitores o ridículo dos papéis que as

autoridades governamentais brasileiras representavam no moderno e progressista Século

XIX, como actantes de peça já obsoleta: a monarquia..

Notou-se que no jogo de imagens, realizado para o estabelecimento de um acordo

prévio com o auditório – seus interlocutores – Joaquim Felício trabalhou com a presunção

de um leitor culto, competente, com amplo conhecimento enciclopédico, por isso a

presença da erudição na construção do seu discurso, o que era esperado da imprensa

daquela época. Os editoriais, ao lado de sua função informativa e persuasiva, tinham uma

função estética, como peças literárias que deviam deleitar os leitores.

Assim, a erudição desempenhou papel decisivo no processo de interação entre

sujeitos que compartilhavam o mesmo padrão lingüístico, que era o culto, o erudito.

Buscou-se, ainda, explicação para a prática de uma norma culta erudita nos

editoriais, além de sua condição básica para realização da interlocução entre elites

intelectuais da época, resultante de, alguns fatores importantes: 1º- a formação intelectual

do editorialista, advogado formado na famosa Escola de Estudos Jurídicos de São Paulo,

com experiências literárias desde estudante; 2º- a sua militância profissional e política em

Diamantina, cidade que, embora situada no interior da Província de Minas Gerais, viveu de

acordo com os modelos da sociedade européia, como herança dos tempos em que a Coroa

Portuguesa, na sua cobiça pela posse exclusiva dos diamantes produzidos no Distrito

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Diamantino, possibilitou ao Arraial do Tijuco uma vida de opulência e cultura à

semelhança das metrópoles do Velho Mundo e colocou-se em oposição aos ideais de

liberdade desse povo e a favor de interesses próprios, ignorando as necessidades básicas do

cidadão, como foi freqüentemente denunciado por Joaquim Felício; 3º- a preocupação dos

diamantinenses com a formação intelectual dos jovens, na Diamantina daquela época,

empenhados em colocá-los em permanente contato com a cultura dos grandes centros,

encaminhando-os a Cursos fora da Província e, até mesmo, fora do país; 4º- em

decorrência disso, a criação, já no Século XIX, de educandários como o Ateneu São

Vicente de Paulo, o Seminário Diocesano e o Colégio Nossa Senhora pelo bispo D. João

Antônio dos Santos, de quem Joaquim Felício dos Santos, o editorialista, era irmão; 5º-

presença de educadores europeus, vindos diretamente da França, para dirigir o Seminário e

o Colégio e formar a juventude.

Concluída a síntese das atividades realizadas neste trabalho, estas considerações

finais tomam, também, um caráter de nova proposta de estudo. Ao se concluir uma

pesquisa, há sempre a preocupação, acredita-se (até certo ponto lícita e sadia), de se

questionar a sua praticidade, por exemplo, a sua aplicabilidade na instituição em que ela

nasceu, na comunidade universitária em que buscou sua motivação e possibilidade de se

tornar realidade. É nessa perspectiva que se propõe considerar este trabalho, embora

simples, despretensioso, como parte de novas pesquisas sobre a prática da Língua

Portuguesa em Diamantina, buscando-se reconhecer a realidade de seu ensino nas

instituições escolares, a variação de normas praticadas, o que poderá embasar um projeto

de trabalho que busque resgatar a posição de Diamantina como referência cultural, que foi,

principalmente, pela reconhecida eficiência de seus educandários e pelo gosto de seus

estudantes pelo estudo da língua, pela prática da Literatura.

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Quanto à voz política do editorialista – Joquim Felício – que se escutou além dos

muros de pedra da vetusta e histórica cidade, que seja objeto de estudos e reflexões de

estudantes, de profissionais do Direito, para conhecimento da cultura jurídica, jornalística,

literária e política dessa personalidade, cuja vontade política lhe deu razões e coragem para

o enfrentamento a instituições poderosas em defesa de seus ideais, de seus princípios e das

aspirações da terra a que soube amar e servir como um verdadeiro filho.

Enfim, que os futuros estudos feitos pelos jovens diamantinenses ressuscitem a

obra de Joaquim Felício dos Santos, de cuja urna mortuária, este trabalho, apenas,

levantou a ponta do véu.

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