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  • 7/25/2019 INTRO Numero Animais Ufes

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    Editorial

    Humanos e No-Humanos:

    estamos ouvindo coisas?

    Eliana Santos Junqueira Creado (UFES)1Guilherme Jos da Silva e S (UnB)2

    Patrcia Pereira Pavesi (UFES)3

    presente dossi rene textos que expressam preocupaes oriundasde experincias prticas e tericas que, ao apontarem para a inclusodas chamadas agncias humanas e no-humanas na agenda de

    pesquisas das Cincias Sociais, refletem um pouco de sua diversidade verificadanos ltimos anos no Brasil.

    Igualmente plural pode-se dizer da definio de no-humano contida novolume, destacada na chamada de textos para o dossi. Os no-humanosenglobam seres sobrenaturais, maqunicos, substncias psicoativas, meta-

    agentes

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    (como o oceano, o regime dos ventos, mas tambm os rios e outrosprocessos geobiofsicos), seres microscpicos e ocasionalmente e com maiordestaque neste volume - os demais animais no pertencentes espcie humana.

    Talvez, seja mais fcil defini-los por sua participao compsita em nossahistria, como aqueles que, em longa data e nos mais diversos contextos, tmsido os nossos parceiros e com quem nos associamos para inclusive ressignificarnossas relaes intraespecficas. Embora tenham sido centrais para boa parte dasetnografias ditas clssicas do ponto de vista daqueles que as protagonizaram,verifica-se que uma recorrente centralidade na noo de humano nas CinciasSociais opacificou essas outras agncias que, por sua vez, conformavam agncias

    1 Doutora em Cincias Sociais. Professora do Departamento e do Programa de Ps-Graduaode Cincias Sociais, da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES). Email:.2 Doutor em Antropologia Social. Professor do Departamento e do Programa de Ps-Graduaode Antropologia Social da Universidade de Braslia (DAN-UnB). Lidera o Laboratrio deAntropologia da Cincia e da Tcnica (LACT). Email: .3 Doutora em Antropologia. Professora do Departamento e do Programa de Ps-Graduao deCincias Sociais, da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES). Email:.4 Tomamos a liberdade de chamar de meta-agentes seres, recursos ou processos quepermitem a manuteno ou a proliferao da vida; enquanto tais, ajudam na sustentao e na

    continuidade de inmeros outros agentes, humanos e no-humanos. Observa-se que h umvis ecossistmico na utilizao do termo, alm de se tratar de uma referncia um tantoquanto faceira ideia de uma metaestrutura mental humana, ou Esprito Humano. Todavia, nopresente texto, no se trabalha com a ideia de uma meta-agncia, apenas de meta-agentes.

    O

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    2 Editorial: Dossi Humanos e No-Humanos

    Caderno Eletrnico de Cincias Sociais, Vitria, v. 3, n. 1, pp. 1-10.

    outras.O que em outras reas seria rapidamente localizado como um

    antropocentrismo latente, nas Cincias Sociais esse desnvel gerado, e por vezescelebrado, atravs da consolidao de certo esprito humanista. Provenientes de

    um movimento marcadamente ocidental, a generalizao das promessasiluministas no pode resistir sua universalizao. onde um problemaepistemolgico se descortina para ns naturalistas, segundo a definioproposta por Descola (2005) e onde comea a ficar interessante para todosaqueles que no partilham divises ontolgicas entre humanos e no-humanos,sociedade e natureza, etc. Isso faz com que, para enfrentar o desafio de umaantropologia de humanos e no-humanos em seus prprios termos, sejanecessrio repensar o prprio humanismo das Cincias Sociais. Esse um grandedesafio, pois leva-nos muito alm de nossa zona de conforto ao entender que osno-humanos em questo so mais do que as meras representaes que se fazemdeles nas tradies funcionalistas, cognitivistas, e hermenuticas.

    Separar de antemo os humanos, produtores do que acostumamos achamar de social, dos no-humanos, reserva de naturezas e sobrenaturezas entrens, foi uma pronta resposta que os primeiros cientistas sociais ofereceram a umademanda pela consolidao de suas disciplinas atravs de sua especializao.Desta forma, pouco interessaria aos cientistas sociais ditos modernos quecontinussemos atentos s demais agncias no humanas, que naquele momentono poderiam mais compor o socius. A exceo seria, evidentemente, os casos emque esses entes se manifestassem como representaes do mundo dos humanos.Os no-humanos passaram a ser vistos como espelhos, mais ou menos singularese perfeitos em reflexo de uma comunidade moral denominada humanidade. Essa

    partio gerou efeitos prolongados sobre a epistemologia das Cincias Sociais eBiolgicas, uma vez que quanto mais exclua-se o socius da natureza, emcontrapartida negava-se o anima do mundo dos humanos. Deflagrou-se umaverdadeira batalha entre natureza e cultura ainda hoje travada em velhastrincheiras que era municiada por argumentos deterministas de ambos os lados.Como j foi dito, persistncia dos no-humanos nas Cincias Sociais respondia-se com imagens e representaes luz da sociedade, mas, tambm, incmodapresena do social, as cincias naturais frequentemente acenavam com outrosreducionismos (sendo a sociobiologia sua manifestao mxima).

    Outro resqucio do mesmo tipo de binarismo essencialista que acometefrequentemente os estudos que envolvem as relaes entre humanos e no-

    humanos faz meno ao local destinado s coisas feitas, os artefatos no-humanos. Esses objetos, que ao passo em que so produzidos pelos humanos dasmais diferentes culturas adquirem autonomia agentiva a ponto de passarem aestar envolvidos em dinmicas de coproduo da prpria noo de humanidade.Se atualmente no encontramos muita resistncia no interesse das CinciasSociais para tais artefatos, em contrapartida no h qualquer consenso em relaoao papel central exercido por esses no-humanos no correr de nossa histria.Talvez um bom comeo seja admitir que no h nenhum exclusivismo na histriadaquilo que chamamos de humano sem considerarmos esses objetos, tcnicas etecnologias.

    Assim, aproximamo-nos de uma proposta mais inclusiva como a aqueladisposta por Sophie Houdart e Olivier Thiery (2011):

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    CREADO, Eliana S. J.; S, Guilherme Silva e; PAVESI, Patrcia P. 3

    Caderno Eletrnico de Cincias Sociais, Vitria, v. 2, n. 1, pp. 1-10.

    Animais, molculas, objetos tcnicos, divindades, procedimentos,materiais, edificaes, todos os diversos 'no-humanos' contam, importampara os humanos no apenas esteticamente: as relaes queestabelecemos com eles so um pouco daquilo que somos. Ns produzimosas linguagens, os sistemas de sinais e smbolos, as tcnicas que noparamos de empregar, de aprimorar, de reparar e sobre as quais nosapoiamos para inventar ainda mais; ns realizamos obras de que nos'alimentam'; ns construmos prdios para nos abrigar e proteger e ondepodemos viver as nossas intimidades; ns cultuamos e veneramos deusesque nos atemorizam, nos possuem, nos 'regeneram', e em nome daquelesmatamos uns aos outros; ns produzimos conhecimentos cientficos ououtras formas de saberes que utilizamos para transformar a nossaagricultura, a nossa indstria e o nosso sistema de sade; ns aprendemosa coabitar com os animais que amamos, enquanto criamos outros para oabate e alimentao; ns ficamos assustados com a ideia de que os frgeisambientes em que vivemos tornam-se insuportveis e incontrolveis, e no

    paramos de lutar contra os perigos s vezes mortais que eles nosoferecem. Ns erigimos nossas instituies, nossas organizaes polticas enossos mercados econmicos ao fabricar, utilizar e mantermos tcnicas,procedimentos, e arquiteturas que, a medida em que saibamos asseguraros seus funcionamentos adequados, eles nos servem como representantesauxiliares para atender a todos esses coletivos, enquanto que ascatstrofes naturais ou alguns dos produtos de nossa prpria tecnocincianos obrigam a reconfigur-los. (HOUDART & THIERY, 2011, pp.7-8).

    Neste dossi, congregamos textos que, ao atentarem para as variadaspotncias mobilizadas por esses agentes, refletem tambm nas possibilidades dedescrev-los etnograficamente e cientificamente. Um olhar situado nos modos deexistncia dos no-humanos tem obtido maior repercusso na Antropologia dentreas Cincias Sociais brasileiras, o que impacta diretamente na edio deste nmerode CADECS; que, em sua chamada inicial de artigos, no teceu nenhuma restriodisciplinar nesse sentido. Sua composio interna, no entanto, revela a grandeheterogeneidade de campos etnogrficos que tm se envolvido com o tema dasrelaes entre humanos e no-humanos. Dos quais esto representados nestedossi: a etnologia indgena amaznica, as paisagens urbanas, os dispositivos decontrole e preveno de doenas, as narrativas histricas sobre os animais, a artecontempornea, o ativismo animalitrio, e as prticas cientficas e biomdicas.

    No entanto, h outros cenrios no representados pelos artigos aqui

    elencados, mas que poderiam estar, tais como as socialidades construdas a partirde dispositivos de tecnologias de comunicao, bem como de bens no durveisde consumo (como alimentos orgnicos), ou, ento, alteraes em coletivos denatureza e cultura trazidas por mudanas socioambientais associadas aocercamento de paisagens (como a criao de unidades de conservao e aatuao de projetos de conservao de biodiversidade), contaminaoambiental, a projetos de desenvolvimento e/ou de infraestrutura.

    Interessante seria refletir sobre a importncia que a Antropologia possui noprocesso de reconhecimento e de incluso textual de agenciamentos no-humanos. Provavelmente isso se d por conta do reconhecimento da disciplina importncia das naturezas-culturas de povos no-ocidentais, o outro clssico da

    disciplina, fundamental para a constituio da mesma (e para a sua separao da

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    Sociologia); mas tambm deve-se a uma abertura da disciplina ao dilogo com ooutro disciplinar, o outro da cincia, e, mais amplamente, isso se associa a seuinteresse pelos diferentes processos e tipos de conhecimento presentes emsociedades ocidentais ou no-ocidentais e, no dilogo, muitas vezes assimtrico,

    que diferentes processos e tipos de conhecimento estabelecem entre si.Acreditamos que a Antropologia, em maior ou menor grau, e de diferentes formase intensidades, traz a potncia do dilogo com outras reas das Humanidades, eno apenas as das Cincias Sociais, assim como com outras reas doconhecimento.

    De certa forma, mesmo quando as abordagens tericas usadas pelospesquisadores/autores so teorias sociais mais clssicas, originadas no espritohumanista que serviu como nascedouro para a disciplina - visando fazer umrecorte de seu prprio objeto (as coisas sociais), embora, paradoxalmente,tenha se utilizado de um modelo de cincia das chamadas cincias naturais -, esseantropocentrismo relativamente contornvel a partir de uma releitura dessasteorias e, sobretudo, atravs de um olhar etnogrfico comprometido com aconsiderao da importncia de outras agncias, pensadas a partir das situaesde campo, e tambm a partir do esforo de sua incorporao na escrita.

    No presente dossi, o dilogo com o outro disciplinar deu-se com textosque dialogam com a Arte, a Histria, a Veterinria, a Biologia, a Filosofia, aOceanografia, as Cincias Mdicas, a Literatura e o Direito, por exemplo. Qualquerabertura, enquanto tal, permeada por riscos, o que no uma novidade para osque tentam praticar a Antropologia, como o testemunha o clssico risco doantroplogo poder ir a campo e no mais voltar para o seu meio de origem paracontar a sua experincia, e, a partir da, deixar de ser antroplogo. Roy Wagner

    (2010[1975]) destacou, por exemplo, o quanto a antropologia depende daexperincia de choque cultural, e que o tornar-se nativo significaria o abandono dacondio de antroplogo.

    A abertura da Antropologia a outras disciplinas e a seus profissionais, nabusca pelo reconhecimento de agentes no-humanos, apresenta risco similar,embora no se possa afirmar que seja o mesmo risco. No presente caso, o riscoseria o dos antroplogos se encantarem com as explicaes dadas s agncias dosno-humanos, como os animais no-humanos, por profissionais de outras reas,sobretudo os cientistas naturais, resultando em uma identificao direta dessasexplicaes (representaes) com as agncias dos no-humanos em si mesmosou, ento, o risco do encantamento pelas explicaes naturalistas e pelos seus

    agentes humanos obliterar o conhecimento trazido por outros agentes humanosno-cientistas.

    Todavia esse encantamento mais um dentre outros riscos e, talvez, deva-se ao esforo na busca de uma perspectiva que no se refugie no conforto doesprito humanista, consagrado na disciplina, combinado ao apreo pelaalteridade, pois, mesmo que a alteridade seja a existente dentro do mbito donaturalismo, da academia e suas imediaes, ela ainda assim uma alteridade,decorrente de significativas diferenas entre comunidades epistmicas.Obviamente, muito contribuiu para isso o peso da influncia de tericos da teoriaator-rede (actor-network theory) e dos estudos sociais de cincia e tecnologia(STS).

    preciso destacar que, nesse sentido, a prpria conformao do presente

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    dossi contorna um pouco essas tendncias, pois traz: (1) pesquisas inspiradasem teorias clssicas e contemporneas; (2) estudos desenvolvidos junto adiferentes locietnogrficos, situados em contextos urbanos e no urbanos (e nainterface entre eles); (3) diversas conformaes de prticas e saberes; (4)

    diferentes opes no que diz respeito a experincias e tcnicas de campo - em suamaioria inspiradas em formatos textuais etnogrficos ou abordagens de campoetnogrficas; (5) solues distintas na incorporao de materiais empricos eartsticos.

    Destarte, os estudos que tratam de agenciamentos e engajamentos entrediferentes entes, no Brasil, costumeiramente combinam diferentes correntestericas e abordagens, em uma diversidade de matizes que muitas vezes escapamde tipos classificatrios rgidos. H ainda uma questo de escala dos estudos a serconsiderada, e que os organizadores gostariam de destacar, sobretudo quando aconsiderao das agncias no humanas do-se sob o vis d teoria ator-rede,embora no somente - sendo que importante lembrar que nem todos os textosaqui englobados possuem essa inspirao: (1) se as redes (sociotcnicas ou no)so o que prevalece nas anlises, a partir da, um ponto especfico (por exemploum determinado territrio, comunidade, aldeia, laboratrio, objeto de arte, corpo,audincia pblica, etc.) pode ser escolhido para se analisar onde tais redesconfiguram-se de determinada maneira; (2) ou, por outro lado, se, a partir de umdeterminado ponto, as redes sero seguidas sem delimitao prvia ou recortedefinido aprioristicamente, muito certamente algum limite de quais redes eagentes devero ser seguidos ser (re)estabelecido no decorrer da anlise, aomenos por uma questo de limite temporal, e/ou por conta de uma exigncia daescrita - pois tais redes podem ser quase infinitas e assumirem um fluxo contnuo,

    caso cortes no ocorram nelas, e, ainda, novos agenciamentos sempre poderoser trazidos s mesmas, por conta de truncamentos de diferentes redes, o querepe novamente a questo da escala (STRATHERN, 2011).

    No que diz respeito a abordagens que enfocam mais o engamento de entese/ou corpos, dialogando ou no com a teoria ator-rede, como os estudos sociaisde cincia e tecnologia, e abordagens fenomenolgicas, o ponto de partida determinado ente, ou melhor um conjunto de entes e agenciamentos, sociais emateriais, vistos como corporificao ou sntese de engajamentos atuais oupregressos. O ciborgue, enquanto figura ou metfora, inspirado em obras defico cientfica, e consagrado nos estudos sociais de cincia e tecnologia porDonna Haraway (2000) crucial nesse sentido.

    A Arte, suas tcnicas, seus artefatos e os sentidos e sentimentos por elesevocados e provocados, uma interessante via para se analisar como mltiplosagenciamentos esto neles implicados ou permitir a reflexo sobre os mesmos,no apenas enquanto fonte de anlise (como algo sobre o qual se escreve, comono caso de um objeto de arte pensado enquanto uma rede de relaes, ou comono caso da utilizao do som e da msica na produo da sensao de imersoatravs de um meio aquoso e de um meio cultural), mas tambm como inspiraopara a maneira como se escreve, como se o texto se tornasse musical ao refletirsobre paisagens sonoras e misturasse nossos sentidos, por exemplo. Contudo, importante considerar que essa antes uma postura poltica do que um esforo deinvestir sobre o texto como uma questo meramente esttica. Transpor a

    dualidade forma/contedo, que possivelmente seja a derradeira trincheira das

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    Cincias Sociais em sua guerra autodeclarada em favor da Cincia algo quealmejamos e o fazemos por confiar na agencialidade do prprio texto etnogrfico.

    Da mesma forma, a escrita que escapa de uma comunidade epistmicadeterminada e visa popularizar um tipo de conhecimento e/ou divulgar

    descobertas cientficas ou, nos termos de Hannigan (1995), problemasambientais especficos, demanda um esforo comunicativo significativo, cujodesafio maior o da simplificao sem perda de contedo, sendo que h todo umvasto material com tais caractersticas, elaborado dentro (e a partir) daschamadas cincias naturais. No que diz respeito aos no-humanos animais, umbom exemplo nesse sentido o livro Monstro de Deus, Feras predadoras:histria, cincia e mito, de David Quammen (2007[2013]); enquanto que, doponto de vista da contaminao ambiental, pode-se citar um dos clssicos doambientalismo, O Futuro Roubado, de Colborn e colaboradores (2012[1997]).Trata-se de um outro campo de estudos, onde a interface entre as cincias e apopularizao de sua escrita podem ser pensadas dentro de uma preocupaocom os agenciamentos no-humanos e a interface entre reas de conhecimento,dentre elas a Arte e a Literatura.

    Se a diversidade temtica uma marca deste nmero de CADECS, o mesmose pode dizer acerca de sua representatividade geogrfica e institucional.Participam deste dossi pesquisadores sediados em diversos estados da federao(So Paulo, Par, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia), alm daquelesvinculados a instituies internacionais como nos casos de Andrea Mastrangelo ePatrcia Galletti (Argentina) e de Stefan Helmreich (EUA).

    O resultado final ora apresentado possui outra peculiaridade: um vis dereflexes, diretas ou indiretas, sobre a/s agncia/s de animais no-humanos e

    alguns de seus porta-vozes institucionais ou aqueles que interagemcotidianamente com os mesmos, via relaes de trabalho e/ou afeto, totalizandocinco artigos com essa particularidade.

    Gostaramos ainda de registrar que trs textos que, a princpio, foramsubmetidos ao Dossi, foram incorporados no volume anterior do CADECs (v2n2,de 2014)5. Assim, a considerao dos mesmos diversificaria ainda mais o rol deagenciamentos no-humanos destacados nesta apresentao, bem como arepresentatividade geogrfica e institucional de autores do volume. Osorganizadores do dossi, mas, sobremaneira, a equipe editorial do CADECs,agradece a todos esses autores por terem aceitado o remanejamento de seustextos para o volume anterior do CADECs.

    A seguir, teceremos uma apresentao mais detalhada de cada um dos

    5 Trata-se dos artigos: (1) Uma anlise do YouTube a partir do Canal Porta Fundos, deautoria de Ariane Rodrigues, Adriano Neuenfeldt, Lia Heberl Almeida, com pesquisa vinculada Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS; (2) Etnografia de uma caminhadaecolgica em meio paisagem hbrida da ilha, de Mrcio Antnio Farias de Freitas, cujo autorligava-se poca de sua pesquisa Universidade Federal do Esprito Santo (UFES); (3)

    Experincias institucionalizadas: o espao religioso e as leituras dos convertidos Assembleiade Deus em Campina Grande PB, de autoria de Monalisa Ribeiro Gama, poca da

    pesquisa, doutoranda da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Os artigos podemser acessados a partir do stio eletrnico do peridico: http://periodicos.ufes.br/cadecs .

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    artigos e ensaios do volume.

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    O primeiro artigo do dossi, de autoria de Felipe Ferreira Vander Velden,intitulado Dessas galinhas brancas, de granja: cincia, tcnica e conhecimentolocal nos equvocos da criao de animais entre os Karitiana (RO) propedescrever etnograficamente as controvrsias geradas a partir de um projeto decriao de galinhas de raa junto ao grupo indgena Karitiana que no obteve oresultado esperado por seus idealizadores tcnicos. O evento permite verificar osencontros e desencontros entre saberes distintos, em que tcnicos e agentes decampo atuam como mediadores e (re)inventores desses conhecimentos.

    Em seguida, Andrea Veronica Mastrangelo problematiza em seu artigo -Derechos de humanos y no humanos: una reflexin basada en dos estudios decaso etnogrficos- a ideia da natureza como sujeito de direitos a partir dos casosde Bolvia e Equador. Sua crtica filosofia jurdica contempornea, a embasaressa noo, d-se atravs: (1) da discusso de dois casos etnogrficos, onde aautora reflete sobre as relaes sociedade-natureza, focando na questo dadisseminao de zoonoses envolvendo animais no-humanos e populaeshumanas - em um caso, a doena de Chagas, e, em outro, a leishmaniosevisceral; (2) de suas reflexes sobre os prottipos semnticos que fundamentam aideia da natureza como sujeito de direitos e que operam de modo binrio,desconsiderando assim a riqueza das relaes cotidianas travadas entre sereshumanos e outras espcies de animais.

    O artigo de Flvio Leonel Abreu da Silveira e Matheus Henrique Pereira da

    Silva, denominado Acerca do olhar do outro, ou sobre tratadores e animais emcativeiro: por uma etnografia no zoo em contexto urbano (Belm PA) abordaas relaes entre os animais cativos e seus tratadores que acumulam, com otempo, tcnicas e conhecimentos sobre os comportamentos dos diferentesindivduos e espcies de animais que habitam o zoo de Belm, e igualmenteidentificam os tipos de agncias dos seres por eles cuidados. O foco principal daanlise encontra-se na troca de olhares e de perspectivas presentes nessasinteraes cotidianas desenroladas em um ambiente que compe a paisagemurbana de Belm.

    Entre o real e o representado: um debate na histria dos animais umensaio bibliogrfico em que Andra Barbosa Osrio dedica-se a avaliar a produo

    da histria dos animais e a identificar os distintos momentos dessa produo: (1)um primeiro centrado na questo das representaes sociais (humanas) sobre osanimais; e (2) um segundo com narrativas preocupadas com os animais reais,com o reconhecimento de suas agncias, que se d lanando mo de teoriassociolgicas e estudos etolgicos. A autora observa que o segundo momento positivo no sentido de reconhecer a existncia material dos animais, mas ponderaque o uso estrito de fontes cientficas para acessar tal materialidade pode, emsuas palavras, reiterar uma diviso entre cincias naturais e humanas (ousociais) e os animais como seres naturais. Por sua vez, Osrio destaca queexistem outros agentes humanos que acessam essa materialidade e elaboramteorias sobre os comportamentos dos animais sem serem cientistas.

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    8 Editorial: Dossi Humanos e No-Humanos

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    Lo humano en lo no humano: la configuracin cultural de artista, objeto ypblico en la experiencia artstica contempornea, escrito por Patricia CeciliaGalletti, tem uma preocupao interdisciplinar em combinar histria, filosofia eantropologia para pensar a produo de arte contempornea, sobretudo sob o vis

    do ps-modernismo. A autora sustenta que os objetos artsticos, entes no-humanos, incorporam o humano em si e, portanto, configuram redes. Prope ummaior estreitamento das relaes entre a antropologia (e a etnografia) e a arte afim de superar as interseces hierrquicas entre elas, em que a arte geralmenteocupa uma posio subalterna.

    O artigo intitulado Da paixo ajuda animalitria: o paradoxo do amorincondicional no cuidado e no abandono de animais de estimao, de autoria derica Onzi Pastori e Liziane Gonalves de Matos, apresenta as contradies que sefazem presentes nas relaes entre seres humanos e animais no-humanosrefletindo simultaneamente sobre a humanizao de pets (ces e gatos) por umlado, e sobre a questo do abandono dos mesmos, por outro. O lcusde anlisefundamenta-se em um contexto urbano as cidades de Porto Alegre e Caxias doSul (RS). O processo de humanizao desses animais de estimao visto comoalgo que rompe as fronteiras entre os termos que compem as relaes humanos-pets, assim, noes como paixo animalitria e amor incondicional soexploradas pelas autoras. Dessa forma, entende-se que o amor incondicionalseja um atributo comumente associado aos animais de estimao, mas seusefeitos nas composies familiares e o papel do mercado pet so vitais para esseprocesso de humanizao. Como um contraponto aos processos de coisificaodos animais e de seu abandono, o texto dedica especial ateno aos grupos deajuda animalitria, para quem as relaes de afeto so destacadas nas relaes

    com os agentes no-humanos.O texto que encerra o dossi, Quando humanos e no-humanos compemuma audincia pblica: o uso de embries para produo de clulas-troncoembrionrias, analisa as falas e as performances de cientistas durante aaudincia pblica que tratou da constitucionalidade do artigo 5 da lei debiossegurana, em 27 de abril de 2007. Nele, Israel Jesus Rocha aproxima-se daTeoria Ator-Rede para descrever a audincia que contou com cientistas favorveise contrrios ao artigo que autorizava a destinao de embries para a produode clulas-tronco em pesquisas e usos teraputicos. A anlise percebe ascontrovrsias em torno do tema e identifica as articulaes entre humanos e no-humanos a partir das exposies das duas posies.

    Compondo a seo de artigos livres, apresentamos o artigo de Daniele daCosta Rebuzzi Dilogo e teoria crtica: uma reflexo a partir do seminalXamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem: Um estudo sobre o terror e acura, de Michael Taussig. Em seu texto a autora retoma o debate sobre aspossibilidades de conhecimento e de escrita sobre o outro antropolgico a partirda anlise da etnografia de Michael Taussig, notabilizada pela abordagem daexperincia de terror da escravizao da mo de obra indgena e suaspossibilidades de cura atravs do xamanismo na Colmbia entre 1969 e 1986. Aobra de Taussig vista como ponto de convergncia das reflexes da antropologiacrtica (ou ps-moderna) e da teoria crtica de Walter Benjamin. Para isso, aautora questiona a construo textual polifnica da etnografia em tela: (1) porconta de minimizar as potencialidades da pesquisa de campo e da experincia da

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    Caderno Eletrnico de Cincias Sociais, Vitria, v. 2, n. 1, pp. 1-10.

    alteridade antropolgicas na construo do dilogo com o/s outro/s, e (2) pelofato da desordem textual no garantir, por si s, a no ocorrncia de violnciaepistemolgica.

    Concluindo o volume, o CADECS apresenta a sua primeira traduo. Trata-

    se do artigo Um antroplogo debaixo dgua: Paisagens Sonoras Imersivas,Ciborgues Submarinos e Etnografia Transdutora, de autoria do antroplogo norte-americano Stefan Helmreich, do Programa de Antropologia do MIT, originalmentepublicado em lngua inglesa na revista American Ethnologist (novembro de 2007).No ano de 2010, Helmreich recebeu o Gregory Bateson Prize pelo seu livro AlienOcean: Anthropological Voyages in Microbial Seas e o artigo que oraapresentamos diretamente ligado a essa pesquisa.

    Em seu texto, Helmreich apresenta em primeira pessoa sua experincia de(sub)/(i)merso na cpsula submarina Alvin. Ao explorar os significados variadospara esta imerso - afundamento em lquido, absoro em alguma atividade eentrada compreensiva de um antroplogo em um meio cultural, como o

    sintetizado por ele no resumo do artigo. O autor utiliza a metfora do ciborguesubmarino para pensar Alvin como um sistema ciberntico composto por vriosengajamentos entre diversos seres, como os pesquisadores, o oceano, asmquinas, as fontes termais, as pedras e outros entes da vida submarina. Durantesua imerso, a experincia sonora se destaca como essencial para o encontro comas profundezas e para o prprio trabalho dos pesquisadores das cincias do mar.

    A construo de paisagens sonoras, dentro e fora da cpsula submarina, d-se atravs de estruturas tcnicas e sociais, ligadas a prticas de sondagem,audio e escuta. O fenmeno da transduo (a passagem do som de um meiocom determinadas caractersticas para outro meio com outras caractersticas)

    explorado pelo autor para pensar ao mesmo tempo o submarino ciborgue e aescrita etnogrfica, que, semelhana da transduo, transporta algo de um meio(o que foi ouvido em campo) para outro meio (a escrita).

    Consideramos, por fim, que o artigo de Helmreich entra em sintonia com aproposta deste dossi Humanos e No-Humanos ao dispor uma grandevariedade de agentes no-humanos, viventes e maqunicos, alm de refletir sobrea prtica e a escrita antropolgicas, e, agindo assim, pensar as relaes da prpriaAntropologia com outros modos de fazer (e escrever) cincia.

    ***

    A equipe editorial de CADECS e os organizadores deste dossi agradecem American Anthropological Association, pela autorizao para a reproduo do textode Stefan Helmreich em sua verso em portugus. Igualmente somos gratos aoautor, que declinou do ressarcimento financeiro de seus direitos autorais. Aviabilizao desta traduo s foi possvel graas ao apoio da PRPPG-UFES, aquem manifestamos nosso reconhecimento.

    Agradecimentos tambm so destinados s autoras e aos autores quesubmeteram propostas para este dossi e a colaboradores/as pareceristas ad-hoce revisores/as que contriburam para a concretizao deste volume.

    Esperamos que usufruam de uma boa leitura, saudaes!

  • 7/25/2019 INTRO Numero Animais Ufes

    10/10

    10 Editorial: Dossi Humanos e No-Humanos

    Caderno Eletrnico de Cincias Sociais, Vitria, v. 3, n. 1, pp. 1-10.

    Referencias bibliogrficas

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