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O Tratado de Methuen: interpretações e desmistificaçõesLuiz Fernando B. Belatto
INTRODUÇÃO
O objetivo desta monografia é estudar e melhor compreender os fatos relativos
ao Tratado de Methuen, acordo comercial estabelecido entre Portugal e Inglaterra em
1703 e de importância fundamental para o entendimento de outros acontecimentos
históricos ocorridos às duas nações, bem como ao Brasil, que teve participação
importante nesse tratado. Para isso, basearemos nossa discussão nas opiniões e estudos
de diversos historiadores, como Fernando Novais, Joel Serrão e João Lúcio de Azevedo,
entre outros. Servirá este trabalho como uma mostra das divergentes conclusões que o
tratado gerou na historiografia portuguesa, considerando-o alguns como prejudicial ao
desenvolvimento da nação (perpetuando inclusive influências negativas até hoje) e
outros que, se não o achando benéfico, pelo menos não enxergam no mesmo possíveis
implicações na decadência lusitana no século XVIII. No primeiro caso, opinam os
autores que, além do domínio comercial que fornece aos ingleses sobre os portugueses,
como diz Sandro Sideri, “o Tratado de Methuen provocou a destruição do único setor
que poderia ser a testa-de-ponte do processo de industrialização português [as
manufaturas têxteis] e que, se existisse, poderia evitar o ‘desfasamento tecnológico’ que
ainda hoje caracteriza Portugal”. Na perspectiva oposta, uma análise “das condições
econômicas, tanto nacionais como inglesas, no século XVIII leva-nos a ter de alterar o
ponto de vista de sua influência [do tratado] decisiva tanto na decadência da indústria
portuguesa como no desenvolvimento da exportação inglesa para Portugal”, tese essa
defendida principalmente por José Borges de Macedo.
O que faremos aqui, portanto, é mostrar os variados pontos de vista a respeito de
Methuen, dando espaço a outras vozes que não somente as afirmantes de que ele foi
nocivo a Portugal. Mais do que isso, tentaremos mostrar que os lusos reagiram e em
algumas oportunidades ameaçaram a predominância inglesa nos termos do acordo,
conseguindo lucros e ampliando a indústria nacional. Não faltarão também as relações
com o Brasil e o contexto em que surge o tratado, bem como seus antecedentes.
Começa aqui, então, o que se propõe ser uma contribuição aos estudos da
historiografia portuguesa.
OS ANTECEDENTES DO TRATADONão foi Methuen o tratado que iniciou as relações comerciais entre Portugal e
Inglaterra: elas começam em 1373, sendo firmado em tal data um tratado de aliança
militar contra Castela, que ameaçava a independência do reino português. No entanto, a
gritante supremacia inglesa observada no tratado de 1703 não ocorria aqui e nem nos
séculos seguintes: pelo contrário, até o final do século XVI a nação lusitana, junto à
Espanha, desempenhou um papel de destaque na economia européia, sendo inclusive o
maior centro de poder. Tratava-se de um dos primeiros Estados Nacionais a serem
formados, com o comando político centralizado em um rei; em virtude de sua
centralização precoce (século XI), experimentara um desenvolvimento tecnológico e
marítimo mais avançado que o resto da Europa, inclusive iniciando, no século XV, as
Grandes Navegações pelos oceanos. Possuía diversos domínios coloniais, dos quais
obtinha riquezas agrícolas, mantinha importante tráfico de escravos para suas colônias e
controlava o valioso e lucrativo comércio de especiarias nas Índias. Portugal era, de
longe, a maior força européia, tanto política quanto economicamente. As outras nações
da Europa, principalmente Inglaterra e França, não tinham condições para enfrentar tal
soberania: eram países que, durante a expansão lusa, iniciavam sua recuperação da
Guerra dos Cem Anos (1337-1453), e assim não poderiam combater com afinco o
crescimento econômico ibérico. Tal diferença de poder influenciava, obviamente, as
relações entre essas nações. Os autores são unânimes em dizer que os portugueses
dominavam os acordos econômicos feitos com os ingleses nessa época. O prestígio e
poderio do Império Lusitano determinavam tal predominância.
No entanto, a nação portuguesa não pensava em seu futuro, nas possibilidades de
concorrência que poderiam enfrentar em seu domínio. Toda a riqueza que obtinham não
se traduzia em crescimento: pelo contrário, era consumida na manutenção de uma Corte
suntuosa e importação de artigos de luxo e de manufaturados, não se incentivando a
modernização da agricultura ou o desenvolvimento de manufaturas, que se limitavam,
para Sideri, à pequena produção das oficinas, “indústrias de pequena dimensão(...)
abrangendo a própria família, enfim, algo parecido como sistema doméstico”. O reino
começava a entrar em decadência.
Da mesma forma, a administração do Estado e das colônias não era eficaz, o que
contribuía para tal problematização. Tal falta de visão de futuro é expressa por vários
autores como decorrente da mentalidade do homem português, ainda presa
excessivamente ao campo e às pequenas unidades de produção familiares e que, como
disse Sérgio Buarque de Holanda, procura soluções momentâneas, rápidas e fáceis (que
poupem esforços) para os problemas que enfrenta (a colonização brasileira, segundo o
próprio Sérgio, é o maior exemplo). Não pensariam em resoluções e projetos a longo
prazo; dessa forma, faltava ao português a mente mercantilista e, porque não, capitalista,
voltada ao incremento das atividades produtivas, acúmulo de capitais e conseqüente
ampliação de lucros. As precoces centralização e grandeza lusitanas não ocorreram na
mesma proporção que a mudança dessa consciência. Sobre essa característica lusitana,
escreveu o historiador Vitorino Godinho: “O Estado mercantilizou-se, mas não se
organizou como empresa comercial(..) o dinheiro da expansão irá sobretudo para a
colocação imobiliária, especialmente na construção de igrejas e solares(...) o
investimento, quando se deu, inscreveu-nos quadros senhoriais”.
Nesse quadro, tornava-se cada vez mais oneroso manter as colônias e controlar
gastos; o Estado Português beirava a falência. A perda da independência em 1580
somente veio piorar a situação já caótica. Formando a União Ibérica com a Espanha,
Portugal envolvia-se diretamente com todos os conflitos armados que os espanhóis
assumiam com o resto da Europa; isso implicava em gastos ainda maiores para uma
economia já debilitada. O império colonial se desorganizou, sendo inclusive invadido
por outras nações (como a Holanda no litoral pernambucano, nos anos 40 do século
XVII). À mesma época, Inglaterra, França e Holanda (Países Baixos) desenvolviam sua
economia e potencial marítimo, configurando-se como forças capazes de ameaçar a já
decadente dominação ibérica. Portugal consegue, após diversas articulações e revoltas
da nobreza, libertar-se do domínio espanhol em 1640. Totalmente enfraquecido
economicamente (perdera o monopólio do comércio oriental; o Brasil fora invadido; o
açúcar de suas colônias enfrentava concorrentes no mercado europeu) e politicamente
(precisava do reconhecimento europeu à nova dinastia real de Bragança), o país teve de
aceitar o novo equilíbrio de forças no continente e submeter-se a alianças com as
potências mais fortes tendo em vista três objetivos: manter sua economia em
funcionamento, proteger-se de ataques e, principalmente, resguardar as posses
coloniais no Ultramar. Para isso, a nação lusitana vai relembrar 1383, nas suas origens,
e constituir alianças com a antiga aliada Inglaterra, que se configurava como a maior
potência comercial do continente.
O que se altera, agora, são as posições. Fernando Novais escreveu, em Portugal
e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, que “o equilíbrio das relações políticas
internacionais se organizava, nesse momento, em torno de França e Inglaterra (...)
passando as monarquias ibéricas a segundo plano”. As políticas que cada nação seguiu
ao longo desse tempo determinou uma ordem mundial mais diversificada a partir do
século XVII, bem como a queda ibérica. Nesse contexto, os ingleses assumem, para
Portugal, uma importância vital para a sobrevivência dos domínios ultramarinos e da
economia. No entanto, aos portugueses cabe um papel secundário no que se refere ao
mundo inglês. A partir da análise dos fatos da época, pode-se “concluir-se ter sido a
importância política e econômica da Inglaterra para Portugal muito mais relevante que a
importância de Portugal para a Inglaterra”. Aos segundos interessava-lhes explorar
comercialmente a nação ibérica, estender a rota comercial de suas manufaturas às
colônias desta e ampliar sua esfera de poder na Europa, tirando da França, sua maior
concorrente, aliados possíveis. Aos segundos, manter-se vivos na conjuntura européia e
colonial; ou seja, manusear a grandeza do Império Português.
AS RELAÇÕESOs acordos comerciais entre Portugal e Inglaterra começam, então, em 1642,
assinando-se outros dois em 1654 e 1661. Nestes, fica clara a sujeição a que os lusos se
submetiam: os portos de Portugal eram abertos aos navios ingleses (que controlarão
importações e exportações); comerciantes ingleses residentes em Portugal obtinham
privilégios fiscais, civis e judiciais (não se submetendo inclusive às leis locais e tendo
um juiz especial – chamado privativo – para julgá-los em caso de infração); Portugal
deveria obrigatoriamente adquirir seus navios na Inglaterra. Além disso, os
comerciantes ingleses conseguem obter o direito de participar no comércio
metropolitano com as colônias, exportando a elas seus produtos (com exceção de vinho,
bacalhau, azeite e farinha, que eram monopólio lusitano) e fazendo os fretes de
importação, dividindo com Portugal os lucros de venda na Europa (isso valia para todos
os produtos coloniais, menos o pau-brasil, exclusivo da Coroa). O que ocorre, pois, é a
perda do monopólio colonial. Se antes Portugal possuía exclusivismo na exportação e
importação comercial com suas possessões, agora tinha de dividir tal comércio. Os
ingleses penetraram com seus produtos nas colônias e, utilizando-se de sua marinha
(maior em número e tecnologia), tornam-se o terceiro elemento nas transações entre
Portugal e colônias. No entanto, passam a dominar esse comércio: os produtos que
exportavam para a nação portuguesa e colônias eram principalmente manufaturas, cuja
venda lhes rendiam bons lucros. Em contrapartida, o principal produto colonial
oferecido era o açúcar, cuja venda em Europa rendia a maior parte das rendas da Coroa
lusa. Mas este já era produzido pelas colônias antilhanas inglesa e distribuído na
Europa, concorrendo com o português e determinando baixos preços. Configura-se
assim o seguinte quadro: a Inglaterra lucra vendendo produtos manufaturados e de
primeira necessidade (alimentos, roupas) a Portugal e seus domínios, e, possuindo
também os direitos de transporte dos produtos portugueses às colônias e vice-versa,
obtinha rendas. Portugal, no entanto, conseguia baixos rendimentos: as importações
coloniais, de produtos agrícolas, concorriam no mercado europeu com as de outras
metrópoles; as exportações para os mercados de suas colônias pouco rendiam, visto que
eram dominados pelos produtos ingleses; suas exportações para a Inglaterra resumiam-
se, principalmente, a vinhos (que, segundo Sideri, já tinham desde tal época menor taxa
de entrada no mercado inglês para concorrer com os franceses) e outros alimentos; e
ainda tinha de dividir parte do que ganhava, para pagar custos de transporte. Essa perda
do exclusivismo agravou a situação portuguesa, bem como a diferença de valor entre os
produtos trocados entre as duas nações, e não só criou um grande déficit na balança
comercial com a Inglaterra mas minou possibilidades de desenvolvimento. Sideri pensa
que “o lento desenvolvimento [do comércio de Portugal com as colônias] provocava
um incentivo na criação e expansão das manufacturas em Portugal. A partir da
assinatura dos tratados(...) reduziu-se significativamente a percentagem dos
manufaturados portugueses exportados para as colônias”. O pólo de destaque comercial
desloca-se para a ilha européia, que passa a controlar as transações comerciais com o
universo colonial e o Oriente.
Da mesma forma, dentro de Portugal os comerciantes ingleses obtinham
vantagens comerciais que os permitiam construir fortuna. Eles formavam entre si
organizações comerciais (feitorias) e controlavam os negócios de importação e
exportação entre Inglaterra, colônias e Portugal. E, quando a exportação de vinho (final
do século XVII) para a Inglaterra tornou-se um negócio importante, passaram a
controlar a produção na região do Alto Douro, submetendo os plantadores aos preços
que estabeleciam e fazendo todo tipo de chantagens para comprar os vinhos da maneira
que lhes fosse melhor e mais lucrativa.
Tal situação foi reforçada quando, em virtude do Tratado de Methuen, Portugal
se especializou na produção vinícola (em detrimento de outras culturas) e um pouco
atenuada quando Pombal colocou intervenção estatal nas transações entre comerciantes
e produtores, com a Companhia de Vinhos do Alto Douro. Tamanhas facilidades
somente poderiam atrair ingleses para estabelecer negócios em Portugal. Segundo João
Lúcio de Azevedo, “em 1717 contavam-se 90 casas de comércio inglesas somente em
Lisboa”. Mas é preciso ressaltar que tal monopólio comercial inglês era reforçado
também pelo que se disse na primeira parte: a falta de mentalidade comercial dos
portugueses, sua falta de preparo para o Capitalismo. Vejamos o comentário do mesmo
historiador a respeito dos comerciantes lusos da época: “Os negociantes da terra eram
poucos, fracos de cabedal e ignorantes(...) traficantes bisonhos, e sem o recurso
indispensável do crédito, porque bancos não havia, os ardis triviais do comércio
encontravam-se inermes”.
Portanto, uma primeira mas fundamental conclusão podemos alcançar, que já
serve para desmistificar o Tratado de Methuen (visto por muitos erroneamente como o
que estabelece a dependência lusitana aos ingleses). A dominação comercial
portuguesa pela Inglaterra, bem como o domínio desta nas colônias lusas,
estabelece-se logo após a Restauração. Methuen não a constitui, mas sim a reforça,
como escreveu Sideri. “O tratado(...) mais não foi que o resultado lógico de uma
situação vinda do século XVII, com a assinatura dos tratados de 1642, 1654 e 1661”. Da
mesma maneira, esse tratado não propôs exclusivismo comercial entre ingleses e
portugueses: os primeiros não deixaram de comprar vinhos de França e Espanha
somente porque tinham acordo com Portugal; os segundos tentaram desenvolver
manufaturas têxteis, diminuir a influência inglesa e constituíram relações comerciais
inclusive com inimigos ingleses (sendo tal ação parte integrante das relações de
neutralidade lusas defendidas por Novais em sua obra: Portugal evitava envolver-se em
guerras européias para assim, mesmo aliado comercial da Inglaterra, poder
comercializar com outros países). Portugal possuía acordos de defesa e comerciais com
os ingleses, que tinham preferência. Mas não deixou em nenhum momento de procurar
manter uma política neutra no continente, abstendo-se de tomar posições em guerras
(somente quando a Inglaterra o forçava tinha de participar) e mantendo comércio com
outras nações. Por exemplo, lusitanos e franceses mantinham intensas relações
comerciais no século XVIII tendo como produto chave o algodão produzido no Brasil;
da mesma forma, não deixaram de entrar em Portugal panos franceses e holandeses,
embora em menor quantidade e taxas de impostos superiores às da Inglaterra.
Em algumas oportunidades Portugal até enfrentou a Inglaterra, principalmente
no governo de Pombal, quando o Estado passou a exercer maior controle sobre a
produção vinícola (intermediando a venda de produtores aos comerciantes ingleses,
procurando auxiliar os primeiros), promovendo um processo de industrialização e
controlando com mais afinco o comércio entre Portugal e Brasil, por meio de
Companhias de Comércio. Pombal sentia que era preciso reduzir a influência inglesa
para reconquistar a independência nacional e melhorar a economia. Seus planos
enfrentaram represálias por parte da Inglaterra (que, por exemplo, praticamente igualou
as taxas de entrada dos vinhos franceses e portugueses em seu território, reduzindo
assim a procura por este na Inglaterra e, conseqüentemente, as exportações
portuguesas), mas alcançaram certo sucesso: Portugal reduziu suas importações e
diversificou as exportações. No entanto, a entrada do século XIX trouxe a invasão
napoleônica e a necessidade de proteção inglesa. O domínio voltava a se configurar;
agora, mais forte e disposto a aplicar uma punhalada em Portugal: tirar os lusitanos da
intermediação do seu comércio com o Brasil.
Espera-se aqui termos consertado um certo equívoco de muitos livros, que é
considerar o Tratado de Methuen como definidor de exclusivismos comerciais anglo-
lusitanos, bem como que o único estabelecedor das relações de dominação dos ingleses
sobre a nação lusitana.
O TRATADO DE METHUEN E SUAS INTERPRETAÇÕES
Assinado em 27 de dezembro de 1703 em Lisboa, o Tratado de Methuen
constava de três artigos, afirmando que a Inglaterra se comprometia a adquirir os vinhos
de Portugal, pagando estes dois terços dos direitos impostos aos vinhos franceses. Na
mesma lógica, os portugueses se comprometiam a adquirir os panos ingleses. Este
tratado, como afirmamos, somente confirmou os termos já definidos nos tratados do
século anterior; ele apenas reafirma e confirma as práticas comerciais de exportação
vinícola e têxtil que as nações desenvolviam entre si. Na prática, podemos considerar, e
é o lado defendido neste trabalho, que Methuen apenas ajuda a agravar a crise
econômica lusitana e fornece aos ingleses os subsídios para financiar a Revolução
Industrial e firmar-se definitivamente como a maior potência européia.
Sideri afirma em seu livro que as relações comerciais anglo-lusitanas geravam,
na maioria dos casos, déficit comercial na balança portuguesa, visto que o valor em
importações (não somente de panos, mas outras mercadorias de primeira necessidade)
era sempre maior que o de exportações. A produção de vinho para exportação somente
piorou tal quadro, pois as melhores terras da nação dedicaram-se exclusivamente a tal
cultura, reforçando a necessidade de compra de alimentos. Para agravar mais ainda, os
vinhos rendiam pouco para Portugal, pois, como vimos, sua venda era coordenada pelos
comerciantes ingleses residentes em terras portuguesas (utilizando-se dos meios já
citados anteriormente, esses comerciantes locais de saída monopolizavam o grosso das
rendas do comércio de vinhos, o que contribuía para os baixos lucros portugueses e as
altas rendas da Inglaterra).
Como compensar tal situação e pagar os déficits, garantindo assim a manutenção
das relações com seu maior parceiro e a proteção militar contra invasões que ele lhe
assegurava? Aqui entra o ouro das minas brasileiras; será este metal o grande fator
econômico que os lusos oferecerão à Inglaterra para equilibrar o comércio. E não se
pode negar que o metal era de interesse inglês. Luiz Koshiba afirma que o tratado foi
coincidentemente assinado na época em que começava a descobrir-se ouro no Brasil.
Afinal, a Inglaterra necessitava de ouro para equilibrar sua própria balança comercial
com a França (que apresentava déficits), aumentar seus estoques e ampliar a circulação
de moeda corrente em seu território, intensificando assim o mercado interno e os
capitais que este poderia gerar com o incremento da produção que tal mercado pediria.
O metal brasileiro, não tendo em quê ser investido em Portugal (pois esta possuía
restrito mercado interno e não tinha atividades manufatureiras a serem expandidas) será
escoado quase em sua totalidade para a nação inglesa, permitindo a acumulação de
capitais por parte da burguesia inglesa bem como o crescimento do mercado local; ou
seja, será um fator essencial para a ocorrência da Revolução Industrial, que colocou a
Inglaterra na liderança mundial. Claro que, para tal acontecimento, não se pode negar a
influência dos próprios termos de Methuen: ao conseguir um mercado fiel aos seus
tecidos, a indústria inglesa pôde desenvolver sua produção, criando as condições para
acumular capital a ser reinvestido. Em troca de tantas vantagens, somente tiveram de
ajustar seu paladar para consumir vinho do Porto, que era, de início, preterido pelos da
França.
Portanto, podemos também afirmar que o Tratado de Methuen confirmou a
dominação inglesa sobre Portugal e suas colônias, em especial o Brasil. Mais do que
isso, impediu o desenvolvimento industrial lusitano, ao controlar seu abastecimento de
têxteis, e fez-se mais grande com o ouro brasileiro. O crescimento de um (ingleses)
representou a decadência do outro (portugueses); economicamente falando, podemos
afirmar que a divisão de tarefas produtivas anglo-portuguesas encaixa-se nos nascentes
princípios econômicos liberais do século XVIII: elas faziam parte da chamada Divisão
Internacional do Trabalho, desenvolvida pelo economista David Ricardo e que
pregava a especialização dos países em determinada função que bem soubessem
cumprir, dinamizando e desenvolvendo assim a economia mundial como um todo, bem
como as boas relações entre as nações. Em outros termos, uma divisão entre países
desenvolvidos (produtores de manufaturas) e subdesenvolvidos (produtores de matérias-
primas).
No entanto, esse consenso sobre Methuen não existe. Até hoje diversos autores
debatem o tratado. Há alguns, como Antônio Mattoso, que consideram-no como
benéfico para ambas as partes: os vinhos lusos estabeleceram-se de vez nas ilhas
inglesas, os panos ingleses penetraram em Portugal derrubando as restrições impostas
no final do século passado, quando a política do Conde de Ericeira tentou desenvolver
manufaturas nas terras lusitanas, para evitar gastos maiores com importações. No
entanto, tal tentativa foi combatida e vencida por pressões inglesas e até mesmo
internas: a aristocracia portuguesa atravancava o desenvolvimento industrial, pois
considerava este um rompimento de suas tradições campestres. Essa visão está ausente
em Sideri. Este autor afirma decisivamente que as manufaturas em Portugal, por causa
do Tratado, ficaram travadas; o desenvolvimento parou em geral, a economia entrou em
crise. “A agricultura encontrava-se em estado lastimoso; o comércio entregue a
estrangeiros, as manufaturas não existiam nas zonas costeiras, e as do interior possuíam
técnicas ultrapassadas e não conseguiam progredir, dada a limitação das capacidades
empresariais e a pequena dimensão do mercado que pretendiam abastecer(...) o Brasil, a
única colônia com (...) dimensão econômica, constituía um mercado importador de bens
estrangeiros, especialmente ingleses”. Daí conclui Sideri: “é de todo impossível
defender a idéia de que o Tratado de Methuen provocou vantagens comerciais para
Portugal”. A citação de Charles Vogel parece esclarecer tudo: “Para Portugal, este
tratado representou a renúncia a qualquer espécie de desenvolvimento industrial e
resultou na transferência para a Inglaterra do impulso dinâmico gerado pelo ouro
brasileiro”. Já João Lúcio de Azevedo afirma que não foi Methuen quem deu
preponderância à Inglaterra no comércio com Portugal, mas sim os tratados de 1642, 54
e 61. O de 1703 caracterizou-se, para ele, por propiciar às indústrias lusas fugaz
prosperidade e, principalmente, a expansão da cultura vinícola na região do Alto Douro.
Mas não nega que, nesses tratados, “todas as obrigações ficavam a Portugal, todas as
vantagens a Inglaterra”
Por seu lado, Jorge Borges de Macedo considera, sim, que Portugal realmente
enfrentou no século XVIII uma decadência manufatureira, mas não em decorrência do
tratado de Methuen e sim do ouro brasileiro. Para o citado autor, a obtenção do metal na
colônia americana fizera com que Portugal parasse de se preocupar com o
desenvolvimento de outras formas de pagar suas dívidas com a Inglaterra ou procurasse
incrementar a produção agrícola e de manufaturas internamente para assim reduzir
importações, visto que havia agora ouro para pagar tais dívidas. Teria sido, então, a
posse do metal um estimulador para solucionar os problemas facilmente, sem se pensar
a longo prazo de que o ouro poderia acabar e, sem desenvolvimento interno, a
necessidade de importação tornar-se maior. Continua o autor: “os portugueses tiveram a
indústria muito diminuída desde que encontraram as minas de ouro e prata do Brasil”.
Parece que o caráter do lusitano, de procurar soluções rápidas e instantâneas para seus
problemas e não fazer projetos para o futuro, prendendo-se totalmente ao momento
vivido (tão bem mostrado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil),
continuava imperando, mesmo com o crescimento de outro sistema comercial e
produtivo (Capitalismo).
No aspecto manufatureiro, o autor afirma ainda que não se pode generalizar;
afinal, algumas manufaturas funcionavam nas localidades do interior; as classes
populares continuavam a consumir os tecidos portugueses, que eram de pior qualidade
mas mais baratos. Os maiores consumidores de tecidos ingleses eram as classes médias
e nobreza, habitantes das regiões costeiras (e influenciadas diretamente pelos navios
ingleses que chegavam abarrotados de tecidos). No entanto, nem sempre esses tecidos
penetravam no interior da nação, o que garantia a preponderância dos panos nacionais
nessas áreas. O que Macedo procura demonstrar é que “tanto antes quanto depois do
Tratado de Methuen, continuou a existir indústria de lanifícios em Portugal, com amplo
e longo consumo”. Contraria, assim, a visão de Sideri, talvez um pouco extremista.
João Lúcio de Azevedo afirma em sua obra que, realmente, parte da indústria
lanifícia sobreviveu em Portugal mesmo com os tratados. Cita, por exemplo, que o
abastecimento de panos às forças armadas era encargo das manufaturas portuguesas;
mas não deixa de ressaltar que tal indústria estava em decadência, e aponta motivos:
além do quase exclusivismo inglês no abastecimento comercial, a insuficiência técnica e
falta de participação de um Estado decidido a apoiar esse processo de industrialização, e
que não ficasse mais preso à mentalidade feudal de sua nobreza, entrando de uma vez
no universo capitalista. Para comprovar esse quadro, afirma que em 1784, “dos
lanifícios consumidos em Lisboa, não passariam de uma décima parte os de produção
nacional”.
Da mesma forma que não se pode negar a vivência, ainda que limitada, das
manufaturas lusitanas durante a época dos tratados, também não se pode afirmar que sua
participação era ínfima perto do poderio e capacidade inglesas.
Assim, o Tratado de Methuen tem sua importância no quadro econômico e
político do século XVIII. Determinou o domínio inglês sobre Portugal, um mercado
garantido para seus produtos e fundos monetários para realizar a Revolução Industrial e
tornar-se a maior potência européia. Trata-se de um fato histórico a ser estudado e
desmistificado em muitos de seus aspectos e conseqüências, analisados erroneamente. E
esta foi a proposta que procuramos desenvolver neste trabalho, e que esperamos ter
cumprido.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA:
AZEVEDO, João Lúcio de – Épocas de Portugal Econômico. Lisboa, Livraria
Clássica, 1929.
Um dos mais importantes historiadores portugueses do século, João Lúcio dá uma das
melhores descrições e análises sobre a evolução e decadência da economia portuguesa
desde o surgimento do Condado Potucalense, no século XI, até o final da época
colonial.
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio – Raízes do Brasil. São Paulo, Cia. Das Letras,
1995.
Um dos livros mais importantes na “interpretação do Brasil moderno”, Raízes é o
legado mais conhecido e analisado da vasta obra de Sérgio Buarque. Aliando a
interpretação dos fatos da história brasileira e portuguesa à análise da mentalidade social
dos dois territórios, o historiador contribui para a definição de muitos aspectos que
permeiam nossa história e nosso modo de ser e agir até hoje.
GODINHO, Vitorino Magalhães – Os Descobrimentos e a Economia Mundial.
Lisboa, Ed. Presença, 4 vols., 1981-83.
Seguindo o exemplo de João Lúcio de Azevedo, Godinho pertence à restrita casta dos
melhores historiadores lusitanos. Neste livro, ele compara o cenário mundial dos
Grandes Descobrimentos à transformação da economia e sociedade portuguesa, em sua
ascensão e posterior queda. Mostra de forma magistral como a maior parte dos recursos
obtidos pela nação portuguesa em suas colônias foi gasto não num processo
modernizador, mas de forma fútil, analisando tal fenômeno como decorrente de uma
transição não concretizada do Feudalismo para o Capitalismo.
KOSHIBA, Luiz – História do Brasil. São Paulo, Ed. Atual, 1993.
Obra didática, mas bem escrita. Contém boa análise sobre o período da mineração no
Brasil e como o ouro aqui recolhido se destinava a cobrir parte do déficit comercial com
a Inglaterra. Livro de referência.
MATTOSO, Antônio G. – História de Portugal. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1939
Relato sobre os principais fatos da história lusitana, com uma leve porção de
saudosismo e ufanismo. É um dos poucos a defender a tese de que o Tratado de
Methuen também foi benéfico a Portugal, que obtinha superávit com a exportação de
vinho em troca dos panos ingleses.
NOVAIS, Fernando – Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São
Paulo, Ed. Hucitec, 1979.
Livro fundamental para o entendimento das relações entre Brasil e Portugal, e entre este
e a Europa, nos séculos XVIII e XIX. Novais analisa a transformação do regime
colonial com a decadência lusitana e o aparecimento de novas potências econômicas e
coloniais, como França e a própria Inglaterra, que usará sua pujança para dominar o
mercado interno e colonial português com o intuito de converter-se na maior força do
continente europeu. É nesse contexto que ele recupera dois tratados comerciais
anteriores entre lusitanos e ingleses, que dão base ao acordo de Methuen na entrada do
século XVIII.
SERRÃO, Joel (org.) – Dicionário da História de Portugal. Lisboa, Iniciativas
Editoriais, Volume III.
Narra a história lusitana por meio de verbetes significativos à trajetória do país. Como
Mattoso, Joel Serrão defende a superioridade portuguesa no acordo de Methuen e
afirma que o tratado incentivou a indústria vinícola do país. Esse argumento é
contestado principalmente por Sandro Sideri.
SIDERI, Sandro – Comércio e poder: colonialismo informal nas relações anglo-
portuguesas. Lisboa, trad. Port., Ed. Cosmos, 1970.
Livro-base deste ensaio, se detém especificamente na análise de todos os tratados
firmados desde o século XVII entre Portugal e Inglaterra. Perfeito nas descrições de
conjunturas históricas e interpretação dos fatos, a obra de Sideri se torna um tanto
cansativa quando se propõe a analisar as teorias econômicas vigentes na época e o valor
das moedas de troca nessas relações econômicas. Entre os livros usados, é o mais
completo para consultas sobre os tratados comerciais entre portugueses e ingleses,
analisando-o de forma crítica.