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Introdução à Filosofia Matemática - Bertrand Russell

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Um clássico livro de popularização da ciência que ainda hoje conserva sua vitalidade original e satisfaz as intenções de seu autor: propiciar ao leitor comum a compreensão dos métodos e objetivos da lógica matemática; fazer com que a lógica auxilie a filosofia a enfrentar questões que lhe são próprias. De modo brilhantemente conciso e com enorme poder de argumentação, Bertrand Russell nos oferece uma introdução acessível e clara ao mundo altamente abstrato da lógica formal e aos fundamentos da matemática. Publicado pela primeira vez no Brasil por Zahar Editores, em 1981, essa nova edição é um fascinante documento histórico a respeito da ascensão da lógica formal como modo de conhecer o mundo.

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Introdução

RussellescreveuIntroduçãoà iloso iadamatemática naprisão,duranteoverão de 1918. Em janeiro daquele ano ele havia sido intimado pelasautoridadeseacusadodefazerumadeclaraçãoqueinsultavaumaliadodaGrã-Bretanha em tempode guerra.O aliado eramos EstadosUnidos, e oque Russell escrevera era que os Estados Unidos provavelmentetenderiamaintimidargrevistasnaGrã-BretanhaenaFrançadepoisqueaguerra terminasse, “uma ocupação que o Exército norte-americano estáacostumado a ter em casa”. Embora ele baseasse sua declaração numrelatório do Senado dos Estados Unidos, foi julgado, condenado esentenciado a seis meses como prisioneiro na segunda divisão. (Talvezfossem as duas frases seguintes à citada que tivessem levado asautoridades, que haviam suportado provocações de Russell durante doisanos,aprocessá-lo:“Nãodigoqueestespensamentosestejamnamentedogoverno. Todos os indícios tendem a mostrar que não há absolutamentenenhumpensamentonamentedaquelesqueocupamospostosdoEstado,equeelesvivemaodeus-dará,consolando-secomaignorânciaeastolicessentimentais.”) A perspectiva de passar seis meses na segunda divisãodeixou Russell e seus amigos extremamente alarmados, temendo danospara seu intelecto; assim, pressionaram o governo para que a sentençafossealteradapeloencarceramentonaprimeiradivisão.Naquele tempo as distinções de classe penetravam até as prisões. Os

prisioneiros da primeira divisão pagavamaluguel pelo uso de suas celas;tinham permissão para mobiliá-las com seus próprios móveis; estavamautorizados a contratar outro prisioneiro para lhes servir de criado; nãoeram submetidos ao racionamento de comida; tinham permissão paradispor de livros e material para escrever. Todos esses privilégios eramnegadosaoscon inadosnasegundadivisão.Alémdisso,osprisioneirosdaprimeiradivisãotinhamdireitoarecebermaiscartasemaisvisitasqueosquecumpriampenanasegunda.Paraseuméritoperene,ArthurBalfour,cujas pretensões e capacidades ilosó icas Russel e difamara, e a cujaspolíticaspúblicasopunha-seacerbamente,conseguiuqueasentençafossealterada. Enormemente aliviado, Russell passou a planejar o melhor usopossívelparasuaretiradaforçadadomundo.Havia alguns anos que ele pretendia escrever um livro-texto de lógica.

Tinha aguda consciência de quePrincipia Mathematica, apesar de sua

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reconhecida importância, tinha muito poucos leitores; estava convencido,noentanto,deque,senovos ilósofosocompreendessem,enfrentariamosproblemas ilosó icosdemaneiramuitomaispro ícuadoquecostumavamfazer. O mais importante nosPrincipia para efetuar essa revolução sãoseus conceitos básicos que, Russell estava convencido, podem serapreendidos independentemente da massa de símbolos em que estãoinseridasnaquele livro.Na iminênciadaprisão,eledecidiuquechegaraomomentode levaracaboseuprojeto.Oplanoamadurecidorequeriadoislivros:oprimeiro,um“Prelúdioaos Principia”;osegundo,umameticulosareelaboraçãode“A iloso iadoatomismológico”.ComoaprimeirapartedoprojetoerasimplesmenteumaintroduçãoaosPrincipia,nenhumapesquisaadicional se faria necessária. Ele precisaria apenas organizar o materialquetinhanacabeçaepô-lonopapel.Nosmesesqueprecederamimediatamentesuaintimação,Russellhavia

proferidoduassériesdeconferênciasemLondresparapúblicospagantes.Aprimeiradelasabrangeuomesmoterrenoque Introduçãoà iloso iadamatemática; a segunda tornou-se famosa como “A iloso ia do atomismológico”.Nãoexistenenhummanuscritoou textodatilografadodaprimeirasérie de conferências; um estenógrafo registrou a segunda, tal comopronunciada, incluindo as discussões que se seguiram, e esse textodatilografado foi editado por Russell e outros para publicação numarevista. O primeiro conjunto, que tratava de assuntos muito conhecidos,provavelmentenãodiferiaemsubstânciado textodeste livro.DepoisqueRussellsedecidiaporumamaneiradeexplicarumaidéia,invariavelmenteperseveravanela.Em1ºdemaiode1918,oapelodeRussellcontraasentençadeprisão

foi rejeitado, e nesse mesmo dia ele ingressou na prisão Brixton. Ficoudecepcionado quando as autoridades lhe ordenaram pegar um táxi;alimentara a esperança de que providenciariam seu transporte numcamburão. Em suaAutobiografia, rememorou a recepção que teve noportãodapenitenciária:

Fuimuitoconfortado,aochegar,pelocarcereironoportão,quehaviaobtido informações sobremim. Perguntouminha religião e respondi“agnóstico”. Pediu-me que soletrasse a palavra e comentou, com umsuspiro:“Bem,hámuitasreligiões,massuponhoquetodascultuamomesmoDeus.”Essecomentáriomemantevedebomhumorporcercadeumasemana.

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Antes de ser encarcerado, ele havia traçado seu plano de trabalho:quatrohorasdeescrita ilosó icapordia,quatrohorasdeleitura ilosó icae quatro horas de leituras gerais. Na segunda-feira, 6 de maio, porém,ainda não tinha livros nem material para escrever. Havia, contudo,mobiliadosuacelacomumacamaeoutrosmóveisenviadospelo irmão,aquemescreveunesse dia: “Espero logo termaterial para escrever: entãoredigirei primeiro um livro chamado Introdução à lógica moderna, equando ele estiver terminado começarei umaobra ambiciosa quedeveráse chamarAnálisedamente. As condições aqui são boas para a iloso ia.”Maisadiante,namesmacarta,pediuaoirmãoparatransmitiresserecado:“Diga aWhiteheadquequero escrever um livro-texto para osPrincipia elereitudooqueeleconsiderarrelevante.”Em 21 de maio Russell enviou uma mensagem a H. Wildon Carr, na

época secretário honorário da Aristotelian Society, que estava atuandotemporariamente como seu agente literário: “Escrevi cerca de 20 milpalavras daIntrodução à iloso ia da matemática , para desenvolver asconferências dadasantes do Natal. Depois trabalharei sobre asconferênciasdadasdepoisdoNatal(quetenho,obrigado).”Maisadiante,nacarta,retornouao livro: “Esperoterminara Introduçãodentrodemaisoumenosummês.Aprisãoéumbomlugarparaleiturasetrabalhofácil,masseria impossívelparaumpensamento realmentedi ícil.”Apenas seisdiasdepois, numa carta ao irmão, Russell incluiu outro recado para Carr:“QuasetermineiaIntroduçãoà iloso iadamatemática ,umprelúdiode70mil palavras aosPrincipia.” Passou então a mencionar várias questõesilosó icas para as quais precisava encontrar respostas defensáveis antesdeseacharemcondiçõesdeescreverosegundolivroprojetado.Este,quese chamariaElementosde lógica, “proporáabase lógicadoque chamode‘atomismo lógico’ e situará a lógica em relação à psicologia, matemáticaetc.”. Pretendia tratar de muitas das questões ilosó icas que o estavamperturbandoemumoutroprojetode livro, Análisedamente, e o trabalhopreliminar sobre ele consumiu o restante de seu tempo na prisão. Esselivrofoipublicadoem1921.Numa carta anterior ao irmão, em 16 de maio, Russell descreveu

ElementosdelógicacomoessencialparaacompreensãodasidéiasaseremdesenvolvidasemAnálisedamente:

Continuarei com minhaAnálise da mente, que, caso bem-sucedida,deveria ser mais uma obra extensa e importante. Ela deverá secomplementar com um livro sobre lógica: não o que estou fazendo

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agora, que deve ser um livro-texto, mas outro, na linha dasconferências que dei depois do Natal: sem tal complemento, seriapraticamente ininteligível. Prevejo pelomenos três anos de trabalhosobreessetema.

Éumapenaqueelenãotenhareelaborado“A iloso iadoatomismológico”e mElementos de lógica; essas conferências foram citadas com muitafreqüêncianosanosentreasguerras,apesardedisponíveisapenasnumarevista; parece provável que teriam sido ainda mais amplamenteestudadas,eassimmais in luentes,se fossemmais facilmentedisponíveis,sobformarevistaeampliada,numlivro.“A iloso iadoatomismológico”foireproduzidanovolume8deTheCollectedPapersofBertrandRussell.Em suas discussões daIntrodução à iloso ia da matemática , Russell

descreve a obra por vezes como uma introdução aos Principia, como foimencionado, e por vezes como “uma versão semipopular deOs princípiosda matemática”, como o faz em suaAutobiografia. Talvez esta últimadescrição seja um mero lapso.Princípios, em retrospecto histórico, foi aprimeira a irmação que Russell fez da tese de que grande parte damatemática é um ramo da lógica, tese que ele e Alfred Whiteheaddesenvolveram elaboradamente nosPrincipia Mathematica. (Princípios,porém, é muito mais que isso, pois contém extensas e importantesdiscussões damaior parte das questõesmeta ísicas tradicionais.) Os trêslivros,portanto,sãoobviamenterelacionados,mas Introduçãoà iloso iadamatemática está tão completamente imbuído das idéias centrais dosPrincipiaqueparecequasedescabido falardelecomomaisestreitamenterelacionada aosPrincípios. Para citar apenas um exemplo: a teoria dasdescriçõesdeRussell,quesófoipublicadadoisanosdepoisdolançamentodePrincípios,éobjetodeumcapítulointeironaIntrodução.OmanuscritodaIntroduçãoà iloso iadamatemática encontra-seagora

nosRussellArchives,naMcMasterUniversity,emHamilton,emOntário.Odiretor da prisão foi obrigado a lê-lo para veri icar se continha algumacoisaproibidapelosregulamentosdotempodeguerra,mas,supomosquecomgrandealívio,delegouatarefaCarr.Estelheassegurouqueaobraeraoqueseutítuloindicavaequenadacontinhadesubversivo.Umavezforadaprisão,omanuscritofoientregueàdatilógrafacostumeiradeRussell,asenhoritaKyle,paraquepreparasseumacópiaparaos tipógrafos.Numacarta de 29 de julho ao irmão, Russell expressou certa irritação com oatraso da datilogra ia: “Diga à senhorita Kyle para se apressar com aIntroduçãoà iloso iadamatemática — ela está com o livro hárealmente

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muitotempo.”Ascartasqueenvioudaprisãonãoregistramadataemqueapresentou o livro ao diretor para exame, mas presumivelmente foi noiníciodejunho,poisolivrotemmenosde80milpalavras.Omanuscritofoiinalmente devolvido a Russell e ele o deu de presente a lady ConstanceMalleson,comquemmantinhaumcasonaépoca.Antesdesuamorte,em1975, ela o vendeuaoRussellArchives com todosos outrosmateriais deRussell que possuía. Uma inspeção desse manuscrito mostra claramentequeRussell seguiu seu próprio conselho de fazer todas asmudanças emseu texto na própria cabeça e depois simplesmente redigir a forma inal.Hámuitopoucasalteraçõesemseumanuscritoeabsolutamentenenhumatentativadeformulaçãofoicancelada.Numpontodolivro,Russellaludeàscondiçõesadversassobasquaisele

foiescrito.NoiníciodoCapítulo16,adverteoleitordequeoartigodefinidoexigedoiscapítulos:umparaosigni icadodosingularoeoutroparaodopluralos.

Podeserconsideradoexcessivodedicardoiscapítulosaumapalavra,mas para o matemático ilosó ico essa é uma palavra de grandeimportância: como o gramático de Browning 1 com o enclítico δε, euenunciaria a doutrina dessa palavra se estivesse “morto da cinturaparabaixo”,enãomeramentenumaprisão.

Carrtalveztenhadesviadoosolhosaotoparcomessapassagem.A melhor descrição dos conteúdos deste livro e de seu nível de

di iculdade foi escrita pelo próprio Russell como publicidade para aprimeira edição. O texto apareceu apenas na sobrecapa da primeiraimpressãodaprimeiraedição;jánasegundaimpressão,foisubstituídoporumtrechodeumacríticaentusiásticapublicadanoAthenaeum.

Estelivrodestina-seaosquenãotêmconhecimentopréviodostópicosdequetrata,enãosabemdamatemáticanadaalémdoquepodeseradquiridonaescolaprimáriaoumesmoemEton.Eleexpõede formaelementarade iniçãológicadenúmero,aanálisedanoçãodeordem,a doutrina moderna do in inito e a teoria das descrições e classescomo icções simbólicas.Os aspectosmais controversos e incertosdamatériasãosubordinadosàquelesquepodemagoraserconsideradosconhecimentocientí icoadquirido.Essessãoexplicadossemousodesímbolos,masdemaneira adar aos leitoresumacompreensãogeraldos métodos e objetivos da lógica matemática, que, como se espera,

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será do interesse não só dos que desejam avançar para um estudomaissériodamatéria,comodaquelecírculomaisamploquesenteumdesejo de conhecer os procedimentos dessa importante ciênciamoderna.

Amaliciosa referência deRussell a Etonprovavelmentedeixou StanleyUnwin constrangido, e, naprimeiraoportunidade, ele paroudeusar essadescrição. Mas ela é tãoquintessencialmente russelliana quemerece sermuito mais conhecida do que foi até agora. Exceto por sua avaliação dopreparo exigido do leitor, que certamente se pode questionar, o restantedotextodescreverealmentecomprecisãodoquetrataolivro.Masesteéum livro para ser estudado, não meramente lido. Os que o estudaremcuidadosamente emergirão com uma boa apreensão da iloso iamatemática deRussell e terão se preparadopara enfrentar seus livros eensaios mais técnicos, em que suas contribuições originais para a lógicamatemáticatinhamsidopublicadasanteriormente.Somenteassimpoderãoexperimentar o gênio de Russell para o trabalho original (emcontraposiçãoàmeraexposição)emprimeiramão.

JohnG.SlaterUniversidadedeToronto

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Prefácio

Este livro destina-se a ser essencialmente uma “Introdução”, e nãopretendeapresentarumadiscussãoexaustivadosproblemasdequetrata.Pareceu desejável expressar certos resultados, até agora só disponíveispara aqueles que dominaram o simbolismo lógico, de uma forma queofereçaomínimodedificuldadeparaoiniciante.Foifeitoomáximoesforçopara evitar o dogmatismo acerca de questões que ainda estão abertas aséria dúvida, e esse esforço dominou em certa medida a escolha dostópicosconsiderados.Os primórdios da lógica matemática são menos explicitamente

conhecidos que suas parte mais recente, mas são de interesse ilosó icopelomenosigual.Muitodoqueéexpostonoscapítulosqueseseguemnãodeve ser propriamente chamado de “ iloso ia”, embora as matériasenvolvidas fossem incluídas na iloso ia quando não existia para elasnenhumaciência satisfatória.Anaturezada in inidade eda continuidade,por exemplo, pertenceu antigamente à iloso ia, mas hoje faz parte damatemática.Talvez não se possa argumentar que a filosofiamatemática, no sentido

estrito, inclui resultados cientí icos de inidos como os que foram obtidosnessaregião;deve-seesperar,naturalmente,quea iloso iadamatemáticatrate de questões na fronteira do conhecimento, com relação às quaisainda não se obteve certeza relativa. Mas a especulação acerca dessasquestõesdi icilmente tenderáa ser frutífera, amenosqueaspartesmaiscientí icas dos princípios da matemática sejam conhecidas. Um livro quetrate dessas partes pode, portanto, pretender ser uma introdução àiloso iadamatemática,emboradi icilmentepossaalmejar,excetoquandopisa fora de sua província, estar realmente lidando com uma parte dailoso ia.Eletrataefetivamente,noentanto,deumcorpodeconhecimentoque,paraaquelesqueoaceitam,pareceinvalidargrandeparteda iloso iatradicional, e até boa parte do que é corrente nos dias de hoje. Dessamaneira, assim como por se relacionar com problemas ainda nãoresolvidos,alógicamatemáticaérelevanteparaafilosofia.Por essa razão, bem como em virtude da importância intrínseca da

matéria, pode ser de alguma utilidade fazer um relato sucinto dosprincipais resultados da lógica matemática de uma forma que não exijaqualquer conhecimento de matemática, nem aptidão para simbolismo

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matemático. Aqui, contudo, como em outros lugares, o método é maisimportantequeosresultadosdopontodevistadepesquisasadicionais;eométodonãopodeserbemexplicadonaestruturadeumlivrocomooquese segue. É de esperar que alguns leitores possam icar su icientementeinteressadosparaavançaremdireçãoaumestudodométodopeloqualalógica matemática pode se tornar útil na investigação dos problemastradicionais da iloso ia. Mas esse é um tema de que as páginas que seseguemnãotentaramtratar.BertrandRussell

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Capítulo1Asériedosnúmerosnaturais

A matemática é um estudo que, quando partimos de suas partes maisconhecidas, pode ser continuado em uma de duas direções opostas. Adireção mais conhecida é construtiva, rumo a uma complexidadegradualmentecrescente:denúmerosinteirosparafrações,númerosreais,números complexos; de adição e multiplicação para diferenciação eintegração,eadiante,paraamatemáticasuperior.Aoutradireção,menosconhecida, procede, por análise, rumoà abstração e à simplicidade lógicacadavezmaiores;emvezdeperguntaroquepodeserde inidoededuzidodo que é inicialmente suposto, perguntamos que idéias e princípiosmaisgeraispodemserencontrados,emtermosdosquaisoquefoinossopontodepartidapodeserde inidooudeduzido.Éo fatodeseguiressadireçãooposta que caracteriza a iloso ia matemática em contraposição àmatemáticacomum.Maséprecisocompreenderqueadistinçãosedánãona matéria, mas no estado de espírito do investigador. Os antigosgeômetras gregos, ao passar das regras empíricas da topogra ia egípciapara as proposições gerais pelas quais essas regras puderam serconsideradas justi icáveis, e delas para os axiomas e postulados deEuclides, estavam fazendo iloso ia matemática, segundo a de iniçãomencionada; mas depois que os axiomas e postulados haviam sidoalcançados, o uso dedutivo deles, como o encontramos em Euclides,pertenciaàmatemáticanosentidocomum.Adistinçãoentrematemáticaeiloso iamatemática depende, pois, do interesse que inspira a pesquisa edoestágioqueapesquisaalcançou;nãodasproposiçõesaqueapesquisadizrespeito.Podemosexpressaramesmadistinçãodeoutramaneira.Ascoisasmais

óbviasefáceisemmatemáticanãosãoasquevêmlogicamentenocomeço;sãoaquelasque,dopontodevistadadedução lógica,começamemalgumlugarnomeio.Assimcomooscorposmaisfáceisdeseversãoosquenãoestãonemmuitopertonemmuitolonge,nãosãonemmuitopequenosnemmuitograndes,assimtambémasconcepçõesmaisfáceisdeapreendersãoaquelas que não são nem muito complexas nem muito simples (usando“simples” num sentidológico). E assim como precisamos de dois tipos de

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instrumento, o telescópio e o microscópio, para a ampliação de nossascapacidadesvisuais,tambémprecisamosdedoistiposdeinstrumentoparaaampliaçãodenossascapacidadeslógicas,umparanosfazeravançaratéamatemática superior, o outro para nos levar de volta aos fundamentosmatemáticos das coisas que tendemos a dar como certas emmatemática.Vamos descobrir que, ao analisar nossas noções matemáticas comuns,adquirimos nova penetração, novas capacidades e meios para alcançartemasmatemáticos inteiramente novos, adotando novas linhas de avançoapós nossa viagem para trás. O objetivo deste livro é explicar a iloso iamatemática de uma maneira simples e não técnica, sem se aprofundarsobreaquelaspartes tãoduvidosasoudi íceisque se tornapraticamenteimpossível submetê-las a um tratamento elementar. Um tratamentocompleto será encontrado emPrincipia Mathematica;1 o tratamentoexpostonopresentevolumedestina-seasermeramenteumaintrodução.Para a pessoa medianamente instruída de nossos dias, o ponto de

partidaóbviodamatemáticaseriaasériedosnúmerosinteiros,

1,2,3,4,...etc.

Provavelmente só alguém com algum conhecimento matemáticopensariaemcomeçarcom0emvezde1,masvamospresumiressegraudeconhecimento;tomaremoscomonossopontodepartidaasérie

0,1,2,3,...n,n+1,...

e é essa série que teremos em mente quando falarmos da “série dosnúmerosnaturais”.Sónumestágioelevadodacivilização teríamospodido tomaressasérie

comonossopontodepartida.Devemtersidonecessáriasmuitaserasparasedescobrirqueumaparelhade faisõeseumpardediaseramcasosdonúmero 2: o grau de abstração envolvido está longe de ser fácil. Adescobertadeque1éumnúmerodevetersidodi ícil.Quantoao0,trata-se de uma adição muito recente; os gregos e os romanos não possuíamesse dígito. Se estivéssemos nos aventurando na iloso iamatemática emtemposmaisantigos,teríamosdecomeçarcomalgomenosabstratoqueasériedosnúmerosnaturais,aqual teríamosdealcançarcomoumestágioem nossa viagem ao passado. Quando os fundamentos da matemáticativerem se tornado mais conhecidos, seremos capazes de começar maisatrás, no que é agora um estágio tardio de nossa análise. No momento,

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porém,osnúmerosnaturaisparecemrepresentaroqueémaisfácilemaisconhecidoemmatemática.Embora conhecidos, eles não são contudo compreendidos.Muito pouca

gente tem condições de dar uma de inição do que se entende por“número”,ou“0”,ou“1”.Nãoémuitodi ícilverque,começando-sepor0,se pode chegar a qualquer outro dos números naturais por adiçõesrepetidas de 1,mas precisamosde inir o que entendemospor “adicionar1”eoqueentendemospor“repetidas”.Essasquestõesnadatêmdefáceis.Atérecentemente,acreditava-sequepelomenosalgumasdessasprimeirasnoçõesdearitméticadeviamseraceitascomosimpleseprimitivasdemaispara seremde inidas. Como todos os termos que são de inidos o são pormeiodeoutros termos,éclaroqueoconhecimentohumanodevesempresecontentaremaceitaralguns termoscomo inteligíveis semde inição,demaneira a terumpontodepartidapara suasde inições.Nãoé claroquedeva haver termos que sejamosincapazes de de inir; é possível que, pormaisque recuemosemnossasde inições,possamos sempre irmais longe.Por outro lado, é também possível que, quando a análise foi levadasu icientemente longe, possamos alcançar termos que são realmentesimples, e portanto não passíveis logicamente do tipo de de inição queconsiste em análise. Essa é uma questão que não temos necessidade dedecidir; para nossos objetivos, é su iciente observar que, como ascapacidadeshumanassão initas,asde iniçõesconhecidaspornóssemprecomeçam em certo ponto, com termos inde inidos no momento, emboratalveznãopermanentemente.Toda a matemática pura tradicional, incluindo a geometria analítica,

pode ser encarada como consistindo inteiramente emproposições acercadosnúmerosnaturais. Istoé,ostermosqueocorrempodemserde inidospormeiodosnúmerosnaturais,easproposiçõespodemserdeduzidasdaspropriedades dos números naturais— com a adição, em cada caso, dasidéiaseproposiçõesdalógicapura.É uma descoberta razoavelmente recente que toda matemática pura

tradicional pode ser derivada dos números naturais, embora sesuspeitasse disso havia muito. Pitágoras, que acreditava que não só amatemática, mas todas as outras coisas,podiam ser deduzidas dosnúmeros, foi quem descobriu o mais sério obstáculo no caminho dachamada“aritmetização”damatemática.Foielequedescobriuaexistênciade incomensuráveis, e, emparticular, da incomensurabilidade do lado deum quadrado e sua diagonal. Se o comprimento do lado é 1 metro, onúmero de metros na diagonal é a raiz quadrada de 2, que não era

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número algum. O problema então suscitado só foi resolvido em nossopróprio tempo, e só foi resolvido completamente com a ajuda da reduçãoda aritmética à lógica que será explicada nos capítulos seguintes. Porenquanto, vamos dar por certa a aritmetização da matemática, emboraessatenhasidoumaproezadeimportânciacapital.Tendo reduzido toda a matemática pura tradicional à teoria dos

números naturais, o passo seguinte em análise lógica foi reduzir essateoriaelaprópriaaomenorconjuntodepremissasetermosinde inidosdequeerapossívelderivá-la.Esse trabalho foi levadoa caboporPeano.Elemostrou que toda a teoria dos números naturais podia ser derivada detrês idéias primitivas e cinco proposições primitivas além daquelas dalógica pura. Essas três idéias e cinco proposições tornaram-se dessamaneira,porassimdizer,refénsdetodaamatemáticapuratradicional.Seelas pudessem ser de inidas e provadas em termos de outras, toda amatemáticapuratambémpoderiasê-lo.Seu“peso”lógico,sepodemosusaressetermo,é igualaodetodaasériedeciênciasqueforamdeduzidasdateoriadosnúmerosnaturais;averdadedessasérietodaéasseguradaseaverdade das cinco proposições primitivas estiver garantida, contanto, éclaro, que não haja nada errôneo no aparato puramente lógico quetambém está aí envolvido. O trabalho de análise matemática éextraordinariamentefacilitadoporessetrabalhodePeano.AstrêsidéiasprimitivasnaaritméticadePeanosão:

0,número,sucessor.

Por“sucessor”,eleentendeonúmero seguintenaordemnatural. Istoé,osucessorde0é1,osucessorde1é2,eassimpordiante.Por“número”ele entende, nessa conexão, a classe dos números naturais. 2 Ele não estásupondo que conhecemos todos os membros dessa classe, apenas quesabemosoquetemosemmentequandodizemosque issoouaquiloéumnúmero, assim como sabemos o que temos em mente quando dizemos“João é um homem”, embora não conheçamos todos os homensindividualmente.AscincoproposiçõesprimitivasquePeanosupõesão:

(1)0éumnúmero.(2)Osucessordequalquernúmeroéumnúmero.(3)Doisnúmerosdiferentesnuncatêmomesmosucessor.(4)0nãoéosucessordenenhumnúmero.

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(5) Qualquer propriedade que pertença a 0 e também ao sucessor dequalquer número que tenha essa propriedade pertence a todos osnúmeros.

Este último é o princípio da indução matemática. Teremos muito a dizercomrelaçãoàinduçãomatemáticaadiante;porenquanto,elanosinteressaunicamentetalcomoocorrenaanálisedaaritméticafeitaporPeano.Consideremos brevemente de que maneira a teoria dos números

naturais resulta dessas três idéias e cinco proposições. Para começar,de inimos1como“osucessorde0”,2como“osucessorde1”,eassimpordiante. Podemos obviamente ir tão longe quanto queiramos com essasde inições,umavezque,emvirtudede(2),todonúmeroaquecheguemosterá um sucessor, e, em virtude de (3), esse não pode ser nenhum dosnúmeros já de inidos, porque, se fosse, dois números diferentes teriam omesmo sucessor; e em virtude de (4) nenhum dos números a quecheguemosnasériedesucessorespodeser0.Assim,asériedesucessoresnos dá uma série interminável de números continuamente novos. Emvirtudede(5),todososnúmerospertencemaessasérie,quecomeçacom0eprossegueatravésdeseussucessivossucessores:pois( a)0pertenceaessa série, e (b) se um númeron pertence a ela, seu sucessor tambémpertence;portanto,por induçãomatemática, todonúmeropertenceaessasérie.Suponhamosquedesejemosde inir a somadedoisnúmeros.Tomando

qualquer númerom, de inimosm + 0 comom, e m + (n + 1) como osucessordem+n.Emvirtudede(5),issodáumade iniçãodasomademe n, não importa que númeron seja. Podemos de inir de maneirasemelhante o produto de dois números quaisquer. O leitor pode seconvencer facilmente de que qualquer proposição elementar comum daaritméticapodeserprovadapormeiodenossascincopremissas,esetiveralgumadificuldadepoderáencontraraprovaemPeano.Chegou o momento de nos voltarmos para considerações que tornam

necessárioavançar,alémdopontodevistadePeano—querepresentaaperfeiçãomáxima da “aritmetização” damatemática—, para o de Frege,que foi o primeiro a conseguir “logicizar” a matemática, isto é, reduzir àlógicaasnoçõesaritméticasqueseuspredecessoreshaviamdemonstradosersu icientesparaamatemática.Nãodaremosrealmente,nestecapítulo,a de inição de número e de números particulares de Frege, masapresentaremosalgumasdasrazõespelasquaiso tratamentodePeanoémenosdefinitivodoqueparece.

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Em primeiro lugar, as três idéias primitivas de Peano— a saber, “0”,“número” e “sucessor” — são passíveis de in initas interpretaçõesdiferentes, todas as quais satisfarão as cinco proposições primitivas.Daremosalgunsexemplos.(1)Suponhamosque“0”signi ica100eque“número”sejatomadocomo

signi icandoosnúmerosde100emdiantenasériedosnúmerosnaturais.Nessecaso,todasasnossasproposiçõesprimitivasficamatendidas,mesmoaquarta,pois,embora100sejaosucessorde99,99,nãoéum“número”no sentido que estamos dando agora à palavra “número”. É óbvio quequalquernúmeropodesubstituir100nesteexemplo.(2) Suponhamos que “0” tem seu sentido usual, mas que “número”

signi icaoquechamamosusualmentede“númerospares”,esuponhamosqueo “sucessor”deumnúmeroéoque resultadaadiçãodedois.Nessecaso, “1” será substituído pelo número dois, “2” será substituído pelonúmeroquatro,eassimpordiante;asériede“números”agoraserá

0,dois,quatro,seis,oito...

TodasascincopremissasdePeanocontinuamasersatisfeitas.(3)Suponhamosque“0”signi icaonúmeroumeque“número”signi ica

oconjunto

1,½,¼,1/8,1/16,...

esuponhamosque“sucessor”signi ica“metade”.NessecasotodososcincoaxiomasdePeanoseaplicarãoaesseconjunto.Éclaroqueosexemplospoderiamsermultiplicadosinde inidamente.De

fato,dadaqualquersérie

x0,x1,x2,x3,...xn,...

que é interminável, não contém repetição alguma, tem um começo e nãotemnenhumtermoquenãopossaseralcançadoapartirdocomeçonumnúmero inito de passos, temos um conjunto de termos que veri icam oaxioma de Peano. Isso pode ser visto facilmente, embora a prova formalseja um pouco longa. Suponhamos que “0” signi icax0, e que “número”signi ica todoo conjuntode termos, e suponhamosqueo “sucessor”dexnsignificaxn+1.Então

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(1)“0éumnúmero”,istoé,x0émembrodoconjunto.(2) “O sucessor de qualquer número é um número”, isto é, tomando

qualquertermoxnnoconjunto,xn+1estátambémnoconjunto(3)“Doisnúmerosdiferentesnuncatêmomesmosucessor”,istoé,se xm

exnsãodoismembrosdiferentesdoconjunto,xm+1exn+1sãodiferentes;issoresultadofatodeque(porhipótese)nãohárepetiçõesnoconjunto.(4) “0 não é o sucessor de nenhumnúmero”, isto é, nenhum termono

conjuntovemantesdex0.(5) Issose torna:qualquerpropriedadequepertençaax0 epertençaa

xn+1,contantoquepertençaaxn,pertenceatodososx’s.Issoseseguedapropriedadecorrespondenteparanúmeros.Umasériedaforma

x0,x1,x2,...xn,...

emqueháumprimeirotermo,umsucessordecadatermo(demodoquenão há um último termo), nenhuma repetição, e cada termo pode seralcançado a partir do começo num número inito de passos, é chamadaprogressão. Progressões são de grande importância nos princípios damatemática. Como acabamos de ver, toda progressão veri ica os cincoaxiomas de Peano. Inversamente, pode ser provado que toda série queveri ica os cinco axiomas de Peano é uma progressão: “progressões” são“aquelas séries que veri icam os cinco axiomas”. Qualquer progressãopode ser tomada comoabasedamatemáticapura: podemosdar onome“0”aoprimeirotermo,onome“número”atodooconjuntodeseustermos,eonome“sucessor”aonúmeroseguintenaprogressão.Aprogressãonãoprecisasercompostadenúmeros:podesercompostadepontosnoespaço,ou de momentos de tempo, ou de quaisquer outros termos de que hajauma provisão in inita. Cada diferente progressão dará origem a umadiferente interpretação de todas as proposições da matemática puratradicional; todas essas possíveis interpretações serão igualmenteverdadeiras.No sistema de Peano, nada há que nos permita distinguir entre essas

diferentes interpretações de suas idéias primitivas. Presume-se quesabemosoquesequerdizerpor “0”,equenãodevemossuporqueessesímbolo signi ica 100, ou obelisco, ou qualquer das outras coisas quepoderiasignificar.Esse ponto, isto é, que “0” e “número” e “sucessor” não podem ser

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de inidos por meio dos cinco axiomas de Peano, devendo sercompreendidos independentemente, é importante. Queremos que nossosnúmeros não meramente veri iquem fórmulas matemáticas, mas que seapliquemdamaneira correta a objetos comuns.Queremos terdezdedos,dois olhos e um nariz. Um sistema em que “1” signi icasse 100 e “2”signi icasse 101, e assim por diante, poderia estar muito bem para amatemática pura, mas nãoseria apropriado à vida diária. Queremos que“0” e “número” e “sucessor” tenham signi icados que nos dêem aquantidadecertadededos,olhosenarizes. Já temosalgumconhecimento(emboranãosu icientementedistintoouanalítico)doquequeremosdizerpor “1” e “2” e assim por diante, e nosso uso dos números na aritméticadeveseconformaraesseconhecimento.Nãopodemosassegurarqueesseserá o caso usando-se o método de Peano; a única coisa que podemosdizer,seadotamosessemétodo,éque“sabemosoquequeremosdizerpor‘0’e ‘número’e ‘sucessor,emboranãosejamoscapazesdeexplicaroquetemos em mente em termos de outros conceitos mais simples”. Éperfeitamentelegítimodizerissoquandoprecisamos,eemalgummomentotodos precisamos;mas o objetivo da iloso iamatemática é não dizer issopor tanto tempo quanto possível. Pela teoria lógica da aritmética somoscapazesdeadiarissoporumtempomuitolongo.Seria possível sugerir que, em vez de estabelecer “0”, “número” e

“sucessor”comotermoscujosigni icadoconhecemos,emboranãosejamoscapazes de de ini-los, poderíamos deixá-los representarquaisquer trêstermos que veri iquem os cinco axiomas de Peano. Nesse caso elesdeixarãodesertermosquetêmumsigni icadode inido,emboraestenãoseja de inido: serão termos “variáveis” com relação aos quais fazemoscertas hipóteses, a saber, aquelas expressas nos cinco axiomas,mas quesãosoboutrosaspectos indeterminados.Seadotarmosesseplano,nossosteoremasnãoserãoprovadoscomrelaçãoaumconjuntodeterminadodetermos chamado “os números naturais”, mas com relação a todos osconjuntos de termos que possuam certas propriedades. Semelhanteprocedimento não é falacioso; de fato, para certos propósitos, representaumageneralizaçãovaliosa.Dedoispontosdevista,porém,eleéincapazdefornecerumabaseadequadaparaaaritmética.Emprimeirolugar,nãonoscapacitaasaberseháalgumconjuntodetermosqueveri iqueosaxiomasde Peano; não dá sequer amais leve sugestão de algumamaneira de sedescobrir se conjuntos desse tipo existem. Em segundo lugar, como já foiobservado, queremos que nossos números sejam tais que possam serusados para contar objetos comuns, e isso requer que nossos números

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possuam um signi icadodefinido, não que meramente possuam certaspropriedades formais. Esse signi icado de inido é de inido pela teorialógicadaaritmética.

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Capítulo2Definiçãodenúmero

A pergunta “Que é um número?” foi formulada muitas vezes, mas só foicorretamenterespondidaemnossoprópriotempo.ArespostafoidadaporFregeem1884,emseuGrundlagenderArithmetik .1Emborasejabastantepequeno,nadadi íciledamaiselevadaimportância,esselivronãochamouquasenenhumaatenção,eade iniçãodenúmeroquecontémpermaneceupraticamente desconhecida até ser redescoberta pelo presente autor em1901.Ao procurar uma de inição de número, a primeira coisa sobre a qual

precisamos terclarezaéoquepodemoschamaradegramáticadenossainvestigação. Muitos ilósofos, quando tentam de inir número, estão naverdade empenhados em de inir pluralidade, o que é uma coisainteiramentediferente.Númeroéoqueécaracterísticodosnúmeros,comohomem é o que é característico dos homens. Uma pluralidade não é umcasodenúmero,masdealgumnúmeroparticular.Umtriodehomens,porexemplo,éumcasodonúmero3,eonúmero3éumcasodenúmero;maso trio não é um caso de número. Esse ponto pode parece elementar equase nemmerecermenção; no entanto, provou-se demasiado sutil paraosfilósofos,compoucasexceções.Umnúmeroparticularnãoéidênticoanenhumacoleçãodetermosque

possua esse número: o número 3 não é idêntico ao trio que consiste emBrown, Jones e Robinson. O número 3 é algo que todos os trios têm emcomum e que os distingue de outras coleções. Um número é algo quecaracterizacertascoleções,asaber,aquelasquetêmaquelenúmero.Emvezde falardeuma “coleção”, falaremosemgeraldeuma “classe”,

ou por vezes de um “conjunto”. Outras palavras usadas em matemáticapara a mesma coisa são “agregado” e “múltiplo”. Teremos muito a dizermaistardesobreclasses.Porora,diremostãopoucoquantopossível.Masháalgumasobservaçõesquedevemserfeitasimediatamente.Uma classe ou coleção pode ser de inida de duas maneiras que, à

primeira vista, parecem muito diferentes. Podemos enumerar seusmembros,comoquandodizemos“acoleçãoaquemere iroéBrown,Jonese Robinson”. Ou podemos mencionar uma propriedade de inidora, como

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quando falamos de “humanidade” ou “os habitantes de Londres. Ade iniçãoqueenumeraé chamadaumade iniçãopor “extensão”, e aquemenciona uma propriedade de inidora é chamada uma de inição por“intensão”. Desses dois tipos de de inição, aquele por intensão élogicamente o mais fundamental. Isso é demonstrado por duasconsiderações:(1)queade iniçãoextensionalpodesempreserreduzidaauma intensional; (2) que a de inição intensional muitas vezes não podenem teoricamente ser reduzida à extensional. Cada um desses pontosrequerumapalavradeexplicação.(1)Brown,JoneseRobinsonpossuemtodoselescertapropriedadeque

nãoépossuídapornadamaisemtodoouniverso,asaber,apropriedadedeserouBrown,ouJonesouRobinson.Essapropriedadepodeserusadapara dar uma de inição por intensão da classe que consiste em Brown,JoneseRobinson.Considereumafórmulacomo“xéBrownouxéJonesoux é Robinson”. Essa fórmula será verdadeira para apenas três x, a saber,Brown, Jones e Robinson. Sob esse aspecto, ela se assemelha a umaequação cúbica com suas três raízes. Pode ser tomada como atribuindoumapropriedadecomumaosmembrosdaclassequeconsistenessestrêshomens, e peculiar a eles. Um tratamento similar pode obviamente seraplicadoaqualqueroutraclassedadaemextensão.(2)Éóbvioque,naprática,podemosfreqüentementesabermuitosobre

uma classe sem sermos capazes de enumerar seus membros. De fato,nenhumhomempoderia enumerar todos os homens, oumesmo todos oshabitantesdeLondres;noentanto, sabe-semuito sobre cadaumadessasclasses. Isso basta para mostrar que a de inição por extensão não énecessária para o conhecimento acerca de uma classe. Mas quandopassamos a considerar classes in initas, descobrimos que a enumeraçãonãoésequer teoricamentepossívelparaseresquevivemapenasporumtempo inito.Nãopodemosenumerar todososnúmerosnaturais:elessão0,1,2,3,eassimpordiante. Emalgumpontodevemosnos contentar com“eassimpordiante”.Nãopodemosenumerartodasasfraçõesoutodososnúmerosirracionais,outodosostermosdequalqueroutracoleçãoin inita.Assim, nosso conhecimento acerca de todas essas coleções só pode serderivadodeumadefiniçãoporintensão.Quandoestamosprocurandoade iniçãodenúmero,essasobservações

sãorelevantesdetrêsdiferentesmaneiras.Emprimeirolugar,osprópriosnúmeros formam uma coleção in inita, e não podem, portanto, serde inidos por enumeração. Em segundo lugar, as coleções que têm umnúmero dado de termos formam elas próprias, presumivelmente, uma

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coleção in inita: deve-se presumir, por exemplo, que há uma coleçãoin initadetriosnomundo,poisseessenãofosseocasoonúmerototaldecoisas nomundo seria inito, o que, embora possível, parece improvável.Em terceiro lugar, desejamos de inir “número” de tal maneira quenúmeros in initos possam ser possíveis; assim devemos ser capazes defalardonúmerode termosemumacoleção in inita,e semelhantecoleçãodeveserde inidaporintensão,istoé,porumapropriedadecomumatodososseusmembrosepeculiaraeles.Paramuitospropósitos,umaclasseeumacaracterísticaqueade inasão

praticamente intercambiáveis. A diferença vital entre as duas consiste nofato de que há somente uma classe que possui determinado conjunto demembros,aopassoquehásempremuitasdiferentescaracterísticaspelasquaisumadadaclassepodeserde inida.Oshomenspodemserde inidoscomo bípedes implumes, ou como animais racionais, ou (maiscorretamente) pelos traços comque Swift delineia os Yahoos. É esse fatode uma característica de inidora nunca ser única que torna as classesúteis; de outro modo poderíamos nos contentar com as propriedadescomunsepeculiaresaseusmembros. 2Qualquerumadessaspropriedadespode ser usada em lugar da classe sempre que a singularidade não forimportante.Retornando agora à de inição de número, é claro que número é uma

maneira de reunir certas coleções, a saber, aquelas que têm um dadonúmerodetermos.Podemossuportodososparesnumfeixe,todosostriosem outro, e assim por diante. Dessa maneira, obtemos vários feixes decoleções, cada feixe consistindo em todas as coleções que têm certonúmero de termos. Cada feixe é uma classe cujosmembros são coleçõesistoé,classes;assim,cadauméumaclassedeclasses.Ofeixequeconsisteemtodosospares,porexemplo,éumaclassedeclasses:cadaparéumaclasse com doismembros, e todo o feixe de pares é uma classe com umnúmero in inito de membros, cada um dos quais é uma classe de doismembros.Comodecidiremosseduascoleçõesdevempertenceraomesmofeixe?A

resposta que se sugere a simesma é: “Descubra quantosmembros cadauma tem, e ponha-as no mesmo feixe se tiverem o mesmo número demembros.” Mas isso pressupõe que temos números de inidos, e quesabemos como descobrir quantos termos tem uma coleção. Estamos tãoacostumados com a operação de contar que semelhante pressuposiçãopoderiafacilmentepassardespercebida.Defato,noentanto,contaréumaoperação, embora conhecida, logicamente muito complexa; além do mais

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ela só é disponível comoummeio de descobrir quantos termos temumacoleção quando a coleção é inita. Nossa de inição de número não devesupor de antemão que todos os números são initos; e não podemos demaneira alguma, sem um círculo vicioso, usar a contagem para de inirnúmeros, porque usamos números para contar. Precisamos, portanto, dealgum outro método para decidir quando duas coleções têm o mesmonúmerodetermos.Narealidade,émaissimpleslogicamentedescobrirseduascoleçõestêm

o mesmo número de termos do que de inir que número é esse. Umailustração deixará isso claro. Se não houvesse nenhuma poligamia oupoliandria em lugar algum nomundo, é claro que o número demaridosvivos em determinado momento seria exatamente igual ao número deesposas.Nãoprecisamosdeumcensoparanosassegurardisso,tampoucoprecisamos saber qual é o número real de maridos e esposas. Sabemosque o número deve ser o mesmo em ambas as coleções porque cadamarido tem uma esposa e cada esposa tem um marido. A relação demaridoeesposaéchamada“um-um”.Diz-se que uma relação é “um-um” quando, sex tem a relação em

questãocomy,nenhumoutrotermox’temamesmarelaçãocomy,exnãotemamesmarelaçãocomnenhumtermoy’ quenãoy.Quandosomenteaprimeira dessas duas condições é preenchida, a relação é chamada “um-muitos”;quandosomenteasegundaépreenchida,elaéchamada“muitos-um”.Convémobservarqueonúmero1nãoéusadonessasdefinições.Nos países cristãos, a relação de marido para esposa é um-um; em

paísesmaometanoséum-muitos;noTibéteémuitos-um.3Arelaçãodepaipara ilhoéum-muitos;arelaçãode ilhoparapaiémuitos-um,masadeilhomaisvelhoparapaiéum-um.Sen foralgumnúmero,arelaçãodenparan + 1 é um-um; assim também é a relação den para 2n ou 3n.Quando estamos considerando apenas números positivos, a relação de nparan2 é um-um; mas quando números negativos são admitidos, ela setorna dois-um, poisn e –n têm o mesmo quadrado. Esses exemplosdeveriamsersu icientesparadeixarclarasasnoçõesderelaçõesum-um,um-muitos,muitos-um,quedesempenhamimportantepapelnosprincípiosdamatemática, não somente em relação à de inição de número, mas emmuitasoutrasconexões.Diz-sequeduas classes são “similares”quandoháuma relaçãoum-um

quecorrelacionacadaumdostermosdeumacomumtermodaoutra,damesmamaneira como a relação de casamento correlacionamaridos comesposas. Algumas de inições preliminares nos ajudarão a expressar essa

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de iniçãodemaneiramaisprecisa.Aclassedaquelestermosquetêmumadada relação com uma coisa ou outra é chamada odomínio daquelarelação:assimpaissãoodomíniodarelaçãodepaipara ilho,maridossãoo domínio da relaçãode marido para esposa, esposas são o domínio darelaçãodeesposaparamarido,emaridoseesposas juntossãoodomínioda relação de casamento. A relação de esposa paramarido é chamada oinverso da relaçãodemaridopara esposa.Demaneira similar, menor é oinversodemaior,depoiséoinversodeantes,eassimpordiante.Emgeral,o inversodeumadada relaçãoé a relaçãoqueexiste entre y ex semprequearelaçãodadaexisteentre xey.Odomínioinversodeumarelaçãoéodomíniodeseuinverso:assimaclassedasesposaséodomínioinversodarelaçãodemaridoparaesposa.Podemosagoraexpressarnossade iniçãodesimilaridadedaseguintemaneira:Diz-sequeumaclasseé “similar”aoutraquandoháumarelaçãoum-um

daqualaprimeiraéodomínio,enquantoaoutraéodomínioinverso.Éfácilprovar(1)que todaclasseésimilarasimesma; (2)queseuma

classeα é similar a uma classeβ, entãoβ é similar aα; (3) que seα ésimilaraβeβaγ,entãoαésimilaraγ.Diz-sequeumarelaçãoéreflexivaquandopossuiaprimeiradessaspropriedades, simétricaquandopossuiasegunda, etransitiva quando possui a terceira. É óbvio que uma relaçãosimétrica e transitiva deve ser re lexiva em todo o seu domínio. Relaçõesque possuem essas propriedades são um tipo importante, e vale a penaobservarqueasimilaridadeéumadasrelaçõesdessetipo.Éóbvioaosensocomumqueduasclasses initas têmomesmonúmero

de termos se forem similares, mas não de outro modo. O ato de contarconsiste em estabelecer uma correlação um-um entre o conjunto deobjetos contados e os números naturais (excluindo0) que são usados noprocesso.Dessamaneira,osensocomumconcluiquehátantosobjetosnoconjuntoasercontadoquantossãoosnúmerosatéoúltimonúmeroaserusadonacontagem.Esabemostambémque,enquantonoslimitarmosaosnúmeros initos,háexatamenten númerosde1 atén. Segue-se,portanto,que o último número usado na contagemde uma coleção é o número determosna coleção, contantoqueesta seja inita.Masesse resultado, alémde ser aplicável apenas a coleções initas, depende do fato de que duasclasses que são similares têm o mesmo número de termos e pressupõeesse fato: pois o que fazemos quando contamos (digamos) dez objetos émostrarqueoconjuntodessesobjetosésimilaraoconjuntodosnúmeros1a 10. A noçãode similaridade é logicamente pressuposta na operação decontagem,eélogicamentemaissimples,emboramenosfamiliar.Aocontar,

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énecessáriotomarosobjetoscontadosnumacertaordem,comoprimeiro,segundo, terceiro etc.,mas aordemnãoéda essênciadonúmero: éumaadição irrelevante, uma complicação desnecessária do ponto de vistalógico.Anoçãodesimilaridadenãoexigeumaordem:porexemplo,vimosqueonúmerodemaridosé igualaodeesposassemprecisarestabeleceruma ordem de precedência entre eles. A noção de similaridade tambémnãorequerqueasclassessimilaressejam initas.Tomemos,porexemplo,os números naturais (excluindo 0) por um lado, e as frações cujonumeradoré1poroutro lado:éóbvioquepodemoscorrelacionar2com1/2 , 3 com 1/3 e assim por diante, provando desse modo que as duasclassessãosimilares.Podemos,portanto,usaranoçãode“similaridade”paradecidirquando

duas coleções devem pertencer ao mesmo feixe, no sentido em queformulamos essa questão anteriormente neste capítulo. Queremos fazerum feixe contendo a classe que não tem membros: este será para onúmero 0. Depois queremos um feixe para todas as classes que têm ummembro:esteseráparaonúmero1.Depois,paraonúmero2,queremosum feixe que consista em todos os pares; depois um de todos os trios; eassim por diante. Dada qualquer coleção, podemos de inir o feixe a quedeve pertencer como sendo a classe de todas aquelas coleções que são“similares”aela.Émuito fácil verquese (porexemplo)umacoleção temtrêsmembros,aclassedetodasascoleçõesquesãosimilaresaelaseráaclassedostrios.Esejaqualforonúmerodetermosqueumacoleçãopossater, aquelas coleçõesque são “similares” a ela terãoomesmonúmerodetermos.Podemostomar issocomoumadefiniçãode“teromesmonúmerode termos”. É óbvio que ela fornece resultados compatíveis com o usodesdequenoslimitemosacoleçõesfinitas.Até agora não sugerimos nada que seja minimamente paradoxal.

Quandochegamosàde iniçãorealdenúmeros,porém,nãopodemosevitaroquedeveàprimeiravistaparecerumparadoxo,emboraessaimpressãoválogodesaparecer.Naturalmentepensamosqueaclassedospares(porexemplo)éalgodiferentedonúmero2.Masnãohádúvidacomrelaçãoàclassedospares: ela é indubitável enãodi ícil dede inir, aopassoqueonúmero 2, em qualquer outro sentido, é uma entidade meta ísica comrelação à qual nunca teremos certeza de que existe ou de que aapreendemos. Émais prudente, portanto, nos contentarmos com a classedos pares, de que temos certeza, do que sairmos à caça de umproblemáticonúmero2quedeverápermanecersempreelusivo.Conseqüentemente,formulamosaseguintedefinição:

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Onúmerodeumaclasseéaclassede todasasclassesquesãosimilaresaele.Onúmerodeumpar,portanto,seráaclassedetodosospares.Defato,a

classedetodososparesseráonúmero2,segundonossade inição.Àcustade uma pequena esquisitice, essa de inição assegura exatidão eindubitabilidade; e não é di ícil provar que números assim de inidos têmtodasaspropriedadesqueesperamosqueosnúmerostenham.Podemosagorairadianteparade inirnúmerosemgeralcomoqualquer

dos feixes em que a similaridade reúna classes. Um número será umconjunto de classes tal que quaisquer duas são similares uma à outra, enenhuma fora do conjunto é similar aalguma dentro dele. Em outraspalavras,umnúmero(emgeral)équalquercoleçãoqueéonúmerodeumdeseusmembros;ou,aindamaissimplesmente:Umnúmeroéqualquercoisaqueéonúmerodealgumaclasse.Semelhantede iniçãotemumaaparênciaverbaldesercircular,masde

fatonãoé.De inimos“onúmerodeumadadaclasse”semusaranoçãodenúmeroemgeral;assim,podemosde inirnúmeroemgeralemtermosde“onúmerodeumadadaclasse”semcometernenhumerrológico.De inições desse tipo são de fatomuito comuns. A classe dos pais, por

exemplo, teria de ser de inida de inindo-se primeiro o que é ser pai dealguém;depoisaclassedospaisserátodososquesãopaisdealguém.Demaneira similar, se queremos de inir números quadrados (digamos),temosprimeirodede iniroquetemosemmenteaodizerqueumnúmeroéoquadradodeoutro,edepoisde inirnúmerosquadradoscomoaquelesque são os quadrados de outros números. Esse tipo de procedimento émuito comum, e é importante compreender que é legítimo e com muitafreqüêncianecessário.Demos agora uma de inição de números que servirá para coleções

initas. Resta ver como servirá para coleções in initas. Antes, porém,precisamos decidir o que entendemos por “ inito” e “in inito”, o que nãopodeserfeitonoslimitesdopresentecapítulo.

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Capítulo3Finitudeeinduçãomatemática

Asériedosnúmerosnaturais,comovimosnoCapítulo1,podeserde inidase soubermos o que queremos dizer pelos três termos “0”, “número” e“sucessor”. Mas vamos dar um passo adiante: podemos de inir todos osnúmeros naturais se soubermos o que queremos dizer por “0” e“sucessor”. Será útil compreender a diferença entre inito e in inito paravercomoissopodeserfeitoeporqueométodopeloqualéfeitonãopodeserestendidoalémdo inito.Aindanãovamosconsiderardequemaneira“0” e “sucessor” devem ser de inidos: por enquanto vamos supor quesabemos o que esses termos signi icam e mostrar como, a partir deles,todososoutrosnúmerosnaturaispodemserobtidos.É fácilverquepodemosalcançarqualquernúmerodesignado,digamos

30.000. Em primeiro lugar de inimos “1” como “o sucessor de 0”, depoisde inimos 2 como “o sucessor de 1”, e assim por diante. No caso de umnúmero designado, como 30.000, a prova de que podemos alcançá-loprocedendo passo a passo dessa maneira pode ser obtida, se tivermospaciência, por experimentação real: podemos avançar até realmentechegarmos a 30.000. Embora o método da experimentação estejadisponível para cadanúmeronatural particular, não está disponível paraprovar a proposição geral de que todos esses números podem seralcançados dessa maneira, isto é, procedendo-se passo a passo de cadanúmero para seu sucessor. Haverá alguma outro modo pela qual issopossaserprovado?Consideremos a questão pelo lado oposto. Quais são os números que

podem ser alcançados, dados os termos “0” e “sucessor”? Há algumamaneira pela qual possamos de inir toda a classe desses números?Alcançamos1, comoo sucessor de 0; 2, comoo sucessor de 1; 3, comoosucessor de 2; e assim por diante. É esse “e assim por diante” quedesejamos substituir por algo menos vago e inde inido. Poderíamos sertentados a dizer que “e assim por diante” signi ica que o processo deavançar para o sucessor pode ser repetidoqualquer número inito devezes;masoproblemaemqueestamosenvolvidoséodede inir“númeroinito”, e portanto não devemos usar essa noção em nossa de inição. Ela

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nãodevepresumirquesabemosoqueénúmerofinito.A chave para nosso problema reside na indução matemática.

Lembremos que, no Capítulo 1, essa era a quinta das cinco proposiçõesprimitivasque formulamos sobreosnúmerosnaturais.Eladeclaravaquequalquerpropriedadequepertençaa0eaosucessordequalquernúmeroqueapossuapertence a todososnúmerosnaturais. Isso foi apresentadoentãocomoumprincípio,masdevemosagoraadotá-locomoumade inição.Não é di ícil ver que os termos que obedecem a ela são osmesmos quepodemseralcançadosapartirde0porpassossucessivosdeumnúmeroparaoseguinte,mascomoopontoéimportante,exporemosamatériacomalgunsdetalhes.Convém começar com algumas de inições, que serão úteis também em

outrasconexões.Diz-se que uma propriedade é “hereditária” na série dos números

naturaisse,semprequeelapertenceaumnúmero n,pertencetambéman + 1, o sucessor den. De maneira similar, diz-se que uma classe é“hereditária”se,semprequenémembrodaclasse,n+1tambémé.Éfácilver,emboraaindanãosepossapresumirquesaibamosisso,quedizerqueumapropriedadeéhereditária equivale adizerque elapertence a todosos números naturais nãomenores do que algum deles, por exemplo, eladevepertenceratodosnãomenoresquedo100,ouatodosnãomenoresdoque1.000,oupodeserquepertençaatodosnãomenoresdoque0,istoé,atodossemexceção.Diz-se que uma propriedade é “indutiva” quando é uma propriedade

hereditária que pertence a 0. De maneira similar, uma classe é indutivaquandoéumaclassehereditáriadeque0émembro.Dada uma classe hereditária de que 0 é membro, segue-se que 1 é

membro dela, porque uma classe hereditária contém o sucessor de seusmembros, e 1 é o sucessor de 0. De maneira similar, dada uma classehereditária de que 1 émembro, segue-se que 2 émembro dela; e assimpor diante. Podemos provar desse modo, por um procedimento passo apasso, que qualquer número natural designado, digamos 30.000, émembrodetodaclasseindutiva.De iniremosa“posteridade”deumdadonúmeronaturalcomrespeitoà

relação“predecessorimediato”(queéoinversode“sucessor”)comotodosaqueles termosquepertencema toda classehereditária a queonúmerodado pertence. Novamente, é fácilver que a posteridade de um númeronatural consiste nele mesmo e todos os números naturais maiores; mastambémistonósaindanãosabemosoficialmente.

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Pelas de inições mencionadas, a posteridade de 0 consistirá naquelestermosquepertencematodaclasseindutiva.Nãoédi ícilagoradeixaróbvioqueaposteridadede0éaquelemesmo

conjuntocompostoporaquelestermosquepodemseralcançadosapartirde0porpassossucessivosdeumparaoseguinte.Pois,emprimeirolugar,0pertenceaambosessesconjuntos(nosentidoemquede inimosnossostermos); em segundo lugar, sen pertence a ambos os conjuntos,n + 1também pertence. É preciso observar que estamos tratando aqui do tipodematéria que nãoadmiteprovaprecisa, a saber, a comparaçãodeumaidéia relativamente vaga com outra relativamente precisa. A noção de“aqueles termos que podem ser alcançados a partir de 0 por passossucessivos de um para o seguinte” é vaga, emborapareça transmitir umsigni icado de inido; por outro lado, “a posteridade de 0” é uma noçãoprecisaeexplícita,exatamenteondeaoutraidéiaénebulosa.Elapodesertomadacomoexpressandooquetínhamosemmentequando falamosdostermosquepodemseralcançadosapartirde0porpassossucessivos.Formulamosagoraaseguintedefinição:Os “números naturais” são a posteridade de 0 com respeito à relação

“predecessorimediato”(queéoinversode“sucessor”).Chegamos assim a uma de inição de uma das três idéias primitivas de

Peanoemtermosdasoutrasduas.Emresultadodessade inição,duasdasproposiçõesprimitivasdele—asaber,aquea irmaque0éumnúmeroea que a irma a indução matemática — se tornam desnecessárias, poisresultam da de inição. Aquela que a irma que o sucessor de um númeronaturaléumnúmeronaturalénecessáriaapenasna formaenfraquecida“todonúmeronaturaltemumsucessor”.Podemos, é claro, de inir facilmente “0” e “sucessor” por meio da

de iniçãodenúmeroemgeralaquechegamosnoCapítulo2.Onúmero0éo número de termos numa classe que não temmembro algum, isto é, naclassechamadaa“classenula”.Pelade iniçãogeraldenúmero,onúmerodetermosnaclassenulaéoconjuntodetodasasclassessimilaresàclassenula, isto é (como pode ser facilmente provado), o conjunto que consisteunicamentenaclassenula,ouseja,aclassecujoúnicomembroéaclassenula. (Esta não é idêntica à classe nula: ela tem ummembro, a saber, aclasse nula, ao passo que a própria classe nula não temmembro algum,como explicaremos quando chegarmos à teoria das classes.) Temos,portanto,aseguintedefiniçãopuramentelógica:0éaclassecujoúnicomembroéaclassenula.Restade inir“sucessor”.Dadoqualquernúmero n,suponhamosqueαé

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umaclassequetemnmembros,equexéumtermoquenãoémembrodeα. Portanto, a classe que consiste em α com o acréscimo dex terán + 1membros.Temosassimaseguintedefinição:O sucessor do número de termos na classe αé o número de termos na

classequeconsisteem αjuntamentecomx,emquexéqualquertermonãopertencenteàclasse.Certosre inamentossãonecessáriosparatornaressade iniçãoperfeita,

mas não precisamos nos preocupar com eles. 1 Deve-se lembrar que jádemos (no capítulo 2) uma de inição lógica do número de termos numaclasse,asaber,ode inimoscomooconjuntodetodasasclassessimilaresàclassedada.Reduzimos assim as três idéias primitivas de Peano a idéias de lógica:

demosde iniçõesdelasqueastornamde inidas,nãomaispassíveisdeteruma in inidade de diferentes sentidos, como eram quando determinadasapenasnamedidaemqueobedeciamaoscincoaxiomasdePeano.Nósasremovemosdoaparatodetermosquedevemsermeramenteapreendidos,eaumentamosassimaarticulaçãodedutivadamatemática.No tocanteàs cincoproposiçõesprimitivas, já conseguimos tornarduas

delasdemonstráveismediantenossade iniçãode“númeronatural”.Comoicam as três restantes? É muito fácil provar que 0 não é o sucessor denenhumnúmero,equeosucessordealgumnúmeroéumnúmero.Masháuma di iculdade acerca da proposição primitiva que resta, a saber, “doisnúmerosdiferentesnuncatêmomesmosucessor”.Adificuldadenãosurgeamenos que o número total dos indivíduos no universo seja inito; paradois números dadosm en, nenhum dos quais é o número total deindivíduosnouniverso,éfácilprovarquenãopodemosterm+1=n+1,amenos que tenhamosm =n. Suponhamos, porém, que o número total deindivíduos no universo fosse (digamos) 10; nesse caso, não haverianenhumaclassede11indivíduoseonúmero11seriaaclassenula.Assimtambém seria o número 12. Portanto, teríamos 11 = 12; portanto osucessorde10seriaigualaosucessorde11,embora10nãofosseiguala11. Teríamos, portanto, dois números diferentes com o mesmo sucessor.Esse fracassodo terceiroaxiomanãopodeocorrer, contudo, seonúmerode indivíduos nomundo não for inito. Retornaremos a esse tópico maisadiante.2Supondo que o número de indivíduos no universo não é inito, já

conseguimos não só de inir as três idéias primitivas de Peano, mas vercomo provar suas cinco proposições por meio de idéias e proposiçõesprimitivas pertencentes à lógica. Disso decorre que toda a matemática

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pura, na medida em que é dedutível da teoria dos números naturais, éapenas um prolongamento da lógica. A extensão desse resultado àquelesramos modernos da matemática não dedutíveis da teoria dos númerosnaturais não oferece nenhuma di iculdade de princípio, comomostramosemoutrolugar.3O processo de indução matemática por meio do qual de inimos os

números naturais é passível de generalização. De inimos os númerosnaturaiscomoa“posteridade”de0comrespeitoàrelaçãodeumnúmerocom seu sucessor imediato. Se chamarmos essa relaçãoN, qualquernúmerom terá essa relação comm + 1. Uma propriedade é “hereditáriacom respeito a N”, ou simplesmente “N-hereditária”, se, sempre que apropriedadepertenceraumnúmerom,pertencer tambémam+1, istoé,ao número com quem tem a relação N. E diremos que um número npertenceà“posteridade”demcomrespeitoàrelaçãoNsentivertodasaspropriedades hereditárias-N que pertencem am. Essas de inições podemtodas ser aplicadas a qualquer outra relação assim como a N. Dessamaneira, se R for uma relação qualquer, podemos formular as seguintesdefinições:4Umapropriedadeéchamada“R-hereditária”quando,sepertenceraum

termox,extiverarelaçãoRcomy,pertencertambémay.Uma classe é hereditária-R quando sua propriedade de inidora for

hereditária-R.Diz-se que um termox é “R-ancestral” do termoy sey tiver todas a

propriedadeshereditárias-Rquextiver,contantoque xsejaumtermoquetenha a relaçãoR comalguma coisa, ou comoqual alguma coisa tenha arelaçãoR.(Issoéapenasparaexcluircasostriviais.)A“R-posteridade”dexsãotodosostermosdequexéumR-ancestral.Construímosasde iniçõespreviamentemencionadasdetalmodoquese

um termo for o ancestral de alguma coisa, ele é seu próprio ancestral epertenceàsuaprópriaposteridade.Issoéapenasporconveniência.Deve-seobservarquesetomarmosparaRarelação“pai”,“ancestral”e

“posteridade”, teremosossentidosusuais,anãoserpelofatodequeumapessoa será incluída entre seus próprios ancestrais e posteridade. Ficaimediatamente óbvio que “ancestral” deve ser passível de de inição emtermosde“pai”,masatéqueFregedesenvolvessesuateoriageneralizadada indução, ninguém poderia ter de inido “ancestral” precisamente emtermos de “pai”. Uma breve consideração desse ponto servirá paramostraraimportânciadateoria.Alguémqueseconfrontassepelaprimeiravez com o problema de de inir “ancestral” em termos de “pai” diria

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naturalmente que A é um ancestral de Z se, entre A e Z, houver certonúmerodepessoas,B,C,...,entreasquaisBé ilhodeA,cadaumépaidoseguinte,atéoúltimo,queépaideZ.Masessade iniçãonãoéadequada,amenos que acrescentemos que o número de termos intermediários deveserfinito.Tomemos,porexemplo,umasériecomoaseguinte:

-1,-½,-¼,-1/8,...1/8,¼,½,1.

Temosaquiprimeiroumasériedefraçõesnegativassem imedepoisumasériedefraçõespositivassemcomeço.Devemosdizerque,nessasérie, -1é ancestral de 1? Será assim de acordo com a de inição para iniciantessugerida anteriormente,mas não será de acordo com qualquer de iniçãoque dê o tipo de idéia que desejamos de inir. Para esse propósito, éessencial que o número de intermediários seja inito. Mas, como vimos,“ inito” deve ser de inido por meio de indução matemática, e é maissimples de inir a relação ancestral de maneira geral imediatamente quede ini-laapenasparaocasodarelaçãodencomn+1,edepoisestendê-lapara os outros casos. Aqui, como constantemente em outros lugares,começar pela generalidade, embora possa exigir mais re lexão de início,provaráno inaldascontaseconomizarre lexãoeaumentaracapacidadelógica.No passado, o uso de indução matemática em demonstrações foi uma

espéciedemistério.Parecianãosepoderduvidarsensatamentedequeelaera um método de prova válido, mas ninguém sabia ao certo por quê.Algunsacreditavamqueelaerarealmenteumcasodeindução,nosentidoemqueapalavraéusadaemlógica.Poincaréconsiderava-aumprincípiodamáximaimportância,pormeiodoqualumnúmeroinfinitodesilogismospodia ser condensado num único argumento. Sabemos agora que todasessas idéias são errôneas, e que a indução matemática é uma de inição,não um princípio. Há alguns números aos quais pode ser aplicada, e háoutros (como veremos no Capítulo 8) a que não pode. Nósdefinimos os“números naturais” como aqueles aos quais provas por induçãomatemáticapodemser aplicadas, isto é comoaquelesquepossuem todasaspropriedades indutivas. Segue-seque taisprovaspodemser aplicadasaos números naturais não em virtude de alguma intuição, axioma ouprincípio misteriosos, mas como uma proposição puramente verbal. Se“quadrúpedes” são de inidos como animais de quatro patas, disso seseguirá que animais de quatro patas são quadrúpedes; e o caso dosnúmerosqueobedecemàinduçãomatemáticaéexatamentesimilar.

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Usaremos a expressão “números indutivos” para designar o mesmoconjuntodequefalamosatéagoracomo“númerosnaturais”.Aexpressão“númerosindutivos”épreferívelporservirdelembretedequeade iniçãodesseconjuntodenúmeroséobtidaapartirdainduçãomatemática.Ainduçãomatemáticaproporciona,maisdoquequalqueroutracoisa,a

característica essencial pela qual se pode distinguir o inito do in inito. Oprincípio da induçãomatemática poderia ser expresso popularmente sobalguma forma do tipo “o que pode ser inferido de vizinho para vizinhopodeserinferidodoprimeiroparaoúltimo”.Isso é verdade quando o número de passos intermediários entre o

primeiro e oúltimoé inito, nãodeoutramaneira.Quem já observouumtrem de carga começando a se mover, terá notado como o impulso écomunicado com um solavanco de um vagão para o seguinte, até queinalmente o último vagão esteja emmovimento. Quando o trem é muitolongo,oúltimovagão levabastante tempoparasemover.Seo tremfossein initamente longo,haveriaumasucessão in initade solavancos, enuncachegariaomomentoemqueotreminteiroestariaemmovimento.Apesardisso, se houvesse uma série de vagões não maior do que a série denúmeros indutivos (que, como veremos, é um caso dos menores dosin initos), cadavagãocomeçariaa semovermaiscedooumais tardesealocomotiva perseverasse, ainda que fosse haver sempre outros vagõesmais atrás que ainda não teriam começado a se mover. Essa imagemajudaráaelucidaroargumentodevizinhoparavizinho,esuaconexãocoma initude.Quandopassamosaosnúmerosin initos,emqueosargumentosobtidospor induçãomatemáticadeixarãode ser válidos, aspropriedadesdesses números ajudarão a elucidar, por contraste, o uso quaseinconsciente que é feito da indução matemática no tocante a númerosfinitos.

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Capítulo4Adefiniçãodeordem

Já levamos nossa análise da série dos números naturais até o ponto emque obtivemos de inições lógicas dos membros dessa série, de toda aclasse de seus membros e da relação de um número com seu sucessorimediato.Devemosagoraconsiderarocaráter serialdosnúmerosnaturaisna ordem 0, 1, 2, 3, . . . Em geral, pensamos nos números como estandonessaordem,eéumaparteessencialdotrabalhodeanalisarnossosdadosprocurarumadefiniçãode“ordem”ou“série”emtermoslógicos.A noção de ordem tem enorme importância emmatemática. Não só os

números inteiros, mas também as frações racionais e todos os númerosreais têmumaordemdemagnitude, eessaéessencialparaamaioriadesuas propriedades matemáticas. A ordem dos pontos numa linha éessencial para a geometria; assim também é a ordem ligeiramente maiscomplicada das linhas através de um ponto num plano, ou de planos aolongodeumalinha.Asdimensões,emgeometria,sãoumdesenvolvimentoda ordem. A concepção de limite, que é subjacente a toda a matemáticasuperior, é uma concepção serial. Há partes da matemática que nãodependemdanoçãodeordem,massãomuitopoucasemcomparaçãocomaquelasemqueessanoçãoestáenvolvida.Aoprocurarumade iniçãodeordem,aprimeiracoisaacompreenderé

que nenhum conjunto de termos tem apenasuma ordem, a ponto deexcluiroutras.Umconjuntodetermostemtodasasordensdequeécapaz.Algumas vezes uma ordem é tãomais conhecida e natural para nossospensamentosquenosinclinamosaconsiderá-laaordemdaqueleconjuntode termos; mas isso é um erro. Os números naturais— ou os números“indutivos”, como também os chamaremos — ocorrem a nós maisprontamente em ordem de magnitude, mas eles são passíveis de umnúmero in inito de outros arranjos. Poderíamos, por exemplo, considerarprimeiramente os números ímpares e depois os números pares; ouprimeiro 1, depois todos os números pares, depois todos os múltiplosímpares de 3, depois todos osmúltiplos de 5mas não de 2 ou 3, depoistodososmúltiplosde7masnãode2ou3ou5,eassimpordianteatravésde toda a série dos primos. Quando dizemos que podemos “arranjar” os

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números nessas várias ordens, essa é uma expressão imprecisa: o querealmente fazemos é voltar nossa atenção para certas relações entre osnúmeros naturais, que geram eles próprios tal e tal arranjo. Somos tãoincapazes de “arranjar” os números naturais quanto de arranjar o céuestrelado;mas,assimcomopodemosperceberentreasestrelas ixassejasua ordemdebrilho ou suadistribuiçãono céu, assim tambémhá váriasrelaçõesentreosnúmerosquepodemserobservadasequedãoorigemaváriasordensdiferentesentreeles, todas igualmente legítimas.Eoqueéverdadeacercadenúmeroséigualmenteverdadeacercadepontosnumalinha ou dos momentos do tempo: uma ordem é mais conhecida, masoutras são igualmente válidas. Poderíamos, por exemplo, tomar primeiro,numa linha, todosospontosque têm coordenadas integrais, depois todososque têm coordenadas racionaisnão-integrais, depois todososque têmcoordenadasracionaisalgébricas,eassimpordiante,atravésdequalquerconjunto de complicações que desejamos. A ordem resultante será umaqueospontosdalinhacertamentetêm,queroptemospornotá-laounão;aúnicacoisaarbitrárianasváriasordensdeumconjuntodetermosénossaatenção,poisospróprios termos têmsempre todasasordensdeque sãocapazes.Um resultado importante dessa consideração é que não devemos

procurarade iniçãodeordemnanaturezadoconjuntodetermosaseremordenados, uma vez que um conjunto de termos tem muitas ordens. Aordem reside, nãona classede termos,masna relaçãoentreosmembrosdaclasse,comrespeitoàqualalgunsaparecemcomoanteriores,ealguns,comoposteriores.Ofatodeumaclassepodertermuitasordensdeve-seaofato de poder haver muitas relações entre os membros de uma únicaclasse.Quepropriedadesdeveumarelaçãopossuirparadarorigemaumaordem?As características essenciais de uma relação que dará origem a uma

ordem podem ser descobertas considerando-se que, com respeito a talrelação,devemossercapazesdedizer,acercadedoistermosquaisquernaclasseaordenar,queum“precede”eooutro“segue”.Ora,parapodermosusar essas palavras tal como as compreenderíamos naturalmente, éprecisoquearelaçãoordenadoratenhatrêspropriedades:(1) Sex precedery, y não deverá também preceder x. Esta é uma

característicaóbviadotipoderelaçãoqueconduzaséries.Se x formenordoquey,ynãoserátambémmenordoquex.Sex foranteriornotempoay, y não será também anterior ax. Por outro lado, relações que não dãoorigemasériescom freqüêncianão têmessapropriedade.Se x for irmão

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ouirmãdey,y será irmãoou irmãdex. Sex fordamesmaalturaquey,yserádamesmaalturaque x.Seaalturadexfordiferentedadey,aalturadeyserádiferentedade x.Emtodosessescasos,quandoarelaçãoexisteentrexey,existetambémentreyex.Comrelaçõesseriais,porém,talcoisanão acontece. Uma relação que tenha essa primeira propriedade échamadaassimétrica.(2) Sex precedery ey precederz, x deve precederz. Isso pode ser

ilustradopelosmesmosexemplosdeantes:menor,anterior,àesquerdade .Mas como exemplos de relações quenão têm essa propriedade, somentedoisdenossostrêsexemplosanterioresservirão.Sexforirmãoouirmãdey, ey dez, x pode não ser irmão ou irmã dez, poisx ez podem ser amesma pessoa. O mesmo se aplica à diferença de altura, mas não àigualdade de altura, que tem nossa segunda propriedade, mas não aprimeira.Arelação“pai”,poroutrolado,temnossaprimeirapropriedade,mas não a segunda. Uma relação que tenha a segunda propriedade échamadatransitiva.(3)Dadosquaisquerdoistermosdaclassequedeveserordenada,deve

haver umque preceda e outro que siga. Por exemplo, de quaisquer doisnúmeros inteiros, ou frações, ou números reais, um é menor e o outromaior; mas isso não é verdade com relação a quaisquer dois númeroscomplexos.Dequaisquerdoismomentosno tempo, umdeve ser anteriorao outro, mas isso não pode ser dito sobre eventos, que podem sersimultâneos. De dois pontos numa linha, um deve estar à esquerda dooutro. Uma relação que possua essa terceira propriedade é chamadaconexa.Quandoumarelaçãopossuiessastrêspropriedades,elaédotipoquedá

origem a uma ordem emmeio aos termos entre os quais existe; e ondequerquehajaumaordem,épossívelencontraralgumarelaçãoquepossuaessastrêspropriedades,gerando-a.Antesdeilustraressatese,introduziremosalgumasdefinições.(1)Diz-sequeumarelaçãoéumaalio-relativa, 1 ou queestá contida em

diversidadeouqueimplicadiversidade,senenhumtermotiveressarelaçãoconsigo mesmo. Assim, por exemplo, “maior”, “diferente em tamanho”,“irmão”, “marido”, “pai” são alio-relativas; mas “iguais”, “nascido dosmesmospais”,“caroamigo”nãosão.(2) Oquadrado de uma relação é aquela relação que existe entre dois

termosx ez quando há um termo intermediárioy tal que a relaçãodadaexistaentrexeyeentreyez.Assim“avôpaterno”éoquadradode“pai”,“maiorpor2”éoquadradode“maiorpor1”,eassimpordiante.

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(3) Odomínio de uma relação consiste que todos os termos em têm arelação comuma coisaououtra, e odomínio inverso consiste em todosostermoscomqueumacoisaououtratêmarelação.Essaspalavrasjáforamdefinidas,massãorelembradasaquinointeressedadefiniçãoseguinte:(4)Ocampodeumarelaçãoconsisteemseudomínioedomínioinverso

juntos.(5) Diz-se que uma relaçãocontém outra oué implicada por outra se

existirsemprequeaoutraexistir.Veremosqueumarelação assimétrica éomesmoqueumarelaçãocujo

quadrado é uma anti-re lexiva. Ocorre freqüentemente que uma relaçãoseja uma anti-re lexiva sem ser assimétrica, embora uma relaçãoassimétricasejasempreumaanti-re lexiva.Porexemplo, “cônjuge”éumaanti-re lexiva,maséassimétrica,poissexécônjugedey,y é cônjugedex.Mas entre relações transitivas, todas as anti-re lexiva são assimétricas,bemcomovice-versa;A partir dessas de inições, podemos ver que uma relaçãotransitiva é

umarelação implicadapor seuquadrado,ou, como tambémdizemos,que“contém”seuquadrado.Assim,“ancestral”étransitivo,porqueoancestraldeumancestraléumancestral;mas“pai”nãoétransitivo,porqueopaideum pai não é um pai. Uma transitiva anti-re lexiva é uma relação quecontémseuquadradoeécontidaemdiversidade;ou,oquevemadarnomesmo, uma relação cujo quadrado implica tanto essa relação quantodiversidade—porquequandoumarelaçãoé transitiva,serassimétricaéequivalenteaserumaanti-reflexiva.Uma relação éconexa quando, dados quaisquer dois termos diferentes

de seu campo, a relação existe entre o primeiro e o segundo ou entre osegundo e o primeiro (sem excluir a possibilidade de as duas coisasocorrerem, embora ambas não possam ocorrer se a relação forassimétrica.)Veremosquea relação “ancestral”,porexemplo, éumaanti-re lexivae

transitiva,masnãoconexa;épornãoserconexaquenãoésu icienteparaarranjararaçahumananumasérie.A relação “menor do que ou igual a”, entre números, é transitiva e

conexa,masnãoassimétricanemumaanti-reflexiva.A relação “maior ou menor” entre números é uma anti-re lexiva e é

conexa,masnãoétransitiva,poissexformaioroumenordoquey,ey formaior ou menor do quez, pode acontecer quex ez sejam o mesmonúmero.Assimastrêspropriedadesdeser(1)umaanti-re lexiva,(2)transitivae

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(3) conexa são mutuamente independentes, visto que uma relação podepossuirquaisquerduasdelassemteraterceira.Formulamosagoraaseguintedefinição:Umarelaçãoéserialquandoéumaanti-re lexiva,transitivaeconexa;ou,

oqueéequivalente,quandoéassimétrica,transitivaeconexa.Umasérieéomesmoqueumarelaçãoserial.Seriapossívelpensarqueumasériedeveriaserocampodeumarelação

serial,nãoaprópriarelação.Masissoseriaumerro.Porexemplo,

1,2,3;1,3,2;2,3,1;2,1,3;3,1,2;3,2,1

sãoseisdiferentesseriesquetêmtodasomesmocampo.Seocampo fossea série, só poderia haver uma única série com um dado campo. O quedistingueasseissériescitadassãosimplesmenteasdiferentesrelaçõesdeordenaçãonosseiscasos.Dadaarelaçãodeordenação,ocampoeaordemsãoambosdeterminados.Assima relaçãodeordenaçãopodeser tomadacomosendoasérie,masocamponãopodeserassimtomado.Dada qualquer relação serial, digamos P, diremos que, com respeito a

essarelação,x “precede”y sex tiverarelaçãoPcomy,queescreveremos“xPy” para abreviar. As três características que P deve possuir para serserialsão:

(1)NãodevemosnuncaterxPx,istoé,nenhumtermodeveprecederasimesmo.(2) P2 deve implicar P, isto é, se x precedey ey precedez, z deve

precederP.(3)SexeyforemdoistermosdiferentesnocampodeP,teremos xPyou

yPx,istoé,umdosdoisdeveprecederooutro.

O leitor pode se convencer facilmente de que, quando essas trêspropriedades são encontradas numa relação de ordenação, ascaracterísticas que esperamos das séries poderão também serencontradas,evice-versa.Élegítimo,portanto,tomaroquefoimencionadocomoumade iniçãodeordemousérie.Caberessaltarqueade inição foilevadaacaboemtermospuramentelógicos.Embora sempre exista uma relação conexa assimétrica transitiva onde

quer que haja uma série, ela não é sempre a relação que seria maisnaturalmente vista como gerando a série. A série dos números naturaispodeservirdeilustração.Arelaçãoquedemosporcertaaoconsideraros

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númerosnaturaisfoiarelaçãodesucessãoimediata,istoé,arelaçãoentrenúmeros inteiros consecutivos. Essa relação é assimétrica, mas nãotransitiva ou conexa. Podemos, contudo, derivar dela, pelo método daindução matemática, a relação “ancestral” que consideramos no capítuloanterior.Essarelaçãoseráomesmoque“menordoqueou iguala”entrenúmeros inteiros indutivos. Para o objetivo de gerar a série de númerosnaturais,queremosarelação“menordoque”,excluindo“iguala”.Essaéarelação dem comn quandom é um ancestral den,mas não idêntico an,ou(oquevemadarnomesmo)quandoosucessordeméumancestraldennosentidoemqueumnúmeroéseupróprioancestral.Issosigni icaqueformularemosaseguintedefinição:Dizemosqueumnúmeroindutivomémenordoqueumoutronúmeron

quandon possui todas as propriedades hereditárias possuídas pelosucessordem.É fácil ver, e não é di ícil provar, que a relação “menor do que”, assim

de inida, é assimétrica, transitiva e conexa, e tem os números indutivospara seu campo. Assim, por meio dessa relação, os números indutivosadquiremumaordemnosentidoemquedefinimosotermo“ordem”eessaordeméachamada“ordemnatural”,ouordemdemagnitude.A geração de séries pormeio de relaçõesmais oumenos semelhantes

àquela den comn+1émuitocomum.AsériedosreisdaInglaterra,porexemplo, é gerada por relações de cada um com seu sucessor. Esse éprovavelmenteomeiomais fácil, ondeé aplicável, de conceber a geraçãode uma série. Nesse método, passamos de cada termo para o seguinte,enquanto houver um seguinte, ou de volta para o anterior, enquantohouverumanterior.Essemétodosemprerequeraformageneralizadadaindução matemática para nos permitir de inir “anterior” e “posterior”numasérieassimgerada.Naanalogiadas“fraçõespróprias”,vamosdaronome “posteridade própria dex com respeito a R” à classe daquelestermos que pertencem àR-posteridade de algumtermo com quex tem arelação R, no sentido que demos antes a “posteridade”, que inclui umtermo em sua própria posteridade. Retornando às de iniçõesfundamentais, veri icamos que “posteridade própria” pode ser de inidacomosesegue:A “posteridade própria” de x com respeito a R consiste em todos os

termos que possuem todas as propriedade hereditárias R possuídas portodosostermoscomquextemarelaçãoR.Devemosobservarqueessade iniçãodeveserformuladademaneiraa

seraplicávelnãosóquandoháapenasumtermocomquex temarelação

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R, mas também em casos (como, por exemplo, o de pai e ilho) em quepode haver muitos termos com quex tem a relação R. De inimosadicionalmente:Um termox é um “ancestral próprio” de y com respeito a R sey

pertenceràposteridadeprópriadexcomrespeitoaR.Para abreviar, falaremos de “R-posteridade” e “R-ancestrais” quando

estestermospareceremmaisconvenientes.Retornando agora à geração de séries pela relação R entre termos

consecutivos,vemosque,paraqueessemétodosejapossível,arelação“R-ancestralprópria”deveserumaanti-reflexiva,transitivaeconexa.Sobquecircunstânciasissoocorrerá?Elaserásempretransitiva:nãoimportaqualseja a relaçãoR, “R-ancestral” e “R-ancestral própria” são sempre ambastransitivas. Mas somente sob certas circunstâncias ela será uma anti-re lexiva ou conexa. Consideremos, por exemplo, a relação de nossovizinhodaesquerdanumamesadejantarredondaemquehá12pessoas.Se chamamos isso relação R, a R-posteridade própria de uma pessoaconsisteemtodasquepodemseralcançadasdando-seavoltadamesadadireitaparaaesquerda. Isso inclui todasaspessoasàmesa,atémesmoaprópriapessoa,umavezque12passosnos trarãodevoltaanossopontode partida. Assim, num caso como esse, embora a relação “R-ancestralprópria” seja conexa, e emboraR seja elamesmauma anti-re lexiva, nãoobtemosumasérieporque“ancestral-Rprópria”nãoé umaanti-re lexiva.Por essa razão não podemos dizer que uma pessoa vem antes de outracomrespeitoàrelação“àdireitade”ouaseuderivadoancestral.Oquevimosfoiumexemploemquearelaçãoancestraleraconexa,mas

não contida em diversidade. Um exemplo em que ela é contida emdiversidade mas não conexa é derivado do signi icado usual da palavra“ancestral”.Sexéumancestralprópriode y,xeynãopodemseramesmapessoa,masnãoéverdadeque,dequaisquerduaspessoas,umadevaserancestraldaoutra.A questão das circunstâncias em que séries podem ser geradas por

relações ancestrais derivadas de relações de consecutividade é comfreqüência importante. Alguns dos casos mais importantes são osseguintes:suponhamosqueR-ancestralprópriaéumarelação,elimitemosnossaatençãoàposteridadedealgumtermox.Quandoassim limitados, arelação “R-ancestralprópria”deveser conexa;portanto, tudooque restaparaassegurarqueelaéserialéquesejacontidaemdiversidade.Essaéuma generalização do exemplo da mesa de jantar. Outra generalizaçãoconsiste em considerar que R é uma relação um-um e inclui tanto a

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ancestralidade quanto a posteridade dex. Aqui novamente, a únicacondição necessária para assegurar a geração de uma série é que arelação“R-ancestralprópria”sejacontidaemdiversidade.A geração de ordempormeio de relações de consecutividade, embora

importante em sua própria esfera, émenos geral que ométodo que usauma relação transitiva para de inir a ordem. Acontece freqüentementenuma série que haja um número in inito de termos intermediários entredois que podem ser selecionados, por mais próximos que esses estejamentre si. Tomemos, por exemplo, frações em ordem demagnitude. Entrequaisquerfraçõesháoutras—porexemplo,amédiaaritméticadasduas.Conseqüentemente,umpardefraçõesconsecutivaséalgoquenãoexiste.Se dependêssemos da consecutividade parade inir ordem, não seríamoscapazes de de inir a ordem demagnitude entre frações.Mas, de fato, asrelações maior e menor entre frações não exigem geração a partir derelaçõesdeconsecutividade,easrelaçõesdemaioremenorentrefraçõestêmastrêscaracterísticasdequeprecisamosparade inirrelaçõesseriais.Emtodosessescasosaordemdeveserde inidapormeiodeumarelaçãotransitiva, visto que somente uma relação desse tipo é capaz de saltarsobre um número in inito de termos intermediários. O método daconsecutividade, como o de contar para descobrir o número de umacoleção,éapropriadoparao inito;podeatéserestendidoacertassériesin initas, a saber, aquelas emque, emboraonúmero total de termos sejain inito,onúmerodetermosentrequaisquerdoisésempre inito;masnãodeveserconsideradogeral.Nãosóisso,maséprecisotomarcuidadoparaerradicardaimaginaçãotodososhábitosdepensamentoqueresultamdasuposição de que ele é geral. Se isso não for feito, séries em que não hátermos consecutivos permanecerão di íceis e enigmáticas. E séries dessetipo são de importância vital para a compreensão da continuidade, deespaço,tempoemovimento.Sériespodemsergeradasdemuitasmaneiras,mastudodependedese

encontrar ou construir uma relação conexa transitiva. Algumas dessasmaneirastêmconsiderávelimportância.Podemostomarcomoilustrativaageração de séries pormeio de uma relação de três termos que podemoschamar“entre”.Essemétodoémuitoútilemgeometriaepodeservircomoumaintroduçãopararelaçõesquetenhammaisquedoistermos;amelhormaneiradeintroduzi-laéemconexãocomageometriaelementar.Dados três pontos quaisquer numa linha reta no espaço comum, deve

haverumdelesqueestáentreosoutrosdois. Issonãoseráocasocomospontos num círculo ou em qualquer outra curva fechada, porque, dados

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quaisquertrêspontosnumcírculo, podemosnosdeslocardequalquerumparaqualqueroutrosempassarpeloterceiro.Defato,anoção“entre”écaracterísticadesériesabertas—ousériesno

sentido estrito— em contraposição ao que pode ser chamado de séries“cíclicas”, em que, como no caso das pessoas na mesa de jantar, umajornada su iciente nos traz de volta ao ponto de partida. Essa noção de“entre” pode ser escolhida como a noção fundamental da geometriacomum,masporenquantovamosconsiderarapenassuaaplicaçãoaumaúnica linha reta e à ordenação de pontos numa linha reta. 2 Tomandoquaisquerdoispontosa,b,alinha(ab)consisteemtrêspartes(aforaaebelesmesmos):

(1)Pontosentreaeb.(2)Pontosxtaisqueaestáentrexeb.(3)Pontosytaisquebestáentreyea.

Dessa maneira, a linha (ab) pode ser de inida em termos da relação“entre”.Para que essa relação “entre” possa arranjar os pontos da linha numa

ordem da esquerda para a direita, precisamos de certos pressupostos, asaber,osseguintes:

(1)Sehouveralgumacoisaentreaeb,aebnãoserãoidênticos.(2)Qualquercoisaqueestejaentreaebestarátambémentrebea.(3) Qualquer coisa que esteja entrea eb não será idêntica aa (nem,

conseqüentemente,ab,emvirtudede(2)).(4)Sexestiverentreaeb,tudooqueestiverentreaexestarátambém

entreaeb.(5)Sexestiverentreaeb,ebestiverentrexey,entãob estaráentrea

ey.(6) Sex ey estiverem entrea eb, então oux ey serão idênticos, oux

estaráentreaey,ouxestaráentreyeb.(7) Se b estiver entrea ex e também entrea ey, então oux ey serão

idênticos,ouxestaráentreaey,ouyestaráentrebex.

Essas sete proposições são obviamente veri icadas no caso de pontosnuma linha reta emespaço comum.Qualquer relaçãode três termosqueasveri iquedaráorigemasérie,compodeservistoapartirdasseguintesdefinições.Nointeressedaprecisão,suponhamosqueaestáàesquerdade

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b.Entãoospontosdalinha(ab)são(1)aquelesentreosquaisebsitua-sea—estesvamoschamardeàesquerdadea; (2)opróprioa;(3)aquelesentrea eb; (4) o própriob; (5) aqueles entre os quais ea situa-seb—estesvamos chamardeàdireitadeb. Podemos agorade inir demaneirageralquededoispontosx,y,nalinha(ab),diremosquexestá“àesquerdade”yemqualquerdosseguintescasos:

(1)Quandoxeyestiveremambosàesquerdadea,ey estiver entrexea;(2)Quandoxestiveràesquerdadea,eyforaoubouestiverentreaeb

ouàdireitadeb;(3)Quandoxfora,eyestiverentreaebouforb,ouestiveràdireitade

b;(4)Quandoxeyestiveremambosentreaeb,eyestiverentrexeb;(5)Quandoxestiverentreaeb,eyforbouestiveràdireitadeb;(6)Quandoxforbeyestiveràdireitadeb;(7)Quandoxeyestiveremambosàdireitadebexestiverentrebey.

É possívelver que, a partir das sete propriedades que atribuímos àrelação “entre”, pode ser deduzido que a relação “à esquerda de”, comode inida anteriormente, é uma relaçãoserial tal como de inimos essetermo. É importante notar que nada nas de inições ou no raciocíniodependedoquequeremosdizerpor“entre”,arelaçãorealassimchamadaqueocorrenoespaçoempírico:qualquerrelaçãodetrêstermosquetiveras propriedades puramente formais descritas servirá ao propósito doraciocínioigualmentebem.Aordemcíclica,comoadospontosnumcírculo,nãopodesergeradapor

meioderelaçõesdetrêstermosde“entre”.Precisamosdeumarelaçãodequatrotermos,quepodeserchamada“separaçãodepares”.A idéiapodeser ilustradaconsiderando-seumaviagemdevoltaaomundo.Podemosirda Inglaterra para a Nova Zelândia passando por Suez ou passando porSãoFrancisco; nãopodemosdizer comprecisãoquenenhumdessesdoislugares está “entre” a Inglaterra e a Nova Zelândia. Mas se um homemescolheessarotaparadaravoltaaomundo,sejaqual forocaminhoquetome, os momentos que passa na Inglaterra e na Nova Zelândia sãoseparadosunsdosoutrospelosmomentosquepassaporSuezouporSãoFrancisco, e inversamente.Generalizando, se tomarmosquaisquerquatropontosnumcírculo,poderemossepará-losemdoispares,digamos aebexey,taisque,parairdexparaysedevepassarpordeaouporb.Sobessas

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circunstâncias,dizemosqueopar(a,b)está “separado”pelopar (x, y). Apartirdessa relaçãopodesergeradaumaordemcíclica,deumamaneiraqueseassemelhaàquelapelaqualgeramosumaordemabertaapartirde“entre”,porémumpoucomaiscomplicada.3O objetivo da segunda metade deste capítulo foi sugerir o tema que

podemoschamar“geraçãoderelaçõesseriais”.Quandotaisrelaçõesforamde inidas,ageraçãodelasapartirdeoutrasrelaçõesquepossuamapenasalgumas das propriedades requeridas para séries torna-se muitoimportante, especialmente na iloso ia da geometria e da ísica. Mas nãopodemos,noslimitesdopresentevolume,fazermaisdoquetornaroleitorcientedaexistênciadessetema.

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Capítulo5Tiposderelação

Grandeparte da iloso ia damatemática diz respeito a relações, emuitosdiferentes tipos de relações têm diferentes tipos de usos. Ocorre comfreqüênciaqueumapropriedadequepertencea todasasrelaçõessósejaimportante com respeito a relações de certas espécies; nesses casos oleitor não verá a relevância da proposição que a irma tal propriedade, amenosquetenhaemmenteasespéciesderelaçõesparaasquaiselaéútil.No interessedessadescrição,bemcomoemrazãodo interesse intrínsecodotema,convémtermosemmenteumalistaelementardasvariedadesderelaçõesmaisúteismatematicamente.Lidamosnocapítuloanteriorcomumaclassesumamente importante,a

saber, relações seriais. Cada umadas três propriedades que combinamosao de inir série— a saber,assimetria, transitividade econexidade— temsua própria importância. Começaremos dizendo alguma coisa sobre cadaumadessastrês.Assimetria, isto é, a propriedade de ser incompatível com o inverso, é

uma característica do maior interesse e importância. Para desenvolversuas funções, vamos considerar vários exemplos. A relaçãomarido éassimétrica,eassimtambémarelaçãoesposa; istoé, sea émaridodeb,bnão pode ser marido dea, e similarmente no caso de esposa. Por outrolado,arelação“cônjuge”ésimétrica:seaécônjugedeb,entãobécônjugedea. Suponhamos agora que nos foi dada a relação cônjuge e desejamosderivararelaçãomarido.Maridoéomesmoquecônjugedosexomasculinooucônjugedeumamulher; assim, a relaçãomarido pode serderivada decônjuge, ou limitando-se o domínio a homens ou limitando-se o inverso amulheres. Vemos a partir desse exemplo que, quando uma relaçãosimétrica é dada, por vezes é possível, sem a ajuda de nenhuma relaçãoadicional, separá-la em duas relações assimétricas.Mas os casos em queissoépossívelsãoraroseexcepcionais:sãocasosemqueháduasclassesmutuamente exclusivas, digamosα eβ, tais que, seja qual for a relaçãoexistente entre dois termos, um dos termos é membro deα e o outro émembrodeβ—como,nocasodecônjuge,umtermodarelaçãopertenceàclassedoshomens,eum,àclassedasmulheres.Nessecaso,arelaçãocom

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seu domínio limitado aα será assimétrica, e o mesmo ocorrerá com arelaçãocomseudomíniolimitadoaβ.Masnãosãocasosdessaespéciequeocorrem quando estamos lidando com séries de mais que dois termos;pois, numa série, todos os termos, exceto o primeiro e o último (se elesexistirem), pertencem tanto ao domínio quanto ao domínio inverso darelação geradora, de modo que uma relação como marido, em que odomínioedodomínioinversonãosesuperpõem,estáexcluída.Aquestãode comoconstruir relaçõesque tenhamalgumapropriedade

útilpormeiodeoperaçõescomrelaçõesquepossuemapenasrudimentosda propriedade é de considerável importância. É fácil construirtransitividade e conexidade em muitos casos em que a relaçãooriginalmente dada não as possui: por exemplo, se R for uma relaçãoqualquer,arelaçãoancestralderivadadeRporinduçãogeneralizadaserátransitiva; e se R for uma relação muitos-um, a relação ancestral seráconexa se estiver limitada à posteridade de um dado termo. No entanto,obter a propriedade da assimetria por construção émuitomais di ícil. Ométodo pelo qual derivamosmarido ecônjuge, como vimos, não estádisponívelnos casosmais importantes, comomaior,antes,àdireitade , emque domínio e domínio inverso se superpõem. Em todos esses casos,podemoséclaroobterumarelaçãoassimétricasomandoarelaçãodadaàsua inversa, mas não podemos passar de volta dessa relação simétricapara a relação simétrica original, exceto com a ajuda de alguma relaçãoassimétrica. Tomemos, por exemplo, a relaçãomaior: a relaçãomaior oumenor—istoé,desigual—ésimétrica,masnãohánadanelaquemostrequeéa somadeduas relaçõesassimétricas.Tomemosumarelação como“diferentenoformato”.Issonãoéasomadeumarelaçãoassimétricaeseuinverso, umavezque formatosnão formamuma sérieúnica;masnãohánada paramostrar que ela difere de “diferente namagnitude” se já nãosoubéssemosquemagnitudestêmrelaçõesdemaioremenor. Isso ilustraocaráterfundamentaldaassimetriacomoumapropriedadedasrelações.Do ponto de vista da classi icação das relações, ser assimétrico é uma

característicamuitomaisimportantedoqueimplicardiversidade.Relaçõesassimétricas implicam diversidade, mas o contrário não se veri ica.“Desigual”,porexemplo, implicadiversidade,masésimétrico.Demaneirageral, podemos dizer que, se desejássemos prescindir na medida dopossível das proposições relacionais e substituí-las por aquelas queatribuempredicadosasujeitos,conseguiríamosfazê-lonamedidaemquenos limitássemos a relaçõessimétricas: aquelas que não implicamdiversidade, se forem transitivas, podem ser vistas como a irmando um

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predicadocomum,aopassoqueaquelasqueimplicamdiversidadepodemser vistas como a irmando predicados incompatíveis. Por exemplo,considere a relação de similaridade entre classes, por meio da qualde inimos números. Essa relação é simétrica, é transitiva e não implicadiversidade. Seria possível, embora menos simples que o procedimentoque adotamos, ver o número de uma coleção como um predicado dacoleção:nessecasoduasclassessimilaresserãoduasclassesquetenhamomesmopredicadonumérico,aopassoqueduasclassesnãosimilaresserãoduas classes com predicados numéricos diferentes. Tal método desubstituir relações por predicados é formalmente possível (embora comfreqüência muito inconveniente), contanto que as relações envolvidassejam simétricas; mas é formalmente impossível quando elas sãoassimétricas, porque tanto a igualdade quanto a diferença de predicadossão simétricas. As relações assimétricas são, podemos dizer, as maiscaracteristicamente relacionais das relações, e o mais importante para ofilósofoquedesejaestudaranaturezalógicafundamentaldasrelações.Outraclassederelaçõesdamaiorutilidadeéaclassedasrelaçõesum-

muitos,istoé,relaçõesquenomáximoumtermopodetercomdadotermo.Assim são pai, mãe, marido (exceto no Tibete), quadrado de, seno de, eassimpordiante.Masgenitor, raizquadrada, e assimpordiante,não sãoum-muitos. É possível, formalmente, substituir todas as relações porrelaçõesum-muitospormeiodeumtruque.Tomemos(digamos)arelaçãomenorentreosnúmerosindutivos.Dadoqualquernúmero nmaiordoque1, não haverá apenas um número que tenha a relação menor do que n,maspodemosformartodaaclassedenúmerosmenoresdoquen. Essaéuma classe, e sua relação comn não é partilhada por nenhuma outra.Podemos chamar a classe dos números menores do quen a“ancestralidade própria” de n, no sentido em que falamos deancestralidade e posteridade em conexão com a indução matemática.Assim,“ancestralidadeprópria”éumarelaçãoum-muitos( um-muitosserásempre usado de modo a incluirum-um), visto que cada númerodetermina uma única classe de números como constituindo suaancestralidade própria. Assim, a relaçãomenor que pode ser substituídaporsermembrodaancestralidadeprópriade .Dessamaneira,uma relaçãoum-muitos em que o um é uma classe, juntamente com a qualidade demembro dessa classe, pode sempre substituir formalmente uma relaçãoque não é um-muitos. Peano, que, por alguma razão sempre concebeinstintivamenteumarelaçãocomoum-muitos,tratadessamaneiraaquelasquenãosãonaturalmenteassim.Areduçãoarelaçõesum-muitosporesse

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método, no entanto, embora possível como matéria de forma, nãorepresentaumasimpli icaçãotécnica,etemostodasasrazõesparapensarque não representa uma análise ilosó ica, ainda que apenas porqueclassesdevemservistascomo“ icçõeslógicas”.Continuaremos,portanto,aconsiderarrelaçõesum-muitoscomoumtipoespecialderelações.Relaçõesum-muitosestãoenvolvidasem todasasexpressõesda forma

“isso e aquilo disso e daquilo”. “O rei da Inglaterra” ou “a mulher deSócrates”,“opaideJohnStuartMill”,eassimpordiante,descrevemtodasalgumapessoa pormeio de uma relação um-muitos comumdado termo.Umapessoanãopodetermaisqueumpai,portanto“opaideJohnStuartMill” descrevia uma determinada pessoa, mesmo que não soubéssemosquemera.Hámuitoadizersobreotemadasdescrições,masporenquantosãoasrelaçõesquenosinteressam,easdescriçõessãorelevantesapenasenquanto exempli icamos usos de relações um-muitos. Convémobservarque todas as funções matemáticas resultam de relações um-muitos: ologaritmo dex, o co-seno dex etc., são, como o pai dex, termos descritospor meio de uma relação um-muitos (logaritmo, co-seno etc.) com umtermodado(x).Anoçãodefunçãonãoprecisaser limitadaanúmerosouaos usos a que os matemáticos nos acostumaram; pode ser estendida atodososcasosderelaçõesum-muitos,e“opaidex”éumafunçãodequexé o argumento demaneira tão legítima quanto “o logaritmo dex”. Nessesentido, funções são funçõesdescritivas. Como veremos mais adiante, háfunções de uma espécie ainda mais geral e mais fundamental, a saber,funçõesproposicionais; mas por enquanto limitaremos nossa atenção afunções descritivas, isto é, “o termoque tem a relaçãoR comx”, ou, paraabreviar,“aRdex”,ondeRéqualquerrelaçãoum-muitos.Deve-seobservarqueparaque“aRdex”descrevaumtermopreciso, x

deve ser um termo com que alguma coisa tem a relação R, e não devehaver mais que um termo tendo a relação R comx, uma vez que “o”,corretamente utilizado, deve implicar singularidade. Assimpodemos falarde “o pai dex” sex for algum ser humano exceto Adão e Eva; mas nãopodemos falar de “o pai dex” sex for uma mesa ou uma cadeira ouqualquer outra coisa que não temumpai. Diremos que a R de x “existe”quandoháapenasumtermo,enãomais,quetemarelaçãoRcomx.AssimseRforumarelaçãoum-muitos,aRdexexistesemprequexpertenceraodomínio inversodeR,enãodeoutromodo.No tocantea “aRdex” comouma função no sentido matemático, dizemos quex é o “argumento” dafunção,eseyforotermoquetemarelaçãocomx,istoé,sey foraRdex,entãoyseráo“valor”dafunçãoparaoargumento x.SeRforumarelação

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um-muitos,oâmbitodeargumentospossíveisparaafunçãoseráodomínioinverso de R, e o âmbito de valores será o domínio. Assim, o âmbito deargumentospossíveisparaafunção“opaidex”sãotodososquetêmpais,istoé,odomínio inversoda relaçãopai, aopassoqueoâmbitodevalorespossíveisparaafunçãoétodosospais,istoé,odomíniodarelação.Muitasdasnoçõesmais importantesna lógicadas relações são funções

descritivas,porexemplo:inverso,domínio,domínioinverso,campo.Outrosexemplosocorrerãoàmedidaqueprosseguirmos.Entre as relações um-muitos, as relações um-um são uma classe

especialmente importante. Já tivemos oportunidade de falar de relaçõesum-um em conexão com a de inição de número, mas é necessário terfamiliaridade com elas, e nãomeramente conhecer sua de inição formal.Sua de inição formal pode ser derivada da de inição de relações um-muitos: elas podem ser de inidas como relações um-muitos que sãotambém o inverso das relaçõesum-muitos, isto é, como relações que sãotanto um-muitos como muitos-um. Relações um-muitos podem serde inidascomoaquelasemque,sextiverarelaçãoemquestãocomy,nãohá nenhum outro termox’ que também tenha a relação comy. Podemtambém ser de inidas da seguinte maneira: dados dois termosx ex’, ostermoscomquex temarelaçãodadaeaquelescomquex’atemnãotêmnenhummembroemcomum.Ouainda,podemserde inidascomorelaçõestaisqueoprodutorelativodeumadelaseseuinversoimplicaidentidade,ondeo“produtorelativo”deduasrelaçõesReSéaquelarelaçãoexistenteentrexezquandoháumtermointermediárioy,detalmodoquextenhaarelaçãoRcomyeytenhaarelaçãoScomz.Assim,porexemplo,seRforarelação de pai com ilho, o produto relativo de R e seu inverso será arelaçãoexistenteentre xeumhomemzquandoháumapessoay, talquexsejaopaidey ey sejao ilhodez. É óbvio quex ez devemser amesmapessoa. Se, por outro lado, tomarmos a relação entre genitor e ilho, quenãoéum-muitos,nãopodemosmaisa irmarque, sex for pai dey ey forfilhodez,xezdevemseramesmapessoa,porqueumpodeseropaideyeooutro,amãe.Issoilustraoqueécaracterísticodasrelaçõesum-muitosquando o produto de uma relação e seu inverso implica identidade. Nocaso de relações um-um isso acontece, e também o produto relativo doinversoearelaçãoimplicaidentidade.DadaumarelaçãoR,éconveniente,sextiverarelaçãoRcomy,conceberycomosendoalcançadoapartirdexpor um “R-passo” ou um “R-vetor”. No mesmo caso, x será alcançado apartir dey por um “passo R para trás”. Podemos, portanto, expressar acaracterísticadas relaçõesum-muitosdeque estivemos tratandodizendo

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queumpassoRseguidoporumpassoRparatrásdevenoslevaraonossoponto de partida. Com outras relações, isso não ocorre em absoluto; porexemplo,seRforarelaçãodeum ilhocomumgenitor,oprodutorelativodeReseuinversoseráarelação“aprópriapessoaouirmãoouirmã”,eseforarelaçãodenetocomavô,oprodutorelativodeReseuinversoseráarelação “aprópriapessoaou irmãoou irmãouprimoemprimeirograu”.Convémobservarqueoprodutorelativodeduasrelaçõesemgeralnãoécomutativo, isto é, o produto relativo de R e S não é em geral a mesmarelação que o produto de S e R. Por exemplo, o produto relativo de umgenitoreirmãoétio,masoprodutorelativodeirmãoegenitorégenitor.Relaçõesum-umdãoumacorrelaçãodeduasclasses, termopor termo,

detalmodoquecadatermoemcadaumadasclassestemseucorrelatonaoutra. É mais simples compreender essas correlações quando as duasclassesnãotêmmembrosemcomum,comoaclassedosmaridoseaclassedasesposas,pois,nessecaso,sabemosde imediatoseumtermodeveserconsiderado um termodoqual a relaçãodecorrelaçãovem,ouum termopara o qual ela vai. Assim sex ey forem marido e mulher, então, comrespeitoàrelação“marido”xéreferenteeyéreferido,mascomrespeitoàrelação “esposa”, y é referente, e x, referido. Dizemos que uma relação eseuinversoetêm“sentidos”opostos;assimo“sentido”deumarelaçãoquevaidexparayéoinversodaqueledarelaçãocorrespondentede y parax.O fatodeumarelaçãoterum“sentido”é fundamental,eépartedarazãopor que a ordem pode ser gerada por relações adequadas. Convémobservar que a classe de todos os referentes possíveis para a uma dadarelação é seu domínio, e a classe de todos os referidos possíveis é seudomínioinverso.Masacontececommuita freqüênciaqueodomínioeodomínio inverso

de uma relação um-um se superponham. Tomemos, por exemplo, osprimeiros dez números inteiros (excluindo 0) e acrescentemos 1 a cadaum; assim, em vez dos dez primeiros números inteiros temos agora osnúmerosinteiros

2,3,4,5,6,7,8,9,10,11.

Essessãoosmesmosquetínhamosantes,excetoque1foicortadonoinícioe 11 foi acrescentado no im. Ainda há dez números inteiros: eles estãocorrelacionadosaosdezanteriorespelarelaçãode ncomn+1,queéumarelação um-um. Poderíamos igualmente, em vez de acrescentar 1 a cadaumdenossosdeznúmeros inteirosoriginais, terdobradocadaumdeles,

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obtendoassimosnúmerosinteiros

2,4,6,8,10,12,14,16,18,20.

Ainda temos aqui cinco números de nosso conjunto anterior de númerosinteiros, a saber, 2, 4, 6, 8, 10. A relação de correlação nesse caso é arelaçãodeumnúmerocomseuduplo,queénovamenteumarelaçãoum-um. Ou poderíamos ter substituído cada número por seu quadrado,obtendoassimoconjunto

1,4,9,16,25,36,49,64,81,100

Dessavezrestamapenas trêsnúmerosdenossoconjunto inicial,a saber,1, 4, 9. Processos de correlação como esses podem ser variadosinterminavelmente.Ocasomais interessantedo tipodescritoéaqueleemquenossarelaçãoum-umtemumdomínioinversoqueéparte,masnãootodo, do domínio. Se, em vez de limitar o domínio aos dez primeirosnúmeros inteiros, tivéssemos considerado a totalidade dos númerosindutivos, os exemplosmencionados teriam ilustrado esse caso. Podemosdispor os números envolvidos em duas ileiras, pondo o correlatodiretamente embaixodonúmerodoqual ele é correlato.Assim quando ocorrelatorforarelaçãodencomn+1,teremosduasfileiras:

1,2,3,4,5,...n...2,3,4,5,6,...n+1...

Quandoocorrelator fora relaçãodeumnúmerocomseuduplo, teremosasduascolunas:

1,2,3,4,5,...n...2,4,6,8,10,...2n...

Quando o correlator for a relação de um número com seu quadrado, asfileirasserão:

1,2,3,4,5,.....n...1,4,9,16,25......n2...

Em todos esses casos, todos os números indutivos ocorrem na ileira decima,eapenasalgunsnafileiradebaixo.

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Casosdessaespécie,emqueodomínioinversoéuma“parteprópria”dodomínio(istoé,umaparte,nãoatotalidade),voltarãoanosocuparquandochegarmos a tratar da in inidade. Por enquanto, desejamos apenasobservarqueelesexistemerequeremconsideração.Uma outra classe de correlações muitas vezes importantes é a classe

chamada “permutações”, em que o domínio e o domínio inverso sãoidênticos. Consideremos, por exemplo, os seis arranjos possíveis das trêsletras:

a,b,ca,c,bb,c,ab,a,cc,a,bc,b,a

Cadaumdessesarranjospodeserobtidoapartirdequalquerdosoutrospormeiodeumacorrelação.Tomemos,porexemplo,oprimeiroeoúltimo:(a,b,c)e(c,b,a).Aquiaestácorrelacionadoac,bconsigomesmoecaa.Éóbvio que a combinação de duas permutações é novamente umapermutação, isto é, a permutação de uma dada classe forma o que échamadoum“grupo”.Esses vários tipos de correlações têm importância em várias conexões,

algumas para um objetivo, algumas para outro. A noção geral decorrelaçõesum-umteminesgotávelimportânciana iloso iadamatemática,como jávimosemparte,masveremosdemaneiramuitomaiscompletaàmedida que avançarmos. Um de seus usos nos ocupará no próximocapítulo.

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Capítulo6Similaridadedasrelações

Vimos no Capítulo 2 que duas classes têm o mesmo número de termosquandosão“similares”,istoé,quandoháumarelaçãoum-umcujodomínioé uma classe e cujo domínio inverso é a outra.Num caso assimpodemosdizerqueháuma“correlaçãoum-um”entreasduasclasses.Nesse capítulo temos de de inir uma relação entre relações, que

desempenharápara elas omesmopapel que a similaridadedesempenhaparaclasses.Chamaremosisso“similaridadederelações”,ou“semelhança”quandoparecerdesejávelusarumapalavradiferentedaqueusamosparaclasses.Comodevemosdefinirsemelhança?Continuaremosempregandoanoçãodecorrelação:vamosdarporcerto

queodomíniodeumadasrelaçõespodesercorrelacionadocomodomínioda outra, e o domínio inverso com o domínio inverso; mas isso não ésu iciente para a espécie de semelhança que desejamos ter entre nossasduas relações. O que desejamos é que, sempre uma das duas relaçõesexista entre dois termos, a outra exista entre os correlatos desses doistermos. O exemplomaisfácil do tipode coisa quedesejamos é ummapa.Quandoumlugarestáaonortedeoutro,olugarnomapacorrespondentea um está acimado lugar nomapa correspondente ao outro; quandoumlugarestáaoestedeoutro,o lugarnomapacorrespondenteaumestáàesquerdadolugarnomapacorrespondenteaooutroeassimpordiante.Aestruturadomapacorrespondeàdopaísqueelerepresenta.Asrelaçõesespaciais no mapa têm uma “semelhança” com as relações espaciais nopaís mapeado. Esse é o tipo de conexão entre relações que desejamosdefinir.Podemos, em primeiro lugar, introduzir vantajosamente uma certa

restrição.Vamosnoslimitar,aode inirsemelhança,arelaçõesquetenham“campos”, istoé,aquelasquepermitama formaçãodeumaúnicaclasseapartir do domínio e do domínio inverso. Esse nem sempre é o caso.Tomemos,porexemplo,arelação“domínio”,istoé,arelaçãoqueodomíniodeuma relação tem comela. Essa relação tem todas as classes como seudomínio, uma vez que toda classe é o domínio de alguma relação; e temtodasasrelaçõescomoseudomínioinverso,umavezquetodarelaçãotem

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umdomínio.Mas classese relaçõesnãopodemser somadaspara formaruma nova classe única, porque são de “tipos” lógicos diferentes. Nãoprecisamos entrar na di ícil doutrina dos tipos,mas é bom saber quandonos abstemos de nos aventurar nela. Podemos dizer, sem considerar osfundamentosparaaasserção,queumarelaçãosótem“umcampo”quandoéoquechamamos“homogênea”,istoé,quandoseudomínioeseudomínioinversosãodomesmotipo lógico;ecomoumaindicaçãogrosseiradoqueentendemos por um “tipo”, podemos dizer que indivíduos, classes deindivíduos, relações entre indivíduos, relações entre classes, relações declassescomindivíduos,eassimpordiante,sãotodosdiferentestipos.Masa noção de semelhança não é muito útil quando aplicada a relações nãohomogêneas; por isso, ao de inir semelhança, simpli icaremos nossoproblema falandodo “campo”deumadas relaçõesenvolvidas. Isso limitaem certamedida a generalidade de nossa de inição,mas a limitação nãotem nenhuma importância prática, e depois de ter sido formulada, nãoprecisa mais ser lembrada. Podemos de inir duas relações P e Q como“similares”,oucomotendo“semelhança”,quandoháumarelaçãoSum-umcujodomínioéocampodePecujodomínioinversoéocampodeQ,equeétalque,seumtermotiverarelaçãoPcomoutro,ocorrelatodele teráarelaçãoQ com o correlato do outro, e vice-versa. Uma igura tornará istomais claro. Suponhamos quex ey sãodois termos coma relaçãoP.Devehaver,portanto,doistermos z,w, taisquex temarelaçãoScomz,y temarelaçãoScomweztemarelaçãoQcomw.Seissoacontecercomcadapardetermoscomozew,éclaroqueparacadacasoemqueexistirarelaçãoPexistiráumcasocorrespondentedarelaçãoQ,evice-versa;eissoéoquedesejamos assegurar com nossa de inição. Podemos eliminar algumasredundâncias no esboço de de inição citado, observando que, quando ascondiçõesmencionadasserealizam,arelaçãoPéigualaoprodutorelativodeSeQeoinversodeS,istoé,opassoPdexparaypodesersubstituídopelasucessãodopassoSdexparaz,opassoQdezparaw,eopassoatrásSdewparay.Podemosassimestabelecerasseguintesdefinições.

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Diz-se que uma relação S é um “correlator” ou um “correlator ordinal”deduasrelaçõesPeQseSforum-um,tiverocampodeQporseudomínioinverso,efortalquePéoprodutorelativodeSeQeoinversodeS.Diz-sequeduasrelaçõesPeQsão“similares”outêm“semelhança”quandohánomínimoumcorrelatorPeQ.Veremos que essas de inições proporcionam o que estipulamos

anteriormentesernecessário.Veremosque,quandoduasrelaçõessãosimilares, elaspartilhamtodas

aspropriedadesquenãodependemdostermosreaisemseuscampos.Porexemplo, se uma implica diversidade, a outra também o faz; se uma étransitiva, a outra também é; se uma é conexa, a outra também. Emconseqüência,seumaéserial,aoutra tambémé.Maisumavez,seumaéum-muitosouum-um,aoutraéum-muitosouum-um;eassimpordiante,com todas as propriedades gerais das relações. Mesmo a irmações queenvolvamostermosreaisdocampodeumarelação,aindaquepossamnãoser verdadeiras tal como são quando aplicadas a uma relação similar,serão sempre passíveis de tradução em a irmações análogas. Essasconsiderações nos conduzem a um problema que tem, em iloso iamatemática, uma importância que até agora não foi em absolutoadequadamente reconhecida. Nosso problema pode ser formulado daseguinte maneira: dada alguma a irmação numa língua da qualconhecemos a gramática e a sintaxe,masnão o vocabulário, quais são ossigni icados possíveis dessa a irmação, e quais são os signi icados daspalavrasdesconhecidasqueatornariamverdadeira?Essaquestãoé importanteporque representa,muitomais ielmentedo

que se poderia supor, o estado de nosso conhecimento da natureza.

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Sabemos que certas proposições cientí icas — que, nas ciências maisavançadas,sãoexpressasemsímbolosmatemáticos—sãomaisoumenosverdadeiras em relação aomundo, mas estamos extremamente confusosquanto à interpretação a ser dada aos termos que ocorrem nessasproposições.Sabemosmuitomais(parausar,porummomento,umpardetermos antiquado) sobre a forma do que sobre amatéria da natureza.Assim,oquerealmentesabemosquandoenunciamosumaleidanaturezaé apenas que há provavelmentealguma interpretação de nossos termosque tornará a lei aproximadamente verdadeira. A grande importânciaprende-se à questão: quais são os signi icados possíveis de uma leiexpressaemtermosdequenãoconhecemososigni icadosubstantivo,masapenasagramáticaeasintaxe?Eéessaaquestãosugeridapreviamente.Porenquanto,vamos ignoraraquestãogeral,quevoltaráanosocupar

numestágioposterior;otemadasemelhançaprecisasereleprópriomaisinvestigado.Em razãodo fato de que, quando duas relações são similares, suas

propriedades são as mesmas exceto quando dependem de os camposserem compostos exatamente dos termos de que elas são compostas, édesejável ter uma nomenclatura que reúna todas as relações similares auma relação dada. Assim como chamamos o conjunto daquelas classessimilares a uma dada classe o “número” dessa classe, assim tambémpodemoschamaroconjuntode todasasrelaçõessimilaresaumarelaçãodada o “número” dessa relação. Para evitar confusão com os númerosapropriados a classes, porém, falaremos neste caso de um “número derelação”. Temos assim as seguintes de inições: o “número de relação” deumadadarelaçãoéaclassedetodasasrelaçõessimilaresàrelaçãodada;e“númerosderelação”sãooconjuntodetodasaquelasclassesderelaçõesquesãonúmerosderelaçãodeváriasrelações,ou,oquedánomesmo,umnúmeroderelaçãoéumaclassederelaçõesqueconsisteemtodasaquelasrelaçõesquesãosimilaresaummembrodaclasse.Quandoénecessáriofalardosnúmerosdeclassesdeumamaneiraque

torneimpossívelconfundi-loscomnúmerosderelação,nósoschamaremosde “números cardinais”. Números cardinais são portanto os númerosapropriadosaclasses.Esses incluemosnúmeros inteiroscomunsdavidacotidiana,etambémcertosnúmerosin initos,dequefalaremosmaistarde.Quandofalamosde“números”semquali icação,deve-secompreenderqueestamos nos referindo a números cardinais. A de inição de um númerocardinal,convémlembrar,éaseguinte:o“númerocardinal”deumadadaclasseéoconjuntodetodasaquelasclassessimilaresàclassedada.

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A aplicação mais óbvia de números de relação é a séries. Duas sériespodemserconsideradas igualmente longasquandotêmomesmonúmerode relação. Duas séries finitas terãoomesmonúmerode relaçãoquandoseus campos tiverem o mesmo número cardinal de termos, e somenteentão— istoé,umasériede (digamos)15 termos teráomesmonúmeroderelaçãoquequalqueroutrasériede15termos,masnãoteráomesmonúmero de relação que uma série de 14 ou 16 termos, nem, é claro, omesmonúmeroderelaçãoqueumarelaçãoquenãosejaserial.Assim,nocaso muito especial das séries initas, há paralelismo entre númeroscardinaisenúmerosderelação.Osnúmerosderelaçãoaplicáveisasériespodem ser chamados “números seriais” (os comumente chamados“números ordinais” são uma subclasse desses); assim, um número serialinitoédeterminadoquandoconhecemosonúmerocardinaldetermosnocampode uma série que tenha o número serial emquestão. Sen for umnúmero cardinal inito, o número de relação de uma série que tem ntermosseráchamadoonúmero“ordinal” n.(Hátambémnúmerosordinaisin initos,masfalaremosdelesemumcapítuloposterior.)Quandoonúmerocardinal de termos no campo de uma série for in inito, o número derelaçãoda sérienão serádeterminadomeramentepelonúmerocardinal;defato,existeumnúmeroin initodenúmerosderelaçãoparaumnúmerocardinal in inito, como veremos quando passarmos a considerar sériesin initas. Quando uma série é in inita, o que podemos chamar de seu“comprimento”, isto é, seu número de relação, pode variar semmudançano número cardinal; mas quando uma série é inita, isso não podeacontecer.Podemos de inir adição emultiplicação para números de relação, bem

como para números cardinais, e toda uma aritmética de números derelação pode ser desenvolvida. É fácil ver comi isso deve ser feitoconsiderandoocasodasséries.Suponhamos,porexemplo,quedesejamosde inirasomadeduassériesquenãosesuperpõemdetalmaneiraqueonúmeroderelaçãodasomapossaserde inidocomoasomadosnúmerosderelaçãodasduasséries.Emprimeiro lugar,é claroqueháuma ordemenvolvida como entre as duas séries:uma delas deve ser posta antes daoutra.AssimsePeQforemasrelaçõesgeradorasdasduasséries,nasériequeéasomadelascomPpostoantesdeQ,todososmembrosdocampodeP vão preceder todos os membros do campo de Q. Dessa maneira, arelação serial que deve ser de inida como a soma de P e Q não ésimplesmente“PouQ”,mas“PouQouarelaçãodequalquermembrodocampo de P com qualquermembro do campo de Q”. Supondo que P e Q

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não se superpõem, essa relação é serial, mas “P ou Q” não é serial, nãosendoconexa,umavezquenãoexisteentreummembrodocampodePeummembrodocampodeQ.Portanto,asomadePeQ,talcomode inida,éaquilodequeprecisamosparade inirasomadedoisnúmerosderelação.Modi icações similares são necessárias para produtos e potências. Aaritméticaresultantenãoobedeceà lei comutativa:asomaouprodutodedoisnúmerosderelaçãodependeemgeraldaordememquesãotomados.Mas ela obedece à lei associativa, uma formada lei distributiva, e a duasdas leis formais para as potências, não só como aplicadas a númerosseriais, mas como aplicadas a números de relação em geral. De fato,embora recente, a aritmética das relações é um ramo perfeitamenterespeitáveldamatemática.Nãosedevesupor,meramenteporquesériesfornecemaaplicaçãomais

óbviadaidéiadesemelhança,quenãoháoutrasaplicaçõesimportantes.Jámencionamos mapas, e poderíamos estender nossos pensamentos dessailustraçãoparaageometriaemgeral.Seosistemaderelaçõespeloqualageometria é aplicada a certo conjunto de termos puder ser transpostointeiramentepararelaçõesdesemelhançacomumsistemaaplicando-seaoutro conjunto de termos, então a geometria dos dois conjuntos seráindistinguíveldopontodevistamatemático,istoé,asproposiçõesserãoasmesmas, exceto quanto ao fato de que serão aplicadas emum caso a umconjunto de termos e no outro a um outro. Podemos ilustrar isso pelasrelaçõesda espéciequepode ser chamada “entre”, que consideramosnoCapítulo4.Vimosaliqueumarelaçãode três termos, contantoque tenhacertas propriedades lógicas formais, dará origem a série, e pode serchamadauma“relaçãoentre”.Dadosdoispontosquaisquer,podemosusara relação-entre para de inir a linha reta determinada por aqueles doispontos;elaconsisteemaeb juntamentecomtodosospontosx, taisquearelação-entreexistaentreostrêspontos a,b,xemumaordemououtra.O.Veblendemonstrouquepodemosconsiderar todoonossoespaçocomoocampo de uma relação entre de três termos, e de inir nossa geometriapelaspropriedadesqueatribuímosanossasrelações-entre.1Ora,étãofácilde inirasemelhançaentrerelaçõesdetrêstermosquantoemrelaçõesdedois.SeBeB’ foremduasrelações-entre,demodoque“ xB(y,z)”signi ica“x está entrey ez com respeito aB”, poderemos chamarSumcorrelatordeBeB’seeletiverocampodeB’porseudomínioinverso,efortalquearelaçãoBexistaentretrêstermosquandoB’existirentreseuscorrelatosSesomenteentão.EdiremosqueBésemelhanteaB’quandohouverpelomenosumcorrelatordeBcomB’.Oleitorpodeseconvencerfacilmentede

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que, seB for semelhante a B’ nesse sentido, não poderá haver nenhumadiferençaentreageometriageradaporBeaquelageradaporB’.Disso se segue que omatemático não precisa se preocupar com o ser

particularouanaturezaintrínsecadeseuspontos,linhaseplanos,mesmoquando está especulando como um matemáticoaplicado. Podemos dizerque há uma evidência empírica da verdade aproximada daquelas partesda geometria que não são matéria de de inição. Mas não há nenhumaevidênciaempíricaquantoaoquedeveserum“ponto”.Eletemdeseralgoque satisfaça tão plenamente quanto possível nossos axiomas, mas nãoprecisa ser “muito pequeno” ou “sem partes”, isso é indiferente. Sepudermos, a partir dematerial empírico, construir uma estrutura lógica,não importa qual seja seu grau de complicação, que satisfaça nossosaxiomas geométricos, essa estrutura poderá ser legitimamente chamadaum “ponto”. Não devemos dizer que não há nada mais que poderia serlegitimamente chamado um “ponto”; devemos dizer apenas: “Esse objetoque construímos é su iciente para o geômetra; pode ser um de muitosobjetos, quaisquer dos quais seria su iciente,mas isso não nos preocupa,visto que esse objeto é su iciente para justi icar a verdade empírica dageometria,namedidaemqueageometrianãoématériadede inição.”Issoéapenasuma ilustraçãodoprincípiogeral segundooqualoque importana matemática, e numa medida muito grande na ciência ísica, não é anatureza intrínseca de nossos termos, mas a natureza lógicas de suasinter-relações.Podemos dizer, sobre duas relações similares, que elas têm a mesma

“estrutura”.Parapropósitosmatemáticos(emboranãoparaosda iloso iapura),aúnicacoisaimportanteacercadeumarelaçãosãooscasosemqueela existe, não sua natureza intrínseca. Assim como uma classe pode serde inidaporváriosconceitosdiferentesmasco-extensivos—porexemplo,“homem” e “bípede implume” —, assim também duas relaçõesconceitualmentediferentespodemexistirnomesmoconjuntodecasos.Um“caso” em que uma relação existe deve ser concebido como um par determos, com uma ordem, de tal modo que um dos termos venha emprimeiro lugareooutroemsegundo;opardeve, é claro, ser talque seuprimeiro termo tenha a relação em questão com seu segundo. Tomemos(digamos) a relação “pai”: é possível de inir o que podemos chamar a“extensão”dessarelaçãocomoaclassetodososparesordenados(x,y)quesão taisquex éopaidey.Dopontodevistamatemático,aúnicacoisadeimportância na relação “pai” é que ela de ine esse conjunto de paresordenados. Em geral, dizemos: a “extensão” de uma relação é a classe

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daqueles pares ordenados (x, y) que são tais quex tem a relação emquestãocomy.Podemos agora dar mais um passo no processo de abstração, e

considerar o que entendemos por “estrutura”. Dada qualquer relação, seela for su icientemente simples, podemos construir um mapa dela. Nointeresse da precisão, tomemos uma relação cuja extensão sejam osseguintes pares:ab,ac,ad,bc,ce,dc,de, ondea,b,c,d,e são cinco termos,nãoimportaquais.Podemosfazerum“mapa”dessarelaçãotomandocincopontos num plano e conectando-os com setas, como na igura ao lado. Oqueomaparevelaéoquechamamosa“estrutura”darelação.

entrafig.dapág.60(OI)

É claro que a “estrutura” da relação não depende dos termosparticularesquecompõemocampodarelação.Ocampopodeseralteradosem que a estrutura se altere, e a estrutura pode ser alterada semalteração no campo — por exemplo, se acrescentássemos o par ae àilustraçãoacima,alteraríamosaestrutura,masnãoocampo.Duasrelaçõestêm a mesma “estrutura”, diremos, quando o mesmo mapa servir paraambas— ou, o que dá nomesmo, quando cada uma pode ser ummapaparaaoutra(jáquetodarelaçãopodeserseuprópriomapa).Eisso,comoum momento de re lexão mostra, é exatamente a mesma coisa quechamamos“semelhança”.Querdizer,duasrelaçõestêmamesmaestruturaquando têmsemelhança, istoé,quando têmomesmonúmerode relação.Assim,oquede inimoscomo“númeroderelação”éexatamenteamesmacoisa que é obscuramente signi icada pela palavra “estrutura” — umapalavra que, embora importante, nunca (ao que saibamos) é de inida emtermosprecisosporaquelesqueautilizam.Muita especulação na iloso ia tradicional poderia ter sido evitada se a

importância da estrutura e a di iculdade de penetrá-la tivessem sidocompreendidas.Porexemplo,muitasvezessedizqueespaçoetemposãosubjetivos,maselestêmcorrespondentesobjetivos;ouquefenômenossãosubjetivos, mas são causados pelas coisas em si mesmas, que devem terdiferenças inter se correspondentes às diferenças nos fenômenos a quedão origem. Quando tais hipóteses são feitas, supõe-se em geral quepodemos saber muito pouco sobre os correspondentes objetivos. Narealidade, contudo, se as hipóteses tal como formuladas estivessemcorretas, os correspondentes objetivos formariam um mundo dotado damesma estrutura que omundo fenomenal, e nos permitiriam inferir dos

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fenômenosaverdadedetodasasproposiçõesquepodemser formuladasem termos abstratos e são conhecidas como expressando a verdade dosfenômenos. Se o mundo fenomenal tem três dimensões, o mesmo deveocorrer com omundo por trás dos fenômenos; se omundo fenomenal éeuclidiano,assim tambémdeveserooutro;eassimpordiante.Emsuma,toda proposição dotada de uma signi icação comunicável deve serverdadeira acerca de ambos os mundos ou de nenhum deles: a únicadiferençadeve residir exatamentenessa essênciade individualidadequesempreescapaàspalavrasefrustraadescrição,masque,exatamenteporessa razão, é irrelevante para a ciência. Ora, o único objetivo que osilósofostêmemvistaaocondenarosfenômenosépersuadirasimesmose aos outros de que o mundo real é muito diferente do mundo daaparência. Podemos todos compreender seu desejo de provar umaproposiçãotãodesejável,masnãopodemoscongratulá-losporseusucesso.É verdadequemuitosdelesnãoa irmamcorrespondentes objetivos paraos fenômenos, e estes escapam à argumentação citada. Os que a irmamcorrespondentes são, via de regra, muito reticentes sobre o assunto,provavelmenteporquesenteminstintivamenteque,selevadoadiante,issoresultaránum rapprochementmuitograndeentreomundofenomenaleoreal.Sefossemexplorarotópico,di icilmentepoderiamevitaraconclusãoqueestamossugerindo.Sobessesaspectos,bemcomoemmuitosoutros,anoçãodeestruturaounúmeroderelaçãoéimportante.

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Capítulo7Númerosracionais,reaisecomplexos

Vimoscomode inirnúmeroscardinais,etambémnúmerosderelação,dosquais os comumente chamados números ordinais são uma espécieparticular. Veremosque cadaumdesses tiposdenúmeropode ser tantoin inito quanto inito. Mas nenhum deles é passível, sem alterações, dasextensõesmaisconhecidasdaidéiadenúmero,asaber,asextensõesparanúmeros negativos, fracionários, irracionais e complexos. No presentecapítulo forneceremos brevemente de inições lógicas dessas váriasextensões.Umdoserrosqueatrasaramadescobertadede iniçõescorretasnessa

região é a idéia comum de que cada extensão de número incluía asespécies anteriores como casos especiais. Pensava-se que, ao lidar comnúmeros inteiros positivos e negativos, os números inteiros positivospodiam ser identi icados com os números inteiros originais sem sinal.Assim também, pensava-se que uma fração cujo denominador fosse 1podia ser identi icada com o número natural que é seu numerador. Esupunha-se que os números irracionais, tal como a raiz quadrada de 2,encontravamseulugarentreasfraçõesracionais,comosendomaioresdoque algumas delas e menores do que as outras, de modo que númerosracionaiseirracionaispodiamserconsideradosconjuntamenteumaclasse,chamada“númerosreais”.Equandoaidéiadenúmerofoimaisestendidademodoaincluirnúmeros“complexos”,istoé,númerosenvolvendoaraizquadradade–1,pensou-sequeosnúmerosreaispodiamserconsideradosaqueles entre os números complexosemqueaparte imaginária (istoé,apartequeeraummúltiplodaraizquadradade–1)erazero.Todasessassuposições eram errôneas, e devem ser rejeitadas, como veremos, sequisermoschegaradefiniçõescorretas.Comecemoscomnúmerosinteirospositivosenegativos.Ummomentode

consideraçãodeixaóbvioque+1e–1devemambosserrelações;de fato,devemseroinversoumdooutro.Ade iniçãoóbviaesu icienteéque+1éa relaçãoden+1comn,e–1éarelaçãoden comn+1.Emgeral, semforumnúmeroindutivo,+m seráarelaçãoden+m comn (paraqualquern),e–mseráarelaçãodencomn+m.Deacordocomessadefinição,+mé

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uma relação um-um contanto quen seja um número cardinal ( inito ouin inito) em é um número cardinal indutivo. Mas +m não pode, emnenhuma circunstância, ser identi icado comm, que não é uma relação,mas uma classe de classes. De fato, +m é exatamente tão distinto demquanto–m.Frações são mais interessantes que números inteiros positivos ou

negativos.Precisamosdefraçõesparamuitas inalidades,porémtalvezdemaneiramais óbvia paramensuração. Meu amigo e colaborador dr. A.N.Whitehead desenvolveu uma teoria das frações especialmente adaptadaparaaplicaçãoàmensuração,queestáexpostaemPrincipiaMathematica.1Massefornecessárioapenasde inirobjetosquetenhamaspropriedadespuramentematemáticasrequeridas,essa inalidadepodeseratingidaporummétodomaissimples,queadotaremosaqui.De iniremosa fraçãom/ncomo sendo aquela relação existente entre dois números indutivos, x, yquandoxn=ym.Essade iniçãonospermiteprovarquem/néumarelaçãoum-um,contantoquenemmnemnsejamzero.E,éclaro,n/méarelaçãoinversaam/n.Apartirdade iniçãomencionada icaclaroqueafraçãom/1éarelação

entredoisnúmeros inteiros x eyqueconsisteno fatodequex =my.Estarelação,comoarelação+m,nãopodedemaneiraalgumaser identi icadacom o número cardinal indutivom, porque uma relação e uma classe declassessãoobjetosdetiposcompletamentediferentes.2Veremosque0/nésempre amesma relação, não importaquenúmero indutivo n seja; é, emsuma,arelaçãode0comqualqueroutronúmerointeiroindutivocardinal.Podemos chamar isso o zero dos números racionais; ele não é,evidentemente, idêntico ao número cardinal 0. Inversamente, a relaçãom/0ésempreamesma,nãoimportaquenúmeroindutivomseja.Nãohánenhum cardinal indutivo que corresponda am/0. Podemos chamá-la “ainfinidadedosracionais”.Trata-sedeumcasodotipodeinfinitotradicionalnamatemática, que é representadopor “8”. Esse totalmente diferente doverdadeiroin initocantoriano,queconsideraremosnopróximocapítulo.Ain inidadedosracionaisnãorequer,parasuade iniçãoouuso,quaisquerclasses in initas de números inteiros in initos. Não é, na verdade, umanoção muito importante, e poderíamos prescindir totalmente dela, setivéssemosalgumarazãopara isso.O in initocantoriano,poroutro lado,éda maior e mais fundamental importância; a compreensão dele abrecaminhoparadomíniosinteiramentenovosdamatemáticaedafilosofia.Convémobservarquezeroeinfinidadesãoasúnicasrazõesquenãosão

um-um.Zeroéum-muitoseinfinidadeémuitos-um.

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Nãohánenhumadi iculdadeemde inirmaioremenorentrerazões(oufrações).Dadasduasrazõesm/nep/q,diremosquem/némenordoquep/q semq for menor do quepn. Não há nenhuma di iculdade emprovarque a relação “menor do que”, assim de inida, é serial, de modo que asrazões formamuma série emordemdemagnitude.Nessa série, zero é omenor termo e in inidade é o maior. Se omitirmos zero e in inidade denossasérie,nãohaverámaisnenhumarazãomenoroumaior;éóbvioquesem/n foruma razãodiferentede zeroe in inidade,m/2n serámenor e2m/n serámaior, emboranemumnemoutro seja zero ou in inidade, demodo quem/n não será nem a menor nem a maior razão, e portanto(quando zero e in inidade forem omitidos) não haverá menor ou maior,uma vez quem/n foi escolhido arbitrariamente. Demaneira semelhante,podemosprovarque,pormenosdiferentesqueduas fraçõespossamser,haverásempreoutras fraçõesentreelas.Suponhamosque m/n ep/qsãoduasfrações,dasquaisp/qéamaior.Éfácilver(ouprovar)entãoque(m+p)/(n+q)serámaiordoquem/nemenordoquep/q.Assim,asériederazões é tal que dois termos nunca são consecutivos, havendo sempreoutros termos entre quaisquer dois. Como há outros termos entre essesoutros,eassimpordianteadinfinitum,éóbvioqueháumnúmeroin initode razões entre quaisquer duas, por menos diferentes que elas sejam. 3Uma série que possua a propriedade segundo a qual há sempre outrostermos entre quaisquer dois, de modo que dois termos nunca sejamconsecutivos, é chamada “compacta”. Portanto, as razões em ordem demagnitude formam uma série “compacta”. Essas séries têm importantespropriedades, e é importante observar que as razões fornecem umexemplo de série compacta gerada de maneira puramente lógica, semnenhumapeloaespaçoetempoouqualqueroutrodadoempírico.Razõespositivas e negativas podem ser de inidas de maneira análoga

àquela como de inimos números inteiros positivos e negativos. Tendoprimeiro de inido a soma de duas razõesm/n ep/q como (mq + pn)/nq,de inimos+p/q como a relação dem/n+p/q comm/n, em quem/n é umarazão;e–p/qé,obviamente,oinversode+p/q.Essanãoéaúnicamaneirapossíveldede inirrazõespositivasenegativas,mas,paranossa inalidade,ela tem omérito de ser uma adaptação óbvia daquela que adotamos nocasodosnúmerosinteiros.Chegamosagoraaumaextensãomais interessantedaidéiadenúmero,

istoé,aextensãoaoschamadosnúmeros“reais”,quesãootipoqueabarcaos irracionais. No Capítulo 1 tivemos a oportunidade de mencionar“incomensuráveis”esuadescobertaporPitágoras.Foipormeiodeles,isto

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é, pormeio da geometria, que se pensou pela primeira vez nos númerosirracionais. Um quadrado cujo lado tem um centímetro de comprimentoterá uma diagonal cujo comprimento é a raiz quadrada de doiscentímetros. Mas, como os antigos descobriram, não há nenhuma fraçãocujo quadrado seja 2. Essa proposição está provada no décimo livro deEuclides, que é um daqueles livros que estudantes supunham estarperdido, para a sua alegria, no tempo em que Euclides ainda era usadocomo livro-texto. A prova é extraordinariamente simples. Se possível,suponhamosquem/néaraizquadradade2,demodoquem2/n2=2,istoé ,m2 = 2n2. Assim,m2 é um número par, e portantom deve ser umnúmeropar,porqueoquadradodeumnúmeroímparéimpar.Ora,se mépar,m2 deve ser divisível por 4, pois sem = 2p, entãom2 = 4p2. Assimteremos 4p2 = 2n2, ondep é metade dem. Portanto, 2p2 =n2, e porconseguinten/p será também a raiz quadrada de 2.Mas podemos entãorepetir o raciocínio: sen = 2q,p/q será também a raiz quadrada de 2, eassimpordiante,atravésdeumasérieintermináveldenúmeros dosquaiscada um é a metade de seu predecessor. Mas isso é impossível; sedividirmos um número por 2, e depois dividirmos a metade ao meio eassimpordiante,atingiremosnecessariamenteumnúmeroímparapósumnúmero inito de passos. Podemos também formular o raciocínio demaneiraaindamaissimples,supondoqueom/ncomquecomeçamosestáem seus termos mais baixos; nesse caso,m en não podem ambos serpares; vimos, contudo, que, sem2/n2 = 2, devem ser. Não pode, haverportanto,nenhumafraçãom/ncujoquadradoseja2.Por conseguinte, nenhuma fração expressará exatamente o

comprimentodadiagonaldeumquadradocujoladotemumcentímetrodecomprimento. Isso parece um desa io lançado pela natureza para aaritmética. Por mais que o matemático se gabe (como o fez Pitágoras)acerca do poder dos números, a natureza parece frustrá-lo exibindocomprimentos que número algum pode estimar em termos da unidade.Mas o problema não permaneceu nessa forma geométrica. Assim que aálgebrafoi inventada,omesmoproblemasurgiucomrelaçãoàsoluçãodeequações, embora aqui ele tenha assumido uma formamais ampla, umavezqueenvolviatambémnúmeroscomplexos.É claramente possível encontrar frações que cheguem cada vez mais

perto de ter seu quadrado igual a 2. Podemos formar uma sérieascendente de frações que tenham todas elas seus quadrados menoresque do 2,mas diferindo de 2 e seusmembros posteriores pormenos doqueumvalordesignado-a.Istoé,suponhamosquedesignoalgumpequeno

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valordeantemão,digamosumbilionésimo,eseráconstatadoquetodosostermos de nossa série após um certo termo, digamos o décimo, têmquadradosquediferemde2pormenosqueessevalor.Seeudesignasseumvaloraindamenor,poderiasernecessárioiradianteaolongodasérie,maschegaríamosmaiscedooumaistardeaumtermonasérie,digamosovigésimo,apósoqualtodosostermosteriamquadradosdiferindode2pormenosqueessevaloraindamenor.Setentássemosextrairaraizquadradade2pelaregraaritméticausual,obteríamosumdecimalinterminávelque,levado para tais ou tais lugares, preencheria exatamente as condiçõescitadas. Podemos igualmente formar uma série descendente de fraçõescujos quadrados sejam todos maiores do que 2, mas maior porquantidadescontinuamentemenores,àmedidaquechegamosaostermosposteriores da série, e diferindo,mais cedo oumais tarde, pormenos doque qualquer quantidade designada. Dessa maneira, é como seestivéssemos estendendo um cordão de isolamento em torno da raizquadrada de 2, e talvez seja di ícil acreditar que ela possa nos escaparpermanentemente. Não é por esse método, porém, que chegaremosrealmenteàraizquadradade2.Se dividirmostodas as razões em duas classes, conformemente seus

quadrados sejammenores do que 2 ou não, veremos que, entre aquelascujos quadradosnão são menores do que 2, todas têm seus quadradosmaiores do que 2. Não há um máximo para as razões cujo quadrado émenordoque2,eummínimoparaaquelascujoquadradoémaiordoque2.Nãohálimiteinferior,comexceçãodezero,paraasdiferençasentreosnúmeros cujo quadrado é um pouco menor do que 2 e aqueles cujoquadradoéumpoucomaiordoque2.Podemos,emsuma,dividirtodasasrazões em duas classes tais que todos os termos em uma delas sejammenoresdoquetodosostermosnaoutra,nãohavendomáximoparaumaclasseenãohavendomínimoparaaoutra.Entreessasduasclasses,onde√2 deveria estar, não há nada. Portanto, nosso cordão de isolamento,emboraotenhamosestreitadotantoquantopossível,foiestendidonolugarerrado,enãoprendeu√2.O método descrito de dividir todos os termos de uma série em duas

classes, uma das quais precede inteiramente a outra, foi posto emdestaque por Dedekind,4 sendo por isso chamado “corte de Dedekind”.Com respeito aoque acontecenopontode seção, háduaspossibilidades:(1) pode haver um máximo para a seção inferior e um mínimo para aseção superior, (2) pode haver ummáximo para uma e nenhummínimopara a outra, (3)podenãohaverummáximoparauma,masummínimo

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paraaoutra, (4)podenãohaverummáximoparauma,nemummínimoparaaoutra.Dessesquatrocasos,oprimeiroéilustradoporsériesemquehá termosconsecutivos:nasériedosnúmeros inteiros,porexemplo,umaseçãoinferiordeveterminarcomalgumnúmeroneaseçãosuperiordeveentãocomeçarcomn+1.Osegundocasoseráilustradonasériedasrazõessetomarmoscomonossaseçãoinferiortodasasrazõesaté1,incluindo1,eemnossaseçãosuperiortodasasrazõesmaioresdoque1.Oterceirocasoéilustradosetomarmospornossaseçãoinferiortodasasrazõesmenoresdo que 1 e por nossa seção superior todas as razões de 1 para cima(incluindoopróprio1).Oquartocaso,comovimos,éilustradosepusermosemnossaseçãoinferiortodasasrazõescujoquadradoformenordoque2eemnossaseçãosuperiortodascujoquadradoformaiordoque2.Podemosdeixardeladooprimeirodenossosquatrocasos,vistoqueele

sósurgeemsériesemquehátermosconsecutivos.Nosegundodenossosquatrocasos,dizemosqueomáximodaseçãoinferioréo limiteinferiordaseção superior, ou de qualquer conjunto de termos escolhido na seçãosuperior,detalmaneiraquenenhumtermodaseçãosuperiorestejaantesde todos eles.No terceiro denossos quatro casos, dizemosque omínimoda seção superior é o limite superior da seção inferior, ou de qualquerconjunto de termos escolhido na seção inferior, de tal maneira quenenhum termo da seção inferior esteja depois de todos eles.No quartocaso, dizemosqueháuma “lacuna”: nema seção superiornema inferiortêmumlimiteouumúltimotermo.Nessecaso,podemostambémdizerquetemos uma “seção irracional”, visto que seções da série de razões têm“lacunas”quandocorrespondemairracionais.O que atrasou a verdadeira teoria dos irracionais foi uma crença

errônea de que devia haver “limites” de séries de razões. A noção de“limite” é da maior importância, e antes de seguirmos adiante, éconvenientedefini-la.Diz-se que um termox é um “limite superior” de uma classeα com

respeito a uma relação P se (1)α não tiver nenhum máximo em P, (2)todos os membros deα que pertencem ao campo de P precedemx, (3)todos os membros do campo de P que precedem x precedem algummembrodeα.(Por“precede”entendemos“temarelaçãoPcom”.)Isso pressupõe a seguinte de inição de um “máximo”: diz-se que um

termoxéum“máximo”deumaclasseαcomrespeitoaumarelaçãoPse xfor membro deα e do campo de P e não tiver a relação P com nenhumoutromembrodeα.Essas de inições não exigem que os termos a que são aplicadas sejam

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quantitativos. Por exemplo, dada uma série de momentos de tempoarranjados emanteriores e posteriores, seu “máximo” (se houver algum)será o último dos momentos; mas se eles estiverem arranjados emposterioreseanteriores,seu“mínimo”(sehouveralgum)seráoprimeirodosmomentos.O“mínimo”deumaclassecomrespeitoaPéseumáximocomrespeito

ao inverso de P; e o “limite inferior” com respeito a P é o limite superiorcomrespeitoaoinversodeP.Asnoçõesde limiteemáximonãoexigemessencialmentequearelação

a respeito da qual são de inidas seja serial, mas têm poucas aplicaçõesimportantesexcetoacasosemquearelaçãoéserialouquase-serial.Umanoçãomuitasvezes importanteé ade“limite superior oumáximo”, a quepodemoschamar“fronteirasuperior”.Assim,a“fronteirasuperior”deumconjunto de termos escolhido numa série é seu último membro, se elestiverem um, mas, se não, é o primeiro termo depois de todos eles, sehouver tal termo. Se não houver nem um máximo nem um limite, nãohaverá fronteira superior. A “fronteira inferior” é um limite inferior oumínimo.Retornandoaosquatro tiposdeseçãodeDedekind,vemosquenocaso

dos três primeiros tipos, cada seção tem uma fronteira (superior ouinferior,conformeocaso),aopassoquenoquartotiponenhumadasduastemfronteira.Éclarotambémque,semprequeaseçãoinferiortiverumafronteira superior, a seção superior terá uma fronteira inferior. Nosegundoeterceirocasos,asduasfronteirassãoidênticas;noprimeiro,sãotermosconsecutivosdasérie.Umasérieé chamada “dedekindiana”quando todasas seções têmuma

fronteira, superior ou inferior conforme o caso. Vimos que a série dasrazõesemordemdemagnitudenãoédedekindiana.Porforçadohábitodesedeixaremin luenciarpelaimaginaçãoespacial,

as pessoas supunham que as sériesdeviam ter limites em casos em quepareceria estranho que não tivessem. Assim, ao perceber que não havianenhumlimiteracionalparaasrazõescujoquadradoeramenordoque2,elas sepermitiram“postular”um limite irracional,quedeveriapreenchera lacuna dedekindiana. Dedekind, na obra mencionada anteriormente,estabeleceuoaxiomadequealacunadevesempreserpreenchida,istoé,quetodaseçãodeveterumafronteira.Époressarazãoquesériesemqueseu axioma é veri icado são chamadas “dedekindianas”. Mas há umnúmeroinfinitodesériesparaasquaiselenãoseverifica.O método de “postular” o que queremos tem muitas vantagens; as

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mesmas vantagens do roubo sobre o trabalho honesto. Vamos deixá-loparaoutroseseguiradiantecomnossalabutahonesta.É claro que um corte de Dedekind irracional “representa” de alguma

maneiraum irracional.Para fazerusodisso,queparacomeçarnãopassade uma vaga impressão, devemos encontrar alguma maneira de extrairdeleumade iniçãoprecisa; epara fazê-lo, temosde livrarnossasmentesdanoçãodequeumirracionaldeveserolimitedeumconjuntoderazões.Assim como razões cujo denominador é 1 não são idênticas a númerosinteiros,assimtambémaquelesnúmerosracionaisquepodemsermaioresoumenoresdoqueirracionais,oupodemterirracionaiscomoseuslimites,nãodevemseridenti icadoscomrazões.Temosdede inirumnovotipodenúmeros, chamados “números reais”, dos quais alguns serão racionais ealguns irracionais. Os que são racionais “correspondem” a razões, domesmomodoquearazãon/1 correspondeaonúmero inteiro n;masnãosãoomesmoque razões.Paradecidiroqueelesdevemser, observemosque um irracional é representado por um corte irracional, e um corte érepresentadoporsuaseçãoinferior.Limitemo-nosacortesemqueaseçãoinferior não tenha nenhum máximo; nesse caso chamaremos a seçãoinferiorum“segmento”.Portantoaquelessegmentosquecorrespondemarazõessãoosqueconsistememtodasasrazõesmenosarazãoaqueelescorrespondem, a qual é seu limite; enquanto aqueles que representamirracionaissãoosquenãotêmnenhumafronteira.Ossegmentos, tantoosquetêmfronteirasquantoosquenãotêm,sãotaisque,dequaisquerdoispertencentes a uma série, umdeve ser parte do outro; em conseqüênciaelespodemtodosserarranjadosnumasériepelarelaçãodetodoeparte.UmasérieemquehajalacunasdeDedekind,istoé,emquehajasegmentosquenão têmfronteira,daráorigemaumnúmerodesegmentosmaiordoque o número de seus termos, uma vez que cada termo de inirá umsegmento tendo aquele termo por fronteira, e assim os segmentos semfronteiraserãoextras.Estamosagoraemcondiçõesdedefinirnúmerorealenúmeroirracional.

Um “número real” é um segmento da série de razões em ordem demagnitude.Um“númeroirracional”éumsegmentodasériederazõesquenãotemnenhumafronteira.Um“númerorealracional”éumsegmentodasériederazõesquetemumafronteira.Umnúmerorealracionalconsiste,portanto,emtodasasrazõesmenores

do que determinada razão, e é o número real racional correspondente aessarazão.Onúmeroreal1,porexemplo,éaclassedasfraçõespróprias.Noscasosemquesupusemosnaturalmentequeumirracionaldeviaser

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o limite de um conjunto de razões, a verdade é que ele é o limite doconjunto correspondente de números reais racionais na série desegmentosordenadosportodoeparte.Porexemplo,√2éolimitesuperiordaqueles segmentos da série de razões que correspondem a razões cujoquadradoémenorque3.Maissimplesmenteainda,√2éosegmentoqueconsisteemtodasaquelasrazõescujoquadradoémenorque2.É fácil provar que a série de segmentos de qualquer série é

dedekindiana. Pois, dado qualquer conjunto de segmentos, sua fronteiraserá sua soma lógica, isto é, a classe de todos aqueles termos quepertencemapelomenosumsegmentodoconjunto.5A de inição de número real que acabamos de citar é um exemplo de

“construção” em contraposição a “postulação”, de que tivemos outroexemplo na de inição de números cardinais. A grande vantagem dessemétodoénãorequerernenhumanovasuposição,permitindo-nosprocederdedutivamenteapartirdoaparatooriginaldalógica.Não há nenhuma di iculdade em de inir adição e multiplicação para

númerosreaiscomode inidospreviamente.Dadosdoisnúmerosreais, μeν, cada um sendo uma classe de razões, tome qualquer membro deμ equalquermembrodeνesome-ossegundoaregraparaaadiçãoderazões.Formeaclassedetodasaquelassomasobteníveisvariando-seosnúmerosselecionados deμ eν. Issodáumanovaclassede razões, eé fácilprovarqueessanova classe éumsegmentoda sériede razões.Nós ade inimoscomoasomadeμeν.Podemosexpressarade iniçãomaisbrevementedaseguinte maneira:a soma aritmética de dois números reais é a classe dassomas aritméticas de um membro de uma e um membro da outraescolhidosdetodasasmaneiraspossíveis.Podemosde iniroprodutoaritméticodedoisnúmerosreaisexatamente

damesmamaneira,multiplicandoummembrodeumaporummembrodaoutra de todas asmaneiras possíveis. A classe de razões assim gerada éde inida como o produto dos dois números reais. (Em todas essasde inições, a série de razões deve ser de inida de modo a excluir 0 e ainfinidade.)Não há di iculdade em estender nossas de inições a números reais

positivosenegativoseàsuaadiçãoemultiplicação.Faltadaradefiniçãodenúmeroscomplexos.Os números complexos, embora passíveis de uma interpretação

geométrica,nãosãoexigidospelageometriadamesmamaneiraimperativacomo o são os números irracionais. Um número “complexo” signi ica umnúmeroque envolva a raiz quadrada de um número negativo, quer seja

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integral, fracionário ou real. Como o quadrado de um número negativo épositivo,umnúmerocujoquadradodevesernegativotemdeserumnovotipo de número. Usando a letra i para a raiz quadrada de –1, qualquernúmero que envolva a raiz quadrada de um número negativo pode serexpressa na formax +yi, ondex é real. A parteyi é chamada a parte“imaginária” desse número, x sendo a parte “real”. (A razão para aexpressão“númerosreais”équeelessãocontrapostosaos“imaginários”.)Númeroscomplexosforamhabitualmenteusadospormatemáticosporumlongo tempoapesarda ausênciadequalquerde iniçãoprecisa. Supunha-se simplesmente que deviam obedecer às regras matemáticas usuais, ecom base nesses pressupostos considerou-se que seu uso era vantajoso.Eram requeridos menos para geometria do que para álgebra e análise.Desejamos, por exemplo, ser capazes de dizer que toda equaçãoquadrática tem duas raízes, e toda equação cúbica tem três, e assim pordiante.Masse icarmosrestritosaosnúmerosreais,umaequaçãocomo x2+1=0nãotemraiznenhuma,eumaequaçãocomox3–1=0temapenasuma. Toda generalização de número apresentou-se primeiro comonecessária para algum problema simples: números negativos foramnecessáriosparaquea subtraçãopudesse ser semprepossível, vistoquedeoutromodoa –b seriasemsentidosea fossemenordoqueb; fraçõesforam necessárias para que a divisão pudesse ser sempre possível; enúmeroscomplexossãonecessáriosparaqueextraçãoderaízesesoluçãodeequaçõespossamsersemprepossíveis.Masextensõesdenúmeronãosãocriadas pela mera necessidade deles: são criadas pela de inição, e épara a de inição de números complexos que voltaremos agora nossaatenção.Um número complexo pode ser considerado e de inido como

simplesmente umpar ordenadode números reais. Aqui, como emoutroslugares, muitas de inições são possíveis. É necessário apenas que ade inição adotada conduza a certas propriedades. No caso de númeroscomplexos, se eles forem de inidos como pares ordenados de númerosreais, teremos assegurado de imediato algumas das propriedadesrequeridas, a saber, que dois números reais são necessários paradeterminar um número complexo, e que entre esses podemos distinguirum primeiro e um segundo, e que dois números complexos só serãoidênticos quando o primeiro número real envolvido em um for igual aoprimeiroenvolvidonooutro,eo segundoaosegundo.Oqueénecessárioalémdissopodeserasseguradomedianteade iniçãodasregrasdeadiçãoemultiplicação.Devemoster

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(x+yi)+(x’+y’i)=(x+x’)+(y+y’)i(x+yi)(x’+y’i)=(xx’–yy’)+(xy’+x’y)i.

De iniremos assimque, dadosdois pares ordenadosdenúmeros reais,(x,y)e(x’,y’), suasomadeveseropar (x+x’, y+y’), e seuprodutodeveseropar(xx’–yy’,xy’+x’y).Comessasde iniçõesgarantiremosquenossospares ordenados terão as propriedades que desejamos. Por exemplo,tomemos o produto dos dois pares (0, y) a (0,y’). Esse será, pela regracitada,opar (–yy’,0).Assim,oquadradodopar (0,1) seráopar (–1,0).Ora, os pares em que o segundo termo é 0 são aqueles que, segundo anomenclaturausual, têmsuaparte imagináriazero;nanotação x+yi,elessãox + 0i, que é natural escrever simplesmente x. Assim como é natural(mas errôneo) identi icar razões cujo denominador é a unidade comnúmeros inteiros, assim também é natural (mas errôneo) identi icarnúmeros complexos cuja parte imaginária é zero com números reais.Emboraissosejaumerronateoria,éumaconveniêncianaprática;“ x+0i”podesersubstituídosimplesmentepor“x”e“0+yi”por“yi”,contantoquelembremos que o “x” não é realmente um número real, mas um casoespecial de um número complexo. E quando y é 1, “yi” pode, é claro, sersubstituídopor“i”.Assimopar(0,1)érepresentadopori,eopar(–1,0)érepresentado por –1. Ora, nossas regras de multiplicação tornam oquadradode(0,1)iguala(–1,0),istoé,oquadradode ié–1.Eraissoquedesejávamos assegurar. Nossas de inições servirão, portanto, a todas asfinalidadesnecessárias.É fácil dar uma interpretação geométrica de números complexos na

geometria do plano. Esse tema foi agradavelmente exposto por W.K.Clifford em seuCommon Sense of the Exact Sciences , um livro de grandemérito, mas escrito antes que a importância de de inições puramentelógicasfossecompreendida.Númeroscomplexosdeumaordemmaiselevada,emboramuitomenos

úteis e importantesqueosqueacabamosdede inir, têmcertosusosnãodetododesprovidosdeimportâncianageometria,comopodeservisto,porexemplo, emUniversalAlgebra do dr.Whitehead. A de inição de númeroscomplexosdaordemnéobtidamedianteumaextensãoóbviadade iniçãoquedemos.Definimosumnúmerocomplexodaordemncomoumarelaçãoum-muitos cujodomínio consiste emcertosnúmeros reais e cujodomínioinverso consiste nos números inteiros de 1 an.* Isso é o que seriacomumenteindicadopelanotação(x1,x2,x3,...xn),ondeossu ixosdenotamcorrelaçãocomosnúmeros inteirosusadoscomosu ixos,eacorrelaçãoé

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um-muitos, não necessariamente um-um, porquexr exs podem ser iguaisquandor es não são iguais. A de iniçãomencionada, com uma regra demultiplicação adequada, servirá a todas as inalidades para as quaisnúmeroscomplexosdeordensmaiselevadassãonecessários.Completamosnossarevisãodasextensõesdenúmeroquenãoenvolvem

in inidade. A aplicação de número a coleções in initas deve ser nossopróximotópico.*Cf.PrinciplesofMathematics,§360,p.379.

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Capítulo8Númeroscardinaisinfinitos

Ade iniçãodenúmeroscardinaisquedemosnoCapítulo2foiaplicadanoCapítulo 3 a números initos, isto é, aos números naturais ordinários.Demos a esses o nome “números indutivos”, porque veri icamos quedevemserde inidoscomonúmerosqueobedecemà induçãomatemática,começandopor0.Masaindanão consideramoscoleçõesquenão têmumnúmero indutivo de termos, nem indagamos se é possível dizer que taiscoleções têm de fato um número. Esse é um problema antigo, que foiresolvido em nosso próprio tempo, principalmente por Georg Cantor. Nopresente capítulo tentaremos explicar a teoria dos números cardinaistrans initos ou in initos tal como ela resulta de uma combinação dasdescobertas de Cantor com as de Frege no campo da teoria lógica dosnúmeros.Nãosepodedizerqueécertoqueexistemcoleçõesin initasnomundo.

A suposição de que existem é chamada “axioma da in inidade”. Emborahaja aparentemente várias maneiras pelas quais poderíamos esperarprovaresseaxioma,hárazõesparasetemerquesejamtodasfalaciosas,eque não haja razão lógica conclusiva para se acreditar que ele éverdadeiro. Aomesmo tempo, certamente não existe razão lógica algumacontra coleções in initas, e por isso estamos logicamente justi icados aoinvestigar a hipótese de que tais coleções existam.A formaprática dessahipótese,paranossas inalidadespresentes,éasuposiçãodeque,sen forqualquer número indutivo,n não será igual an + 1. Várias sutilezassurgemquandoidenti icamosessaformadenossasuposiçãocomaformaque a irma a existência de coleções in initas; mas nós as deixaremos delado até passarmos, num capítulo posterior, a considerar o axioma dain inidadeporsimesmo.Porenquanto,vamossimplesmentesuporque,sen forumnúmeroindutivo,nnãoseráigualan+1. IssoestáenvolvidonasuposiçãofeitaporPeanodequedoisnúmerosindutivosdiferentesjamaistêm omesmo sucessor; pois, sen =n + 1, entãon + 1 en têm omesmosucessor, a saber, n. Não estamos, portanto, supondo nada que nãoestivesseenvolvidonasproposiçõesprimitivasdePeano.Consideremos agora a coleção dos próprios números indutivos. Essa é

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uma classe perfeitamente bem de inida. Em primeiro lugar, um númerocardinal é um conjunto de classes, todas similares umas às outras e nãosimilares a nada exceto umas às outras. De inimos então como “númerosindutivos” aqueles entre os cardinais que pertencem à posteridade de 0comrespeitoàrelaçãoden comn+1, istoé,aquelesquepossuemtodasaspropriedadesde0eseussucessores,entendendopor“sucessor”denonúmeron + 1. Assim a classe dos “números indutivos” é perfeitamentede inida. Por nossa de inição geral de números cardinais, o número determos na classe dos números indutivos deve ser “todas as classessimilaresàclassedosnúmerosindutivos”,istoé,esseconjuntodeclasseséonúmerodosnúmerosindutivossegundonossasdefinições.Éfácilveragoraqueessenúmeronãoéumdosnúmerosindutivos.Se n

forumnúmeroindutivo,onúmerodenúmerosde0a n (ambosincluídos)serán + 1; portanto, onúmero total denúmeros indutivos serámaiordoq u en, não importando qual dos números indutivosn possa ser. Searranjarmos os números indutivos numa série em ordem de magnitude,esta série não terá nenhum último termo; mas sen for um númeroindutivo,todasériecujocampotiverntermosteráumúltimotermo,comoé fácil provar. Tais diferenças poderiam ser multiplicadas ad libitum.Assim, o número de números indutivos é um novo número, difer ente detodoseles,nãopossuindotodasaspropriedadesindutivas.Podeacontecerque0tenhadeterminadapropriedade,equesenativer,n+1tambématerá;essenovonúmero,contudo,nãoaterá.Asdificuldadesqueatrasarampor tanto tempo a teoria dos números in initos deveram-se em grandeparte ao fato de se considerar que necessariamente todos os númerospossuempelomenosalgumaspropriedadesindutivas;defato,pensava-seque elas não poderiam ser negadas sem contradição. O primeiro passoparacompreendermosnúmerosinfinitosconsisteemperceberesseerro.Adiferençamaisdignadenotaeespantosaentreumnúmeroindutivoe

esse novo número é que este permanece inalterado pela adição ousubtraçãode1;permanecerá igualmente inalteradoseodobrarmos,ouodividirmospor2ouosubmetermosaqualquerdasoutrasoperaçõesquenosparecem tornarumnúmeronecessariamentemaioroumenor.O fatodenãoseralteradopelaadiçãode1éusadoporCantorparaade iniçãodoqueelechamanúmeroscardinais“trans initos”;mas,porváriasrazões,algumas das quais emergirão à medida que prosseguirmos, é melhorde inirumnúmerocardinalin initocomoumnúmeroquenãopossuitodasaspropriedadesindutivas, istoé,simplesmenteumnúmeroquenãoéumnúmero indutivo. Apesar disso, a propriedade de não ser alterado pela

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adiçãode1émuito importanteedevemosnosentenderumpoucosobreela.Dizerqueumaclassetemumnúmeroquenãoéalteradopelaadiçãode

1éomesmoquedizerque,se tomarmosumtermoxquenãopertenceàclasse, podemos encontrar uma relação um-um cujo domínio é a classe ecujo domínio inverso é obtido somando-sex à classe. Pois, nesse caso, aclasseésimilaràsomadesimesmaedotermox, istoé,aumaclassequetem um termo extra; de modo que ela tem o mesmo número que umaclassecomumtermoextra,detalmodoque,senforessenúmero,n=n+1. Nesse caso, teremos tambémn =n – 1, isto é, haverá relações um-umcujodomínioconsisteemtodaaclasseecujodomínioinversoconsisteemapenasumtermo,excluídatodaaclasse.Podesermostradoqueoscasosem que isso acontece são aqueles mesmos casos aparentemente maisgerais em quealguma parte (excluído o todo) pode ser posta em relaçãoum-um com o todo. Quando isso pode ser feito, pode-se dizer que ocorrelatorpeloqualéfeito“re lete”todaaclassenumapartedelamesma;poressarazão,essasclassespodemserchamadas“reflexivas”.Assim:umaclasse “re lexiva” é uma classe similar a umaparte própria de simesma.(Uma“parteprópria”éumapartequenãoéotodo.)Um número cardinal “re lexivo” é o número cardinal de uma classe

reflexiva.Devemos agora considerar essa propriedade da re lexividade. Um dos

casosmais impressionantesde“re lexão”éoexemplodomapa,deRoyce.Ele imaginaque se decidiu traçar ummapada Inglaterra numaparte dasuper ície da Inglaterra. Um mapa, para ser preciso, deve ter umacorrespondênciaum-umperfeitacomseuoriginal;assim,nossomapa,queéparte,éumarelaçãoum-umcomotodo,edeveconteromesmonúmerodepontosqueotodo,oqualdeveportantoserumnúmerore lexivo.Royceestá interessadonofatodequeomapa,parasercorreto,deveconterummapadomapa,oqualporsuavezdeveconterummapadomapadomapa,e assimad in initum. A idéia é interessante,mas não precisa nos ocuparnestemomento.Defato,faremosbemempassardeilustraçõespitorescasaoutrasmaiscompletamentede inidas,eparaessepropósitonãohánadamelhordoqueconsideraraprópriasériedosnúmeros.Arelaçãodencomn+1,limitadaanúmerosindutivos,éum-um,tema

totalidade dos números indutivos por seu domínio, e todos, exceto 0, porseudomínioinverso.Assim,atotalidadedaclassedosnúmerosindutivosésimilar ao que a mesma classe setorna quando omitimos 0.Conseqüentemente, ela é uma classe “re lexiva” segundo a de inição, e o

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númerodeseustermoséumnúmero“re lexivo”.Novamente,arelaçãoden com 2n, limitada a números indutivos, é um-um, tem a totalidade dosnúmeros indutivospordomínioeosnúmeros indutivosparesapenasporseu domínio inverso. Portanto, o número total de números indutivos é omesmo que o número de números indutivos pares. Essa propriedade foiusada por Leibniz (e muitos outros) como prova de que os númerosin initos são impossíveis; considerava-se contraditório que “a partedevesse ser igual ao todo”. Mas essa é uma daquelas expressões cujaplausibilidade depende de uma imprecisão não percebida: a palavra“igual”temmuitossentidos,massefortomadacomo“similar”,nãohaverácontradição, uma vez que uma coleção in inita pode perfeitamente terpartes siilares a si mesma. Aqueles que consideraram isso impossível,atribuíramaosnúmerosemgeral,inconscientemente,propriedadesquesópodemserprovadasporinduçãomatemática,equesomoslevados,apenaspor sua familiaridade, a considerar, erroneamente, verdadeiras além daregiãodofinito.Semprequepodemos “re letir”umaclassenumapartede siprópria, a

mesmarelação re letiránecessariamentenumapartemenor, e assimpordianteadinfinitum.Porexemplo,podemosre letir,comoacabamosdever,todos os números indutivos nos números pares; podemos, pela mesmarelação(adencom2n),refletirosnúmerosparesnosmúltiplosde4,estesnos múltiplos de 8, e assim por diante. Esse é um análogo abstrato doproblemadomapadeRoyce.Osnúmerosparessãoum“mapa”detodososnúmeros indutivos;osmúltiplosde4sãoummapadomapa;osmúltiplosde 8 são ummapa domapa domapa, e assim por diante. Se tivéssemosaplicadoomesmoprocesso à relaçãoden comn + 1, nosso “mapa” teriaconsistidoemtodososnúmerosindutivosexceto0;omapadomapateriaconsistido em todos a partir de 2,omapa domapa domapa em todos apartir de 3, e assim por diante. O principal uso dessa ilustração é nosfamiliarizarcomaidéiadeclassesre lexivas,detalmodoqueproposiçõesaritméticas aparentemente paradoxais possam ser prontamentetraduzidas na linguagem de re lexões e classes, em que a aparência deparadoxoémuitomenor.Será útil dar uma de inição de número que seja a dos cardinais

indutivos. Para essa inalidade, de iniremos primeiro o tipo de sérieexempli icadopeloscardinaisindutivosemordemdemagnitude.Otipodesérie chamado “progressão” já foi consideradonoCapítulo1.Éumasérieque pode ser gerada por uma relação de consecutividade: todos osnúmerosnasériedevemterumsucessor,masdevehaverapenasumque

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não tenha predecessor, e todos os membros da série devem estar emposteridade a esse termo com respeito à relação “predecessor imediato”.Essas características podem ser resumidas na seguinte de inição: 1 uma“progressão” é uma relação um-um tal que há apenas um termopertencente ao domínio, mas não ao domínio inverso, e o domínio éidênticoàposteridadedesseúnicotermo.Éfácilverqueumaprogressão,assimde inida,satisfazoscincoaxiomas

de Peano. O termo pertencente ao domínio,mas não ao domínio inverso,seráoqueelechama“0”;otermocomoqualumtermotemarelaçãoum-umseráo“sucessor”dotermo;eodomíniodarelaçãoum-umseráoqueele chama “número”.Tomandoseuscincoaxiomassucessivamente, temosasseguintestraduções:(1) “0 é um número” torna-se: “O membro do domínio que não é

membro do domínio inverso émembro do domínio.” Isso é equivalente àexistênciadetalmembro,oqualédadoemnossade inição.Chamaremosaessemembro“oprimeirotermo”.(2) “Osucessorde todonúmeroéumnúmero” torna-se: “O termocom

queumdadomembrododomíniotemarelaçãoemquestãoénovamentemembrododomínio.” Issoéprovadoda seguintemaneira:pelade inição,todo membro do domínio é membro da posteridade do primeiro termo;portanto, o sucessor de um membro do domínio deve ser membro daposteridade do primeiro termo (porque a posteridade de um termosempre contém os sucessores dele próprio, pela de inição geral deposteridade), e portanto membro do domínio, porque pela de inição aposteridadedoprimeirotermoéomesmoqueodomínio.(3) “Dois números diferentes nunca têmomesmo sucessor.” Isso quer

dizerapenasquearelaçãoéum-muitos,oqueelaéporde inição(sendoum-um).(4)“0nãoéosucessordenenhumnúmero”torna-se:“Oprimeirotermo

não é membro do domínio inverso”, o que é novamente um resultadoimediatodadefinição.(5) Isso é indução matemática e torna-se “todo membro do domínio

pertence à posteridade do primeiro termo”, o que era parte de nossadefinição.Dessa maneira, as progressões, tais como as de inimos, têm as cinco

propriedades formaisdasquaisPeanodeduzaaritmética.É fácilmostrarque duas progressões são “similares” no sentido de inido parasimilaridade de relações no Capítulo 6. Podemos, é claro, derivar umarelação serial da relação um-um pela qual de inimos uma progressão: o

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métodousadoéaqueleexplicadonoCapítulo4,earelaçãoéaqueladeumtermocomummembrodesuaposteridadeprópriacomrespeitoàrelaçãooriginalum-um.Duas relações assimétricas transitivas que geram progressões são

similares, pelas mesmas razões pelas quais as relações um-umcorrespondentes são similares. A classe de todos esses geradorestransitivosdeprogressõeséum“númeroserial”nosentidodoCapítulo6;é de fato omenor dos números seriais in initos, o número a que Cantordeuonomeω,peloqualotornoufamoso.Mas o quenos interessa, por enquanto, são os números cardinais. Uma

vez que duas progressões são relações similares, segue-se que seusdomínios (ou seus campos, que são o mesmo que seus domínios) sãoclasses similares. Os domínios das progressões formam um númerocardinal,umavezquesepodemostrar facilmenteque todaclassesimilarao domínio é ela mesma o domínio de uma progressão. Esse númerocardinaléomenordosnúmeroscardinaisin initos;éaqueleaqueCantorchamouapropriadamentedohebraicoálefecomosu ixo0,paradistingui-lodecardinaisin initosmaiores,quetêmoutrossu ixos.Assimonomedomenordoscardinaisinfinitoén0.Dizerqueumaclassetem?termoséomesmoquedizerqueémembro

den0, e isso é omesmo que dizer que osmembros da classe podem serarranjadosnumaprogressão.Éóbvioquetodaprogressãocontinuasendouma progressão se omitimos dela um número inito de termos, ou umtermoa cadadois,ou todosexceto cadadécimooucadacentésimo.Essesmétodos de reduzir uma progressão não a fazem deixar de ser umaprogressão, e portanto não diminuem o número de seus termos, quecontinuasendon0.Defato,qualquerseleçãoapartirdeumaprogressãoéumaprogressãosenãotiverúltimotermo,pormaisdispersaquesejasuadistribuição. Tomemos (digamos) números indutivos da formann ou nnn .Esses números vão icandomuito rarefeitos nas partesmais elevadas dasériedenúmeros,masapesardissosãoexatamentetãonumerososquantoatotalidadedosnúmerosindutivos,asabern0.Inversamente,podemosacrescentartermosaosnúmerosindutivossem

aumentar seu número. Tomemos, por exemplo, razões. Poderíamos ter atendência a pensar que deve haver muito mais razões do que númerosinteiros, visto que razões cujo denominador é 1 correspondem aosnúmeros inteiros e parecem ser apenas uma proporção in initesimal dasrazões. Na realidade, porém, o número de razões (ou frações) é

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exatamente igual ao de números indutivos, a saber, n 0. É fácil ver issoarranjandorazõesnumasériedeacordocomoseguinteplano:seasomadonumeradoredodenominadoremumaformenordoquenaoutra,põe-seumaantesdaoutra;seasomaforigualnasduas,põe-seprimeiroaquetemmenornumerador.Issonosdáasérie

1,1/2,2,1/3,3,1/4,2/3,3/2,4,1/5,...

Essasérieéumaprogressão,etodasasrazõesocorremnelamaiscedoou mais tarde. Assim podemos arranjar as razões em progressão eportantoseunúmeroén0.Nãoéverdade,noentanto,quetodasascoleçõesin initastêmn0 termos.

O número dos números reais, por exemplo, émaior do que n 0; ele é, defato,2n0,enãoédi ícilprovarque2némaiordoquenmesmoquandonéin inito. Amaneiramais fácil de provar isso é provar, emprimeiro lugar,queseumaclassetivernmembros,elacontém2nsubclasses—emoutraspalavras, que há 2n maneiras de selecionar alguns de seus membros(incluindo os casos extremos em que selecionamos todos ou nenhum); e,emsegundolugar,doqueonúmerodesubclassescontidoemumaclasseésempre maior que o número dos membros da classe. Dessas duasproposições, a primeira é conhecidano casodosnúmeros initos, e não édi ícilestendê-laaosnúmerosin initos.Aprovadasegundaétãosimplesetãoinstrutivaquevamosdá-la.Em primeiro lugar, é claro que o número de subclasses de uma dada

classe(digamosα)épelomenostãograndequantoonúmerodemembros,visto que cada membro constitui uma subclasse; temos, portanto, umacorrelação de todos os membros com algumas das subclasses. Segue-seportanto que, se o número de subclasses não for igual ao número demembros, deve sermaior. Ora, é fácil provar que o número não é igual,mostrando que, dada qualquer relação um-um cujo domínio sejam osmembros e cujo domínio inverso esteja contido entre o conjunto desubclasses, deve haver pelo menos uma subclasse não pertencente aodomínioinverso.Aprovaéaseguinte:2quandoumacorrelaçãoRum-uméestabelecidaentretodososmembrosdeαealgumasdassubclasses,podeacontecerqueumdadomembroxsejacorrelacionadoaumasubclassedaqual é membro; ou ainda, pode acontecer quex seja correlacionado comumasubclassedaqualnãoémembro.Formemostodaaclasse,digamosβ,daqueles membrosx correlacionados com subclasses de que não são

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membros. Essa é uma subclasse deα, e ela não é correlacionada comnenhummembrodeα.Pois,tomandoprimeiroosmembrosde β,cadaumdeles(pelade iniçãodeβ)écorrelacionadocomalgumasubclassedaqualnão é membro, e portanto não é correlacionado comβ. Tomando emseguida os termos que não são membros deβ, cada um deles (pelade iniçãodeβ)écorrelacionadocomalgumasubclassedaqualémembro,e portanto novamente não é correlacionado comβ. Assim, nenhummembrodeαécorrelacionadocomβ.ComoReraqualquercorrelaçãoum-um de todos os membros com algumas subclasses, segue-se que não hácorrelação de todos os membros com todas as subclasses. Não importapara essa prova queβ não tenha nenhum membro: tudo o que ocorrenesse caso é que a subclasse que vemos ser omitida é a classe nula.Portanto,emqualquercaso,onúmerodesubclassesnãoéigualaonúmerode membros, e por conseguinte, pelo que foi dito antes, é maior.Combinando isso com a proposição segundo a qual sen for o número demembros2nseráonúmerodesubclasses,temosoteoremasegundooqual2nserásempremaiordoquen,mesmoquandonforinfinito.Segue-se dessa proposição que não há nenhum máximo para os

númeroscardinaisin initos.Pormaiorqueumnúmeroin inito npossaser,2n será ainda maior. A aritmética dos números in initos é um tantosurpreendenteatéquenosacostumemosaela.Temos,porexemplo,

n0+1=n0n0+n=n0,ondenéqualquernúmeroindutivo,

n02=n0.

(Issoseseguedocasodasrazões,pois,vistoqueumarazãoédeterminadaporumpardenúmeros indutivos,é fácilverqueonúmeroderazõeséoquadradodonúmerodenúmerosindutivos, istoé,én 0

2;masvimosqueétambémn0.)

n0n=n0ondenéqualquernúmeroindutivo.(Issosesegueden02=n0porindução;poissen0n=?0,entãon0n+1=n02=n0.

Mas2n0>n0.

De fato, como veremos mais tarde2n0 é um númeromuito importante, asaber,onúmerodetermosnumasériequetem“continuidade”nosentidoemqueessapalavraéusadaporCantor.Supondoqueespaçoetemposão

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contínuosnessesentido(comogeralmentefazemosemgeometriaanalíticaecinemática),esseseráonúmerodepontosnoespaçooudeinstantesnotempo; será também o número de pontos em qualquer porção inita doespaço,sejaelalinha,áreaouvolume.Depoisden0,2n0éomaisimportanteeinteressantedosnúmeroscardinais.Emboraaadiçãoeamultiplicaçãosejamsemprepossíveiscomcardinais

in initos, a subtração e a divisão deixamde dar resultados de inidos, nãopodendo por isso ser empregadas como são em aritmética elementar.Tomemos a subtração para começar: enquanto o número subtraído forinito, tudo vai bem; se o outro número for re lexivo, ele permaneceinalterado. Assim n0 –n = n0, sen for inito; até aí, a subtração dá umresultado perfeitamente de inido. Mas é diferente quando subtraímos n 0

delemesmo;podemosentãoobterqualquer resultado,de0 atén0. Issoéigualmentevistoporexemplos.Dosnúmerosindutivos,retireasseguintescoleçõesdetermos?0:(1)Todososnúmerosindutivos—restozero.(2)Todososnúmerosindutivosdenemdiante—restoosnúmerosde

0an–1,numerandontermosaotodo.(3) Todos os números ímpares — resto, todos os números pares,

numerandon0.Todas essas são diferentesmaneiras de subtrair n 0 de n0 e todas dão

resultadosdiferentes.No tocante à divisão, resultadosmuitos similares seguem-se do fato de

quen0 icainalteradoquandomultiplicadopor2ou3ouqualquernúmerofinitonouporn0.Segue-sequen0divididoporn0podeterqualquervalorde1an0.Da ambigüidade da subtração e da divisão resulta que números

negativose razõesnãopodemserestendidosanúmeros in initos.Adição,multiplicação e exponenciação procedemmuito satisfatoriamente,mas asoperações inversas — subtração, divisão e extração de raízes — sãoambíguas, e as noções que dependem delas não se sustentam quandonúmerosinfinitosestãoenvolvidos.Acaracterísticapelaqualde inimos initudefoiinduçãomatemática,isto

é, de inimos um número como inito quando ele obedece à induçãomatemáticacomeçandode0,eumaclassecomo initaquandoseunúmeroé inito. Essa de inição produz otipo de resultado que uma de iniçãodeveriaproduzir,asaber,queosnúmeros initossãoaquelesqueocorremnas séries de números comuns 0, 1, 2, 3, . . . Nesse capítulo, porém, os

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números in initos que discutimos não foram meramente não-indutivos:foram tambémreflexivos. Cantor usou a re lexividade como adefinição doin inito,eacreditaqueelaéequivalenteànão-indutividade,istoé,acreditaque toda classe e todo cardinal são ou indutivos ou re lexivos. Isso podeserverdadeiro,epodemuitopossivelmenteserpassíveldeprova;masasprovas até agora oferecidas por Cantor e outros (incluindo o presenteautor em dias passados) são falaciosas, por razões que serão explicadasquando chegarmos a considerar o “axioma multiplicativo”. No presente,não se sabe se há classes e cardinais quenão sejamnem re lexivos nemindutivos.Senfosseumcardinaldessetipo,nãoteríamosn=n+1,masnnão seria um dos “números naturais” e careceria de algumas daspropriedades indutivas. Todas as classes e cardinais in initos conhecidossãore lexivos;mas,porenquanto, convémmanteramenteabertaparaapossibilidade de haver casos, até agora desconhecidos, de classes ecardinais que não sejam nem re lexivos nem indutivos. Enquanto isso,adotaremosaseguintesde inições:Umaclasseoucardinal finitossãoumaclasse ou cardinal indutivos. Uma classe ou cardinal infinitos são umaclasseoucardinalnãoindutivos.Todasasclassesecardinais reflexivossãoin initos;mas não se sabe presentemente se todas as classes e cardinaisinfinitossãoreflexivos.RetornaremosaesseassuntonoCapítulo12.

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Capítulo9Sériesinfinitaseordinais

Uma “série in inita”pode serde inida comouma série cujo campoéumaclasse in inita. Já tratamos de um tipo de série in inita, a saber,progressões. Neste capítulo vamos considerar o tema de maneira maisgeral.Acaracterísticamaisnotáveldeumasériein initaéquesepodealterar

seunúmeroserialmeramenterearranjandoseustermos.Sobesseaspecto,há certa contraposição entre números cardinais e seriais. É possívelmanter inalterado o número cardinal de uma classe re lexivamesmo lheacrescentandotermos;poroutrolado,épossívelmudaronúmeroserialdeuma série sem lhe acrescentar nem lhe retirar nenhum termo, pormerorearranjo.Aomesmotempo,nocasodequalquersérie in inita,épossíveltambém,comocomoscardinais,acrescentartermossemalteraronúmeroserial:tudodependedomodocomosãoacrescentados.Para esclarecer o assunto, é melhor começar com exemplos.

Consideremos primeiro vários tipos diferentes de série que podem serformadas a partir dos números indutivos arranjados segundo váriosplanos.Comecemoscomasérie

1,2,3,4,...n,...,

que, como já vimos, representa o menor dos números seriais in initos, otipo que Cantor chamaφ. Para re inar essa série, continuemos a efetuarrepetidamenteaoperaçãode removerparao imoprimeironúmeroparqueocorrer.Obtemosassimemsucessãoasváriasséries:

1,3,4,5,...n,...2,1,3,5,6,...n+1,...2,4,1,3,5,7,...n+2,...2,4,6,

e assim por diante. Se imaginarmos esse processo efetuado tantas vezesquantopossível,chegamosfinalmenteàsérie

1,3,5,7,...2n+1,...2,4,6,8,...2n...,

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em que temos primeiro todos os números ímpares e depois todos osnúmerospares.Osnúmerosseriaisdessasváriassériessãoφ +1,φ +2,φ+3, . . .2φ.

Cada um desses números é “maior” do que qualquer de seuspredecessores, no seguinte sentido. Diz-se que um número é “maior” doque outro se qualquer série que tenha o primeiro número contiver umaparte que tenha o segundo número, mas nenhuma série que tenha osegundocontiverumapartequetenhaoprimeironúmero.Secompararmosasduasséries

1,2,3,4,...n,...1,3,4,5,...n+1,...2

veremosqueaprimeira é similar àparteda segundaqueomiteoúltimotermo,asaber,onúmero2,masasegundanãoésimilaranenhumapartedaprimeira.(Issoéóbvio,maspodeserfacilmentedemonstrado.)Assim,asegundasérie temumnúmeroserialmaiordoqueaprimeira, segundoade inição — isto é,φ+ 1 é maior do que φ. Mas se acrescentarmos umtermono iníciodeumaprogressão emvezdeno im, ainda teremosumaprogressão. Assim 1 +φ =φ. Portanto, 1 +φ não é igual aφ + 1. Isso écaracterístico da aritmética das relações em geral: se μ ev são doisnúmerosde relação, a regrageral éque μ +v não é igual av +μ. O casodosordinaisfinitos,emqueháessaigualdade,émuitoexcepcional.Asérieque inalmenteatingimoshápoucoconsistia,primeiro,emtodos

osnúmeros ímparesedepoisemtodososnúmerospares,e seumembroserial é 2φ. Esse número é do maior queφ ouφ +n, onden é inito.Convémobservarque, emconformidade comade iniçãogeraldeordem,cada um desses arranjos de números inteiros deve ser visto comoresultando de alguma relação de inida. Por exemplo, aquela quemeramenteremove2parao imseráde inidapelaseguinterelação:“ xeysãonúmerosinteirosfinitos,eouyé2exnãoé2,ounenhumdelesé2exé menor do quey”. Aquela série que põe primeiro todos os númerosímpares e depois todos os números pares será de inida por: “ x ey sãonúmerosinteiros initos,eou x é imparey éparoux émenordoqueyeambossãoímparesouambossãopares”.Doravante,viaderegra,nãonosdaremos ao trabalho de dar essas fórmulas; mas o fato de que elaspoderiamserdadaséessencial.O número que chamamos 2φ, a saber, o número de uma série que

consisteemduasprogressões,éporvezeschamadoφ.2.Amultiplicação,

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como a adição, dependeda ordemdos fatores: umaprogressão de paresdáumasériedotipo

x1,y1,x2,y2,x3,y3,...xn,yn,...,

que é ela própria uma progressão; mas um par de progressões dá umasérie que é duas vezes mais longa que uma progressão. É necessário,portanto,distinguirentre2φeω .2.Ousoévariável;usaremos2φparaum par de progressões e φ . 2 para uma progressão de pares, e essadecisão,éclaro,governaránossainterpretaçãogeralde“ ββ” quandoφeβ forem números de relação: “ φ . β” terão de representar uma somaadequadamenteconstruídaderelaçõesαtendocadaumatermosβ.Podemos levar inde inidamente adiante o processo de re inar os

números indutivos. Por exemplo, podemos pôr primeiro os númerosímpares, depois seusduplos, depoisosduplosdestes, e assimpordiante.Obtemosdessamaneiraasérie:

1,3,5,7,...;2,6,10,14,...;4,12,20,28,...;8,24,40,56,...,

cujo número éφ2, visto que é uma progressão de progressões. Qualquerumadasprogressõesnessanovasériepode,éclaro,serre inadatalcomore inamosnossaprogressão original. Podemosprosseguir para φ3,φ4, . . .φ4,eassimpordiante;pormaislongequetenhamosido,semprepodemosiralém.A sériede todosos ordinais quepode ser obtidadestamaneira, isto é,

tudo o que se pode obter re inando uma progressão, é ela mesma maislongaquequalquersériequepodeserobtidapelorearranjodostemosdeumaprogressão.(Nãoédi ícilprovarisso.)Pode-semostrarqueonúmerocardinal das classes desses ordinais émaior que n 0; trata-se do númeroqueCantorchaman1.Onúmeroordinaldasériedetodososordinaisquepodeser formadaapartirdeumn0, tomados emordemdemagnitude, échamadon1. Portanto, uma série cujo número ordinal éφ temum campocujonúmerocardinalén1.Podemos prosseguir deφ1 e n1 paraφ2 e n2 por um processo

exatamenteanálogoàquelepeloqualavançamosdeφen0 paraφ1e?1. Enada nos impede de avançar inde inidamente destamaneira para novoscardinaisenovosordinais.Nãosesabese2 n

0éigualaalgumdoscardinaisna série dos álefes. Não se sabe sequer se é comparável a eles em

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magnitude; por tudo que sabemos, nãopoderia ser nem igual a nenhumdosálefes,nemmaiornemmenordoqueeles.Essaquestãoestávinculadacomoaxiomamultiplicativo,dequetrataremosmaistarde.Todasassériesqueconsideramosatéagoranestecapítuloforamoque

sechama“bemordenadas”.Umasériebemordenadaéaquelaquetemuminício, tem termos consecutivos e tem um termoseguinte após qualquerseleção de seus termos, contanto que haja quaisquer termos após aseleção.Issoexclui,porumlado,sériescompactas,emquehátermosentrequaisquerdois, e,poroutro lado, sériesquenão têm inícioouemquehápartes subordinadas sem nenhum início. A série dos números inteirosnegativos em ordemdemagnitude, comonão temum iníciomas terminacom–1, não é bem-ordenada;mas tomadana ordem inversa, começandocom –1, é bem-ordenada, sendo de fato uma progressão. A de inição é:umasérie“bem-ordenada”éaquelaemquetodasassubclasses(exceto,éclaro,aclassenula)têmumprimeirotermo.Umnúmero “ordinal” signi ica o número de relação de uma série bem

ordenada.É,portanto,umaespéciedenúmeroserial.Entre séries bem-ordenadas, aplica-se uma forma generalizada de

indução matemática. Pode-se dizer que uma propriedade é“trans initamentehereditária”se,quandoelapertenceacertaseleçãodostermosnumasérie,pertencetambémaosucessorimediatodeles,contantoque eles tenham um. Numa série bem-ordenada, uma propriedadetrans initamente hereditária pertencente ao primeiro termo da sériepertence a toda a série. Isso torna possível provar muitas proposiçõesconcernenteasériesbem-ordenadasquenãosãoverdadeirascomrelaçãoatodasasséries.É fácil arranjar os números indutivos em séries que não sejam bem-

ordenadas, e até arranjá-los em séries compactas. Por exemplo, podemosadotar o seguinte plano: consideremos os decimais de ·1 (inclusive) a 1(exclusive),arranjadosemordemdemagnitude. Eles formamumaordemcompacta; entrequaisquerdoishá sempreumnúmero in initodeoutros.Seomitirmosopontono iníciodecadauma, teremosumasériecompactaqueconsistiráemtodososnúmerosinteiros initosexcetoosdivisíveispor10. Sedesejarmos incluirosdivisíveispor10,nãohádi iculdade; emvezdecomeçarcom·1, incluiremostodososdecimaismenoresdoque1,masquando removermos o ponto, transferiremos para a direita quaisquer 0squeocorramnoiníciodenossadecimal.Omitindo-os,eretornandoàquelesquenãotêmnenhum0noinício,podemosformulararegraparaoarranjodenossosnúmerosinteirosdaseguintemaneira:dedoisnúmerosinteiros

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que não comecem com o mesmo dígito, aquele que começa com o dígitomenor vem primeiro. De dois que começam com o mesmo dígito, masdiferem no segundo dígito, aquele que tem omenor segundo dígito vemprimeiro;antesdetodos,porém,vemaquelequenãotemsegundodígito;eassim por diante. Em geral, se dois números inteiros que concordam notocante aos primeirosn dígitos, mas não com relação ao (n + 1)o, vemprimeiroaquelequeounãotemnenhum(n+1)odígito,outemummenorque o outro. Essa regra de arranjo dá origem a uma série compacta quecontémtodososnúmerosinteirosnãodivisíveispor10;e,comovimos,nãohádi iculdadeemincluirosdivisíveispor10.Segue-sedesseexemploqueépossívelconstruirsériescompactascomn0termos.Defato, jávimosquehá n0 razões, e razões em ordem de magnitude formam uma sériecompacta; assim, temos aquimais um exemplo. Resumiremos esse tópiconopróximocapítulo.Os cardinais trans initos obedecem a todas as leis formais usuais da

adição, multiplicação e exponenciação, mas os ordinais trans initos sóobedecem a algumas delas, e aquelas que são obedecidas por eles sãoobedecidas por todos os números de relação. Por “leis formais usuais”entendemosasseguintes:

Quando a lei comutativa não vigora, a forma demonstrada da leidistributivadeveserdistinguidade

(β+y)φ=βx+yx.

Como veremos imediatamente, uma forma pode ser verdadeira, e aoutra,falsa.

IV.Asleisdaexponenciação:αβ.αy=αβ+y,αy.βy=(αβ)y,(αβ)=αβy.

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Todasessasleisvigoramparacardinais,sejam initosouin initos,eparaordinais finitos.Masquando chegamos aosordinais in initos, oude fato anúmeros de relação em geral, algumas vigoram e outras não. A leicomutativanãovigora;aleiassociativavigora;aleidistributiva(adotando-se a convenção que adotamos previamente com relação à ordem dosfatoresnumproduto)vigoranaforma

ay.by=(ab)y,

queestáobviamenterelacionadaàleicomutativaparaamultiplicação.As de inições de multiplicação e exponenciação pressupostas nas

proposições anteriores são um pouco complicadas. O leitor que desejarsaberquaissãoelasecomoas leiscitadassãoprovadasdeveconsultarosegundovolumedosPrincipiaMathematica,notas172-6.Aaritméticatrans initaordinalfoidesenvolvidaporCantornumestágio

anterior que a aritmética trans inita cardinal, porque há vários usosmatemáticostécnicosqueolevaramaela.Dopontodevistada iloso iadamatemática, porém, ela émenos importante emenos fundamental que ateoria dos cardinais trans initos. Os cardinais são essencialmente maissimples que os ordinais, e é um acidente histórico curioso que tenhamaparecidodeiníciocomoumaabstraçãodessesúltimos,esógradualmentetenham passado a ser estudados por si mesmos. Isso não se aplica aotrabalho de Frege, em que os cardinais, os initos e os trans initos foramtratadosdemaneiracompletamente independentedosordinais;mas foiotrabalho de Cantor que tornou omundo ciente do assunto, ao passo queFregecontinuouquasedesconhecido,provavelmente sobretudoemrazãodadi iculdadedeseusimbolismo.Eosmatemáticos,comooutraspessoas,têm mais di iculdade em compreender e usar noções comparativamente“simples” no sentido lógico do que emmanipular noçõesmais complexasque tenhammais a inidade com sua prática comum. Por essas razões, a

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verdadeira importância dos cardinais na iloso ia matemática só foireconhecida pouco a pouco. A importância dos ordinais, embora não sejapequenaemabsoluto,énitidamentemenordoqueadoscardinais,eestáem grande parte mesclada à da concepção mais geral de números derelação.

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Capítulo10Limitesecontinuidade

Continuamente, foi-se descobrindo que a importância da concepção de“limite” em matemática era maior do que se pensara. A totalidade docálculo diferencial e integral, na realidade tudo na matemática superior,depende de limites. Outrora, supunha-se que in initesimais estavamenvolvidos nos fundamentos dessas matérias, mas Weierstrass mostrouqueissoéumerro:emtodososlugaresemquesepensavaqueocorriamin initesimais,oquerealmenteocorreéumconjuntodequantidade initasquetêmzeroporseulimiteinferior.Costumava-sepensarque“limite”erauma noção essencialmente quantitativa, a saber, a noção de umaquantidadedaqualoutrasseaproximavamcadavezmais,detalmodoqueentre essas outras havia algumas diferindo por menos que qualquerquantidade designada. De fato, porém, a noção de “limite” é uma noçãopuramente ordinal, que não envolve quantidade em absoluto (exceto poracidente, quando por acaso a série em questão é quantitativa). Um dadopontonumalinhapodeserolimitedeumconjuntodepontosnalinha,semque seja necessário introduzir coordenadas ou mensuração ou nada dequantitativo.Onúmerocardinaln 0éolimite(naordemdemagnitude)dosnúmeroscardeais1,2,3,...n,...,emboraadiferençanuméricaentren 0eum cardinal inito seja constante e in inita: de um ponto de vistaquantitativo, números initos não icam em nada mais próximos de n 0 àmedidaqueaumentam.Oquetornan0olimitedosnúmeros initoséofatode que, na série, ele vemimediatamente depois deles, o que é um fatoordinal,nãoumfatoquantitativo.Há várias formas da noção de “limite”, de crescente complexidade. A

formamaissimplesemaisfundamental,daqualasdemaissãoderivadas,já foi de inida, mas repetiremos aqui as de inições que conduzem a ela,numaformageralemquenãoexigemquearelaçãoenvolvidasejaserial.Asde iniçõessãoasseguintes.Os“mínimos”deumaclasseαcomrespeitoa uma relação P são aquelesmembros deα e o campo de P (se houver)comquenenhummembrodeαtemarelaçãoP.Os“máximos”comrespeitoa P são osmínimos comrespeito ao inversodeP.Os “seqüentes”deuma

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classeαcomrespeitoaumarelaçãoPsãoosmínimosdos“sucessores”deα, e os “sucessores” de α são aquelesmembros do campo de P com quetodososmembrosdapartecomumdeαeocampodePtemarelaçãoP.Os“precedentes”comrespeitoaPsãoosseqüentescomrespeitoao inversode P. Os “limites superiores” de α com respeito a P são os seqüentescontantoqueαnãotenhanenhummáximo;masseαtiverummáximo,nãotemnenhumlimitesuperior.Os“limitesinferiores”comrespeitoaPsãooslimitessuperiorescomrespeitoaoinversodeP.SemprequeP tiver conexidade, uma classe nãopode termais queum

máximo, ummínimo, um seqüente etc. Assim, nos casos em que estamosinteressadosnaprática,podemosfalarde“olimite”(sehouveralgum).Quando P for uma relação serial, podemos simpli icar muito essa

de iniçãode limite.Podemos,nesse caso,de inirprimeiroa “fronteira”deuma classe α, isto é, seus limites ou máximos, e depois avançar paradistinguir o caso em que a fronteira é o limite daquele em que ela é ummáximo.Paraessafinalidade,émelhorusaranoçãode“segmento”.Falaremos do “segmento de P de inido por uma classeα” como todos

aquelestermosquetêmarelaçãoPcomoumoumaismembrosdeα.Esseserá um segmento no sentido de inido no Capítulo 7; na realidade, todosegmentonosentidoalide inidoéosegmentode inidoporalguma classeα.SePforserial,osegmentode inidoporαconsistiráemtodosostermosqueprecedemumtermoououtrodeα.Seαtiverummáximo,osegmentoserá todosospredecessoresdomáximo.Mas se αnão tivermáximo, todomembro deα precederá algum outro membro de α, e a totalidade de αestará portanto incluída no segmento de inido porα. Tomemos, porexemplo,aclassequeconsistenasfrações

1/2,3/4,7/8,15/16,...,

istoé,emtodasasfraçõesdaforma1–1/2nparadiferentesvalores initosden.Estasériedefraçõesnãotemmáximo,eéclaroqueosegmentoqueelade ine(emtodaasériedefraçõesemordemdemagnitude)éaclassede todas as frações próprias. Ou ainda, tomemos os números primos,considerados uma seleçãodos cardinais ( initos e in initos) emordemdemagnitude.Nessecasoosegmentode inidoconsisteemtodososnúmerosinteirosfinitos.SupondoquePéserial,a“fronteira”deumaclasse αseráotermox (se

eleexistir)cujospredecessoressãoosegmentodefinidoporα.Um“máximo”deαéumafronteiraqueémembrodeα.

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Um“limitesuperior”deαéumafronteiraquenãoémembrodeα.Seumaclassenãotiver fronteira,nãoterámáximonemlimite.Esseéo

casodeumcortedeDedekind“irracional”,oudoqueéchamado“lacuna”.Assim o “limite superior” de um conjunto de termosα com respeito a

uma sérieP é aquele termox (seeleexistir)quevemdepoisde todososα’s,masétalquetodotermoanteriorvemantesdealgunsdosα’s.Podemosde inirtodosos“pontoslimitantessuperiores”deumconjunto

determosβcomotodosaquelesquesãooslimitessuperioresdeconjuntosdetermosescolhidosdeβ.Teremos,éclaro,dedistinguirpontoslimitantessuperioresdepontoslimitantesinferiores.Seconsiderarmos,porexemplo,asériedenúmerosordinais:

1,2,3,...φ,φ+1,...2φ,2φ+1,...3φ,...φ2,...φ3,...,

ospontoslimitantessuperioresdocampodessasériesãoaquelesquenãotêmpredecessoresimediatos,istoé,

1,φ,2φ,3φ,...φ2,φ2+φ,...2φ2,...φ3...

Ospontoslimitantessuperioresdocampodessanovasérieserão

1,φ2,2φ2,...φ3,φ3+φ2

Por outro lado, a série dos ordinais — na verdade, toda série bem-ordenada—não tempontos limitantes inferiores, porquenãohá termos,exceto o último, que não tenham sucessores imediatos. Mas seconsiderarmos tal série a série das razões, cadamembro dela um pontolimitante tanto superior quanto inferior para conjuntos adequadamenteescolhidos.Seconsiderarmosasériedosnúmerosreais,eselecionarmosapartir dela os números reais racionais, esse conjunto (os racionais) terátodososnúmerosreaiscomopontos limitantessuperiorese inferiores.Ospontos limitantes deum conjunto são chamados sua “primeira derivada”;os pontos limitantes da primeira derivada são chamados a segundaderivada,eassimpordiante.Comrelaçãoa limites,podemosdistinguirváriosgrausdoquepodeser

chamado “continuidade” numa série. A palavra “continuidade” havia sidousadapormuitotempo,maspermanecerasemnenhumade iniçãoprecisaatéo tempodeDedekindeCantor.Cadaumdessesdoishomensdeuumsigni icadoprecisoaotermo,masade iniçãodeCantorémaisestreitaquea de Dedekind: uma série que tem a continuidade cantoriana deve ter a

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continuidadededekindiana,masarecíprocanãoéverdadeira.A primeira de inição que ocorreria naturalmente a um homem que

buscasseumsentidoprecisoparaa continuidadede séries seriade ini-lacomoconsistindonoquechamamos“compacidade”,istoé,nofatodehaveroutros termos entre quaisquer dois termos da série. Mas isso seria umade iniçãoinadequada,porcausadaexistênciade“lacunas”emsériescomoa série das razões. Vimos no Capítulo 7 que há inúmerasmaneiras pelasquaisasériedasrazõespodeserdivididaemduaspartes,dasquaisumaprecedeinteiramenteaoutra,edasquaisaprimeiranãotemúltimotermo,ao passo que a segunda não tem primeiro termo. Tal estado de coisasparece contrário à vaga impressão que temos quanto ao que deveriacaracterizara“continuidade”,e,maisainda,mostraqueasériedasrazõesnão é o tipo de série necessária para muitas inalidades matemáticas.Tomemos a geometria, por exemplo: desejamos poder dizer que, quandoduaslinhasretassecruzam,elastêmumpontoemcomum,masseasériede pontos numa linha fosse similar à série das razões, as duas linhaspoderiam se cruzar numa “lacuna” e não ter nenhum ponto em comum.Esse é um exemplo grosseiro,mas seria possível darmuitos outros paramostrar que a compacidade é inadequada como de iniçãomatemática decontinuidade.Foramasnecessidadesdageometria,maisdoquequalqueroutracoisa,

que levaramàde iniçãodacontinuidade“dedekindiana”. Lembremos quede inimos uma série como dedekindiana quando todas a subclasses docampotêmumafronteira.(Ésu icientedarporcertoquehásempreumafronteirasuperior,ouquehásempreumafronteira inferior.Sedamosumadessas por certo, a outra pode ser deduzida.) Isso quer dizer que umasérie é dedekindiana quando não há nenhuma lacuna. A ausência delacunas pode resultar ou do fato de os termos terem sucessores, ou daexistência de limites na ausência demáximos. Assim, uma série inita ouumasériebem-ordenadaédedekindiana,eomesmopodeserditodasériedos números reais. O primeiro tipo de série dedekindiana é excluídoadmitindo-sequenossasérieécompacta;nessecaso,nossasériedeveteruma propriedade que pode, paramuitos propósitos, ser adequadamentechamadadecontinuidade.Somosassimlevadosàde inição:umasérietem“continuidadededekindiana”quandoédedekindianaecompacta.Mas esta de inição ainda é larga demais para muitas inalidades.

Suponhamos, por exemplo, que desejamos poder atribuir taispropriedades a um espaço geométrico demaneira a assegurar que cadapontopossaserespeci icadopormeiodecoordenadasquesejamnúmeros

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reais: isto não é assegurado pela continuidade dedekiniana apenas.Queremos ter certeza de que cada ponto que não possa ser especi icadopor coordenadasracionais possa ser especi icado como o limite de umaprogressão de pontos cujas coordenadas sejam racionais, e esta é umapropriedadeadicionalquenossadefiniçãonãonospermitededuzir.Somos assim levados a uma investigação mais atenta das séries com

respeitoalimites.EssainvestigaçãofoifeitaporCantoreformouabasedesua de inição de continuidade, embora, em sua forma mais simples, ade inição oculte de certo modo as considerações que lhe deram origem.Porisso,antesdedarade iniçãodecontinuidadedeCantor,repassaremosalgumasdesuasconcepçõessobreesteassunto.Cantor de ine uma série como “perfeita” quando todos os seus são

pontos limitantes e todos os seus pontos limitantes pertencem a ela.Masessade iniçãonãoexpressacommuitaprecisãooqueelequerdizer.Nãohánecessidadedenenhumacorreçãonoque concerneàpropriedadedetodosospontosdasérieserempontoslimitantes;essaéumapropriedadeque pertence às séries compactas e a nenhumoutro tipo de série, se forpreciso que todos os pontos sejam limitantes superiores ou limitantesinferiores.Massesupomosapenasqueelessãopontos limitantesdeumamaneira, sem especi icar qual, outras séries terão a propriedade emquestão — por exemplo, a série dos decimais em que um decimal quetermine num 9 recorrente é distinguida do decimal terminantecorrespondente e posto imediatamente antes dele. Tal série aproxima-semuitodesercompacta,mastemtermosexcepcionaisquesãoconsecutivos,o primeiro dos quais não tem predecessor imediato, ao passo que osegundonão temsucessor imediato.Afora sériesdesse tipo, as séries emque cada ponto é um ponto limitante são compactas; e isso é válido semquali icação, se for especi icado que cada ponto deve ser um pontolimitante superior (ou que cada ponto deve ser um ponto limitanteinferior).Embora Cantor não considere explicitamente a matéria, devemos

distinguir diferentes tipos de pontos limitantes segundo a natureza damenorsubsériepelaqualelespodemserde inidos.Cantorsupõequeelesdevem ser de inidos por progressões, ou por regressões (que são oinversodeprogressões).Quandotodomembrodenossasérieéolimitedeumaprogressãoouregressão,Cantorchamanossasérie “condensadaemsimesma”(insichdicht).Chegamosagoraàsegundapropriedadepelaqualaperfeiçãodeviaser

de inida, a saber, a propriedade que Cantor chama de ser “fechada”

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(abgeschlossen).Isso,comovimos,foidefinidoprimeirocomoconsistindonofatodetodosospontoslimitantesdeumasériepertenceremaela.Masissosó tem um signi icado efetivo se nossa série fordada como contida emalguma outra sériemaior (no caso, por exemplo, da seleção de númerosreais),epontos limitantesforemtomadosemrelaçãoasériesmaiores.Deoutromodo,seforconsideradasimplesmenteemsimesma,umasérienãopodedeixardeconterseuspontoslimitantes.OqueCantorquerdizernãoé exatamente o que ele diz; na realidade, em outras ocasiões diz algobastantediferente,queéoquequerdizer.Oquerealmentequerdizeréquetodasériesubordinadaqueseesperariaquetivesseumlimitetemdefatoumlimitedentrodasériedada;istoé,todasériesubordinadaquenãotem máximo tem um limite, isto é, toda série subordinada tem umafronteira. Mas Cantor não a irma isto com relação a toda sériesubordinada, mas apenas com relação a progressões e regressões. (Nãoica claro até que ponto ele reconhece que isso é uma limitação.) Assim,inalmente, vemosqueade iniçãoquequeremoséa seguinte:diz-sequeuma série é “fechada” (abgeschlossen) quando todas as progressões ouregressõescontidasnasérietêmumlimitenasérie.Temos depois a de inição adicional: uma série é “perfeita” quando é

condensadaemsimesmaefechada, istoé,quandocadatermoéolimitedeuma progressão ou regressão, e todas as progressões ou regressõescontidasnasérietêmumlimitenasérie.Aoprocurarumade iniçãodecontinuidade,oqueCantortememmente

éabuscadeumade iniçãoqueseapliqueà sériedosnúmeros reaiseaqualquersériesimilaraessa,masnãoaoutras.Paraessafinalidade,temosdeacrescentarmaisumapropriedade.Entreosnúmerosreais,algunssãoracionais, alguns são irracionais; embora o número de irracionais sejamaior do que o número de racionais, há racionais entre quaisquer doisnúmeros reais, pormenos diferentes que sejam. O número de racionais,comovimos,én0. Istodáumapropriedadeadicionalqueésu icienteparacaracterizar completamente a continuidade, a saber, a propriedade deconterumaclasseden0membrosde talmaneiraquealgunsdessaclasseocorram entre dois termos quaisquer de nossa série, pormais próximosque sejam. Essa propriedade, acrescentada à perfeição, é su iciente parade inir uma classe de séries que são todas similares e são de fato umnúmeroserial.Cantordefineessaclassecomoadassériescontínuas.Podemossimplificarligeiramentesuadefinição.Paracomeçar,dizemos:Uma “classemediana”deuma série éuma subclassedo campo talque

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membros dela podem ser encontrados entre quaisquer dois termos dasérie.Assim,osracionaissãoumaclassemediananasériedosnúmerosreais.

É evidente que não pode haver classes medianas exceto em sériescompactas.VerificamosentãoqueadefiniçãodeCantoréequivalenteàseguinte:Uma série é “contínua” quando (1) é dedekindiana, (2) contém uma

classemedianacomn0termos.Para evitar confusão, falaremos desse tipo como “continuidade

cantoriana”.Veremosqueela implicaacontinuidadededekindiana,masarecíproca não é verdadeira. Todas as séries que têm continuidadecantoriana são similares, mas não todas as séries que têm continuidadededekindiana.As noções delimite econtinuidade que estivemosde inindonãodevem

serconfundidascomasnoçõesdolimitedeumafunçãoparaaproximaçõesaumdadoargumento,oudacontinuidadedeumafunçãonavizinhançadeumdadoargumento.Essassãonoçõesdiferentes,muito importantes,masderivadasdasformuladaspreviamenteemaiscomplicadas.Acontinuidadedomovimento(seomovimentoforcontínuo)éumcasodacontinuidadedeuma função; por outro lado, a continuidadedo espaço e tempo (se foremcontínuos)éumcasodacontinuidadedeséries,ou(parafalardemaneiramais cautelosa) de um tipo de continuidade que pode, por manipulaçãomatemática su iciente, ser reduzidaà continuidadede séries.Emvistadaimportância fundamental do movimento na matemática aplicada, bemcomoporoutrasrazões,convémtratarbrevementedasnoçõesdelimiteecontinuidade tal como aplicadas a funções; mas é melhor reservar essetemaparaumcapítuloseparado.As de inições de continuidade que estivemos considerando, a saber, as

deDedekindeCantor,nãocorrespondemmuitoestreitamenteàvagaidéiaque está associada à palavra namente do homem comum ou do ilósofo.Eles concebem a continuidade antes como uma ausência de separação, otipodeobliteraçãogeraldedistinçõesquecaracterizaumnevoeirodenso.Umnevoeirodáumaimpressãodevastidãosemmultiplicidadeoudivisãode inidas. É esse tipo de coisa que um meta ísico entende por“continuidade”,declarando,comtodarazão,queelaécaracterísticadesuavidamentaledavidadascriançasedosanimais.A idéia geral vagamente indicada pela palavra “continuidade” quando

empregada dessa maneira, ou pela palavra “ luxo”, é certamente muito

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diferentedaqueestivemosde inindo.Tomemos,porexemplo,a sériedosnúmerosreais.Cadauméoqueé,demaneiramuitode inidaecabal;nãose converte no outro por graus imperceptíveis; é uma unidadepermanente, separada, e a distância que o separa de qualquer outraunidade é inita, embora possa se tornar menor do que qualquerquantidade initadadadesignadadeantemão.Aquestãodarelaçãoentreo tipo de continuidade existente em meio aos números reais e o tipoexibido, por exemplo, pelo que vemos num dado momento, é di ícil eintricada. Não se pode sustentar que os dois tipos são idênticos, mas éperfeitamente possível, penso eu, sustentar que a concepçãomatemáticaqueconsideramosnessecapítuloforneceoesquemalógicoabstratoaqueé possível referir material empírico por manipulaçãoadequada, se essematerial puder ser chamado “contínuo” em algum sentido precisamentede inível. Seria inteiramente impossível justi icar essa tese dentro doslimitesdopresentevolume.O leitor interessadopoderá leruma tentativade justi icá-la, no tocante aotempo emparticular, pelo presente autor noMonist para 1914-15, bem como em partes deOur Knowledge of theExternalWorld .Comessas indicações,devemosdeixaresseproblema,pormais interessante que seja, para retornar a tópicos mais estreitamentevinculadosàmatemática.

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Capítulo11Limitesecontinuidadedefunções

Nestecapítulotrataremosdade iniçãodolimitedeumafunção(sehouverum)àmedidaqueoargumentoseaproximadeumvalordado,etambémdade iniçãodoquesequerdizerporuma“funçãocontínua”.Essasidéiassão ambas um pouco técnicas e di icilmente precisariam ser abordadasnumamera introdução à iloso iamatemática, anão serpelo fatodeque,especialmente por meio do chamado cálculo in initesimal, idéias erradassobre nossos tópicos presentes tornaram-se tão irmemente arraigadasnas mentes de ilósofos pro issionais que se faz necessário um esforçoprolongado e considerável para erradicá-las. Pensa-se, desde o tempodeLeibniz, que o cálculo diferencial e integral requer quantidadesin initesimais. Os matemáticos (em especial Weierstrass) provaram queisso é um erro; mas erros incorporados, e.g., no que Hegel tem a dizersobrematemática,di icilmentemorrem,ea tendênciaéqueos ilósofosaignoraremotrabalhodehomenscomoWeierstrass.Limitesecontinuidadede funções,emobrassobrematemáticacomum,

sãode inidosemtermosqueenvolvemnúmero.Issonãoéessencial,comoomostrouodr.Whitehead. 1Começaremos,contudo,comasde iniçõesqueaparecem nos livros-texto e depois prosseguiremos para mostrar comoelaspodemsergeneralizadasdemaneiraaseaplicaremasériesemgeral,enãosomenteàsnuméricasounumericamentemensuráveis.Consideremos uma função matemática ordinária fx, ondex efx são

ambosnúmerosreais, e fx temumúnicovalor— istoé,quandox édado,há somente um valor quefx pode ter. Chamamos x o “argumento” efx o“valor para o argumentox”. Quando uma função é o que chamamos“contínua”, a idéia aproximada para a qual estamos procurando umade iniçãoprecisa équepequenasdiferençasem x devem corresponder apequenasdiferençasem fx,esetornarmosasdiferençasemxpequenasobastante,poderemosfazerasdiferençasem fxcaíremabaixodequalquerquantidade designada. Não queremos, se uma função deve ser contínua,que haja saltos súbitos, de modo que, para algum valor dex, algumamudança,pormenorqueseja,provoqueumamudançaem fx queexcedaalguma quantidade inita designada. As funções simples ordinárias da

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matemáticatêmestapropriedade:elapertence,porexemplo,ax2,x3,...logx,senx,eassimpordiante.Masnãoédi ícilde inir funçõesdescontínuas.Tome, como um exemplo não-matemático, “o lugar de nascimento dapessoamais jovem que vive nomomentot”. Isso é uma função de t; seuvalor é constante desde omomento do nascimento de uma pessoa até omomentodonascimentoseguinte,eentãoovalormudasubitamentedeumlugardenascimentoparaoutro.Umexemplomatemáticoanálogoseria“omaispróximonúmerointeiroabaixode x”,onde xéumnúmeroreal.Essafunção permanece constante de um número inteiro para o seguinte, eentão dá um salto súbito. A realidade é que, embora sejam maisconhecidas, as funções contínuas são exceções: há in initamente maisfunçõesdescontínuasquecontínuas.Muitas funções são descontínuas para um ou diversos valores da

variável,mascontínuasparatodososoutros.Tomemoscomoexemplosen1/x. A função senθ passa por todos os valores de –1a 1 cada vez queθpassade–π/2paraπ/2,oudeπ/2para3π/2,ouemgeralde(2n–1)π/2para (2n + 1)π/2, onden é qualquer número inteiro. Mas seconsiderarmos1/xquandoxémuitopequeno,vemosque,àmedidaquexdiminui,1/x cresce cada vezmais depressa, de talmodo que passa cadavez mais rapidamente pelo ciclo de valores de ummúltiplo deπ/2 paraoutroàmedidaquexsetornacadavezmenor.Emconseqüência,sen1/ xpassa cada vez mais rapidamente de –1 para 1 e de novo para – 1 àmedidaquexdiminui.Defato,setomarmosqualquerintervalocontendo0,digamosointervalode–εpara+εondeεéalgumnúmeromuitopequeno,sen 1/x passará por um número in inito de oscilações nesse intervalo, enão podemos diminuir as oscilações tornando o intervalo menor. Assim,nas vizinhanças do argumento 0 a função é descontínua. É fácil produzirfunções que sejam descontínuas em vários lugares, ou em n0 lugares, ouemtodososlugares.Exemplosserãoencontradosemqualquerlivrosobreateoriadasfunçõesdeumavariávelreal.Passando agora a procurar uma de inição precisa do que se tem em

mente ao dizer que uma função é contínua para um dado argumento,quandoargumentoevalorsãoambosnúmerosreais,definamosprimeiroa“vizinhança”deumnúmero x comotodososnúmerosdex –ε ax +ε, emqueε éalgumnúmeroque,emcasos importantes, serámuitopequeno.Éclaro que a continuidade numponto dado tem a ver como que aconteceemqualquervizinhançadesseponto,pormenorqueseja.Oquedesejamoséisto:seaforoargumentoparaoqualdesejamosque

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nossa função seja contínua,de inamosprimeiroumavizinhança (digamosα) contendo o valorfa que a função tem para o argumentoa; desejamosque, se tomarmos uma vizinhança su icientemente pequena contendoa,todos os valores para argumentos de um extremo ao outro dessavizinhança deverão estar contidos na vizinhançaα, por menor quetenhamosfeitoα.Issoquerdizerque,sedecretamosquenossafunçãonãodeve diferir defa pormaisdeumaquantidadeextremamenteminúscula,podemos sempre encontrar uma extensão de números reais, tendo a nomeiodela,talquedeumextremoaoutrodessaextensão fxnãodi irade fapor mais do que uma quantidade minúscula estabelecida. E isso devepermanecer verdadeiro seja qual for a quantidade minúscula quepossamos selecionar. Somos levados portanto à seguinte de inição:Diz-seque a funçãof(x) é “contínua” para o argumentoa se, para cada númeropositivoσ, diferentede0,mas tãopequenoquantodesejemos, existir umnúmero positivoε, diferente de 0, tal que, para todos os valores de δnumericamente menores do que2 ε, a diferença f(a+δ) –f(a) sejanumericamentemenordoqueσ.Até agora não de inimos o “limite” de uma função para um dado

argumento. Se o tivéssemos feito, teríamos podido de inir a continuidadede uma função de outramaneira: uma função é contínua num ponto emque seu valor é o mesmo que o limite de seu valor para aproximaçõestanto a partir de cima quanto a partir de baixo. Mas só a funçãoexcepcionalmente “dócil” tem um limite de inido quando o argumento seaproximadeumdadoponto.Aregrageraléqueumafunçãooscile,eque,dada qualquer vizinhança de um dado argumento, por menor que seja,toda uma extensão de valores ocorrerá para argumentos dentro daquelavizinhança.Comoessaéaregrageral,vamosconsiderá-laprimeiro.Consideremos o que pode acontecer quando o argumento se aproxima

de algum valora a partir de baixo. Isto é, queremos considerar o queacontece para argumentos contidos no intervalo dea –ε aa, ondeε éalgumnúmeroque,emcasosimportantes,serámuitopequeno.Osvaloresdafunçãoparaargumentosdea–εaa(aexcluído)serãoum

conjuntodenúmeros reaisquede inirãoumacerta seçãodo conjuntodenúmeros reais, a saber, a seção que consiste naqueles números nãomaiores do quetodos os valores para argumentos dea – ε aa. Dadoqualquer número nessa seção, haverá valores pelo menos tão grandesquanto esse número para argumentos entre a—ε aa, isto é, paraargumentos que caem a muito pouca distância dea (seε for muitopequeno). Tomemos todos osε’s possíveis e todas as seções

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correspondentes possíveis. Chamaremos a parte comum de todas essasseçõesa“seçãoextrema”àmedidaemqueoargumentoseaproximade a.Dizerqueumnúmerozpertenceàseçãoextremaédizerque,pormenorquepossamos fazerε,háargumentosentrea—εparaosquaisovalordafunçãoénãomenordoquez.Podemosaplicarexatamenteomesmoprocessoaseçõessuperiores,isto

é, seções que vão de algum ponto até o topo, em vez de irem da parteinferior a algum ponto. Aqui tomamos aqueles números nãomenores doque todos os valores para argumentodea– ε aa; isso de ine uma seçãosuperior que variará à medida queε varie. Tomando a parte comum detodas essas seçõespara todososε’s possíveis, obtemos a “seção superiorextrema”. Dizer que um número z pertence à seção superior extrema édizer que, por menor que façamosε, haverá argumentos entrea – ε aaparaosquaisovalordafunçãonãoserámaiordoquez.Se o termoz pertencer tanto à seção extremaquanto à seção superior

extrema,diremosqueelepertenceà“oscilaçãoextrema”.Podemosilustraramatériaconsiderandomaisumavezafunçãosen1/xàmedidaquexseaproximadovalor0.Suporemos,paranospôrdeacordocomasde iniçõesapresentadas,queaaproximaçãoaessevalorsedáapartirdebaixo.Comecemoscoma“seçãoextrema”.Entre– εe0,qualquerquesejaε,a

função assumirá o valor 1 para certos argumentos,mas jamais assumiráumvalormaior. Portanto, a seçãoextrema consiste em todososnúmerosreais, positivos e negativos, até e incluindo1; isto é, consiste em todos osnúmeros negativos juntamente com 0, juntamente com os númerospositivosatéeincluindo1.Demaneira semelhante, a “seção superior extrema” consiste em todos

os números positivos juntamente com 0, juntamente com os númerosnegativosatéeincluindo–1.Assima“oscilaçãoextrema”consisteemtodososnúmerosreaisde–1a

1,ambosincluídos.Podemos dizer de maneira geral que a “oscilação extrema” de uma

função à medida que o argumento se aproxima dea a partir de baixoconsiste em todos aqueles númerosx tais que, por mais perto quecheguemos dea, ainda encontraremos valores tão grandes quanto x evalorestãopequenosquantox.A oscilação extrema pode não conter nenhum termo, ou conter um

termo,oumuitos.Nosdoisprimeiroscasos,afunçãotemumlimitedefinidopara aproximações a partir de baixo. Se a oscilação extrema tiver umtermo,issoébastanteóbvio.Éigualmenteóbviosenãotivernenhum,pois

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não é di ícil provar que, se a oscilação extrema for nula, a fronteira daseção extrema será a mesma da seção superior extrema e poderá serde inidacomoolimitedafunçãoparaaproximaçõesapartirdebaixo.Masseaoscilaçãoextremativermuitostermos,nãohaverálimitede inidoparaafunçãoparaaproximaçõesapartirdebaixo.Nessecaso,podemostomaras fronteiras superior e inferior da oscilação extrema (isto é, a fronteirainferior da seção superior extrema e a fronteira superior da seçãoextrema) como os limites superior e inferior de seus valores “extremos”paraaproximaçõesapartirdebaixo.Demaneira similar,obtemos limitesinferiore superiordosvalores “extremos”paraaproximaçõesapartirdecima. Assimtemos, no caso geral,quatro limites para uma função paraaproximaçõesaumdadoargumento.O limite para umdado argumentoasó existe quando todos esses quatro são iguais, sendo, portanto, o valorcomum deles. Se esse for também o valor para o argumentoa, a funçãoserácontínuaparaesseargumento. Issopodeser tomadocomode inindocontinuidade:éequivalenteànossadefiniçãoanterior.Podemosdefinirolimitedeumafunçãoparaumdadoargumento(seele

existir) sem passar pela oscilação extrema e os quatro limites do casogeral. A de inição origina-se exatamente como a de inição anterior decontinuidade.Definamosolimiteparaaproximaçõesapartirdebaixo.Paraque haja um limite de inido para aproximações aa a partir de baixo, énecessário e su iciente que, dado qualquer número pequenoσ, doisvalores para argumentos su icientemente próximos de σ (mas ambosmenores do queσ) di iram por menos queσ; isto é, seε forsu icientemente pequeno, e nossos argumentos se encontrarem ambosentrea–ε aa (aexcluído),entãoadiferençaentreosvaloresparaessesargumentos serámenor do queσ. Isso deve se aplicar a qualquerσ, pormenorque seja;nesse caso, a função temum limiteparaaproximaçõesapartir de baixo.Demaneira semelhante, de inimos o caso emque há umlimite para aproximações a partir de cima. Esses dois limites, mesmoquando ambos existem, não precisam ser idênticos; e se forem idênticos,ainda assim não precisam ser idênticos aovalor para o argumentoa. Éapenas nesse último caso que chamamos a funçãocontínua para oargumentoa.Umafunçãoéchamada“contínua”(semquali icação)quandoécontínua

paratodososargumentos.Outro método ligeiramente diferente de chegar à de inição de

continuidadeéoseguinte.Digamos que uma função “converge inalmente para uma classeα” se

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houver algum número real tal que, para esse argumento e todos osargumentosmaioresdoqueesse,ovalordafunçãoformembrodaclasseα. De maneira semelhante, diremos que uma função “converge para α àmedidaque o argumento se aproximardex a partir de baixo” se houveralgum argumentoy menor do quex tal que de um extremo ao outro dointervalo dey (incluído) ax (excluído) a função tiver valores que sãomembros de α. Agora podemos dizer que uma função é contínua para oargumentoα, para a qual tem o valor fa, se satis izerquatro condições, asaber:(1) Dado qualquer número real menor do que fa, a função converge

paraossucessoresdessenúmeroàmedidaqueoargumentoseaproximadeaapartirdebaixo;(2)Dadoqualquernúmerorealmaiordoque fa,afunçãoconvergepara

os predecessores desse número àmedida que o argumento se aproximadeaapartirdebaixo;(3)e(4)Condiçõessimilaresparaaproximaçõesaaapartirdecima.Asvantagensdessaformadede iniçãoéqueelaanalisaascondiçõesde

continuidade em quatro, derivadas da consideração de argumentos evalores respectivamente maiores ou menores do que o argumento e ovalorparaosquaisacontinuidadedeveserdefinida.Podemos agora generalizar nossas de inições de modo que elas se

apliquem a séries que não sejam numericamente conhecidas ounumericamentemensuráveis. Um caso que convém ter emmente é o domovimento. Há um conto de H.G. Wells que ilustra, a partir do caso domovimento, a diferença entre o limite de uma função para um dadoargumentoeseuvalorparaomesmoargumento.Oheróidahistória,quepossuía, sem o saber, o poder de realizar seus desejos, estava sendoatacadoporumpolicial,masaoexclamar“Váà—”,constatouqueopolicialdesapareceu.Sef(t)eraaposiçãodopolicialnotempot,et0omomentodaexclamação,olimitedasposiçõesdopolicialàmedidaquetseaproximavadet0apartirdebaixoestariaemcontatocomoherói,aopassoqueovalorparao argumentot0era—.Masocorrênciasdessetiposãosupostamenteraras nomundo real, e presume-se, embora sem provas adequadas, quetodos os movimentos são contínuos, isto é, que, dado qualquer corpo, sef(t) for sua posição no tempot, f(t) será uma função contínua det. É osigni icadode “continuidade” envolvidonessas a irmaçõesquedesejamosagoradefinirdemaneiratãosimplesquantopossível.As de inições dadas para o caso de funções em que o argumento e o

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valor são números reais podem ser facilmente adaptadas para usomaisgeral.Suponhamos que P e Q são duas relações, que imaginamos serem

seriais,emboraissonãosejanecessárioàsnossasde inições.SuponhamosqueRéumarelaçãoum-muitoscujodomínioestácontidonocampodeP,enquantoseudomínioinversoestácontidonocampodeQ.EntãoRé(numsentidogeneralizado)uma funçãocujosargumentospertencemaocampodeQ, enquanto seusvalorespertencemao campodeP. Suponhamos,porexemplo,queestamostratandodeumapartículaquesemovenumalinha:Qéasérietemporal;P,asériedepontosemnossalinhadaesquerdaparaadireita;R,arelaçãodaposiçãodenossapartículana linhano instanteacomoinstantea,detalmodoque“oRdea”sejasuaposiçãonoinstantea.Podemosteressailustraçãoemmenteportodasasnossasdefinições.Diremos que a função R é contínua para o argumentoa se, dado

qualquer intervaloα na série P contendo o valor da função para oargumentoa, houver um intervalo na série Q contendoa não como umponto inal e tal que, de um extremo a outro desse intervalo, a funçãotenha valores que sejammembros deα. (Por “intervalo”, queremos dizertodosos termosentrequaisquerdois; istoé,sex ey foremdoismembrosdocampoP,e xtiverarelaçãoPcomy,entenderemospelo“intervaloPxay” todos os termosz tais quex tenha a relação P comy —juntamente,quandoassimdeclarado,comxouyelespróprios.)Podemos de inir facilmente a “seção extrema” e a “oscilação extrema”.

Parade inira“seçãoextrema”paraaproximaçõesaoargumento aapartirde baixo, tomemos qualquer argumentoy que precedaa (isto é, tenha arelaçãoQcoma),tomemososvaloresdafunçãoparatodososargumentosaté e incluindoy,e formemosaseçãodePde inidaporessesvalores, istoé, aqueles membros da série P anteriores a alguns desses valores ouidênticos a eles. Formemos todas aquelas seções para todos os y’s queprecedama, e tomemos sua parte comum; essa será a seção extrema. Aseção superior extrema e a oscilação extrema são então de inidasexatamentecomonocasoanterior.A adaptação da de inição de convergência e a de inição alternativa

resultantedecontinuidadenãooferecemnenhumtipodedificuldade.Dizemos que uma função R é “ultimamente Q-convergente paraα” se

houverummembroydodomínio inversodeRedocampodeQtalqueovalordafunçãoparaoargumentoyeparaqualquerargumentocomqueytenhaa relaçãoQ formembrodeα.DiremosqueR “Q-convergeparaα àmedida que o argumento se aproximar de um argumento dadoa” se

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houver um termoy que tenha a relação Q coma e pertença ao domínioinverso de R e tal que o valor da função para qualquer argumento nointervaloQdey(inclusive)aa(exclusive)pertençaaα.Dasquatrocondiçõesqueumafunçãodevepreencherparasercontínua

paraoargumentoa,aprimeiraé,tomandobcomoovalordoargumentoa:DadoqualquertermoquetenhaarelaçãoPcomb,RQ-convergeparaos

sucessores deb (com respeito a P) à medida que o argumento seaproximardeaapartirdebaixo.ObtemosasegundacondiçãosubstituindoPporseuinverso;aterceirae

aquartasãoobtidasapartirdaprimeiraedasegunda,substituindo-seQporseuinverso.Não há nada, portanto, nas noções do limite de uma função ou da

continuidadedeuma funçãoque envolva essencialmentenúmero.Ambospodem ser de inidos de maneira geral, e muitas proposições sobre elespodem ser provadas para quaisquer duas séries (uma sendo a série dosargumentos,eaoutra,asériedosvalores).Comosevê,asde iniçõesnãoenvolvem in initesimais. Envolvem classes in initas de intervalos, quediminuem sem nenhum limite menor do que zero, mas não envolvemquaisquer intervalosquenãosejam initos. Issoéanálogoao fatodeque,se uma linha de um centímetro for dividida ao meio, depois novamentedividida,demaneirainde inida,nuncachegaremosain initesimais:apósnbissecções, o comprimento de nosso pedacinho será 1/2n de umcentímetro; e isso é inito, seja qualquer for o número inito quen possaser. O processo de sucessivas bissecções não conduz a divisões cujonúmero ordinal seja in inito, uma vez que é essencialmente um processoum-por-um. Portanto, não se chegará a in initesimais dessa maneira. Aconfusão acerca desses tópicos teve muito a ver com as di iculdadesencontradasnadiscussãodainfinidadeedacontinuidade.

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Capítulo12Seleçõeseoaxiomamultiplicativo

Neste capítulo temos de considerar um axioma que pode ser enunciado,masnãoprovado, em termosde lógica, e que é conveniente, emboranãoindispensável,emcertasporçõesdamatemática.Éconvenientenosentidode que muitas proposições interessantes, que parece natural suporverdadeiras, não podem ser provadas sem a sua ajuda; mas não éindispensável, porquemesmo semessasproposições asmatérias emqueelesocorremaindaexistem,emboranumaformaumpoucomutilada.Antesdeenunciaroaxiomamultiplicativo,devemosexplicarateoriadas

seleçõese ade iniçãodemultiplicaçãoquandoonúmerode fatorespodeserinfinito.Ao de inir as operações aritméticas, o único procedimento correto é

construir uma classe real (ou relação, no caso dos números de relação)quetenhaonúmerorequeridodetermos.Issoexigeporvezescertograudeengenhosidade,maséessencialparaseprovaraexistênciadonúmerode inido. Tomemos, como o exemplo mais simples, o caso da adição.Suponhamosquenossejadadoumnúmerocardinalμ,eumaclasseαquetenhaμtermos.Comode iniremosμ+μ?Paraessa inalidadedevemosterduas classes tendoμ termos, e elas não devem se superpor. Podemosconstruirtaisclassesapartirdeαdeváriasmaneiras,dasquaisaseguintetalvez seja amais simples: formemos primeiro todos ospares ordenadoscujoprimeirotermosejaumaclasseconsistindoemumúnicomembrodeα, e cujo segundo termo seja a classe nula; depois, em segundo lugar,formemostodososparesordenadoscujoprimeirotermosejaaclassenulaecujosegundotermosejaumaclasseconsistindoemumúnicomembrodeα. Essasduas classesdeparesnão têmnenhummembroemcomum, e asoma lógica das duas teráμ +μ termos. Demaneira exatamente análogapodemos de inirμ +ν, dadoqueμéonúmerodealgumaclasseα eνéonúmerodealgumaclasseβ.Essasdefinições,viaderegra,sãomeramentequestãodeumexpediente

técnico adequado. Mas no caso da multiplicação, em que o número defatorespodeserinfinito,problemasimportantessurgemdadefinição.Quando o número de fatores é inito, a multiplicação não oferece

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problemas.Dadasduasclassesαeβ,dasquaisaprimeiratemμ termos,ea segunda,ν termos, podemos de inirμ ×ν como o número de paresordenadosquepodemserformadosescolhendo-seoprimeirotermoemαe o segundo emβ. Observemos que essa de inição não requer queα eβnãosesuperponham;permaneceadequadaatéquandoαeβsãoidênticas.Por exemplo, suponhamos queα é a classe cujos membros sãox1, x2, x3.Nessecasoaclasseusadaparadefiniroprodutoμ×μéaclassedepares:

(x1,x1),(x1,x2),(x1,x3);(x2,x1),(x2,x2),(x2,x3);(x3,x1),(x3,x2),(x3,x3).

Essadefiniçãopermaneceaplicávelquandoμouυouambossãoinfinitos,epode ser estendida passo a passo a três ou quatro ou qualquer númeroinito de fatores. Nenhuma di iculdade surge no tocante a essa de inição,excetoqueelanãopodeserestendidaaumnúmeroinfinitodefatores.O problema da multiplicação quando o número de fatores pode ser

in inito surge da seguintemaneira: suponhamos que temos uma classeκque consiste em classes; suponhamos que o númerode termos em cadaumadessasclassessejadado.Comode iniremosoprodutodetodosessesnúmeros? Se pudermos formular nossa de inição de maneira geral, elaserá aplicável querκ seja inito ou in inito. Deve-se observar que oproblemaéconseguirtratardocasoquandoκéinfinito,nãocomocasoemque seusmembroso são. Seκ não for in inito, ométodode inidoacimaéigualmente aplicável, quer seus membros sejam initos ou in initos. É docasoemqueκé in inito,aindaqueseusmembrospossamser initos,quetemosdeencontrarumamaneiradetratar.Ométodoqueseseguedede inirmultiplicaçãoemgeralédevidoaodr.

Whitehead. É explicado e tratado em detalhe emPrincipia Mathematica,vol.Inota80ss,evol.II,nota114.Suponhamos,paracomeçar,queκéumaclassedeclassesentreasquais

nãohánenhumasuperposição—digamososdistritoseleitoraisnumpaísemquenãohávotoplural,cadadistritosendoconsideradoumaclassedeeleitores. Procuremos agora escolher um termo em cada classe para serseurepresentante,comodistritoseleitoraisfazemquandoelegemmembrosdo Parlamento, supondo que por lei cada distrito tenha de eleger umhomemquesejaumeleitornaqueledistrito.Chegamosassimaumaclassede representantes,quecompõemnossoParlamento, cadaumselecionadoem um distrito eleitoral. Quantos Parlamentos diferentes podem serescolhidos? Cada distrito eleitoral pode escolher qualquer um de seuseleitores, e, portanto, se houverμ eleitores num distrito, poderá fazerμ

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escolhas. As escolhas dos diferentes distritos são independentes; assim éóbvio que, quando o número total de distritos for inito, o número deParlamentos possíveis é obtido multiplicando-se juntos os números deeleitores nos vários distritos eleitorais. Quando não soubermos se onúmerodedistritosé initoouin inito,podemosconsiderarqueonúmerode Parlamentos possíveisdefine o produto dos números dos diferentesdistritos eleitorais. Esse é o métodopelo qual produtos in initos sãode inidos. Podemos agora abandonar nossa ilustração e passar aafirmaçõesexatas.Suponhamosqueκéumaclassedeclasses,esuponhamosparacomeçar

quenãohánenhumasuperposiçãoentreduasclasses, istoé,queseα eβforam dois diferentes membros de κ, nenhum membro de uma serámembro da outra. Chamaremos uma classe uma “seleção” a partir deκquandoelaconsistiremapenasumtermodecadamembrodeκ;istoé,μéuma seleçãoapartirdeκ se cadamembro deμ pertencer aummembrodeκ,eseαformembrodeκ,μeαterãoexatamenteumtermoemcomum.Chamaremos a classe de todas as “seleções” a partir deκ a “classemultiplicativa”deκ.Onúmerodetermosnaclassemultiplicativadeκ, istoé, o número de seleções possíveis a partir deκ, será de inido como oproduto dos números dos membros de κ. Essa de inição é igualmenteaplicávelquerκsejafinitoouinfinito.Antesquepossamos icar inteiramentesatisfeitos comessasde inições,

devemos remover a restrição de que não deve haver nenhumasuperposição entre dois termos deκ. Para esse im, em vez de de inirprimeiro uma classe chamada uma “seleção”, de iniremos primeiro umarelação que chamaremos um “seletor”. Uma relação R será chamada um“seletor”provenientedeκse,decadamembrodeκ,eleescolherumtermocomorepresentantedaquelemembro, istoé,se,dadoqualquermembro αdeκ,houverapenasumtermoxquesejamembrodeαetenhaarelaçãoRc omα; e R fará unicamente isso. A de inição formal é: um “seletor”provenientedeumaclassedeclassesκéumarelaçãoum-muitos, tendoκpor seu domínio inverso, e tal que, sex tiver essa relação comα, entãoxserámembrodeα.SeRforumseletorprovenientedeκ,αformembrodeκ,exforotermo

que tem a relação R comα, chamaremosx o “representante” deα comrespeitoàrelaçãoR.Uma “seleção” apartirdeκ será agorade inida comoodomíniodeum

seletor;eaclassemultiplicativa,comoantes,seráaclassedasseleções.Quandoosmembrosdeκsesuperpõem,podehavermaisseletoresque

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seleções,vistoqueumtermoxquepertenceaduasclassesαeβpodeserselecionado uma vez para representar α e uma vez para representar β,dando origem a dois diferentes seletores nos dois casos, mas à mesmaseleção.Para insdede iniramultiplicação,édeseletores,nãodeseleções,queprecisamos.Assimde inimos:“oprodutodonúmerodosmembrosdeumaclassedeclassesκ”éonúmerodeseletoresprovenientesdeκ.Podemos de inir exponenciação mediante uma adaptação do plano

descrito. Poderíamos, é claro, de inirμν como o número de seletoresprovenientes deν classes, cada um dos quais temμ termos. Mas háobjeções a essa de inição, porque, se ela for adotada, o axiomamultiplicativo (do qual falaremos em breve) será desnecessariamenteenvolvido.Emvezdisso,adotamosaseguinteconstrução:suponhamosqueαéumaclassecomμtermos,eβumaclassecomνtermos.Suponhamosqueysejamembrodeβeformeaclassedetodosospares

bemordenadosquetêmyporseusegundotermoeummembrodeαporseuprimeiro termo.Haveráμdessesparesparaumdado y,umavezquequalquermembrodeαpodeserescolhidoparaoprimeirotermo,eα temμmembros.Seformarmosagoratodasasclassesdessetipoqueresultamda variação dey, obteremos ao todoν classes, poisy pode ser qualquermembrodeβ,eβtemνmembros.Essasclassesνsão,cadaumadelas,umaclassedepares,asaber,todososparesquepodemserformadoscomummembro variável deα e um membro ixo deβ. De inimosμν como onúmerodeseletoresprovenientesdaclassequeconsistenessas νclasses.Poderíamosigualmentedefinirμνcomoonúmerodeseleções,jáque,comonossasclassesdeparessãomutuamenteexclusivas,onúmerodeseletoresé igual ao número de seleções. Uma seleção a partir de nossa classe declasses será um conjunto de pares ordenados, dos quais haveráexatamenteumtendoqualquermembrodadodeβporseusegundotermo,e o primeiro termo pode ser qualquermembro deα. Assimμν é de inidopelosseletoresprovenientesdeumcertoconjuntode ν classes, cadaumatendoμ termos, mas o conjunto tem certa estrutura e uma composiçãomaismanejáveldoqueemgeraléocaso.Arelevânciadistoparaoaxiomamultiplicativoapareceráembreve.O que se aplica à exponenciação aplica-se também ao produto de dois

cardinais. Poderíamos de inir “μ ×ν” como a soma dos números deνclasses,cadaumatendoμtermos,maspreferimosde ini-locomoonúmerode pares ordenados a serem formados consistindo em ummembro de αseguidoporummembrodeβ,ondeα temμtermoseβ temν termos.Essade inição tem também o objetivo de escapar à necessidade de admitir o

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axiomamultiplicativo.Com nossas de inições, podemos provar as leis formais usuais da

multiplicaçãoeexponenciação,masnãopodemosprovarqueumprodutosó é zeroquandoumdos fatores é zero. Épossível provar issoquandoonúmerodefatoresé inito,masnãoquandoéin inito.Emoutraspalavras,nãopodemosprovarque,dadaumaclassedeclassesnenhumadasquaisénula,devehaverseletoresprovenientesdelas;ouque,dadaumaclassedeclasses mutuamente exclusivas, deve haver pelo menos uma classeconsistindo em um termo proveniente de cada uma das classes dadas.Essascoisasnãopodemserprovadas;eemboraàprimeiravistapareçamobviamente verdadeiras, a re lexão gera gradualmente dúvida crescente,até que nos contentamos em registrar a suposição e suas conseqüências,como registramoso axiomadasparalelas, semsuporquepodemos saberse é verdadeiro ou falso. A suposição, frouxamente formulada, é queseletores e seleções existem quando devemos esperar que existam. Hámuitas maneiras equivalentes de a irmar isso com precisão. Podemoscomeçar com a seguinte: “Dada qualquer classe de classes mutuamenteexclusivas,dasquaisnenhumaénula,hápelomenosumaclassequetemexatamenteumtermoemcomumcomcadaumadasclassesdadas.”Podemos chamar essa proposição o “axioma multiplicativo”. 1 Primeiro

daremos várias formas equivalentes da proposição, e depoisconsideraremoscertasmaneiraspelasquaissuaverdadeoufalsidadeédeinteresseparamatemáticos.O axiomamultiplicativo é equivalente à proposiçãode que umproduto

só é zero quando pelo menos um de seus fatores é zero; isto é, que, sequalquer número de números cardinais for multiplicado juntos, oresultadonãopodeser0,amenosqueumdosnúmerosenvolvidosseja0.O axioma multiplicativo é equivalente à proposição de que, se R for

qualquer relação, eκ qualquer classe contida no domínio inverso de R,haverápelomenosumarelaçãoum-muitosque impliqueReque tenha κporseudomínioinverso.O axioma multiplicativo é equivalente à suposição de que, seα for

qualquer classe, eκ todasas subclassesdeα comexceçãodaclassenula,haverá aomenos um seletor proveniente de κ. Foi sob essa forma que oaxiomafoiprimeirolevadoàatençãodomundocultoporZermelo,emseu“Beweis, dass jede Menge wohlgeordnet werden”. 2 Zermelo vê o axiomacomoumaverdadeinquestionável.Deveserconfessadoque,atéqueeleoexplicitasse, os matemáticos o haviam usado sem nenhum escrúpulo,emborase tenhaa impressãodequeohaviamfeito inconscientemente.O

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créditodevido a Zermelo por tê-lo tornado explícito é inteiramenteindependentedaquestãodesereleverdadeirooufalso.Na provamencionada, Zermelomostrou que o axiomamultiplicativo é

equivalenteàproposiçãodequetodaclassepodeserbemordenada,istoé,pode ser arranjada numa série em que toda subclasse tem um primeirotermo(exceto,éclaro,aclassenula).Aprovacompletadessaproposiçãoédi ícil, mas não é di ícil ver o princípio geral do qual resulta. Ela usa aforma que chamamos “axioma de Zermelo”, isto é, supõe que, dadaqualquer classeα, há pelomenosuma relaçãoRum-muitos cujo domínioinversoconsisteemtodasassubclassesexistentesdeαequeétalque,sex tiver a relação R com ξ, entãox serámembro de ξ. Tal relação tira um“representante” de cada subclasse; freqüentemente acontecerá, é claro,queduas subclasses tenhamomesmo representante.O que Zermelo faz,de fato, é contar os membros deα, um a um, por meio de R e induçãotrans inita. Colocamos primeiro o representante de α; vamos chamá-lox1.Depois tomamosorepresentantedaclassequeconsisteemtodoα excetox1; vamos chamá-lox2. Ele deve ser diferente dex1, porque todorepresentante é membro de sua classe, e x1 está excluído dessa classe.Procedemos da mesma maneira para retirar x2, e deixamosx2 ser orepresentante do que resta. Dessa maneira obtemos primeiro umaprogressão x1,x2, . . .xn, . . ., supondo queα não é inito.Depois retiramostoda a progressão; deixamos xω ser o representante do que resta de α.Dessa maneira podemos prosseguir até que nada reste. Os sucessivosrepresentantes formarão uma série bem ordenada contendo todos osmembrosdeα.(Oqueapresentamosé,obviamente,apenasumaindicaçãodaslinhas gerais da prova.) Essa proposição é chamada “teorema deZermelo”.O axioma multiplicativo é também equivalente à suposição de que de

qualquerdedoiscardinaisquenãosejamiguais,umdeveseromaior.Seoaxioma for falso,haverácardinaisμ eν taisqueμnãoénemmenor,nemigual, nemmaior do queν.Vimosquen1 e2n0 formam possivelmente umcasodeparcomoesse.Muitas outras formas do axioma poderiam ser dadas, mas as aqui

apresentadas são as mais importantes entre as conhecidas atualmente.Quanto à verdade ou falsidade do axioma em qualquer de suas formas,nadasesabehoje.Asproposiçõesquedependemdoaxioma,semseremreconhecidamente

equivalentes a ele, são numerosas e importantes. Tomemos primeiro a

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conexãoda adição emultiplicação. É natural pensarmos que a somadeνclassesmutuamente exclusivas, cada uma tendoμ termos, deve terμ ×νtermos. Quandoν é inito, issopodeserprovado.Masquandoν é in inito,nãopodeserprovadosemoaxiomamultiplicativo,excetoonde,emvirtudedealgumacircunstânciaespecial,aexistênciadecertosseletorespodeserprovada. O axioma multiplicativo é usado da seguinte maneira:suponhamos que temos dois conjuntos deμ classes mutuamenteexclusivas,cadaumcomμ termos,edesejamosprovarqueasomadeumconjunto tem tantos termos quanto a soma do outro. Para provar isso,devemosestabelecerumarelaçãoum-um.Ora,comohá νclassesemcadacaso,háalgumarelaçãoum-umentreosdois conjuntosde classes;masoque queremos é uma relação um-um entre seus termos. Consideremosalguma relação um-um S entre as classes. Nesse caso, se κ e λ forem osdoisconjuntosdeclasses,eαformembrodeκ,haveráummembroβdeλque será o correlato deα com respeito a S. Oraα eβ têm termosμ e,portanto,sãosimilares.Conseqüentemente,hácorrelaçõesum-umdeαeβ.Oproblemaéhaveremtantas.Paraobterumacorrelação um-umdasomadeκ com a soma de λ, temos de retiraruma seleção de um conjunto declasses de correlatores, uma classe do conjunto sendo todos oscorrelatores um-um deα comβ. Seκ e λ forem initos, em geral nãopoderemos saber se semelhante seleção existe, a menos que possamossaber que o axioma multiplicativo é verdadeiro. Portanto, não podemosestabelecerotipousualdeconexãoentreadiçãoemultiplicação.Esse fato tem várias conseqüências curiosas. Para começar, sabemos

quen02=n0×n0=n0.Comumenteinfere-sedissoqueasomade?0classes,cada qual com n0 membros, deve ter ela própria n 0 membros, mas estainferênciaéfalaciosa,vistoquenãosabemosseonúmerodetermosemtalsomaén0×n0,nemconseqüentementeseén0.Issotemumarelaçãocomateoriadosordinais trans initos. É fácil provarqueumordinal que temn 0

predecessores deve ser um ordinal do que Cantor chama a “segundaclasse”, isto é, tal que uma série que tenha esse número ordinal terá n 0

termos em seu campo. É também fácil ver que, se tomamos qualquerprogressãodeordinaisdasegundaclasse,ospredecessoresdolimitedelesformam no máximo a soma de n0 classes, cada uma tendo n0 termos.Infere-se,portanto—falaciosamente,amenosqueoaxiomamultiplicativoseja verdadeiro—, que os predecessores do limite são n 0 em número, eporconseguintequeolimiteéumnúmeroda“segundaclasse”.Istoé, icasupostamente provado que qualquer progressão de ordinais da segunda

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classetemumlimitequeéporsuavezumordinaldasegundaclasse.Essaproposição,comocoroláriodequeω1(omenorordinaldaterceiraclasse)não é o limite de nenhumaprogressão, está envolvida namaior parte dateoriadosordinaisdasegundaclassereconhecida.Diantedomodocomooaxiomamultiplicativoéenvolvido,aproposiçãoeseucorolárionãopodemserconsideradosprovados.Podemserverdadeiros,ounão.Tudooquesepode dizer presentemente é que não sabemos. Assim, a maior parte dateoriadosordinaisdasegundaclassedeveserconsideradanãoprovada.Umaoutrailustraçãopodeajudaraelucidaraquestão.Sabemosque2×

n0 = n0. Poderíamos portanto, supor que a soma de n0 pares deve ter n0

termos. Mas, embora possamos provar que isso ocorre às vezes, nãopodemos provar que ocorre sempre, a menos que admitamos o axiomamultiplicativo. Isso é ilustrado pelo milionário que comprava um par demeiassemprequecompravaumpardebotas,enuncaemqualqueroutraocasião,equetinhatalpaixãoporcomprarqueterminouportern0paresde botas e n0 pares de meias. O problema é: quantas botas ele tinha, equantasmeias?Naturalmentesuporíamosquetinhaduasvezesmaisbotaseduasvezesmaismeiasqueonúmerodeparesquepossuíadeumacoisae de outra, e que portanto tinha n0 de ambas, já que esse número nãoaumenta quando é duplicado. Mas esse é um caso da di iculdade, jáobservada,deconectarasomadeνclasses,cadaumatendoμtermos,comμ ×ν.Àsvezes issopodeser feito, àsvezesnão.Emnossocaso,podeserfeito com as botas,mas não com asmeias, a não ser pormeio de algumestratagema muito arti icial. A razão para a diferença é: entre as botas,podemos distinguir direita e esquerda, e portanto podemos fazer umaseleçãodeumaapartirde cadapar, a saber, podemosescolher todas asbotasdireitasoutodasasbotasesquerdas;comasmeias,porém,nenhumprincípiodeseleçãocomoesseseapresenta,enãopodemostercerteza,amenos que admitamos o axioma multiplicativo, de que há alguma classecompostadeumameiaretiradadecadapar.Daíoproblema.Podemos formular a questão de uma outra maneira. Para provar que

uma classe tem n0 termos, é necessário e su iciente encontrar algumamaneiradearranjarseustermosnumaprogressão.Nãohádi iculdadeemfazer isso com as botas. Ospares são dados como formando um n0 e,portanto, como o campo de uma progressão. Em cada par, tome a botaesquerda em primeiro lugar e a bota direita em segundo, mantendo aordemdoparinalterada;dessamaneiraobtemosumaprogressãodetodasasbotas.Nocasodasmeias,porém, teremosdeescolherarbitrariamente,

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em cada par, qual pé pôr em primeiro lugar; e um número in inito deescolhas arbitrárias é uma impossibilidade. A menos que possamosencontrar umaregra para selecionar, isto é, uma relação que seja umseletor, não sabemos se uma seleção é sequer teoricamente possível. Éclaro que, no caso de objetos no espaço, como meias, podemos sempreencontrar algum princípio de seleção. Por exemplo, podemos tomar oscentros de massa das meias: haverá pontosp no espaço tais que, comqualquer par, os centros demassa das duasmeias não estarão ambos aigual distância dep; assimpoderemosescolher,de cadapar, aquelameiacujocentrodemassaestámaispróximadep.Masnãohánenhumarazãoteórica para que um método de seleção como esse deva ser semprepossível, e o caso dasmeias, com um pouco de boa vontade da parte doleitor,podeservirparamostrarcomoumaseleçãopoderiaserimpossível.Convémobservar que, sefosse impossível selecionarumpédemeiade

cadapar, disso se seguiria quemeias nãopoderiam ser arranjadasnumaprogressão,eportantoquenãohaverian0delas.Essecasoilustraque,seμé umnúmero in inito, um conjunto deμ pares pode não conter omesmonúmerodetermosqueumoutroconjuntodeμpares;pois,dadosn0paresde botas, há certamente n0 botas,mas não podemos ter certeza disso nocaso das meias, a menos que admitamos o axioma multiplicativo ourecorramos a algum método geométrico de seleção como o expostoanteriormente.Outro importante problema envolvendo o axioma multiplicativo é a

relação entre re lexividade e não-indutividade. Lembremos que noCapítulo 8 ressaltamos que um número re lexivo deve ser não-indutivo,mas o inverso (pelo que se sabe até o presente) só pode ser provado seadmitirmosoaxiomamultiplicativo.Issoacontecedaseguintemaneira:É fácilprovar que uma classe re lexiva é uma classe que contém

subclasses com n0 termos. (A classe pode, é claro, ter ela própria n 0

termos.)Assim temosdeprovar, sepudermos,que,dadaqualquer classenão-indutiva, é possível escolher umaprogressão entre seus termos.Ora,nãohánenhumadificuldadeemmostrarqueumaclassenão-indutivadevecontermais termosquequalquerclasse indutiva,ou,oquedánomesmo,que seα for uma classe não-indutiva eν for qualquer número indutivo,haverá subclasses deα que terãoν termos. Portanto, podemos formarconjuntos de subclasses initas deα: primeiro uma classe que não temnenhumtermo;depois classesque têm1 termo(tantosquantos foremosmembros deα), depois classes que têm 2 termos, e assim por diante.

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Obtemosdessamaneiraumaprogressãodeconjuntosdesubclasses,cadaconjunto consistindo em todos aqueles que têm certo número inito dadode termos. Até agora não usamos o axioma da multiplicação, apenasprovamos que o número de coleções de subclasses deα é um númerore lexivo,istoé,que,seμ foronúmerodemembrosdeα,demodoque2μseja o número de subclasses deα e 22μ seja o número de coleções desubclasses,então, contantoqueμsejanãoindutivo,22μdeveser re lexivo.Masafastamo-nosmuitodoquetínhamosintençãodeprovar.Para avançar além desse ponto, devemos empregar o axioma

multiplicativo.De cada conjuntode subclasses, escolhamosuma, omitindoassubclassesqueconsistemapenasnaclassenula.Istoé,escolhamosumasubclasse que contenha um termo,α1; uma que contenha dois termos,α2;uma que contenha três, digamosα3; e assim por diante. (Podemos fazeristo seoaxiomamultiplicativo foradmitido;do contrário,não sabemos sepodemossemprefazerisso.)Temosagoraumaprogressão, α1,α2,α3,...desubclasses deα, em vez de uma progressão de coleções de subclasses;portanto,estamosumpassomaispróximosdenossameta.Sabemosagoraque, admitindo o axiomamultiplicativo, seμ for umnúmero não-indutivo,2μdeveserumnúmeroreflexivo.Opróximopasso é observar que, emboranãopossamos ter certezade

que novos membros deα sejam introduzidos em qualquer estágioespeci icadonaprogressãoα1,α2,α3, . . .podemostercertezadequenovosmembros continuam sendo introduzidos de tempo em tempo. Ilustremosisso. A classeα1, que consiste em um termo, é um novo começo;suponhamos que esse único termo éx1; a classeα2, que consiste emdoistermos,pode conterounãox1; secontiver,ela introduzumtermonovo;ese não contiver, deve introduzir dois termos novos, digamos x2, x3. Nessecaso,épossívelqueα3consistaemx1,x2,x3,eassimnãointroduzanenhumtermo novo, mas nesse casoα4 deve introduzir um novo termo. Asprimeirasν classesα1,α2,α3, . . .αν contêm,nomáximo,1+2+3+. . .+νtermos, isto é,ν(ν+1)/2 termos; seria portanto possível, se não houvesserepetiçõesnasprimeiras νclasses,prosseguircomrepetiçõesapenas(ν+1)–ésimaclasseaté [ν(ν +1)/2]–ésimaclasse.Nessaaltura,porém,osvelhos termos não seriam mais su icientemente numerosos para formaruma classe seguinte com o número correto de membros, isto é, ν(ν +1)/2+1, portanto novos termos deveriam ser introduzidos chegar nesseponto, senãomais cedo.Segue-seque, seomitirmosdenossaprogressão

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α1,α2,α3, . . . todas aquelas classes compostas inteiramentede membrosque ocorreram em classes anteriores, ainda teremos uma progressão.Chamemos nossa nova progressãoβ1,β2,β3. . . . (Teremosα1 =β1 eα2 =β2,porqueα1eα2têmdeintroduzirnovostermos.Podemosterounãoα3=β3,mas,emgeral,βμseráαν,ondeνéalgumnúmeromaiordoqueμ;istoé,osβ’ssãoalgunsdosα’s.)Oraessesβ’ssãotaisquequalquerdeles,digamosβμ, contém membros que não ocorreram em nenhum dos β’s anteriores.Chamemosapartedeβμqueconsisteemnovosmembrosγ.Assimobtemosumanovaprogressão γ1,γ2,γ3, . . . (Novamente,γ1será idênticoaβ1 e aα1;seα2 não contiver o únicomembrodeα1, teremosγ2 =β2 =α2, mas seα2

contiver esse único membro,γ2 consistirá no outro membro de α2.) Essanova progressão de γ’s consiste em classesmutuamente exclusivas. Umaseleção a partir delas será, portanto, uma progressão; isto é, se x1 formembro deγ1,x2 será membro de γ2, x3 será membro de γ3, e assim pordiante; portanto,x1, x2, x3 é uma progressão e é uma subclasse deα.Admitindooaxiomamultiplicativo,talseleçãopodeserfeita.Assim,usandoduasvezesesseaxiomapodemosprovarque,seoaxiomaforverdadeiro,todo cardinal não-indutivo deve ser re lexivo. Isso poderia ser deduzidotambém do teorema de Zermelo, segundo o qual, se o axioma forverdadeiro, toda classe pode ser bem ordenada; pois um série bemordenada deve ter em seu campo um número de termos ou inito oureflexivo.O raciocínio direto anterior temuma vantagem sobre dedução a partir

do teorema de Zermelo por não exigir a verdade universal do axiomamultiplicativo,mas somente suaverdade tal comoaplicadoaumconjuntode n0 classes. Pode acontecer que o axioma se sustente para n0 classes,mas não para números maiores de classes. Por essa razão é melhor,quando possível, nos contentarmos com a admissão mais restrita. Aadmissãofeitanoraciocíniodiretoanterioréqueumprodutoden 0 fatoresnunca é zero, a menos que um dos fatores seja zero. Podemos formularessasuposiçãonaforma“n0éumnúmeromultiplicável”,ondeumnúmeroν é de inido como “multiplicável” quando um produto deν fatores nuncafor zero, amenos que umdos fatores seja zero. Podemos provar que umnúmero finito é sempremultiplicável,masnãopodemosprovar omesmocom relação a qualquer número in inito. O axioma multiplicativo éequivalente à suposição de quetodos os números cardinais sãomultiplicáveis.Masparaidenti icarore lexivocomonão-indutivo,oupara

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tratardoproblemadasbotasedasmeias,ouparamostrarquequalquerprogressão de números da segunda classe é da segunda classe,precisamosapenasdasuposiçãomuitomenordequen0émultiplicável.Não é improvável que haja muito a ser descoberto com relação aos

tópicos discutidos neste capítulo. É possível que se encontrem casos emqueproposiçõesqueparecemenvolveroaxiomamultiplicativopodemserresolvidassemele.Éconcebívelquesevenhaademonstrarqueoaxiomamultiplicativo,emsuaformageral,éfalso.Dessepontodevista,oteoremadeZermeloofereceamelhorperspectiva:poderiaseprovarqueocontínuode alguma série ainda mais densa não pode ter seus termos bemordenados,oqueprovariaafalsidadedoaxiomamultiplicativoemvirtudedo teorema de Zermelo. Até agora, porém, não se descobriu nenhummétodo para obter esses resultados e o assunto permanece envolto emobscuridade.

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Capítulo13Oaxiomadainfinidadeeostiposlógicos

O axioma da in inidade é uma suposição que pode ser enunciada daseguinte maneira: “Sen for qualquer número cardinal indutivo, haverápelomenosumaclassedeindivíduosquetenhantermos.”Se isso for verdade, segue-se, é claro, que há muitas classes de

indivíduos que têmn termos, e que o número total dos indivíduos nomundonãoéumnúmero indutivo.Pois, pelo axioma,hápelomenosumaclassecontendon+1termos,doqueseseguequehámuitasclassesdentermos e quen não é o número total de indivíduos nomundo. Comon équalquernúmeroindutivo,segue-sequeonúmerodeindivíduosnomundodeve(senossoaxiomaforverdadeiro)excederqualquernúmeroindutivo.Tendoemvistaoquevimosnocapítuloanterior sobreapossibilidadedecardinaisquenãosãonem indutivosnemre lexivos,nãopodemos inferirde nosso axioma que haja pelo menos n0 indivíduos, a menos queadmitamosoaxiomamultiplicativo.Masnãosabemosquehápelomenosn0classesdeclasses,vistoqueoscardinaisindutivossãoclassesdeclasses,eformamumaprogressão senosso axioma for verdadeiro.Amaneirapelaqualanecessidadedesseaxiomasurgepodeserexplicadaassim:umadassuposições de Peano é que dois cardeais indutivos jamais têm o mesmosucessor, isto é, não teremosm + 1=n + 1 amenos quem =n, sem enforem cardinais indutivos. No Capítulo 8 tivemos ocasião de usar umasuposição praticamente igual a essa de Peano, a saber, que, se n for umcardeal indutivo,n não será igual an + 1. Poderíamos pensar que épossívelprovarisso.Épossívelprovarque,seα forumaclasse indutiva,en for o número dos membros deα, entãon não será igual an + 1. Essaproposição é facilmente provada por indução, e poderíamos pensar queimplicaaoutra.Masdefatonãoofaz,poispoderianãohavertalclasseα.Oqueelaimplicaéisto:senforumcardinalindutivotalquehajapelomenosuma classe comn membros, entãon não é igual an + 1. O axioma dain inidade nos assegura (quer verdadeira ou falsamente) que há classescomnmembros,eportantonospermitea irmarquennãoéigualan+1.Sem esse axioma, porém, icaríamos com a possibilidade den en + 1seremambosaclassenula.

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Ilustremos essa possibilidade com um exemplo: suponhamos quehouvesseexatamentenove indivíduosnomundo. (Quantoaoquesedeveentenderpelapalavra“indivíduo”,peçoaoleitorquesejapaciente.)Assim,os cardeais indutivos de 0 a 9 seriam tais como esperamos, mas 10(de inido como9+1) seriaa classenula.Convém lembrarquen+1 podeser de inido da seguinte maneira:n + 1 é a coleção de todas aquelasclassesquetêmumtermox talque,quandoxéretirado,restaumaclassedentermos.Aplicandoagoraessade inição,vemosque,nocasosuposto,9+1éumaclassequeconsisteemnenhumaclasse,istoé,éaclassenula.Omesmoseráverdadeacercade9+2,ouemgeralde9+ n,amenosquenseja zero. Assim 10 e todos os cardinais indutivos subseqüentes serãotodosidênticos,vistoqueserãotodosaclassenula.Numcasocomoesse,oscardinais indutivosnão formarãoumaprogressão,nemseráverdadequedois deles não podem ter o mesmo sucessor, pois 9 e 10 serão ambossucedidos pela classe nula (10 sendo ele mesmo a classe nula). É paraevitar catástrofes aritméticas como essa que precisamos do axioma dainfinidade.De fato, enquanto icamos satisfeitos com a aritmética dos números

integrais initos,enãointroduzimosnúmerosinteirosin initosnemclassesouséries in initas de números inteiros ou razões initas, é possível obtertodososresultadosdesejadossemoaxiomadain inidade.Istoé,podemoslidarcomaadição,amultiplicaçãoeaexponenciaçãodenúmerosinteirosinitosederazões,masnãopodemos lidarcomnúmeros inteiros in initosou com irracionais. Assim, a teoria do trans inito e a teoria dos númerosreais não nos ajudam. Devemos agora explicar como esses váriosresultadossãoobtidos.Admitindo que o número de indivíduos no mundo én, o número de

classes de indivíduos será 2n. Isso em virtude da proposição geralmencionada no Capítulo 8, segundo a qual o número de classes contidonuma classe que temnmembros é 2n. Ora 2n é sempre maior do quen.Portanto, o número de classes no mundo é maior que o número deindivíduos. Se supusermos agora que o número de indivíduos é 9, comoizemos há pouco, o número de classes será 2 9, isto é, 512. Logo, setomamosnossosnúmeroscomoaplicadosàcontagemdeclassesemvezdeà contagemde indivíduos, nossa aritmética será normal até chegarmos a512:oprimeironúmeroasernuloserá513.Eseavançarmosparaclassesde classes, faremos aindamelhor: o número delas será 2 512, um númerograndeapontodedesconcertarnossa imaginação,pois temcercade153dígitos.Eseavançarmosparaclassesdeclassesdeclasses,obteremosum

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número representado por 2 elevado a uma potência com cerca de 153dígitos;onúmerodedígitosnessenúmeroserácercade trêsvezes10 152.Numaépocadeescassezdepapelé indesejávelescrevertalnúmero,esequisermos númerosmaiores podemos irmais longe na hierarquia lógica.Dessa maneira, podemos fazer com que qualquer cardinal indutivodesignado encontre seu lugar entre os números que não são nulos,meramenteavançandopelahierarquiaporumadistânciasuficiente.1Notocantearazões, temosumestadodecoisasmuitosimilar.Paraque

uma razãoμ/ν tenha as propriedades esperadas, deve haver objetossu icientes do tipo, seja ele qual for, que esteja sendo contado, paraassegurarqueaclassenulanãointrometasubitamente.Masissopodeserassegurado, para qualquer razão μ/ν, sem o axioma da in inidade,meramenteavançandoumadistância su icientepelahierarquia acima. Senão conseguirmos isso contando indivíduos, podemos tentar contandoclassesde indivíduos;seaindanãoconseguirmos,podemos tentarclassesdeclasses,eassimpordiante.Emúltimaanálise,pormenosindivíduosquehaja no mundo, alcançaremos um estágio em que haverá muito mais doqueμ objetos, seja que número indutivoμ possa ser. Mesmo que nãohouvesseabsolutamentenenhumindivíduo, issoaindaseriaverdade,poishaveriaentãoumaclasse,asaber,aclassenula,duasclassesdeclasses(asaber,aclassenuladeclasseseaclassecujoúnicomembroseriaaclassenula de indivíduos), quatro classes de classes de classes, 16 no estágioseguinte,65.536noseguinte,eassimpordiante.Nenhumasuposiçãocomoo axioma da in inidade é, portanto, necessária para se alcançar qualquerrazãodadaouqualquercardinalindutivodado.É quando desejamos lidar com toda a classe ou série de cardinais

indutivos ou de razões que o axioma é necessário. Precisamos de toda aclassedecardinaisindutivosparaestabeleceraexistênciaden 0,edetodaa série para estabelecer a existência de progressões: para essesresultados,precisamossercapazesdefazerumaúnicaclasseousérieemque nenhum cardinal indutivo seja nulo. Precisamos de toda a série derazões em ordem de magnitude para de inir números reais comosegmentos: essa de inição não dará o resultado desejado amenos que asériederazõessejacompacta,oqueelanãopodeserseonúmerototalderazões,noestágioenvolvido,forfinito.Serianaturalsupor—comoeuprópriosupusoutrora—que,pormeio

deconstruçõestaiscomoasquetemosconsiderado,oaxiomadainfinidadepoderia serprovado. Pode-se dizer: suponhamos que o número de

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indivíduos én, ondenpodeser0semestragarnossoraciocínio;entãoseformarmos o conjunto completo de indivíduos, classes, classes de classesetc., todos tomados juntos,onúmerode termosem todoonossoconjuntoserá

n+2n+22n...aoinfinito,

que é n0. Assim, tomando todos os tipos de objetos juntos, e não noslimitando a objetos de nenhum tipo, obteremos certamente uma classein inita,eportantonãoprecisaremosdoaxiomadain inidade.Issoéoquesepoderiadizer.Mas,antesdeanalisaresseraciocínio,aprimeiracoisaaobservaréque

eledácerta impressãodeprestidigitação:algumacoisanos faz lembraromágicoquetiracoisasdochapéu.Ohomemqueemprestouochapéutemabsolutacertezadequenãohaviaumcoelhovivoneleantes,enãotemamenoridéiadecomoocoelhofoiparar lá.Assimtambémoleitor,setiverumsensoderealidaderobusto,sesentiráconvencidodequeéimpossívelproduzirumacoleção in initaapartirdeumacoleção initade indivíduos,mesmo que seja incapaz de dizer onde está a falha da construçãoapresentada. Seria um erro dar muita ênfase a essas impressões deprestidigitação;comooutrasemoções,elaspodemfacilmentenosenganar.Mas elas oferecem uma baseprima facie para se examinar com muitaatençãoqualquerraciocínioqueassuscite.Equandooraciocínioanteriorforexaminado,eleserevelará,naminhaopinião,falacioso,emborasetratedeumafaláciasutiledemodoalgumfácildeevitarcoerentemente.Afaláciaenvolvidaéaquepodeserchamada“confusãodetipos”.Para

explicar o assunto dos “tipos” por completo seria necessário um volumeinteiro; além disso, o objetivo deste livro é evitar aquelas partes dosassuntos que ainda continuam obscuras e controversas, isolando, para aconveniênciade iniciantes,asquepodemseraceitascomocorpori icandoverdades matematicamente veri icadas. Ora, a teoria dos tipos nãopertence,enfaticamente,àparteacabadaecertadenossoassunto:grandeparte dessa teoria continua incompleta, confusa e obscura. Mas anecessidade dealguma doutrina de tipo é menos duvidosa que a formaprecisaqueeladeveriaassumir;eemconexãocomoaxiomadain inidadeéparticularmentefácilveranecessidadedealgumadoutrina.Essa necessidade resulta, por exemplo, da “contradição do maior

cardinal”.VimosnoCapítulo8queonúmerodeclassescontidonumadadaclasseésempremaiordoqueonúmerodemembrosdaclasse,einferimos

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quenãoháomaiornúmerocardinal.Massepudéssemos,comosugerimosum momento atrás, somar numa classe os indivíduos, as classes deindivíduos,asclassesdeclassesde indivíduosetc.,obteríamosumaclassedaqualsuasprópriassubclassesseriammembros.Aclassequeconsistiriaemtodososobjetosquepodemsercontados,dequalquertipo,deve,parapoder existir, ter um número cardinal que seja o maior possível. Comotodasassuassubclassesserãomembrosdela,onúmerodesubclassesnãopodesermaiordoqueonúmerodemembros.Chegamos,portanto,aumacontradição.Quando cheguei pela primeira vez a essa contradição, em 1901, tentei

descobriralgumafalhanaprovadeCantordequenãoháomaiornúmerocardinal, quedemosnoCapítulo8.Aplicandoessaprova à suposta classede todos os objetos imagináveis, fui levado a uma nova e mais simplescontradição.Aclassecompletaqueestamosconsiderando,quedeveabarcartodasas

coisas, deve abarcar a si mesma como um de seus membros. Em outraspalavras, sehouveralgo como “todasas coisas”, então “todasas coisas” éalgumacoisaeémembrodaclassede“todasascoisas”.Masnormalmenteumaclassenãoémembrodesimesma.Ahumanidade,porexemplo,nãoéum homem. Formemos agora a reunião de todas as classes que não sãomembrosdesimesmas.Estaéumaclasse:elaémembrodesimesmaounão?Sefor,éumadasclassesquenãosãomembrosdesimesmas, istoé,não émembro de simesma. Se não, não é uma das classes que não sãomembros de si mesma, isto é, é membro de si mesma. Portanto as duashipóteses—istoé,queelaéequenãoémembrodesimesma—implicamambassuacontraditória.Issoéumacontradição.Não há di iculdade em produzir contradições similares ad libitum. A

soluçãodetaiscontradiçõespelateoriadostiposéformuladaemPrincipiaMathematica,2 e também,mais brevemente, emartigos dopresente autorn oAmerican Journal of Mathematics3 e naRevue de Metaphysique et deMorale.4Nomomento,umesboçodasoluçãodevebastar.A falácia consiste na formação do que podemos chamar classes

“impuras”, isto é, classes que não são puras em relação a “tipo”. Comoveremos num capítulo posterior, classes são icções lógicas, e umaa irmação que parece ser sobre uma classe só será signi icativa se forpassíveldetraduçãonumaformaemquenãosefaçanenhumamençãoàclasse.Issoimpõeumalimitaçãoaosmodoscomooquesãonominalmente,embora não na realidade, nomes para classes podem ocorrersigni icativamente: uma sentença ou conjunto de símbolos em que tais

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pseudonomesocorremdemaneiraserradasnãoéfalsa,masestritamentedesprovidadesentido.Asuposiçãodequeumaclasseé,oudequenãoé,membrodesimesmaédesprovidadesentidoexatamentedessamaneira.E,demaneiramaisgeral, suporqueumaclassede indivíduosémembro,ounãoémembro,deoutraclassedeindivíduosserásuporumabsurdo;econstruirsimbolicamentequalquerclassecujosmembrosnãosejamtodosdomesmograunahierarquialógicaéusarsímbolosdeumamaneiraqueostornanãomaissimbólicosdecoisaalguma.Assimsehouvern indivíduosnomundo,e2nclassesdeindivíduos,não

podemosformarumanovaclasse,consistindotantoemindivíduosquantoemclassesetendon+2nmembros.Dessamaneira,atentativadeescaparda necessidade do axioma da in inidade se frustra. Não pretendo terexplicado a doutrina dos tipos, ou ter feito mais que indicar,grosseiramente, por que há necessidadede tal doutrina.Meu objetivo foiapenas dizer o necessário para mostrar que não podemosprovar aexistênciadenúmeroseclassesin initosporessesmétodosdemágicoqueestivemos examinando. Restam, contudo, outros métodos possíveis, quedevemserconsiderados.Váriosraciocíniosqueprofessamprovaraexistênciadeclassesin initas

sãodadosemPrinciplesofMathematics,§339(p.357).Namedidaemqueesses raciocínios supõem que, sen for um cardinal indutivo,n não seráigual an + 1, já tratamos deles. Há um raciocínio, sugerido por umapassagemdeParmênidesdePlatão,segundooqualseháumnúmerocomo1,então1temexistência;mas1nãoéidênticoàexistênciae,portanto,1eexistência sãodois, e, portanto, háumnúmero como2,edois juntamentecom 1 e existência dão uma classe de trêsmembros, e assim por diante.Esse raciocínio é falacioso, emparte porque “existência” não é um termoque tenhaqualquer sentidode inido, e aindamaisporque, seumsentidode inidofosseinventadoparaele,veri icaríamosqueosnúmerosnãotêmexistência — eles são, de fato, o que é chamado “ icção lógica”, comoveremosquandopassarmosaconsideraradefiniçãodeclasse.Oraciocíniodequeonúmerodenúmerosde0a n(ambosincluídos)én

+1dependedasuposiçãodequeatéeincluindonnenhumnúmeroéiguala seu sucessor, o qual, como vimos, nem sempre será verdadeiro se oaxiomadain inidadeforfalso.Éprecisocompreenderqueaequaçãon=n+1,quepoderiaserverdadeiraparaum n initosenexcedesseonúmerototal de indivíduos no mundo, é muito diferente da mesma equação talcomo aplicada a um número re lexivo. Tal como aplicada a um númerore lexivo, ela signi icaque,dadaumaclasseden termos, essa classe será

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“similar” àquela obtida adicionando-se um outro termo. Mas tal comoaplicada a um número grande demais para omundo real, ela signi icarámeramentequenãohánenhumaclassedenindivíduos,enenhumaclasseden+1 indivíduos;elanãosigni icaque, sesubirmospelahierarquiadetipos o bastante para assegurar a existência de uma classe den termos,veri icaremos então que essa classe é “similar” àquela den + 1 termos,pois sen for indutivo esse não será o caso, de maneira absolutamenteindependentedaverdadeoufalsidadedoaxiomadainfinidade.Há um raciocínio empregado tanto por Bolzano 5 quanto por Dedekind6

para provar a existência de classes re lexivas. O raciocínio, em suma, é oseguinte:umobjetonãoéidênticoàidéiadoobjeto,mashá(pelomenosnoreinodoser)umaidéiadecadaobjeto.Arelaçãodeumobjetocomaidéiaé um-um, e as idéias são somente alguns entre os objetos. Portanto, arelação “idéiade” constitui um re lexode toda a classedosobjetosnumapartedesimesma,asaber,naquelapartequeconsisteemidéias.Assim,aclassedosobjetoseaclassedasidéiassãoambasin initas.Esseraciocínioéinteressante,nãosóemsimesmo,masporqueoserrosquecontém(ouoquejulgoseremerros)sãodeumtipoinstrutivo.Oprincipalerroconsisteemsuporqueháumaidéiadecadaobjeto.Éextremamentedi ícil,éclaro,decidir o que se deve entender por uma “idéia”; mas suponhamos quesabemos. Devemos então supor que, começando (digamos) com Sócrates,háa idéiadeSócrates,eassimpordianteadin initum.Ora, icaclaroqueesse não é o caso no sentido de que todas essas idéias têm existênciaempíricarealnamentedaspessoas.Alémdoterceirooudoquartoestágio,elas se tornam míticas. Para que o raciocínio se mantenha, as “idéias”invocadas devem ser idéias platônicas armazenadas no céu, poiscertamente não estão na Terra. Mas nesse caso torna-se imediatamenteduvidoso que tais idéias existam. Só poderíamos saber que elas existemcombaseemalgumateorialógicaqueprovassequeénecessárioqueparacada coisa exista uma idéia dessa coisa. Certamente não podemos obteresses resultados empiricamente, ou aplicá-lo, como o faz Dedekind, a“meineGedankenwelt”—omundodemeuspensamentos.Se estivéssemos interessados em examinar completamente a relação

entreidéiaeobjeto,teríamosdeencetarváriasinvestigaçõespsicológicaselógicas que não são relevantes para nosso principal objetivo.Mas algunspontos adicionais precisam ser destacados. Se “idéia” deve sercompreendida logicamente, ela pode ser idêntica ao objeto, ou poderepresentar umadescrição (no sentido a ser explicado num capítuloposterior).Noprimeirocaso,oraciocíniomalogra,poiseraessencialparaa

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prova dare lexividade que objeto e idéia fossem distintos. No segundocaso, o raciocínio também malogra, porque a relação entre objeto edescrição não é um-um: há inúmeras descrições corretas para qualquerobjeto dado. Por exemplo, Sócrates pode ser descrito como “omestre dePlatão”, ou como “o ilósofo que tomou cicuta”, ou como “o marido deXantipa”. Se— para tomar a hipótese que resta— devemos interpretar“idéia”psicologicamente,éprecisoa irmarquenãohánenhumaentidadepsicológica de inida que poderia ser chamadaa idéia do objeto: háinúmeras crenças e atitudes, cada uma das quais poderia ser chamadauma idéiadoobjetonosentidoemquepoderíamosdizer “minha idéiadeSócratesémuitodiferentedasua”,masnãohánenhumaentidadecentral(excetoopróprioSócrates)paraligarentresivárias“idéiasdeSócrates”e,portanto,nãoháessarelaçãoum-umentre idéiaeobjetoqueoraciocíniosupõe.Comojáobservamos,nãoétampoucopsicologicamenteverdadeiro,éclaro,quehajaidéias(pormaisextensoquesejaosentidodotermo)demais do que uma proporção minúscula das coisas no mundo. Por todasessas razões, esse raciocínio a favor da existência lógica de classesreflexivasdeveserrejeitado.Poder-se-iapensarque,oquequerquepossaserditosobreraciocínios

lógicos, os raciocíniosempíricos deriváveis do espaço e tempo, dadiversidade das cores etc. são inteiramente su icientes para provar aexistência realdeumnúmero in initodeparticulares.Nãoacreditonisso.Não tenho nenhuma razão, afora uma idéia preconcebida, para acreditarna extensão in inita do espaço e tempo, pelo menos no sentido em queespaço e tempo são fatos ísicos, não icções matemáticas. Naturalmenteencaramos espaço e tempo como contínuos, ou, pelo menos, comocompactos;mas isso é novamente sobretudo idéia preconcebida. A teoriadosquantana ísica,quersejaverdadeiraoufalsa, ilustrao fatodequeaísica não pode nunca fornecer prova decontinuidade, embora muitopossivelmente possa fornecer prova em contrário. Os sentidos não sãosu icientementeexatosparadistinguirentremovimentocontínuoerápidasucessãodiscreta,comoqualquerpessoapodedescobrirnumcinema.Ummundo em que todo movimento consistisse numa série de pequenossolavancos initos seria empiricamente indistinguível de um em que omovimento fosse contínuo. Tomaria espaço demais defender essas tesesadequadamente; por enquanto estou meramente sugerindo-as àconsideração do leitor. Se forem válidas, segue-se que não há razãoempírica para se acreditar que o número de particulares no mundo éin inito,equepossaseralgumdia;tambémnãohá,nomomento,nenhuma

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razão empírica para se acreditar que esse número é inito, embora sejateoricamente concebível que algum dia possa haver indícios apontando,aindaquenãoconclusivamente,nessadireção.Do fato de que o in inito não é contraditório, mas também não é

demonstrávellogicamente,devemosconcluirquenadapodeserconhecidoa priori com relação ao caráter inito ou in inito das coisas nomundo. Aconclusãoé,portanto,paraadotarafraseologialeibniziana,quealgunsdosmundos possíveis são initos, alguns são in initos, e não temos nenhummeio de saber a qual desses dois tipos nosso mundo real pertence. Oaxiomadainfinidadeseráverdadeiroemalgunsmundosefalsoemoutros;seéverdadeirooufalsonestemundo,nãotemoscomosaber.Ao longo deste capítulo os sinônimos “indivíduo” e “particular” foram

usados sem explicação. Seria impossível explicá-los adequadamente semumestudomais longoda teoriados tiposdoqueseriaapropriadoparaapresente obra, mas algumas palavras antes de deixarmos esse tópicopodem fazer algo para diminuir a obscuridade que de outro modoenvolveriaosignificadodessaspalavras.Numa a irmaçãocomum, podemos distinguir um verbo, que expressa

umatributoourelação,dosubstantivo,queexpressaosujeitodoatributoouostermosdarelação.“Césarviveu”confereumatributoaCésar;“BrutomatouCésar”expressaumarelaçãoentreBrutoeCésar.Usandoapalavra“sujeito”numsentidogeral,podemoschamartantoBrutoquantoCésardesujeitosdestaproposição:o fatodeBrutosergramaticalmenteo sujeitoeCésar o objeto é logicamente irrelevante, pois a mesma ocorrência podeserexpressapelaspalavras“CésarfoimortoporBruto”,emqueCésaréosujeitogramatical.Assim,no tipomais simplesdeproposição teremosumatributoourelaçãoválidaacercade,ouentre,um,doisoumais “sujeitos”nosentidoamplo.(Umarelaçãopodetermaisdedoistermos;porexemplo,“AdáBaC”éumarelaçãodetrêstermos.)Ora,ocorremuitasvezesque,num exame mais atento, veri ica-se que os sujeitos aparentes não sãorealmente sujeitos, sendo passíveis de análise; o único resultado disso,porém,équenovossujeitos tomamseus lugares.Acontece tambémqueoverbo possa ser gramaticalmente transformado em sujeito; por exemplo,podemos dizer: “Matar é uma relação válida entre Bruto e César.” Masnessescasosagramáticaéenganosa,enumaafirmaçãodireta,seguindoasregrasquedeveriamguiaragramáticafilosófica,BrutoeCésaraparecerãocomosujeitosematarcomooverbo.Somos assim levados à concepção de termos que, quando ocorrem em

proposições, podemocorrer somente como sujeitos, e nunca de qualquer

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outramaneira. Isso é parte da antiga de inição escolástica de substância;masapersistênciaaolongodotempo,quepertenciaaessanoção,nãofazparte de maneira alguma da noção em que estamos interessados.De iniremos“nomespróprios”comoaquelestermosquesópodemocorrercomosujeitos em proposições (usando “sujeito” no sentido ampliadoexplicadohápouco).Alémdisso,de iniremos“indivíduos”ou“particulares”como os objetos que podem ser nomeados por nomes próprios. (Seriamelhor de ini-los diretamente, em vez de fazê-lo por meio do tipo desímbolos pelos quais são representados;mas para fazer isso teríamosdemergulharmaisprofundamentenameta ísicadoqueédesejável aqui.)Épossível,éclaro,quehajaumretrocessointerminável:quetudoaquiloqueaparececomoumparticularrevele-serealmente,aumexamemaisatento,uma classe ou algum tipo de complexo. Se esse for o caso, o axioma dain inidade deve, é claro, ser verdadeiro. Mas se não for, deve serteoricamente possível para a análise atingir sujeitos últimos, e são essesque dão o sentido de “particulares” ou “indivíduos”. É ao número destesqueoaxiomadain inidadesupostamenteseaplica.Seissoforverdadeiroemrelaçãoaeles, seráverdadeiroemrelaçãoa classesdeles, ea classesde classes deles, e assim por diante; demaneira similar, se for falso emrelação a eles, será falso de um extremo ao outro dessa hierarquia. Énatural,portanto,enunciaroaxiomaemrelaçãoaelesenãoemrelaçãoaqualqueroutroestágionahierarquia.Parecenãohaver,contudo,nenhummétodoconhecidoparasesaberseoaxiomaéverdadeirooufalso.

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Capítulo14Incompatibilidadeeateoriadadedução

Já exploramos, é verdade que um pouco às pressas, aquela parte dailoso iadamatemáticaquenãoexigeumexamecríticoda idéiadeclasse.No capítulo anterior, contudo, vimo-nos diante de problemas que tornamtal exame imperativo. Antes que possamos empreendê-lo, devemosconsiderar certas outras partes da iloso ia da matemática que foramignoradas até este ponto. Num tratamento sintético, as partes de quetrataremos agora vêm antes: elas são mais fundamentais que qualquercoisa que tenhamos discutido até este momento. Três tópicos nosinteressarão antes que cheguemos à teoria das classes, a saber: (1) ateoria da dedução, (2) funções proposicionais, (3) descrições. Dessas, aterceira não é logicamente pressuposta na teoria das classes, mas é umexemplo mais simples dotipo de teoria necessário quando se lida comclasses. É o primeiro tópico, a teoria da dedução, que nos ocupará nessecapítulo.Amatemática éuma ciênciadedutiva: apartirde certaspremissas, ela

chega, por um processo estrito de dedução, aos vários teoremas que aconstituem. É verdade que, no passado, deduções matemáticas muitasvezescareciamgravementederigor;étambémverdadequerigorperfeitoé um ideal quase inatingível. No entanto, namedida emque falta rigor auma provamatemática, ela é defeituosa; é inútil insistir em que o sensocomummostra que o resultado está correto, pois se devêssemos con iarnisso,seriamelhorprescindirporcompletodoraciocíniodoquerecorrerauma falácia para salvar o senso comum.Nenhum apelo aosenso comum,ouà “intuição”, ouaqualquer coisaexceto lógicadedutivaestritadeveriasernecessárioemmatemáticadepoisqueaspremissasforamformuladas.Kant,apósobservarqueosgeômetrasdeseu temponãoeramcapazes

deprovarseus teoremasunicamentepormeioderaciocínio,exigindoumapelo à igura, inventou uma teoria do raciocínio matemático segundo aquala inferêncianuncaéestritamente lógica,exigindosempreoapoiodachamada “intuição”. Toda a tendência da matemática moderna, com suamaior busca de rigor, foi contra essa teoria kantiana. As coisas namatemáticadaépocadeKantquenãopodemserprovadas,nãopodemser

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conhecidas — por exemplo o axioma das paralelas. O que pode serconhecido, na matemática e por métodos matemáticos, é o que pode serdeduzido da lógica pura. As demais coisas que devem pertencer aoconhecimento humano devem ser veri icadas de outra maneira —empiricamente, por intermédio dos sentidos ou de alguma forma deexperiência, mas nãoa priori. Os fundamentos positivos para essa tesepodem ser encontrados emPrincipia Mathematica, passim; uma defesacontroversadela édadanosPrinciplesofMathematics.Nãopodemosaquifazermaisdoqueremeteroleitoraessasobras,umavezqueoassuntoédemasiado vasto para um tratamento apressado. Enquanto isso,suporemos que toda matemática é dedutiva e prosseguiremos parainvestigaroqueestáenvolvidonadedução.Na dedução, temos uma ou mais proposições chamadaspremissas, a

partir das quais inferimos uma proposição chamadaconclusão. Paranossos objetivos, será conveniente, quando houver originalmente váriaspremissas, amalgamá-las numa única proposição, de modo a poder falard’a premissa bem como d’a conclusão. Assim podemos considerar adeduçãocomoumprocessopeloqualpassamosdoconhecimentodeumacerta proposição, a premissa, ao conhecimento de uma certa outraproposição, a conclusão. Mas nãoconceberemos semelhante processocomodeduçãológicaamenosqueelesejacorreto,istoé,amenosquehajaentre premissa e conclusão uma relação tal que tenhamos direito deacreditar na conclusão se soubermos que a premissa é verdadeira. Éespecialmenteessarelaçãoqueteminteressenateorialógicadadedução.Para sermos capazes de inferir validamente a verdade de uma

proposição, devemos saber que alguma outra proposição é verdadeira, equehá entre as duas uma relaçãodo tipo “implicação”, isto é, que (comodizemos) a premissa “implica” a conclusão. (De iniremos essa relação embreve.)Ouainda,podemossaberquecertaoutraproposiçãoéfalsa,equeháumarelaçãoentreasduaschamada“disjunção”,expressapor“ pouq”,1de talmodo que o conhecimento de que uma é falsa nos permite inferirqueaoutraéverdadeira.Assimtambémoquedesejamosinferirpodeserafalsidadedeumaproposição,nãosuaverdade.Issopodeserinferidodaverdadedeumaoutraproposição,contantoquesaibamosqueasduassão“incompatíveis”, istoé,queseumaéverdadeira, aoutraé falsa.Elapodetambém ser inferida da falsidade de uma outra proposição, exatamentenas mesmas circunstâncias em que a verdade da outra poderia ter sidoinferida da verdade de um, isto é, da falsidade dep podemos inferir afalsidade deq quandoq implicap. Todos essesquatro casos são casosde

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inferência. Quando nossas mentes estão ixadas na inferência, parecenatural tomar a “implicação” como a relação fundamental primitiva, vistoqueessaérelaçãoquedevevigorarentre peqparaquepossamosinferiraverdade deq daverdade dep. Por razões técnicas, porém, essa não é amelhoridéiaprimitivaaescolher.Antesdepassamosaidéiasprimitivasede inições, consideremos mais extensamente as várias funções dasproposiçõessugeridaspelasrelaçõesdeproposiçõesmencionadas.A mais simples dessas funções é a negativa, “não-p”. Essa é aquela

função dep que é verdadeira quandop é falso, e falso quandop éverdadeiro.Éconvenientefalardaverdadedeumaproposição,oudesuafalsidade, como seu “valor de verdade”2 isto é,verdade é o “valor deverdade”deumaproposição verdadeira, e falsidade é o valorde verdadedeumaproposiçãofalsa.Assimnão-ptemovalordeverdadeopostoap.Podemostomaremseguidaadisjunção,“pouq”.Essaéumafunçãocujo

valordeverdadeéverdadequandopéverdadeiroe tambémquandoqéverdadeiro,maséfalsidadequandopeqsãoambosfalsos.Emseguidapodemostomaraconjunção,“peq”.Essatemaverdadepor

seuvalordeverdadequandopeqsãoambosverdadeiros;deoutromodotemfalsidadeporseuvalordeverdade.Tomemos em seguida a incompatibilidade, isto é, “p eq não são ambos

verdadeiros”. Isso é a negação de uma conjunção; é também a disjunçãodasnegaçõesdep eq, ou seja,é “não-pounão-q”.Seuvalordeverdadeéverdade quandop é falso e igualmente quandoq é falso; seu valor deverdadeéfalsidadequandopeqsãoambosverdadeiros.Porúltimo tomemosaimplicação, istoé,“p implicaq” ou “sep, entãoq”.

Isso deve ser compreendido no sentido mais amplo que nos permitiráinferior a verdade deq se conhecermos a verdade dep. Assim, nós ainterpretamos como tendo o sentido: “a menos quep seja falso,q éverdadeiro”,ou“oupéfalsoouqéverdadeiro”.(Ofatode“implicar”poderter outros sentidos não nos interessa; esse é o sentido conveniente paranós.)Istoé,“pimplicaq”devesigni icar“não-pouq”:seuvalordeverdadeseráverdadesepforfalso,igualmenteseqforverdadeiro,eseráfalsidadesepforverdadeiroeqforfalso.Temos, portanto, cinco funções: negação, disjunção, conjunção,

incompatibilidade e implicação. Poderíamos ter acrescentado outras, porexemplo, “falsidade conjunta, “não-p e não-q”,mas as cinco apresentadasserãosu icientes.Anegaçãodiferedasoutrasquatroporseruma funçãodeuma proposição, ao passo que as outras quatro são funções de duas.Mas todas as cinco se assemelham nisto: seu valor de verdade depende

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unicamentedodasproposiçõesquesãoseusargumentos.Dadaaverdadeou falsidade dep, ou dep eq (conforme o caso), podemos saber daverdade ou falsidade da negação, disjunção, conjunção, incompatibilidadeou implicação. Uma função de proposições que tem essa propriedade échamada“funçãodeverdade”.Todoosigni icadodeumafunçãodeverdadeéesgotadopelaa irmação

dascircunstânciasemqueelaéverdadeiraoufalsa.“Não- p”,porexemplo,é simplesmente aquela função dep que é verdadeira quandop é falso, efalsa quandop é verdadeiro: nenhum sentido adicional lhe pode seratribuído.Omesmose aplica a “p ouq” e ao restante. Segue-se queduasfunções de verdade que têm o mesmo valor de verdade para todos osvaloresdoargumentosãoindistinguíveis.Porexemplo,“peq”éanegaçãode “nãop ou não-q” e vice-versa; assim, qualquer um dos dois pode serdefinido como a negação do outro. Não há nenhum signi icado adicionalnumafunçãodeverdadealémdascondiçõesnasquaiselaéverdadeiraoufalsa.É claro que as cinco funções de verdade mencionadas não são todas

independentes.Podemosde inir algumasdelasem termosdeoutras.Nãohágrandedi iculdadeemreduzir seunúmeroaduas;asduasescolhidase mPrincipia Mathematica são a negação e a disjunção. A implicação éentão de inida como “não-p ouq”; aincompatibilidade como “não-p ounão-q”; a conjunção como a negação da incompatibilidade. Mas foimostradoporSheffer3quepodemosnoscontentarcomumaidéiaprimitivadetodasascinco,eporNicod4queissonospermitereduzirasproposiçõesprimitivasrequeridasnateoriadadeduçãoadoisprincípiosnãoformaiseum formal. Para esse propósito, podemos tomar como nosso únicoinde inívelouaincompatibilidadeouafalsidadeconjunta.Escolheremosaprimeira.Nossa idéia primitiva, agora, é uma certa função de verdade chamada

“incompatibilidade”, que denotaremos por p/q. A negação pode serde inidadeimediatocomoaincompatibilidadedeumaproposiçãoconsigomesma,i.e. “não-p”éde inidocomop/p.Adisjunçãoéa incompatibilidadedenão-penão-q,istoé,é(p/p)(q/q).Aimplicaçãoéaincompatibilidadedepenãoq,istoé,p|(q/q).Aconjunçãoéanegaçãodaincompatibilidade,ouseja, é (p/q) | (p/q). Assim todas as nossas quatro outras funções sãodefinidasemtermosdeincompatibilidade.Éóbvioquenãohá limiteparaaproduçãode funçõesdeverdade,seja

introduzindo mais argumentos ou repetindo argumentos. O que nosinteressaéaconexãodesseassuntocominferência.

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Se sabemos quep é verdade e quep implicaq, podemos avançar ea irmarq. A inferência envolve sempre, inevitavelmente, algo depsicológico:éummétodopeloqualchegamosanovoconhecimento,eoquehá nela de não-psicológico é a relação que nos permite inferircorretamente;masapassagemrealdaasserção p paraa asserçãodeq éumprocessopsicológico,enãodevemosprocurarrepresentá-loemtermospuramentelógicos.Na prática matemática,quando inferimos, temos sempre alguma

expressãoquecontémproposiçõesvariáveis,digamosp eq,quesabemos,em virtude de sua forma, ser verdadeira para todos os valores de p eq;temos também alguma outra expressão, parte da primeira, que tambémsabemosserverdadeirapara todososvaloresde p eq; e emvirtudedosprincípiosdeinferência,somoscapazesdeabandonaressapartedenossaexpressão original e a irmar o que resta. Essa explicação um poucoabstratapodeserelucidadamediantealgunsexemplos.Suponhamos que conhecemos os cinco princípios formais da dedução

enumerados emPrincipiaMathematica. (M. Nicod os reduziu a um, mascomoessaéumaproposiçãocomplicada,começaremoscomoscinco.)Sãoasseguintes:(1)“p oup” implicap— isto é, se oup é verdadeiro oup é verdadeiro,

entãopéverdadeiro.(2)qimplica“pouq”—istoé,adisjunção“pouq”éverdadeiraquando

umadesuasalternativasforverdadeira.(3)“pouq”implica“qoup”.Issonãoserianecessáriosetivéssemosuma

notação teoricamentemais perfeita, visto que na concepção de disjunçãonão há ordem envolvida, demodo que “p ouq” e “q oup” deveriam seridênticos. Mas como nossos símbolos, e qualquer forma conveniente,introduzem inevitavelmente uma ordem, precisamos de suposiçõesadequadasparamostrarqueaordeméirrelevante.(4) Se oup é verdadeiro ou “q our” é verdadeiro, então ouq é

verdadeiro ou “p our” é verdadeiro. (A obliqüidade dessa proposiçãoserveparaaumentarseupoderdedutivo.)(5)Seqimplicar,então“pouq”implica“pour”.Esses são os princípiosformais da dedução empregados emPrincipia

Mathematica.Umprincípioformaldededuçãotemumduplouso,eéparadeixarissoclaroquecitamosascincoproposiçõesanteriores.Temumusocomoapremissadeumainferência eumusoaoestabelecerofatodequeapremissa implica uma conclusão.No esquemade uma inferência temosumaproposiçãop,eumaproposição“pimplicaq”,daqualinferimosq.Ora,

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quandoestamosinteressadosnosprincípiosdededução,nossoaparatodeproposições primitivas deve produzir tanto op quanto o “p implicaq” denossasinferências.Istoé,nossasregrasdededuçãodevemserusadas nãosomente como regras , que é seu uso para estabelecer que “p implicaq”,mastambém como premissas substantivas, isto é, como op de nossoesquema. Suponhamos, por exemplo, que desejemos provar que sepimplicaq, então seq implicar, segue-se quep implicar. Temos aqui umarelaçãodetrêsproposiçõesqueafirmamimplicações.Ponhamos

p1=pimplicaq,p2=qimplicar,ep3=pimplicar.

Temosentãodeprovarquep1 implica quep2 implicap3.Agoratomemosoquinto de nossos princípios citados, substituamosp pornão-p, lembrandoque “não-p ouq” é o mesmo que “p implicaq”. Assim, nosso quintoprincípioproduz:

“Seqimplicar,então‘pimplicaq’implica‘pimplicar’”,istoé,“p2 implicaquep1implicap3.”ChamemosissodeproposiçãoA.

Masoquartodenossosprincípios,quandosubstituímosnão–penão–porpeq,elembramosadefiniçãodeimplicação,torna-se:

“Sepimplicaqueqimplicar,entãoqimplicaquepimplicar.”

Escrevendop2 no lugar dep,p1 no lugar deq, ep3 no lugar der, isso setorna:

“Sep2 implica quep1 implicap3, entãop1 implica quep2 implicap3.”ChamemosistoB.

Provamosagorapormeiodenossoquintoprincípioque

“p2implicaquep1implicap3”,queéoquechamamosA.

Temos assim aqui um caso do esquema de inferência, visto que Arepresenta op de nosso esquema, e B representa o “p implicaq”.Chegamos,portanto,aq,asaber,

“pimplicaquep2implicap3”.

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o que era a relação a ser provada. Nessa prova, a adaptação de nossoquintoprincípio,queproduzA,ocorrecomoumapremissasubstantiva;aopasso que a adaptação de nosso quarto princípio, que produzB, é usadapara dar a forma da inferência. Os empregos formais e materiais depremissasna teoriadasdeduções são estreitamente interligados, e não émuitoimportantemantê-losseparados,contantoquecompreendamosquesãodistintosemteoria.Ométodomaisprimitivode chegaranovos resultadosapartirdeuma

premissa está ilustrado na dedução apresentada, mas essamal pode elaprópriaserchamadadedução.Asproposiçõesprimitivas,sejamelasquaisforem, devem ser consideradas a irmadas para todos os valores dasproposições variáveisp, q, r que ocorrem nelas. Podemos, portanto,substituir(digamos)pporqualquerexpressãocujovalorsejasempreumaproposição,porexemplo,não-p, “s implicat”,eassimpordiante.Pormeiodessas substituições obtemos realmente conjuntos de casos especiais denossaproposiçãooriginal,masdeumpontodevistapráticooqueobtemosde fato são novas proposições. A legitimidade de substituiçõesdesse tipotemdeserasseguradapormeiodeumprincípionão-formaldeinferência.5PodemosagoraformularoúnicoprincípioformaldeinferênciaaqueM.

Nicod reduziu os cinco dados anteriores. Para esse propósito, vamosprimeiromostrarcomocertasfunçõesdeverdadepodemserde inidasemtermosdeincompatibilidade.Jávimosque

p|(q/q)significa“pimplicaq”

Observamosagoraque

p|(q/r)significa“pimplicatantoqquantor”.

Poisessaexpressãosigni ica“péincompatívelcomaincompatibilidadedeqer”,istoé,“pimplicaqueqernãosãoincompatíveis”,ouseja,“p implicaqueqersãoambosverdadeiros”—pois,comovimos,aconjunçãodeqeréanegaçãodesuaincompatibilidade.Observemos em seguida quet | (t/t) signi ica “t implica a si mesmo”.

Esseéumcasoparticulardep|(q/q).Vamosescreverp–paraanegaçãodepassimp/ssigni icaráanegação

dep/s—,istoé,significaráaconjunçãodepes.Segue-seque

(s/q)|p/s—

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expressa a incompatibilidadedes/q com a conjunção dep es; em outraspalavras,a irmaquesepesforemambosverdadeiros, s/qéfalso,ouseja,seqsãoambosverdadeiros;empalavrasaindamaissimples,a irmaque pesconjuntamenteimplicamseqconjuntamente.

Agora,ponhamosP=p|(q/r),π=t|(t/t)Q=(s/q)|p/s—.

OúnicoprincípioformaldededuçãodeM.Nicodéentão

P|π/Q

emoutraspalavras,PimplicatantoπquantoQ.Além disso, ele emprega um princípio não-formal pertencente à teoria

dos tipos (que não precisa nos preocupar), e um correspondente aoprincípiosegundooqual,dadop,edadoquep implicaq,podemosa irmarq.Esseprincípioé

“Sep|(r/q)forverdadeiro,epforverdadeiro,entãoqéverdadeiro.”Desseaparatosegue-setodaateoriadadedução,excetonamedidaem

que estamos interessados na dedução a partir ou para a existência daverdade universal de “funções proposicionais”, que consideraremos nopróximocapítulo.Há, se não me engano, certa confusão nas mentes de alguns autores

quanto à relação entre proposições em virtude da qual uma inferência éválida.Paraquepossaserválido inferirq dep, énecessárioapenasquepsejaverdadeiroequeaproposição “não- p ouq” seja verdadeira. Semprequeesseforocaso,estáclaroqueqdeveserverdadeiro.Masainferênciasó ocorrerá de fato quando a proposição “não- p ouq” for conhecida deoutra maneira que não por meio do conhecimento de não-p ou doconhecimento deq. Sempre quep for falso, “não-p ouq” seráverdadeiro,masé inútil paraa inferência, que requerque p seja verdadeiro. Sempreque já sabemosqueq éverdadeiro, sabemos também,éclaro,que“não- pouq”éverdadeiro,masnovamenteissoéinútilparaainferência,umavezqueq já é conhecido e, portanto, não precisa ser inferido. De fato, ainferênciasósurgequando“não-pouq”podemserconhecidossemquejásaibamosqualdasduasalternativastornaadisjunçãoverdadeira.Ora,ascircunstâncias em que isso ocorre são aquelas em que existem certas

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relações de forma entrep eq. Por exemplo, sabemos que ser implica anegação des, entãos implica a negação der. Entre “r implica não-s” e “simplica não-r”, há uma relação formal que nos permite saber que aprimeiraimplicaasegunda,semprecisarsaberprimeiroqueaprimeiraéfalsaouqueasegundaéverdadeira.Énessascircunstânciasquearelaçãodeimplicaçãotemutilidadepráticaparaseextrairinferências.Masessarelaçãoformalsóérequeridaparaquepossamossercapazes

d esaber que ou a premissa é falsa ou a conclusão é verdadeira. É averdadede“não-p ouq” que é requerida para a validade da inferência; oqueérequeridoadicionalmenteérequeridoapenasparaaexeqüibilidadeprática da inferência. O professor C.I. Lewis 6 estudou especialmente arelação mais estreita, formal, que podemos chamar “dedutibilidadeformal”. Ele insiste em que a relação mais ampla, aquela expressa por“não-p ouq”, não deveria ser chamada “implicação”. Isso é, contudo, umaquestão de palavras. Contanto que nosso uso das palavras seja coerente,pouco importacomoasde inamos.Opontoessencialdediferençaentreateoria que eu defendo e a defendida pelo professor Lewis é este: elesustenta que, quando uma proposiçãoq é “formalmente dedutível” deoutrap,arelaçãoquepercebemosentreelaséumarelaçãoqueelechama“implicação estrita”, que não é a relação expressa por “não- p ouq”, masuma relaçãomais estreita, que vigora apenas quandohá certas conexõesformais entrep eq. Eu sustento que, quer essa relação de que ele falaexista ou não, ela é de todomodo uma relação de que amatemática nãoprecisa e, portanto, uma relaçãoque, por razões gerais de economia, nãodeveriaseradmitidaemnossoaparatodenoçõesfundamentais;que,sejaqual for a relação de “dedutibilidade formal” que vigore entre duasproposições, ocorre que podemos ver ou que a primeira é falsa ou asegunda verdadeira, e que não precisamos admitir em nossas premissasnada além desse fato; e que, inalmente, as razões de detalhe que oprofessor Lewis aduz contra a idéia que defendo podem ser todasrefutadas em detalhe, e dependem, para sua plausibilidade, de umasuposição oculta e inconsciente do ponto de vista que rejeito. Concluo,portanto, que não há nenhuma necessidade de admitir como noçãofundamentalnenhumaformaouimplicaçãonãoexprimívelcomofunçãodeverdade.

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Capítulo15Funçõesproposicionais

Quando discutimos proposições, no capítulo anterior, não tentamos daruma de inição da palavra “proposição”. Embora ela não possa serformalmente de inida, é necessário dizer alguma coisa sobre seusigni icado, de modo que evite a confusão muito comum com “funçõesproposicionais”,queserãootópicodessecapítulo.Entendemos principalmente por “proposição” uma forma de palavras

que expressa o que é ou verdadeiro ou falso. Digo “principalmente”porque não desejo excluir outros símbolos que não os verbais, ou atémeros pensamentos, se tiverem um caráter simbólico. Mas penso que apalavra“proposição”deveriaser limitadaaoquepode,emalgumsentido,serchamado“símbolos”e,ademais,asímbolostaisquedêemexpressãoaverdadeefalsidade.Dessemodo,“doisedoissãoquatro”e“doisedoissãocinco” serãoproposições, eassim tambémserá “Sócrateséumhomem”e“Sócratesnãoéumhomem”.Aa irmação:“Nãoimportaquenúmeros aebpossam ser, (a +b)2 = a2 + 2ab + b2” é uma proposição; mas a simplesfórmula “(a +b)2 = a2 + 2ab + b2” sozinha não é, já que nada a irma dede inido, amenos que, ademais, sejamos informados, ou levados a supor,quea eb devem ter todos os valores possíveis, ou devem ter tais e taisvalores. A primeira dessas coisas é tacitamente admitida, em regra, naenunciação de fórmulas matemáticas, que assim se tornam proposições;mas se nenhuma admissão desse tipo fosse feita, elas seriam “funçõesproposicionais”.Uma“funçãoproposicional”,defato,éumaexpressãoquecontémumoumaisconstituintesindeterminados,taisque,quandovaloressãoatribuídosaessesconstituintes,aexpressãosetornaumaproposição.Emoutraspalavras,éumafunçãocujosvaloressãoproposições.Masessaúltima de inição deve ser usada com cautela. Uma função descritiva, porexemplo, “a mais di ícil proposição no tratado de matemática de A”, nãoserá uma função proposicional, embora seus valores sejam proposições.Nesse caso, porém, as proposições são apenas descritas: numa funçãoproposicional,osvaloresdevemrealmenteenunciarproposições.É fácil dar exemplos de funções proposicionais: “x é humano” é uma

função proposicional; enquantox permanecer indeterminado, não é nem

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verdadeira nem falsa,mas quando um valor for atribuído a x, se tornaráuma proposição verdadeira ou falsa. Toda equação matemática é umafunçãoproposicional. Enquanto as variáveis não tiveremvalor de inido, aequação émeramente uma expressão à espera de determinação para setornarumaproposiçãoverdadeiraou falsa.Se forumaequaçãocontendoumavariável,torna-severdadeiraquandoavariáveléigualadaaumaraizda equação; de outro modo torna-se falsa; mas se for uma “identidade”,seráverdadeiraquandoavariável forqualquernúmero.Aequaçãoparauma curva num plano ou para uma super ície no espaço é uma funçãoproposicional,verdadeiraparavaloresdascoordenadasquepertencemapontosnacurvaounasuper ície,falsaparaoutrosvalores.Expressõesdelógicatradicionalcomo“todoAéB”sãofunçõesproposicionais:AeBtêmde serdeterminados comoclassesde inidas antesque tais expressões setornemverdadeirasoufalsas.A noção de “casos” ou “exemplos” depende de funções proposicionais.

Considere, por exemplo, o tipodeprocesso sugeridopeloque é chamado“generalização”, e tomemos um exemplo muito primitivo, digamos “orelâmpagoéseguidopelotrovão”. Temosumasériede“casos”disso,istoé,um número de proposições tais como: “Isso é um relâmpago e ele éseguidoporum trovão.” Essas ocorrências são “casos” dequê? São casosdafunçãoproposicional:“Sexéumrelâmpago,xéseguidoporumtrovão.”O processo de generalização (em cuja validade felizmente não estamosinteressados) consiste em passar de um número desses casos à verdadeuniversal da função proposicional: “Sex é um relâmpago,x é seguido porumtrovão.”Veri icaremosque,demaneiraanáloga,funçõesproposicionaisestãosempreenvolvidasquandoquerquefalemosdecasosouexemplos.Não precisamos perguntar “Que é uma função proposicional?”, nem

tentarresponderaessapergunta.Umafunçãoproposicional isoladapodesertomadaporummeroesquema,umameracasca,umreceptáculovazioparasigni icado,nãoalgojásigni icativo.Estamosinteressadosemfunçõesproposicionais num sentido amplo de duas maneiras: primeiro, comoenvolvidas nas noções “verdadeiro em todos os casos” e “verdadeiro emalguns casos”; segundo, comoenvolvidasna teoriadas classes e relações.Adiaremos o segundo desses tópicos para um capítulo posterior; oprimeirodeveránosocuparagora.Quando dizemos que algo é “sempre verdadeiro” ou “verdadeiro em

todos os casos” é claro que o “algo” envolvido não pode ser umaproposição. Uma proposição é simplesmente verdadeira ou falsa, e maisnada.Nãoháexemplosoucasosde“Sócrateséumhomem”ou“Napoleão

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morreuemSantaHelena”.Essassãoproposições,eseriasemsentidodizerque sãoverdadeiras “em todosos casos”.Essaexpressão sóé aplicável afunções proposicionais.Tomemos,por exemplo, oque sedizmuitasvezesquando se discute causação. (Não estamos interessados na verdade oufalsidadedoqueédito,masunicamenteemsuaanáliselógica.)Dizem-nosqueAé,emtodososcasos,seguidoporB.Ora,sehá“casos”deA,Adeveseralgumconceitogeralsobreoqualé signi icativodizer“x1éA”,“ x2éA”,“x3éA”,eassimpordiante,emque x1,x2,x3sãoparticularesnãoidênticosuns aos outros. Isso se aplica, por exemplo, a nosso caso anterior dorelâmpago.Dizemos que relâmpago (A) é seguido por trovão (B).Mas osdiferentes clarões são particulares, não idênticos, embora partilhem apropriedadecomumdeseremrelâmpagos.Geralmenteaúnicamaneiradeexpressarumapropriedadecomumédizerqueumapropriedadecomumde vários objetos é uma função proposicional que se torna verdadeiraquando qualquer um desses objetos é tomado como o valor da variável.Aqui, todos os objetos são “casos” da verdadeda funçãoproposicional—pois uma função proposicional, embora não possa ser ela mesmaverdadeira ou falsa, é verdadeira em certos casos e falsa em outros, amenos que seja “sempre verdadeira” ou “sempre falsa”. Quando, pararetornaranossoexemplo,dizemosqueAéemtodososcasosseguidoporB,queremosdizerque,qualquerquesejax,sexforumAeleseráseguidoporB;istoé,estamosa irmandoquecertafunçãoproposicionalé“sempreverdadeira”.A interpretação de sentenças que envolvam palavras como “todos”,

“cada”, “um”, “o”, “alguns” requer funções proposicionais. O modo comofunçõesproposicionaisocorrempodeserexplicadopormeiodeduasdaspalavrascitadas,asaber,“todos”e“alguns”.Emúltimaanálise,apenasduascoisaspodemserfeitascomumafunção

proposicional:umaéafirmarqueéverdadeiraemtodososcasos;aoutraéa irmar que é verdadeira em pelo menos um caso, ou emalguns casos(como diremos, supondo que não deva haver nenhuma implicaçãonecessáriadeumapluralidadedecasos).Todososoutrosusosdasfunçõesproposicionais podem ser reduzidos a esses dois. Quando dizemos queuma funçãoproposicional é verdadeira “em todos os casos”, ou “sempre”(como diremos também, sem nenhuma sugestão temporal), queremosdizerquetodososseusvaloressãoverdadeiros.Se“ øx”forafunção,eaotipocorretodeobjetoparaserumargumentopara“ øx”,então øxdeveserverdadeiro,nãoimportacomoatenhasidoescolhido.Porexemplo,“seaé

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humano,aémortal”éverdadeiroquerasejahumanoounão;defato,todaproposiçãodessaformaéverdadeira.Assim,afunçãoproposicional“se xéhumano,x é mortal” é “sempre verdadeira” ou “verdadeira em todos oscasos”. Ora, a a irmação “não existem unicórnios” é o mesmo que aa irmação“afunçãoproposicional ‘xnãoéumunicórnio’éverdadeiraemtodososcasos”.Asasserçõesfeitasnocapítuloanteriorsobreproposições,por exemplo, “p ouq’ implica ‘q oup”, sãona realidadeasserçõesdequecertas funções proposicionais são verdadeiras em todos os casos. Nãoa irmamosqueesseprincípio, por exemplo, é verdadeiro somente acercadesse ou daquelep ouq particular, mas que é verdadeiro acerca dequalquer p ouq com relação ao qual possa ser formulado de maneirasigni icativa.Acondiçãodequeumafunçãodevesersignificativaparaumdadoargumentoé igualàcondiçãodequedeveterumvalorparaaqueleargumento, seja verdadeiro ou falso. O estudo das condições designi icaçãopertenceàdoutrinados tipos,quenãoexploraremosalémdoesboçodadonocapítuloanterior.Nãosóosprincípiosdadedução,mastodasasproposiçõesprimitivasda

lógica, consistem em asserções de que certas funções proposicionais sãosempre verdadeiras. Se esse não fosse o caso, elas teriam demencionarcoisas ou conceitos particulares — Sócrates ou vermelhidão, ou leste eoeste, ou seja o que for—, e claramente não é da competência da lógicafazer asserções verdadeiras com relação a tal coisa ou conceito,mas nãocomrelaçãoataloutra.Épartedadefiniçãodalógica(masnãoatotalidadedesuade inição)quetodasassuasproposiçõessãocompletamentegerais,isto é, todas consistemna asserçãodequeuma funçãoproposicionalquenãocontémnenhumtermoconstanteésempreverdadeira.Retornaremosem nosso capítulo inal à discussão de funções proposicionais que nãocontêm nenhum termo constante. Por ora, passaremos à outra coisa quepode ser feita comuma função proposicional, a saber, a asserção de queela“àsvezeséverdadeira”,istoé,verdadeiraempelomenosumcaso.Quandodizemos “háhomens”, isso signi icaque a funçãoproposicional

“x é umhomem”às vezes é verdadeira.Quandodizemos “algunshomenssãogregos”,issosigni icaqueafunçãoproposicional“ xéhomemegrego”àsvezeséverdadeira.Quandodizemos“canibaisaindaexistemnaÁfrica”,isso signi ica que a função proposicional “x é um canibal atualmente naÁfrica”éàsvezesverdadeira,ouseja,éverdadeiraparaalgunsvaloresdex. Dizer “há pelo menosn indivíduos no mundo” é dizer que a funçãoproposicional“αéumaclassedeindivíduosemembrodonúmerocardinaln”àsvezeséverdadeira,ou,comotambémpoderíamosdizer,éverdadeira

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para certos valores deα. Essa forma de expressão é mais convenientequando é necessário indicar qual é o constituinte variável que estamostomandocomoargumentoparanossafunçãoproposicional.Porexemplo,afunção proposicional citada, que podemos abreviar para “ α é uma classeden indivíduos”, contémduasvariáveis,α en.Oaxiomada in inidade,nalinguagemdas funçõesproposicionais,é: “A funçãoproposicional ‘se n forum número indutivo, será verdadeiro para alguns valores de α queα éuma classe den indivíduos’ será verdadeira para todos os valorespossíveis den.” Aqui há uma função subordinada, “α é uma classe denindivíduos”, que dizemos seràs vezes verdadeira com relação a α; edizemosqueaasserçãodequeissoacontecesenforumnúmeroindutivoésempreverdadeiracomrelaçãoan.Aa irmaçãodequeumafunçãoøxésempreverdadeiraéanegaçãoda

a irmação que não-øx às vezes é verdadeira, e a a irmação de que øx àsvezes é verdadeira é a negação da a irmação de que não-øx ésempreverdadeira.Assim,aa irmação“todososhomenssãomortais”éanegaçãoda a irmação de que a função “x é um homem imortal” às vezes éverdadeira. E a a irmação de que “existem unicórnios” é a negação daa irmaçãodequea função “x não é umunicórnio” é sempre verdadeira. 1Dizemos queøx “nunca é verdadeiro” ou “é sempre falso” se não- øx forsempre verdadeiro. Podemos, se quisermos, tomar um do par “‘sempre’,‘àsvezes’”comouma idéiaprimitiva,ede iniraoutrapormeiodeumaeda negação. Assim, se escolhemos “às vezes” como nossa idéia primitiva,podemos de inir: “‘øx é sempre verdadeiro’ deve signi icar ‘é falso quenão-øx seja às vezes verdadeiro’”. 2 Por razões ligadas à teoria dos tipos,porém, parece mais correto tomar “sempre” e “às vezes” como idéiasprimitivas e de inir por meio delas a negação de proposições em queocorrem. Isto é, supondo que já de inimos (ou adotamos como idéiaprimitiva)anegaçãodeproposiçõesdotipoaquexpertence,de inimos:“Anegaçãode“øxsempre”é“não-øxàsvezes”;eanegaçãode“øxàsvezes”é“não-øx sempre”. Demaneira semelhante, podemos rede inir disjunção eoutras funções de verdade, tal como aplicadas a proposições quecontenham variáveis aparentes, em termos das de inições e idéiasprimitivas para proposições que não contenham variáveis aparentes.Proposições que não contêm variáveis aparentes são chamadas“proposições elementares”.Apartirdessaspodemos subirpasso apasso,usandoosmétodosque acabamosde indicar, até a teoriadas funçõesdeverdade tal como aplicada a proposições contendo uma, duas, três . . .variáveis, ou qualquer número atén, em quen é um número inito

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designado.As formas consideradas as mais simples na lógica formal tradicional,

estão na realidade longe de o serem, e todas envolvem a a irmação detodos os valores ou de algunsvalores de uma função proposicionalcomposta.Tomemos,para começar, “todoS éP”. ConsideraremosqueS éde inido por uma função proposicionaløx, e P por uma funçãoproposicionalυx.Porexemplo,seSforhomens,øxserá“xéhumano”;sePformortais,υx será“háummomentoemquexmorre”.Então“todoSéP”significa:“‘øximplicaψ’ésempreverdadeiro”.Deve-seobservarque“todoS é P” não se aplica apenas àqueles termos que realmente são S’s; dizalguma coisa igualmente sobre termos que não são S’s. Suponhamos quedeparamoscomumxsobreoqualnãosabemosseéounãoumS;apesardisso,nossa a irmação “todoS éP”nosdiz alguma coisa sobrex, a saber,quesexforumS,entãoxseráumP.EissoétãoverdadeiroquerxsejaumS ou não. Se não fosse igualmente verdadeiro em ambos os casos, areductioadabsurdum não seria ummétodo válido; pois a essência dessemétodo consiste emusar implicações em casos emque (comomais tardeserevelará)ahipóteseé falsa.Podemosexpressar issodeoutramaneira.Para compreender “todoS éP”, não énecessário ser capazde enumerarquetermossãoS’s;contantoquesaibamosoqueseentendeporumSeoque se entende por um P, podemos entender perfeitamente o que érealmentea irmadopor“todoSéP”,pormenoscasosreaisdeambosquepossamos conhecer. Issomostra quenão sãomeramente os termos reaisque são S’s que são relevantes na a irmação “todo S é P”, mas todos ostermos com relação aos quais a suposição de que eles são S’s ésigni icativa, isto é, todosos termosque são S’s, juntamente com todosostermosquenãosãoS’s—ouseja,atotalidadedo“tipo”lógicoapropriado.O que se aplica a a irmações sobretodo se aplica também a a irmaçõessobrealguns.“Existemhomens”,porexemplo,signi icaque“ xéhumano”éverdadeiro para alguns valores de x. Aquitodos os valores dex (isto é,todos os valores dex para os quais “x é humano” é signi icativo, querverdadeirooufalso)sãorelevantes,enãosomenteaquelesquedefatosãohumanos. (Isto se torna óbvio se consideramos como poderíamos provarque uma a irmação como essa éfalsa.) Toda asserção sobre “todos” ou“alguns” envolve, portanto, não apenas os argumentos que tornam certafunção verdadeira, mas todos os que a tornam signi icativa, isto é, todosparaosquaiselatemdealgummodoumvalor,querverdadeirooufalso.Podemos agora prosseguir com nossa interpretação das formas

tradicionaisdaantiquadalógicaformal.SupomosqueSsãoaquelestermos

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x para os quaisøx é verdadeiro, e P são aqueles para os quais υx éverdadeiro. (Como veremos num capítulo posterior, todas as classes sãoderivadasdessamaneiradefunçõesproposicionais.)Portanto:

“TodoSéP”significa“‘øximplicaυχ’ésempreverdadeiro”.“AlgumSéP”significa“‘øximplicaυx’àsvezeséverdadeiro”.“NenhumSéP”significa“‘øximplicanão-υx’ésempreverdadeiro”.“AlgumSénãoP”significa“‘øxenão-υx’àsvezeséverdadeiro”.

Convémobservarqueasfunçõesproposicionaisa irmadasaquiparatodosoualgunsvaloresnãosãoøxeυχelesmesmos,masfunçõesdeverdadedeøxeυχparaomesmoargumentox.Amaneiramaisfácildefazerumaidéiadotipodecoisaquesequerdizerécomeçarnãodeøxeυxemgeral,masd eυa eυa, ondea é uma constante. Suponhamos que estamosconsiderandotodosos“homenssãomortais”;começaremoscom

“SeSócrateséhumano,Sócratesémortal,”

eemseguidaconsideraremosqueSócratesésubstituídoporumavariávelx sempre que “Sócrates” ocorrer. O objetivo a ser assegurado é que,emborax permaneça variável, semnenhumvalor de inido, terá omesmovalor tanto em “øx” como em “υx” quando estamos a irmando que “øx”implica “υx” sempre verdade. Isso requer que comecemos com umafunção cujos valores sejam tais que “øa implicaυa ”, e não com duasfunções separadasøx eυχ; pois se começarmos com duas funçõesseparadas, nunca poderemos assegurar que o x, embora permanecendoindeterminado,deveteromesmovaloremambas.Paraabreviar,dizer“ øx sempre implicaυx”quandoqueremosdizer“øx

implicaυx”ésempreverdadeiro.Proposiçõesdaforma“ øxsempreimplicaυx” sãochamadas “implicações formais”; essenomeédado igualmente sehouverdiversasvariáveis.Asde iniçõesanterioresmostramoquantoproposições como “todoS é

P’” estão distantes das formasmais simples com que a lógica tradicionalcomeça.Étípicodafaltadeanáliseenvolvidaquealógicatradicionaltrate“todo S é P” como uma proposição da mesma forma que “x é P” — porexemplo, trata “todos os homens são mortais” da mesma forma que“Sócrates é mortal”. Como acabamos de ver, a primeira é da forma “ øxsempre implicaυx”, enquanto a segunda é da forma “υx”. A separaçãoenfática dessas duas formas, efetuada por Peano e Frege, constituiu um

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avançofundamentalnalógicasimbólica.Veremosque“todoSéP”e “nenhumSéP”nãodiferemrealmenteem

forma,excetopelasubstituiçãodeυxpornão-υx,equeomesmoseaplicaa“algum S é P” e “algum S é não P”. É preciso observar também que asregrastradicionaisdeconversãosãodefeituosas,seadotarmosaidéia,queéaúnicatecnicamentetolerável,dequeproposiçõescomo“todoSéP”nãoenvolvema “existência”deS’s, istoé,nãorequeremquehaja termosquesãoS’s.Essasde iniçõeslevamaoresultadodeque,seøxforsemprefalso,ou seja, se não houver nenhum S, então “todo S é P” e “nenhum S é P”serão ambos verdadeiros, qualquer que seja P. Pois, segundo a de iniçãodadanocapítuloanterior, “øx implicaυx” signi ica “não-øx ouυx”, o que ésempre verdadeiro se não- øx for sempre verdadeiro. A princípio esseresultado poderia levar o leitor a desejar de inições diferentes, mas umpouco de experiência prática logo mostra que quaisquer de iniçõesdiferentes seriam inconvenientes e ocultariam as idéias importantes. Aproposição “øx sempre implicaψx, eøx às vezes é verdadeiro” éessencialmente compósita, e seria muito desajeitado dar isso como ade iniçãode“todoSéP”,poisnessecasonãonossobrarialinguagempara“øxsempreimplicaυx”,queécemvezesmaisnecessáriaqueaoutra.Mas,com nossa de inição, “todo S é P” não implica “algum S é P”, visto que aprimeirapermiteanão-existênciadeS,easegunda,não;assim,conversãoperaccidens torna-se inválida,ealgunsmodosdosilogismosão falaciosos,porexemplo,Darapti:“TodoMéS,todoMéP,portantoalgumSéP”,quefalhasenãohouvernenhumM.Anoçãode “existência” temvárias formas, umadasquais nos ocupará

no próximo capítulo; mas a forma fundamental é aquela derivadaimediatamente da noção de “às vezes verdadeiro”. Dizemos que umargumentoa“satisfaz”umafunçãoøxseøaforverdadeira;énessemesmosentidoquedizemosqueasraízesdeumaequaçãosatisfazemaequação.Ora,seøxàsvezeséverdadeiro,podemosdizerquehá x’sparaoquaiselaé verdadeira, ou podemos dizer “existem argumentos que satisfazem øx”.Esse é o signi icado fundamental da palavra “existência”. Outrossigni icados ou são derivados desse ou envolvem alguma confusão depensamento. Podemosdizer corretamente “existemhomens”, signi icandoque“xéumhomem”,àsvezeséverdadeiro.Masse izermosumpseudo-silogismo: “Existem homens, Sócrates é um homem, logo existe Sócrates”,estaremos dizendo um absurdo, pois “Sócrates” não é, como “homens”meramenteumargumento indeterminadoparauma funçãoproposicionaldada. A falácia é estreitamente análoga àquela do raciocínio: “Os homens

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são numerosos, Sócrates é umhomem, logo Sócrates é numeroso.”Nessecaso éóbvioque a conclusão é absurda,masno casoda existêncianão éóbvio, por razões que aparecerão demaneiramais completa no próximocapítulo.Porenquanto,contentemo-nosemobservarofatodeque,emboraseja correto dizer “existemhomens”, é incorreto, oumelhor, sem sentido,atribuirexistênciaaumxparticulardadoqueporacasoéumhomem.Emgeral,“existemtermosquesatisfazemøx”significa“øxàsvezeséverdade”;mas “existea” (ondea é um termo que satisfazøx) é ummero ruído ouformato, desprovido de signi icação. Veremos que, tendo em mente essasimples falácia, podemos resolver muitos enigmas ilosó icos antigosconcernentesaosignificadodaexistência.Umoutroconjuntodenoçõescomrelaçãoaoquala iloso iasepermitiu

cair em insanáveis confusões por não distinguir su icientementeproposições e funções proposicionais são as noções de “modalidade”:necessário, possível eimpossível. (Às vezescontingente ouassertórico éusado emvezdepossível.)A idéia tradicional era que, entreproposiçõesverdadeiras, algumas eram necessárias, enquanto outras eramverdadeiras pormero acaso. Contudo, nunca houve uma explicação clarado que era acrescentado à verdade pela concepção de necessidade. Nocasodas funções proposicionais, a tríplice divisão é óbvia. Se “øx” for umvalorindeterminadodecertafunçãoproposicional,eleseránecessárioseafunção sempre for verdadeira, possível se ela for verdadeira às vezes eimpossível se ela nunca for verdadeira. Esse tipo de situação surge emrelação à probabilidade, por exemplo. Suponhamos que uma bola x sejaretiradadeumsacoquecontémcertonúmero debolas:setodasasbolasforembrancas,“x ébranca”énecessário; sealgumas forembrancas, “ x ébranca”épossível;senenhuma,éimpossível.Aqui,sóoquese sabesobrexéqueelasatisfazumacertafunçãoproposicional,asaber“xéumabolaque estava no saco”. Esta é uma situação geral em problemas deprobabilidade e não incomum na vida prática — por exemplo, quandosomosprocuradosporumapessoasobreaqualnãosabemosnada,anãoserqueela trazumacartadeapresentaçãodenossoamigo fulanode tal.Em todos esses casos, como em relação àmodalidade em geral, a funçãoproposicional é relevante. Para um pensamento claro, em muitasdiferentesdireções,ohábitodemanterfunçõesproposicionaisnitidamenteseparadas de proposições é damáxima importância, e a incapacidade defazê-lonopassadofoiumadesgraçaparaafilosofia.

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Capítulo16Descrições

Tratamos no capítulo anterior das palavras todos ealguns; neste capítulovamosconsideraroartigoo[oua]enopróximocapítulovamosconsideraromesmoartigonoplural,os [ouas].Pode-se julgarexcessivodedicardoiscapítulos a uma palavra,mas para omatemático ilosó ico é uma palavradegrande importância, comoogramáticodeBrowningcomoenclíticoδε,eu daria a doutrina dessa palavra se estivesse “morto da cintura parabaixo”enãomeramentenumaprisão.Játivemosocasiãodemencionar“funçõesdescritivas”,istoé,expressões

como “opai dex”ou “o senodex”.Parade ini-las, éprecisoantesde inir“descrições”.Uma “descrição” pode ser de dois tipos, de inida e inde inida (ou

ambígua). Uma descrição inde inida é uma expressão da forma “uma talcoisa”,eumadescriçãode inidaéumaexpressãodaforma“atalcoisa”(nosingular).Comecemoscomaprimeira.“Quemvocêencontrou?”“Encontreiumhomem.”“Essaéumadescrição

muito inde inida.”Não estamos, portanto, nos afastando do uso emnossaterminologia. Nossa questão é: que digo eu realmente quando a irmo“Encontrei umhomem”? Suponhamos, por enquanto, queminha asserçãosejaverdadeiraequedefatoencontreiJones.Éclaroqueoquea irmo nãoé“EncontreiJones”.Possodizer“Encontreiumhomem,masnãoeraJones”;nessecaso,emboraeuminta,nãomecontradigo,comoo fariase,quandodigo que encontrei um homem, quisesse realmente dizer que encontreiJones.Éclaroqueapessoacomquemestoufalandopodeentenderoqueeudigo,mesmoquesejaumestrangeiroquenuncaouviufalardeJones.No entanto, podemos irmais longe: não só Jones,mas nenhumhomem

real,entraemminhaa irmação. Issosetornaóbvioquandoaa irmaçãoéfalsa,vistoquenãohámaisrazãoparasesuporqueJonesdevesseentrarna proposição que qualquer outra pessoa. Na verdade, a a irmaçãopermaneceria signi icativa, embora não tivesse possibilidade de serverdade, mesmo que não houvesse homem nenhum. “Encontrei umunicórnio” ou “encontrei uma serpente marinha” é uma asserçãoperfeitamente signi icativa, caso saibamos o que vem a ser um unicórnio

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ou uma serpente marinha, isto é, qual é a de inição desses monstrosfabulosos.Assim,ésomenteoquepodemoschamardeconceitoqueentranaproposição.Nocasode“unicórnio”,porexemplo,háapenasoconceito:não há além disso, em algum lugar entre as sombras, algo irreal quepoderia ser chamado “um unicórnio”. Portanto, como é signi icativo(embora falso) dizer “Encontrei um unicórnio”, é claro que essaproposição, corretamente analisada, não contém um constituinte “umunicórnio”,emboracontenhaoconceito“unicórnio”.A questão da “irrealidade”, com que nos defrontamos neste ponto, é

muitoimportante.Induzidosemerropelagramática,agrandemaioriadoslógicos que lidaram com essa questão o fez em linhas enganosas.Considerou a forma gramatical como um guiamais seguro na análise doque de fato é. E não souberam distinguir que diferenças na formagramatical são importantes. Tradicionalmente, “Encontrei Jones” e“Encontreiumhomem”contariamcomoproposiçõesdamesmaforma,masna realidade são de formas muito diferentes: a primeira nomeia umapessoa real, Jones; ao passo que a segunda envolve uma funçãoproposicional, e se torna,quandoexplicitada: “A função ‘Encontrei x ex éhumano’éverdadeàsvezes.”(Lembremosqueadotamosaconvençãodeusar “às vezes” como nãoimplicandomais de uma vez.) Essa proposiçãoobviamente não é da forma “encontreix”, que justi ica a existência daproposição“Encontreiumunicórnio”apesardofatodenãoexistirtalcoisacomo“umunicórnio”.Por falta do aparato das funções proposicionais, muitos lógicos foram

levados à conclusão de que há objetos irreais. Há quem a irme, porexemplo, Meinong,1 que podemos falar sobre “a montanha dourada”, “oquadrado redondo”, e assim por diante; podemos fazer proposiçõesverdadeiras das quais esses são os sujeitos; portanto, eles devem teralgumtipodeexistêncialógica,vistoquedeoutromodoasproposiçõesemqueocorremseriamsemsentido.Emtaisteorias,parece-me,háumafalhadaquele senso de realidade que deveria ser preservado mesmo nosestudosmaisabstratos.Alógica,eua irmaria,nãodeveadmitirunicórniosmaisdoqueazoologiapodeadmiti-los;poisalógicadizrespeitoaomundoreal tão verdadeiramente quanto a zoologia, embora com suascaracterísticasmaisabstratasegerais.Dizerqueunicórniostêmexistênciana heráldica, ou na literatura, ou na imaginação, é uma evasiva dasmaisdesprezíveisemesquinhas.Oqueexistenaheráldicanãoéumanimal,decarneeosso,quesemovee respirapor iniciativaprópria.Oqueexisteéuma imagem, ou uma descrição em palavras. De maneira semelhante,

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sustentarqueHamlet,porexemplo,existeemseuprópriomundo,asaber,o mundo da imaginação de Shakespeare, tão verdadeiramente quanto(digamos)Napoleão existiu nomundo comum, é dizer algo que confundedeliberadamente,ouéconfusonumgrauquaseinacreditável.Hásomenteummundo, omundo “real”: a imaginação de Shakespeare é parte dessemundo,eospensamentosqueeleteveaoescreverHamletsãoreais.Assimtambém são os pensamentos que temos ao ler a peça. Mas é da própriaessência da icção que somente os pensamentos, sentimentos etc. emShakespeare e em seus leitores sejam reais, e que não haja, em adição aeles, nenhum Hamlet objetivo. Quando levamos em conta todos ossentimentosdespertadosporNapoleãoemescritoreseleitoresdeHistória,não tocamos no homem real;mas no caso deHamlet, ao fazer isso nós oesgotamos.SeninguémpensassesobreHamlet,nãosobrarianadadele;seninguém tivesse pensado sobre Napoleão, ele logo trataria de forçaralguéma fazê-lo.Osensoderealidadeévitalemlógica,equemquerquefaça malabarismos com ele, alegando que Hamlet tem outro tipo derealidade, está fazendo um desserviço ao pensamento. Um senso derealidaderobustoémuitonecessárioparaseformularumaanálisecorretade proposições sobre unicórnios, montanhas douradas, quadradosredondoseoutrosdessespseudo-objetos.Em obediência ao senso de realidade, devemos insistir em que, na

análise de proposições, nada “irreal” deve ser admitido. Mas, a inal decontas, se nãohá nada irreal, comopoderíamos— pode-se perguntar—admitir alguma coisa irreal? A resposta é que, ao lidar com proposições,estamos lidando em primeira instância com símbolos, e se atribuímossigni icadoagruposdesímbolosquenãotêmsigni icado,cairemosnoerrode admitir irrealidades, no único sentido emque isso é possível, a saber,como objetos descritos. Na proposição “Encontrei um unicórnio”, as trêspalavras juntas compõem uma proposição signi icativa, exatamente nomesmo sentido que a palavra “homem”. Mas as duas palavras “umunicórnio” não formam um grupo subordinado que tenha um sentidopróprio. Assim, se atribuímos falsamente sentido a essas duas palavras,vemo-nos às voltas com “umunicórnio”, e comoproblemade comopodehaver tal coisa nummundo em que não há unicórnios. “Um unicórnio” éuma descrição inde inida que não descreve nada. Não é uma descriçãoinde inida que descreve algoirreal. Uma proposição como “x é irreal” sótemsentidoquando“x”éumadescrição,de inidaouinde inida;nessecasoa proposição será verdadeira se “ x” for uma descrição que não descrevenada. Mas quer a descrição “x” descreva alguma coisa ou não descreva

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nada, de todo modo ela não é um constituinte da proposição em queocorre; como “um unicórnio” há pouco, ela não é um grupo subordinadodotadodeumsentidopróprio.Tudoissoresultadofatodeque,quando“x”éumadescrição,“xéirreal”ou“xnãoexiste”nãoéabsurdo,masésempresignificativoeàsvezesverdadeiro.Podemos agora seguir adiante para de inir em geral o sentido de

proposiçõesquecontêmdescriçõesambíguas.Suponhamosquedesejamosfazer alguma a irmação sobre “uma tal coisa”, em que “tais coisas” sãoaquelesobjetosquetêmcertapropriedadeø,istoé,aquelesobjetosxparaos quais a funçãoøx é verdadeira. (Por exemplo, se tomarmos “umhomem” como nosso exemplo de “uma tal coisa”, øx será “x é humano”.)Suponhamosagoraquedesejamosa irmarapropriedade øde “tal coisa”,isto é, queremos a irmar que “uma tal coisa” possui aquela propriedadequextemquandoυxéverdadeira.(Porexemplo,nocasode“encontreiumhomem”,υx será “Encontreix”.) Ora, a proposição de que “uma tal coisa”tem a propriedadeυnão éumaproposiçãoda forma “υx”. Se fosse, “umatal coisa” teria de ser idêntico ax para umx adequado; e embora (numcertosentido)issopossaserverdadeiroemalgunscasos,certamentenãoéverdadeironumcaso tal como “umunicórnio”.Éexatamenteeste fato,dequeaa irmaçãodequeumatalcoisatemapropriedadeυnãoédaformaυx, que torna possível para “uma tal coisa” ser, num certo sentidoclaramentedefinível,“irreal”.Adefiniçãoéaseguinte:

A a irmação de que “um objeto dotado da propriedadeø tem apropriedadeυ”significa:“Aafirmaçãoconjuntadeøxeυxnãoésemprefalsa.”Dopontodevistadalógica,essaéamesmaproposiçãoquepoderiaser

expressada por “algunsø’s sãoυ’s”; retoricamente, porém, há umadiferença, porque em um caso há uma sugestão de singularidade e nooutro de pluralidade. Esse, contudo, não é o ponto importante. O pontoimportante é que, quando corretamente analisadas, proposições quetratam verbalmente de “uma tal coisa” revelam não conter nenhumconstituinte representado por essa expressão. E é por isso que taisproposições podem ser signi icativas mesmo quando algo como uma talcoisanãoexiste.A de inição deexistência, tal como aplicada a descrições ambíguas,

resultadoquefoiditonocapítuloanterior.Dizemosque“existemhomens”ou que “existe um homem” se a função proposicional “x é humano” for

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verdadeiraàsvezes;eemgeral“umatalcoisa”existese“ xéumatalcoisa”for verdadeira às vezes. Podemos pôr isso numa outra linguagem. Aproposição“Sócrateséumhomem”ésemdúvida equivalentea“Sócrateséhumano”, mas não se trata exatamente da mesma proposição. O é de“Sócrates éhumano” expressa a relação entre sujeito e predicado; o é de“Sócrateséumhomem”expressaidentidade.Éumadesgraçaparaaraçahumanaqueelatenhaescolhidoempregaramesmapalavra“é”paraessasduas idéias inteiramentediferentes—umadesgraçaqueuma linguagemlógicasimbólicaobviamenteconsegueremediar.Aidentidadeem“Sócrateséumhomem”éidentidadeentreumobjetonomeado(aceitando“Sócrates”comoumnome,sujeitoaquali icaçõesexplicadasmaistarde)eumobjetoambiguamente descrito. Um objeto ambiguamente descrito “existirá”quandopelomenosumaproposiçãodessas forverdadeira, istoé,quandohouver pelo menos uma proposição verdadeira da forma “ x é uma talcoisa”,emque“ x”éumnome.Écaracterísticodedescriçõesambíguas(emcontraposiçãoadescriçõesdefinidas)quepodehaverqualquernúmerodeproposiçõesverdadeirasda formaapresentada—Sócrateséumhomem,Platão é umhomemetc.Assim, “existe umhomem” segue-sede Sócrates,ou de Platão ou de qualquer outra pessoa. Comdescrições de inidas, poroutrolado,aformacorrespondentedeproposição,asaber“ xéatalcoisa”(emquexéumnome),sópodeserverdadeparanomáximoumvalordex.Issonoslevaaotemadasdescriçõesde inidas,quedevemserde inidasdemaneira análoga àquela empregada para descrições ambíguas, porémmuitomaiscomplicada.Chegamos agora ao principal tema do presente capítulo, a saber, a

de inição da palavrao. Um ponto muito importante sobre a de inição de“uma tal coisa” aplica-se igualmente a “a tal coisa”; a de inição a serprocuradaéumade iniçãodeproposiçõesemqueessaexpressãoocorre,não uma de inição da expressão em simesma, isoladamente. No caso de“uma tal coisa”, isso é bastante óbvio: ninguém poderia supor que “umhomem”fosseumobjetode inido,quepoderiaserde inidoporsimesmo.Sócrateséumhomem,Platãoéumhomem,Aristóteleséumhomem,masnão podemos inferir que “um homem” signi ica o mesmo que “Sócrates”signi ica,etambémomesmoque“Platão”signi icaetambémomesmoque“Aristóteles”significa,poisessestrêsnomestêmdiferentessignificados.Noentanto,quandotivermosenumeradotodososhomensnomundo,nãoterásobrado nada de que possamos dizer: “Esse é um homem, e não só isso,mas éo ‘umhomem’, a entidadequintessencialqueé apenasumhomeminde inido sem ser ninguém emparticular.” Fica, portanto, bastante claro

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que tudo que há no mundo é de inido: se há um homem é um homemde inido e não qualquer outro. Logo, não é possível encontrar nomundoumaentidadecomo“umhomem”emcontraposiçãoahomensespecíficos.Eassiménaturalquenãode inamosaexpressão“umhomem”emsimesma,massomenteasproposiçõesemqueelaocorre.No casode “a tal coisa”, isso é igualmente verdade, embora à primeira

vista menos óbvio. Podemos demonstrar que esse deve ser o casomedianteumaconsideraçãodadiferençaentreum nome e umadescriçãodefinida.Tomemosaproposição“ScottéoautordeWaverley”.Temosaquium nome, “Scott”, e uma descrição, “o autor deWaverley”, que se a irmapertencerem à mesma pessoa. A distinção entre um nome e todos osoutrossímbolospodeserexplicadadaseguintemaneira.Umnome é um símbolo simples cujo signi icado só pode ocorrer como

sujeito, isto é, algo do tipo que, no Capítulo 13, de inimos como um“indivíduo”ouum“particular”.Eum“símbolo”“simples”éumsímboloquenão tempartes que sejam símbolos. Assim, “Scott” é um símbolo simples,porque, embora tenhapartes (a saber, as diferentes letras), essaspartesnãosãosímbolos.Poroutro lado, “oautordeWaverley”nãoéumsímbolosimples, porque as diferentes palavras que compõem a expressão sãopartesquesãosímbolos.Se,comopodeocorrer,qualquercoisaque pareçaserum“indivíduo”forrealmentepassíveldeanáliseadicional,teremosdenos contentar com o que pode ser chamado “indivíduos relativos”, queserãotermosque,emtodoocontextoemquestão,nuncasãoanalisadosenunca ocorrem de outra maneira senão como sujeitos. E nesse casoteremos, correspondentemente, de nos contentar com “nomes relativos”.Do ponto de vista de nosso problema presente, a saber, a de inição dedescrições, esse problema, se esses são nomes absolutos ou somentenomesrelativos,podeser ignorado,vistoqueeledizrespeitoadiferentesestágiosnahierarquiados“tipos”,aopassoquetemosdecompararparescomo “Scott” e “o autor deWaverley”, que se aplicam ambos ao mesmoobjeto, e não suscitam o problema dos tipos. Podemos, portanto, porenquanto, tratar osnomes como capazes de serem absolutos; nada queteremosdedizerdependerádessasuposição,masofraseiopoderáserumpoucoreduzidoporisso.Temos, portanto, duas coisas para comparar: (1) um nome, que é um

símbolo simples, que designa diretamente um indivíduo que é seusigni icado, e que possui esse signi icado por direito próprio,independentementedossigni icadosdetodasasoutraspalavras;(2)umadescrição, que consiste em várias palavras cujos signi icados já estão

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estabelecidos,edasquaisresultaoquequerquedevasertomadocomoo“significado”dadescrição.Umaproposição que contémumadescrição não é idêntica ao que essa

proposição se torna quando um nome é substituído,mesmo que o nomenomeie o mesmo objeto que a descrição descreve. “Scott é o autor deWaverley” é obviamente uma proposição diferente de “Scott é Scott”: aprimeiraéumfatodahistórialiterária,asegundaéumtruísmotrivial.EsepuséssemosqualqueroutrapessoaquenãoScottemlugarde“oautordeWaverley”, nossa proposição se tornaria falsa, e portanto certamente nãoseria mais a mesma proposição. Mas, pode-se dizer, nossa proposição éessencialmente da mesma forma que (digamos) “Scott ésir Walter”, emque se diz que dois nomes se aplicam àmesma pessoa. A resposta é, se“Scott ésir Walter” realmente signi ica “a pessoa chamada ‘Scott’ é apessoa chamada ‘sir Walter’”, então os nomes estão sendo usados comodescrições,istoé,oindivíduo,emvezdeestarsendonomeado,estásendodescrito como a pessoa que tem aquele nome. Essa é umamaneira pelaqual nomes são freqüentemente usados na prática, e não haverá, via deregra,nadanafraseologiaparamostrarseelesestãosendousadosdessamaneira oucomo nomes. Quando um nome é usado diretamente, apenasparaindicardoqueestamosfalando,elenãofazpartedo fatoa irmado,ouda falsidade, caso nossa asserção seja falsa: é meramente parte dosimbolismo pelo qual expressamosnosso pensamento. O que queremosexpressar é algo que poderia (por exemplo) ser transposto para umalínguaestrangeira;éalgoparaoqualaspalavrasreaissãoumveículo,masdo qual elas não fazem parte. Por outro lado, quando fazemos umaproposiçãosobre“apessoachamada ‘Scott’”,onomereal“Scott”entranoque estamos a irmando, e não meramente na linguagem usada para sefazeraasserção.Nossaproposiçãoserádiferenteseasubstituirmospor“apessoa chamada ‘sir Walter’”. Mas enquanto estivermos usando nomescomo nomes, quer digamos “Scott” ou digamos “sir Walter” é tãoirrelevanteparaoqueestamosa irmandoquantosefalamoseminglêsoufrancês. Assim, enquanto nomes estiverem sendo usados como nomes,“Scott ésirWalter” é amesma proposição trivial que “Scott é Scott”. Istocompleta a prova de que “Scott é o autor deWaverley” não é a mesmaproposiçãoqueresultaquandosubstituímos“oautordeWaverley”porumnome,nãoimportaquenomesejaesse.Quando usamos uma variável, e falamos de uma função proposicional,

digamosøx, o processo de aplicar a irmações gerais sobre x a casosparticularesconsistiráemsubstituiraletra“ x”porumnome,supondoque

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øéumafunçãoquetemindivíduosporseusargumentos.Suponhamos,porexemplo, queøx é “sempre verdadeiro”; digamos que é a “lei deidentidade”, x =x. Podemos, então, substituir “x” por qualquer nome queescolhamos, e obteremos uma proposição verdadeira. Supondo porenquanto que “Sócrates”, “Platão” e “Aristóteles” são nomes (umasuposição muito ousada), podemos inferir da lei de identidade queSócrates é Sócrates, Platão é Platão e Aristóteles é Aristóteles. Mascometeremos uma falácia se tentarmos inferir, sem premissas adicionais,que o autor deWaverley é o autor deWaverley. Isso resulta do queacabamos de provar: que se substituirmos “o autor deWaverley” por umnome numa proposição, obteremos uma proposição diferente. Isto é,aplicando o resultado a nosso presente caso: se “x” for um nome, “x =x”não será a mesma proposição que “o autor deWaverley é o autor deWaverley”,nãoimportaquenome“x”possaser.Assim,dofatodequetodasasproposiçõesdaforma“x=x”sãoverdadeiras,nãopodemosinferir,semcerimônia, que o autor deWaverley é o autor deWaverley. De fato,proposições da forma “a tal coisa é a tal coisa” não são sempreverdadeiras: é necessário que a tal coisa exista (um termo que seráexplicadobrevemente).ÉfalsoqueoatualreidaFrançasejaoatualreidaFrança, ou que o quadrado redondo seja o quadrado redondo. Quandosubstituímosumnomeporumadescrição, funçõesproposicionaisquesão“sempre verdadeiras” podem se tornar falsas, se a descrição nãodescrever nada. Não há mistério nenhum nisso, contanto quecompreendamos (o que foi provado no capítulo anterior) que quandosubstituímos umnomepor umadescrição o resultado não é umvalor dafunçãoproposicionalemquestão.Estamos agora em condições de de inir proposições em que uma

descriçãode inidaocorre.Aúnicacoisaquedistingue“atalcoisa”de“umatal coisa” é a implicaçãodeunicidade.Nãopodemos falarde “o habitantede Londres” porque habitar Londres é um atributo não-único. Nãopodemos falarsobre“oatual reidaFrança”porquenãohánenhum;maspodemos falar sobre “o atual reida Inglaterra”.Assim,proposições sobre“atalcoisa”sempreimplicamasproposiçõescorrespondentessobre“umatalcoisa”,comoadendodequenãohámaisqueumaúnicatalcoisa.Umaproposiçãocomo“ScottéoautordeWaverley”nãopoderiaserverdadeiraseWaverleynuncativessesidoescrito,ousetivessesidoescritoporváriaspessoas; e tampouco poderia ser verdadeira qualquer outra proposiçãoresultante de uma função proposicional x pela substituição dex por “oautor deWaverley”. Podemos dizer que “o autor deWaverley” signi ica “o

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valordexparaoqual‘xescreveuWaverley’éverdadeiro”.Dessamaneira,aproposição“oautordeWaverleyfoiScott”,porexemplo,envolve:

(1)“xescreveuWaverley”nãoésemprefalso;(2) “sex ey escreveramWaverley, x ey são idênticos” é sempre

verdadeiro;(3)“sexescreveuWaverley,xfoiScott”ésempreverdadeiro.

Essastrêsproposições,traduzidasemlinguagemcomum,afirmam:

(1)pelomenosumapessoaescreveuWaverley;(2)nomáximoumapessoaescreveuWaverley;(3)quemquerquetenhaescritoWaverleyfoiScott.

Todas essas três estão implicadas por “o autor deWaverley foi Scott”.Inversamente,astrêsjuntas(masnãoduasdelas)implicamqueoautordeWaverley foi Scott. Por isso as três juntas podem ser tomadas comode inindo o que é signi icado pela proposição “o autor deWaverley foiScott”.Podemos simpli icar um pouco essas três proposições. A primeira e a

segunda juntas são equivalentes a: “Há um termoc tal que ‘x escreveuWaverley’éverdadeiroquando xéceéfalsoquandoxénãoc.”Emoutraspalavras: “Há um termoc tal que ‘x escreveuWaverley’ é sempreequivalentea‘xéc’.”(Duasproposiçõessão“equivalentes”quandoambassão verdadeiras ou ambas são falsas.) Temos aqui, para começar, duasfunçõesdex,“xescreveuWaverley”e“x éc”,e formamosuma funçãode cconsiderando a equivalência dessas duas funções dex para todos osvalores dex; em seguida a irmamos que a função resultante dec é“verdadeiraàsvezes”,istoé,queéverdadeiraparaaomenosumvalordec. (Obviamente não pode ser verdadeira para mais que um valor de c.)Essasduascondições juntassãode inidascomodandoosigni icadode “oautordeWaverleyexiste”.Podemosagorade inir“otermoquesatisfazafunçãoøxexiste”.Essaéa

forma geral de que vimos anteriormente um caso particular. “O autor deWaverley”é“o termoquesatisfaza função ‘x escreveuWaverley’”.E “a talcoisa” envolverá sempre referência a alguma função proposicional, asaber,aquelaquede ineapropriedadequefazdeumacoisaumatalcoisa.Nossade iniçãoécomosesegue:“Otermoquesatisfazafunçãoøxexiste”significa:“Háumtermoctalqueøxésempreequivalentea‘xéc’.”

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Para de inir “o autor deWaverley foi Scott”, temos ainda de levar emcontaaterceiradenossastrêsproposições,asaber,“quemquerquetenhaescritoWaverleyfoiScott”.Issoserásatisfeitomeramenteacrescentando-sequeocemquestãodeveserScott.Assim,“oautordeWaverleyfoiScott”é:

“Háumtermoctalque(1)‘xescreveuWaverley’ésempreequivalentea‘xéc’,(2)céScott.

E demaneira geral: “o termo que satisfaz øx satisfazυx” é de inido comosignificando:

“Há um termoc tal que (1)øx é sempre equivalente a ‘x éc’, (2)υcverdadeiro.”

Essaéadefiniçãodeproposiçõesemquedescriçõesocorrem.Épossível termuitoconhecimentoemrelaçãoaumtermodescrito, isto

é,conhecermuitasproposiçõesconcernentesa“atalcoisa”,semrealmentesaber o que a tal coisa é, isto é, sem conhecer nenhuma proposição daforma “x é a tal coisa” em que “x” é um nome. Numa história policial,proposições sobre “o homem que cometeu o ato” se acumulam, naesperançadequepor imserão su icientesparademonstrarquefoiAquecometeuoato.Podemosatéchegaraopontodedizerque,emtodoaqueleconhecimento que pode ser expresso em palavras — com exceção de“este” e “aquele” e algumas outras palavras cujo signi icado varia emdiferentesocasiões—,nãoocorrenenhumnomenosentidoestrito,masoqueparecesernomeérealmentedescrição.Podemosindagar,demaneirasigni icativa, seHomero existiu, o quenãopoderíamos fazer se “Homero”fosse um nome. A proposição “a tal coisa existe” é signi icante, quer sejaverdadeira ou falsa; mas sea é a tal coisa (em que “a” é um nome), aspalavras “a existe” são desprovidas de sentido. Só podemos a irmarsigni icativamente a existência de descrições— de inidas ou inde inidas;poisse“a”forumnome,devenomearalgumacoisa:oquenãonomeiacoisaalguma não é um nome e, portanto, se pretende ser um nome, é umsímbolodesprovidodesentido,aopassoqueumadescrição,como“oatualreidaFrança”,nãosetorna incapazdeocorrersigni icativamenteapenasemrazãodofatodenãodescrevernada;arazãoéqueesseéumsímbolocomplexo, cujo signi icado é derivado do signi icado dos símbolosconstituintes. Assim, quando perguntamos se Homero existiu, estamosusando a palavra “Homero” como uma descrição abreviada: podemos

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substituí-la por (digamos) “o autor daIlíada e daOdisséia”. As mesmasconsideraçõesseaplicamaquasetodososusosdoqueparecemsernomespróprios.Quando descrições ocorrem em proposições, é necessário distinguir o

que podemos chamar de ocorrências “primárias” e “secundárias”. Adistinção abstrata é a que se segue. Uma descrição tem uma ocorrência“primária”quandoaproposiçãoemqueelaocorreresultadasubstituiçãodexpeladescriçãoemalgumafunçãoproposicionaløx;umadescriçãotemumaocorrência“secundária”quandooresultadodasubstituiçãode xpeladescrição emøx dá somenteparte da proposição envolvida. Um exemplotornaráissomaisclaro.Consideremos“oatualreidaFrançaécalvo”.Aqui“o atual rei da França” tem uma ocorrência primária, e a proposição éfalsa.Todaproposiçãoemqueumadescriçãoquenãodescrevenadatemumaocorrência primária é falso.Mas agora consideremos “o atual rei daFrançanãoécalvo”.Issoéambíguo.Setomássemosprimeiro“ xécalvo”edepoissubstituíssemosxpor“oatualreidaFrança”eentãonegássemosoresultado, a ocorrência de “o atual rei da França” é secundária e nossaproposição é verdadeira; mas se tomássemos “ x não é calvo” esubstituíssemosxpor“oatualreidaFrança”,então“oatualreidaFrança”tem uma ocorrência primária e a proposição é falsa. A confusão entreocorrênciasprimáriaesecundáriaéumafartafontedefaláciasnoquedizrespeitoadescrições.Descrições ocorrem em matemática sobretudo na forma de funções

descritivas,istoé,“otermoquetemarelaçãoRcomy”,ou“oRde y”,comopodemosdizer,poranalogiacom“opaide y”eexpressõessimilares.Dizer“o pai dey é rico”, por exemplo, é dizer que a seguinte funçãoproposicionaldec:“cérico,e ‘x gerouy’ésempreequivalentea ‘x éc’”é“verdadeiroàsvezes”,ouseja,éverdadeiroparapelomenosumvalordec.Obviamentenãopodeserverdadeiroparamaisdeumvalor.A teoria das descrições, brevemente esboçada nesse capítulo, é da

máxima importância tanto em lógica quanto em teoria do conhecimento.Para os propósitos da matemática, porém, as partes mais ilosó icas dateorianãosãoessenciais,eporissoforamomitidasdaexplicaçãoanterior,queselimitouaosmaissimplesrequisitosmatemáticos.

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Capítulo17Classes

Nesse capítulo nos ocuparemos deos: os habitantes de Londres, os ilhosdos homens ricos, e assim por diante. Em outras palavras, estaremostratandodeclasses.VimosnoCapítulo2queumnúmerocardinaldeveserde inidocomoumaclassedeclasses,enoCapítulo3queonúmero1deveserde inidocomoaclassedetodasasclassesunitárias,porexemplo,todasque têmapenasummembro,comodiríamosnão fosseocírculovicioso.Éclaroque,quandoonúmero1éde inidocomoaclassedetodasasclassesunitárias, “classes unitárias” devem ser de inidas de modo que não sesuponhaquesaibamosoquesedeveentenderpor“um”;defato,elassãode inidas de uma maneira estreitamente análoga à que foi usada paradescrições, a saber: diz-se que uma classex é uma classe “unitária” se afunção proposicional “‘x é umx” é sempre equivalente a ‘x éc’”(consideradauma funçãodec)nãoforsemprefalsa, istoé,emlinguagemmaiscomum,sehouverumtermoctalquexsejaummembrodexquandox forc,masnãoemoutroscasos.Issonosdáumade iniçãodeumaclasseunitáriase jásoubermosoqueéumaclasseemgeral.Atéagora,ao lidarcom a aritmética, temos tratado “classe” como uma idéia primitiva. Mas,pelas razões expressas no Capítulo 13, senão por outras, não podemosaceitar “classe” como uma idéia primitiva. Devemos procurar umade inição nas mesmas linhas que a de inição de descrições, isto é, umade inição que atribua um signi icado a proposições em cuja expressãoverbalousimbólicapalavrasousímbolosqueaparentementerepresentemclassesocorram,masqueatribuirão umsentidoqueeliminaporcompletotoda menção a classe de uma análise correta de tais proposições.Poderemos dizer então que os símbolos para classes são merasconveniências, não representando objetos chamados “classes”, e que asclassessãode fato,comoasdescrições, icções lógicas,ou(comodizemos)“símbolosincompletos”.Ateoriadasclassesémenoscompletaqueateoriadasdescrições,ehá

razões (de que exporemos um esboço) para considerar não inalmentesatisfatória a de inição de classes que será sugerida. Alguma sutilezaadicional parece ser necessária; mas são indiscutíveis as razões para

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considerarade iniçãoqueseráoferecidacomoaproximadamentecorretaenalinhacerta.A primeira coisa é compreender por que classes não podem ser

consideradas parte da mobília fundamental do mundo. É di ícil explicarprecisamente o que queremos dizer com essa a irmação, mas umaconseqüênciaqueelaimplicapodeserusadaparaelucidarseusigni icado.Se tivéssemos uma linguagem completamente simbólica, com umade inição para tudo o que fosse de inível, os símbolos inde inidos nessalinguagem representariam simbolicamente o que quero dizer por “amobília fundamentaldomundo”.Estousustentandoquenenhumsímbolo,seja para “classe” em geral ou para classes particulares, seria incluídonesse aparato de símbolos inde inidos. Por outro lado, todas as coisasparticulares que há nomundo teriamde ter nomes que seriam incluídosentre os símbolos inde inidos. Poderíamos tentar evitar essa conclusãomediante o uso de descrições. Tomemos (digamos) “a última coisa queCésar viu antes de morrer”. Isso é uma descrição de algo particular;poderíamos usá-la (num sentido perfeitamente legítimo) com umadefinição desse particular. Mas se “a” for umnome para o mesmoparticular, uma proposição em que “ a” ocorra não é (como vimos nocapítulo anterior) idêntica ao que essa proposição se torna quandosubstituímos “a”por “a última coisa que César viu antes de morrer”. Senossa linguagem não contiver o nome “a”, ou algum outro nome para omesmo particular, não teremos nenhummeio de expressar a proposiçãoque expressamos por meio de “a” em contraposição àquela queexpressamos pormeio da descrição. Assim, descrições não permitiriam aumalinguagemperfeitaprescindirdenomesparatodososparticulares.Aesserespeito,estamossustentando,classesdiferemdeparticulares,enãoprecisam ser representadas por símbolos inde inidos. Nossa primeiratarefaédarasrazõesparaessaopinião.Já vimos que classes não podem ser consideradas espécies de

indivíduos, em razão da contradição acerca de classes que não sãomembros de si mesmas (explicada no Capítulo 13), e porque podemosprovarqueonúmerodeclassesémaiordoqueonúmerodeindivíduos.Não podemos tomar classes da maneira extensionalpura como meros

montes ou conglomerados. Se fôssemos tentados a isso, nos pareceriaimpossívelcompreendercomopodehaverumaclassecomoaclassenula,quenãotemabsolutamentenenhummembroenãopodeserconsideradaum “monte”; nos pareceria também muito di ícil compreender como épossível queuma classe que temapenas ummembronão seja idêntica a

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esse membro único. Não quero a irmar, ou negar, que existam taisentidadescomo“montes”.Comoumlógicomatemático,nãomecompeteterumaopiniãoa esse respeito.Estou sustentandoapenasque, casoexistamtais coisas como montes, não podemos identi icá-las com as classescompostasporseusconstituintes.Chegaremos muito mais perto de uma teoria satisfatória se tentarmos

identi icar classes com funções proposicionais. Toda classe, comoexplicamos no Capítulo 2, é de inida por umafunção proposicionalverdadeira com relação aos membros da classe e falsa com relação aoutras coisas. Mas se uma classe pode ser de inida por uma funçãoproposicional, pode ser de inida igualmente bempor qualquer outra queseja verdadeira sempre que a primeira for verdadeira e falsa quando aprimeira for falsa. Por essa razão a classe não pode ser identi icada comnenhumadessas funçõesproposicionaismaisdoque comqualqueroutra— e dada uma função proposicional, haverá sempre muitas outras queserãoverdadeirasquandoelaforverdadeiraefalsasquandoelaforfalsa.Podemos dizer que duas funções proposicionais são “formalmenteequivalentes” quando isso acontece. Duasproposições são “equivalentes”quando ambas são verdadeiras ou ambas são falsas; duas funçõesproposicionaisøx,ψx são “formalmenteequivalentes”quandoøxésempreequivalente aψx. É o fato de haver outras funções formalmenteequivalentes a uma dada função que torna impossível identi icar umaclassecomumafunção;poisqueremosqueasclassessejamtaisquenuncaduas classes distintas possam ter exatamente os mesmos membros, eportantoduasfunçõesformalmenteequivalentestenhamdedeterminaramesmaclasse.Quandodecidimosqueclassesnãopodemsercoisasdamesmaespécie

que seus membros, que não podem ser meros montes ou agregados, etambém que não podem ser identi icadas com funções proposicionais,torna-semuitodi ícilveroqueelaspodemser,sedevemsermaisdoqueicçõessimbólicas.Esepudermosencontraralgumamaneiradelidarcomelas como icções simbólicas, aumentaremos a segurança lógica de nossaposição, uma vez que evitaremos a necessidade de supor que há classessemsermoscompelidosa fazerasuposiçãoopostadequenãoháclasses.Simplesmentenosabsteremosdeambasassuposições.EsseéumexemplodanavalhadeOccam,asaber,“entidadesnãodevemsermultiplicadassemnecessidade”.Quandonosrecusamosaafirmarqueháclasses,nãosedevesuporqueestamosa irmandodogmaticamentequenãoháclassealguma.Somos meramente agnósticos em relação a elas: como Laplace, podemos

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dizer,“jen’aipasbesoindecettehypothèse”.Formulemos as condições que um símbolo deve preencher para poder

servir como uma classe. Penso que as condições a seguir serãoconsideradasnecessáriasesuficientes:(1)Toda funçãoproposicionaldevedeterminarumaclasse, consistindo

naquelesargumentosparaosquaisafunçãoéverdadeira.Dadaqualquerproposição (verdadeira ou falsa), digamos acerca de Sócrates, podemosimaginarSócratessubstituídoporPlatãoouAristótelesouumgorilaouummarciano ou qualquer indivíduo no mundo. Em geral, algumas dessassubstituições darão uma proposição verdadeira, e algumas, uma falsa. Aclassedeterminadaconsistiráemtodasaquelassubstituiçõesquedãoumaproposiçãoverdadeira.Aindatemosdedecidir,éclaro,oqueentendemospor “todasaquelasqueetc.”Oqueestamosobservandonestemomentoéapenas que uma classe é tornada determinada por uma funçãoproposicional, e que toda função proposicional determina uma classeapropriada.(2) Duas funções proposicionais formalmente equivalentes devem

determinaramesmaclasse, eduasnão formalmenteequivalentesdevemdeterminar classes diferentes. Isto é, uma classe é determinada peloconjunto de seus membros, e duas classes nunca podem ter o mesmoconjunto demembros. (Se uma classe é determinada por uma funçãoøx,dizemosqueaéum“membro”daclasseseøaforverdadeiro.)(3)Devemos encontrar algumamaneira de de inir não só classes,mas

classesdeclasses.VimosnoCapítulo2quenúmeroscardinaisdevemserde inidos como classes de classes. A expressão comum da matemáticaelementar “A combinação den coisasm nummomento” representa umaclasse de classes, a saber, a classe de todas as classes dem termos quepodem ser selecionadas deuma dada classe den termos. Sem algummétodosimbólicoparalidarcomclassesdeclasses,alógicamatemáticasedesmantelaria.(4) Sob todas as circunstâncias, deve ser sem sentido (ou falso) supor

queumaclasseémembrodesimesmaounãoémembrodesimesma.IssoresultadacontradiçãoquediscutimosnoCapítulo8.(5)Por im—eestaéa condição cujopreenchimentoémaisdi ícil—,

deve ser possível fazer proposições sobre todas as classes compostas deindivíduos,ousobretodasasclassescompostasdeobjetosdealgum“tipo”lógico.Seessenãofosseocaso,muitosusosdeclassesseextraviariam—porexemplo,ainduçãomatemática.Aode iniraposteridadedeumtermodado, precisamos ser capazes de dizer que um membro da posteridade

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pertence atodas as classes hereditárias a que o dado termo pertence, eisso requer o tipo de totalidade que está em questão. A razão para quehajaumadi iculdadecomrelaçãoaessacondiçãoéquepodeserprovadoque é impossível falar detodas as funções proposicionais que podem terargumentosdeumdadotipo.Para começar, vamos ignorar essaúltima condição e osproblemasque

suscita. As duas primeiras condições podem ser tomadas juntas. Elasa irmam que deve haver uma classe, nemmais e nemmenos, para cadagrupodefunçõesproposicionaisformalmenteequivalentes;porexemplo,aclasse dos homens deve ser a mesma dos bípedes implumes ou dosanimaisracionais,oudasbestashumanas,ouqualqueroutracaracterísticaquesepossapreferirparade inir serhumano.Ora,quandodizemosqueduas funções proposicionais formalmente equivalentes podem não seridênticas, embora de inam a mesma classe, podemos provar a verdadedessa asserção assinalando que uma a irmação pode ser verdadeira emrelação a uma função e falsa em relação a outra; por exemplo, “acreditoque todos os homens são mortais” pode ser verdadeiro, ao passo que“acreditoquetodososanimaisracionaissãomortais” podeserfalso,jáqueposso acreditar erroneamente que a fênix é um animal racional imortal.Assim, somos levados a considerara irmações sobre funções, ou (maiscorretamente)funçõesdefunções.Algumas das coisas que podem ser ditas sobre uma função podem ser

consideradas ditas acerca da classe de inida pela função, ao passo queoutrasnão.Aa irmação“todososhomenssãomortais”envolveasfunções“x é humano” e “x é mortal”; ora, se quisermos, podemos dizer que issoenvolveas classeshomens emortais. Podemos interpretar a a irmaçãodeambos os modos, porque seu valor de verdade ica inalterado sesubstituirmos “x é humano” ou “x é mortal” por qualquer funçãoformalmente equivalente. Mas, como acabamos de ver, a a irmação“acredito que todos os homens são mortais” não pode ser consideradadizendo respeito à classe determinada por nenhuma das duas funções,porqueseuvalordeverdadepodeseralteradopelasubstituiçãoporumafunção formalmente equivalente (que deixa a classe inalterada).Chamaremos uma a irmação que envolva uma funçãoøx uma função“extensional”dafunçãoøx,seelaforcomo“todososhomenssãomortais”,isto é, se seu valor de verdade icar inalterado pela substituição porqualquer função formalmente equivalente; e quandouma funçãodeumafunçãonão forextensional,nósachamaremos“intensional”,demodoque“acreditoquetodososhomenssãomortais”éumafunçãointensionalde“x

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é humano” ou “x é mortal”. Assim, funções extensionais de uma funçãoxpodem, para propósitos práticos, ser consideradas funções da classedeterminadaporx,aopassoquefunçõesintensionaisnãopodemserassimconsideradas.Convém observar que todas as funçõesespecíficas de funções que

tivemosoportunidadedeintroduzirnalógicamatemáticasãoextensionais.Assim,porexemplo,asduas funções fundamentaisdas funçõessão: “øx ésempre verdadeiro” e “ øx é verdadeiro às vezes”. Cada uma dessas temseuvalordeverdadeinalteradose øx forsubstituídoporqualquerfunçãoformalmente equivalente. Na linguagem das classes, seα for a classedeterminada porøx, “øx é sempre verdadeiro” é equivalente a “tudo émembro deα”, e “øx é verdadeiro às vezes” é equivalente a “α temmembros” ou (melhor) “α tem pelo menos um membro”. Tomemosnovamente a condição, com que lidamos no capítulo anterior, para aexistênciade“o termoquesatisfazøx”.Acondiçãoéquehajaumtermo ctalqueøxsejasempreequivalentea“xéc”.Issoéobviamenteextensional.É equivalente à asserção de que a classe de inida pela funçãoøx é umaclasseunitária, istoé,umaclassequetem1membro;emoutraspalavras,umaclassequeémembrode1.Dada uma função que pode ou não ser extensional, podemos sempre

derivar dela uma função conexa e certamente extensional da mesmafunção,medianteoseguinteplano:suponhamosquenossafunçãooriginalde uma função seja uma que atribui aøx a propriedade f; depoisconsideremos a asserção “há uma função que tem a propriedade f e éformalmente equivalente aøx”. Essa é uma função extensional de øx; éverdadeiraquandonossaa irmaçãooriginaléverdadeira,eéformalmenteequivalenteàfunçãooriginaldeøxseessafunçãooriginalforextensional;masquandoafunçãooriginaléintensional,anovaéverdadeiracommaisfreqüênciaqueaantiga.Porexemplo,considerenovamente“acreditoquetodososhomenssãomortais”,vistocomouma funçãode“x éhumano”.Afunçãoextensionalderivadaé:“háumafunçãoformalmenteequivalentea‘xéhumano’etalqueeuacreditoquetudooqueasatisfazémortal.”Issocontinuaverdadeiroquandosubstituímos“xéhumano”por“xéumanimalracional”, mesmo que eu acredite, falsamente, que a fênix é racional eimortal.Damosonome“funçãoextensionalderivada”à funçãoconstruídacomo

anteriormente,asaber,àfunção:“háumafunçãoquetemapropriedade feéformalmenteequivalenteaøx”,emqueafunçãooriginalera“afunçãoøxtemapropriedadef”.

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Podemos considerar que a função extensional derivada tem por seuargumento a classe determinada pela funçãoøx, e a irmaf sobre essaclasse. Isso pode ser tomado como a de inição de uma proposição sobreuma classe, isto é, podemos de inir: A irmar que “a classe determinadapela funçãoøx tem a propriedade f ” é a irmar queøx satisfaz a funçãoextensionalderivadadef.Isso dá um sentido a qualquer a irmação sobre uma classe que possa

ser feita de maneira signi icativa acerca de uma função; e veremos que,tecnicamente, gera o resultado necessário para tornar uma teoriasimbolicamentesatisfatória.1Oqueacabamosdedizercomrelaçãoàde iniçãodeclassesésu iciente

parasatisfazernossasquatroprimeirascondições.Amaneirapelaqualelaassegura a terceira e a quarta, a saber, a possibilidade de classes declasses e a impossibilidade de uma classe ser ou não ser membro de simesma, é um tanto técnica; é explicada emPrincipia Mathematica, maspode ser dada como certa aqui. O resultado é que, exceto para nossaquinta condição, podemos considerar nossa tarefa concluída. Mas essacondição— aomesmo tempo amais importante e amais di ícil—não épreenchidaemvirtudedecoisaalgumaquejátenhamosdito.Adi iculdadeestáligadaàteoriadostipos,edeveserbrevementediscutida.2Vimos no Capítulo 13 que há uma hierarquia de tipos lógicos, e que é

uma falácia permitir que um objeto pertencente a umdesses tipossubstituaumobjetopertencenteaoutro.Ora,nãoédi ícilmostrarqueasvárias funções que podem tomar um objeto dadoa como argumento nãosão todas de um único tipo. Podemos chamá-las todas funções dea.Podemos tomarprimeiroaquelasentreelasquenãoenvolvemreferênciaa nenhuma coleção de funções; vamos chamá-las de “funções deapredicativas”.Seavançarmosagoraparafunçõesqueenvolvemreferênciaàtotalidadedasfunçõesdeapredicativas,incorreremosnumafaláciaseasconsiderarmos sendo do mesmo tipo que as funções dea predicativas.Tomemos uma a irmação banal como “a é um francês típico”. Comode iniremosum“francês típico”?Podemosde ini-locomoum“quepossuatodas as qualidades possuídas pelamaioria dos franceses”. No entanto, amenos que limitemos “todas as qualidades” àquelas que não envolvemumareferênciaaumatotalidadedequalidades, teremosdeobservarqueos franceses em suamaioria não são “típicos” no sentido apresentado, eportantoade iniçãomostraquenãosertípicoéessencialparaumfrancêstípico. Isso não é uma contradição lógica, uma vez que não há nenhumarazão para que haja algum francês típico; mas ilustra a necessidade de

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separar qualidades que envolvem referência a uma totalidade dequalidadesdaquelasquenãoofazem.Sempre que, por a irmações acerca de “todos” ou “alguns” dos valores

queumavariávelpodeassumirdemaneirasigni icativa,geramosumnovoobjeto,essenovoobjetonãodeveestarentreosvaloresquenossavariávelanteriorpodiaassumir,umavezque, seestivesse,a totalidadedevaloresentreosquaisavariávelpoderiavariarsóseriade inívelemtermosdesiprópria,e icaríamosenvolvidosnumcírculovicioso.Porexemplo, sedigo“Napoleãotinhatodasasqualidadesquefazemumgrandegeneral”,devodefinir“qualidades”detalmaneiraqueissonãoincluaoqueestoudizendoagora, istoé, “ter todasasqualidadesque fazemumgrandegeneral”nãodeve ser em simesmoumaqualidadenosentidosuposto. Issoébastanteóbvio, e é o princípio que leva à teoria dos tipos, pela qual paradoxos decírculo vicioso são evitados. Quando aplicadas a funções dea, podemossupor que “qualidades” deve signi icar “funções predicativas”. Assim,quando digo “Napoleão tinha todas as qualidades etc.”, quero dizer“Napoleão satisfazia todas as funções predicativas etc.”. Essa a irmaçãoatribui uma propriedade a Napoleão, mas não uma propriedadepredicativa;dessamaneira,escapamosaocírculovicioso.Massempreque“todasasfunçõesque”ocorre,afunçãoemquestãodeveserlimitadaaumúnico tipo para que o círculo vicioso seja evitado; e, como Napoleão e ofrancêstípicomostraram,otiponãoétornadodeterminadoporaqueledoargumento. Precisaríamos de uma discussão muito mais extensa paraexporessaidéiaporcompleto,masoquefoiditopodebastarparadeixarclaro que as funções que podem tomar um dado argumento são de umasérie in inita de tipos. Poderíamos,mediante vários estratagemas lógicos,construirumavariávelquepercorresseoprimeiro ndessestipos,emquené inito,masnãopodemosconstruirumavariávelquepercorressetodoseles,e,sepudéssemos,essesimplesfatogerariadeimediatoumnovotipodefunçãocomosmesmosargumentos,edesencadeariadenovoomesmoprocesso.Chamamos funções dea predicativas oprimeiro tipo de funções dea;

chamamos as funções dea que envolvem referência à totalidade doprimeiro tipo desegundo tipo; e assim por diante. Nenhuma função deavariável pode percorrer todos esses diferentes tipos: deve se limitar aalgumtipodefinido.Essas considerações são relevantes para nossa de inição da função

derivada extensional. Falamos nesse caso de uma “função formalmenteequivalente aøx”. É necessário decidir quanto ao tipo de nossa função.

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Qualquerdecisãoserve,masalgumassãoinevitáveis.Chamemosasupostafunção formalmente equivalenteψ. Portanto,ψ aparece como umavariável, e deve ser de algum tipo determinado. O que sabemosnecessariamente sobreo tipodeø éapenasque tomaargumentosdeumdado tipo— é (digamos) uma função dea. Mas isso, como acabamos dever, não determina seu tipo. Para sermos capazes (como nosso quintorequisito exige) de lidar comtodas as classes cujos membros são domesmotipoquea,devemossercapazesdede inirtodasessasclassespormeiodefunçõesdeumúnicotipo;istoé,devehaveralgumtipodefunçãodea, digamos o enésimo, tal que qualquer função dea seja formalmenteequivalenteaalgumafunçãodeadoenésimotipo.Seesseforocaso,entãoqualquer função extensional que se aplique a todas as funções dea doenésimo tipo se aplicará a qualquer função dea. É principalmente comoum meio técnico de materializar uma suposição que conduza a esseresultado que as classes são úteis. A suposição é chamada o “axioma daredutibilidade” e pode ser expressa da seguinte maneira: “Há um tipo(digamosr) de funções dea que, dada qualquer função dea, éformalmenteequivalenteaalgumafunçãodotipoemquestão.”Se esse axioma for admitido, usaremos funções desse tipo ao de inir

nossa função extensional associada. A irmações sobre todas as classesa(istoé,todasasclassesde inidasporfunçõesdea)podemserreduzidasaa irmaçõessobretodasasfunçõesdeadotipor.Enquantoapenasfunçõesextensionais de funções estiverem envolvidas, isso nos dá na práticaresultadosquedeoutromodoteriamexigidoanoçãoimpossívelde“todasas funções dea”. Uma região particular em que isso é vital é a induçãomatemática.Oaxiomadaredutibilidadeenvolvetudooqueérealmenteessencialna

teoria das classes. Vale a pena, portanto, perguntar se há alguma razãoparasuporqueeleéverdadeiro.Esse axioma, como o axiomamultiplicativo e o axioma da in inidade, é

necessário para certos resultados, mas não para a simples existência doraciocíniodedutivo.Ateoriadadedução,comoexplicadanoCapítulo14,eas leis para proposições que envolvem “todos” e “alguns” são a própriatexturadoraciocíniomatemático:semelas,oualgosemelhanteaelas,nãosónãoobteríamososmesmos resultados, comonãoobteríamos resultadoalgum. Não podemos usá-las como hipóteses, e deduzir conseqüênciashipotéticas, porque elas são tanto regras de dedução quanto premissas.Devem ser absolutamente verdadeiras, do contrário o que deduzimos deconformidade com elas sequer se segue das premissas. Por outro lado, o

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axioma da redutibilidade, como nossos dois axiomas matemáticosanteriores, poderia perfeitamente ser formulado como uma hipótesesemprequeéusado,emvezdeseradmitidocomorealmenteverdadeiro.Podemos deduzir suas conseqüências hipoteticamente; podemos tambémdeduzir as conseqüências de supô-lo falso. Ele é, portanto, apenasconveniente,nãonecessário.E,emvistadacomplicaçãodateoriadostiposeda incertezadetudoexcetoseusprincípiosmaisgerais,porenquantoéimpossível dizer se não poderia haver algumamaneira de dispensar porcompleto o axioma da redutibilidade. No entanto, supondo a correção dateoria esboçada anteriormente, que podemos dizer quanto à verdade oufalsidadedoaxioma?O axioma, podemos observar, é uma forma generalizada da identidade

dosindiscerníveisdeLeibniz.Essesupunha,comoumprincípiológico,quedois sujeitos diferentes devem diferir quanto a seus predicados. Ora,predicados são somente algumas entre o que chamamos “funçõespredicativas”, que incluirão também relações com termos dados, e váriaspropriedades que não devem ser consideradas predicados. Assim asuposição de Leibniz émuitomais estrita e estreita que a nossa. (Não, éclaro, de acordo com a lógicadele, que consideravatodas as proposiçõesredutíveis à forma sujeito-predicado.) Mas, até onde posso ver, não hánenhuma boa razãopara se acreditar na forma de Leibniz. Seriaperfeitamentepossível,comoumapossibilidadelógicaabstrata,haverduascoisasque tivessemexatamenteosmesmospredicadosno sentido estritoem que temos usado a palavra “predicado”. Como ica nosso axiomaquandopassamosalémdospredicadosnosentidoestreito?Nomundoreal,parece não haver como duvidar de sua verdade empírica no tocante aparticulares, em virtude da diferenciação espaço-temporal: doisparticulares nunca têm exatamente as mesmas relações espaciais etemporaiscomtodososoutrosparticulares.Masissoé,porassimdizer,umacidente, um fato sobre o mundo em que por acaso nos encontramos. Alógica pura, e amatemática pura (que é amesma coisa), pretendem serverdadeiras, para usar a fraseologia de Leibniz, em todos os mundospossíveis, não apenasnestemundo confuso e acidentado emqueo acasonos aprisionou. Há certa altivez que o lógico deve preservar: não devecondescenderemderivarargumentosdascoisasquevêàsuavolta.Encarando-o desse ponto de vista estritamente lógico, não me parece

haver nenhuma razão para acreditar que o axioma da redutibilidade élogicamentenecessário,oqueseriaosentidodedizerqueéverdadeiroemtodos os mundos possíveis. A admissão desse axioma num sistema de

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lógica é, portanto, um defeito, ainda que ele seja empiricamenteverdadeiro. É por essa razão que a teoria das classes não pode serconsiderada tão completaquanto a teoriadasdescrições.Hánecessidadedemaistrabalhosobreateoriadostipos,naesperançadesechegaraumadoutrina das classes que não exija essa suposição dúbia. Mas é razoávelconsiderarque a teoria esboçadanopresente capítulo é correta emsuaslinhas principais, isto é, em sua redução de proposições nominalmenteacercadeclasseaproposiçõesacercade suas funçõesde inidoras.Evitarclasses como entidades pormeio dessemétodo deve, ao que parece, serválidoemprincípio,emboraosdetalhespossamaindarequererajustes.Éporque isso parece indubitável que incluímos aqui a teoria das classes,apesar de nosso desejo de excluir, tanto quanto possível, tudo o queparecesseabertoadúvidassérias.A teoria das classes, como esboçada anteriormente, reduz-se a um

axioma e uma de inição. No interesse da clareza, vamos repeti-los. Oaxiomaé:Háumtipoτtalqueseøforumafunçãoquepodetomarumdadoobjeto

como argumento, então há uma função ψ do tipo τ que é formalmenteequivalenteaø.Adefiniçãoé:Seøforumafunçãoquepodetomarumdadoobjetocomoargumento,eτ

o tipo mencionado no axioma apresentado, então dizer que a classedeterminadaporøtemapropriedadefédizerqueháumafunçãodotipoτ,queéformalmenteequivalenteaøetemapropriedadef.

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Capítulo18Matemáticaelógica

Historicamente falando, a matemática e a lógica foram estudosinteiramente distintos. A matemática esteve ligada à ciência; a lógica, aogrego. Ambas, porém, desenvolveram-se nos tempos modernos: a lógicatornou-se mais matemática e a matemática tornou-se mais lógica. Aconseqüência é que agora se tornou inteiramente impossível traçar umalinhaentreasduas;defato,asduassãouma.Diferemcomoummeninoeum homem: a lógica é a juventude da matemática, e a matemática, amaturidade da lógica. Essa idéia deixa indignados os lógicos que, tendopassado seu tempo estudando dos textos clássicos, são incapazes deacompanhar um raciocínio simbólico, e os matemáticos que aprenderamuma técnica sem se dar ao trabalho de indagar sobre seu signi icado oujusti icação.Hojeemdia,felizmente,osdoistiposestão icandomaisraros.Uma parte tão grande do trabalho matemático moderno situa-se nafronteira da lógica, uma parte tão grande da lógica é simbólica e formal,quearelaçãomuitoestreitaentrealógicaeamatemáticatornou-seóbviapara todo estudante instruído. A prova da identidade de ambas, claro, éuma questão de detalhe: começando com premissas que seriamuniversalmente admitidas como pertencentes à lógica, e chegando, pordedução, a resultados que pertencem de maneira igualmente óbvia àmatemática,descobrimosquenãohápontoalgumemqueumalinhanítidapossa ser traçada, com a lógica à esquerda e a matemática à direita. Seaindahouverquemnãoadmiteaidentidadeentrealógicaeamatemática,podemos desa iá-los a indicarem que ponto, nas sucessivas de inições ededuções dePrincipiaMathematica, eles consideramque terminaa lógicacomeçaamatemática.Ficaráevidenteentãoquequalquerrespostadeverásercompletamentearbitrária.Noscapítulosanteriores, começandopelosnúmerosnaturais,de inimos

primeiro“númerocardinal”emostramoscomogeneralizaraconcepçãodenúmero;depoisanalisamosasconcepçõesenvolvidasnade inição,atéquetratamos dos fundamentos da lógica. Num tratamento sintético, dedutivo,esses fundamentosvêmemprimeiro lugar, eosnúmerosnaturais só sãoalcançadosapósumalongajornada.Essetratamento,emboraformalmente

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maiscorretoqueaquelequeadotamos,émaisdi ícilparao leitor,porqueos conceitos lógicos e as proposições fundamentais com que começa sãodistanteseestranhossecomparadoscomosnúmerosnaturais.Alémdisso,elesrepresentamaatualfronteiradoconhecimento,alémdaqualsitua-seoaindadesconhecido;eodomíniodoconhecimentosobreelesaindanãoémuitoseguro.Costumava-se dizer que a matemática é a ciência da “quantidade”.

“Quantidade” é um termo vago, mas no interesse da argumentaçãopodemos substituí-lo pela palavra “número”. A a irmação de que amatemáticaéaciênciadonúmeroseriafalsadeduasdiferentesmaneiras.Por um lado, há ramos reconhecidos damatemática que nada têm a vercom número— toda a geometria que não usa coordenadas oumedidas,por exemplo: a geometria projetiva e descritiva, até o ponto em quecoordenadassãointroduzidas,nadatemavercomnúmero,ousequercomquantidade no sentido demaior emenor. Por outro lado, por meio dade inição de cardinais, da teoria da indução e das relações ancestrais, dateoriageraldassériesedade iniçãodasoperaçõesaritméticas,tornou-sepossível generalizar grande parte do que costumava ser provado apenasem conexão com números. O resultado é que o que era outrora o únicoestudo da aritmética dividiu-se agora em vários estudos separados, dosquais nenhum diz respeito especialmente a números. As propriedadesmais elementares dos números dizem respeito a relações um-um e asimilaridade entre classes. A adição diz respeito à construção de classesmutuamente exclusivas respectivamente similares a um conjunto declassesquenãosabemosseremmutuamenteexclusivas.Amultiplicaçãoéincorporadana teoriadas “seleções”, istoé,decerto tipode relaçõesum-muitos que gera toda a teoria da indução matemática. As propriedadesordinaisdosváriostiposdesériesdenúmeros,bemcomooselementosdateoria da continuidade das funções e dos limites das funções podem sergeneralizados de modo que não mais envolva qualquer referênciaessencialanúmeros.Éumprincípio,emtodoraciocínioformal,generalizarao máximo, uma vez que com isso podemos assegurar que um dadoprocesso de dedução tenha resultados mais amplamente aplicáveis;portanto,aogeneralizarassimoraciocíniodaaritmética,estamossomenteseguindo um preceito universalmente admitido na matemática. E aogeneralizar assim, criamos, de fato, um conjunto de novos sistemasdedutivos,emqueaaritméticatradicionaléaomesmotempodissolvidaeampliada; mas se devemos dizer que algum desses novos sistemasdedutivos—porexemplo,a teoriadasseleções—pertenceà lógicaouà

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matemática é algo inteiramente arbitrário e não passível de ser decididoracionalmente.Somos, portanto, levados a encarar de frente a questão: quematéria é

essa que pode ser chamada indiferentemente matemática ou lógica? Háalgummeioquenospermitadefinirisso?Determinadas características dessa matéria são claras. Para começar,

nessa matéria não lidamos com coisas particulares ou propriedadesparticulares: lidamos formalmente com o que pode ser dito acerca dequalquer coisa ouqualquer propriedade.Estamosprontosadizerqueummais um são dois, porém não que Sócratesmais Platão são dois, porque,em nossa condição de lógicos ou de matemáticos puros, nunca ouvimosfalar de Sócrates ou Platão. Um mundo em que tais indivíduos nuncatenhamexistido ainda seriaummundoemqueummaisum seriamdois.Não nos é dado, em nossa condição de matemáticos puros ou lógicos,mencionarcoisaalguma,porqueseofizermosestaremosintroduzindoalgoirrelevanteenãoformal.Podemostornarissoclaroaplicando-oaocasodosilogismo.A lógicatradicionaldiz: “Todososhomenssãomortais,Sócratesé um homem, portanto Sócrates é mortal.” Fica claro agora que o quepretendemosa irmar,paracomeçar,éapenasqueaspremissasimplicamaconclusão, não que as premissas e a conclusão sejam realmenteverdadeiras; mesmo o lógico mais tradicional assinala que a verdadeefetiva das premissas é irrelevante para a lógica. Assim, a primeiramudançaaserfeitanosilogismotradicionalapresentadaéexpressá-lonaforma: “Se todos os homens são mortais e Sócrates é um homem, entãoSócratesémortal.”Podemosobservaragoraqueissopretendecomunicarqueesse raciocínioéválidoemvirtudedesua forma,nãoemvirtudedostermos particulares que nela ocorrem. Se tivéssemos omitido “Sócrates éum homem” de nossas premissas, teríamos um raciocínio não formal,admissívelsomenteporqueSócratesédefatoumhomem;nessecasonãoteríamos podido generalizar esse raciocínio. Mas quando, como no casocitado, o raciocínio é formal, nadadependedos termosqueneleocorrem.Dessamaneira,podemossubstituirhomensporα,mortaisporβeSócratesporx, em queα eβ são quaisquer classes ex é qualquer indivíduo.Chegamos,então,àa irmação:“Quaisquerquesejamosvaloresdex,α eβ,se todososα’s sãoβ’s ex éumα, entãox éumβ”;emoutraspalavras,“afunçãoproposicional ‘se todososα’s sãoβ’s ex éumα, entãox é umβ’ ésempre verdade”. Aqui inalmente temos uma proposição da lógica —aquela que ésugerida pela a irmação tradicional acerca de Sócrates,homensemortais.

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É claro que, se nosso objetivo for chegar ao raciocínio formal,chegaremossempreemúltimainstânciaaa irmaçõescomoaapresentada,emquenenhumacoisaoupropriedaderealémencionada;issoacontecerápormeiodenossomerodesejodenãoperdernossotempoprovandonumcaso particular o que pode ser provado em geral. Seria ridículodesenvolverumlongoraciocínioacercadeSócrates,edepoisdesenvolverprecisamenteomesmodenovoacercadePlatão.Senossoraciocínioé talque(digamos)seaplicaatodososhomens,vamosprová-locomrelaçãoax, com a hipótese “sex é um homem”. Com essa hipótese, o raciocínioconservará sua validade hipotética mesmo quandox não for um homem.Masagoraveri icaremosquenossoraciocínioaindaseriaválidose,emvezdesuporquexéumhomem,supuséssemosquexéummacaco,umgansoouumprimeiro-ministro.Nãoperderemos,portanto,nossotempotomandocomopremissa “x éumhomem”,mas tomaremos “ x é umα”, em queα équalquer classe de indivíduos, ouøx, em queø é qualquer funçãoproposicionaldealgumtipodesignado.Assim,aausênciadetodamençãoacoisasoupropriedades singularesna lógicaounamatemáticapura éumresultadonecessáriodofatodeseuestudoser,comodizemos,“puramenteformal”.Neste ponto defrontamo-nos com um problemamais fácil de formular

que de resolver. O problema é: “Quais são os constituintes de umaproposiçãológica?”Nãoseiaresposta,masproponho-meaexplicarcomooproblemasurge.Tomemos(digamos)aproposição“SócratesexistiuantesdeAristóteles”.

Aqui parece óbvio que temos uma relação entre dois termos, e que osconstituintes da proposição (bem como do fato correspondente) sãosimplesmente os dois termos e a relação, isto é, Sócrates, Aristóteles eantes.(IgnoroofatodequeSócrateseAristótelesnãosãosimples;tambémo fato de que o que aparentemente são seus nomes, são na realidadedescrições truncadas. Nenhum desses fatos é relevante para nossapresentequestão.)Podemosrepresentaraformageraldetaisproposiçõespor“x Ry”,quepodeser lidocomo“x temarelaçãoRcomy”.Essa formageralpodeocorreremproposiçõeslógicas,masnãoalgumcasoparticulardela. Devemos então inferir que a forma geral é ela própria umconstituintedetaisproposiçõeslógicas?Dada uma proposição como “Sócrates existiu antes Aristóteles”, temos

certosconstituintese tambémcerta forma.Masa formanãoéelamesmaum novo constituinte; se fosse, precisaríamos de uma nova forma paraabarcar tanto a ela quanto aos outros constituintes. Podemos, de fato,

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transformartodos os constituintes de uma proposição em variáveis,mantendo ao mesmo tempo a forma inalterada. Isso é o que fazemosquandousamosumesquemacomo“x Ry”, que representaqualquerumadecertaclassedeproposições, a saber, aquelaquea irmarelaçõesentredoistermos.Podemospassaraasserçõesgerais,como“x Ryéverdadeiroàsvezes”—istoé,hácasosemqueexistemrelaçõesduais.Essaasserçãopertenceráàlógica(ouàmatemática)nosentidoemqueestamosusandoapalavra.Masnelanãomencionamosnenhumacoisaourelaçãoparticular;nenhuma coisa ou relação particular pode jamais fazer parte de umaproposição de lógica pura. Ficamos reduzidos a formas puras como osúnicosconstituintespossíveisdasproposiçõeslógicas.Nãodesejo a irmar positivamente que formaspuras—por exemplo, a

forma “x Ry” — fazem realmente parte de proposições do tipo queestamos considerando. A questão da análise de tais proposições é di ícil,com considerações con litantes de um lado e de outro. Não podemos nosenvolver nessa questão agora,mas podemos aceitar, como uma primeiraaproximação, a idéia de que formas são o que faz parte das proposiçõeslógicas como seus constituintes. E podemos explicar (embora não de inirformalmente) o que queremos dizer por “forma” de uma proposição daseguintemaneira:A “forma” de uma proposição é o que, nela, permanece inalterado

quandotodososconstituintesdaproposiçãosãosubstituídosporoutros.Assim, “Sócrates é anterior a Aristóteles” tem a mesma forma que

“NapoleãoémaiordoqueWellington”, embora todosos constituintesdasduasproposiçõessejamdiferentes.Podemos então estabelecer, como uma característica necessária

(emboranãosu iciente)dasproposições lógicasoumatemáticas,queelasdevem ser tais que possam ser obtidas de uma proposição que nãocontenha nenhuma variável (isto é, nenhuma palavra comotodos,alguns,um, o etc.) pela transformação de cada constituinte numa variável eafirmando-sequeoresultadoésempreverdadeiroouàsvezesverdadeiro,ouqueésempreverdadeirocomrespeitoaalgumasdasvariáveis,ouqueéverdadeiroàsvezescomrespeitoaoutras,ouqualquervariantedessasformas. Uma outra maneira de expressar a mesma coisa é dizer que alógica(ouamatemática)dizrespeitounicamentea formasedizrespeitoaelas unicamente na maneira de a irmar que são sempre ou às vezesverdadeiras— com todas as permutações de “sempre” e “às vezes” quepossamocorrer.Há em todas as línguas algumas palavras cuja única função é indicar

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forma. Essas palavras, geralmente, sãomais comuns em línguas que têmmenos in lexões. Tomemos “Sócrates é humano”. Aqui, “é” não é umconstituinte da proposição, mas indica meramente a forma sujeito–predicado.Demaneirasimilar,em“SócrateséanterioraAristóteles”,o“é”eo “a” indicammeramente forma;aproposiçãoéamesmaque“Sócratesprecede Aristóteles”, em que essas palavras desapareceram e a forma éindicada deoutra maneira. A forma, via de regra, pode ser indicada deoutra maneira que por palavras especí icas: a ordem das palavras podeassegurarquase tudooque sedeseja.Masnão sedeve enfatizardemaisesse princípio. Por exemplo, é di ícil ver como poderíamos expressarconvenientemente formas moleculares de proposições (isto é, o quechamamos “funções de verdade”) sem absolutamente nenhuma palavra.VimosnoCapítulo 14queumapalavra ou símbolo é su iciente para essepropósito, a saber, uma palavra ou símbolo que expressemincompatibilidade. Mas sem nenhum poderíamos encontrar di iculdades.Esse, no entanto, não é o ponto importante para nosso objetivo nomomento.Oimportanteparanóséobservarqueaformapodeseroúnicointeresse de uma proposição geral, mesmo quando nenhuma palavra ousímbolo nessa proposição designe a forma. Se desejamos falar acerca daformaemsimesma,devemos terumapalavrapara ela;mas se, comonamatemática, desejamos falar acerca de todas as proposições que têm aforma, em geral se veri icará que uma palavra para a forma não éindispensável;provavelmenteemteoriaelanuncaéindispensável.Supondo — como penso que podemos fazer — que as formas das

proposiçõespodem ser representadas pelas formas das proposições emque elas são expressas sem nenhuma palavra especial para formas,chegaríamosaumalinguagememquetudooquefosseformalpertenceriaà sintaxe e não ao vocabulário. Em tal linguagem, poderíamos expressartodasasproposiçõesdamatemática,mesmoquenãoconhecêssemosumaúnicapalavradalinguagem.Alinguagemdalógicamatemática,seelafossedesenvolvida,seriatal linguagem.Teríamossímbolosparavariáveis,como“x”, “R” e “y”, arranjados de váriosmodos; e omodo de arranjo indicariaqueseestavaa irmandoaverdadedealgumacoisaparatodososvaloresou alguns valores das variáveis. Não precisaríamos conhecer nenhumapalavra, porque elas só seriam necessárias para conferir valores àsvariáveis,oqueéatarefadomatemáticoaplicado,nãodomatemáticopuroou do lógico. Uma das marcas de uma proposição da lógica é que, dadauma linguagem adequada, uma tal proposição pode ser a irmada nessalinguagem por uma pessoa que conheça a sintaxe sem conhecer uma só

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palavradovocabulário.Mas,a inaldecontas,hápalavrasqueexpressamforma,como“é”e“a”.

E em todo simbolismo até hoje inventado para a lógica matemática, hásímbolos que possuem signi icados formais constantes. Podemos tomarcomo exemplo o símbolo para incompatibilidade, que é empregado noestabelecimentode funçõesdeverdade.Taispalavrasousímbolospodemocorrernalógica.Aquestãoé:comodevemosdefini-los?Taispalavrasousímbolosexpressamaschamadas“constantes lógicas”.

As constantes lógicas podem ser de inidas exatamente como de inimosformas; de fato, são em essência a mesma coisa. Uma constante lógicafundamentalseráaquelaqueécomumaváriasproposições,qualquerdasquaispoderesultardaoutraporsubstituiçõesdeumtermoporoutro.Porexemplo, “Napoleão é maior do que Wellington” resulta de “Sócrates éanterior a Platão”, pela substituição de “Sócrates” por “Napoleão”, de“Platão”por“Wellington”ede“anterior”por“maior”.Algumasproposiçõespodem ser obtidas dessa maneira tomando-se por base o protótipo“SócrateséanterioraPlatão”ealgumasnão;asquepodemsãoasquesãodaforma“x Ry”, istoé, expressamrelaçõesduais.Nãopodemosobterdoprotótipo citado, por substituição termo por termo, proposições como“Sócrateséhumano”ou“osateniensesderamcicutaaSócrates”,porqueaprimeiraéda formasujeito–predicadoeasegundaexpressaumarelaçãoentre três termos. Se devemos ter palavras em nossa linguagem lógicapura, elas devem ser tais que expressem “constantes lógicas”, e“constantes lógicas” serão sempre o que é comum a um grupo deproposições deriváveis umas das outras, da maneira apresentadaanteriormente,porsubstituições termopor termo(ouderivadasdoqueécomum a um tal grupo). E isso que há em comum é o que chamamos“forma”.Nesse sentido, todas as “constantes” que ocorrem namatemática pura

são constantes lógicas. O número 1, por exemplo, é derivado deproposiçõesda forma: “Háum termoc tal queøx é verdadeiro quando, esomente quando,x éc.” Essa é uma função deø, e várias diferentesproposições resultam da atribuição de diferentes valores a ø. Podemos(comumapequenaomissãodepassos intermediáriosnão relevanteparanosso objetivo presente) tomar a função citada deø como o que se querdizerpor “a classedeterminadaporø éumaclasseunitária”ou “a classedeterminadaporøémembrode1”(1sendoumaclassedeclasses).Dessamaneira, proposições em que 1 ocorre adquirem um signi icado que éderivadodecerta forma lógicaconstante.Everemosqueomesmoocorre

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com todas as constantes matemáticas: todas são constantes lógicas, ouabreviações simbólicas cujo uso completo num contexto apropriado édefinidopormeiodeconstanteslógicas.No entanto, embora todas as proposições lógicas (ou matemáticas)

possam ser inteiramente expressas em termos de constantes lógicasjuntamente com variáveis, não é verdade que, inversamente, todas asproposições que podem ser expressas dessa maneira sejam lógicas. Atéagora encontramos um critério necessário, porém não su iciente, paraproposições matemáticas. De inimos su icientemente o caráter das idéiasprimitivasem termosdasquais todasas idéiasdamatemáticapodemserdefinidas,masnãodasproposiçõesprimitivascombasenasquaistodasasproposiçõesdamatemáticapodemserdeduzidas.Essaéumaquestãomaisdifícil,cujarespostacompletaaindanãoseconhece.Podemostomaroaxiomadain inidadecomoumexemplodeproposição

que, embora possa ser enunciada em termos lógicos, não pode sera irmadacomoverdadeirapela lógica.Todasasproposiçõesda lógicatêmuma característica que se costumava expressar dizendo que eramanalíticas, ou que seus contraditórios eram incoerentes. Esse modo dea irmação,noentanto,nãoésatisfatório.Aleidacontradiçãoémeramenteuma entre as proposições lógicas; não tem nenhuma preeminênciaespecial; e a prova de que a contradição de alguma proposição éincoerenteprovavelmenterequeroutrosprincípiosdededuçãoaforaaleida contradição.Apesardisso, a característicadasproposições lógicasqueestamosprocurandoé talqueaquelesquedisseramqueela consistiaemdedutibilidade da lei da contradição perceberam e pretenderam de inir.Essa característica, que por ora podemos chamar tautologia, obviamentenãopertence à asserçãodequeonúmerode indivíduosnouniverso én,não importa que númeron seja. Mas para a diversidade dos tipos, seriapossível provar logicamente que há classes den termos, em quen équalquernúmerointeiro inito;ouatéqueháclasseden 0termos.Mas,porcausa dos tipos, essas provas, como vimos no Capítulo 13, são falaciosas.Ficamosreduzidosaobservaçõesempíricasparadeterminarseonúmerode indivíduos no mundo én. Entre os mundos “possíveis” no sentidoleibniziano, haverámundos que tenhamum, dois, três. . . indivíduos. Nãoparecehavernemmesmonenhumanecessidadelógicadequehajasequerumindivíduo1— por que, de fato, deveria haver algummundo? A provaontológica da existência de Deus, se fosse válida, estabeleceria anecessidade lógica de pelo menos um indivíduo. Mas ela é geralmente

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reconhecidacomo inválida,ede fatorepousasobreuma idéiaerrôneadeexistência— isto é, não compreendeque só sepode a irmar a existênciade algo descrito, não de algo nomeado, de modo que não faz sentidoargumentarapartirde“issoétalcoisa”e“talcoisaexiste”. Serejeitamosoargumento ontológico, somos levados, ao que parece, a concluir que aexistência de um mundo é um acidente — isto é, não é logicamentenecessária. Se for assim, nenhum princípio da lógica pode a irmar“existência”, exceto sobumahipótese,ou seja,nenhumdelespode serdaforma“afunçãoproposicionaltaléverdadeiraàsvezes”.Proposiçõescomessaforma,quandoocorremnalógica,terãodeocorrercomohipótesesouconseqüências de hipóteses, não como proposições a irmadas completas.As proposições a irmadas completas da lógica serão todas do tipo quea irmaquealgumafunçãoproposicionalésempreverdade.Porexemplo,ésempreverdadequesep implicaqeq implicar,entãop implicar,ouque,setodososα’ssãoβ’sexéumα, entãox éumβ.Taisproposiçõespodemocorrernalógica,esuaverdadeéindependentedaexistênciadouniverso.Podemos estabelecer que, se não houvesse nenhum universo,todas asproposições gerais seriam verdadeiras, pois o contraditório de umaproposição geral (como vimos no Capítulo 15) é uma proposição quea irma existência, e seria portanto sempre falsa se nenhum universoexistisse.Asproposições lógicas são taisquepodemser conhecidasapriori, sem

estudo do mundo real. Só com base em um estudo de fatos empíricossabemos que Sócrates é um homem, mas sabemos que o silogismo estácorretoemsua formaabstrata (istoé,quandoé formuladoemtermosdevariáveis) sem precisar fazer nenhum apelo à experiência. Isso é umacaracterística não das proposições lógicas em si mesmas, mas do modopelo qual as conhecemos. Tem, contudo, uma relação com a questão dequal pode ser a natureza delas, uma vez que há alguns tipos deproposições que seria muito di ícil supor que teríamos como conhecê-lasemexperiência.Estáclaroquedevemosprocurarade iniçãode“lógica”ou“matemática”

tentando dar uma nova de inição da velha noção de proposições“analíticas”. Embora não possamos mais nos satisfazer em de inirproposições lógicas como aquelas que se seguem da lei da contradição,aindapodemosedevemosadmitirqueelassãoumaclassedeproposiçõesinteiramentediferentedaquelasquechegamosaconhecerempiricamente.Todas elas têma característicaque, ummomento atrás, concordamos emchamar “tautologia”. Isso, combinado com o fato de que podem ser

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inteiramenteexpressasemtermosdevariáveiseconstantes lógicas (umaconstante lógica sendo algo que permanece constante numa proposiçãomesmoquandotodososseusconstituintessãoalterados),daráade iniçãode lógica ou matemática pura. Por enquanto, não sei como de inir“tautologia”.2 Seria fácilproporumade iniçãoquepoderia ser satisfatóriapor algum tempo; mas não sei de nenhuma que sinta ser satisfatória,apesar de saber muito bem que característica é preciso de inir. Nesteponto,portanto,porenquanto, chegamosà fronteirado conhecimentoemnossaviagemderetornoaosfundamentoslógicosdamatemática.Chegamosagoraao imdenossaintroduçãoumtantosumáriaà iloso ia

matemática. É impossível transmitir adequadamente as idéias envolvidasnessamatériaenquantonosabstivermosdousodesímboloslógicos.Comoa linguagemnaturalnãotempalavrasqueexpressemdemaneiranaturalexatamenteoquedesejamosexpressar,énecessário,enquantoaderirmosà linguagem comum, forçar as palavras, atribuindo-lhes sentidos nãousuais; e o leitor certamente, após algum tempo, senão de saída, voltaráaospoucosaassociarossigni icadosusuaisàspalavras,chegandoassimanoções erradas do que se pretendeu dizer. Ademais, a gramática e asintaxe comuns são extraordinariamente enganosas. Esse é o caso, porexemplo, com relação aos números; “dez homens” é gramaticalmente damesmaformaque“grandeshomens”,demodoquesepoderiapensarquedez é um adjetivo que quali ica “homens”. Esse é o caso, também, ondequer que funções proposicionais estejam envolvidas, e em particular noquediz respeito a existência edescrições. Comoa linguagemé enganosa,bemcomoporqueédifusaeinexataquandoaplicadaàlógica(paraaqualnunca se destinou), o simbolismo lógico é absolutamente necessário paraqualquer tratamento exato ou completo de nossa matéria. Espera-se,portanto, que aqueles leitores que desejem adquirir uma mestria dosprincípios da matemática não se esquivarão ao trabalho de dominar ossímbolos— um trabalho que é, de fato, muitomenor do que se poderiapensar. Como o apressado exame feito anteriormente deve terevidenciado,háinumeráveisproblemasnãoresolvidosnamatéria,emuitotrabalho precisa ser feito. Se qualquer estudante for conduzido a umestudo sério de lógica matemática por este livro, ele terá servido aoprincipalpropósitoparaoqualfoiescrito.

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Notas

Introdução

1Alusãoaopoema“AGrammarian’sFuneral”deRobertBrowning(1812-89).(N.T.)

Asériedosnúmerosnaturais

1PrincipiaMathematica,deWhiteheadeRussell,CambridgeUniversityPress,vol.I,1910;vol.II,1911;vol.III,1913.2Usaremos“número”nessesentidonopresentecapítulo.Maisadianteapalavraseráusadaemsentidomaisgeral.

Definiçãodenúmero

1AmesmarespostaédadademaneiramaiscompletaecommaiordesenvolvimentoemGottlobFrege,GrundgesetzederArithmetik,vol.I,1893.2Comoseráexplicadomaistarde,asclassespodemserconsideradasficçõeslógicas,fabricadascombaseemcaracterísticasdefinidoras.Porenquanto,porém,simplificaránossaexposiçãotratá-lascomosefossemreais.3Anoçãode“relaçãoum-um”correspondeà“funçãobiunívoca”,tambémchamada“umaum”.Asexpressões“ummuitos”e“muitos-um”,entretanto,nãotêmcorrespondênciananomenclaturaatualmenteutilizada.(N.R.T.)

Finitudeeinduçãomatemática

1VerPrincipiaMathematica,vol.II.nota110.2VerCapítulo13.3Paraageometria,namedidaemqueelanãoépuramenteanalítica,verPrinciplesofMathematics,parteVI;paraadinâmicaracional,ibid.,parteVII.4EssasdefiniçõeseateoriadainduçãogeneralizadasedevemaFregeeforampublicadasjáem1879emseuBegriffsschrift.Apesardograndevalordessaobra,eufui,acredito,aprimeirapessoaalê-laalgumdia—maisde20anosapóssuapublicação.

Adefiniçãodeordem

1Relação“alio-relativa”,nooriginal,BertrandRussellusouessetermoporsugestãodeC.S.Pierce.Anomenclaturaatualé“anti-reflexiva”.(N.R.T.)2Cf.RivistadiMatematica,IV,p.55ss;PrinciplesofMathematicas,p.394(§375).3PrinciplesofMathematics,p.205(§194),ereferênciasdadasali.

Similaridadedasrelações

1Issonãoseaplicaaoespaçoelíptico,masapenasaespaçosemquealinharetaéumasérieaberta.ModernMathematics,editadaporJ.W.A.Young,p.3-51(monografiadeO.Veblensobre“The

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FoundationsofGeometry”).

Númerosracionais,reaisecomplexos

1Vol.III,nota300ss,especialmente303.2Éclaroquenapráticacontinuaremosafalardeumafraçãocomo(digamos)maioroumenordoque1,querendodizermaioroumenordoquearazão1/1.Contantoquesejacompreendidoquearazão1/1eonúmerocardinal1sãodiferentes,nãoénecessáriotersempreopedantismodeenfatizaradiferença.3Estritamentefalando,essaafirmação,bemcomoasqueseseguematéofinaldoparágrafo,envolveochamado“axiomadainfinidade”,queseráanalisadonumcapítuloposterior.4SteligheitundirrationaleZahlen,2aed.,Brunswick,1892.5Paraumtratamentomaiscompletodotemadesegmentoserelaçõesdedekindianas,verPrincipiaMathematica,vol.II,nota210.Paraumtratamentomaiscompletodenúmerosreais,veribid.,vol.IIInota310ss,ePrinciplesofMathematics,caps.XXXIIIeXXXIV.

Númeroscardinaisinfinitos

1Cf.PrincipiaMathematica,volIInota123.2EssaprovaétomadadeCantor,comalgumassimplificações:verJahresberichtderdeutschenMathematiker-Vereinigung,I.(1892),p.77.

Limitesecontinuidadedefunções

1PrincipiaMathematica,vol.IInota230-234.2Diz-sequeumnúmeroé“numericamentemenor”doqueεquandosesituaentre–εe+εatualmentediz-sequeo“valorabsolutodonúmeroémenordoque”quandosesituaentre–εeε.[N.R.I.]

Seleçõeseoaxiomamultiplicativo

1VerPrincipiaMathematica,vol.Inota88.Tambémvol.IIInota257-8.2MathematischeAnnalen,vol.LIX,p.514-6.SobessaformafalaremosdelecomooaxiomadeZermelo.

Oaxiomadainfinidadeeostiposlógicos

1Sobreesseassunto,verPrincipiaMathematica,vol.IIp.120.Sobreosproblemascorrespondentesnotocantearazões,veribid.,vol.IIIp.303.2Vol.I,Introduction,cap.IInota12enota20;vol.II,PrefatoryStatement.3“MathematicalLogicasbasedontheTheoryofTypes”,vol.XXX,1908,p.222-62.4“Lesparadoxesdelalogique”,1906,p.627-650.5Bolzano,ParadoxiendesUnendlichen,13.6Dedekind,WassindundwassollendieZahlen?,n.66.

Incompatibilidadeeateoriadadedução

1Usaremosasletrasp,q,r,s,tparadenotarproposiçõesvariáveis.2OtermofoicunhadoporFrege.

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3Trans.Am.Math.Soc.,vol.XIV,p.481-8.4Proc.Camb.Phil.Soc.,vol.XIX,I,janeirode1917.5NenhumprincípiodessetipoéenunciadoemPrincipiaMathematicaounoartigodeM.Nicodmencionado.Masissopareceserumaomissão.6VerMind,vol.XXI,1912,p.522-31;evol.XXIII,1914,p.240-47.

Funçõesproposicionais

1OmétododededuçãoédadoemPrincipiaMathematica,vol.Ip.9.2Porrazõeslingüísticas,paraevitarsugeriropluralouosingular,muitasvezesémaisconvenientedizer“ϕxnãoésemprefalso”doque“ξàsvezes”ou“ξéverdadeiroàsvezes”.

Descrições

1UntersuchungenzurGegenstandstheorieundPsychologie,1904.

Classes

1VerPrincipiaMathematica,vol.I,p.75-84e20.2OleitorquedesejeumadiscussãomaiscompletadeveriaconsultarPrincipiaMathematica,Introduction,cap.II;também*12.

Matemáticaelógica

1AsproposiçõesprimitivasemPrincipiaMathematicasãotaisquepermitemainferênciadequeexistepelomenosumindivíduo.Masvejoissoagoracomoumaimperfeiçãonapurezalógica.2Aimportânciade“tautologia”paraumadefiniçãodamatemáticamefoimostradapormeuex-alunoLudwigWittgenstein,queestavatrabalhandocomoproblema.Nãoseiseeleoresolveu,enemsequerseestávivooumorto.