Upload
phungphuc
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
“Quem não arrisca, não pode berrar”
(Torquato Neto)
INTRODUÇÃO
Boa tarde. Este é um diálogo. Pretendo falar para vocês sobre um pouco da minha experiência
de pesquisa sobre os artistas invisíveis da periferia de Salvador.
Em alguns momentos deste encontro vou trazer algumas referências de autores que têm guiado
o meu trabalho, mas tudo com a leveza de quem convida amigos para uma conversa. As
referências vêm em notas de rodapé para ajudar a dialogar com os autores.
Falar da arte e dos artistas invisíveis da periferia é se dar conta de que o nosso desconhecimento
é maior que o nosso saber; que o nosso preconceito é maior do que o que conhecemos e isto se
constitui um desafio epistemológico, o que estimula a busca, a pesquisa e meu interesse por
este tema.
Falar dessa experiência de pesquisa me confere cada vez mais sentido àquilo que estou fazendo,
do mesmo modo como quando fui “mapeado” pela Agência Experimental, e passei de
pesquisador a pesquisado, tendo que dar as razões para o Acervo da Laje, a documentação
material, fruto da pesquisa sobre a arte invisível dos trabalhadores da beleza da periferia de
Salvador. Gostaria de agradecer a coragem empreendedora de vocês e o imenso carinho com o
qual vêm me tratando desde que os conhecei e que têm a grandeza de divulgar o que os olhos
da cidade tendem a esquecer ou desconhecer.
A PESQUISA
Atualmente sou pesquisador autônomo. O que é isso? Sou alguém que não recebe verbas
públicas para fazer o meu trabalho. Faço-o então com uma liberdade e disciplina que me foram
estimuladas por muitas pessoas que acreditam e acreditaram em mim desde muito cedo.
Como pesquisador sempre quis contribuir para a melhoria da realidade do local onde nasci e
habito, por isso me apaixonei pela sua memória desde cedo, pois entendi que se eu nasci no
Subúrbio Ferroviário de Salvador, é porque ali eu tinha e tenho uma tarefa, ou várias tarefas
que vou levando pela vida afora.
Desde 1995 me interesso pela pesquisa do meu território. Por isso fui estudar e fazer pesquisa,
pois estudar foi um modo de oferecer uma resposta sistemática às minhas indignações e
perplexidades diante das situações de violência que acometem a juventude da periferia.
Delas nasceram alguns livros e artigos que tenho publicado aqui no Brasil e em outros países.
O impacto dessas publicações se divide entre o desenvolvimento humano em situações
adversas e depois a questão da violência contra os jovens, assuntos e realidades que sempre me
deixaram em suspenso, em estado de perplexidade. Mas como a perplexidade geralmente
paralisa, não quis ficar paralisado e procurei dar a minha resposta pensada, refletida, sentida e
sistemática.
Depois, quando conhecei o Gey Espinheira e dezenas de pessoas que poderia citar aqui,
comecei ame dar conta de que a história não pode ser feita de uma única versão. A história é
dinâmica. Por isso resolvi levar a sério o conselho do querido Gey para estudar a beleza da
periferia, só que dessa vez uma beleza que eu deveria trazer à tona, através da arte ali
produzida.
Junto com Marco Illuminati, querido amigo, fotógrafo competente, alma de artista, começamos
a mapear os artistas do SFS e quando nos demos conta tínhamos formado uma imensa rede
através das entrevistas e fotografias que fizemos durante mais de um ano, de modo mais
sistemático em 2010.
Para mim foi e é um espanto que tanta cultura, iniciativa, obras e artistas tenham sido
esquecidos por habitarem aquele torrão de história e cultura, que é o SFS.
Esse esquecimento é proposital, mesquinho e busca não valorizar que a arte e a cultura são
universais, independem da região, local, situação social e econômica e assim tenho me
empenhado em divulgar, mostrar, abrir veredas e construir pontes para que essa beleza não
fique restrita e só possa ser conhecida pelos turistas que compram essas obras como se fossem
somente artesanato, sem se dar conta de onde, como e em quais condições (muitas vezes
desumanas, em situação de privação econômica) elas foram elaboradas.
Uma das tarefas da pesquisa é abraçar o desconhecido.
Quanto mais nos movemos em busca do desconhecido mais ele se revela a nós e este é um
demarcador de quão importante é o nosso trabalho.
Hoje quando vejo que essa pesquisa me confere uma responsabilidade cada vez maior em
cuidar de mim, da vida e dela, me dou conta de como é importante ter a disciplina e a
sistematicidade na sua realização.
Aqui entra a questão do meu modo de pesquisar, que é único e foi moldado pela experiência e
entendimento de como eu sou, do que posso realizar e dos meios dos quais disponho para tal.
Ninguém sabe, mas cada obra adquirida tem uma história, um contexto e uma dinâmica que não
canso de contar.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
3
Cada artista é uma surpresa, um modo novo de se relacionar com a arte produzida no SFS e que
é tão desconhecida, por isso tenho feito a experiência do estupor e do maravilhamento, pois
tenho a noção da novidade que vai surgindo aos poucos. Estamos construindo ou reconstruindo
um patrimônio civilizatório do território suburbano que foi abandonado e isto tem uma
importância significativa para a história da Bahia.
Cada obra é uma revelação.
Além de ser para todos, o Acervo da Laje, por exemplo, é para aqueles que, como eu, se
espantam cada vez que chegam lá. É uma comoção geral, pois estamos diante de algo único,
sem par e também podemos fazer o que em nenhum museu se faz; podemos interagir com as
obras: tocá-las, sentir o cheiro da madeira das máscaras, tocar e ver as cores dos peixes, pegar
nas mãos as cerâmicas e palhas, brincar com os brinquedos, fazer a experiência sensória, e tudo
isso “não tem preço”.
Ver as crianças, jovens e adultos se admirando com o belo1 é uma experiência muito intensa,
que pode construir novas possibilidades de inserção da pessoa neste mundo, significando
trajetórias e histórias de vida, pois a beleza tem essa função, dentre outras, conforme indica a
filósofa francesa Simone Weil (1993).
Neste sentido, estudar o SFS através da beleza de seus artistas é uma novidade e é uma tarefa2
que ganha sentido por recuperar o passado, amar o presente e construir o futuro.
1 Simone Weil, falando da beleza, diz que: “A beleza é a harmonia do acaso e do bem. O belo é o
necessário, que, embora permanecendo conforme à sua lei própria e só a ela, obedece ao bem. Objeto da
ciência: o belo (ou seja, a ordem, a proporção, a harmonia) enquanto supra-sensível e necessário. Objeto da arte: o belo sensível e contingente, percebido através da rede do acaso e do mal. O belo na natureza: união
da impressão sensível e do sentimento da necessidade. Isto deve ser assim (em primeiro lugar), e
precisamente é assim. A beleza seduz a carne para obter a permissão de passar à alma. O belo encerra, entre outras unidades dos contrários, a do instantâneo e do eterno. O belo é o que se pode contemplar. Uma
estátua, um quadro que se pode olhar durante horas. O belo é uma coisa em que se pode prestar atenção.
(...) Uma obra de arte tem um autor, e no entanto, quando é perfeita, tem algo de essencialmente anônimo. Ela imita o anonimato da arte divina. Assim a beleza do mundo prova um Deus ao mesmo tempo pessoal e
impessoal, e nem um nem outro.O belo é um atrativo carnal que mantém à distância e implica uma
renúncia. Inclusive a renúncia mais íntima, a da imaginação. Queremos devorar todos os outros objetos do desejo. O belo é o que desejamos sem querer devorá-lo. Desejamos que seja assim. Permanecer imóvel e
nos unirmos ao que desejamos e do que não nos aproximamos. Unimo-nos a Deus assim: não podemos
aproximar-nos dele” (Weil, 1993, pp.165-166). 2 Ecléa Bosi assim descreve essa experiência, analisando um aspecto da obra de Simone Weil: “A arte
antiga perdeu, entre nós, sua força formadora. Passa a objeto de valor e assim é apropriada pelo educando
que busca o auto-aprimoramento para melhor competir na arena dos privilégios. Quem lê os clássicos continua alheio “ao fato de que Shakespeare ou Platão pudessem dizer-lhes coisas mais importantes do que
a maneira de se educar”. Assim Hanna(sic)h Arendt vê a questão. Um quadro de Van Gogh é igualmente
CONTRA O ESQUECIMENTO, A MEMÓRIA
Por diversas vezes me dei conta de que a memória tem uma força profunda de renovação da
realidade, pois quem não conhece o seu passado se torna refém de um presente sem sentido e
um futuro sem perspectiva.
Por este motivo, a pesquisa sobre os artistas invisíveis da periferia tem uma tarefa de construir
essa ponte entre o passado, o presente e o futuro e pode ser uma possibilidade de encontro de
crianças, jovens e adultos com uma beleza que pode ressignificar vidas, porque a arte, ou a
coisa amada e bela, quando descoberta, pode preencher lacunas e indicar caminhos de vida.
Essa ideia de lutar pelo conhecimento e pela memória vem de um texto sobre o Parque São
Bartolomeu do saudoso Gey Espinheira3, que escreveu tão profundamente sobre o SFS que ele
degradado quando o utilizamos para adquirir status ou tapar um buraco na parede segundo Arendt. Como
encontrar face a face estas imagens? Como resgatar o passado do entulho da mercadoria? A resposta seria: vivendo intensamente o nosso tempo, atento aos sinais da História. Só a militância pode propor e propor de
novo a totalidade passado-presente como um mesmo tecido de lutas e esperanças. Fazer conhecer as obras
do passado e reviver as indagações que elas contêm. Em lugar da divulgação uma reproposta. O futuro das obras de arte estaria então vinculado ao nosso agir. Oferecendo-lhes uma destinação política nós as
arrancamos do museu abrindo-lhes caminho para uma sobrevivência épica” (Bosi, 2003, p. 192)
3 Seguem as belas palavras de Gey Espinheira sobre o esquecimento e a memória do Parque São
Bartolomeu e do Subúrbio Ferroviário de Salvador: “Começamos por compreender o significado do
esquecimento na História como um anti-registro, pois só se pode esquecer aquilo que em algum momento foi registrado. Nossa intenção é abordar a tentativa de anulação do simbólico por parte da cultura
hegemônica na forma de abandono – no sentido administrativo e urbanístico – do Parque São Bartolomeu e
de seu esquecimento como lugar sagrado e de vivenciação da religiosidade afro-brasileira” (Espinheira, 1998, p. 23).
Conceituando historicamente o SFS, Gey vai mostrando como as configurações atuais foram sendo
construídas no tempo: “O Subúrbio Ferroviário, como visto, foi um espaço nobre de Salvador, no tempo em que a Cidade ainda não tinha sofrido as grandes transformações que vieram dela fazer, nos anos 70,
província e metrópole, simultaneamente. O conceito de subúrbio era o do afastado, mas acessível e ao
mesmo tempo o do não-acessível às categorias populares e aí têm-se as praias. Era no tempo do ideal bucólico em que os grupos de alta renda se avizinhavam – e não mais que isso – de colônias de pescadores
e de pequenas comunidades suburbanas (sic) e viviam o sossego da paisagem da Baía de Todos os Santos e
do distanciamento respeitoso e estratégico das comunidades próximas. Eram assim as praias dos Subúrbios Ferroviários; eram assim as localidades de Plataforma, Escada, Paripe, Periperi e tantas outras, antes que se
fizessem o Centro Industrial de Aratu, o Pólo Petroquímico de Camaçari e antes do que decorreu dessa
industrialização, sobretudo a urbanização da pobreza, por conta e risco dos pobres, esse caráter perverso que parece ser a componente básica do caráter de metrópole em oposição ao de província” (Espinheira,
1998, p. 26).
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
4
tanto amava. Com ele entendi que a nossa vida é curta para realizarmos o que queremos e por
isso me empenho em descortinar esses universos porque eu sei que o que faço tem um sentido
que extrapola a minha existência, porque sendo minha não é minha, mas pertence a todos os
que chegam e se dão conta de que a realidade de um contexto não pode somente ser mostrada
de forma negativa pelos veículos de comunicação, pois em relação ao tratamento que é dado ao
SFS em relação a outros pontos da cidade do Salvador é e sempre foi desigual.
Se eu lhes disser que lá há escultores do porte de Aleijadinho, pintores do porte de Picasso,
artistas moradores de rua que desenvolvem a sua própria linguagem e grafia como o Profeta
Gentileza, poetas, músicos, artistas plásticos que têm suas obras espalhadas por todo o mundo,
vocês acreditam?
Há alguns anos atrás eu também nem acreditava ou nem mesmo tinha me colocado essa
questão.
Por isso essa pesquisa me leva a espantos e a comoções que são inigualáveis.
Descobrir a história ancestral do SFS, cuidar de sua memória, recolher as partes do mosaico
daquele lugar é uma tarefa para a vida inteira e a pesquisa tem me levado a fazer descobertas
impressionantes, pois o que é um pesquisador? Um pesquisador é alguém que guiado por uma
tarefa com seus objetivos e metas tem a capacidade de enxergar onde ninguém nada vê; tem a
percepção e a sensibilidade de procurar aquilo que está escondido à espera da revelação; trazer
de volta a memória e a beleza de um lugar que foi sucessivamente esquecido pelos poderes
públicos; fazer com que as pessoas passem a conhecer aquilo que lhes foi negado desde
sempre.
A memória faz com que as pessoas tenham orgulho do seu território, da sua história e não
sejam reféns daquilo que o poder e a mídia dizem que deve estar na pauta do dia, da vida e dos
costumes.
VIVER O LOCAL, VIVENDO O GLOBAL
Muita gente estranha o motivo pelo qual me interesso tanto pelo SFS. Desde o início da
globalização, a nova ordem mundial trazia este perigo de sermos suprimidos pelo global ao
invés de valorizarmos o local. Foi uma aposta errada.
E para finalizar, este grito que se aplica a todas as periferias de Salvador: “A Cidade deixou que o Parque
São Bartolomeu fosse esquecido dela própria; deixou que fosse depredado, que se tornasse marginal. O Parque ficou com uma categoria social deteriorada. Mas está lá e é lugar de encontro e pulsa na metrópole
industrial como lugar, província, aldeia – como começo e renascimento” (Espinheira, 1998, p. 27).
Quanto mais nos interessamos pelo local, mas somos lançados para o global, pois a relação com
o mundo se faz com a fundamentação da nossa identidade e território.
Neste sentido não devemos nada a ninguém, pois estamos aqui para dialogar e compartilhar
identidades, sem hierarquias ou comparações, estamos aqui para mostrar o que somos, o que
temos e como podemos dialogar, sem perder de vista as nossas peculiaridades.
Digo isto porque nós precisamos chegar à nossa síntese, à síntese do que somos, temos e
vivemos, ou seja, da nossa identidade.
Fazer a síntese é uma tarefa que implica não ter medo das nossas contingências, das nossas
raízes. No meu caso: de ser suburbano, soteropolitano, baiano, nordestino e brasileiro e, assim,
cidadão do mundo, indo contra todo preconceito que possam ter em referência à minha
identidade territorial e cultural, ao meu modo de pensar e de atuar neste mundo.
Quanto mais você descobre a sua identidade, mais você pode dialogar com as outras culturas e
isso sem concessões, pois há uma troca simbólica na qual ambos saem enriquecidos.
Estudar o SFS sendo de lá me trouxe essa possibilidade de poder dialogar com o mundo4.
Quanto mais você conhece o seu passado, mais pode vivenciar o presente e enfrentar o futuro,
porque a nossa vida enquanto possibilidade não pode ser desperdiçada e tem que ter um sentido
real, que nos mova cotidianamente.
4 Isto ocorre particularmente no Acervo da Laje com as visitas de pessoas de várias partes do mundo (Europa, EUA, Índia) e do Brasil, pois elas têm uma sede de encontrar a realidade que não é somente
aquela mostrada aos turistas e neste sentido temos que aprender a valorizar o nosso território, que é único e
essa dignidade cultural atrai as pessoas. Assim, é possível dialogar com todos sem perder as nossas raízes. Aliás, a raiz, o enraizamento de um povo e de uma pessoa são necessidades fundamentais para a existência,
como afirma Simone Weil: “O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida
da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos
pressentimentos de futuro. Participação natural, ou seja, ocasionada automaticamente pelo lugar,
nascimento, profissão, meio. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte
naturalmente. As trocas de influências entre meios muito diferentes não são menos indispensáveis do que o
enraizamento no entorno natural. Mas um meio determinado deve receber uma influência externa não como uma contribuição, mas como um estimulante que torne sua própria vida mais intensa. Não deve
alimentar-se das contribuições externas senão depois de as ter digerido, e os indivíduos que o compõem
não devem recebê-las senão através dele. Quando um pintor de real valor vai para um museu, sua originalidade é confirmada por isso. Deve acontecer o mesmo com as diversas populações do globo
terrestre e os diferentes meios sociais” (Weil, 2001, p. 43).
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
5
OS ARTISTAS INVISÍVEIS E A PERIFERIA (TAMBÉM INVISÍVEL)
A questão da invisibilidade do SFS e de seus artistas é uma realidade desigual.
Na pesquisa me dei conta de que a beleza do mundo é gerada na periferia dos grandes centros,
mas o centro não sabe disso. Ele acha que a beleza é sua, somente sua, mas não é assim.
Muitas vezes me comovo quando vou ao Mercado Modelo, ao Centro Histórico, aeroporto,
rodoviária, lojas de bairros abastados de Salvador e me deparo com as obras dos artistas que
tenho estudado. Eles estão lá, suas obras são compradas por preços módicos e revendidas pelo
dobro ou triplo do preço e ninguém sabe o processo de elaboração das obras, de onde elas
vieram, como são feitas e as condições (ou falta de) como elas são produzidas.
Aqui surge a invisibilidade.
Quando afirmo que a periferia produz a beleza e a alegria do mundo é porque há uma dinâmica
tão intensa de artistas produzindo nos lugares onde pesquisei e a cidade não reconhece essa
produção.
Mas ver o invisível é difícil (desculpem a imagem).
Melhor dizendo: ver o que não queremos ver é difícil. E a cidade geralmente não quer ver os
seus subúrbios, a sua pobreza, a sua realidade dinâmica e a grandeza que o SFS carrega.
Não só na questão da arte, mas também na história, na educação, na cultura, geografia,
religiosidade, saberes populares, publicações, bibliotecas, centros culturais, projetos sociais,
museus, bandas, poetas, escritores e lideranças5.
Somos ainda um país que julga pela aparência, que insiste em separar e excluir o que é
diferente da nossa percepção (que é muito limitada).
A periferia é invisível porque ela é sempre relegada a segundo plano pelo Poder; é relegada a
segundo plano por quem pensa e administra a cidade. Sempre foi assim.
5 Em relação a essas descobertas vejam, por exemplo, o maravilhoso trabalho dos alunos e alunas da Agência Experimental da FACOM/UFBA, que mapearam mais de cinqüenta espaços culturais e artistas das
periferias de Salvador. Trabalhos como estes devem ser devidamente divulgados e publicados, pois
mostram que iniciativas assim inovadoras quebram estereótipos e revela uma cidade que não é conhecida nem mesmo por aqueles que nela habitam.
Há também os estigmas relacionados à pobreza e à violência. Como se um lugar pobre não
pudesse ter outro lado, uma dinâmica cultural melhor ou semelhantes aos bairros mais
abastados.
Consultando o Dicionário Caldas Aulete podemos definir assim o que é um estigma: “Estigma,
s.m. marca, sinal. (...) Cicatriz que deixa uma marca ou ferida” (Aulete, 1958, p. 2010).
O estigma deixa sim essa ferida nos moradores da periferia, pois se atentarmos à leitura
cotidiana podemos ver que a violência não pode ser associada à pobreza, pois ela está
disseminada em todos os lugares e não somente no SFS, mas parece que é mais conveniente
associá-la a determinados locais de Salvador, geralmente a periferia.
Então, quem mora no SFS carrega essa marca, essa ferida.
Por serem do SFS e por lá habitarem os artistas carregam também essa ferida e o preço desta
pertença é a invisibilidade.
No entanto atualmente essa percepção vem mudando. Principalmente por quem trabalha com a
mídia, a exemplo dos jornais que têm noticiado matérias que ressaltam a dignidade, a história e
a cultura do Subúrbio como pertencentes à cidade e não como algo apartado do contexto
soteropolitano, mas isso é uma conquista das pessoas que moram no SFS e estão se inserindo
cada vez mais na cidade, nos meios de comunicação, nas universidades, se propondo, indicando
que há uma racionalidade estigmatizante que precisa ser posta em discussão e realce aspectos
que nos aproximam e não nos distanciam.
Em minhas aulas tenho a oportunidade de conhecer centenas de estudantes que diante da
afirmativa de que eu moro no Subúrbio e lá trabalho, eles muitas vezes têm a frase pronta:
“Não conheço, mas sei que é perigoso!”
Mas o que é isso?
É o efeito deletério da ignorância e do preconceito.
A ignorância e o preconceito são posturas presentes nos humanos que mais prejuízos trazem ao
humano.
Quando insisto sobre a importância do SFS para a História do Brasil e da Bahia as pessoas
ficam chocadas, pois trago dados, livros, referências, descobertas, aspectos que são irrefutáveis
para descortinar o desconhecimento que as próprias pessoas têm em relação à sua história, à sua
civilização.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
6
Como somos um país recente, ainda não aprendemos a conhecer, valorizar e registrar a nossa
história e esse desconhecimento produz muitos danos, pois como vivemos, ou queremos viver
um eterno presente, geralmente descartamos aquilo que não conhecemos.
Quando denominamos a pesquisa focamos bem o aspecto de artistas invisíveis para demarcar
que essa ignorância e desconhecimento se fazem presentes dentro da própria Cidade do
Salvador, que teima em olhar para fora de si buscando a sua identidade quando essa identidade,
história e cultura estão aqui dentro, perto de nós.
Neste sentido não é de espantar que as pessoas de outros lugares muitas vezes conheçam
melhor a nossa história do que nós, porque o grande risco da invisibilidade é que a gente se
torne invisível também.
Vamos fazer um roteiro para tirar da invisibilidade histórica:
-Primeiro poço de petróleo do Brasil?
- Lobato!
Local onde Anchieta morou e houve a invasão holandesa na Bahia?
- Escada!
Primeiro julgado da Bahia?
- Paripe!
Guerra da Independência da Bahia?
- Pirajá, Alto do Cabrito!
Local onde Jorge Amado morou e escreveu o guia Bahia de Todos os Santos e ambientou o seu
romance Os Velhos Marinheiros?
- Periperi!
Locais de presença indígena?
- Tubarão, Lobato, Plataforma, Paripe, Calçada, Periperi!
Local onde existia o Quilombo do Urubu, chefiado por Zeferina?
- Parque São Bartolomeu!
Ruínas da paróquia com mais de 400 anos?
- Paripe!
Onde seria fundada a cidade do Salvador?
- Península de Itapagipe!
Único local da cidade onde o trem passa na beira do mar?
- Subúrbio Ferroviário de Salvador!
Único local na cidade onde há cachoeiras?
- Parque São Bartolomeu!
Onde há um dos maiores sambaquis do Brasil?
- Periperi!
Qual a praia que os presidentes FHC, Lula e Dilma vêm descansar?
- Inema, São Thomé de Paripe!
Quais foram os primeiros locais estudados por Milton Santos e seus alunos?
- Os bairros do Subúrbio Ferroviário de Salvador (e eu tenho uma cópia dos estudos no
Acervo da Laje)!
Qual a igreja do SFS que é fotografada por Edgar Cerqueira Falcão no livro Relíquias da
Bahia, de 1940?
- Igreja de Nossa Senhora da Escada!
Qual o sobrado que quando derrubado deu origem aos Alagados?
- Sobrado do Coronel, no Caminho de Areia!
Local no qual o então candidato Lula veio em Salvador?
- Novos Alagados!
Onde estão as ruínas de um dos maiores complexos têxteis do Brasil?
- Plataforma!
Onde há a travessia marítima e o encontro com uma estação ferroviária?
- Plataforma!
Onde há a construção de um castelo medieval?
- Periperi!
Local onde morou o historiador Cid Teixeira e ACM freqüentava na juventude?
- Itacaranha!
Percebam que em um lugar como este, com toda essa história do nosso processo de constituição
da Nação brasileira, muitos aspectos históricos, culturais e artísticos são negados e esquecidos
pela sociedade, que enxerga ali somente pobreza e violência.
Historicamente em fins da década de 1930 o SFS começou a ser habitado pela população de
baixa renda, vinda do interior do Estado Bahia, no intuito de conseguir uma vida melhor. Esse
êxodo se deus também nas décadas de 1960 e 1970. Antes era local de veraneio de pessoas
abastadas, cujas chácaras até hoje podem ser vistas nas belas praias do SFS.
Segue um texto também para tirar da invisibilidade os artistas do SFS:
“FALA NO PROJETO MÚSICA DAS RUAS” A ARTE INVISÍVEL DO SUBÚRBIO
FERROVIÁRIO DE SALVADOR EM 24 DE SETEMBRO DE 2011
Depois de estudar aquela face que é mais explorada pela mídia sensacionalista e superficial,
que é a violência no Subúrbio Ferroviário de Salvador, comecei em 2010 a estudar um aspecto
que sempre me chamou a atenção, e que agora começa a ganhar corpo e visibilidade: a
invisibilidade dos trabalhadores da beleza, os artistas do SFS.
Essa invisibilidade se dá por uma separação entre a cidade e o SFS, como quem segrega os
espaços, indicando quem pode ter acesso ou não à visibilidade e divulgação de sua obra.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
7
Neste sentido, muitos artistas que moraram ou moram aqui não conseguem ter a sua obra
avaliada, consumida e divulgada, porque há ainda certa restrição tanto dos meios de
comunicação como da indústria de entretenimento em incluir essas expressões artísticas que
nada deixam a desejar diante daqueles artistas que são apadrinhados pela mídia.
Projetos como estes proporcionam esse intercâmbio de encontros entre os artistas e o público,
porque quem faz arte tem que mostrar o seu trabalho e ter sua obra divulgada.
É a periferia que traz a alegria para o mundo.
A alegria do mundo é produzida na periferia.
Se você chegar ao Mercado Modelo ou ao Pelourinho verá que a produção artística que
encanta os turistas vem da periferia: quadros, pinturas, artesanato, e contagia o mundo.
Na pesquisa encontramos muitos artistas que aceitaram fazer parte deste trabalho e abriram
as portas de suas casas para que os entrevistássemos e os fotografássemos, contando, assim, as
suas histórias.
São eles:
Perinho Santana, artista plástico – São João do Cabrito
Nalva, artista plástica – São João do Cabrito
Nascimento, produtor de reggae e músico - Plataforma
Tallowah, banda de reggae – Plataforma
Niejila Brito, artista plástica – Alto do Cabrito
Fábio Santana, ator, produtor, “se virólogo” – Bando de Teatro Olodum e Coletivo
de Produtores do Subúrbio - Alto do Cabrito
Ray Bahia, artista plástico - Periperi
Dona Coleta de Omolú, cantora e dançarina - São João do Cabrito
Eduardo Pereira Oduduwà, artista plástico – Escada
João Teles, músico e dançarino – Novos Alagados
Banda Clandestinos 5 – Novos Alagados (6)
Maria Nauzina - Herdeiros de Angola – Planalto Real
Rô e Cia Futebol Clube – Boiadeiro
César, escultor em madeira – Fazenda Coutos
Samba da Ladeira, samba – Boiadeiro
Nova Era, Hip Hop – Periperi
Seu Jorge Fotógrafo – Plataforma
Alberto Pita – Cortejo Afro – Pirajá
Mãe Santinha – Cortejo Afro – Pirajá
Mestre Gordo – Cortejo Afro – Pirajá
Jaime Oliveira – Cortejo Afro - Pirajá
Zé de Valença, dono de restaurante – São João do Cabrito
Nilza – Vendedora de Acarajé – Boiadeiro
Paulo Tatoo – São João do Cabrito
Jorge Pimenta – JP Publicidade – Subúrbio Ferroviário
Isis Sacramento – Biblioteca Abdias Nascimento – Periperi
Ubirajara, dançarino – Bariri
José Edemilson – Sofia Centro de Estudos – Escada
Seu Augusto – Babalorixá – Escada
Cesare La Rocca – Projeto Axé – São Thomé de Paripe
Adenilza – Kilombo do Kioiô – Novos Alagados
Mosteiro do Salvador, balé para meninas – Coutos
Prentice Carvalho – azulejista – Ribeira
Carioca – Pintor – Baixa do Bomfim, morador de rua
Deraldo Lima – pintor e divulgador cultural – São Thomé de Paripe
Raimundo Lembrança – pintor – Estrada do Cabrito, Plataforma
E... Aos que eu não pude entrevistar, levados pelo quinhão da memória e da morte
Sr. Almiro Borges, pintor – Itacaranha/ Mabaço
Sr. Licurgo Neto, pintor - Periperi / Ilha de Paquetá (RJ)
Sr. Otávio Bahia, escultor em madeira – Fazenda Coutos
Sr. Jorge Ravinny, produtor e diretor teatral – Boiadeiro
***
E daqueles que possuo as obras, mas não consegui entrevistar:
Manoel, criador de mosaicos – Rua 19 de Março, Plataforma
Sandoval, escultor em madeira – Boiadeiro, Plataforma
Carlos Coelho, criador de mosaicos – Boiadeiro, Plataforma
Elói do Rosário Cruz – pintor – Boiadeiro, Plataforma
Elisângela Pereira – artista plástica – Rua 19 de Março, Plataforma
Otávio Filho, escultor em madeira – Fazenda Coutos
O Terreiro – banda - Cidade de Plástico, Periperi
***
Aqueles que conheci nos últimos tempos, mas não pude entrevistar:
Joel, estilista de material reciclado – Largo do Luso, Plataforma
Kátia, artista plástica e artesã – Periperi
Parto Natural, banda de reggae – Coutos
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
8
Projeto de Iniciação Musical – Coutos
José Nunes de Oliveira, artesão – Rua da Aurora, Plataforma
George Bispo, diretor e produtor – Alto do Cabrito
Márcio Bacelar, diretor e produtor – Alto do Cabrito
E mais: quem quiser ver com os próprios olhos essa beleza produzida aqui no Subúrbio
Ferroviário de Salvador, faço o convite para visitarem o “Acervo da Laje”, um local
improvável, mas existente, que fica aqui em Novos Alagados, São João do Cabrito, em
Plataforma, na querida Rua Nova Esperança.
Depois da visita quero ver se a sua percepção sobre o Subúrbio Ferroviário de Salvador não
vai mudar completamente...
Está feito o convite”.
RUÍNAS E RELÍQUIAS DO SUBÚRBIO FERROVIÁRIO DE SALVADOR
No Subúrbio Ferroviário de Salvador há uma significativa quantidade de ruínas e relíquias que
precisam ser conhecidas.
De Pirajá/São Bartolomeu a Paripe e São Tomé há algumas preciosidades para visitar e se
debruçar por um instante nestes recantos onde a história adormece e ao mesmo tempo continua
viva.
Eu não me canso de visitar as relíquias e as ruínas do Subúrbio Ferroviário de Salvador, porque
elas contam uma história que muitos não sabem e vivem como se aqui não existisse uma
memória ancestral que está se perdendo e precisam necessariamente ser conhecidas.
Hoje fomos visitar o Subúrbio Ferroviário e este foi um momento impressionante pelo
reencontro com estes monumentos que fazem do Subúrbio Ferroviário de Salvador uma das
áreas mais interessante do ponto de vista histórico e cultural da Bahia.
No mais, ao me deparar com igrejas antigas e ruínas remanescentes dos séculos passados
sempre vou procurar novas informações e não as encontro, pois poucas são as referências
existentes, mostrando como essa memória foi paulatinamente apagada.
Fomos à igreja de São Bartolomeu em Pirajá, da segunda metade do século XIII, com suas
belíssimas imagens de Nossa Senhora da Piedade e São Bartolomeu e visitamos o Panteon em
homenagem ao General Labatut, participante das batalhas pela Independência da Bahia, no
Dois de Julho. Encontramos a igreja aberta e pudemos admirar a sua arquitetura em detalhes.
Depois fomos até a entrada do Parque São Bartolomeu ver as ruínas que ficam próximos às
cachoeiras de Oxum e Nanã, hoje poluídas, mas sem perder o ar de encantamento com tanto
verde ao nosso redor. São Bartolomeu é um mistério em meu caminho: como me sinto bem ali.
Respirar aquele ar, aquela história toda me faz voltar à vida, apesar da degradação do local,
com suas cachoeiras, manguezal e remanescente de floresta tropical. Essas ruínas, por exemplo,
ainda não foram estudadas. É possível? Seriam de um engenho ou de uma igreja? Fica o
mistério...
No caminho para o Parque São Bartolomeu avistamos algumas ruínas de antigos terreiros de
candomblé e outros ainda em funcionamento. Nas ruínas podemos ver ainda toda a arquitetura
do lugar, que conta com a profícua quantidade de vegetação e água corrente, como cachoeiras e
rios. Com o avanço desordenado das construções irregulares os espaços sagrados vão perdendo
seu lugar.
Seguindo pela Avenida Afrânio Peixoto, conhecida como Suburbana, seguimos até a Capela de
Escada Nossa Senhora da Escada, do século XVII, uma das mais belas e antigas de Salvador,
reformada há alguns anos e que tem muito da história do Brasil em suas paredes.
Por fim seguimos até Paripe para visitar as ruínas da antiga Igreja de Nossa Senhora do Ó, que
podem ser vistas no cemitério de Paripe, uma revelação, pois muitas pessoas diziam que ela
ainda existia, mas poucos foram até lá. Para quem não sabe, essa igreja sediou uma das
primeiras paróquias da Bahia, tendo mais de quatrocentos anos, fundada em 1608.
Da antiga igreja pouco restou, mas vale a visita. Podemos ver entre as ruínas sinais de que a
igreja era muito bem ornada de azulejos portugueses policromados de pelo menos dois tipos.
Há uma cornija ainda de pé na nave central, as paredes laterais ainda estão de pé ostentando
portas e um púlpito com base de pedra de lioz em forma de espiral, típico do barroco.
Dali faltou visitar a igreja de São Tomé de Paripe, do século XVII, mas fica para outra vez.
Uma aluna me informou por estes dias que existe um casarão em Aratu que D. Pedro I visitou e
hoje está em ruínas.
Amanhã vou tomar mais informações. Ela mora em São Tomé de Paripe e conhece bem a
região.
A pergunta que não cala é por que não existe um projeto de valorização da história do Subúrbio
Ferroviário de Salvador, se ainda encontramos estes monumentos que podem ser preservados e
se constituir um roteiro de visitação com possível revitalização destes espaços?
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
9
Em conversa ao telefone com José Edemilson, do Sofia – Centro de Estudos, começamos a
vislumbrar algumas possibilidades de trabalho neste sentido: formação de jovens em história
local, com possibilidade de acesso a estes bens culturais e históricos escondidos sobre os
estigmas que recaem sobre o Subúrbio Ferroviário de Salvador.
Poderia ser um projeto do tipo Subúrbio Histórico ou Caminhos Históricos do Subúrbio: venha
conhecer!, como acontece com a Estrada Real em Minas e Rio de Janeiro, se não me engano.
Haveriam roteiros como História dos Negros no Subúrbio Ferroviário de Salvador, mostrando
o Parque São Bartolomeu, os terreiros de candomblé, identificação de comunidades
quilombolas.
Haveria o roteiro Subúrbio Monumental e Religioso, mostrando as antigas igrejas e o Subúrbio
Colonial, com espaços, fontes, casarões, detalhes de ruínas, assim como o Subúrbio Fabril,
mostrando as antigas fábricas, as ruínas e as ruas identificadas por nomes de antigas e atuais
profissões: pescadores, ferroviários, tecelões, marisqueiras, petroleiros, ambulantes e
rezadeiras.
Pode haver ainda o Subúrbio Natural, mostrando as belezas escondidas: as pedras, os mirantes,
o mar, a enseada, os manguezais, os rios e as fontes.
Outra possibilidade é o Subúrbio Marítimo: seguir os mesmos roteiros de séculos atrás de
Gabriel Soares de Sousa e Wanderlei Pinho, chegando até Caboto, margeando a praia e vendo
os lugares e monumentos existentes.
De um ponto de vista mais social e atual poderia existir uma linha de interesse sobre As favelas
do Subúrbio e sua gente: modos de ver e interagir para derrubar estereótipos, mostrando as
novas invasões de terra, como vivem, os lugares e sua história.
De outro, como não pode deixar de ser, mostrar as riquezas do Subúrbio que constrói
educação, cultura e arte, mostrando os espaços educativos, culturais e seus artistas,
apresentando a diversidade cultural e educativa do lugar, tendo por base as associações, a
cultura local, tudo bem próximo de um projeto que já desenvolvemos chamado A Arte Invisível
dos Trabalhadores da Beleza nas Periferias de Salvador, o qual se encontra em fase de
aprofundamento nestes meses.
Por fim, podemos fazer o roteiro Subúrbio Ferroviário: Uma Viagem no Tempo, com um
passeio de trem valorizando e explicitando as localidades e as peculiaridades destes lugares,
tudo isso bem ligado ao que fez o Almanaque Roda Pião.
Lembremos que desde Gabriel Soares de Sousa, com seu livro Tratado Descritivo do Brasil em
1587 (escrito em 1584), o Subúrbio Ferroviário sempre fez parte da história da Bahia e do
Brasil e precisa ser mais valorizado.
O mesmo pode ser visto em outras obras, como História de um engenho do Recôncavo, de
Wanderley Pinho; História do Brasil (1500 – 1627), de Frei Vicente do Salvador e além destes
o Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia, do IPAC, que são livros preciosos, com
informações e referência aos monumentos tombados ou não.
Outros monumentos importantes do Subúrbio Ferroviário são o primeiro poço petrolífero do
Brasil, localizado no bairro do Lobato, a Ponte São João, a linha férrea de Calçada até Paripe,
com o túnel entre Periperi e Coutos, o conjunto de casas, armazéns e trapiche da fábrica
FAGIP/FATBRAZ, em Plataforma, as casas de veraneio na extensão da Almeida Brandão até a
praia de Tubarão.
ONDE ESTÁ A BELEZA?
Se por ventura alguém resolver trilhar pelas áreas periféricas de Salvador pode ficar espantado
com a pobreza, as casas construídas sem planejamento, as ruas sempre movimentadas, com lixo
espalhado, enfim, cenas corriqueiras para olhares que não surpreendem sequer uma novidade
nestes espaços6.
Por toda a cidade temos essa sensação, pois Salvador inteira está se tornando nos últimos anos
uma cidade onde não percebemos onde começa ou termina a periferia, pois ela parece se
alastrar na terceira maior capital do Brasil, com cerca de três milhões de habitantes.
Mas em uma cidade reconhecida mundialmente por sua beleza, quando adentramos a periferia,
podemos nos perguntar: onde está a beleza? Fora do eixo mais conhecido da grande cidade,
onde ela está?
Existe em nós uma dificuldade cada vez maior de vislumbrar que a beleza está muitas vezes
onde sequer imaginamos.
É isso.
6Importante é acentuar aqui que o Subúrbio possa ser percebido como um “não-lugar”, para utilizar a
expressão de Marc Augé. Por este motivo a noção de periferia ou de subúrbio carrega em si uma gama de
significados pautados pela exclusão, o que pode indicar que para aqueles que são “de fora” não percebam a diversidade e a pertença deste lugar e dessas pessoas à cidade.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
10
Salvador7 é uma cidade de contrastes, onde riqueza e pobreza se misturam, mas ao mesmo
tempo se apartam, gerando uma nítida segregação entre os espaços onde há a beleza e aqueles
que dela são desprovidos, criando oposições e incompatibilidades no plano do senso comum.
É como se na periferia e nas favelas8 o belo não pudesse existir.
Diante dessa constatação fomos9 em busca dessa beleza, mas não a simples beleza, mas aquela
que permanece invisível aos nossos olhos e que assim se encontra porque está disseminada e ao
mesmo tempo escondida; não está na mídia nem nas galerias de arte ou nas rádios ou nos
grandes teatros de Salvador.
É a beleza dos artistas invisíveis. Homens, mulheres, crianças e jovens que cotidianamente
labutam em busca de uma expressão artística que lhes defina e sustente.
Essa beleza se expressa na arte desses trabalhadores invisíveis.
Estamos nestes seis meses rastreando, na periferia de Salvador, especificamente no Subúrbio
Ferroviário, que conta com uma população aproximada de 150 mil habitantes esses artistas,
tentando mostrar que a beleza está em todo lugar e que o Subúrbio Ferroviário é um lugar onde
a beleza existe e precisa ser divulgada, contribuindo assim com a existência da diversidade de
expressões no mundo contemporâneo.
INVISIBILIDADE DA BELEZA NO SUBÚRBIO FERROVIÁRIO
7 A primeira etapa da pesquisa se realizou em Salvador, nos primeiros meses de 2010. É importante
salientar que nesse período os contrastes sociais aumentaram vertiginosamente e pudemos perceber que em
toda a cidade os índices de violência aumentaram de forma alarmante. Muitos assassinatos, queima de ônibus, aumento do tráfico de drogas, especialmente o crack, enfim, gerando uma sensação de insegurança
jamais vista na cidade, em todos os seus bairros. Foi nesse contexto que começamos e desenvolvemos essa
pesquisa com os artistas do Subúrbio Ferroviário. Em vários momentos sentimos o medo de sair às ruas, mas nem por isso deixamos de trabalhar.
8 A arte e a beleza sempre existiram nas periferias do Brasil, pois a criatividade do povo sempre encontrou
sua forma de expressão nas mais variadas formas. Por exemplo, podemos lembrar dos sambistas dos
morros cariocas que sempre foram significativos na música brasileira, com composições que são referência até os dias de hoje. 9 A referência a este “fomos” está relacionada a mim e ao fotógrafo Marco Illuminati que com entusiasmo e profissionalismo temos realizado essa empreitada.
Salvador tem regiões que sofrem com o estigma da violência. Impossível não associar algumas
áreas da cidade à ocorrência de crimes e violência, como se os mesmos não ocorressem em
outros bairros.
Sendo assim, a mídia e as pessoas no senso comum estabelecem que determinadas áreas e
bairros correspondam àquilo que elas imaginam que sejam essas localidades.
Aqui começa o estigma.
Sempre me perguntei por que habito em um lugar tão belo em suas paisagens e tão histórico ao
mesmo tempo?
Trabalhei durante muitos anos10 para que as pessoas conhecessem um pouco mais do Subúrbio
Ferroviário, procurando identificar as potencialidades e riquezas que foram esquecidas, mas
esse esforço muitas vezes recaiu na necessidade de estudar as mazelas sociais que interessam à
academia, opondo, assim a sua capacidade de produzir e expressar a beleza.
Estudei violência para responder a tantas demandas e mesmo assim tentei em todos os meus
trabalhos mostrar uma visão mais ampla do que é crescer e se desenvolver em um ambiente de
vulnerabilidade.
Impressionante notar que muitas vezes tentei ligar para veículos de comunicação impressa e
televisionada sugerindo pautas sobre os achados da pesquisa sobre a arte invisível e de um
modo muito peculiar nenhum deles atende a essas sugestões e de vez em quando me ligam de
volta para pedir informações sobre... violência!
Dizer que existe um Centro Cultural em Plataforma, com a qualidade de um teatro do centro da
cidade causa estranhamento e desconfiança às pessoas que não conhecem a localidade.
Dizer que aqui existe uma parte significativa da história do Brasil, em igrejas, sítios
arqueológicos, ruínas, cenários onde guerras e invasões foram travadas ainda é motivo de
espanto para muitas pessoas.
Por exemplo, falar que Periperi foi cenário de um romance de Jorge Amado ou que o primeiro
poço de petróleo no Brasil foi descoberto no Lobato parece coisa inverossímil.
A lista pode ser muito maior.
10 Vide livros Travessias e Novos Alagados: histórias do povo e do lugar, assim como alguns artigos que tenho publicado sobre a violência. Ao mesmo tempo publiquei diversos artigos sobre compositores da
MPB e tenho dois livros inéditos que após a publicação da tese tentarei publicar.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
11
Mas quem se aventura a descobrir essa beleza? Poucos.
A maioria prefere crer na invisibilidade do lugar, pois é muito mais cômodo não ver ou fingir
que não existe um lugar com tantas belezas e histórias, e que por décadas sempre foi esquecido
pelo poder público.
Chego a desconfiar que a invisibilidade seja uma forma de opressão e ao mesmo tempo uma
negação da existência do lugar e das pessoas que nele habitam.
Lembro de vezes em que fui com alguns jovens propor pauta em teatros do centro da cidade e
todas nos foram negadas; lembro de um artista plástico que foi ao um museu de arte solicitar
uma pauta para sua exposição e a diretora quis ver os catálogos de suas exposições anteriores e
não suas obras, por isso teve seu pedido negado.
Criou-se em torno da periferia um cinturão que a separa da “cidade” dita formal.
Poucos são os espaços que acolhem esses artistas.
Poderíamos dizer que a arte suburbana tem um valor considerável para quem a aprecia, mas,
para que isso ocorra, é necessário que ela seja vista, analisada e divulgada.
DA VISIBILIDADE À INVISIBILIDADE DOS ARTISTAS DO SUBÚRBIO
FERROVIÁRIO DE SALVADOR - A TRAJETÓRIA DE UM BAIRRO
Fazendo a etnografia do encontro em plena Praça São Braz, em Plataforma, eis que estou no
ponto de ônibus quando dois senhores, um com 54 e o outro com 80 anos se põem a falar do
passado glorioso do bairro de Plataforma.
Eles começam falando do tempo em que o bairro era próspero, festivo e seguro.
Contam histórias da opulência da Fabrica de Tecidos São Braz – a Fatbraz – de propriedade da
família Martins Catharino. Um deles, o mais velho, lembrou-se de que tinha dezesseis anos
quando foi ali trabalhar e que seu pai, pescador, teve que fazer uma certidão de nascimento
falsa, que se acrescentava mais dois anos de idade para poder ser aceito na fábrica.
Eles contaram que havia em todo carnaval o “Bloco do Bacalhau” e que todos os funcionários
da fábrica participavam do bloco e do “grito” de carnaval que ocorria, tudo isso com muita
alegria, paz e tranqüilidade.
Disseram que havia na atual Feirinha, uma grande feira, que começava no alto da ladeira e
terminava na beira-mar, onde havia os armazéns dos espanhóis, que vendiam tecido, roupas e
demais mercadorias. Todos os funcionários tinham uma caderneta de compra, aonde iam
anotando os débitos e quando do recebimento do pagamento dos salários se formava uma fila
imensa.
Saveiros e trens traziam mercadorias de vendedores do Recôncavo e outros municípios de
Salvador na sexta-feira e que no sábado havia a grande feira, para a qual afluía grande número
de pessoas.
Podia-se ficar nas ruas até alta madrugada, sem medo de assalto.
Havia o cinema, Cine Teatro Plataforma, pertencente ao Círculo Operário da Bahia e no qual
várias vezes Irmã Dulce vinha visitar as crianças e trazer presentes para elas. No mesmo Cine
eram exibidos filmes que estavam em cartaz na “cidade”, como os moradores da periferia
chamam o centro de Salvador.
Nas palavras do Sr. Nildo: “Plataforma parecia uma fazenda e todos se conheciam e se davam
bem”.
Essa frase resume o sentimento que os moradores tinham do seu lugar.
DA VISIBILIDADE À INVISIBILIDADE: A TRAJETÓRIA DOS ARTISTAS
INVISÍVEIS
Partindo dessa conversa cheguei a algumas reflexões sobre como é possível passar da
visibilidade à invisibilidade e me lembrei de uma artista em especial que chamou a minha
atenção nesta pesquisa.
Ela é Dona Coleta de Omolu, que dos palcos de todo o mundo terminou seus dias em uma casa
modesta no São João do Cabrito e seu nome pouco figura na internet ou em sites, sendo
encontradas algumas referências em um site da professora Emilia Biancardi.
DA VISIBILIDADE À INVISIBILIDADE: A TRAJETÓRIA DE UM LUGAR
O mesmo percurso pode ser feito em relação ao Subúrbio Ferroviário de Salvador, local no qual
se deu grande parte da história da colonização do Brasil, com fatos e feitos dignos de figurar na
história do Brasil e que hoje se encontra com seus monumentos em ruínas ou pouco conhecidos
pela população.
Hoje, por exemplo, indo a Periperi procurar o “Castelo dos Sonhos Possíveis”, muitos
moradores que habitam ali há décadas disseram não saber da existência deste projeto peculiar.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
12
Que dizer: há uma falta da memória sobre os artistas presente neste contexto, como se ela fosse
internaliza pelos sujeitos, que se acostumaram a não ter a memória dos artistas passado, não
contribuindo para a diversidade cultural do mundo no seu futuro e no seu presente.
Em relação aos artistas há uma questão delicada, pois o artista nasce para durar, para ser
apreciado, para ser visível a partir da sua obra.
Não saber o nome dos artistas, suas obras, sua importância para a elaboração do fazer artístico
de uma cultura é um drama que tenho encontrado constantemente na pesquisa.
O artista nasceu para durar, mesmo que deixe este mundo pelo quinhão da morte, a sua obra
deve permanecer como uma contribuição para o faber humano.
Encontrar uma obra de um artista em uma barraca que será desapropriada, que passou pelas
maiores intempéries (chuvas, alagamentos, assaltos, falência, testemunha de homicídios,
decadência da área de proteção ambiental e das práticas religiosas afro brasileiras etc.) e a tela
resistir a tudo isso é de fato uma questão da permanência da obra de arte como um símbolo que
vai contra a falta da memória. Chega a ser comovente ver que o artista tem um olhar que tange
a eternidade, que vislumbra aquilo que nós, trabalhadores comuns, se é que existe algum
trabalhador comum, mais pragmáticos, não nos damos conta.
O retrato do Sr. Wilson, é o símbolo de uma época em que as pessoas eram mais felizes, havia
um frescor do início, onde as relações eram pautadas por certa gratuidade e festividade. Ele,
dono de barracas no Parque São Bartolomeu, tinha um excedente que lhe permitiu o “luxo” de
ter um retrato pintado por um artista de renome, que chegou a encontrar em 1972 o prefeito da
Cidade, Clériston Andrade, em foto divulgada no Flogão.
O retrato do Sr. Wilson é uma síntese do local festivo, onde a gente da cidade, do Subúrbio
Ferroviário de Salvador e outros municípios vinham em romaria celebrar a festa de São
Bartolomeu, e que nos finais de semana as barracas ficavam lotadas, tendo suas cachoeiras,
lagos, manguezais, fontes e a floresta, tudo a disposição da população, com uma interação sem
conflitos.
Depois veio a decadência...
E com ela veio o aumento da população, a favelização do local, a violência sem limites, o
tráfico de drogas sem limite e tudo isso passou por cima dos aspectos sagrados daquele lugar. O
“quintal da Bahia”, lugar de peregrinação e iniciação do povo do axé foi se deteriorando sem
limites, principalmente quando as primeiras pessoas começaram a ser assaltadas ali e depois o
lugar se tornou ponto de “desova” de jovens e adultos, na luta insana do tráfico de drogas, a
ponto de o lugar antes tão atrativo hoje tornar-se praticamente inacessível aos próprios
moradores do Subúrbio Ferroviário de Salvador.
Oxalá queira que essa intervenção governamental trouxesse melhoras para o Parque São
Bartolomeu e à população.
Que possamos voltar a freqüentar este berço de matriz africana presente nos arrabaldes de
Salvador.
DA VISIBILIDADE À INVISIBILIDADE: QUE DESTINO É ESTE?
A pergunta sobre o destino dos artistas invisíveis me assalta: como pode ser arte assim
esquecida?
Deve haver uma resposta...
Será que a pobreza elimina aquilo que é material e também o imaterial? As produções
simbólicas que extrapolam a vida pragmática?
Não sei, mas vou procurar uma resposta...
DA VISIBILIDADE À INVISIBILIDADE: O SUBÚRBIO FERROVIÁRIO DE
SALVADOR
Depois de uma pesquisa no CEDIC, da Fundação Clemente Mariani, no bairro do Comércio, no
dia 27 de julho de 2011, fui perguntado por uma estudante de história e funcionária, sobre o
“recorte” histórico da minha pesquisa.
Ninguém até agora me havia feito esta pergunta, ao que respondi inicialmente que seria da
década de 1940 para cá, por conta dos livros de Edgard Cerqueira Falcão sobre a Bahia e em
especial as fotos e referências que o mesmo faz ao Subúrbio antes do processo de favelização.
No entanto, pensando bem detidamente, o meu recorte de pesquisa vem a partir da visibilização
da área em que hoje se encontra o SFS através do livro do Gabriel Soares de Sousa, “Tratado
Descritivo do Brasil em 1587”, pois neste livro o autor faz as primeiras descrições sobre a
localidade, indicando monumentos, pessoas, paisagens e delimitando de forma descritiva todo o
território. Tempos depois, Wanderley Pinho e Pierre Verger retomam essa panorâmica
descrição.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
13
Depois, séculos depois, na década de 1940, vêm os livros do Sr. Edgard de Cerqueira Falcão, o
“Relíquias da Bahia” e “Encantos Tradicionais da Bahia”, que descortinaram em fotos alguns
monumentos que existiam e existem na área do SFS.
Neste instante então me dou conta da questão da visibilidade e do processo de invisibilidade
pelo qual foi passando o Subúrbio Ferroviário de Salvador, tão ligado à História do Brasil e
agora relegado ao esquecimento: a abertura da Avenida Afrânio Peixoto, o avanço das favelas,
enfim, tudo isso mudou o rumo da cidade e o Subúrbio entrou em declínio econômico, social,
histórico e cultural, pois passou a ser associado à pobreza e o “lugar” dos pobres nesta cidade
desigual é o esquecimento.
Assim, vindo de um processo que vai da visibilidade à invisibilidade sua história foi sendo
olvidada mediante o crescimento da cidade e muito da cultura que aqui se faz foi sendo
dilapidada e esquecida.
Como dizia o Poeta Gregório de Matos: “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante”11.
A ARTE EMPODERA A PESSOA12
Recentemente participei do II Seminário Internacional de Psicologia Cultural em Itacimirim e
fui surpreendido pela exposição do professor Sato ao falar que a arte tem um profundo poder
sobre as pessoas e que precisava ser levada mais a sério nos estudos psicológicos.
Ao ouvir essa fala fui tomado de espanto e passei a refletir que a arte tem sim esta função em
nossas vidas e principalmente porque ela deve ser um dos níveis que faz com que a pessoa atue
no contexto.
11 (1633? -1696). Poema “PONDO OS OLHOS PRIMEYRAMENTE NA SUA CIDADE CONHECE,
QUE OS MERCADORES SÃO O PRIMEYRO MÓVEL DA RUÍNA, EM QUE ARDE PELAS MERCADORIAS INÚTEIS, E ENGANOSAS”.
12 “Não temos a capacidade de destilar em palavras as experiências visuais que fazem o belo repousar naquilo que é apreendido pelo olhar. Uma obra de arte é tudo que ela contém: forma, textura, cor, linhas,
conceitos, relações etc. É aquilo que se vê, e o que se diz não corresponde exatamente ao que se vê(...). A
virtude da arte é afirmar um conhecimento, propondo instrumentos que seduzem a inteligência. A invenção de uma linguagem é o resultado de um exercício paciente de contemplar outras linguagens. Como todo
discurso, é resultado de outros discursos. Exige-se um método. A arte é o que está além dos limites de tudo
o que se considera cultura; não pode se restringir a um exótico experimento ou aparência da superfície de um trabalho, que fica para trás, como uma coisa vazia, no primeiro confronto com o olhar que pensa”
(Almandrade, 2008, p. 95-96).
Dentro de uma realidade social complexa e dramática por conta das vulnerabilidades sociais
comecei a me dar conta de que a arte é um fator de proteção e ressignificação da vida das
pessoas, pois ela excede e completa o cotidiano, trazendo um empoderamento para as pessoas
que vivem em situação de adversidade e não só isso, a arte tem a função de restaurar aspectos
da vida pessoal que foram renegados.
O artista revitaliza a existência de quem lhe contempla, trazendo novas elaborações quando nos
defrontamos com ele.
Esse empoderamento se dá porque fomos feitos para a arte, pois o ser humano não se conforma
com pouco ou somente com o prosaico da vida cotidiana, visto que existir é uma invenção de
criatividade cotidiana, e nós queremos sempre mais do que o cotidiano13.
Queremos existir como novidade, como algo que não se repete, como originalidade, e o artista
quando produz e elabora a sua obra de arte está nos dizendo isso e nos fazendo pensar que a
vida é mais, é maior do que aquilo que vemos.
Estar diante de uma obra nos traz essa força de viver, de querer existir sempre mais e melhor.
A arte também pode acender o nosso desejo de viver, de produzir, trabalhar e tornar este mundo
mais humano, mais significativo.
Esse processo se dá através da internalização de aspectos que estão em nós e fora de nós, mas
que podem ter sido sonegados pelas situações de pobreza, violência etc.
Existem pessoas que passam a vida inteira por uma privação da cultura e da arte. Essa privação
se dá pelo fato de elas não terem tido a oportunidade e os meios para acessar estes elementos.
Existem pessoas que não podem consumir ou entrar em contato com a arte e este é um
denominador de como a exclusão pode chegar a níveis assim tão altos. Vide por exemplo que
os jovens assassinados pelo tráfico, muitas vezes não tiveram a oportunidade de estabelecer um
13 Essa percepção tem como base o trabalho do psicólogo russo Vygotsky (1896-1934), que escreveu o
livro Psicologia da Arte, dentre muitos outros, mostrando as funções semióticas presentes nas obras de arte. Em artigo sobre o autor, Marcelo Guimarães Lima assim analisa a importância da contribuição
vygotskyana: “Na análise da obra de arte, a função do signo artístico se revela, para Vygotsky, como a de
socializar a emoção, de “trazer ao círculo da vida social os aspectos mais íntimos da experiência humana” (Vygotsky, 1976). A arte é, na definição de Vygotsky, a “técnica social da emoção”. A noção da arte como
técnica nos remete ao formalismo russo, onde a definição da arte como técnica ou procedimento se
relaciona à noção fundamental do estranhamento como efeito essencial da obra de arte. O estranhamento é igualmente meio e objetivo do procedimento artístico” (Lima, 2000, p.78).
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
14
projeto de vida ou ter outro parâmetro de que eles poderiam ter um fazer reconhecido
socialmente que pudesse ter mudado as suas trajetórias.
Quando a pessoa encontra a obra de arte14algo nela excede.
Excede a exigência humana de ser mais humano; excede a capacidade de cuidar de si e do
mundo; excede o processo de refinamento da cultura co-construindo com ela sua percepção de
mundo; excede no fato de querer também participar do mundo de forma ativa e construtiva;
excede a capacidade de querer participar da história humana e contribuir com ela, ou seja, estar
na linhagem dos humanos que serão lembrados e que construíram uma história que enaltece o
humano nesta Terra, enfim, elabora e tece vínculos de sociabilidade com os outros humanos e
tem um posicionamento diferente e mais proativo diante da vida.
Neste sentido trabalhar com a arte é uma tarefa que implica em modificar muitas vezes a
negação das pessoas que não tiveram acesso aos processos de elaboração que só o humano é
capaz de fazer e aqui não há distinções sociais, pois todos os humanos foram feitos para o belo,
o sublime e precisam ter acesso a essa experiência, sem a qual os humanos podem conformar-
se com qualquer coisa e quebrar os vínculos de sociabilidade, como vemos constantemente com
a irrupção da violência, onde os humanos se desconhecem enquanto tal e não hesitam em
destruir o próprio humano.
A arte empodera a pessoa15.
Ela tem a função de educar a sensibilidade, a percepção e o senso de pertença ao humano16.
14 Ainda segundo Lima (2000, pp.78-79): “A obra de arte tem como função restituir enquanto atividade a
relação do sujeito sensível com o real, relação cuja tendência na vida cotidiana a constituir-se como
passividade, é constante, em grande parte função do hábito, da rotina e da pobreza sensível da vida contemporânea. Contra a reificação da sensibilidade, a arte para os formalistas russos é experiência
incomum, que visa desfamiliarizar o real e, deste modo, forçar a reestruturação da experiência do sujeito. A
pertinência do questionamento pelos formalistas frente aos erros categoriais das concepções tradicionais da arte é reconhecida por Vygotsky. Ao insurgir-se efetivamente contra, entre outros, a sociologia vulgar, o
sociologismo, e a psicologia vulgar, o psicologismo (que inclui o sentimentalismo) na interpretação da obra
de arte, o formalismo se empenha no bom combate”. 15 Essa afirmação contém uma força surpreendente. O que quero indicar, no entanto, é que através da arte e
da educação a pessoa se torna mais crítica e se coloca no tempo e no espaço com uma dimensão mais atuante, mais prospectiva, não ficando refém do aqui-agora das relações, sem um projeto de vida ou mesmo
um sentido e uma força para seguir em frente nas suas escolhas e modos de vida. Esse empoderamento
através da arte pode ser vista em iniciativas como as de Anísio Spínola Teixeira (1900-1971), da Escola Parque (Nunes, 1999) e do querido Cesare de Florio La Rocca do Projeto Axé, a quem tive o prazer e a
honra de entrevistar quando realizei esta pesquisa.
A arte protege o humano, pois é um processo de elaboração importantíssimo na constituição da
nossa subjetividade, por isso ela precisa ser levada em conta como um dos níveis de
desenvolvimento humano.
O acesso ou não à arte pode produzir rupturas e deixar lacunas na percepção que as pessoas têm
ou não da sua existência e neste sentido podemos dizer que é uma exclusão simbólica que
tantos danos trazem à subjetividade, pois a privação cultural nos torna menos capazes de ser
criativos, quiçá humanos17.
O ACERVO DA LAJE E A SUA CONTÍNUA RENOVAÇÃO
Mas uma pesquisa acadêmica tem seus limites. Geralmente fica restrita entre os pares, pode não
chegar à comunicabilidade com o público em geral, com as pessoas da vida cotidiana.
Pensando nisso eu não queria fazer “mais uma” pesquisa acadêmica, pois já as fiz no mestrado
em Psicologia e no Doutorado em Saúde Pública.
Eu quis documentar de outra forma, fazer pesquisa de outra forma. Daí surgiu a necessidade de
começar a comprar as obras dos artistas, pois para tirar da invisibilidade era necessário mostrar
concretamente quem eles são através de suas obras.
Neste sentido tenho comprado sistematicamente as obras dos artistas que vou conhecendo e
descobrindo e daí nasceu o Acervo da Laje, que conta atualmente com 170 obras (escrevo esse
texto no dia 06 de março, e acho que vou precisar atualizar o número) as mais diversas:
pinturas, imagens, esculturas em madeira e alumínio, azulejos, brinquedos, placas, imagens
16 Segundo Lima, ainda analisando a teoria de Vygotsky: “O choque emocional da obra de arte (que Vygotsky identifica à experiência da catarse) contribui para redimensionar a experiência emocional do
sujeito. Aqui é importante salientar que, ao falarmos em “choque”, não nos referimos à intensidade da
emoção por si mesma, mas a uma qualidade específica desta no processo de apreciação estética. A catarse artística é igualmente superação do conflito, síntese emocional, que tem por objetivo liberar energias
emocionais suplementares (de origem tanto biológica quanto social) que, segundo Vygotsky, não
encontram vazão na vida cotidiana. Através da arte se estrutura e se manifesta a sobreviva individual, isto é, aquela dimensão de possibilidades do ser humano individual (por exemplo, na energia excedente de fundo
biológico) em contraste e, ao mesmo tempo, interligada à vida atualizada”. (Lima, 2000, p.80).
17 “A vida imaginativa na arte diz respeito à plasticidade do mundo interior, das estruturas internas do
sujeito. Dialeticamente, o ser humano é capaz de transformar o meio, de humanizar a natureza, porque é
capaz de transformar-se a si mesmo. Esta transformação não se daria sem o concurso da arte” (Lima, 2000, p.80).
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
15
sacras, máscaras em madeira e alumínio, gravuras, livros raros, livros autografados, três
bibliotecas temáticas, hemeroteca, DVD, CDs, originais dos artistas estudados, artes da palha,
madeira e cerâmica, enfim, uma quantidade e qualidade para mim impensáveis de reunir e o
melhor, cada qual com sua história própria, seu sentido contextualizado, sua forma de existir.
O Acervo da Laje é um sonho realizado. É mais que um museu18. Sendo um museu é um
espaço de memória da territorialidade suburbana e da arte ali produzida, o que para muitos
poderia não existir está se concretizando constantemente.
É um lugar de cultura do SFS para o mundo, quebrando as barreiras dos estereótipos existentes
e carrega ele próprio a sua força de existir e toca de uma maneira imprevista por mim aquelas
pessoas que o freqüentam, pois peço que cada uma descreva ou deixe um recado sobre as suas
impressões e o que eu tenho lido e visto nos olhos das pessoas é algo que eu nem sequer
imaginava: hoje, além de pesquisador me tornei como desde os 13 anos um educador, mais um
educador que educa fora das salas de aula e com a poderosa contribuição da arte e da beleza,
que são fundamentais em qualquer processo educativo porque elas têm uma força
surpreendente de significar a vida das pessoas.
O que mais me chama a atenção no Acervo da Laje é que ele próprio é uma “obra aberta”, em
constante renovação, pois as obras não cessam de chegar e se juntar às já existentes.
Deste Acervo hoje eu sou o bedel e o guardião.
A minha alegria é poder receber as pessoas e poder mostrar a cada uma delas o que há no
território do SFS e ninguém vê, ou seja, que cada bairro que aparece muitas vezes no noticiário
18 Assim Almandrade descreve o museu: “O homem está sempre preocupado em preservar sua história e
sua memória, colecionando artefatos. Ele tem acesso ao seu passado através de relatos ou depoimentos de
testemunhas oculares, textos, enfim, documentos... quando se defronta com a coleção de imagens e objetos,, particularidades da vida social, signos que habitam um museu, caverna moderna onde o homem
urbano fixa nas paredes os enigmas de sua passagem no tempo ou no mundo. Com isso, não quero dizer
que o museu seja um caminho em direção ao passado, ele é um lugar de possíveis diálogos entre passado, presente e futuro; olhar o passado é “estabelecer uma continuidade entre o que aparentemente deixou de ser
e o que ainda vai ser” (Frederico Morais). Um abrigo do velho e do novo. Mais do que uma instituição de
festas e inaugurações de exposições, ele tem um papel cultural importante, além de abrigar os registros do tempo, manifestações culturais de uma determinada região, país ou de um determinado povo, objetos que
testemunham o trabalho humano, é um veículo a serviço do conhecimento, da educação e da informação
que contribui para o desenvolvimento da sociedade. Os museus são instituições com tipologias diferentes que guardam acervos, peças integrantes da memória cultural de uma cidade, de um país. O ato de
colecionar foi uma das ações que estimulou o seu surgimento e a própria coleção vai educando o olhar,
impondo exigências, critérios, qualidades, exigindo espaços adequados etc., e a necessidade de ser vista. Vai se constituindo num patrimônio que precisa ser preservado. Seu destino é o museu” (Almandrade,
2008, pp.101-102).
policial não tem só isso. Há uma beleza escondida e que aos poucos vai se revelando e se
comunicando com as pessoas.
Além das obras de arte temos a alegria de cuidar de três importantes bibliotecas: a Zilda
Paim (Acervo Geral), Dr. Wilde Oliveira Lima (Livros Raros) e Maria Helena de Araújo
Santos (Coleção), todas com a melhor quantidade e qualidade de livros de todas as áreas
científicas e culturais, com raridades de fazer espanto a qualquer bibliófilo, isso contando ainda
com a maior Hemeroteca sobre o SFS, denominada Antonio Lazzarotto e os arquivos de
negativos, CDs, DVDs e fitas K7 com dezenas de entrevistas com moradores da área.
“MESMO(,) LUGAR SAG(R)ADO!”: COMO A BELEZA PODE SERVIR DE
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA
Recentemente o aspecto mais visível da minha pesquisa sobre os artistas invisíveis, o “Acervo
da Laje”, começou a ser visitado por crianças, jovens e educadores de Novos Alagados e
mesmo de toda a cidade. Após a visita peço que coloquem suas impressões em telas brancas de
pintura. Uma adolescente daqui de Novos Alagados, escreveu: “Mesmo (,) lugar sag(r)ado”.
Ao ler esta frase fui tomado de espanto e reflexão, pois percebi que essas pessoas começam a
entender que existe uma alternativa na vida e que a beleza, a arte e a cultura são possibilidades
para vida.
Quem vive em situação de pobreza geralmente tem de lidar com situações ligadas ao aqui e
agora das situações e a falta de dinheiro faz com que as pessoas sobrevivam na linha tênue da
existência.
E neste sentido são privados da beleza e da arte, pois esses aspectos do humano são, em certo
sentido, um luxo. Escolher entre comer e consumir arte não é uma escolha; é dramático.
Assim, tenho feito a experiência de analisar a expressão das pessoas que têm vindo ao Acervo
da Laje para contemplar cultura, beleza, obras de arte.
O que tem me impressionado é que a interação com as obras tem provocado muito a todos os
que aqui chegam. As pessoas se dão conta de que a arte é uma necessidade humana e começam
a se indagar porque foram privadas dela durante as suas vidas...
As crianças e adolescentes sentem, primeiro, um estranhamento, e logo depois começam a fazer
muitas perguntas, em um diálogo incessante. Ao término de cada visita eles vão colocando suas
impressões e neste sentido começo a perceber que a arte também educa; educa a atenção, a
sensibilidade, a leitura e a escrita, enfim, educa de modo integral.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
16
EDUCAÇÃO PARA A BELEZA: A CONTEMPLAÇÃO
Recentemente dei uma entrevista para o Jornal A Tarde, aqui de Salvador, e em um
determinado momento comentei que a falta de educação se expressa quando, por exemplo, uma
pessoa não faz silêncio para assistir um espetáculo ou contemplar uma obra de arte.
Pois bem: o silêncio e a contemplação diante da beleza fazem parte do diálogo que travamos
com a obra quando do seu encontro.
Nestes dias tenho ido atrás da beleza através das esculturas de Otávio Bahia, César, Otávio
Filho e Ray Bahia.
A obra de Otávio Bahia, em primeiro lugar, é comovente e cativante. São figuras humanas,
máscaras, guerreiras, figuras que carregam uma reverência e singeleza que têm me comovido
em demasia, a ponto de me fazer comprar diversas delas, que hoje compõem o “Acervo da
Laje’, um dos desdobramentos da pesquisa.
A obra de Otávio Bahia e de seus filhos, assim como a de Ray Bahia, me fazem fazer silêncio
diante delas, porque ali está o mistério da criação, da eternidade e ao mesmo tempo da nossa
finitude.
Mas para olhar assim é preciso uma educação da sensibilidade e essa educação vem da
percepção de que o diálogo e a escuta são capacidades que precisam ser desenvolvidas.
É preciso ter referência da história e da arte humana que vem sendo construída há tempos, e da
qual somos continuadores.
É preciso ter contato com o belo em sua acepção humana, dos artistas que nos precederam, de
suas obras, da contribuição particular que cada um de nós deixou sobre este planeta.
Neste sentido, a escola tem uma função cultural muito importante, que é aquela de introduzir o
sujeito nessa história da cultura humana.
Para isso, no entanto, é necessário que na escola haja uma educação para a beleza, uma
educação para a civilidade e para o respeito à diversidade cultural que há no mundo, assim
como a valorização da nossa própria existência, do nosso engenho na produção de uma história
que se perpetua.
Diante de tantas reclamações dos professores sobre o baixo nível da nossa educação e do
comportamento dos alunos, tive uma grata surpresa nesta semana.
Falando para alunos do ensino fundamental em uma escola aqui no Subúrbio Ferroviário de
Salvador, fiquei comovido diante das crianças e adolescentes que me receberam para que eu
contasse porque escrevo e pesquiso.
Para espanto de todos os adultos presentes os alunos fizeram silêncio e também me fizeram
muitas perguntas, de modo que houve um intenso diálogo sobre arte, cultura, história e a
beleza.
Naquele momento aquelas crianças entenderam que para estudar e aprender há um método e
cada um de nós vai construindo o seu, cada qual ao seu tempo, a partir de suas experiências e
referências culturais.
Claro que a escola às vezes não se dá conta deste aspecto, mas cada aluno tem o seu tempo de
aprender.
O fato de eles terem feito silêncio e na hora indicada puderam fazer perguntas e ouvir respostas,
implica que eles fizeram a experiência de que para aprender a dialogar é preciso o silêncio e o
respeito diante do objeto de aprendizagem.
É como olhar um quadro ou uma escultura e deixar-se capturar por ela, pela sua beleza, pela
comunicabilidade que a arte tem na relação com o observador.
Assim a obra se revela diante de nós.
No barulho, na confusão, não conseguimos deliberar a atenção para um objeto e isso nos
confunde, nos deixa inquietos, tomados dos mais diversos sentimentos e, por fim, nos deixa
perturbados.
Quando deliberamos a atenção para um objeto isso nos permite dialogar com ele, mesmo que
não o entendamos de pronto.
Mas este é o problema: queremos entender as coisas de pronto, com pressa. E não é assim...
Toda a aprendizagem demanda um tempo. Demanda atenção, desejo, vontade. Demanda
condições adequadas de diálogo: escuta e perguntas.
Para encontrar a obra de arte é preciso um olhar que saiba contemplar, ou seja, que saiba
espreitar onde a beleza pode surgir e ela surge independentemente da nossa vontade.
Neste momento estou comprando as obras de arte dos artistas do Subúrbio Ferroviário de
Salvador.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
17
Enquanto pessoas compram roupas, drogas etc., eis que me deparo semanalmente constituindo
o “Acervo da Laje”, uma iniciativa derivada da pesquisa e isso tem me causado um espanto
constante.
Uma alegria de viver e poder estudar. Poder celebrar a vida. Celebrar sua beleza.
Neste sentido, acredito que quem chegar a esta casa, minha casa, casa dos meus pais, bem no
meio da favela, hoje bairro, de Novos Alagados, em Plataforma, no Subúrbio Ferroviário de
Salvador, na Bahia, Brasil, vai se deparar com essa atitude de contemplação que tenho descrito,
porque as obras que aqui estão refletem o paradigma da beleza que é feita na periferia e
conquista o mundo, que está enfeitando salas de casas e museus em todo o mundo e agora elas
repousam também aqui.
Aprendi a contemplar as obras de arte desde muito cedo.
Tudo isso porque na favela de Novos Alagados existiam pessoas com uma abertura para o
mundo e para o belo que foram fundamentais por me permitir ter acesso a sua biblioteca e
discoteca.
Depois dali, saí para ir verificar essa beleza nas igrejas de Salvador e sempre isso foi uma
comoção em minha vida ao vislumbrar a beleza em imagens, vitrais, arquitetura.
Comoção que me levava às lágrimas por me dar conta que quem executou aquela beleza de
certo modo havia pensado em mim, na minha sensibilidade para que um dia eu pudesse
contemplá-la, tendo, assim, um olhar diferente para essas obras.
Meus pais contribuíram e muito para essa educação ao belo.
Em nossa casa havia discos e brinquedos. Meu pai gosta muito de música e tínhamos em casa
todos os discos lançados nas décadas de 1970 e 1980, além de brinquedos, que estimulavam a
nossa inteligência.
Mas é preciso dizer que a contemplação não é uma atitude passiva. Ela é um dos modos mais
dinâmicos de aprendizagem do mundo que está à nossa volta.
PARA SUPERAR A INVISIBILIDADE
Superar a invisibilidade é difícil, mas possível.
Possível quando nos empenhamos em dirimir as desigualdades de acesso à arte e à cultura
através de iniciativas que tenham por objetivo diminuir o abismo que separa o SFS e a cidade.
Neste sentido tenho procurado fomentar encontros, descobertas e publicações, de modo que o
conhecimento produzido possa abrir novas pontes de comunicação.
A publicação de artigos, livros, perfis e entrevistas se constituem em importantes trabalhos de
democratização da informação, principalmente através da internet, pois muitos dos artistas que
pesquisei não são conhecidos nem na internet.
Outro aspecto é a freqüência aos espaços culturais do SFS, como fazemos em relação a outros
espaços da cidade e acabar com essa distinção entre centro e periferia, pois a cidade é uma e
todos fazem parte dela.
Outro aspecto ainda é manter as portas abertas para as visitam que chegam e vêm de longe
conhecer o SFS. Gente de todo o mundo, de todo o Brasil, de toda a Bahia vem aqui para
conhecer o lugar e as pessoas. Esta relação de encontros faz com que as pessoas façam trocas
simbólicas importantes entre o seu saber cotidiano e os saberes universitários, de outros países,
tradições, cultura etc.
Pesquisar, mapear e tornar conhecidos os artistas e as pessoas que fazem cultura nesta cidade é
um desafio interminável, pois em Salvador a arte brota em todos os recantos, sem distinção,
mas a falta de divulgação não possibilita que essa diversidade apareça.
Por exemplo, se vocês repararem bem em alguns jornais um mesmo artista estampa muitas
matérias de tudo o que ele faz: se foi ao cabeleireiro, se está de férias, se disse algo no twitter,
enfim, por qualquer efemeridade ele está na mídia, enquanto centenas de artistas não têm a
possibilidade de divulgar o seu trabalho, isso também por conta da fragilidade de equipes de
produção e divulgação do seu trabalho.
Há artistas na Bahia que não têm o que comer.
Há artistas que vivem em casas sem energia elétrica.
Há artistas que morrem sem ter seu trabalho devidamente divulgado e conhecido.
Há artistas que não têm uma obra sua no seu acervo, aliás, não possuem acervo.
Há artistas que são artistas e são invisíveis.
Artistas Invisíveis da Periferia de Salvador – José Eduardo Ferreira Santos
18
A invisibilidade é um drama de um País e de uma cidade que é desigual, elitista, que não
democratiza o acesso à cultura.
Dialogar sobre eles já é um modo de torná-los visíveis.
Essa é uma tarefa.
E como tarefa é uma possibilidade de crescer e responder de forma madura e crítica.
É o que estou tentando fazer.
Isto me dá alegria de viver.
Muito obrigado.
Dialoguemos.
REFERÊNCIAS
ALMANDRADE. Escritos sobre arte: arte, cidade e política cultural. Salvador: Editora
Cispoesia, 2008.
AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supramodernidade. Tradução de Maria
Lúcia Pereira. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994.
AULETE, C. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Edição brasileira. 2º volume.
Rio de Janeiro: Editora Delta S.A., 1958.
BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social.São Paulo: Ateliê Editorial,
2003.
ESPINHEIRA, G.O Parque São Bartolomeu: esquecimento e memória. Parque Metropolitano
de Pirajá: história, natureza e cultura. Ana Lúcia Formigli (org.) et al. Salvador: Centro de
Educação Ambiental São Bartolomeu, 1998, pp. 23-27.
LIMA, M. G. A psicologia da arte e os fundamentos da teoria histórico-cultural do
desenvolvimento humano. Interações, jan-jun, vol. V, n.09, Universidade São Marcos, São
Paulo, Brasil, pp. 73-81.
MATOS, G. Poesias selecionadas. 3ª edição. São Paulo: FTD, 1998.
NUNES, C. Anísio Spínola Teixeira. Dicionário de educadores do Brasil. Maria de Lourdes de
Albuquerque Fávero e Jáder de Medeiros Britto (ogs.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ MEC-
Inep, 1999, pp. 56-64.
SANTOS, J.E.F. Travessias: a adolescência em Novos Alagados: trajetórias pessoais e
estruturas de oportunidade em um contexto de risco psicossocial. Bauru, São Paulo: Edusc,
2005a.
SANTOS, J.E.F Novos Alagados: histórias do povo e do lugar. Bauru, São Paulo: Edusc,
2005b.
WEIL, S. O enraizamento. Tradução de Maria Leonor Loureiro. Bauru: Edusc, 2001.
WEIL, S. A gravidade e a graça. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1993.