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INTRODUÇÃO
A concepção do projeto de pesquisa que resultou nesta dissertação foi motivada
pelas observações realizadas entre os anos de 2008 e 2009, quando trabalhei como
museóloga da Coleção de Instrumentos Musicais Tradicionais Emília Biancardi1. A casa
que abriga, expõe e dinamiza a referida coleção localiza-se no Centro Histórico de
Salvador, também conhecido como Pelourinho. Este é um dos locais mais frequentados
por mestres, capoeiristas, interessados e estudiosos da capoeira, também local de
concentração de muitas academias que ensinam capoeira para crianças e adolescentes
do entorno e também turistas que vêm em busca de conhecer e aprender capoeira na
“grande Meca dos capoeiristas2” como é considerada a cidade de Salvador.
Através desta experiência tive contato com mestres que atuam em Salvador,
como Mestre Pelé da Bomba, Mestre Boca Rica, Mestre Valdec como também mestres
que atuam fora de Salvador, em outras cidades, estados e países, como Mestre Cabello,
Mestre Marcos Simplício de Campinas, São Paulo, e Val Boa Morte que atua na
Austrália. Contudo, a minha curiosidade pelo mundo da capoeira já existia, pois
durante a minha infância, a capoeira foi para mim a maior referência do meu pai,
conhecido na capoeiragem como Mestre Marcelo de João Pequeno. O fato de relacionar
a capoeira com a sua pessoa e personalidade me mantinha conectada a ele. Como se
quanto mais eu conhecesse da capoeira, mais eu conheceria o meu pai.
Passei a considerar as cantigas da capoeira3 como um possível objeto de estudo,
quando certa feita, indo para a Casa da Coleção, ao passar pelo Pelourinho, reduzi o
passo para ouvir a cantiga em uma roda de capoeira. Percebi que era tocada uma música
da chamada “axé music”4, muito executada nos trios elétricos durante o carnaval, mas,
na roda de capoeira era cantada ao som do berimbau e do pandeiro.
Sem dúvida era uma roda de capoeira e cantavam como se fosse uma cantiga da
capoeira. Aquilo provocou em mim um desconforto. Pensei: “mas se é música baiana
1 A Coleção de Instrumentos Musicais Tradicionais Emília Biancardi é resultado de um trabalho de
pesquisa e compilação, da etnomusicóloga baiana Emília Biancardi, ao longo dos seus mais de quarenta
anos de trabalho nesta área. É composta por instrumentos musicais oriundos dos cinco continentes, na
maioria das vezes coletados e estudados pela própria colecionadora. 2 Letícia Vidor Reis usa o termo “grande meca dos capoeiristas” referindo-se à Bahia, mais exatamente a
Salvador, ao tratar do processo chamado por ela de “rebaianização” da capoeira que ocorre entre os
capoeiristas de todo o país no sentido de apropriar-se dos fundamentos e demais ensinamentos da
capoeira Angola. (REIS, 2000, p. 156). 3 Na capoeira as cantigas são composições para acompanhamentos vocais. Estas podem ser de improviso
fazendo a crônica da roda sobre os acontecimentos do momento ou podem ser elaboradas anteriormente
para serem apresentadas no momento da roda ou treino de capoeira. 4 “Axé music” é o termo que designa uma série de produções musicais da cidade de Salvador no início
dos anos 90 do século passado que deu maior visibilidade a cantores e bandas de baianos no mercado da
musical nacional.
10
cantada na Bahia, certamente por baianos, por que esse incômodo?” Mas eu não me
convencia, me sentia ultrajada por ouvir alguém cantando “axé” 5 como se cantiga de
capoeira fosse. Qual seria a finalidade daquilo? Percebi então que tal desconforto se deu
por não ter me identificado como baiana afrodescendente e amante da capoeira com tal
demonstração. A sensação de ultraje permanecia, ainda que eu me questionasse acerca
da dinâmica da cultura, das possibilidades de apropriação de novos elementos que
dinamizam e ressignificam a cultura tradicional, ainda que considerando a possibilidade
da sua invenção, e ainda observando Canclini (2008) quando nos lembra que mesmo a
cultura popular6 se moderniza.
Pouco tempo depois, em conversas e em contato com outros meios de
informação, soube que não somente eu, mas também parte da comunidade capoeirística,
não se agradava da execução de músicas e canções outras, fora dos padrões tidos como
tradicionais, nas rodas de capoeira. Desta opinião é também o Mestre Itapoã ao dizer no
registro em audiovisual do II Festival de Ladainha, Corrido e Quadra ou Chula7,
promovido pela Coleção Emília Biancardi, em 2008, que “a capoeira tem se desvirtuado
muito. […] a música da capoeira, cada um canta o que quer do jeito que quer e esquece
muito da tradição […]”.
No mesmo evento sinaliza uma questão semelhante à minha inquietação, o
Mestre Nenéu, comentando sobre a importância do referido festival: “[…] pra não ficar
como acontece às vezes se cantando samba de roda, cantando candomblé, Xitãozinho e
Xororó, cantando Xuxa, em roda de capoeira”.
É interessante notar, nas falas destacadas, que o ambiente da roda ou treino de
capoeira foi percebido, identificado e aceito como tal pelos capoeiristas, por meio dos
elementos visíveis e interpretados como tradicionais da capoeira (a roda, os
instrumentos, os capoeiristas com suas indumentárias, seus movimentos etc.). Ao
perceber uma cantiga que sai do repertório das formas tradicionais da capoeira, sobre o
5 Nesse caso o termo é usado de forma coloquial. “axé” é empregado como forma resumida de “axé
music”. Segundo o verbete destacado no “Glossaire” proposto por Barlow e Eyre, para “Axé” é “termo
yoruba que significa “força vital” e atualmente qualifica um estilo pop-afro-baiano no Brasil, onde é cada
vez mais popular (1997, p. 72). 6 Tomamos aqui a noção de cultura popular como elemento de força e atuação política. Conforme chama
a atenção Stuart Hall, “A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos
poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. É a arena do
consentimento e da resistência” (2003, p. 246), notamos então ainda mais marcadamente a atuação da
capoeira no terreno da política. 7 O II Festival de Ladainhas Corridos Chulas ou Quadras, foi um evento promovido pela Coleção Emília
Biancardi com a finalidade de promover as formas tradicionais de composição e execução das cantigas
tradicionais da capoeira em agosto de 2008, na cidade de Salvador.
11
qual trataremos em outro capítulo como se estivesse quebrando as regras, rompido com
a convenção e com o referencial que supostamente sustentaria a capoeira enquanto
fenômeno cultural8 que manifesta identidades.
De modo geral, esta pesquisa pensa nas cantigas de capoeira como documentos
que nos oferecem compreensão acerca das representações e das identidades culturais
afro-brasileiras, sobretudo entre os capoeiristas que se formaram, atuam ou atuaram em
Salvador. A partir destes documentos, de composição dos próprios mestres e
capoeiristas, principais sujeitos desta manifestação, e considerando suas vivências,
pontos de vista e valores veiculados nestas cantigas, pretendemos estabelecer as bases
para análise e compreensão de como se apresentam e atuam os elementos de origem
afro-brasileira nas cantigas de capoeira. Também busca a pesquisa conhecer o contexto
de produção, execução e aprendizagem das cantigas de capoeira em Salvador.
Tomamos por substrato de estudo as cantigas de capoeira produzidas nos moldes
tradicionais9, por acreditar que estas expressam elementos da identidade cultural afro-
brasileira, ao mesmo tempo em que participam da sua construção e afirmação. Notamos
a relação entre a identidade afro-brasileira e as músicas de capoeira, através do conteúdo
e do discurso das letras das cantigas, e elementos desta identidade, a partir dos quais
destacaremos as categorias representacionais aplicadas na análise das cantigas.
Observamos também, que através de valores e vivências configura-se a identidade
cultural, e que muitas destas cantigas são produzidas com base nestes, uma vez que a
música tradicional da capoeira expressa estes valores afro-brasileiros e aquilo que se
construiu com fundamentos da capoeira.
Considerando a tendência interdisciplinar da Crítica Cultural, e, com isto, a
abertura para uma gama de instrumentos metodológicos, a fim de compor a metodologia
deste trabalho, a pesquisa lançou mão de um conjunto técnico-instrumental que envolve,
principalmente, o levantamento bibliográfico, observação etnográfica e o
estabelecimento de quadro de análise.
Deste modo, o levantamento de bibliografia e pesquisa bibliográfica teve por
finalidade fornecer subsídio teórico e conceitual, principalmente no que se refere à
cultura e suas variantes, Estudos Culturais, identidade cultural, etnicidade, afro-
brasilidade, capoeira e cantigas da capoeira. Também foi realizada observação
8Thompson nos oferece o conceito de “fenômeno cultural” como sendo “formas simbólicas em contextos
estruturados” (1995, p.181). 9 Como moldes tradicionais são compreendidas as modalidades das cantigas (ladainha, quadras, corridos,
chulas e louvação), com temáticas que versam ou giram em torno dos elementos culturais afro-brasileiros.
12
etnográfica junto às rodas de capoeira e treinos, conversas e entrevistas dirigidas,
voltadas à melhor compreensão do mundo da capoeira e do processo de produção e
recepção das suas cantigas.
No primeiro capítulo, Os Estudos Culturais e a Capoeira, apresentamos o
universo da capoeira como uma manifestação cultural afro-brasileira. Para isso,
retomamos alguns debates que envolveram esta manifestação cultural, como as
especulações acerca da sua origem e nome. Também buscamos salientar a condição da
escravidão colonial no Brasil como condição fundamental para a criação e
desenvolvimento da capoeira, bem como fazer um apanhado da história da capoeira,
desde a sua chegada às cidades, até a sua patrimonialização pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2008, de modo a contextualizar
a produção das cantigas de capoeira em Salvador, e como as percebemos como objeto
de estudo.
No segundo capítulo, Capoeira e Identidade Afro-brasileira, tratamos da
identidade cultural afro-brasileira como construção social, elaborada a partir das
referências dos diversos grupos étnicos africanos que tiveram seus representantes
trazidos como escravos para o Brasil. Considerando a conjuntura da escravidão colonial
e a fragmentação das referências institucionais dos africanos aqui escravizados10
, como
fato que não lhes permitiu a continuidade das suas culturas, percebemos este contexto
como elemento fundamental que possibilitou a criação e desenvolvimento não somente
da capoeira, como também do universo da cultura afro-brasileira. Utilizamos
fundamentos teóricos de Stuart Hall (2003 / 2006) que abordam a formação das
identidades e a ideia de nação, com base nos Estudos Culturais; Berger e Luckmann
(2008), que tratam da construção social da realidade, e as relações de
intersubjetividades, bem como autores como Munanga (1990 e 2003), em conjunto com
Poutignat e Strieff-Fernart (1998) quando tratamos sobre raça e etnicidade. Também
apresentamos a ideia de afro-brasilidade, como uma reação defensiva às experiências
geradas pela desigualdade racial11
.
O terceiro capítulo, Os Valores Civilizatórios Afro-brasileiros nas Rodas de
Capoeira, é destinado à apresentação de alguns dos valores civilizatórios afro-
brasileiros, no sentido de acurar a percepção do leitor na identificação de aspectos
10
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, os principais grupos culturais de africanos trazidos para o Brasil
foram os dos grupos linguísticos Bantu e Sudaneses, dos quais originavam-se diversos dialetos e
ocupavam vasta área do território africano. 11
Neste sentido, raça é concebida conforme Hall (2006, p. 63), como uma categoria discursiva.
13
civilizatórios que se relacionam diretamente à construção das identidades afro-
brasileiras. Verificamos que estes valores se expressam no mundo da capoeira, em
particular nas cantigas de capoeira cantadas em Salvador.
O quarto capítulo, Mestres, Capoeiristas e Cantigas de Capoeira em Salvador,
destina-se a apresentação da metodologia de trabalho e à análise das cantigas a partir de
um quadro de categorias e subcategorias elaborado com base na noção de representação
social. São apresentados os instrumentos de coleta de dados, os perfis dos capoeiristas
entrevistados e algumas impressões colhidas nas visitas e participações em aulas de
capoeira. Além disso, verificamos nas cantigas a integração e a expressão da
cosmovisão, dos princípios e valores afro-brasileiros. Deste modo, através das
categorias que estabelecemos, analisamos trechos das cantigas, confrontando e
apresentando mais cantigas do que se analisássemos uma cantiga por categoria. De
qualquer forma, trazemos nos anexos as cantigas na íntegra, tanto as que utilizamos
como exemplos, quanto as que nos forneceram parâmetros para a análise, contudo não
foram citadas no texto.
Por fim, são feitas as considerações finais, apresentando as possíveis conclusões
que puderam ser feitas com este trabalho. Pensando a identidade cultural afro-brasileira
como uma construção social, a qual no mundo da capoeira, manifesta através das suas
cantigas elementos que nos fazem perceber as representações sociais elaboradas sobre
estes grupos pelos próprios capoeiristas, haja vista os contextos da sua produção e
execução, influenciado por demandas da indústria do turismo e outros fatores
econômicos.
14
CAPÍTULO I
OS ESTUDOS CULTURAIS E A CAPOEIRA
Os Estudos Culturais, como área do conhecimento, tiveram seu início na Grã-
Bretanha durante a década de 50 do século passado. Derivou-se de uma corrente
teórico-política denominada leavisismo, a qual buscava, baseado no pensamento de F.
R. Leavis sobre cultura e educação, distribuir mais amplamente o conhecimento
oferecido às elites, entre as camadas da sociedade que não tinham acesso aos produtos
culturais da chamada alta cultura12
, - digo desses, os valorizados e produzidos pelas
elites dentro dos cânones por estas estabelecidos - através da organização esquerdista
voltada para a educação de adultos chamada Workere’s Educational Association
(WEA), onde eram professores Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward
Thompson. Na perspectiva destes pensadores, a produção cultural das classes
trabalhadoras não era creditada a ponto de ser estudada e discutida academicamente.
Assim, os Estudos Culturais, que tiveram influência dos pensadores da Escola de
Frankfurt, pensam a cultura como um produto das relações entre indivíduos.
Partindo deste ponto, Raymond Williams, um dos principais teóricos dos
Estudos Culturais, lança-se à compreensão mais ampla da cultura, tomando esta “como
modo de vida”, a qual todas as comunidades humanas e indivíduos atuam como
produtores. Deste modo, os Estudos Culturais, ao tomarem a cultura como um produto
das relações entre indivíduos, como modo de vida, volta um novo olhar para forma de
estudar a “alta cultura” e abre espaços para o estudo da cultura popular, das classes
subalternizadas, das comunidades e sub-culturas, enfim às culturas situadas à margem
da sociedade. Com isto, enfatizam também o estudo das relações locais ante o global,
por considerar a cultura uma esfera interrelacionada à ideologia, à economia, à história e
à política como marcas conjunturais do contexto. Neste sentido, as cantigas da capoeira
apresentam-se como objeto de estudo, relacionando-se com os valores tradicionais e os
12
O termo “alta cultura” aqui é empregado referindo-se contextualmente à idéia de desenvolvimento
durante o século XIX, relacionando-se às obras de arte produzidas e valorizadas pela elite da época, com
vistas a diferenciar-se da cultura popular, esta produzida fora dos cânones impostos pela chamada “alta
cultura”. Deste modo, o uso do termo “alta cultura” busca enfatizar a diferença de classes produtoras de
cultura.
15
valores encontrados na pós-modernidade13
que de modo conjunto atuam sobre a
formação da identidade cultural afro-brasileira, a qual permeia o mundo da capoeira.
Os Estudos Culturais não apresentam desenvolvida uma metodologia própria, o
que pode parecer um tanto desconfortável, contudo, encontram-se em uma situação
privilegiada, pois, se permitem lançar mão de várias técnicas e instrumentos
metodológicos, sobretudo os desenvolvidos pelas ciências humanas para alcançar a
finalidade do estudo proposto. De fato, os Estudos Culturais são uma área do
conhecimento que atua nas fronteiras, tanto em termos de conceitos, quanto de
referências. Haja vista a construção de sua base teórica, notadamente orientada pelo
marxismo revisado, tanto quanto a apropriação de diversos conceitos forjados pela
Antropologia, a História, a Linguística ou a Sociologia. Aliás, é deste modo que
podemos compreender a afirmação de Nelson, Treichler e Grossberg quando dizem que
“os Estudos Culturais se aproveitam de quaisquer campos que forem necessários para
produzir o conhecimento exigido para um projeto particular.” (NELSON, TREICHLER
e GROSSBERG apud. SILVA, 2008, p. 9).
Segundo Thompson (1995), a convenção e o referencial são elementos cruciais
para o estudo das culturas, por se tratar de dois dos aspectos das formas simbólicas14
.
Deste modo, notamos que as tais quebras no repertório das formas tradicionais das
cantigas aparecem como fatores de estranhamento entre os capoeiristas e estudiosos da
capoeira. Vale lembrar que as convenções, como uma das característica das formas
simbólicas, são construções humanas socialmente estruturadas15
, e como tal, estão
dispostas em contextos que lhes permitem, através de diversos tipos de interação,
transformar-se, reconstruir-se e reinventar-se. Deste modo, a característica dinâmica da
cultura, permite que esta se abra a reinterpretações, novos usos e novas formas de
produção.
13
Compreendemos como pós-modernidade o momento pelo qual passam as sociedades capitalistas,
caracterizado por Eagleton (2005) como um movimento crescente de dependência destas sociedades em
“operações cotidianas de mitos e fantasias, riqueza ficcional, exotismo e hipérbole, retórica, realidade
virtual e mera aparência” (2005, p.100). Além disso, a pós-modernidade se manifesta como um momento
histórico de intenso e descontínuo fluxo de inter-relações, informações, narrativas e modos de vida que
revelam, mas também confundem o sentido da realidade e experiências humanas. 14
As formas simbólicas segundo a compreensão de Thompson referem-se a “ações, objetos sociais e
expressões significativas de vários tipos.” (1995, p. 181). 15
Thompson, (1995) considera o aspecto convencional como uma característica das formas simbólicas,
juntamente com os aspectos intencional, estrutural, referencial e contextual, indispensáveis ao estudo e
compreensão dos fenômenos culturais. As formas simbólicas segundo a compreensão de Thompson
referem-se a “ações, objetos e expressões significativas de vários tipos.” (1995, p. 181).
16
De acordo com autores como John Thompson (1995), Lúcia Santaella (2003) e
Marilena Chaui (2007) que dedicaram momentos em suas obras para historiar em linhas
gerais o desenvolvimento do conceito de cultura, podemos observar que, ao longo do
tempo, foram atribuídos diversos significados e desenvolvidas concepções diversas para
este termo. Partindo da concepção etnológica, oriunda do latim colere, verbo que se
refere ao cuidado ou cultivo da terra, e relacionando este cultivo às sociedades humanas,
esses significados e concepções foram ganhando conotações variadas, algumas delas
ainda usadas em nosso cotidiano, através da concepção de cultura como instrução ou
como termo que descreve a “evolução” de processos de desenvolvimento humano.
Entendemos hoje a cultura como modo de vida, que envolve os saberes e fazeres, as
produções e significações materiais e imateriais, as mais diversas relações entre
indivíduos e entre estes e o meio, não somente onde vivem os indivíduos, como também
onde se dá a produção, construção e interpretação de símbolos culturais, além dos meios
virtuais.
Percebemos então cultura como um conceito em intensa transformação, pois,
como metaforiza Santaella “a cultura é como a vida” (2003, p. 29), e a vida, como um
gás que tenta ocupar todo espaço disponível, adaptando-se a esse espaço, torna-se cada
vez mais complexa e em constante crescimento. Ainda conforme a autora “[…] a
cultura humana existe num continuum, ela é cumulativa, não no sentido linear, mas no
sentido de interação incessante de tradição e mudança, persistência e transformação”
(SANTAELLA, 2003, p. 57). Essa constante transformação pode ser observada em
diversos fenômenos culturais, dentre os quais a capoeira, de um modo geral, ou nas suas
cantigas, de modo particular.
As culturas são produções humanas nas quais estão em relação o homem, o meio
e a sociedade. Neste sentido, nota Thompson que
[…] a vida social não é, simplesmente, uma questão de objetos e fatos que
ocorrem como fenômenos de um mundo natural: ela é também uma questão
de ações e expressões significativas, de manifestações verbais, símbolos,
textos e artefatos de vários tipos e de sujeitos que se expressam através
desses artefatos e que procuram entender a si mesmos e aos outros pela
interpretação das expressões que produzem e recebem (THOMPSON, 1995,
p. 165).
Deste modo, podemos entender que a noção de cultura está vinculada à vida em
grupo, e que tem como elementos fundamentais, os membros, os grupos e suas
interações, delas se originam as instituições, a produção, significação e
compartilhamento de símbolos e artefatos que envolvem os modos de vida e os
17
contextos sociais estruturados,16
nos quais, ocorrem os “fenômenos culturais”. Estes
seriam as manifestações culturais que se apresentam em si, enquanto passíveis de serem
objetivadas, tanto quanto suas relações de poder e conflito, pontuadas por Thompson
(1995).
Assim, o conceito de cultura, considerando a dinâmica como uma das suas
principais características, nos permite pensar que tudo o que se pode assegurar é este
movimento dinâmico, de expansão, contração, interação e produção simbólica. Deste
modo, o delineamento do problema teórico-empírico que se apresenta neste trabalho
toma a compreensão da identidade cultural afro-brasileira como identidade, composta e
situada em um campo dialético que abarca raça, etnicidade e nacionalidade, como
formas simbólicas que atuaram diretamente na construção social e cultural da capoeira e
que podem ser observadas a partir das cantigas de capoeira.
1.1 Sobre a capoeira
Uma das versões mais conhecidas sobre a origem da capoeira, defendida pelo
historiador, antropólogo e folclorista, Luís da Câmara Cascudo (REGO, 1968), é a que
diz ter se originado em Angola, a partir de um rito de passagem conhecido como N’golo
ou “dança da zebra”. Tradicional na região sul de Angola, este jogo ritualístico, cujo
objetivo era acertar o rosto do adversário com um golpe desferido com o pé, além de
iniciar os jovens guerreiros, de alguns grupos dessa região, permitia também ao
vencedor escolher dentre as jovens que entraram na puberdade, naquele ano, no
cerimonial de iniciação, uma delas para ser sua noiva, desobrigando-se do pagamento
do dote (REGO, 1968, p. 19; ABREU e CASTRO, 2009, p.21, OLIVEIRA, 1971, p.
69).
Acontece que em terras americanas ocorreram modificações, supressões,
acréscimos de elementos e significações em diversas manifestações das culturas
africanas diaspóricas. Conforme Mintz e Price (2003) salientam, o sistema sóciocultural
africano não atravessou o Atlântico intacto, com todos os seus atores sociais, por
exemplo: estava na América o líder religioso, mas não os praticantes do culto; estava
aqui o súdito, mas não o seu rei. Sendo assim, podemos dizer sobre a suposta origem da
capoeira no Brasil, que o n´golo, passou por modificações tanto nos usos quantos nos
16
Segundo Thompson os contextos sociais estruturados são contextos nos quais “os fenômenos culturais
são produzidos, transmitidos e recebidos, podem estar caracterizados de várias maneiras, como por
relações assimétricas de poder, por acesso diferenciado a recursos e a oportunidades e por mecanismos
institucionalizados de produção, transmissão e recepção de formas simbólicas”. (1995, p. 180 - 181)
18
significados de modo que ocorreram transformações do ponto de vista institucional e
tornou-se o que conhecemos e chamamos de capoeira.
Consideramos também que a capoeira foi desenvolvida no contexto da
escravidão, e este fato lhe imprimiu uma série de significados e características
diferentes do n’golo, que não se resumem aos golpes e contragolpes, mas também
envolvem uma História, uma concepção de mundo, construídas sobre um tenso e
imbricado contexto de relações sociais. Além disso, cumpre ressaltar que não somente a
capoeira, mas também outras manifestações da cultura afro-brasileira tiveram em seu
processo de construção influências de outras matrizes culturais. Por maior que tenham
sido as influências africanas, tais construções ocorreram no Brasil através do
tangenciamento e diálogo, entre manifestações e tradições, amalgamadas em fenômenos
que se apresentavam em sua completude e, desta forma, uniram-se não somente aos
elementos e símbolos que formam a roda da capoeira, do maculelê, do samba, da
batucada, como também a outros aspectos da cultura dos sujeitos envolvidos, como sua
cosmovisão e seus modos de vida.
A propósito, ainda existem, tanto no continente africano, quanto na América,
onde se deu a escravidão colonial de diversos povos africanos, o registro de
manifestações que mesclam luta, dança e brincadeira, envolvendo pernas e cabeça e
acompanhamento de músicas e cantigas, que são características comuns à capoeira, a
exemplo do “mani” ou “bombosa” em Cuba, da “ladjia” na Ilha de Guadalupe e na
Martinica e o “mourine” na Ilha de Reunión (ABIB, 2008).
Deste modo, é possível então compreender a capoeira como uma criação dos
africanos das várias nações que estavam no Brasil na condição de escravizados ou ex-
escravizados, que foi desenvolvida por seus descendentes como uma forma de resistir à
opressão que lhes era imposta, e que teve seu desenvolvimento continuado de modo a
ser transformada e disseminada com o decorrer do tempo, compartilhando uma cultura
ao mesmo tempo em que era construída essa nova cultura, ressignificando fragmentos
de várias heranças, agregando ou mantendo elementos do caráter lúdico, ritual e de luta
marcial. Nesse sentido, cumpre destacar as ideias trazidas por Price e Mintz sobre o
processo de formação de uma comunidade e de uma cultura em situação como a afro-
brasileira. Para os autores:
Os africanos de qualquer colônia do Novo Mundo só se transformaram de
fato em uma comunidade e começaram a compartilhar uma cultura na
medida e na velocidade que eles mesmos as criaram (MINTZ e PRICE, 2003,
p. 33).
19
Deste modo, vemos que no Brasil as manifestações africanas que cruzaram o
Atlântico na memória dos negros escravizados, passaram por diversas modificações,
ressignificações e adaptações e se institucionalizaram de formas diferentes das
existentes na África. A exemplo do n’golo, um tipo de dança ritual, a qual é atribuída a
origem da capoeira, que apesar das semelhanças, salientamos que no Brasil a capoeira
foi desenvolvida destituída do caráter cerimonial de rito de passagem. Do mesmo modo,
seu nome tem como provável origem o termo tupi, “caa-apuam-era”, referindo-se ao
mato cortado bem baixo (REGO, 1968, p.13).
A partir desta especulação sobre a origem deste vocábulo, alguns estudiosos
conforme cita Soares (1962), Rego (1968) e Reis (2000) concebem o jogo da capoeira
como uma expressão de origem rural, praticada inicialmente em locais de mato baixo
pelos negros escravizados em fuga ou quilombolas, relacionado ao trabalho nas
fazendas. Entretanto, em oposição a esta colocação sobre o ambiente que fomentou a
criação e desenvolvimento da capoeira, observa Soares (1962) que de acordo com as
publicações de Adolfo Morales de Los Rios no jornal carioca Rio Esportivo, no período
entre julho e outubro de 1926, a capoeira é de origem urbana, valendo-se mais uma vez
da origem indígena do termo17
“capu”, tipo de cesto confeccionado com matéria-prima
extraída das matas, utilizado pelos negros escravizados que trabalhavam no
desembarque de produtos vindo nos barcos e navios que aportavam no Rio de Janeiro.
Logo, ao usar esses “capus”, teriam sido denominados, os “capoeiros”. Deste modo,
compreende Carlos Eugênio Líbano Soares que:
Nas hipóteses do estudioso (Adolfo Morales de Los Reios), a capoeira como
luta teria nascido nas disputas da estiva, nas horas de lazer, no ‘simulacro de
combate’ entre companheiros de trabalho, que pouco a pouco se tornaram
hierarquias de habilidades, onde se duelava pela primazia no grupo. Dessas
disputas de ‘perna’ teria nascido o ‘jogo da capoeira’ ou a dança do escravo
carregador do ‘capu’. (SOARES, 1962, p. 21)
Os estudos históricos sobre capoeira têm a maior parte dos seus referenciais
datados a partir do início do século XIX, quando passou a ser considerada um fenômeno
urbano, haja vista a disponibilidade de documentos escritos oficiais, oriundos das
delegacias, também do que se publicava em notícias de jornais, crônicas, poesias e
imagens de artistas como Debret e Rugendas. Contudo, diante da ausência de
17
Segundo o autor referido em Soares (1962) o termo “capus” tem sua origem indígena formada a partir
dos termos “ca”, que refere-se a elementos e matérias-primas encontradas na mata, e “pu”, que significa
cesto. Sendo assim “capu”, o nome dado ao cesto confeccionado com a matéria-prima extraída da mata.
Nesta perspectiva, formou-se o termo “capueiro” designando os negros escravizados que trabalhavam nos
portos carregando os “capus” (SOARES, 1962).
20
documentos que norteiem a pesquisa, em um período anterior a esse, é comum, nas
especulações sobre o início do desenvolvimento da capoeira, os estudiosos cogitarem o
primeiro estágio de desenvolvimento deste processo nas zonas rurais, como podemos
ver nos trechos destacados de Valdemar de Oliveira (1971) e Letícia Vidor Reis (2000),
ao imprecisarem o processo de chegada da capoeira à urbis, conforme podemos
observar nos trechos destacados abaixo:
A existência da capoeira parece remontar aos quilombos brasileiros da época
colonial, quando os escravos fugitivos, para se defenderem, faziam do
próprio corpo uma arma. […]
Como não existem pesquisas históricas da capoeira entre os séculos 16 e 18,
não é possível reconstruirmos o processo que levou ao seu deslocamento do
campo à cidade, o que deve ter acontecido por volta do começo do século 19,
pois datam desse período as primeiras referências históricas a respeito dos
capoeiras urbanos (REIS, 2000, p. 11)
[…] A certa altura, deve ter-se transferido do campo para a cidade, do
escravo para o fôrro, êste ainda mais necessitado de impor a sua nova
condição, dentro da igualdade sonhada.
[...] Nasciam os capoeiras. […]
(OLIVEIRA, 1971, p. 70)
Com isso, ainda é possível intuir que a capoeira se desenvolveu em vários locais,
ao mesmo tempo, durante o período colonial, tanto nas senzalas quanto nos quilombos e
nas ruas. Com essa diversidade de locais também cogitamos que fora praticada de várias
formas, com movimentos e performances que em algo se assemelhavam, com base em
rituais e comemorações praticados em África, por africanos, de acordo com seus grupos
e seus descendentes, ocorrendo uma nova configuração e ressignificação em solo
brasileiro. Caminho semelhante também é observado em outras manifestações da
cultura afro-brasileira, como nas danças, nas músicas e na religiosidade.
Waldeloir Rego confere aos africanos e afrodescendentes no Brasil a criação e
desenvolvimento da capoeira, como salienta o desenvolvimento da capoeira como um
processo cultural em constante transformação, considerando para tanto o aspecto das
relações sociais e econômicas como fator de transformação e adequação da capoeira e
seus elementos, haja vista a afirmação do autor que diz:
Portanto, a minha tese é a de que a capoeira foi inventada no Brasil,
com uma série de golpes e toques18
comuns todos os que a praticam e
que os seus próprios inventores e descendentes, preocupados com o
seu aperfeiçoamento, modificaram-na com a introdução de novos
toques e golpes, transformando uns, extinguindo outros, associando a
18
O toque, que é um enunciado instrumental apenas proferido pelo berimbau, mas que pode ser também
acompanhado pelos outros instrumentos da bateria ou conjunto instrumental da capoeira, cantigas e
palmas. Existe uma variedade de toques que podem ter significados diversos, como avisos aos jogadores,
para determinar o ritmo do jogo e identificar o mestre que está a frente da roda.
21
isso o fator tempo que se incumbiu de arquivar no esquecimento
muito deles e também o desenvolvimento social e econômico da
comunidade onde se pratica a capoeira (REGO, 1968, p. 36).
Deste modo, compreendemos que a capoeira passou por alterações em sua
estrutura, enquanto luta, dança e jogo, nos aspectos que a caracterizam, bem como em
seu status, que começou pejorativamente como “luta de escravos” e hoje figura no
elenco do patrimônio cultural brasileiro, registrado pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – IPHAN - no livro das Formas de Expressão e no Livro
dos Saberes em 2008.
1.2 Capoeira: luta e mandinga - de marginal a patrimônio
De modo geral, é possível afirmar que as expressões da cultura afro-brasileira
sofreram e, a exemplo do candomblé na Bahia19
, ainda sofrem, perseguições diversas.
Até ser reconhecida com o título de Patrimônio Cultural do Brasil pelo IPHAN em
2008, a capoeira passou por momentos de marginalização e violenta perseguição, além
de ter sua prática criminalizada figurando em Código Penal.
Vale lembrar que os primeiros registros escritos nos quais a capoeira aparece,
são datados do final do século XVIII, oriundos principalmente dos arquivos policiais da
cidade do Rio de Janeiro. Contudo, antes de intuirmos que foi no século XVIII, na então
capital do vice-reino, que teve início a prática da capoeira, percebemos sim, o quanto
nesta época e lugar a capoeira e seus praticantes sofreram maior perseguição
institucionalizada, o que fez com que se produzisse grande parte dos documentos
encontrados a esse respeito. Pois, como vimos, a capoeira remonta a uma origem rural
que posteriormente migrou para as cidades, onde se fez notar como fenômeno urbano,
conforme apresenta a antropóloga Maria Paula Adinolfi, com base na historiografia
disponível, no parecer do Registro da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil, no
qual diz:
A historiografia, até este momento das pesquisas, no que se refere ao
Rio de Janeiro, Salvador e Recife, define-se como fenômeno urbano,
surgido provavelmente nas grandes cidades escravistas litorâneas,
entre crioulos e africanos escravizados ligados às atividades ‘de
ganho’, na zona portuária ou comercial. (IPHAN, 2008, p.6)
19 Lembro aqui dentre outros atos de perseguição a expressões da cultura afro-brasileira, a demolição de
parte da comunidade-terreiro do Oyá Nipó Neto, pela Superintendência de Manutenção, Conservação e
Uso do Solo (SUCOM) órgão da Prefeitura Municipal de Salvado,r em 22 de fevereiro de 2008.
22
Conforme Carlos Eugênio Líbano Soares (1994), durante a primeira metade do
século XIX a capoeira estava diretamente relacionada a duas categorias: à condição
escrava e à origem africana. Corrobora Reis (2000), ao observar que
O estigma da escravidão estava inevitavelmente associado à cor e,
dessa maneira escravos e libertos enfrentavam no dia-a-dia
dificuldades bastantes semelhantes. Também os africanos pertencentes
a etnias diferentes, submetidos aqui à ‘experiências escravas de
classe’, acabaram por forjar, em muitos casos, uma cumplicidade que
engendrava ações conjuntas. (REIS, p. 108,109).
Contudo, devemos pensar que a capoeira, antes mesmo de assim ser nomeada,
tem em sua origem os grupos de negros escravizados, vindos da África, onde os povos
tinham a tradição oral como principal forma de registro dos fatos e da História, de modo
que as datas e locais dos registros escritos atestam não a sua origem ou época de
criação, mas o período, contexto e condições que esta se fez notar dentro da sociedade
escravocrata da época.
Na Bahia, os documentos encontrados sobre a capoeira datam da segunda
metade do século XIX, localizados nos registros provenientes das páginas policiais dos
jornais e dos processos criminais encontrados nos arquivos das delegacias (ABIB,
2009). Deste modo, a produção desses documentos fornece o desenho de um período
em que a prática da capoeiragem começou a ser mencionada e tratada como questão de
relevo, ligada à segurança pública.
Inserido no contexto da produção destes documentos, nos deparamos com a
ideologia do progresso que gerou a tentativa de se implantar no Brasil uma sociedade
nos moldes europeus, no início dos anos 50 do século XIX. No entanto, já era marcante
a presença dos negros e mulatos na sociedade brasileira, tanto como escravos, quanto
como trabalhadores livres ou libertos, vivendo tanto no meio rural quanto no meio
urbano. Registra-se ampla circulação dessas presenças na vida da sociedade, pois eram
usados em vários tipos de serviço e estavam espalhados em diversos meios, nas cidades,
nas residências, nos portos, nas ruas e nos mercados, e, no meio rural, como nas
plantações e nos engenhos.
Todavia, esta presença de negros e mestiços era compreendida como um entrave
à implantação da sociedade moderna, nos moldes que se pretendia. Isto porque, de
acordo com o modelo de civilização que se buscava alcançar, a presença de negros e
mestiços era tomada como fator de inferioridade do povo que pretendia tornar-se uma
23
nação civilizada. Esta ideia de inferioridade do negro respaldava-se nas teorias raciais
do século XIX, com base no pensamento evolucionista europeu chamada por Reis
(2000, p. 56) de “teorias europeias do evolucionismo social”. Na mesma obra da
referida autora é lembrado o médico Nina Rodrigues, que com base em tais teorias
propôs a criação de códigos penais distintos para negros e para brancos.
Os adeptos dessas teorias buscavam provar, por meio dos estudos das ciências
biológicas, as supostas limitações e incapacidades dos negros. Ou seja, procuravam
justificar a situação social de exploração do homem negro, a partir de dados biológicos,
por meio de exames físicos, como a medida do índice cefálico e altura dos indivíduos,
pela determinação de características psicológicas que levavam à conclusão das
predisposições a determinados tipos de comportamentos violentos e perniciosos, bem
como à definição, como primitivas, as produções culturais dos negros.
Assim, acreditava-se que o elemento negro na formação do povo brasileiro
constituía ameaça de enegrecimento de todo o povo e cultura brasileira, o que
aniquilaria a possibilidade do progresso e de transformar o Brasil em uma civilização
“moderna” de acordo com o almejado modelo europeu. Por isso seria imprescindível
uma política de embranquecimento do povo e da sua cultura, a fim de tornar-se mais
próximo do padrão desejado. Diante disso, observa Reis (2000), que
Em meio a esse afã civilizador e civilizatório, as autoridades
republicanas, como comenta Nicolau Sevcenko (1983), investirão
contra grande parte das manifestações de cultura popular enquanto
‘práticas caracterizadas pelo discurso oficial como signos de atraso,
ignorância, barbárie, selvageria, sempre em oposição à civilização,
ao progresso, à modernidade.’ (REIS, 2000, p. 58)
Deste modo, para o embranquecimento do povo, que implicava tanto o fator
biológico quanto o cultural, o projeto de migração europeia apresentou-se como uma
das formas encontradas para relegar ao esquecimento a marca deixada pelos negros na
sociedade brasileira, atrelando a isso as ostensivas perseguições e toda forma de
controle e punição às manifestações da cultura afro-brasileira.
Paradoxalmente, o caráter marcial da capoeira foi realmente posto a prova e
comprovado no episódio da Guerra do Paraguai (1864-1870), quando muitos dos
chamados “voluntários da pátria”, negros, escravos ou não, eram compulsoriamente
alistados no exército, muitas vezes para tomar parte em batalhões, sendo prometida a
libertação destes quando retornassem, formados exclusivamente por negros, como foi o
“Corpo dos Zuavos”, batalhão formado na Bahia. O uso da destreza da capoeira foi
24
imprescindível para esses “voluntários”, visto que estes foram postos para atuar na linha
de frente das batalhas, de modo que, na luta corporal, a capoeira era tanto o ataque,
quanto a defesa do “voluntário”, e da sua habilidade dependia sua própria vida. Este foi
um dos poucos momentos, destaca Letícia Vidor Reis (2000), no qual os capoeiras
tiveram uma representação social positiva, juntamente com o episódio da Cisplatina
(1825 - 1828).
Sobre isto, destaca Adinolfi, no seu parecer ao IPHAN, que mesmo na Bahia,
onde a capoeira parecia imprimir menos na sociedade a dimensão de violência e terror
se comparado ao Rio de Janeiro,
No entanto, a partir de 1890, quando a capoeira foi
criminalizada através do artigo 402 do Código Penal, a
repressão policial abateu-se duramente sobre seus praticantes,
em consonância como o projeto republicano ‘higienizador’ e
europeizante de construção de um Brasil ‘civilizado’. (IPHAN,
2008, p. 7).
Neste sentido, cumpre destacar o texto do artigo do Código Penal da República
dos Estados Unidos do Brasil de 1890, cujo capítulo XIII trata “Dos vadios e capoeiras”
e traz expresso no artigo 402.
Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e
destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem;
andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de
produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens,
ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de
algum mal. Pena - de prisão cellular de dous a seis mezes.
(Código Penal da República Federativa do Brasil, 1890. Artigo
402).
Mesmo considerando o contexto da escravidão como principal fator que
ocasionou a criação e desenvolvimento da capoeira no Brasil, autores como Soares
(1962), Reis (2000) e Falcão (2005), destacam a presença de membros da elite,
policiais e estrangeiros, na prática da capoeiragem ainda no século XIX. Contudo, estas
participações não se mostraram suficientes para gerar um movimento social, cultural ou
político que buscasse a descriminalização da capoeira neste período.
As primeiras intenções de tornar a capoeira a “gymnastica brazileira” (REIS,
2000), o que possibilitaria sua prática menos perseguida, ainda durante início do século
XIX, começou a ser defendida por partidários do próprio projeto modernizador e
civilizador da época. Neste sentido, observa Reis (2000), buscou-se “higienizar” a
capoeira, suprimindo os elementos referentes à cultura negra, pois como ginástica
nacional, a capoeira seria apresentada como um elemento da cultura nacional.
25
Deste modo, promover uma capoeira destituída dos seus traços mestiços ou
africanos, significaria neste contexto, promover uma capoeira embranquecida, ou antes
“civilizada” nos moldes eutopeus. Entre os entusiastas deste projeto, que propõe uma
capoeira nacionalista, regrada, observável e controlável, como forma de
desenvolvimento físico e mental, destaca-se o folclorista Mello Moraes Filho, para
quem, de acordo com Reis (2000), a participação dos brancos na capoeira teria atuado
como elemento purificador, de modo que Mello Mores concebe e apresenta “a
capoeiragem como arte, como instrumento de defesa, é a luta própria do Brasil”.
(MORAES FILHO apud. REIS 2000, p. 62).
Outro entusiasta da capoeira como desporto, apresentado por Reis (2000) é o
Mestre Zuma, Aníbal Burlamaqui, que em 1928 editou o livro entitulado “Ginástica
Nacional (capoeiragem) Metodizada e Regrada”. (REIS, 2000, p. 66). Considerando
estas tentativas de adequar e higienizar a capoeira ao objetivo civilizador, ante a sua
criminalização, Letícia Vidor Reis assevera que
A criminalização da capoeria não foi mas significou a vitória política
de uma determinada facção social da classe dirigente nacional. A tese
da capoeira mestiça, inspirada na positividade da miscigenação (o que
era uma outra posição estratégica da elite para a incorporação do
negro à sociedade brasileira naquele momento histórico) teria
ressonância limitada na época. Da mesma maneira a tentativa de
esportização da capoeira, empreendida pela elite carioca no começo
do século, teria que esperar até às décadas de 30 e 40 para tornar-se
hegemônica. No entanto, se há um jeito branco e erudito de converter
a capoeira em esporte, há também um jeito negro e popular de fazê-lo,
o que se esboça na Bahia a partir da década de 30 do nosso século.
(REIS, 2000, p. 68)
Ressaltamos então a capoeira como uma luta dançada com “ginga”20
e
“mandinga”21
, com “esquivas” escorregadias, com a “negaça”22
enganadora, que com o
olhar distrai a atenção do adversário, para o lado oposto, quando é desferido o golpe.
Sobre os movimentos da capoeira, observa Reis (2000) que estes refletem o jogo social
entre os negros e escravizados e a sociedade que os explorava. No mesmo sentido
20
A ginga é o movimento básico da capoeira. Consiste em um movimento cadenciado que alterna o
movimento das pernas e dos braços de modo que sempre uma das pernas forneça apoio e ao menos um
dos braços a defesa. 21
A mandinga é um componente místico da capoeira que mesmo o mestre passando ao discípulo, este
deve desenvolver sozinho. Constitui-se uma parte do “segredo” da capoeira. Segundo conceitua Letícia
Vidor Reis, a mandinga é a “capacidade que têm de seduzir o adversário, iludi-lo, e se quiser ou puder,
derrotá-lo”. (REIS, 2000, p. 166). 22
A negaça é uma forma de enganar, de dissimular. Na capoeira é uma prática na qual o capoeirista
levado pelo movimento da ginga procura distrair o adversário dando a entender um determinado golpe
para um lado e desferindo-o para outro.
26
aponta Pedro Abib, é a luta na qual “o mal se paga com malandragem” (2009, p. 29), e
como resistência às investidas de uma sociedade que procurava apagar as marcas da
presença afro-brasileira. Logo, notamos que a capoeira traz em seu próprio processo de
construção histórica as características de jogo, no seu vai-não-vai, no qual percebemos
as tentativas de moldá-la aos interesses de um grupo.
Durante o século XIX, os capoeiras eram temidos não somente como arruaçeiros
e violentos, mas também como uma ameaça moral, principalmente na cidade do Rio de
Janeiro, por se tratar da então capital do vice-reino, e postreiormente da República.
Neste sentido Reis (2000) atribui maior repressão à capoeira do Rio de Janeiro, por estar
na capital, enquanto que na Bahia, segundo a autora, tal repressão deu-se mais
tardiamente e em menor intensidade. Assevera Reis (2000).
A tardia repressão aos capoeiras baianos, se comparadas à que
sofreram os capoeiras cariocas, talvez deva-se à própria importância
política da capital federal: afinal, não foi lá que os capoeiras, ao
ensejar a aliança entre a ordem e a desordem, foram imediatamente
identificados pelos novos donos do poder como inimigos políticos? E
também não foi de lá que partiram as primeiras tentativas de
desafricanização da capoeira com o intuito de apropriação simbólica
da mesma como o esporte nacional? (REIS, 2000, p. 80)
De fato, na Bahia houve muitos capoeiras que estariam inseridos no rol dos
malquistos, e adjetivados por valentões, vadios, arruaceiros, desordeiros, facínoras e
capadócios. Alguns deles faziam uso de armas brancas como a navalha, a faca e o
cacumbú, o cacete e o cajado. Contudo, devemos frisar porém, que a maior parte dos
praticantes da capoeira, ou da “arte da vadiação”, não era formada por vadios. A
maioria dos capoeiras tinha profissão, quando não uma ocupação, ainda que em cargos
subalternos, eram carregadores, engraxates, estivadores, doqueiros, dentre outros
trabalhos, no cais do porto, eram comerciários. Mas isso não lhes impedia de fazerem as
arruaças nas horas vagas, por isso, de acordo com Rego (1968) marcavam presença nas
festas de largo e outras comemorações cívicas.
Segundo Rego (1968), muitas vezes os capoeiras de Salvador eram requisitados
para animar essas festas e comemorações, não somente com a capoeira, mas também
com o samba de roda que acontecia após encerrada a roda de capoeira. Tratava-se de
uma forma de promover interação da roda com aqueles que assistiam a roda e não eram
capoeiras. Contudo, a prática da capoeiragem na Bahia diferia das práticas do Rio de
Janeiro, principalmente se posto em relação ao caráter desportivo e ritual que a capoeira
27
baiana passou a desenvolver nos anos 30 do século XX, quando a capoeira sai da
marginalidade.
Conforme ocorreu com outras manifestações afro-brasileiras, a capoeira valeu-se
de estratégias de autopreservação. No caso da capoeira baiana, a estratégia adotada foi
o desenvolvimento de uma linha menos combativa que procurava negar seu caráter
marcial, escondendo-se sob a forma de dança folclórica, de modo a garantir sua
sobrevivência, e quem sabe, sua aceitação. (CAMPOS, 2001, p.37).
Contudo, a intenção de tornar a capoeira um esporte reaparece como via para
tirá-la da marginalidade. Desta vez, na Bahia, mais especificamente em Salvador, o
projeto de esportização da capoeira obtem êxito, considerando a demanda sóciocultural
e política da época, personificada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Comparando os
dois contextos políticos nas duas tentativas de tornar a capoeira esporte, Reis (2000)
observa
Naquele momento (início do século XX), havia já o intuito de
homogeneização nacional da luta como o mostra, por exemplo a
publicação do livro Ginástica nacional (capoeiragem) metodizada e
regrada (Burlamaqui, 1928). Porém ao contrário do que pretendia
seus primeiros porta-vozes (…), que intentaram transformá-la em um
esporte branco e erudito, será a capoeira feita (na Bahia) esporte de
um jeito negro e popular que prevalecerá no momento de sua
descriminalização. ( REIS, 2000, p. 75)
Durante as primeiras décadas do século XX, em Salvadror, praticantes da
capoeira, ainda criminalizada, dissimulavam o aspecto combativo da luta, enfatizando a
movimentação como dança folclórica, de modo a tentar amenizar a perseguição aos
capoeiristas. Segundo Esteves (2003), Mestre Bimba23
procurou enfatizar o caráter
combativo da luta e, ao inserir golpes de jiu-jitso, do catsh, do box e do batuque24
,
tornou a capoeira uma luta mestiça de raízes afro-brasileira. Como isso, estava sendo
criada em 1928 a luta regional baiana, posteriormente conhecida como capoeira
regional. Em 1937, Mestre Bimba adquire a licença oficial para ensinar capoeira em sua
academia, até então todas as escolas de capoeira eram ilegais.
O Mestre Pastinha, com o nome de batismo Vicente Ferreira Pastinha (1889 –
1981) é a principal referência da capoeira angola. A ele é atribuído o feito de nomear a
capoeira praticada nas ruas com o nome “Angola,” para homenagear o país africano do
23
Mestre Bimba, como era conhecido o capoeirista Manoel dos Reis Machado, (1900 - 1974) é lembrado
como criador da capoeira regional. 24
O batuque é uma luta de origem afro-brasileira na qual, Luís Cândido Machado, pai de Mestre Bimba,
era campeão baiano, muito difundida no recôncavo baiano, no século XIX, atualmente está extinta.
28
qual acreditava ter vindo a capoeira, defendendo assim a origem africana deste esporte.
Grande conhecedor dos fundamentos do jogo, Mestre Pastinha pode ser considerado
como o “filósofo da capoeira”, lembrado muitas vezes por frases como “A capoeira é
tudo o que a boca come” e "Capoeira foi para homem, menino, velho e até mulher, não
aprende quem não quer". Como Mestre Bimba, Mestre Pastinha também estruturou suas
aulas em ambiente fechado e, em 1941, fundou o Centro Esportivo de Capoeira Angola,
onde ensinava a capoeira.
A capoeira desenvolvida na Bahia, embora tenha sofrido forte repressão durante
os anos 20 do século passado, apresentou algumas características diferentes do Rio de
Janeiro. Lembramos então, que, quando Salvador passou a ser ex-capital, a cidade do
Rio de Janeiro tornou-se cada vez mais urbanizada. Os avanços da modernidade eram
primeiramente levados à nova capital, e com a instauração da República, da cidade do
Rio de Janeiro foi cobrado que caminhasse com os passos da ordem pública e do
progresso civilizador mais que os outros Estados. Isto acarretou maior perseguição aos
capoeiras cariocas, tanto pela prática de uma manifestação predominantemente negra,
quanto pela desordem que promoviam. Logo, para os dirigentes da época, a capoeira
deveria ser erradicada.
Contudo, a conjuntura formada no Brasil durante a década de 1930, sob a
presidência de Getúlio Vargas, apresentava uma proposta política nacionalista e buscava
a formação de uma cultura e identidade nacional que enfatizasse a feição mestiça do
país. Aqui, vale lembrar que as culturas e identidades nacionais trazem a idéia de
síntese, a homogeneização das diferenças culturais e das identidades, ao desconsiderar
a diversidade das culturas locais e regionais nesta homogeneização.
Assim, Reis (2000) apresenta as modalidades de capoeira angola e regional
como projetos de esportização e, por extensão, descriminalização da capoeira. Segundo
a autora, o processo de valorização da capoeira baiana notorizados pelos projetos dos
mestres Bimba e Pastinha eram de cunho regional e étnico. Quando a capoeira foi
posteriormente descriminalizada, por decreto presidencial assinado pelo então
presidente Getúlio Vargas, em 1936, e inscrito como modalidade desportiva, foi
institucionalizada em 1972 (CAMPOS, 2006, p. 85 e 46), e de modo relativamente
rápido ganhou caráter nacional. Criou-se o que podemos chamar de um consenso mítico
da capoeira baiana, como a forma legítima de capoeira. A este processo, Reis (2000)
chama de “baianização” da capoeira. Nesta conjuntura, que contou com o apoio do
Estado, salientamos o aspecto de tradição inventada.
29
Destacamos aqui o conceito de “tradição inventada”, conceito cunhado pelo
historiador Eric Hobesbawm, que também adverte em relação ao seu uso.
O termo ‘tradição inventada’ é utilizado num sentido amplo, mas
nunca indefinido. Inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram
de maneira mais difícil de localizar no período limitado de
determinado tempo – às vezes coisas de poucos anos apenas – e se
estabelecem com enorme rapidez. […] Por ‘tradição inventada’
entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras
tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou
simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento
através da repetição, o que implica automaticamente a uma
continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWM, 1984, p. 9)
Desta “invenção da tradição” da capoeira baiana que Reis (2000) nos chama a
atenção, podemos destacar seu aspecto ritual, do qual vem a organização do espaço em
forma de roda. A roda, apesar de ser uma forma espontânea na capoeira baiana, se
consolidou e se espalhou pelo Brasil e outros países da América, Europa, Ásia e
Oceania, como elemento ritual deste universo. As músicas e cantigas em sua sequência:
ladainha (angola) ou quadra (regional), louvação, chulas e corridos, os instrumentos e as
performances do início do jogo, tais como o ato de se benzer, saudar uma divindade, a
volta ao mundo, são rituais inerentes a este mundo. Através destes e outros elementos
que constróem e envolvem o mundo da capoeira, são feitas referências à cultura
africana em seus aspectos simbólicos, e com isso marcam a identidade cultural afro-
brasileira da capoeira.
Podemos dizer, de certo modo, que a “invenção da tradição” da capoeira baiana
foi mais uma forma de negociação, da capoeira e seus representantes afro-brasileiros,
ante o Estado e a sociedade. Nessa esteira, a capoeira passou de crime, a patrimônio
cultural brasileiro, considerando, não somente as ambiguidades inerentes à capoeira,
naquilo que a torna ao mesmo tempo esporte e luta, mas naquilo que a faz estar presente
na sociedade capitalista como modo de vida, como educação, como divertimento,
solidariedade e como forma de trabalho remunerado, com suas possibilidades de
ascensão social e perspectiva de saída do país, conforme podemos compreender através
do que nos diz Falcão:
Embora a capoeira venha sendo efetivamente ressignificada por força
da lógica comercial que orienta as grandes empresas (franquias,
merchandising, monopólios, oligopólios), que incita a ganância e
instila o desespero, contraditoriamente, ela vem operando uma espécie
de «revolução “silenciosa” à medida que significativa parte de
praticantes insere-se em redes e ações de intervenção social e de
solidariedade que se confrontam, através de programas de
30
“contrapontos”, com a lógica mercadológica que tomou conta do
mundo dos homens. (FALCÃO, 2005, p. 22)
Deste modo, notamos na História da Capoeira e de seus sujeitos, que há desde a
sua criação, à sua patrimonialização, um longo processo que envolveu diversas
compreensões do conceito de cultura, patrimônio e de bens culturais. Contudo, tal é o
seu caráter de resistência e luta cultural, de afirmação identitária dos afro-brasileiros,
que no texto do parecer do Registro da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil,
esta característica é marcada em diversos trechos, dentre os quais citamos o parágrafo
de abertura, que diz da proposição do registro por parte do MinC:
A proposição do registro da capoeira como patrimônio cultural do
Brasil, feita por iniciativa do Ministério da Cultura e apoiada pelos
capoeiras, representados por velhos e respeitados mestres da Bahia,
Rio de Janeiro, Pernambuco e outros locais do país, pode ser mais
bem compreendida ao considerá-la como parte integrante de um rol
mais amplo de reivindicações de direitos culturais, sociais e políticos
pela população afro-brasileira, que foram incorporadas à agenda do
MinC, resultando na formulação de políticas de valorização e fomento
desta prática cultural. (IPHAN, 2008, p. 1)
Deste modo, considerando o trajeto da capoeira como uma manifestação dos
africanos e afrodescendentes escravizados no Brasil, libertos e livres, percebemos a sua
patrimonialização com o reconhecimento da capoeira como prática cultural, produzida
principalmente por estes africanos e afrodescendentes, enquanto sujeitos culturais,
sociais e políticos, que atuaram e atuam na sociedade. Com isso, destaco como
fundamentais três pontos da argumentação apresentado por Adinolfi no relatório do
Registro que salientam a relevância da capoeira para: “a história da resistência negra no
Brasil, durante e após a escravidão, através de estratégias que variaram da negociação
ao conflito aberto com a sociedade hegemônica”; “a formação de redes de solidariedade
e construção da identidade e da autoestima de grupos afro-brasileiros” e “a construção
da identidade nacional, testemunhada maciçamente na produção cultural e artística
brasileira, na música, artes plásticas, literatura, cinema e teatro”. (IPHAN, 2008, p. 8)
Neste sentido, entendemos a capoeira como elemento da expressão da identidade
cultural afro-brasileira e, com isso, as cantigas, como parte deste universo, observamos
como produções que se referenciam nas experiências dos negros no contexto da
escravidão colonial e no contexto atual. Deste modo, as cantigas consistem em fonte de
informações acerca das representações sociais e identidades dos grupos que as
produzem.
31
1.3 As cantigas da capoeira como objeto de estudo
O ser humano desde tempos imemoriáveis se relaciona com a música. A música
está inserida em uma vasta gama de eventos ao longo da história da humanidade: nas
mais diversas festividades; nos rituais como a missa católica, o quarup25
, o xirê26
, nas
guerras, os hinos nacionais, os toques de avançar e recuar, no trabalho cotidiano nas
lavouras de cana, milho e café, na lavagem das roupas, no tear. A música, sobretudo a
música tradicional, como são as músicas da capoeira, estabelece relação com a memória
individual e coletiva, e tem notória relevância na formação da nossa identidade cultural,
e na transmissão de valores e ideologias. Conforme o professor Albino Rubim, sobre a
importância da música e das canções na formação da identidade brasileira:
A música é essencial para a cultura brasileira; para nossa memória,
individual e coletiva. Sempre companheira, ela acompanha nossa
existência. Ela delimita e marca os episódios significativos da nossa
vida. Não por acaso os brasileiros têm imensa e intensa memória
musical. Eles vivem vidas demarcadas temporalmente por canções. O
imbricamento – vida e música – faz da canção um lugar especial na
produção do imaginário que os brasileiros fazem de si, do país e do
mundo. A canção seduz e produz, no Brasil, identidade e imaginários.
(RUBIM in MARIANO, 2009, p. 13)
O corpo produz música, o corpo dança a música. A capoeira, mistura de dança,
luta e jogo, acompanhada por música far-se-ia passar facilmente por dança, não fosse
sua carga histórica de luta e resistência, não fosse a necessidade de momentos lúdicos
para aliviar as tensões cotidianas com jogos e brincadeiras. Ela é luta, dança e jogo ao
mesmo tempo e sendo um não deixa de ser outro.
A música na capoeira atua como expressão e elemento de sedimentação da
cultura afro-brasileira. O soar do berimbau entoando uma ladainha, quadra ou corrido,
muitas vezes evoca da memória coletiva a opressão pela qual passaram os negros
escravizados, ao mesmo tempo exprime a recusa em esquecer, e a ânsia de superação
das sequelas sociais produzidas no período da escravidão. Estabelecendo deste modo
outras formas de luta e resistência, a partir da capoeira, por meio dos seus fundamentos,
25
Quarup ou kuarup, é um ritual praticado por alguns grupos indígenas do Xingu, região do Brasil
Central, no qual homenageiam um membro importante do grupo. Relaciona-se à religiosidade do grupo
visto tratar-se de uma homenagem a um ancestral do grupo, na qual é realizada uma festa ritual. 26
Xirê ou Shiré, de acordo com Biancardi (2006) é uma festa pública praticada entre os candomblés de
origem jeje-nagô na Bahia, em homenagem a um orixá, nome atribuído a divindades africanas cultuadas
no Brasil, na qual são cantadas músicas específicas para chamar cada orixá. A sequencia do xirê pode
variar, mas normalmente começam com o Exu e finaliza com Oxalá. (BIANCARDI, 2006).
32
músicas e cantigas, as quais atualmente unem-se às formas de organização social como
o movimento negro e a ações antirracistas.
Enquanto a movimentação no jogo da capoeira admite a criação e recriação de
golpes e contragolpes, a ginga, a negaça e a mandinga da capoeira expressam
movimentações que podem ser trazidas para a vida cotidiana do capoeirista. As canções
da capoeira falam principalmente de memórias e situações cotidianas, que tanto
produzem um discurso de afro-brasilidade, quanto transmitem os fundamentos da
capoeira, podendo ambos aparatar um discurso cultural, político, ideológico e educativo.
Embora grande parte das cantigas cantadas nas rodas de capoeira remetam ao
passado, a análise das cantigas da capoeira neste trabalho é realizada a partir das
observações feitas na perspectiva do presente, visto que são ainda cantadas neste
momento. Por isso consideraremos o cenário da pós-modernidade como contexto no
qual a capoeira está inserida, e no qual produz e reproduz uma série de significações, no
que envolvem o uso de novas tecnologias de reprodução, de áudio, registro e difusão
das cantigas, a indústria do turismo e as mídias.
O referido contexto também é percebido como momento específico no qual nos
colocamos a refletir acerca de aspectos de outras culturas, que não apenas os aspectos e
produções da chamada “alta cultura” ou “Cultura”, conceitos os quais estão
historicamente relacionados à produção cultural das classes hegemônicas. Este
momento específico, compreendemos como resultado de um processo histórico e social,
o qual possibilitou o estudo de temas relacionados à capoeira, que outrora figurava no
código penal e agora é reconhecida como patrimônio cultural do Brasil, verificando
assim uma mudança de mentalidade, no que diz respeito ao conceito e ao estudo das
culturas.
Para isto, consideramos principalmente os três eixos conjunturais estabelecidos
por Cornel West que contextualizam este momento histórico, social e cultural: 1. O
deslocamento da Europa como centro irradiador de modelos culturais; 2. O surgimento
dos EUA, como centro de produção e circulação de cultura de âmbito mundial; 3. A
descolonização do terceiro mundo, sobretudo “a descolonização das mentes dos povos
da diáspora negra”, como resultado de lutas de minorias (WEST apud HALL, 2003, p.
318). Deste modo, procuramos compreender como a identidade afro-brasileira assume
caráter dinâmico, se reinventando e diversificando, assumindo formas múltiplas neste
contexto que se propõe globalizante. Para este fim, tomamos por referência as
33
representações sociais expressas nas cantigas de capoeira cantadas nas rodas de capoeira
em Salvador.
A relação entre capoeira e música se faz notar mesmo antes do estabelecimento
das músicas e cantigas de capoeira, o que começou a se firmar como parte integrante do
ritual do jogo somente a partir da década de 1930, período em que também repousou o
desejo de transformar a capoeira baiana em esporte nacional. Haja vista o fato narrado
por estudiosos da capoeira27
referindo-se à presença marcante de capoeiristas nas festas
de largo profanas, procissões religiosas e festas cívicas, sempre nas proximidades das
bandas de música.
Biancardi (2006, p. 108-109) através do seu contato com os grandes capoeiristas
da Bahia, afirma que a música vocal da capoeira ganhou importância a partir da década
de 30 do século passado, e sua produção não era tão específica como se pode pensar. No
jogo de capoeira eram também cantadas cantigas de roda, do samba de roda corrido que
aos poucos foram passando a ganhar destaque, e chegando a fazer parte do ritual do
jogo. Ou seja: as cantigas tradicionais da capoeira são uma invenção relativamente
recente.
Contudo, cumpre observar a presença das cantigas no universo capoeirístico,
principalmente entre os capoeiristas e estudiosos da capoeira. Salientamos com isso as
cantigas como expressões verbais e escritas daquilo que a movimentação, a ginga, os
golpes, a história e os fundamentos da capoeira expressam de outras formas.
Deste modo, as cantigas de capoeira podem ser interpretadas como uma das mais
belas “invenções” da capoeira baiana. De modo geral, cantigas tradicionais da capoeira
são repletas de elementos que remetem à identidade cultural afro-brasileira e às
representações sociais pertinentes a um segmento social particular, os capoeiristas ou
capoeiras. Tomadas como produto da criação destes sujeitos, cuja grande parte é
formada por afrodescendentes, podemos observar através destas cantigas como os
capoeiristas veem a si próprios enquanto sujeitos políticos atuantes dentro da sociedade.
Nesse sentido, a fim de melhor situar a presente pesquisa sobre a formação da
identidade cultural afro-brasileira a partir das cantigas de capoeira, cumpre refletir
acerca das especificidades conjunturais deste momento, no qual nos debruçamos sobre
este tema. Este procedimento nos ajudará a melhor compreender não somente a
produção das cantigas, como nos orientará no estudo sobre como estas cantigas são
27
REGO (1968), REIS (2006), SOARES (1994).
34
codificadas e decodificadas pelos capoeiristas, que desenvolveremos a partir das
entrevistas realizadas com alguns mestres de capoeira.
1.4 As cantigas como substrato de análise
O ser humano é capaz de simbolizar e a partir daí produzir cultura. Conforme
Sandra Jovchelovitch (in. POSSAMAI e GUARESCHI, 2009, p. 180), a atividade
simbólica é resultado das atividades da mente, que se constroem de modo inconsciente,
e formam o conteúdo das representações. Os fenômenos culturais manifestam-se no
vasto e complexo campo das relações sociais, das quais podemos elencar a construção
das produções e expressões, bem como as interpretações e vivências relacionadas aos
símbolos, produzidos socialmente, que conferem às culturas seus diversos significados.
Thompson (1995) caracteriza a vida social como algo para além dos “objetos e fatos que
ocorrem no mundo natural”, mas considera também como:
(…) uma questão de ações e expressões significativas, de
manifestações verbais, símbolos, textos e artefatos de vários tipos e de
sujeitos que se expressam através desses artefatos e que procuram
entender a si mesmos e aos outros pela interpretação das expressões
que produzem e recebem. Em sentido mais amplo, o estudo dos
fenômenos culturais pode ser pensado como o campo do mundo sócio-
histórico construído como campo de significado. (THOMPSON, 1995,
p. 165)
Deste modo, para a análise das cantigas, tomamos por base o estudo de John
Thompson (1995), no qual formula a sua “concepção estrutural da cultura”, bem como
Sandra Jovchelovitch (1995) e Mary Jane Spink (1995) a cerca das Representações
Sociais e as atividades simbólicas, como a construção do real através da
intersubjetividade, o que complementa o que foi anteriormente visto com Berger e
Luckman (2008) sobre a construção social da realidade tomado por base para o estudo
da construção social da identidade cultural.
Na referida concepção estrutural da cultura, apresentada por Thompson, são
traçados os aspectos das formas simbólicas, que são: o intencional, o convencional, o
estrutural, o referencial e o contextual como dados fundamentais para o estudo das
culturas. O homem é um ser social, capaz de representar a si e ao outro através da sua
produção simbólica, logo, com base nos aspectos propostos por Thompson, para estudo
dos fenômenos culturais, analisaremos as cantigas.
As categorias de análise foram estabelecidas de acordo com a metodologia
oferecida pelas representações sociais, observando a recorrência de expressões e ideias
35
significativas para o grupo de capoeiristas estudado. O estabelecimento das categorias
procurou por estes dois indicadores nas cantigas de capoeira reproduzidas nos treinos
através de CD e executadas nas rodas de capoeira selecionadas. Percebemos assim, estas
cantigas como produção e expressão simbólica, nas quais os capoeiristas de Salvador
falam de si, dos elementos que compõem seu mundo e o modo como se representam;
como parte do fenômeno cultural da capoeira como forma simbólica estruturada em
contexto específico, tanto no momento da produção quanto da recepção das cantigas de
capoeira, nos quais se expressam suas representações sociais enquanto capoeiristas afro-
brasileiros.
Antes de iniciarmos a análise das cantigas, trataremos de explicar a que se refere
cada um dos aspectos elencados por Thompson (1995) para os estudos dos fenômenos
simbólicos. A Concepção Estrutural da Cultura é pensada por Thompson como uma
alternativa à Concepção Simbólica de Cultura. Assim, Thompson busca superar as
limitações desta concepção e procura com a sua nova concepção, enfatizar aspectos,
segundo ele, menosprezados por Geertz. Então, em sua concepção, propõe enfatizar o
caráter simbólico dos fenômenos culturais, e, marca principalmente o fato de tais
fenômenos estarem em um contexto social estruturado, bem como os processos sociais
que envolvem os fenômenos culturais. Com isso, Thompson estabelece a base para sua
“análise cultural”, por ele definida como
[…] o estudo das formas simbólicas – isto é, ações, objetos,
expressões significativas de vários tipos – em relação a contextos e
processo historicamente específicos e socialmente estruturados dentro
dos quais e por meio dos quais, essas formas simbólicas são
produzidas, transmitidas e recebidas. (THOMPSON, 1995, p. 181)
Thompson considera as formas simbólicas apresentando cinco características e
propõe a discussão de cada uma delas como um aspecto a ser pensado:
O aspecto intencional nas formas simbólicas se constitui como expressões de um
sujeito para um ou mais sujeitos. Ou seja, neste aspecto salienta-se a intencionalidade na
produção simbólica com objetivo e conteúdo a ser percebido por outro (os) sujeito (os).
O aspecto convencional diz respeito à:
[…] produção, construção ou emprego das formas simbólicas, bem
como a interpretação das mesmas pelos sujeitos que as recebem, são
processos que, caracteristicamente, envolvem a aplicação de regras,
códigos e convenções de vários tipos (THOMPSON, 1995, p. 185).
36
Mas ainda assim, o autor observa que, nem sempre, as convenções são
empregadas na interpretação de formas simbólicas de modo consciente, sendo no geral,
tácitas e passíveis de correções e sanções por parte dos outros sujeitos.
O aspecto estrutural, “significa que as formas simbólicas são construções que
exibem uma estrutura articulada” no sentido de “que consistem, tipicamente de
determinados elementos que se colocam em determinadas relações uns com os outros”
(THOMPSON, 1995, p. 187). Deste modo, a análise de uma estrutura implica na análise
das interrelações que se apresentam em dada forma simbólica.
O aspecto referencial indica que as formas simbólicas “são construções que
tipicamente representam algo, referem-se a algo, dizem algo sobre alguma coisa”
(THOMPSON, 1995, p. 190). Dependendo do contexto pode tanto representar um
objeto em particular como um objeto, indivíduo ou situação.
O aspecto contextual salienta “que as formas simbólicas estão sempre inseridas
em processos de contextos sócio-históricos específicos dentro dos quais e por meio dos
quais elas são produzidas, transmitidas e recebidas.” (THOMPSON, 1995, p. 192).
Assim, considerando os aspectos elencados por Thompson, eles se apresentam
nos fenômenos culturais a ponto de serem possíveis de objetivação, ou seja, como forma
simbólica que se manifesta em um dado contexto estruturado. No caso específico do
nosso estudo, as cantigas de capoeira em seu discurso podem ser percebidas como
elementos que expressam aspectos significativos da cultura e da identidade afro-
brasileira daqueles que se encontram inseridos no contexto de produção e recepção
destas. Deste modo, uma investigação acerca das representações sociais vinculadas e
veiculadas nessas cantigas nos permite identificar aspectos da identidade afro-brasileira
que envolvem os capoeiristas como grupo.
Letícia Vidor Reis (2000) destaca em diversas partes da sua obra, principalmente
no sub-capítulo intitulado “O terror da população pacífica”, representações sociais dos
capoeiras a partir do que se poderia chamar de “população branca”. Chama atenção o
fato de que “nas representações sociais sobre os capoeiras produzidas ao longo do
século XIX, um elemento logo se destaca: o medo.” (REIS, 2000, p. 46). Chamado pela
autora de “medo branco” o temor que se tinha por estes capoeiristas. Deste modo,
notamos nos termos que são caracterizados, os capoeiras estão relacionados à sua
capacidade de promover desordens e arruaças, ao uso da violência e das armas brancas,
até a prática de assassinatos.
37
Podemos observar, dentre outros textos, o que traz o Código Penal de 1890, no
decreto número 847, e assim intuir as categorias que versam sobre semelhantes
representações. Vale lembrar, contudo, que as representações sociais são construções
sociais elaboradas por sujeitos sociais, em um dado contexto sociocultural, logo,
percebemos que as representações sociais estabelecidas por um grupo acerca de outro
podem ou não estar de acordo à representação que o grupo do “eu” faz sobre o grupo do
“outro”. Sinalizamos, porém, que o desacordo é muito mais provável em se tratando de
grupos que ocupam posições opostas dentro da sociedade.
Contudo, a referida autora salienta como os dois únicos momentos nos quais
pode se destacar representações positivas elaboradas pelas elites sobre os capoeiras, a
saber: o episódio da Guerra da Cisplatina (1825 a 1828), quando os capoeiristas foram
chamados de “defensores da pátria” e na Guerra do Paraguai, como “herói nacional”
lembrando nesses momentos que “[…] o nacionalismo se sobrepõe à questão negra”
(REIS, 2000, p. 36). Deste modo percebemos que desde o século XIX a nacionalização
da capoeira insinua-se como via de aceitação da capoeira, mas neste sentido, ainda
necessitaria de alguns ajustes e acomodações de interesses.
CAPITULO 2
CAPOEIRA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA
Este capítulo destina-se a discorrer sobre a formação da identidade cultural afro-
brasileira, salientando que esta, como as demais identidades, é uma construção social
determinada no tempo-espaço28
. Deste modo, são apresentados argumentos pautados no
pensamento de Stuart Hall (2003 / 2006) que abordam a formação das identidades e a
ideia de nação com base nos Estudos Culturais; de Berger e Luckmann (2008) que
tratam da construção social da realidade que direciono para o estudo proposto pensando
como construção social da identidade e os autores Poutignat e Streiff-Fenart (1998),
muito úteis no debate sobre as teorias da etnicidade, raça, identidade e nacionalidade.
28
Considero ao falar de tempo-espaço, momentos e locais nos quais o sujeito transita e desloca sua
identidade, de modo que considerando estes dois contextos como variáveis que determinam a identidade
que sobressai em determinado sujeito. Conforme Hall (2006, p.13) “O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente.”
38
2.1 Identidade cultural, uma construção social
Tomando por base os estudos acerca da construção do conhecimento de Berger e
Luckmann em “A construção social da realidade” (2008), bem como as observações de
Stuart Hall (2006) e Bauman (2005) sobre os processos que envolvem a formação das
identidades culturais, mais especificamente as identidades nacionais no cenário da
modernidade, podemos compreender que tais identidades são construções sociais as
quais podem ser moldadas e remodeladas, mantidas e continuadas com base nas
relações sociais estabelecidas tanto vertical quanto horizontalmente.
Stuart Hall chama-nos a atenção para o equívoco que pode ocorrer ao se
considerar a identidade como processo no qual se atinge a plenitude de sua construção.
Sugere então a troca do termo por “identificação” (2006, p. 39), o qual melhor oferece a
ideia de processo inacabado e em permanente construção. Esta “identificação” torna-se
condição imprescindível ao sujeito na modernidade, quando a identidade deixa de ser
compreendida como algo natural e inato e passa a ser compreendida como constructo
social, representacional, móvel e inacabado. Do mesmo modo Bauman (2005) utiliza a
ideia de identificação:
Quando a identidade perde suas âncoras sociais que a faziam parecer
‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna cada
vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente
um ‘nós’ a que possam pedir acesso (BAUMAN, 2005, p. 30).
Neste sentido compreendemos a identificação como uma construção fluida,
contínua e dinâmica que se relaciona ao pertencimento do sujeito, suas afiliações e
representações sociais.
Contudo, lembramos que essa questão não se assenta unicamente nas relações
estabelecidas entre sujeitos, mas também com instituições intersubjetivas como a
família, a escola, o trabalho e demais círculos e eventos sociais que funcionem como
“mediadores sociais”. Conforme Hall, de acordo com a concepção de sujeito
sociológico29
, a formação da identidade ocorre com a interação do sujeito “[…] com
‘outras pessoas importantes para ele’, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos
e símbolos – a cultura dos mundos que ele/ela habitava” (HALL, 2006, p. 11).
Pensamos então aqui em conformidade com a concepção de mediações sociais
fornecida por Sandra Jovchelovitch (1995), como estruturas que constituem o todo
29
Hall (2006) para pensar a identidade cultural distingue três tipos de sujeito, os quais se estruturariam
três concepções de identidade: o sujeito do iluminismo; o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. A
concepção da identidade do sujeito sociológico é caracterizada por ter sua formação “na “interação” entre
o eu e a sociedade” (2006, p. 11), ligando o sujeito à estrutura social.
39
possibilitando a interpretação e interação entre as partes, de modo que estas estruturas
constituem parte relevante na construção das representações sociais. Assim as
mediações são estruturas que põem em relação os sujeitos com o contexto do qual
decorrem as identificações e representações sociais ( in POSSAMAI e GUARESCHI,
1995, p. 81)
Neste sentido, a ótica fornecida pela teoria das representações sociais ao
pensarmos a identidade como algo além de constructo social, mas também como um
processo inconsciente no qual o indivíduo interpreta símbolos e códigos apresentados,
constrói representações de si e do mundo à sua volta.
Deste modo, cito Stuart Hall (2006), que corrobora este pensamento ao afirmar
que “[…] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes e não algo inato, existente na consciência no momento do
nascimento.” (2006, p. 38). Ou seja, as identidades culturais não são nem podem ser
tomadas como algo natural, mas devem ser pensadas como um fenômeno resultante de
um processo de relações entre indivíduos, grupos e sociedades. Por outro lado,
conforme adverte Bauman ( 2005, p. 84), “a identidade é uma luta simultânea contra a
dissolução e a fragmentação, uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa
resoluta a ser devorado”. Deste modo, cumpre destacar que as relações que exigem
interação entre indivíduos, dentre as quais a formação das identidades, nem sempre são
harmoniosas e envolvem, muitas vezes, tensas relações de poder.
Por sua vez, o indivíduo, cuja principal referência de identidade30
foi formada
através do estabelecimento dessas relações sociais, que interage com as estruturas
sociais e históricas de modo crítico, pode promover questionamentos e produzir novos
discursos através dos quais provocarão, além de alterações na forma de como estes
sujeitos se identificam, mudanças na estrutura sociocultural e na sua realidade. Eis o
poder que há na tomada de consciência quanto à identidade de um grupo.
A formação da identidade negra fora da África foi uma condição vital para os
indivíduos nascidos no continente americano, criada de modo que ao menos garantisse
resistir física, emocional e psicologicamente e, ainda que coisificados pelos
colonizadores permitisse resistir também social e politicamente. Vale lembrar que os
30
Lembrando que são múltiplas as identidades que o sujeito moderno possui, haja vista Stuart Hall
quando diz “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés
disso, à medida em que os sistemas de significação e representações culturais se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconfortante e cambaliante de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13).
40
negros escravizados vindos da África não tinham todos a mesma origem, ou seja,
muitos eram provenientes de regiões, etnias, grupos linguísticos diferentes, deste modo
podemos pensar que, apesar de haver algumas familiaridades entre um grupo e outro
muitos grupos em muito ou algo se diferiam.
Com isso, não é possível trabalhar na perspectiva de que teria ocorrido um
transplante cultural África-América que teria dado origem a estas culturas. Mas sim,
uma construção de uma nova cultura com base nos elementos que foram trazidos nas
memórias destes povos e que passaram por adaptações de diversas ordens. Sobre isso
trata Gil (2007)
Para continuar resistindo, os africanos submetidos ao cativeiro e seus
descendentes tiveram que refazer tudo, refazer linguagem, refazer
parentesco, refazer religiões, refazer encontros e celebrações, refazer
solidariedades, refazer culturas. Esta foi a verdadeira Grande
Refazenda. O primeiro passo neste monumental processo de
reinvenção da humanidade foi a superação do estranhamento geral
[…] (GIL, 2007 p. 12).
Em relação às identidades culturais produzidas no contexto do que se
convencionou chamar diáspora africana, caracterizado pela situação de desterrados e
escravizados em terras americanas, como parte da engrenagem da máquina colonialista
a qual foram submetidos os negros africanos, destaca-se a formação das identidades e
culturas afro, a partir das relações estabelecidas com uma série de elementos comuns,
dentre estes, o próprio contexto diaspórico. O contato com elementos específicos das
culturas diversas vindas da África, juntamente às culturas do colonizador e dos
autóctones engrossaram este caldo cultural que originou diversas expressões da cultura
afro-brasileira, sobretudo no que diz respeito à cultura popular.
Deste modo, considerando o fato dos negros africanos escravizados nas
Américas terem deixado sua terra natal como mercadorias e mão-de-obra escrava, ao
serem tomados de assalto, em situação que pouco ou nada puderam trazer, exceto o que
estava em sua memória, verificamos assim a importância dos valores africanos trazidos
nessas memórias, que se constituíram também como valores afro-brasileiros. Assim,
através desse conjunto de princípios e valores legados pelos muitos povos vindos da
África, e as interações entre estes povos, tem início a construção das identidades
culturais afro-americanas, em especial as identidades afro-brasileiras, para as quais se
voltam os esforços de compreensão deste trabalho.
2.2 A construção das identidades afro-brasileiras
41
O processo de formação das culturas e das identidades afro-brasileiras teve seu
início a partir da interação entre os povos que estavam escravizados no Brasil, mas
também das relações entre os africanos e os colonizadores e os autóctones. Conforme
assinala Mintz e Price (2003, p. 33) “[…] os africanos de qualquer colônia do Novo
Mundo só se transformaram de fato em uma comunidade e começaram a compartilhar
uma cultura na medida e na velocidade que eles mesmos as criaram.”
A princípio, podemos perceber duas formas de interação que envolveram o
negro escravizado no processo de formação da identidade afro-brasileira. Uma a partir
das relações de dominação31
entre negros e brancos, acentuadas pelo uso da violência
física, psicoemocional e cultural. Neste ponto, o homem negro escravizado era
considerado um bem móvel a disposição do seu proprietário, não como mero animal de
carga, pois “dotado de um mínimo de racionalidade”, eram considerados como
exemplares de homo sapiens32
, o que aumentava ainda mais as possibilidades da sua
exploração ante o que seria um animal de carga comum (MEILLASSOUX, 1995).
Deste modo, destituído de alma e humanidade, perfeitamente substituível em caso de
morte ou acidente que o incapacitasse a desenvolver a função que lhe era atribuída, este
era o status do escravo africano no período colonial escravista.
Assim era não somente marcada como também justificada a desigualdade entre o
senhor e o escravo. Outro aspecto histórico-social que sobressaiu na construção da
identidade afro-brasileira no contexto da escravidão, diz respeito às relações entre
negros e negros, muitas vezes de origem étnicas diferentes. Encontramos nesta forma,
algumas relações de solidariedade, nas quais a interação e a ajuda mútua eram formas
de amenizar as necessidades materiais, psicoemocionais e espirituais e de ordem prática,
as quais foram fundamentais na construção da nova identidade. Sobre isto, Martins
assinala que
A cultura negra nas Américas é de dupla face, de dupla voz, e
expressa, nos seus modos constitutivos fundacionais, a disjunção entre
o que o sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e o
que, por inúmeras práticas, realmente diziam e faziam. Nessa
operação de equilíbrio assimétrico, o deslocamento, a metamorfose, e
o recobrimento são alguns dos princípios e táticas básicos operadores
da formação cultural afro-americana que o estudo das práticas
performáticas reiteram e revelam. (MARTINS, 2002, p. 71)
31
Destas relações de dominação e sujeição entre povos africanos ver Waldman e Serrano (2008) e
Meillassoux (1995). 32
O homo sapiens, de acordo com a classificação científica é uma espécie de hominídeo abaixo na escala
evolutiva apenas dos homo sapiens-sapiens que é o homem atual.
42
Deste modo percebemos que a produção cultural afro-brasileira no tocante às
relações entre o escravo e o senhor procurou criar estratégias que dissimulassem as
práticas culturais recriadas coibidas, como jogos, festas e rituais com vistas a minimizar
as represálias. Assim, notamos que estes deslocamentos, metamorfoses e recobrimentos
foram mais que disfarces, a considerar seu papel no processo de resistência cultural e
política que atuavam na construção da identidade afro-brasileira, tanto quanto as formas
de negociação, os atos de rebeldia, como boicote aos instrumentos de produção, o
chamado “corpo mole” que atrasava o andamento dos trabalhos, bem como, as
rebeliões, fugas individuais e coletivas e o suicídio. Estas formas de negociação e atos
extremos marcaram a resistência dos negros e sua forma de fazer política e preservar
seus elementos culturais distintivos durante o período escravista.
2.2.1 A afro-brasilidade: construção da identidade cultural múltipla
Considerando a afro-brasilidade uma identidade que, se decomposta seus termos
constituintes, perceberemos que se ancora em dois conceitos construídos socialmente:
etnia e nacionalidade. Contudo, notamos que ambos os termos componentes são
conceitos carregados ideologicamente que, via de regra, remetem à ideia sintética de
pertença a “um local”, neste caso à África e ao Brasil, os quais abrigam culturas e etnias
diversas. No bojo do processo de formação desta afro-brasilidade temos como resultado
interações intersubjetivas que envolveram uma gama de estratégias de resistência e
apropriação entre os diversos grupos envolvidos nesta questão. Portanto, para
adentrarmos à construção da afro-brasilidade, primeiro refletiremos acerca dos
conceitos de etnicidade e nacionalidade, os quais têm particular relevo nesta discussão.
Notamos que a construção das identidades, cujas bases se assentam nas
interações intersubjetivas estabelecidas no cenário da diáspora e da escravidão colonial,
apresentou-se como resultado de processos sociais, culturais e psicológicos complexos.
Deste modo, questões relacionadas à ideia de igualdade, diferença e desigualdade
emergem como elementos cruciais na compreensão da identidade cultural afro-
brasileira, sobretudo no ponto específico o qual tratamos aqui, que é a construção da
afro-brasilidade, a partir das fronteiras estabelecidas nestas noções se torna possível a
dicotomia do “eu” e do “outro,” empregada entre negros e brancos no contexto da
diáspora e escravidão colonial e, a partir daí, as classificações e generalizações
relacionadas não somente às ideias de etnia e nacionalidade, como também a construção
da noção de “raça”.
43
Cabe aqui salientar que as questões de identidade, raça, cor ou etnicidade que
envolvem dominação ou exclusão, partem da constatação da diferença que pode ser de
ordem objetiva ou cultural. Para pensarmos os pares formados por “igualdade e
diferença” e “igualdade e desigualdade”, trazemos a explicação de Barros (2008) que
apresenta estas oposições relacionando o primeiro par à ordem dos contrários, no qual
se opõem duas essências, e o segundo à ordem dos contraditórios, a qual se opõem duas
circunstâncias. Nas palavras do autor
a oposição entre Igualdade e Diferença, para colocar em uma
perspectiva semiótica, é da ordem dos ‘contrários’ (de duas essências
que se confrontam). Já a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da
ordem dos ‘contraditórios’ (duas circunstâncias que se opõem)
(BARROS, 2008, p. 40). (grifo nosso)
Deste modo, o autor mostra que uma diferença não deveria anular a outra,
simplesmente porque ambas, são em si, e não concorrem uma com a outra. Contudo, no
âmbito da desigualdade, ao serem estabelecidas escalas da ordem do contraste, podem
gerar situações de exclusão, segregação, exploração e discriminação. Esta última,
conforme observa Barros (2008), “[…] discriminar, remete também ao cultivo daquilo
que podemos conceituar como ‘preconceito’”, dentre os quais, o chamado “preconceito
racial” ou “preconceito de cor” (BARROS, 2008, p. 44).
Em muitos contextos, dentre os quais, o da diáspora e da escravidão colonial, o
discurso da desigualdade serviu para engrossar a conjuntura da dominação colonial.
Este discurso foi e continua sendo, mesmo que de forma velada, tomado como critério
que pretende justificar uma série de abusos e desmandos, dentre os quais as formas de
discriminação, subordinação, dominação e exclusão de grupos e indivíduos, em diversos
âmbitos da vida social. Ou seja, ocorre o erro grotesco de usar a diferença para justificar
a desigualdade entre os indivíduos e seus grupos. No momento em que as diferenças são
hierarquizadas e postas em escala de valor, gera a desigualdade. Desigualdades de
ordem social, cultural, legal, restrições ao acesso de determinados bens e capitais.
Canclini (2008, p. 250), referindo-se à dominação colonial, salienta que a
manutenção da diferença por parte dos colonizadores constituiu-se um recurso a serviço
da dominação dos aborígenes. Do mesmo modo, compreendemos que a manutenção da
diferença foi e é elemento de dominação, o qual procura fazer crer, impor e fruir desta
crença que apregoa uma suposta superioridade de uns, em detrimento à autonomia de
outros. Assim, vale lembrar a colocação de Gilles Deleuze e Félix Guattari, (1997) que,
ao trabalhar com a teoria das forças, reconhecem a existência de uma força que domina
44
e outra, que é dominada, quando dizem que a força que domina age sobre a força
dominada, afirmando-se sobre esta última e gozando da sua diferença sobre esta, sem,
entretanto, negar a força dominada. Deste modo, compreendemos como atuou a
manutenção das diferenças entre negros africanos escravizados e o branco colonizador,
ao ponto de construírem-se duas identidades étnicas diferentes em posições sociais
opostas. Do mesmo modo, cito aqui a definição de etnicidade adotada por Philippe
Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, concebida com base nos estudos do antropólogo
Fredrik Barth, na qual compreendem a etnicidade como:
[…] uma forma de organização social, baseada na atribuição
categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta,
que se acha validada na interação social pela ativação de signos
culturais socialmente diferenciadores. (POUTIGNAT e STREIFF-
FENART, 1998, p. 141)
De forma semelhante Munanga conceitua etnia como “[…] um conjunto de
indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua
em comum, uma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente
num mesmo território.” (MUNANGA, 2003, p. 11). Com isso, podemos concluir que a
etnicidade é uma construção social que se baseia em um discurso que funciona tanto
categorizando (iguais e diferentes), quanto classificando as pessoas e grupos (nós e os
outros), baseando-se não somente na crença de uma origem comum, construída a partir
de um trecho de história, e um local comum, os quais são compartilhados desde então,
dos quais provêm a construção da memória, das tradições e um modo de vida
compartilhado, como também por meio das semelhanças na aparência, que dão margem
a concepção de grupo étnico.
Neste sentido, podemos inferir que a compreensão acerca do sentimento de
pertença a um determinado grupo, ou comunidade étnica, não exige exatamente que
seus membros tenham a mesma origem e/ou características físicas, mas uma interação
social, que compartilhem valores, modos de vida e símbolos culturais além da crença
subjetiva em uma origem comum, o que respalda o sentimento de pertencimento àquele
grupo. Contudo, devemos observar que a identidade étnica não é estabelecida apenas
pelo sentimento de pertencimento, esta também se constrói nas fronteiras por meio das
categorizações estabelecidas por outros grupos étnicos.
Devemos, entretanto, atentar para o uso do termo “etnia” como uma
reformulação do conceito de “raça”, pois este possui um longo processo que vai desde a
45
sua concepção nas Ciências Naturais até seu uso como elemento acirrador das tensões
sociais que envolvem manifestações de racismo.
Disto devemos lembrar que o conceito de raça teve sua origem nos estudos das
Ciências Naturais, usado para estabelecer categorias com base nas semelhanças e
diferenças entre espécies animais e vegetais. Contudo sua aplicação relacionada à
espécie humana, por François Bernier em 1684, com fins de designar grupos humanos
fisicamente diferentes, para Munanga, (2003), deu origem ao processo de construção do
moderno conceito de raça, o qual foi posteriormente ligado pelos cientistas à ideia de
hierarquização dos grupos humanos e com isso justificando e legitimando a dominação,
a escravidão colonial, dentre outros modos de subjugar grupos tidos como minorias
sociais.
Neste sentido, durante o século XVIII a cor da pele tornou-se o principal critério
no estabelecimento das “raças,” e no século XIX foram estabelecidos outros critérios
que se somavam à cor da pele para categorizar e hierarquizar os seres humanos e seus
grupos. Com base nestes estudos, influenciados pelo evolucionismo e pela ideologia
colonialista, foram-se respaldando as teorias raciais. Hoje é sabido que embora
biológica e cientificamente inaplicável, o conceito de raça socialmente existe como
“uma construção sociológica e uma categoria social de dominação e de exclusão.”
(MUNANGA, 2003, p. 6). Deste modo, Stuart Hall (2006) compreende raça como uma
categoria discursiva que se vale de marcas simbólicas para diferenciar socialmente os
grupos.
Munanga (2003) nota que os conceitos de etnia e raça são aplicados socialmente,
e, algumas vezes, com sentidos muito próximos, sobretudo no Brasil, em se tratando de
relações raciais e manifestações de racismo. Salienta Munanga (2003), que além destes
dois conceitos, também os conceitos de “identidade cultural” e “diferença cultural” são
usados no sentido de reformular o conceito de raça. O conceito raça, do qual se deriva o
termo “racismo”, infelizmente ainda está em voga, tanto no campo dos estudos quanto
nas práticas e nas representações. Observa assim Munanga, “O que mudou na realidade
são os termos ou conceitos, mas o esquema ideológico que subentende a dominação e a
exclusão ficou intacto” (MUNANGA, 2003, p.13).
Sobre a ideia de nacionalidade, é relevante pensar a nação, conforme sugere
Stuart Hall (2006), como algo além de uma entidade política e também como um
sistema de representação cultural que dá significado a uma série de outras
representações, sendo a cultura nacional como “um discurso – um modo de construir
46
sentidos que influencia e organiza as nossas ações quanto à concepção que temos de nós
mesmos” (HALL, 2006, p. 50). Com isto devemos observar que a nacionalidade é uma
construção social. Através desta construção ergue-se e, muitas vezes reifica-se, a ideia
de pertencimento a uma determinada nação. Deste modo, este conceito opera na
sociedade oferecendo aos indivíduos um sentimento de pertença, não somente a um
suposto local de origem, como também a um grupo maior, unificado e genérico. É neste
sentido que Hall argumenta que “[…] na verdade, as identidades nacionais não são
coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da
representação” (HALL, 2006, p. 48).
Daí, a identidade nacional se faz perceber quando ocorre a identificação dos
indivíduos com este discurso, composto por narrativas que constroem a ideia, quase
naturalizada, sobre a nação e a própria nacionalidade. Contudo, não basta identificar-se
com o discurso de nacionalidade, é também necessário, além do sentimento de pertença,
o domínio de diversos códigos culturais incorporados, que manifestam, por meio de
expressões triviais, como sua postura, seus gestos, fala e demais expressões que
possibilitam ao “outro” a identificação deste como pertencente a tal nacionalidade.
Por outro lado, é possível compreendemos que a identidade nacional é um
fenômeno, ou seja, algo que se manifesta, e é objeto de reflexões, construído a partir de
um discurso que procura unificar a identidade de uma nação inteira, desconsiderando as
diversidades regionais, sociais, étnicas e de gênero, dentre outras. Ou seja: apresenta
como prejuízo inseparável desta “unidade”, a invisibilização de uma gama de outras
expressões culturais produzidas pelas diferentes identidades étnicas, sociais, históricas,
dos indivíduos que operam no interior desta generalização.
A identidade nacional é um discurso construído que busca se estabelecer para
atender em grande parte às demandas ideológicas da classe que o constrói. Daí lembra-
nos Poutignat e Streiff-Fenart (1998) acerca da importância da memória, e do
esquecimento, na construção das identidades e das culturas nacionais, ao argumentar
que:
[…] a memória fundadora da unidade nacional, é ao mesmo tempo e
necessariamente o esquecimento das condições de produção desta
unidade: a violência e o arbitrário originais e a multiplicidade das
origens étnicas. (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 36).
Deste modo, notamos que na atualidade, o referido processo de lembrança-
esquecimento insere-se em uma conjuntura na qual, via de regra, procura-se
implementar o discurso das classes hegemônicas. Estas, por muito tempo, através do seu
47
discurso, buscaram equacionar as tensões sociais de âmbito nacional a favor dos seus
interesses, selecionando, elegendo e promovendo manifestações de grupos populares
específicos ou segmentos sociais, regionais ou locais como representantes da cultura
nacional.
Neste processo, obrigatoriamente os esquecimentos e as lembranças servem a
uma narrativa unificadora, que lança seus heróis, mártires e fatos históricos de acordo
com a imaginação da classe que a constrói, deixando de fora muitas outras narrativas,
contudo não menos relevantes para seus grupos específicos engolidos ou esquecidos
pelo discurso maior da nacionalidade.
Stuart Hall (2006) chama a atenção para dois aspectos acerca das identidades
nacionais: um é o aspecto de construção social, e outro, de invenção. Neste sentido,
observa o referido autor, que a identidade nacional é um fenômeno moderno no qual,
“no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das
principais fontes de identidade cultural” (HALL, 2006, p. 47). Contudo, frisa que esta
identidade nacional é uma invenção da era moderna, localizável no tempo e no espaço,
tendo sua origem a partir da formação dos estados nacionais. Com base na ideia de
nacionalidade, as diferenças culturais e étnicas, como religião, língua e organização
social são, de certo modo, unificadas. Esta identidade cultural é construída e atua
ligando o indivíduo a um grupo maior, a nação.
Com isso podemos considerar que o discurso de nacionalidade localiza tanto o
indivíduo quanto o grupo de indivíduos em um tempo-espaço, o que lhes oferece certo
conforto, tanto social quanto psicológico, por se tratar de uma comunidade simbólica
que produz sentidos e, deste modo, promove o sentimento de pertença e identidade entre
os indivíduos e grupos.
Hall (2006) percebe o esfacelamento das identidades culturais definidas e bem
acabadas, considerando o movimento de generalização da cultura tanto por meio dos
hibridismos culturais, quanto da homogeneização, e o movimento que chamou de
“retorno à etnia”, o qual os sentimentos de pertença e as identidades locais são
reforçados por meio de identificações simbólicas e busca pela origem comum. Neste
ponto o autor chama a atenção para as reações defensivas de grupos étnicos dominantes,
que, ao se sentirem ameaçados pela presença de outras culturas, este sentimento de
pertença ante algum movimento interpretado como ameaça, pode desencadear reações
de violência e preconceitos, o qual o autor chama de “racismo cultural”.
48
Isto posto, percebemos que existe uma gama de elementos e contextos que
tornam o pensar acerca da construção da identidade cultural afro-brasileira, um
exercício complexo, postas as ambiguidades dos processos que o envolve. Verificamos
portanto, que a construção da identidade cultural afro-brasileira se dá, principalmente,
através dos elementos de significação de origem africana, nos quais, os sujeitos que
vivem e produzem esta cultura ao interagirem, através das adaptações, atualizações,
ressignificações e recriações, produzem novas formas culturais. Deste modo, ao
compartilham esta cultura ao mesmo tempo em que a produzem. Ou seja,
compartilharem elementos comuns, como os narrativas e valores gerados a partir dos
diversos conjuntos de referências vindos da África, ressignificaram no Brasil estes
elementos que neste processo passaram a integrar, reforçando a ideia de uma área
geográfica e de origem comum, genérica, a África. Estas ideias estão presentes nos
conceitos de identidade étnica, anteriormente apresentados, bem como atuam também
no cenário globalizado onde se apresentam as novas tecnologias, os novos meios de
comunicação que permitem acesso e interações a uma infinidade de informações
culturais.
Percebemos que até mesmo as noções de cultura e identidade afro-brasileira
passam por uma unificação que desconsidera as diferenças regionais que imprimem
marcas nas feições destas culturas e identidades. Deste modo podemos então falar em
identidades afro-brasileiras, considerando que as identidades nacionais são também
atravessadas por diferenças internas, unificadas através do exercício de diferentes
formas de poder cultural e que a unificação de uma identidade nacional, pautada na
ideia de raça ou etnia, como era comum na Europa, no cenário atual é visto como fora
de questão, no sentido que “As nações modernas são, todas, híbridos culturais” (HALL,
2006, p. 62).
Constatamos, contudo que no caso da identidade cultural afro-brasileira, ainda
que sendo uma identidade marcada historicamente pela desigualdade e subalternidade
no âmbito das relações sócio-econômicas e culturais, ocorre o movimento chamado por
Hall (2006) de formação de posições-de-identidade. Estas polarizadas reagem
defensivamente e produzem sentimentos que poderíamos chamar de “afro-brasilidade”.
Hall (2006, p. 85) chama de “inglesidade”, a resultante do fortalecimento da identidade
local que reage defensivamente em situações nas quais uma identidade dominante se
sente culturalmente ameaçada por outra identidade. Esta reação defensiva pode
49
desencadear atos extremos de violência, estágio o qual Hall (2006) chama de
“inglesismo”.
Deste modo, observamos o desenvolvimento do que Hall (2003) caracterizou
como “estratégia da différance”, ao defender a “produção subalterna da diferença”, com
base no pensamento de Derrida. Esta estratégia, incapaz de criar formas novas de
cultura, também não pode conservar intactas as formas antigas (HALL, 2003, p. 58).
Deste modo, na formação da afro-brasilidade, a idéia de “estratégia da différance”
funciona no ambivalente cenário da globalização, dizemos isto considerando sua dupla
feição generalizante e localizante, donde, nem uma, nem outra, permanece por muito
tempo como grupo hegemônico, nem no âmbito da subalternidade resistente.
Vemos materializadas estas estratégias ao considerarmos a afro-brasilidade
como uma resposta defensiva dada a uma experiência de exclusão social e racismo33
.
Deste modo, relacionando especificamente à questão racial que envolve os afro-
brasileiros, esta posição reacionária provém da tomada de consciência de que a
assimilação dos modos hegemônicos não garantem sua plena integração na sociedade.
Neste sentido, a ideia de “negritude”, por exemplo, conforme compreensão de Munanga
(1990), apresenta-se como um posicionamento que afirma os valores civilizatórios e
culturais do mundo negro, ao mesmo tempo em que atua como um posicionamento
político voltado a resolver questões sociais relacionadas principalmente ao racismo. De
acordo com Kabenguele Munanga, o processo de construção social da negritude ocorre
da seguinte forma:
O negro se dá conta de que sua salvação não está na busca da
assimilação do branco, mas sim na retomada de si, isto é na sua
afirmação cultural, moral, física e intelectual, na crença de que ele é
sujeito de uma história e de uma civilização que lhe foram negadas e
que precisava recuperar. A essa retomada, essa afirmação de valores
da civilização do mundo negro deu-se o nome de ‘negritude’
(MUNANGA, 1990, p. 111).
33
Kabenguelê Munanga (2003), explica seu conceito de racismo a partir das relações estabelecidas como
o conceito de raça. Segundo este autor, “o racismo seria teoricamente uma ideologia essencialista que
postula a divisão da humanidade em grandes grupos chamados raças contrastadas que têm características
físicas hereditárias comuns, sendo estas últimas suportes das características psicológicas, morais,
intelectuais e estéticas e se situam numa escala de valores desiguais […] é uma crença na existência das
raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral o físico e o intelecto, o
físico e o cultural” (MUNANGA, 2003, p. 6 - 7).
50
Deste modo, a afro-brasilidade seria um discurso que gera um sentimento de
pertença étnico ou racial34
e nacional, que toma de empréstimo da ideia de negritude,
naquilo que concerne a um posicionamento político-ideológico, no que busca promover
a valorização – ou supervalorização - dos valores e da cultura afro-brasileira, com
ênfase nos elementos e valores de origem africana. Contudo, nesta busca por afirmar
sua identidade “afro”, ou seja, negra, peca ao tentar tornar positiva a imagem
estereotipada do negro afro-brasileiro, formada sob preconceito e que tanto alienou
muitos portadores desta identidade. Neste caso vale mais trabalhar uma nova imagem
do negro brasileiro no sentido de conhecedor e sujeito da sua história e cultura, como
sujeito político que atua dentro da sociedade e, enquanto grupo que se mostra portador
de valores e identidades específicas.
Consideramos também as interações intersubjetivas e o fato de a capoeira
também ter sido praticada por outros grupos, que não exatamente de africanos e afro-
descendentes escravizados, libertos ou livres. Deste modo, a capoeira não pode ser
considerada uma manifestação homogênea, pois é notório o imbricamento entre o
processo de construção da capoeira e as identidades afro-brasileiras, através das suas
lutas no âmbito político e ideológico, e a atribuição de marginalidade aos capoeiras,
desde que sujeitos negros e escravizados.
A capoeira ainda assim se mostra como manifestação de nítidos traços oriundos
das culturas africanas. Cumpre destacar que no âmbito do registro da capoeira como
manifestação cultural brasileira, fazem-se necessárias medidas de políticas públicas, não
somente de reconhecimento e valorização dos sujeitos que trabalham com esta
expressão em seu local de origem (cidade e país), como também de reparação. É neste
sentido que a antropóloga Maria Paula Adinolfi, no texto do Parecer do Registro da
Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil, salienta o sentido político que tem tal
Registro para as comunidades afro-brasileira e principalmente os capoeiristas:
A proposição do registro da capoeira como patrimônio cultural do
Brasil, (…) pode ser mais bem compreendida ao considerá-la como
parte integrante de um rol mais amplo de reivindicações de direitos
culturais, sociais e políticos pela população afro-brasileira, que foram
incorporados a agenda do MinC, resultando na formulação de políticas
públicas de valorização e fomento desta prática social. (IPHAN, 2008,
p. 1)
34
Deixamos os dois conceitos por considerar que ambos são igualmente aptos para se pensar e discutir
não somente questões raciais como também o próprio conceito de afro-brasilidade e questões relacionadas
a esta.
51
Assim, com vistas a viabilizar as reflexões feitas neste trabalho, tomaremos a
perspectiva de “matriz africana” como conjunto de valores civilizatórios e elementos
simbólicos, que possibilita a análise e interpretação daquilo que é compartilhado, ou ao
menos, aderido por muitos, como aspectos constitutivos dos diferentes povos vindos da
África, que aqui estavam e interagiram uns com os outros, com vistas a resistir ao
contexto opressor.
Enfim, sem desconsiderar a heterogeneidade cultural do continente africano,
trabalhamos com a perspectiva de “matriz africana”, com a finalidade de refletir acerca
da identidade cultural afro-brasileira que tem como marca distintiva elementos culturais
que definiram uma diáspora africana no Brasil. Elementos estes que hoje notadamente
encontram-se arraigados na identidade e na cultura afro-brasileira, não porque foram
impostos, mas por serem referências que remetem de forma genérica a um continente
inteiro, haja vista a impossibilidade de precisar o local dos nossos ancestrais, mas que
ainda assim são caros como termos de referência de histórias de luta e resistência contra
o tempo, o esquecimento e a opressão.
CAPITULO 3
OS VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS NAS
RODAS DE CAPOEIRA
A noção de valores africanos foi elemento fundamental na construção do amplo
patrimônio cultural e das identidades afro-brasileiras. Como conjunto de elementos de
significações diversas (ética, religiosa, social, corporal, científica, dentre outras) estes
valores nortearam a reorganização da vida dos grupos de indivíduos escravizados. Deste
modo, percebemos tais valores como elementos que atuaram na criação das novas
formas culturais desses indivíduos desterrados, e de seus descendentes, na medida em
que buscavam reorganizar suas vidas no Brasil. Tais criações e recriações foram
configurando-se através dos muitos processos de interação que resultaram em novas
formas culturais e novas instituições. Esses valores culturais atuaram tanto no
consciente quanto no inconsciente, e agiram na formação de identidade, de
autocompreensão e da sociedade brasileira. Azoilda Loretto da Trindade fornece-nos
52
uma ideia clara do quanto, e de como estes valores compõem o indivíduo, no âmbito da
cultura e da identidade, ao afirmar que:
A África e seus descendentes imprimiram e imprimem no Brasil
valores civilizatórios ou seja, princípios e normas que corporificam
um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais,
intelectuais e materiais, objetivas e subjetivas, que se constituíram e se
constituem num processo histórico, social e cultural. (TRINDADE,
2005, p.30-31)
A questão da continuidade transatlântica da cultura africana, via de regra, é uma
discussão presente ao se trabalhar com estes valores. Enquanto alguns autores pensam
nesta continuidade como o modo que garantiu a reestruturação, do ponto de vista
cultural e social do negro no Brasil, naquilo que concerne à formação da identidade e da
cultura afro-brasileira, outros autores como Sidney Mintz e Richard Price são mais
cautelosos ao trabalhar com a ideia de uma continuidade transatlântica, por considerar
principalmente a heterogeneidade do continente africano. Os referidos autores
asseveram que:
De uma perspectiva transatlântica, os princípios, pressupostos e
modos de compreensão culturais de nível profundo compartilhados
pelos africanos de qualquer colônia do Novo Mundo […] teriam sido
um recurso limitado apesar de crucial. É que eles podem ter servido de
catalisadores nos processos pelos quais os indivíduos de diversas
sociedades forjaram novas instituições, e podem ter fornecido alguns
arcabouços dentro dos quais foi possível desenvolver novas formas
(MINTZ E PRICE, 1992, p. 33)
Deste modo, embora concebam como crucial a relevância dos princípios e
valores africanos para a construção das instituições afro-americanas, dentre elas as afro-
brasileiras, estes autores consideram sua atuação limitada, visto que o continuum não foi
integralmente concretizado, principalmente do ponto de vista institucional. Contudo,
consideram que novas instituições foram criadas, a partir destes princípios e valores
compartilhados entre interações sociais da vida cotidiana. Deste modo, os valores em si
não foram suficientes para recriar fielmente o modo de vida das várias comunidades
africanas na América, como supõe a ideia de continuum, mas que foram fundamentais
para a criação de novas formas culturais.
Marco Aurélio Luz (2000) compartilha da perspectiva da continuidade
transatlântica da cultura africana em solo brasileiro. Neste sentido, este autor enfatiza o
conjunto dos princípios e valores africanos como elemento responsável pelo que seria a
reconstrução da cultura africana no Brasil. Para Luz houve um continuum da África para
o Brasil, de modo que as transformações ocorridas com a diáspora não foram suficientes
53
para alterarem este legado. Desconsidera, ou antes, minimiza portanto a diversidade das
culturas africanas, as estratégias usadas no apresamento e transporte dos africanos como
a separação das famílias e demais instituições sociais, a proposital mistura de grupos
linguísticos diferentes, e demais efeitos da escravidão colonial, enquanto contexto no
qual teria se dado tal continuum. Nas palavras do referido autor:
Na Afro-América, especialmente no Brasil, o legado africano se
expandiu de tal forma que hoje vemos da mesma maneira os
princípios e valores desta tradição civilizatória, apesar de algumas
transformações que, todavia, não alteram a sua totalidade dinâmica
constituinte de um mesmo continuum. (LUZ, 2000, p. 31) (Grifos
nossos)
Decerto, os valores civilizatórios africanos tiveram e ainda têm fundamental
importância na construção das identidades afro-brasileira e são visíveis as suas marcas
em vários âmbitos da vida dos afro-brasileiros. Contudo, não seria lícito afirmar que o
conjunto destes valores proporcionaram um continuum transatlântico da cultura
africana, mas sim, podemos dizer que possibilitou a criação de novas manifestações, de
novas culturas, novas identidades e novas instituições e relações sociais a partir das
relações estabelecidas sob as conjunturas que se apresentavam a estes sujeitos.
Deste modo, é possível melhor compreender como grupos distintos, algumas
vezes rivais, uniram-se e impuseram resistência à invasão das mentes, ao processo de
aculturação e a obliteração decorrentes da escravidão e do racismo35
e, a partir desta
conjuntura, articularam seus valores com o que havia de vivo em suas memórias. Os
referidos valores permeiam e se manifestam na memória coletiva, na cultura, na lógica
dos pensamentos e comportamentos, enfim nos modos de vida dos afrodescendentes,
expressando-se de formas diferentes entre os diversos grupos afro-brasileiros. Neste
sentido, Mintz e Price, salientam a heterogeneidade do continente africano, bem como
consideram limitada a possibilidade de atuação destes valores, observam que:
Uma herança cultural africana, largamente compartilhada pelas
pessoas importadas por uma nova colônia, terá que ser definida em
termos menos concretos, concentrando-se mais nos valores e menos
nas formas socioculturais, e até tentando identificar princípios
‘gramaticais’ inconscientes que pudessem estar subjacentes à resposta
comportamental e fossem capazes de moldá-la. (MINTZ e
PRICE,1992, p. 27 - 28)
35
Consideramos aqui “raça” como um conceito histórico sociológico utilizado muito mais para tratar
características fenotípicas que genotípicas, do qual o conceito de “raça” caiu, permanecendo, tão somente
e infelizmente o preconceito. Segundo Munanga, “[…] se cientificamente ‘raça’ é um conceito pouco
significativo, política e ideologicamente ele é muito significativo, pois funciona como uma categoria
etno-semântica, isto é, política e econômico-social de acordo com a estrutura de poder em cada sociedade
multirracial” (MUNANGA, 1990, p. 110).
54
A princípio, tais valores, diferenciais na composição da identidade afro-
brasileira, se distinguem ou mesmo se opõem a muitas das concepções e valores
ocidentais, como por exemplo, ao individualismo, à busca obcecada pela vantagem e
pelo lucro capitalista e ao consumismo desenfreado, imposto pela cultura de massas,
que ao mesmo tempo foram e são institucionalizados e estão inseridos nestes contextos.
Nesse sentido, cabe a fala de Gilberto Gil (2007), no que toca as relações de
solidariedade como princípio africano:
A predominância nesses mundos negros de uma grande diversidade de
projetos não produziu uma Torre de Babel exatamente porque não
predominou a lógica materialista de Marx, pela qual os interesses
objetivos soldariam as solidariedades de grupo ou classe. O cimento
era outro. Acredito que nossas solidariedades sempre foram uma
expressão de nossas identidades que vicejaram em uma cultura afro-
global, o que significa dizer que as representações que construímos de
nós mesmos foram mais fortes do que as condições de exploração e de
pobreza a que fomos submetidos. (GIL, 2007 p. 11).
Deste modo, percebemos que a cultura afro-brasileira é resultado da interação
dos povos da África que se encontravam no Brasil sob a condição de escravos. Assim, o
contexto da escravidão no Brasil, com suas formas de dominação, aculturação e de certo
modo negociação, atuou como elemento fundamental na construção da cultura afro-
brasileira, pois em outra situação o resultado jamais seria o mesmo. É dado destaque
neste trabalho, a alguns elementos do conjunto de valores e princípios que atuaram na
estruturação deste processo identitário. Lembramos, porém, que estes valores não atuam
ou manifestam-se isoladamente, mas em conjunto, de forma integrada, como se faz
perceber em muitos outros aspectos da vida e da visão de mundo dos afrodescendentes,
como herança dos que vieram do continente africano.
Deste modo, podemos melhor compreender a oralidade, a memória, a
corporeidade, a musicalidade, a força vital ou axé, a ancianidade, a ancestralidade, a
ludicidade, dentre outros valores do mundo afro e mais especificamente, os valores
civilizatórios afro-brasileiros.
3.1 A religiosidade
A religiosidade pode ser compreendida como um sentimento ou uma tendência
natural do homem a relacionar-se com o divino ou sobrenatural. O divino ou
sobrenatural circunscreve-se em uma lógica empírica sobre a qual ainda não existe
explicação. Daí os mitos, os ritos, as divindades e uma gama de manifestações
55
relacionadas à religiosidade. Esta dispõe de uma permeabilidade no modo de vida dos
indivíduos e da comunidade, tanto do ponto de vista objetivo quanto subjetivo, ou seja:
a religiosidade atua dentro dos grupos, muitas vezes influenciando ou determinando,
não somente a crença, os ritos e a conduta moral, como também pode determinar a
forma de se pensar e a compreensão de determinados textos, símbolos, eventos da
natureza e demais situações e ações em outros âmbitos da vida cotidiana, manifestando-
se também através de performances individuais ou coletivas, públicas ou privadas.
Tomamos como exemplo, o ato de fazer o “pelo sinal” da cruz ou o ato de se
benzer36
que são performances religiosas, tradicionais do catolicismo. Estas possuem
uma correspondente no candomblecismo adotada atualmente por alguns mestres e
capoeiristas que consiste em abaixar-se e com a mão direita tocar o chão, simbolizando
uma troca de energia vital (axé) entre o capoeirista e a Terra, em seguida toca a testa,
reverenciando o orixá de frente do capoeirista e depois a nuca, reverenciando os
ancestrais.
Esta capilaridade da religiosidade, através da qual flui na vida social
determinando pensamentos e comportamentos, está presente em muitas das culturas
africanas e também na cultura afro-brasileira. Deste modo, a religiosidade tem um papel
de destaque na formação das comunidades e da cultura afro-brasileira, pois foi em torno
da religiosidade que muitos dos povos passaram a se agrupar. Graças ao sentimento de
religiosidade, um valor compartilhado entre as comunidades africanas, que várias
instituições de relevante papel entre as comunidades afro-brasileiras foram criadas,
dentre as quais, o candomblé e outras religiões afro-brasileiras, bem como as
irmandades e ordens terceiras de negros, estas últimas impregnadas dos devocionais
católicos (ibéricos) e afro-brasileiros.
Segundo Marco Aurélio Luz, “o legado dos valores africanos que permitiu uma
continuidade transatlântica, está consubstanciado nas instituições religiosas” (LUZ,
2000. p. 32). Deste modo, lembro aqui que a religiosidade afro-brasileira é um valor
construído inerente ao discurso desta identidade. Este valor ultrapassa a já complexa
necessidade de lidar com o divino e abrange também os referenciais históricos e sociais
dos quais vem a compreensão de si, o que torna ainda mais complexo este valor, visto
que a ancestralidade, a memória, a oralidade, o axé estão intimamente ligados a esta
36
A performance que corresponde a este ato consiste em levar a mão direita na seguinte seqüência: a
testa, ao peito, ao ombro esquerdo, ao ombro direito e aos lábios, acompanhada pela evocação oral “Em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!”.
56
religiosidade. Por esta razão à religiosidade é atribuído o papel de principal valor, pois
se crê que esta possibilitou a preservação transatlântica de tantos outros princípios e
valores africanos e sua incorporação à cultura e identidade afro-brasileira.
3.2 A oralidade
O fenômeno da oralidade sempre esteve e continua presente em muitas culturas
e é responsável pela transmissão e preservação de vários conhecimentos, tradições e
modos de vida. Nas sociedades ocidentais, com o advento e a adoção da escrita
alfabética, a oralidade passou a ocupar um status secundário na transmissão do
conhecimento. Contudo, ainda encontramos diversos grupos que estão inseridos na
sociedade letrada, mas para os quais a escrita não é a principal forma de transmissão, e
sim, a oralidade. A estes grupos, chamamos de grupos de tradição oral, sem mensurar o
seu envolvimento com a escrita. Com base neste entendimento, podemos perceber
diversos entre-lugares nos quais estão situados tanto a escrita quanto a oralidade, onde
ambos estabelecem uma relação harmoniosa, como é o caso dos cordéis, estudados por
Idelette Muzart-Fonseca dos Santos (2006), as canções de gesta medievais, estudadas
por Paul Zumthor (1993) e a principal religião afro-brasileira, o candomblé, estudado
por Lisa Earl Castillo (2008).
Acrescenta Santos (2006), que a passagem dos romances e cantorias da
linguagem oral para o folheto37
escrito, permeado da tradição popular ibérica, vem
tornando-se uma prática cada vez mais frequente entre os romanceiros brasileiros.
Dentro deste diálogo entre a tradição oral e a escrita, o folheto, representante da escrita,
torna-se parte de um ciclo que oxigena a tradição oral, além de tornar-se um elemento
de divulgação da cultura popular à qual pertence. Assim, salienta a autora que:
[...] o folheto participa também dessa dinâmica cultural: entra por sua
vez no circuito que realimenta e renova do ponto de vista poético tanto
quanto narrativo, a tradição oral da cantoria e dos contos. (SANTOS,
2006, p. 66).
Lisa Earl Castillo (2008), que dedicou uma pesquisa aos entre-lugares da
oralidade e da escrita no candomblé, conclui que existe muito mais uma relação que
uma oposição entre estas duas práticas da comunicação humana e da transmissão do
37
Folheto, segundo Santos, trata-se “uma forma poética de escrita que mantém vários aspectos da
oralidade.”, ainda que tendo passado por um processo de “harmonização” que veio a apagar algumas
marcas “por demais visíveis da oralidade” (SANTOS, 2006).
57
conhecimento, neste caso, um conhecimento específico que envolve a esfera sagrada
com seus rituais, preceitos e segredos da tradição.
Ainda refletindo sobre o diálogo firmado entre a oralidade e a escrita, nota-se em
outras áreas, além da literatura, este processo de interação, como no caso exemplificado
pelo historiador David Henige, que ao utilizar-se da entrevista como instrumento de
pesquisa, e da História Oral como metodologia em comunidades tradicionalmente orais,
observou que, dentre
Os materiais que o informante consulta pode variar da Bíblia a livros
em geral ou à história local, a publicações governamentais, a recorte
de jornais, e mesmo a dissertações ou publicações de um predecessor
recente. O historiador pode ficar perplexo pela percepção
inconfundível de que a tradição oral nem sempre é apenas oral.
Entretanto esta situação está se tornando cada vez mais freqüente, à
medida que a proliferação do trabalho nas sociedades orais se combina
com o índice de alfabetização. (HENIGE apud. FERREIRA e
AMADO, 1996, p. xxi).
Pensemos então no desenvolvimento da escrita sistematizada no mundo
ocidental: Os gregos criaram o primeiro sistema linguístico que dava conta dos três
requisitos para uma escrita eficaz, que, segundo Havelock38
eram: o apanhado dos sons
linguísticos deve ser exaustivo; a quantidade de formas (letras) deve estar entre 20 e 30
formas diferentes, para não sobrecarregar a memória; não permitir ambiguidades, ou
seja, cada forma deve se referir a um determinado fonema. Deste modo, podemos
observar que o advento, e consequente uso gradual da escrita alfabética, sistematizada
pelos gregos e por outros povos, marcou profundamente, não apenas a forma de
comunicação, a organização e a expressão do pensamento, como também a forma de
preservação e organização da memória. Contudo, percebemos que está na oralidade, (na
voz, em se tratando do objeto concreto da oralidade) por sua vez, a origem de todo esse
processo.
O continente africano, cuja cultura influencia a nossa cultura nacional, é
considerado por muitos autores um dos berços da escrita39
(SERRANO e WALDMAN,
2008). No entanto, houve a adoção da oralidade por grande parte dos povos africanos,
pois esta se constituía um meio de comunicação eficiente e de tal modo integrado aos
38
Erick Havelock, teórico canadense nascido em Londres, em 1922, que dedicou parte da sua
vida acadêmica ao estudo da comunicação na Grécia antiga. 39
Sobre este assunto, Serrano e Waldman citam os hieróglifos egípcios e sistemas como o
meroídico, o núbio antigo, o copta, o tifinagh, o ge’ez e o bamun; os ideogramas estilizados dos
povos ejagham e outras escritas vindas de outros continente, como o uso da escrita árabe, com
vistas à leitura do Alcorão, pelos africanos islamizados.
58
valores e à cosmovisão destes povos, que não se poderia separar a tradição oral sem o
prejuízo desta cosmovisão. Vale lembrar que em muitas sociedades africanas as
palavras têm poder, que ditas corretamente agem no equilíbrio e harmonia, tanto no
âmbito da vida humana, quanto nas forças da natureza.
A voz humana é o veículo da oralidade, pois na oralidade, à voz somam-se
elementos como a memória, a narrativa, a gestualidade, a corporeidade, a ludicidade, a
própria força da energia vital, conhecida como “axé” e uma gama de valores
civilizatórios africanos e afro-brasileiros. Zumthor compreende a voz como um
fenômeno poderoso o qual diversos autores já assinalaram sua capacidade de determinar
o plano físico, psíquico e sociocultural (ZUMTHOR, 1993). E a palavra, detentora de
força, tanto no sentido de autoridade e poder, quanto relacionada com o mundo
religioso, trata da força vital e deve ser proferida com respeito e responsabilidade,
principalmente em se tratando de alguns grupos e/ou espaços de tradição africana e
afrodescendente.
Ainda hoje encontramos diversos grupos e comunidades cuja tradição oral
constitui parte importante do seu patrimônio cultural. Grupos localizados tanto na zona
rural quanto na zona urbana, nas diversas regiões do Brasil e em várias partes do mundo
são encontradas comunidades tradicionais que têm em comum a tradição de assegurar
através da oralidade a transmissão dos seus hábitos, trabalhos, valores, modos de vida e
sua História, de modo que as tradições orais são meios nos quais se expressam
identidades e culturas de grupos.
No âmbito das tradições afro-brasileiras, sobre o uso da oralidade, Pedro Abib
destaca que “O samba, tal como a capoeira em suas formas tradicionais, é até hoje
expressão viva da oralidade, enquanto forma principal de transmissão de saberes.”
(ABIB, 2006). Ainda salienta o referido autor a independência e eficácia da oralidade
como processo de transmissão do conhecimento ante os meios formais
institucionalizados de educação, e considera o meio de transmissão oral um meio eficaz,
capaz de regular sua produção e transmissão, que tem por base a memória e a
ancestralidade, elementos de grande relevância nas culturas tradicionais afro-brasileiras,
alguns dos quais tratamos neste capítulo.
Deste modo, compreendemos então a oralidade não somente enquanto meio de
transmissão de conhecimento, mas também como um valor portador de princípios que
expressam o modo de vida afro-brasileiro.
59
3.3 A memória
A memória por ser fruto de uma experiência com o tempo, relaciona-se
diretamente com a noção de temporalidade e possui três funções básicas: adquirir
informações, armazenar estas informações e evocar, rememorar ou lembrar estas
informações. Estas são formas de manter o mecanismo da memória sempre em
funcionamento, contudo, o que justifica todo o processo que compõe esta faculdade é a
sua capacidade de localizar o ser humano em um tempo-espaço dando sentido à sua
biografia e existência.
Somente uma parte da experiência humana é retida e sedimentada na consciência
de modo a tornar possível ser acionada pela memória como algo reconhecível, e dar
sentido à sua história de vida individual e coletiva. Desse modo, quando tais
experiências são vividas e compartilhadas entre uma comunidade, e esta experiência é
reportada a um acervo de conhecimentos comuns, que venham a sedimentar-se e formar
a memória coletiva, temos a ideia de tradição, que em verdade é construída a partir de
processo semelhante, somente que deste ponto ocorrem as chamadas manifestações
tradicionais.
Considerando o visto, compreendemos que a oralidade, como um valor
civilizatório afro-brasileiro, não age sozinha, mas se manifesta em conjunto com outros
fenômenos igualmente relacionados à questão da formação da identidade afro-brasileira,
dentre os quais, a memória.
A memória, diz Walter Benjamin (1994), “é a mais épica de todas as
faculdades”, é a faculdade acionada na construção das narrativas, de onde vêm a
História, os mitos, os contos e as lendas, valiosos elementos culturais. Considerada por
este autor como “a musa da narrativa”, da qual também depende a transmissão oral do
conhecimento, a preservação, a recriação da tradição, fatores fundamentais da formação
da cultura afro-brasileira.
Pelo que acabamos de ver, já é possível perceber que a oralidade e a memória
são mais que um meio de transmissão de conhecimento, estas se apresentam não
somente como meios de transmissão e preservação da cultura, como também um
elemento de formação e reformulação da identidade, haja vista ocuparem lugar de
destaque entre os valores civilizatórios afro-brasileiros.
Saliento aqui que, o que para o mundo ocidental é compreendido apenas como
uma faculdade, na cultura africana e afro-brasileira, tanto a oralidade quanto a memória
ganham sentido de valor civilizatório, conquanto atuam nestes grupos como elementos
60
pertencentes a uma outra dimensão da realidade, na qual se localizam na realidade
subjetiva e intersubjetiva, as quais envolvem o universo místico, ancestral e de forças
que justificam estas faculdades como valores em seus processos existenciais, históricos,
intelectuais sociais e culturais e com a realidade objetiva.
Outro ponto a ser ressaltado na questão da memória é a relação lembrança-
esquecimento que participou do processo de criação da identidade cultural afro-
brasileira. O esquecimento era provocado por limitação de ordem material, física ou
epistemológica, ou mesmo devido à própria estrutura escravista que impunha a
vigilância de feitores e penalidades em forma de castigos e torturas a quem promovesse
manifestações da sua cultura. Esta forma de promover o esquecimento comumente tinha
por finalidade coibir e destituir a memória dos negros que aqui estavam sob a condição
de escravos com vistas a aculturá-los, enfraquecendo-os culturalmente de modo que
permitisse maior dominação e controle. Contudo, muitos grupos de negros em busca de
criar alternativas que amenizassem a perda de elementos, preservassem elementos
característicos da sua cultura e identidade de grupo e ao mesmo tempo criassem um
modo de vida com o qual se identificassem a partir desses elementos remanescentes,
oriundos da memória e, em muito da tradição oral, deu-se o processo de recriação e
criação de uma nova cultura. Neste sentido, nota-se que a cultura afro-brasileira só
passou a se constituir como tal a partir do momento em que diversas culturas vindas da
África para o Brasil passaram a interagir e a compartilhar da cultura que se formava
(MINTZ e PRICE, 2003). Neste sentido, vale destacar a fala de Roach, lembrada por
Leda Maria Martins, que diz:
Na vida de uma comunidade, o processo de substituição não começa
ou termina, mas sim, continua quando lacunas reais ou pressentidas
ocorrem na rede de relações que constitui o tecido local. Nas
cavidades criadas pelas perdas, seja pela morte, seja por outras formas
de vacância, penso que sobreviventes tentam criar alternativas
satisfatórias. (ROSCH, apud. MARTINS, 2002, p. 71)
3.4 A ancianidade
De acordo com Luz (2000), entre os grupos africanos que foram trazidos para
terras brasileiras durante o período escravista, a voz dos mais velhos mostra-se como
uma expressão de autoridade, pois os mais velhos são os que mais viveram e por isso
lhes são atribuídos maiores conhecimentos das coisas da vida, dentre as quais da
natureza e do sobrenatural. Lembramos aqui que em muitas sociedades africanas a vida
61
religiosa e a vida cotidiana imbricam-se de modo que em pouco ou nada se distinguem
uma da outra.
A longevidade, segundo Luz (2000), na maior parte das culturas tradicionais
africanas, é prova de que a pessoa tem agido de forma correta consigo mesma, com a
comunidade, com a natureza e com o sagrado, no que tange a sua saúde física, moral e
psicológica, pois passou por diversos processos iniciáticos que lhe permitiram adquirir
maior sabedoria. Neste sentido, a própria longevidade é fato que corrobora a sabedoria
no viver do ancião.
Ser ancião é um status que confere a este poder entre as pessoas da comunidade.
Marco Aurélio Luz vai buscar na construção do termo nagô que designa “pessoa forte”
o sentido ao qual se refere o termo: “O conceito nagô de pessoa forte, com grande
poder, é ‘agbara’, que quer dizer ‘agba’ = velho, ancião, e ‘ara’= corpo.” (LUZ, 2000,
p.93). Sobre a ancianidade entre comunidades africanas, Marco Aurélio Luz afirma:
Quanto mais velho institucionalmente o indivíduo, isto é, mais tempo
e ocasiões teve para incorporar axé e sabedoria através dos processos
iniciáticos, maior saber e poder deterá nas sociedades africanas (LUZ,
2000, p. 93)
Levando para o mundo da capoeira, afirmam os capoeiristas que quanto mais
tempo de capoeiragem tem o mestre, maior será seu conhecimento e prática dos
fundamentos, com isso maior sua autoridade no mundo da capoeira, tanto no âmbito da
roda de capoeira quanto na “roda da vida”, sobre a qual falaremos mais adiante ao
tratarmos do princípio da “força vital” e da “circularidade”. Percebemos então a relação
da ancianidade, valor que explica em muitos casos a reverência que se tem aos mais
velhos, atribuindo-lhes a estes sabedoria e conhecimento, supostamente acumulados por
suas experiências ao longo da vida. No mundo da capoeira este valor se faz presente
quando, semelhantemente ao status do ancião, por alusão, pode ser atribuído status aos
mestres de capoeiras mais velhos.
Uma manifestação deste princípio no mundo da capoeira se faz notar através da
relação de respeito e reverência entre o discípulo ou aluno e seu mestre. As aulas ou
treinos e as rodas, bem como as conversas informais, em contexto relacionado à
capoeira, são momentos nos quais nota-se que a figura do mestre é constituída desta
autoridade. Estes são momentos fundamentais na formação prática, teórica e filosófica
do capoeirista. Essa autoridade do mestre vem da compreensão incorporada do princípio
em questão. Neste caso, vale destacar que o mestre é aquele “mais velho
62
institucionalmente40
”, pois hoje é comum pessoas de idade mais avançada que o mestre
praticarem capoeira como alunos de um mestre que é mais jovem em termos de idade.
Um outro valor com o qual se relaciona o princípio da ancianidade é o princípio
da expansão da linhagem. A este princípio também se engendra a questão do casamento
poligâmico, comum em muitos grupos africanos, mas o qual não houve continuidade na
cultura afro-brasileira. Do mesmo modo que em algumas comunidades africanas, é de
importância vital que o homem tenha uma descendência numerosa, com vistas a garantir
a continuidade da sua linhagem, no que compreende sua memória e suas tradições. O
mestre de capoeira pretende através dos seus discípulos perpetuar sua filosofia, sendo
lembrado pelas novas gerações de capoeiristas. Deste modo, a expansão da linhagem
também diz respeito à ancestralidade, pois serão os discípulos que manterão viva a
memória do mestre através dos ensinamentos e homenagens após a sua morte.
3.5 A ancestralidade
A ancestralidade ocupa lugar privilegiado na cosmogonia africana e afro-
brasileira, pois de acordo com Marco Aurélio Luz, sedimenta-se neste valor grande
parte do conhecimento sobre o axé e a origem do seu grupo. Interliga-se a outros valores
dentre os quais, a religiosidade, a memória e a oralidade, fundamentais para que ocorra
a transmissão do conhecimento e da cultura, bem como as criações e recriações das
tradições afro-brasileiras.
Ao mais velho cabe a missão de transmitir aos mais novos sua sabedoria e sua
experiência de vida, também aos primeiros é confiada a missão de manter viva a
memória dos ancestrais. O ancestral é uma pessoa da família que deu origem ao grupo,
este antepassado, de destacada importância para o grupo, mesmo depois da sua
passagem para o Orum41
, ainda participa da vida do grupo ao ser consultado nos jogos
divinatórios e em outros rituais específicos. À ideia de ancestral, liga-se o
autoconhecimento, à ideia de origem, deste modo, à identidade, ao passado e ao nosso
futuro.
40
Mintz e Price, definem instituição como “qualquer interação social regular ou ordeira que adquira um
caráter normativo, e por conseguinte, possa ser empregada para atender a necessidades reiteradas.” (2000,
p. 43). No parágrafo anterior, a instituição a qual se refere Marco Aurélio Luz, é a instituição religiosa,
que no contexto africano está imbricado com muitas das suas dimensões (LUZ, 2000, p. 93). 41
Orum pode ser compreendido como o mundo dos mortos ou de espíritos ancestrais, os egunguns.
.
63
3.6 O axé
Podemos entender o axé ou “princípio da força vital” se relacionado diretamente
com oralidade, à ancestralidade e à circularidade a partir do que observa Luz (2000),
com base no pensamento do Mestre Didi (Deoscoredes M. dos Santos).
Axé é um conceito que exprime a idéia de forças circulantes capazes
de engendrar a criação e a expansão da vida. Ele implica na idéia de
restituição que se concretiza através do conceito de ebó, isto é,
oferenda ou sacrifício (Luz, 2000, p.32)
A força vital é conhecida entre os povos de origem Banto como “muntu” e “axé”
entre os Nagô e Yorubás. O axé, termo mais conhecido no Brasil, refere-se ao princípio
da força vital que rege a vida em suas diversas manifestações. É a força que vem do
mundo sobrenatural e permeia todas as formas de vida e tudo o que alimenta a vida.
Deste modo, a terra, o fogo, o metal tem seu axé, o homem, a mulher, a criança também
tem seu axé, a palavra, a dança e a música também. (LUZ, 2000)
É o axé que permite a existência. Este se relaciona à oralidade ao investir a
palavra de vida e poder, conforme observamos nas palavras de Antônio Risério:
Traduzida literalmente a expressão significa: a enunciação que faz
(alguma coisa) acontecer. Ou numa tradução mais poética, a fala que
faz. Em yoruba, ‘afoxé’ significa encantamento, palavra eficaz,
formula mágica. (RISÉRIO, 2004).
3.7 A circularidade
O axé é compreendido como uma energia que funciona de forma dinâmica, ou
seja, ele ganha seu sentido pleno quando em circulação, deste modo a circularidade é
um princípio que permite a fluidez da força vital e que equilibra a vida. De acordo com
Leda Martins (2002) o movimento circular do axé estabelece o circuito entre “o tempo,
a ancestralidade e a morte” (MARTINS, 2002, p. 84). É o que faz uma geração celebrar
seus ancestrais e ter consciência de que será ancestral das gerações vindouras.
O círculo é percebido como uma formação espontânea de organização dos
indivíduos no espaço, disto vem a roda de capoeira, de samba, de conversa. É uma
forma que propõe que todos se vejam e interajam.
A circularidade permite a transformação das forças e o retorno destas. Também
pode ser percebida nos movimentos das danças, no corpo inteiro, mas, sobretudo nos
ombros e no movimento dos braços em espiral. Na capoeira vemos a circularidade na
“volta no mundo”, quando o capoeirista caminha em círculo dentro da roda
64
cumprimentando seus participantes, no aú42
, dentre outros golpes que aludem a
circularidade.
3.8 A musicalidade
Lembrando que o próprio corpo humano é por si um instrumento musical, daí o
pulsar do coração, as palmas, os assobios, o estalar dos dedos, percebemos que a
musicalidade é um valor intrinsecamente humano que varia de acordo com o
relacionamento do grupo com a música, ou seja, do modo como a música é inserida na
vida de dada cultura. Todas as culturas têm entre suas manifestações um repertório de
músicas executadas em ocasiões especiais, relacionadas aos eventos religiosos e sociais,
ou ao menos cantaroladas em um momento corriqueiro.
Entre muitos dos grupos tradicionais africanos e seus descendentes não poderia
ser diferente. Nestas culturas a música estabelece relação sobremodo com a
corporeidade e com a circulação da força vital, o axé. Segundo Azoilda Loretto
Trindade (2005), esta musicalidade é caracterizada principalmente por ser de tradição
oral, pela presença marcante do canto, por estar relacionada aos acontecimentos da vida
cotidiana e por ser notadamente uma musicalidade associada à corporeidade, ao
movimento, pois o próprio ritmo da música impele o corpo a uma performance.
A musicalidade é considerada por Trindade (2005) como um valor afro-
brasileiro que está em permanente interação, justificando que a presença da música e da
movimentação do corpo são fundamentais em muitas manifestações dessa cultura, e se
estabelecem como condições sem as quais não pode existir, em seu sentido pleno, as
comemorações da vida social, os cultos religiosos do candomblé ou a roda de capoeira.
Os valores culturais afro-brasileiros fazem parte não somente do mundo da
capoeira, mas de inúmeras outras manifestações culturais afro-brasileiras. Percebemos
que estes valores não se encontram ou atuam isoladamente uns dos outros, mas
perpassam-se e interagem uns com os outros. Estes valores fazem-se presentes em um
sem número de culturas, contudo seus símbolos e significações são estabelecidos de
modos diferentes em decorrência das marcas históricas, sociais e da formação da
42
O aú é um dos movimentos básicos e mais conhecidos da capoeira e pode ser realizado na entrada no
jogo propriamente dito, com na “saída de aú” ou combinado com outros golpes. O aú consiste realizar um
meio giro lateral com todo o corpo, apoiando o corpo com as mãos no chão e girar com as pernas para
cima sobre o corpo, caindo com os pés no chão. Na modalidade angola, as pernas no ato do giro
encontram-se flexionadas, enquanto na regional as pernas ficam retas.
65
própria cultura que envolve uma série de construções de ordem simbólica, afetiva e
mitológica que representam os indivíduos e fazem com que estes se reconheçam.
No universo da cultura afro-brasileira, os contextos da diáspora, da escravidão,
das desigualdades e do racismo presentes, somam-se aos valores civilizatórios de
origem africana que atuam como referência na formação das identidades construídas
pelos africanos e afrodescendentes.
CAPITULO 4
MESTRES, CAPOEIRISTAS E CANTIGAS DE CAPOEIRA
EM SALVADOR
Neste capítulo apresentamos a metodologia do trabalho de pesquisa e a análise
das cantigas de capoeira apresentadas em um quadro de categorias e subcategorias,
elaborado com base na noção de representação social. Realizamos, fundamentalmente,
uma abordagem qualitativa de modo a apreender o que as cantigas de capoeira revelam
sobre a identidade afro-brasileira. Foram utilizados como instrumentos de coleta de
dados a observação participante e entrevistas semi-estruturadas. Participaram da
pesquisa seis mestres de capoeira e coletamos cerca de oitenta cantigas. Apresentamos
os perfis dos capoeiristas entrevistados e algumas impressões colhidas nas visitas e
participações em aulas de capoeira. Além disso, verificamos nas cantigas a integração e
a expressão da cosmovisão, dos princípios e valores afro-brasileiros. Deste modo,
através de categorias que estabelecemos, analisamos trechos das cantigas, confrontando
e apresentando mais cantigas do que se analisássemos uma cantiga por categoria. De
qualquer forma, trazemos nos anexos as cantigas na íntegra, tanto as que utilizamos
como exemplos quanto as que nos forneceram parâmetros para a análise, contudo não
foram citadas no texto.
No que diz respeito à escolha em trabalhar com a teoria e a metodologia das
representações sociais, como embasamento teórico-metodológico para a análise das
cantigas de roda de capoeira, consideramos o fato de que esta teoria considera que o
conhecimento da realidade se constrói a partir das vivências diárias, envolvendo, assim,
o estudo do senso comum. Além disso, oferece-nos a possibilidade de trabalhar com as
cantigas de capoeira como elementos como construção e expressão das representações
66
elaboradas pelos próprios capoeiristas sobre si mesmos, a partir das suas experiências
como sujeitos sociais inseridos em dado contexto. Neste sentido, podemos observar que
as “representações sociais são uma estratégia desenvolvida por atores sociais para
enfrentar a diversidade e a mobilidade de um mundo que, embora pertença a todos,
transcende a cada um individualmente” (JOVCHELOVITCH, 1994, p. 81) ou ainda
que:
Tal privilegiamento (em estudar o senso comum) pressupõe uma
ruptura com as vertentes clássicas das teorias do conhecimento
anunciando importantes mudanças no posicionamento quanto ao
estatuto da objetividade e da busca da verdade. Trata-se ao nosso ver,
de inserir o estudo das representações sociais entre os esforços de
deconstrução da retórica da verdade, (IBANEZ, 1991), componente
intrínseco da Revolução Científica que inaugura a modernidade nas
sociedades ocidentais (SPINK, 1994, p. 118 - 119).
Trabalhamos com a perspectiva fornecida pela teoria das representações sociais,
que nos permite melhor compreender e analisar aspectos da construção social da
realidade do capoeirista, mais precisamente do sentido da identidade cultural afro-
brasileira formulada no universo da capoeira, e da compreensão que os próprios sujeitos
capoeiristas elaboram sobre si mesmos e sobre a capoeira. Assim, a metodologia
fornecida pela teoria das representações sociais contempla as necessidades da pesquisa,
que procura pensar nas cantigas de capoeira, salientando que estas são pensadas tanto
como produção dos capoeiristas, quanto como fonte de informação sobre estes. Deste
modo, para fins do nosso estudo, a noção de representação social tanto como
metodologia quanto teoria, mostra-se eficiente ao ser aproximada das concepções dos
Estudos.
4.1. A observação direta
As observações se iniciaram em novembro de 2009 e se encerraram em abril de
2011, tendo maior concentração e assiduidade a partir de 2010, com frequência mensal.
Cada observação durava o tempo da roda ou treino, tempo que não é fixo, algo em torno
de duas horas. As observações aconteceram em diversos espaços, pois buscamos
mestres de capoeiras de perfis diferentes, logo, que ocupam espaços distintos. As turmas
são formadas por alunos de faixas etárias diferentes e com objetivos diferentes, do
mesmo modo os mestres possuem diferentes formas de ensinar a parte musical da
capoeira. Observamos aulas realizadas nos pátios da Universidade Federal da Bahia, no
Terreiro de Candomblé Awzizii Junçara, em associações e academias. Nestas aulas foi
67
possível perceber que a frequência de música, instrumentos musicais e canto nas aulas
de capoeira, varia conforme o planejamento do mestre ou, no caso da Federação
Internacional de Capoeira Angola (FICA), conforme dias e horários previstos, e no caso
do Mestre Pelé da Bomba, conforme a solicitação do aluno. Isto porque as aulas de
capoeira do Mestre Pelé da Bomba ocorrem no Pelourinho, e tem um grande fluxo de
turistas, que, muitas vezes, reorientam o planejamento das aulas do referido mestre.
A observação esteve centrada nas letras das cantigas, nos toques e na
participação dos componentes da roda. Foi observado que existem cantigas específicas
dos grupos, contudo os refrões e as louvações são muitas vezes conhecidos, adaptados
de outras cantigas de capoeira. Também foi observado que as sequencias das cantigas
são mantidas durante as rodas, mas nem todas encerram com o samba de roda abrindo a
participação dos observadores. Na roda de capoeira, o jogo inicia-se com a execução da
ladainha, que é um canto de ritmo lento. Nem sempre é cantada, podendo ser em
algumas rodas apenas o toque do berimbau. Esta é tocada antes do jogo propriamente
dito. Na música vocal quando executada na roda, é a hora de render homenagens aos
mestres e a ancestralidade negra, rememorar a história da origem afro-brasileira, a terra
dos antepassados, como indica a cantiga de Mestre Burguês, transcrita a seguir:
Negro vinha de Luanda
Não sabia qual era o seu destino
Saudade das suas mulheres
Da sua terra e dos seus filhos
Da terra onde há liberdade
Era um nascer de um novo dia
Lá não existia escravidão
E o negro não sofria
Vai, vai, vai pra Luanda
Vem, vem, vem de a Luanda/ Mestre Burguês
(in. KUBOHARA, 2009. p. 74).
Destaco aqui que normalmente as cantigas de capoeira que se referem às terras
africanas, evocam a ancestralidade, a terra dos ancestrais e como regra, é cantada como
um local idealizado, onde não havia sofrimento, guerras, escravidão, nem necessidades.
As chulas são os cantos que se seguem após a ladainha e a louvação, e, segundo
Biancardi (2006), reporta a elementos culturais e a contextos históricos, regionais ou
locais, enquanto as quadras, executadas nas rodas de capoeira regional, como o próprio
nome diz, são cantos formados por quatro versos rimados, executados após as chulas e
seguido pelos corridos. Estes últimos, os corridos, são canções de ritmo acelerado e
como as quadras, também cantadas com coro. Podem ter como tema a narrativa de fatos
68
da vida cotidiana como podem trazer em sua letra uma intenção posicionada e crítica
acerca da História do negro no Brasil, como na letra transcrita a seguir: Onde está a
liberdade?
Onde está a liberdade?
Se a algema não se quebrou
O negro quer felicidade
O negro também quer ser doutor
Princesa Isabel, Princesa Isabel
Liberdade do negro só está no papel
Princesa Isabel, Princesa Isabel
Liberdade do negro só está no papel
(KUBOHARA, 2009. p. 160)
4.2 As entrevistas e os sujeitos da pesquisa (capoeiristas)
Com a finalidade de melhor compreender os aspectos relacionados ao universo
da capoeira, e o significado de suas cantigas, tomamos por base entrevistas realizadas
com seis mestres/professores de capoeira de Salvador. Por um lado, estes mestres
apresentam perfis distintos, no que diz respeito aos objetivos do grupo do qual fazem
parte, quanto à localização dos espaços onde ocorrem as aulas, o público (alunos) que
atingem, faixa etária, etc. Por outro lado, convergem em relação ao sentido que, em
geral, atribuem à capoeira, à expressão da identidade cultural afro-brasileira, às
representações sociais que constroem sobre si, como sujeitos da cultura afro-brasileira, e
ao uso que fazem das cantigas de capoeira como forma de expressão de ideias e
sentimentos.
Os seis mestres entrevistados atuam na cidade de Salvador, no Centro Histórico
de Salvador (Pelourinho), na Avenida Carlos Gomes (Centro), nos bairros da
Federação, da Cidade Nova, de Cosme de Farias e da Massaranduba. Todos os
entrevistados são do sexo masculino, com idades entre 35 e 77 anos, com média de 30
anos na prática da capoeira, com iniciação na infância. Exceto mestre Marcelo de João
Pequeno que foi iniciado aos 30 anos.
O Mestre Dnei Gingarte (Elinei Jorge Santa Rosa) é discípulo do Mestre Um por
Um. Iniciou na capoeira aos sete anos, jogando capoeira de rua. Atualmente, com 28
anos de capoeira, atua há cinco como mestre no bairro da Cidade Nova. Neste bairro,
fundou a Associação Gingarte Cultural de Capoeira Angoregional (AGICUCAR) da
qual é presidente. Mestre Dinei também desenvolve trabalho como arte-educador na
Escola Municipal da Cidade Nova.
69
A entrevista com o Mestre Dinei foi realizada na sede da AGICUCAR, depois
de alguns dias de observação das aulas de capoeira ministradas neste espaço, duas horas
antes do início dos treinos que ocorrem as segundas e quartas-feiras. Foi possível
observar que a maior parte dos alunos é formada por crianças na faixa de seis a 14 anos,
com a presença de poucos adultos com idades entre 30 e 40 anos. Apesar das diversas
conversas sobre a capoeira, as cantigas e a didática dos mestres, firmadas durante as
visitas anteriores, este mestre se mostrou pouco a vontade durante o momento da
entrevista. Talvez por saber que estava sendo gravado em áudio. Foi observado que
houve, talvez por esse motivo, grande preocupação, não somente com a escolha das
palavras, como também com as pronúncias destas, e seus gestos pareciam mais contidos
que o habitual.
O Mestre Valdec (Valdec Sidnei Santos Cirne) tem 38 anos de idade e 29 de
capoeira e aos 18 já dava aulas de capoeira como treinel43
. Lembra-se de ter sido
considerado como “o mais novo dos velhos mestres e o mais velho dos novos”. Iniciou
na capoeira junto ao Grupo Filhos de Angola, em 1982, como aluno do Mestre Roberval
e do Mestre Laércio, aos nove anos de idade. Comentou na entrevista que as aulas
aconteciam no Colégio João Pedro, na Avenida Bonocô. Em 27 de Outubro de 1997
fundou o Grupo Bantu de Capoeira Angola, atualmente com dois núcleos em Salvador,
localizados no Pelourinho e em Cosme de Farias; dois núcleos na Alemanha, em Berlim
e Mainz; outro núcleo na Colômbia, em Bogotá, e um nos Estados Unidos, no Estado do
Michigan. O Mestre Valdec não tem a capoeira como única atividade pois também é
professor, trabalhando na Associação de Ensino Social e Profissionalizante (ESPRO) e
no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) e tem também uma
microempresa de organização de eventos e consultoria. Atualmente termina o Curso de
Gestão de Eventos na Unifacs.
A entrevista foi realizada na sede da Associação Cultural de Preservação do
Patrimônio Bantu (ACBANTU), localizada no Centro Histórico de Salvador,
Pelourinho. A entrevista correu bem. O Mestre Valdec estava seguro, como esteve em
todas as vezes que nos encontramos. Marcou seu posicionamento como um mestre
tradicionalista, em suas próprias palavras:
43
Treinel é a primeira graduação da capoeira angola. Designa aluno mais experiente, que domina em
nível básico os fundamentos da capoeira, os movimentos, os instrumentos e o canto da capoeira angola,
de modo que este aluno já pode dar aulas e assumir turma como treinel, mas ainda ligado ao nome do
mestre e sua academia.
70
Nós temos alguns segmentos de capoeira angola aqui na Bahia. Isso é
bem segmentado. Então é assim, tem o segmento do qual eu faço parte
de capoeira angola, que é um pouco mais tradicionalista, então a gente
procura não só manter vivas não só as canções antigas, como também
compor em cima da tradição. […] E tem segmentos da capoeira
angola que são mais ligados às questões raciais, que eu até sou um
pouco ligado, mas que falam mais de religiosidade, falam mais de
questões atuais também, política etc. E tem um segmento que posso
falar de todo mundo, regional, contemporâneo, o que for que você
possa chamar, que eles fazem música aleatoriamente assim, que tenha
ritmo, que tenha alguma coisa a ver, eles pegam um assunto que tenha
a ver com o interesse, que pode ser uma música de axé e pode ser uma
música de capoeira. (Mestre Valdec, em entrevista concedida para a
pesquisa)
Mestre Marcelo de João Pequeno (Marcelo Maciel Cabral) iniciou na capoeira
aos trinta anos e teve convivência intensa com o mestre João Pequeno de Pastinha, seu
mestre. Hoje tem 56 anos de idade e 26 anos de capoeira. Seu grupo não tem nome, é
formado em sua maioria por alunos da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
graduandos, mestrandos e graduados. O espaço onde ocorrem os treinos é cedido pela
UFBA, no pátio das faculdades de Arquitetura, Farmácia e Biologia, e as aulas ocorrem
de segunda a sexta-feira.
Em suas aulas não faz uso de aparelho de reprodução de áudio. Normalmente, o
treino segue sem música. Apenas o treino dos movimentos e suas correções. Ao término
desta parte, o mestre arma44
o berimbau, e executa alguns toques da capoeira angola
enquanto os alunos em dupla treinam os movimentos. Suas cantigas são de feição
subjetiva e partem de experiências de vida, dramas pessoais e da observação do
contexto da roda. Nas palavras do mestre:
A pessoa tem que fazer suas próprias ladainhas, porque ladainha é
uma coisa muito particular. É uma coisa muito da pessoa, subjetiva
como dizem, não é? É muito de cada um mesmo. Você pode até cantar
a música de alguém e tal, até para prestar uma homenagem e tudo,
mas eu não gosto não, eu mesmo gosto de ter minhas ladainhas. Eu
vou cantando as minhas ladainhas. (Mestre Marcelo de João Pequeno
em entrevista concedida à pesquisa)
As cantigas são passadas nas conversas entre mestre e aluno, antes ou após as
aulas, nas rodas que fazem ou visitam junto como o grupo. Este mestre marca também
que é preciso de uma boa bateria e uma boa música para “se fazer um jogo realmente
bonito”, pois os jogadores que estão na roda buscam sincronia com a música que está
sendo tocada.
44
O mestre Marcelo costuma levar o berimbau desmontado em suas partes, cabaça, biriba e arame e o arma antes de tocá-lo, desmontando-o novamente antes de sair do local.
71
Mestre Valmir Damasceno, iniciou na capoeira com o Grupo de Capoeira
Angola Pelourinho, como discípulo do Mestre Moraes. Atualmente, aos 45 anos de
idade e 29 de capoeira, é mestre da Fundação Internacional Capoeira Angola - FICA,
que tem núcleos em diversos países. Em Salvador, o local dos treinos está localizado na
Avenida Carlos Gomes, no Centro da cidade, onde realizamos a visita e a entrevista. O
corpo de alunos deste mestre é formado por adultos. Considerando que os horários das
aulas em sua maioria se concentram à noite, entre as 19h00 e 22h00 horas, e a
localização da Fundação, não favorecem a presença de crianças. As cantigas que são
cantadas em Salvador por esse grupo são também cantadas nos outros núcleos no
exterior. A Federação edita cadernos com suas cantigas, sempre em português.
No momento da entrevista o mestre Valmir tratava as biribas45
que seriam
usadas na confecção de berimbaus. Perguntei se preferiria remarcar a entrevista, mas ele
disse que não se incomodava. Embora estivesse com esta ocupação, o mestre Valmir foi
muito atencioso e, muitas vezes, deixava de lado a faca e a biriba de lado para
gesticular, ampliando a dimensão do que era falado. O mestre Valmir, embora tenha
diversos instrumentos de capoeira na sede da Fundação, prefere na hora do treino, dos
movimentos, fazer uso do aparelho de reprodução de áudio, um mp3, no qual tem
gravado tanto cantigas tradicionais dos grandes mestres da capoeira angola, quanto as
cantigas criadas pelo grupo da Federação. As aulas com os instrumentos são realizadas
segundo mestre Valmir, entre duas a três vezes por semana, ocupando uma parte da
aula. Faz questão que a disposição dos instrumentos esteja na mesma organização das
rodas organizadas pela FICA.
Mestre Pelé da Bomba, conforme suas próprias palavras, “apresentando a mim
mesmo: Eu me chamo Natalício Neves da Silva, eu nasci em 1934, conhecido hoje em
dia dentro da roda da capoeira como Mestre Pelé da Bomba.” (Mestre Pelé da Bomba
em entrevista concedida à pesquisa). Iniciou na capoeira por volta dos nove anos de
idade como aluno do mestre Bugalho, nas aulas que aconteciam “na rampa do Mercado
Modelo. O Mercado Modelo velho, não o novo. Antes de incendiar” (Trecho da
entrevista do Mestre Pelé da Bomba concedida durante a pesquisa). Seu nome de
capoeira vem da profissão que exerceu até ser aposentado, bombeiro. Como bombeiro e
capoeirista, chegou a ensinar a capoeira a seus colegas de quartel e lembra-se do dia em
que ajudou a combater a um dos incêndios que ocorreu no Mercado Modelo, local onde
45
Biriba é a madeira mais indicada para fazer berimbaus, pois se permite arquear sem quebrar com a
pressão do arame e resiste melhor ao tempo sem rachar.
72
aprendeu a jogar capoeira. Hoje aos 77 anos e faltando pouco para completar 70 anos de
capoeira é considerado um dos mestres mais antigos da Bahia. Possui uma academia no
Forte da Capoeira, no bairro de Santo Antônio Além do Carmo e uma que funciona no
Pelourinho, no primeiro andar da sua loja de produtos e lembranças da Bahia. O quadro
de alunos do Mestre Pelé é bem diversificado, principalmente na academia que funciona
no Pelourinho. Ele tem turmas formadas por crianças que moram no entorno, turmas
formadas por adultos que vivem em Salvador, e turmas formadas por turistas.
Mestre Pelé da Bomba não faz uso de CD ou outro tipo de aparelho de
reprodução de áudio em suas aulas. A aula de movimentos é orientada enfatizando os
golpes e contragolpes, as defesas e o gingado, bem como o nome de cada um dos
movimentos. Nas aulas de instrumento, que ocorrem separadamente às aulas de
movimento, o mestre ensina os toques e as cantigas através da demonstração do mestre
e repetição do aluno. As cantigas são passadas de modo semelhante, quando o mestre
canta e a turma entoa o coro, e com o passar do tempo os alunos mais experientes
podem cantar as cantigas e tocar o gunga.
Bambam Capoeira é como é conhecido Idelvan Barbosa da Silva no mundo da
capoeira. Nascido no Piauí tem 38 anos de idade e 30 de capoeira. O Mestre Bambam
Capoeira é responsável pelo núcleo da Escola de Capoeira Filhos de Bimba no bairro de
Massaranduba onde desenvolve um trabalho com crianças carentes do bairro através do
Projeto Capoerê. Seu primeiro contato com a capoeira foi aos oito anos em Teresina –
Piauí e a partir de então manteve sempre contato com a capoeira. Aos 18 anos entrou
para o Exército onde continua trabalhando como oficial. Por este motivo mudou de
cidade algumas vezes e em cada lugar que era designado a ir buscava se integrar em um
grupo de capoeira, assim praticou com vários mestres de diferentes modalidades de
capoeira (abada, senzala46
, regional). Em 1998, foi formado pelo Grupo de Capoeira
Filhos de Bantu em Corumbá – Mato Grosso do Sul, com o Mestre China. Mestre
Bambam Capoeira pondera ao dizer que “a todos tenho como referência, mas em
especial ao mestre Garrincha que hoje me fez entender mais um pouco o que significa
ser capoeira regional.” Após dez anos de capoeira regional, o Mestre Bambam Capoeira
formar-se-á novamente em 2012 como discípulo do Mestre Garrincha, pela Filhos de
Bimba.
46
São novas modalidades de capoeira que surgiram posteriormente às modalidades regional e angola.
Trazem algumas diferenças práticas e teóricas, mas em si, também são compreendidas como capoeira.
73
Além de oficial do Exército, o mestre Bambam Capoeira também é bacharel em
contabilidade, de modo que a capoeira para este mestre não é vista como principal
ocupação. O Mestre Bambam Capoeira considera as cantigas de grande importância
para a transmissão da História e dos fundamentos da capoeira. Faz uso do CD em suas
aulas e diz que na capoeira regional os discípulos são orientados a sempre seguir os
fundamentos da capoeira inclusive na parte musical.
4.3 As categorias de análise
O estabelecimento das categorias teve por objetivo sistematizar a análise das
cantigas de capoeira, no tocante aos aspectos referentes à compreensão da sua produção,
transmissão e recepção, considerando que pretendemos conhecer o que o capoeirista,
autor das cantigas, procura intencionalmente ou não expressar em termos de conteúdo e
ideologia, principalmente no que diz respeito à identidade cultural afro-brasileira.
Procuramos também identificar temáticas abordadas nestas cantigas e seus
modos de transmissão, assim como estas são trabalhadas pelos mestres no ensino da
capoeira e como são recebidas pelos discípulos e alunos. Em Salvador, considerada
entre os capoeiristas como “a Meca da capoeira”, cidade que possui número expressivo
de afrodescendentes, buscamos conhecer quais são os valores culturais afro-brasileiros
intencionalmente transmitidos nas cantigas de capoeira; o que da História do negro no
Brasil é passado por meio das cantigas; quais as representações sociais que estas
cantigas produzem e reproduzem, com base nessas questões estabelecemos as categorias
de análise.
CATEGORIAS SUBCATEGORIAS
1. Valorização da identidade cultural
afro-brasileira
1.1 Valores afro-brasileiros
1.2 Tradição
2. Pessoas de referências 2.1 Mestres
2.2 Heróis
3. Elementos do mundo da capoeira 3.1 Ginga
3.2 Instrumentos
3.3 Fundamentos
4. O Espaço 4.1 Bahia
4.2 Brasil
4.3 África
4.4 Angola
74
5. Narrativas 5.1 História do negro
5.2 Experiências e causos
6. Definições sobre a capoeira 6.1Esporte
6.2 Arte
6.3 Luta
6.4 Cultura
6.5 Ritualidade
4.4 A análise das cantigas
A roda está formada e a bateria a posto. Dois capoeiristas agachados ao pé do
berimbau se concentram para ouvir a música que vai começar. Primeiro o gunga soa
com o lento toque de Angola, antes do início dos primeiros versos da ladainha. O
cantador, normalmente um mestre ou aluno mais experiente que canta com a
autorização do mestre, envia um único e sonoro grito: Iê! Este é o aviso que a parte
cantada da ladainha vai começar.
De acordo com o Mestre Marcelo de João Pequeno, as ladainhas são
composições de ordem pessoal e subjetiva. Conforme podemos observar na cantiga
composta pelo referido mestre, que trata de dois fatos que marcaram sua vida. Um
marcou a sua infância, foi a morte prematura do seu pai. O outro fato foi ter conhecido o
Mestre João Pequeno de Pastinha, a quem adotou como pai. Mais um aspecto que pode
ser notado nesta cantiga, diz respeito à capoeira como recurso que trabalha a autoestima
do praticante.
Quando eu era pequeno
Gente de pouca idade
Eu não tinha nem dois anos
Conheci a fatalidade
O meu pai foi para o trabalho
Não sei bem o que aconteceu
Mas vi minha mãe chorando:
“Filho o seu pai morreu”
Me criei no sofrimento
No meio de uma escuridão
Quanto mais eu me aprumava,
mais caia pelo chão
Uma criança tão pequena
vivendo sem ter paz
E um homem tão adulto
chorando a falta do pai.
Mas um dia fui crescendo
aprendendo a brincadeira
Conheci João Pequeno
75
que é grande na capoeira.
E eu entrei na capoeira
prá aprender como se dança,
Tocando meu berimbau,
mostrando que eu também sou bamba,
meu camaradinho.
Viva meu Deus, Iê, viva meu Deus camará…
Iê viva meu mestre…
Iê, viva meu mestre camará…
Iê viva meu pai, Iê viva meu pai camará...
A capoeira
A capoeira camará...
Grande parte das cantigas da capoeira surge no improviso, e, com o passar do
tempo, o mestre vai incorporando os versos daquele momento ao seu repertório, até que,
memorizados, o mestre canta outras vezes em outras rodas e é aprendida por outros
capoeiristas. Como nos conta o Mestre Pelé, em entrevista sobre fatos que aconteceram
em sua mocidade, e, transformados em cantigas, são hoje cantados em outras rodas.
A cantiga a seguir é uma cantiga de improviso, na qual o cantador, no caso o
Mestre Valmir Damasceno, procurou demonstrar durante a entrevista como pode ser o
processo de criação de uma cantiga no momento da roda de capoeira, a partir de
elementos simples que surgem no contexto:
Eê!
Hoje é uma sexta-feira,
Hoje é uma sexta-feira,
Olha lá, dia de São Pedro
Olha vinte e oito de junho
Aqui viemos lembrar
Vim trazer a capoeira
De um momento eu vou lembrar
Olha lá cheguem amigos
É hora de celebrar
Berimbau marcou angola
Olha o médio a inverter
A viola chegue chorando
Olha lá nós vamos ver
Meu camarado chegue aqui
Agora vamos jogar
Olha lá jogo da vida
Jogo de angola
Olha lá chegue aqui
Camará
É hora nós vamos lá
Câmara.
(Mestre Valmir Damasceno)
76
Percebe-se também, de modo marcante, em muitas dessas cantigas, o objetivo de
educar e consolidar na memória fatos relacionados à História do homem negro no
Brasil. Destacam-se também as cantigas de temas relacionados à História da capoeira e
da luta contra a escravidão. Contudo, cabe alertar que as músicas da capoeira nem
sempre revelam fatos históricos comprovados, podem algumas vezes contar histórias de
personagens reais, porém com muito de criação popular, em outros casos podem
corroborar equívocos e criar ou reafirmar estereótipos.
4.5 Valorização da identidade cultural afro-brasileira
A valorização da identidade cultural afro-brasileira, como veremos, está
expressa em grande parte das cantigas da capoeira. Muitas vezes percebemos que esta
valorização se dá através da oposição preconceito “racial” – História. Podemos verificar
na cantiga do Mestre Ezequiel, discípulo do Mestre Bimba, que diz:
Às vezes me chamam de negro
Pensando que vão me humilhar
Mas o que eles não sabem
É que só me fazem lembrar
Que eu venho daquela raça
Que lutou pra se libertar
Que eu venho daquela raça
Que lutou pra se libertar
Que criou o maculelê
Que acredita no candomblé
Que tem o sorriso no rosto
A ginga no corpo e o samba no pé
Que tem o sorriso no rosto
A ginga no corpo e
o samba no pé
Que fez surgir de uma dança
Uma luta que pode matar
Capoeira, arma poderosa
Luta de libertação
Brancos e negros na roda
se abraçam como irmãos
(Mestre Ezequiel)
Deste modo, podemos perceber na cantiga apresentada que o preconceito não é
ignorado pelo compositor, pois parte de experiências concretas do autor com a
discriminação. Neste aspecto, a cantiga também faz uma denúncia. O preconceito é
mostrado como primeiro elemento, e isso não pode ser negligenciado, pois é a partir da
colocação “às vezes me chamam de negro/ Pensando que vão me humilhar” que se
desenvolve a cantiga. O preconceito como algo que se apresenta no cotidiano. “Às
77
vezes” entende-se como algo corriqueiro, que acontece sem dar importância à sua
periodicidade. A intenção de chamar “de negro,” com a finalidade de humilhar, reflete a
ignorância de quem o faz. No caso da cantiga o autor marca a intenção de humilhar, por
associar o “chamar de negro”, assim percebemos ideias e imagens pejorativas, oriundas
da convivência com constructos sociais racistas, e a manifestação da ignorância de
quem o faz.
“Mas o que eles não sabem/ É que só me fazem lembrar / Que eu venho daquela
raça/ Que lutou pra se libertar.” Embora aqui se apresente a ideia de raça, não se trata de
uma referência ao conceito biológico de raça, mas ao sentido de raça como uma
construção social o qual ainda hoje pode ser encontrado nas Ciências Sociais, ou
conforme adverte Munanga “Os conceitos de negro e de branco têm um fundamento
etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico.” (MUNANGA,
2004, p. 52).
Outro aspecto que podemos destacar nesta cantiga, que é recorrente em outras
tantas, relaciona-se à contestação da “abolição da escravatura” como fato ou evento
histórico que veio de fato a libertar os negros escravizados do Brasil. Nesta cantiga, esta
contestação pode ser encontrada nos versos: “Que eu venho daquela raça/ Que lutou pra
se libertar.” Encontramos em outras cantigas referências com a mesma tônica como a de
Rose Meire Sant’Anna Araújo, conhecida na capoeira como Speed, cujo trecho
destacamos:
A pesar de tanto sofrimento
O negro se libertou
Imperando sua alegria
Ensinando sua filosofia
Se alto afirmou.
(Rose Meire Sant’Ana de Araújo)
Sobre o 13 de maio e o fim da escravidão, lembra-nos Albuquerque e Fraga
(2006), “[…] os conflitos que ocuparam a política durante e depois do dia 13 de maio
denunciavam que, nem de longe a Lei Áurea encerrava a tensão “racial” que a
escravidão produzira“ (ALBUQUERQUE e FRAGA, 2006, p. 203). Vemos nestas
cantigas já o reflexo de uma tomada de consciência política que se estabelece como
fator essencial na construção das identidades culturais afro-brasileiras.
Os versos que se seguem na citada cantiga do Mestre Ezequiel, mencionam
outras instituições culturais criadas pelos africanos e afro-brasileiros como candomblé,
samba e maculelê, construindo uma imagem idealizada do afro-brasileiro, aquele “que
78
acredita no candomblé/ Que tem o sorriso no rosto/ A ginga no corpo e o samba no pé”.
Ao falar da capoeira, também uma instituição de origem afro-brasileira, se expressa na
cantiga uma das suas ambiguidades: capoeira como dança e luta, assunto que trataremos
mais a frente.
Nos dois últimos versos deste corrido percebemos a intenção de apaziguar os
ânimos, visto que esta cantiga é uma resposta direcionada a quem usa pejorativamente o
termo “negro,” a fim de humilhar e constranger, expressando seu preconceito “racial”.
Por isso, termina a cantiga lembrando o que muitos mestres falam, que a capoeira aceita
a todos, independente de “raça” credo, cor. Ou seja, na roda de capoeira todos são
“camarados47
” independente das desavenças de outras ordens, por isso “brancos e
negros na roda/ se abraçam como irmãos”.
De modo geral compreendemos que todas as cantigas que procuram seguir os
padrões tradicionais destas cantigas, de certo modo se propõem à valorização da
identidade cultural afro-brasileira. Corrobora esta compreensão a cantiga intitulada “O
Japão disse que sim”, composta pelo capoeirista, estudioso e professor de capoeira que
atua no Japão, Shinji Kubohara, conhecido na capoeira como Liberdade.
O Japão disse que quer
O Japão disse que quer
O Brasil disse que dá uma arte mandingueira
Luta, dança, capoeira
Ela nasceu na senzala
Sua Meca é a Bahia
Mestre Bimba e Pastinha
Canjiquinha e Caiçara
Brincadeira de criança
Negro de sabedoria
Ela também é carioca
Malta, Zuma e pernada
Senzala e seu Camisa
Leopoldina, velha guarda
Foi prá terra da garoa
Expandiu pelo mundo agora
Ananias e Brasília
Paulo Gomes e Suassuna
Vamos dar a volta ao mundo
Vem vadiar com a gente camará
(KUBOHARA, 2009, p.74)
Nesta ladainha, desde o título, inspirado na cantiga dos mestres Canjiquinha e
Waldemar “O Brasil disse que sim”, o autor deixa claro o interesse do Japão, seu país de
origem, na pela capoeira. De modo breve, no tempo que cabe à cantiga, pode ser 47
Termo usado pelos antigos mestres da capoeira e ainda presente em muitas cantigas. É o mesmo que
camarada, conhecido ou companheiro.
79
pontuada uma série de eventos que cruzam a capoeira e a identidade afro-brasileira.
Disto salientamos, a adoção da ladainha como estrutura da cantiga. A capoeira como
manifestação ambígua, concebida como luta e dança, de onde pode ser considerada a
sua mandinga; os versos, “ela nasceu na senzala” “brincadeira de criança/ negro de
sabedoria” fazem alusão ao início do processo de construção da capoeira como luta dos
negros escravizados, que muitas vezes precisaram disfarçar a capoeira em brincadeira.
Mostra assim a sagacidade do negro em dissimular a sua luta em brincadeira.
Compartilha da concepção de que a Bahia é o berço da capoeira; homenageia
grandes mestres da capoeira baiana. Em seguida chama a atenção para a importância do
Rio de Janeiro como cenário e contexto da capoeira, entre o final do século XVIII e
século XIX, quando atuavam as maltas de capoeiras lembradas principalmente pelos
Nagoas e Guaiamuns; recobra o nome de Zumba capoeirista (Anibal Burlamaqui),
carioca, que antes mesmo do Mestre Bimba sistematizou a capoeira em golpes que
misturava a capoeira ao batuque, e outros elementos da cultura afro-brasileira buscando
a sua esportização (REIS, 2000).
Fala das novas modalidades de capoeira como a Senzala, e a Abadá, cujo
principal nome é o Mestre Camisa. Mestre Leopoldina (Dermerval Lopes de Lacerda),
representante da velha guarda da capoeira carioca, teve um mestre carioca, chamado
Quinzinho e posteriormente outro mestre baiano, Arthur Emídio, baiano que migrou
para o Rio de Janeiro. Mestre Leopoldina faleceu em 2007, aos 74 anos, em São Paulo.
Outro grande mestre da capoeira e das tradições afro-brasileiras lembrado na cantiga de
Hubohara é o Mestre Ananias, baiano, considerado um dos precursores da capoeira
paulista, seguido pelo também baiano, Mestre Brasília, Paulo Gomes da Cruz, outro
mestre também considerado fundador da capoeira paulista, falecido 1998 aos 41 anos de
idade.
Depois de traçar um panorama da capoeira na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo,
fecha o ciclo trazendo para a cantiga o Mestre Suassuna, que chegou a ir para a terra da
garoa, mas voltou para a Bahia e hoje desenvolve seu trabalho com modalidade de
capoeira cordão de ouro, da qual é criador e principal representante.
Ao fazer uma ladainha com o uso de palavras recorrentes nas tradicionais
cantigas de capoeira, como “senzala”, “negro”, “volta ao mundo”, “camará”, “vadiar”,
reforça as evocações feitas ao falar dos mestres da capoeira por meio do qual estabelece
uma linha histórica do processo de criação e desenvolvimento da capoeira
(considerando a Bahia local de origem da capoeira), que é indissociável da construção
80
da identidade cultural afro-brasileira. Contudo, nota-se nesta cantiga a presença de um
racionalismo e intencionalidade que não é percebida em muitas cantigas de capoeira,
sobretudo, nas cantigas nascidas de improviso compostas na Bahia.
Outro aspecto da identidade afro-brasileira comum nas cantigas da capoeira é a
religiosidade. Expresso em muitas cantigas, como o seguinte trecho do corrido que diz:
“Na roda de capoeira/ vou no pé do berimbau / Antes da volta do mundo / Faço pelo
sinal”. Deste modo, percebemos que na roda de capoeira a relação com a religiosidade
se faz presente também através de gestos performáticos, como o sinal da cruz ao entrar
na roda, um toque no chão, no nome do golpe “benção”. Nas cantigas notamos esta
relação, desde o início do ritual da roda, que é aberta por um gênero de cantiga chamado
“ladainha”, que na tradição católica trata-se de uma série de louvações em frases curtas
em honra de Deus, Nossa Senhora e outros santos. Na roda de capoeira a ladainha é
atentamente ouvida e não se joga durante sua execução, tem um toque mais lento e é
cantada solo, normalmente pelo tocador do berimbau gunga48
, com respostas do coro
formado pelos outros componentes da roda.
Nas cantigas mais tradicionais da capoeira, sobretudo as de autoria dos grandes
mestres, os quais já não se encontram no ayê,49
são ainda mais presentes as aclamações
aos santos católicos, como a cantiga que diz “Santa Maria mãe de Deus/ Cheguei na
igreja e me confessei/ Santa Maria mãe de Deus/ Cheguei na igreja me ajoelhei”.
Notamos aqui, além da aclamação à Santa Maria, também a performance católica de
entrar na igreja e ajoelhar em sinal de humildade e respeito ante ao santo, e o ato de
confessar, que revela um maior envolvimento com o universo católico, no âmbito de
cumprir com os sacramentos do catolicismo. Em outras cantigas notamos outras
reverências como em “Santo Antônio é meu protetor/ protetor da capoeira/ Santo
Antônio meu protetor/ Protetor do berimbau/ Santo Antônio meu protetor/” em que
expressa orações e pedidos.
A ideia de tradição é mais um aspecto-chave relacionado à identidade cultural
afro-brasileira, expressado nas cantigas de capoeira. Nas entrevistas e conversas,
pudemos observar que esta ideia tem grande relevo entre os capoeiristas, ao tratar da
produção das suas cantigas. Faz-se perceber a tradição como principal elemento que se
48
O gunga é o nome dado ao maior dos berimbaus. Este possui o som mais grave de todos. Os outros são
o Médio, de som intermediário e o Viola, cujo som é mais agudo.
49
Ayê, trata-se do plano onde estão os vivos, contudo é permitida a manifestação dos que já se foram para
o “Orum”, que pode ser compreendido como o mundo dos mortos ou de espíritos ancestrais, os egunguns.
81
estabelece como referência e intenção do compositor em seguir os padrões dessa
tradição, tendo em vista que seu objetivo, não é somente animar a roda de capoeira,
como também dar continuidade a essa tradição, através dos ouvintes das cantigas. Ou
seja, há uma intenção de passar através da cantiga o discurso do compositor.
Através das entrevistas e conversas foi possível identificar duas vertentes de
compositores de cantigas de capoeira: uma que procura seguir os referenciais
tradicionais, em suas formas e temas, e outra linha que se mostra mais aberta a
incorporar novos elementos e temas contemporâneos. Sobre estes aspectos o Mestre
Valdec observa: “O segmento do qual eu faço parte, de capoeira angola, que é um
pouco mais tradicionalista, então a gente procura não só manter vivas as canções
antigas, como também sempre compor em cima da tradição.” (Mestre Valdec, em
entrevista concedida à pesquisa). Deste modo a tradição se faz notar nas cantigas de
capoeira através das modalidades (ladainha (angola), quadra (regional), louvação, chula
e corrido), das temáticas, das palavras usadas e referências. Podemos perceber este
apreço pela tradição através da cantiga de Nicolau Severin, intitulada “Ancestrais
africanos” cuja última estrofe destacamos: “Hoje canto capoeira/ Danço n’golo com
paixão/ Você pode ter certeza/ Disso eu não abro mão/ Muito duro foi o trabalho/ Prá
manter a tradição”50
.
Algumas vezes é atribuído às cantigas de capoeira papel equiparado aos
ensinamentos dos mestres, tomando-as como elementos responsáveis pela transmissão
dessa tradição. No caso dos antigos mestres como Waldemar, Bimba, Pastinha,
Canjiquinha, dentre outros, que foram grandes compositores e hoje não estão mais entre
nós, suas cantigas são relembradas e cantadas como modelo, tanto no aspecto formal,
quanto em relação aos seus discursos e conteúdos, de onde se pode extrair os
ensinamentos e fundamentos dos grandes mestres da capoeira.
Na cantiga “A Palma de Bimba”, composta por Mestre Itapoan, podemos
perceber a ideia de tradição através da ênfase dada ao ritmo das palmas. A cadência
“um, dois, três” é considerada uma tradição entre os regionais51
, discípulos do Mestre
Bimba. Perpassando esta cantiga, observamos também a questão da capoeira como
forma de educação e disciplina, bem como a forma de ensino adotada pelo mestre
Bimba. Deste modo, o capoeirista que incorpora os ensinamentos veiculados nas
50
Trecho destacado da ladainha intitulada “Ancestrais Africanos” de autoria de Nicolas Severin. Inscrita
no II Festival de música tradicional da capoeira da Coleção Emília Biancardi, ano 2008. 51
“Regional”, é um termo usado para designar os capoeiristas praticantes da capoeira regional. Esta para
o termo “angola” ou “angoleiro” que designa os capoeiristas adeptos da capoeira angola.
82
cantigas, aprende o aspecto formal da cantiga, no que envolve a cadência das palmas, a
estrutura da quadra da capoeira regional,
A palma estava errada
Bimba parou outra vez
Bata esta palma direito
A palma de Bimba é um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três
(…)
A quadra estava errada
Bimba parou outra vez
Cante esta quadra direito
A palma de Bimba é um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três
A Iuna estava errada
Bimba parou outra vez
Não maltrate esta ave moleque
E a palma de Bimba é um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três
A ginga estava errada
Bimba parou outra vez
O ginga bonito moleque
E a palma de Bimba é um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três.
(Mestre Itapoan)
Percebemos o modo de educar através da oralidade, bem como o registro da
experiência feita na memória, acerca de como ensinar a partir do exemplo e da
corporeidade. Dentro deste universo simbólico, as cantigas não se limitam a transmitir
aspectos do jogo capoeira, mas adquirem sentido amplo, pensando na capoeira como
uma manifestação indissociável da cultura afro-brasileira.
Neste sentido, a cantiga de Ana Luiza Tomich nos oferece uma ideia do que é a
tradição da capoeira para os capoeiristas. Diz a última estrofe da cantiga:
[…]
Quem inventou a capoeira foram os escravos
E passou por gerações
Mestre Bimba e Pastinha
Não quebraram esta corrente
83
Ensinaram para os mestres
E os mestres ensinam para a gente, camará...52
.
(Ana Luisa Tomich - Sereia)
De acordo com alguns mestres entrevistados, as músicas e cantigas devem seguir
os padrões fundados pelos grandes mestres, tais como Bimba e Pastinha, que por sua
vez, procuram nas experiências e nos modos de vida dos seus mestres e antepassados
africanos, inspiração para criar suas cantigas. Deste modo definimos a próxima
categoria de análise das cantigas de capoeira a qual está ligada às referências e ao
processo de ensino e aprendizagem, tanto da capoeira, quanto das cantigas.
4.6 Pessoas de referências
De modo geral, os objetivos e as temáticas das cantigas que encontramos,
principalmente nas ladainhas da capoeira angola e nas quadras da capoeira regional, têm
o notório intento de prestar homenagens aos grandes mestres da capoeira, como
Valdemar, Bimba e Pastinha; aos heróis da capoeira, como Besouro Mangangá; e a
personagens históricos significativos na luta pela liberdade do negro escravizado, como
Zumbi. Ao cantar fatos da vida dos mestres e heróis, busca-se assegurar que outros
capoeiristas também conhecerão a sua história. Isto pode ser compreendido como uma
forte manifestação da “ancianidade”, um valor afro-brasileiro que se faz presente no
mundo da capoeira através da reverência aos mais velhos. Esta reverência continua
mesmo após sua morte, quando se acredita, também na capoeira, que o ente passa a
habitar em uma outra dimensão, à qual o nosso corpo físico não tem acesso, tornando-
se assim um ancestral.
No mundo da capoeira é muito comum o aluno ou discípulo se referir e se alocar
à linhagem atribuída ao seu mestre. Por exemplo: Mestre Marcelo de João Pequeno,
discípulo de João Pequeno de Pastinha; Mestre João Pequeno de Pastinha, discípulo de
Mestre Pastinha. Deste modo, o aluno se localiza no mundo da capoeira através dos
referenciais dos mestres. Cumpre salientar, aqui que na capoeira, a linhagem é
percebida da mesma forma como é compreendida em algumas religiões de matriz
africana, como os candomblés. Conforme o conceito fornecido por Muniz Sodré (2002),
[…] linhagem, ou seja, o conjunto das relações de ascendência e
descendência regido por uma ancestralidade que não se define apenas
52
Trecho retirado da cantiga intitulada “Essa terra não tem dono” de autoria de Ana Luiza Lemos
Tomich, conhecida na capoeira como Sereia. A cantiga perticpou do II Festival de Música Tradicional da
Capoeira Emília Biancardi, em 2008.
84
biologicamente, mas também política, mítica, ideologicamente. […]
Isto é precisamente linhagem: um grupo ao mesmo tempo real e
simbólico (SODRÉ, 2002, p. 74)
A linhagem ou ancestralidade na capoeira, pode também determinar as relações
de solidariedade e companheirismo que se estabelecem a partir de conversas entre
capoeiristas. É fato corriqueiro nas conversas de capoeiristas que acabaram de se
conhecer, esta localização com referência em sua “ancestralidade” no mundo da
capoeira. Esta localização vem carregada de referências, através das quais a conversa
flui e as defesas são erguidas ou desmontadas, inclusive tais referências podem
determinar a simpatia ou antipatia, levadas ao jogo propriamente dito, ou para as
cantigas de sotaque e improviso.
Deste modo, encontramos expressa na relação mestre-discípulo o valor afro-
brasileiro conhecido por “ancianidade”. Em conjunto com a ancestralidade, formam a
base dos referenciais pessoais na cosmovisão do capoeirista. Encontramos nas rodas e
eventos de capoeira aqueles que são atualmente intitulados de “grandes mestres da
capoeira”, referindo-se ao seu tempo de vivência e prática no mundo da capoeira.
Nestas ocasiões, o “grande mestre” é reverenciado e ocupa lugar de destaque na
bateria53
, geralmente tocando o gunga ou um dos pandeiros. Estes mestres se
diferenciam dos demais por serem mestres de outros mestres mais jovens, depositários
do seu legado prático, teórico e “filosófico”, ou seja, de concepção de mundo e
princípios morais e éticos na capoeira. Os grandes mestres e mesmo o mestre, deste
modo, são mais que uma referência para o discípulo, estes se tornam referência também
para outros capoeiristas.
Na capoeira, como em algumas outras instituições da cultura afro-brasileira, a
temporalidade é uma noção que expressa o processo de amadurecimento das
comunidades e dos indivíduos nas diversas esferas da vida social e cultural. Deste
modo, percebemos que se leva tempo para ser mestre e para ser capoeirista também.
Esta importância atribuída ao tempo está relacionada ao contato e às experiências no
mundo da capoeira, um cabedal de conhecimentos que se constrói a partir do contato e
das vivências.
Esta observação esteve presente nas falas de muitos capoeiristas com os quais
tivemos contato, através das muitas conversas e nas entrevistas com mestres e
capoeiristas de Salvador. Citamos aqui como exemplo a fala do Mestre Valmir: 53
Bateria é o nome que se dá ao conjunto musical da capoeira. Esta é composta de agogô, atabaques,
berimbaus e pandeiros.
85
Menino quem foi teu mestre? Se você não tem história você não sabe
o que falar, não sabe o que cantar, porque você deu um passo maior
que a sua perna... eu costumo dizer que prá você crescer leva tempo...
Eu levei nove meses prá nascer, uma média de nove meses para
começar a andar, eu levei mais quatro depois desses nove messes para
começar a falar e levamos quarenta, vinte anos para chegarmos onde
nós estamos, então prá que essa pressa prá determinadas coisas? E ai?
É uma coisa que precisamos tomar cuidado para que a capoeira não se
perca. Porque hoje para eu e você ser capoeirista, você precisa ter uma
condição e só adquire isso com o tempo, porque isso está aliado à
experiência de vida. (Mestre Valmir em entrevista concedida à
pesquisa)
Por isso devemos considerar que existem muitos motivos para se aprender
capoeira, de modo que o objetivo e o interesse do aluno influenciam no relacionamento,
não somente com o mestre, mas também com todo o mundo da capoeira. Deste modo,
salientamos aqui, que muitos paralelos estabelecidos nesta pesquisa são possíveis de
serem pensados apenas se limitando aos mestres e seus discípulos, aqueles que
estabeleceram ou se propuseram a um relacionamento mais próximo à capoeira, como
esporte, como luta ou como filosofia de vida, mesmo que ainda que não haja a intenção
de ser mestre de capoeira, mas que se lance a compreender este mundo porque se
identifica com ele. Logo, excluem-se os praticantes ocasionais da capoeira.
4.7 O mestre e os heróis da capoeira
Ainda hoje é possível ver crianças gingando como os capoeiristas sem, contudo,
nunca terem participado de uma aula de capoeira, aprenderam a gingar observando os
corpos dos capoeiristas nas rodas ou treinos. Muitos capoeiras começaram a gingar
dessa forma, observando, “de oitiva”54
, como dizem os capoeiristas mais antigos.
Contudo, antes mesmo da sistematização das aulas de capoeira e sua organização em
academias e grupos, a ideia do mestre já estava presente. Mestre Pastinha dizia ter
aprendido a capoeira com um velho africano chamado Mestre Benedito, Mestre Bimba
aprendeu com Bentinho, um ex-escravo africano que trabalhava na Companhia de
Navegação Baiana, o Mestre Canjiquinha com o conhecido Mestre Aberrê.
As louvações que seguem após as ladainhas ou quadras usualmente cantam de
forma genérica, subentendendo que todo capoeirista tem ou teve um mestre. “Iê viva
meu mestre (solo)/ Iê, viva meu mestre camará (coro)” (domínio público), podendo ser
54
O termo oitiva encontra-se entre aspas no texto devido ao fato de referir-se apenas ao sentido da
audição, e não à observação tal conforme é empregado pelos capoeiristas. Desta acepção capoeirística
Abib (2006) diz “A oitiva constitui-se como um claro exemplo de como se dá a transmissão através da
oralidade na capoeira, baseada na experiência e na observação”. (ABIB, 2008 p. 88).
86
citado o nome do mestre em substituição do termo genérico, deste modo direcionando a
louvação para um mestre específico.
De acordo com o Mestre Pastinha (1988), “capoeira só se aprende praticando
sob a orientação de um professor competente” (PASTINHA, 1988, p. 16). No mesmo
livro, Mestre Pastinha cita a cantiga que diz:
Todos podem aprender
General até doutor,
Mas prá isso é necessário
Procurar um professor
(Pastinha, 1988, p. 32)
Deste modo Abib (2006) define o mestre como educador responsável pela
transmissão do conhecimento tradicional, em suas palavras “O mestre é aquele que
permite que os saberes transmitidos pelos antepassados vivam e sejam dignificados na
memória coletiva.” (ABIB, 2006 p. 93). Este processo de transmissão na capoeira se dá,
como em muitas outras formas culturais de origem afro-brasileira, com a predominância
da oralidade. Mas não devemos desconsiderar as formas de registro escritas e
audiovisuais, que vêm cada vez mais ganhando espaço no mundo da capoeira. Isto
podemos perceber na fala do Mestre Valmir que conta como são passadas as cantigas
para seus alunos.
Eu digo (para o aluno): ‘Eu quero que você me cante uma ladainha’,
‘Ah Valmir, mas eu não sei a ladainha’, ‘Tudo bem, ali a gente tem
uma biblioteca, vai lá buscar uma ladainha, aprender essa ladainha e
trazer essa ladainha na próxima aula’. Ele já tem uma tarefa de casa
para executar. Eu preciso aprender ladainha porque é importante
enquanto eu capoeirista eu cantar numa roda de capoeira. A roda não é
só jogar. (Mestre Valmir em entrevista concedida à pesquisa).
Deste modo, o aprendizado da capoeira é passado não somente através do
conteúdo das cantigas, mas da compreensão da cantiga como parte do jogo, como
elemento de significação do jogo e seu ritual. Ao contrário do que imaginávamos,
percebemos com a pesquisa que nem todos os discípulos e mestres consideram como “o
seu mestre” aquele por quem foi introduzido na capoeira, que passou as primeiras
lições, ou aquele que o formou ou graduou. Vimos que nem todos falam com o mesmo
orgulho com que o Mestre Marcelo de João Pequeno se referiu ao seu mestre. Diz:
“Meu mestre foi e é João Pequeno, nunca tive outro mestre. Ele é o primeiro e o único
que tive”. (Mestre Marcelo de João Pequeno em entrevista concedida à pesquisa), ou
ainda como o Mestre Valdec, que iniciou na capoeira fazendo aula com dois mestres, o
Mestre Laércio e o Mestre Roberval. Diz: “Esses foram os que me deram régua e
87
compasso, que me ensinaram, que me formaram como capoeirista” (Mestre Valdec em
entrevista concedida à pesquisa).
Outros capoeiristas, no entanto, podem romper a relação com o seu primeiro
mestre, ou com aquele que o graduou, e restabelecer esta relação discípulo-mestre
considerando um outro mestre. Deste modo percebemos como a figura do mestre é
permeada pela ideia de afeto e afinidades que passam por ideologias, comportamentos e
pela reciprocidade das ações e sentimentos.
Os mestres estão presentes em muitas cantigas de capoeira, principalmente nas
ladainhas ou quadras e nas louvações. Duas das cantigas mais conhecidas na capoeira,
normalmente entoadas nas rodas de capoeira regional, foram anotadas por Waldeloir
Rego (1968) trazem a pergunta “Menino quem foi seu meste”? a resposta vem em forma
de versos que mostram o relacionamento e a proximidade entre mestre e discípulo.
Iê quem foi teu mestre
Menino quem foi teu mestre
Mestre foi Salomão
Discípulo que aprendo
Mestre que dou lição
O Mestre quem me ensinou
No engenho da Conceição
A ele devo dinheiro,
Saúde e obrigação
Segredo de São Cosme
Mas quem sabe é São Damião
Camará (Mestre Bimba)
Percebemos no texto da cantiga que trata-se de um mestre cantando para o seu
mestre, que como discípulo aprende, e como mestre, dá lição. Trata-se assim do
constante processo de aprender e ensinar que os mestres entrevistados salientaram,
conforme vemos na fala do Mestre Dinei que afirma: “Começei a perceber que eu só
sou mestre de capoeira porque começei a aprender com os meus alunos.” (Mestre Dinei,
em entrevista concedida à pesquisa). Evidencia também a sua fala que o tornar-se
mestre de capoeira é processual, e além da concordância do mestre que faz a formação,
considera-se também o tempo na capoeira e a aceitação da comunidade capoeirística do
capoeirista como mestre.
O relacionamento entre discípulo e mestre nesta cantiga é compreendida como
uma relação de amizade e companheirismo. Ao cantar “a ele devo dinheiro, saúde e
obrigação”, percebemos daí o amparo ao mestre no aspecto material, aspecto físico, no
88
sentido de companhia e no aspecto místico de devoção, inclusive na hora da morte55
,
conforme as obrigações que têm os religiosos do candomblé para com seus orixás de
iniciação. Em “Segredo de São Cosme, quem sabe é São Damião”, percebemos
elementos do sincretismo religioso afro-brasileiro. As figuras de São Cosme e São
Damião, representadas pelos ibejis56
no candomblé, são evocadas na cantiga para falar
de pessoas que andam juntas, deste modo, o discípulo que acompanha seu mestre
compartilha com ele segredos e fundamentos do mestre.
Algumas vezes a menção ao mestre pode vir codificada, como vemos nos versos
da cantiga abaixo, na qual o nome do Mestre Traíra aparece como o nome do peixe, que
serviu para nomear o capoeirista.
Na rede vem a traíra
Um peixe que morde a mão,
Na roda brilha a navalha
E os cinco Salomão (Mestre Boa Voz)
Os grandes mestres do passado são cantados nas rodas de capoeira, no entanto
poucas cantigas fazem distinção quanto à modalidade da capoeira do mestre (angola ou
regional), quando são cantados em grupo. Assim sendo, é muito comum ouvirmos na
mesma cantiga referências a mestres regionais e angoleiros, conforme os trechos
destacados da cantiga do Mestre Suassuna e Cristal:
[…]
A historia de Bimba e Pastinha
Canjiquinha e Totonho de Maré
Passar no Mercado modelo,
ver a capoeira como é que é
Tem que ter muita fé e muito Axé
[…] (Suassuna)
Bahia que tem dendê
Terra de todos os Orixás
Bahia de Bimba, Pastinha,
Aberrê, Waldemar do Pero Vaz.
[…] Marcelo de Castro (Cristal)
Outro aspecto que as cantigas procuram expressar referem-se às noções dos
ensinamentos da capoeira. Na cantiga “A palma de Bimba” temos expresso o modo
como o Mestre Bimba ensinava aos seus alunos, no que diz respeito à musicalidade
como as palmas, a iúna, ou pode ser outro toque usado na capoeira regional, a quadra ou
outra cantiga, a ginga com base na contagem um, dois, três.
55
Dentre as obrigações que existem no candomblé, o aku, que é uma obrigação funerária. 56
Ibejis, ou seja gêmeos em ketu, também conhecidos como orixás crianças.
89
O jeito do mestre lidar com seus alunos, também é mostrado nas cantigas. Nestas
composições percebemos as lembranças do contato com o mestre e as experiências do
discípulo, como na quadra “Bimba chamou” de Aurélio Cardoso, conhecido na capoeira
como Vergalhão. Na primeira estrofe, o autor conta como foi o seu início na capoeira.
Muitos alunos do Mestre Bimba foram convidados por ele a frequentar as aulas em sua
academia, lá aprendiam o ABC da capoeira regional, que é uma sequencia de golpes e
contragolpes, definidos por Mestre Bimba, de modo a facilitar o aprendizado do aluno
iniciante. Quando o aluno já dominava esta sequencia, ou seja, já sabia o ABC, o mestre
convidava um aluno mais experiente para fazer o primeiro jogo deste aluno. A este
primeiro jogo, Mestre Bimba chamava “cair no aço”. Ao final do jogo pedia ao aluno
mais experiente, o formado, que desse um apelido, um nome de capoeira, pelo qual seria
conhecido o aluno a partir de então.
Vou treinar capoeira
Mestre Bimba criou
Capoeira regional
De São Salvador
Mestre Bimba me chamou
Prá treinar a capoeira
Pegando na minha mão
Ensinou a ginga da capoeira
A seqüência é o ABC
Da capoeira regional
Aprender a reagir
Atacar e defender
Quando aprendi a sequencia
Ele chamou um formado
Menino preste atenção
Você vai entrar no aço
Quando o jogo acabou
Ele olhou para o formado
Lhe dizendo em seguida
Dê um apelido ao camarado.57
Diversas cantigas foram compostas lamentando a morte dos mestres Bimba e
Pastinha, tão logo estes faleceram. Neste momento, e ainda hoje, as crenças do
candomblecismo e do catolicismo sincrético fazem-se presentes nas cantigas em forma
de orações que pedem a Deus e santos católicos, e aos Orixás, que os recepcionem no
outro lado da vida, agradecendo e pedindo bênçãos aos mestres.
57
Cantiga composta por Aurélio Vagner Cardoso, conhecido na capoeira como Vergalhão. Esta cantiga
participou do II Festival de Música Tradicional da Capoeira Emília Biancardi em 2008.
90
Neste sentido observamos alguns desses elementos afro-brasileiros presentes
nas duas cantigas seguintes. A primeira, que fala sobre o Mestre Pastinha, é de autoria
de Raimundo Santos Cardoso, conhecido na capoeira como Mestre Banguelo, intitulada
“A capoeira angola perdeu seu criador”.
Capoeira angola
Perdeu seu criador
Perdeu Mestre Pastinha
Um grande professor
A Bahia tá de luto
Capoeira também
Ai meu Deus, com noventa e dois anos
Não podia mais andar
Ficou cego, paralítico
Não podia mais jogar
Ele morreu, foi para o céu
Com seu Bimba se encontrar
São Pedro já reservou um lugar prá capoeira
Outro pro seu criador
Ele jogava capoeira angola
Ele jogava capoeira angola
Vicente Ferreira Pastinha
[coro] Ele jogava capoeira angola...
(Mestre Banguelo)
Observamos nesta, e em outras cantigas que trazem a morte do mestre como
tema, estruturas parecidas. Expressam de modo geral (a Bahia, o Brasil, a capoeira,
“todo mundo”) o sentimento de perda ocasionado pela morte do mestre, relacionando-o
com seus feitos, em seguida apresenta um argumento místico o qual serve como
refrigério para o espírito dos que ficaram, o qual sugere o encontro dos capoeiristas em
outro plano, agora ocupando um novo e merecido lugar na memória e/ou na História.
Assim, apesar da tristeza dos que ficaram, a Bahia e a capoeira, como está
presente na cantiga transcrita, a esperança espiritualista presente no catolicismo
sincrético e no candomblecismo, dentre outras religiões de matriz africana, evocam a
ideia da libertação do corpo físico, que proporciona o encontro com outros mestres que
partiram, e seu encaminhamento para o lugar que lhe é reservado.
Considerando a capoeira como instituição de origem afro-brasileira, que
manifesta uma diversidade dessas características, reportamos aqui os laços de
parentesco simbólico58
formados durante a escravidão, como forma de amenizar os
efeitos da dissolução das famílias, e, que ainda hoje, podem ser percebidos em outras
58
Os parentescos simbólicos ou família estendida foram laços criados entre os escravizados independente
dos laços conjugais ou consangüíneos. São percebidos como estratégias que visavam manter a coesão do
grupo e oferecer lhes certa segurança.
91
situações na sociedade atual. Com esta ideia de parentesco simbólico, podemos entender
a capoeira como uma família na qual os mestres que partiram passam a ocupar lugar
correspondente ao dos ancestrais.
Na ladainha de Olavo Paixão dos Santos (Mestre Olavo), transcrita abaixo,
percebemos a capoeira como um contexto que favorece a lembrança dos velhos mestres,
e de modo geral a história do negro brasileiro, que representa cada mestre.
Quando eu vejo capoeira
Muitas coisas me faz lembrar
Me lembro de mestre Bimba
De Pastinha e Waldemar
Lembro de Aberrê, colega velho
Doze Homens e Sabará
Lembro de Cobrinha Verde
E Besouro Mangangá
Eles foram os velhos mestres
Que já se foram e não vão voltar
Eles foram pro infinito
Deus lhe bote em um bom lugar!
(Mestre Olavo)
Deste modo, podemos dizer que as cantigas de capoeira são em grande parte
expressões destas lembranças e construções, feitas a partir da história e das
representações do negro no Brasil. Percebemos a memória como um valor afro-
brasileiro que atua nas cantigas de capoeira como elemento que oferece base para suas
construções narrativas ou dialógicas com o passado próximo ou longínquo, que pode
muitas vezes reproduzir recordações inventadas, tais como as tradições das quais Eric
Hobsbawm (1984) se refere.
Todo aquele que lutou pela liberdade do negro brasileiro, que representou o
negro em algum momento histórico, é considerado um herói. Na capoeira os grandes
mestres da capoeira, ao lado de Besouro Mangangá, capoeirista de renome do
Recôncavo Baiano, e o líder quilombola Zumbi dos Palmares, são saudados como
heróis nas cantigas de capoeira.
Zumbi é lembrado como uma das figuras mais emblemáticas do movimento de
luta e resistência do negro no Brasil. Nascido em 1655, é considerado como líder,
comandante e brilhante estrategista do Quilombo de Palmares. Este quilombo tornou-se
um ícone, não somente em face da sua resistência ante os portugueses, como por seu
projeto social de base africana. Zumbi foi morto em 20 de novembro de 1695, aos 39
anos de idade. O dia da sua morte é lembrado desde 1978 como dia Nacional da
92
Consciência Negra, e desde então vem crescendo a visibilidade dos eventos organizados
durante a semana de 20 de novembro que propõem reflexões sobre o negro.
No transcrito da cantiga dos Mestres Régis e Jair, intencionalmente feita para
homenagear a figura Zumbi dos Palmares, percebemos como este personagem é
reverenciado como ancestral, do mesmo modo que são os grandes mestres da capoeira.
Deste modo, mais uma vez destacamos a ancestralidade como valor afro-brasileiro
expressado nas cantigas de capoeira.
Negro Zumbi
Foi um criolo inteligente
Um criolo de coragem
Que lutou por sua gente
Se eu sou negro
De Zumbi sou descendente
É jogando capoeira
Que eu me sinto tão contente
Ô leva eu...
(Mestre Régis e Jair)
Outro renomado herói muito lembrado nas cantigas é Manoel Henrique Pereira,
conhecido como Besouro Cordão-de-Ouro ou Besouro Mangangá. Viveu na região de
Santo Amaro da Purificação, entre a última década do século XIX e a segunda do século
XX. A este personagem são atribuídos poderes sobrenaturais, como ter o corpo fechado
e capacidade de voar. Ganhou notoriedade ao enfrentar a polícia e os fazendeiros, e por
tomar partido na defesa dos negros mais fracos, fazendo uso da capoeira ou de outras
estratégias. Suas façanhas são contadas com muita criatividade entre cordéis e cantigas.
A cantiga que segue, de autoria do Mestre Perninha, é uma narrativa que homenageia
Besouro, faz referências às cidades de Santo Amaro e Maracangalha, locais que este
herói costumava frequentar para procurar trabalho nas usinas de açúcar.
Besouro Mangangá, Besouro Mangangá
Besouro, Besouro, Besouro,
Coro
Besouro Mangangá
Besouro Mangangá
Cidade de Santo Amaro
Terra do Maculelê
Viu os Mestres Popo e Vavá
E viu Besouro a nascer
[…]
Besouro cordão de ouro
Manoel Henrique Pereira
Desordeiro pra polícia
Uma lenda pra capoeira
[…]
93
A lenda diz que Mangangá
Também sabia voar
Transformando em besouro
Pra da polícia escapar
[…]
Mataram Besouro Preto
Não foi tiro nem navalha
Com uma faca de tucum
Na velha Maracangalha
[…]
(Mestre Pastinha)
Acredita-se que Besouro Mangangá morreu aos vinte e sete anos vítima de
assassinato. A versão mais conhecida acerca da sua morte, a mesma que a cantiga se
refere, considera que Besouro tinha o corpo fechado, ou seja, não poderia ser atingido
por mal que atentasse contra a sua vida, como venenos, feitiços ou armas comuns.
Haveria de ser uma faca de ticum, considerada madeira de Orixás, oriunda de uma
palmeira, ticum, cujo cerne é muito duro. Contudo para o sucesso dessa empresa, era
necessário que este tivesse deixado de cumprir alguma obrigação religiosa.
Assim, percebemos os heróis e os mestres da capoeira como pessoas de
referência, que não somente inspiram as cantigas, mas também um modo de vida. De
Zumbi, a liderança, de Besouro a ousadia, dos mestres, os ensinamentos e a filosofia da
capoeira como esporte, arte e luta que pode matar. Nas cantigas estes personagens estão
envolvidos em uma áurea mística idealizada, favorecida pela emoção do contexto da sua
execução na roda, muitas vezes sensível nestes momentos.
4.8 Elementos do mundo59
da capoeira
O mundo da capoeira é formado pelos elementos da cultura afro-brasileira.
Alguns desses elementos podem ser percebidos como peculiares a esse mundo devido
aos significados que a capoeira imprime e à forma como são evidenciados no seu
mundo. Haja vista a circularidade presente nos movimentos corporais das danças dos
orixás, e no ijexá, dentre outras movimentações do universo afro-brasileiro, dos quais a
59
No presente sentido, o termo “mundo” foi aplicado em concordância com a idéia de mundo oferecida
por Heidegger (2008), na qual compreendemos “mundo” como um espaço transpessoal de construção
simbólica da realidade, bem como da identidade. No mesmo sentido Berger e Luckmann (2008, p. 216-
228) também assinalam que a compreensão identitária dos indivíduos encontra-se diretamente relacionada
com as estruturas sociais incorporadas pelos sujeitos no processo de socialização com o grupo.
94
ginga, o aú60
e a armada61
, dentre outros movimentos da capoeira, também expressam a
ideia de circularidade. De modo análogo percebemos aí a ideia do movimento circular
que traz consigo as ideias de transformação, a alternância e o retorno. Deste modo,
observamos o fluxo da energia vital, o axé, que tende ao movimento, à transformação e
ao retorno: a circularidade. Nas cantigas da capoeira pode ser observado através das
sentenças, aparentemente simples, contidas em muitas chulas. As chulas são a primeira
parte do corrido, tratando-se de estrofes curtas, estruturadas em pergunta e resposta,
solo e coro, tais como “Ou sim, sim, sim, ou não, não, não, hoje sim amanhã não.” “Ê,
ê... volta no mundo camará”.
Dentre os elementos da capoeira que foram estabelecidos como subcategorias
para nossa análise, temos a ginga, os instrumentos, a mandinga e os fundamentos. Para
muitos capoeiristas todos estes elementos são vistos como fundamentos de diferentes
esferas e níveis de atuação: funcional ou prático, a exemplo do saber gingar, tocar os
instrumentos e cantar, espiritual ou filosófico, como dos fundamentos, dentre os quais, a
mandinga, sendo que todos se encontram na esfera do ritual. Estes elementos muitas
vezes perpassam-se, de modo a tornarem-se todos fundamentos. Isto foi colocado de
maneira explícita na fala do mestre Valdec que diz “Como fundamento da capoeira nós
temos o movimento, que é o jogo propriamente dito, você tem o canto, você tem o
toque, e o que nós chamamos de “falar”, o falar é muito importante”. (Mestre Valdec
em entrevista concedida à pesquisa).
A ginga
A ginga é o movimento básico de todo o jogo da capoeira. É uma alternância
cíclica da posição das pernas e braços do capoeirista, de modo que lhe permite estar
pronto para o ataque ou para a defesa. Deste modo podemos entender a ginga como a
mãe de todos os golpes e contragolpes da capoeira. Neste sentido, uma cantiga de
autoria desconhecida nos oferece um conceito sobre o que é capoeira. Diz a cantiga em
seu refrão:
Capoeira
60
Movimento geralmente usado na entrada do capoeirista no jogo, consiste em envergar o corpo
lateralmente, apoiando-o com as mãos no chão, enquanto as pernas giram sobre o tronco. 61
Armada golpe aplicado com o pé, enquanto uma perna está firmada no chão, a outra gira em torno
corpo do capoeirista, atingindo com o pé o adversário.
95
É defesa é ataque
A ginga de corpo
E a malandragem
(Autor desconhecido)
A ginga sendo o primeiro movimento da capoeira, muitos aprendem apenas
observando, contudo, como vimos na cantiga “ A palma de Bimba,” a ginga é coisa
séria na capoeira, por este motivo este mestre fazia questão de ensiná-la pegando na
mão do aluno. Quem ginga deve estar em sincronia com o movimento do outro jogador
e, dependendo do jogo, pode ser visto como opositor ou parceiro. Vemos na cantiga do
Mestre Boa Voz, da alternância, do leva e traz, como movimento essencial da capoeira,
como também a sincronia com a música, pois lembramos aqui, capoeira também é
dança.
Maré Me Leva
coro
Maré me leva;
Maré me traz
A vida do capoeira;
É como a do pescador;
A onda balança o barco;
E a ginga o jogador;
coro
O vento sobrou nas velas;
Balançando a minha nau;
Na roda de capoeira;
Quem me leva é o berimbau;
(Mestre Boa Voz)
Em algumas cantigas notamos tendências a equívocos, nas formas de
generalizações e estereótipos vinculados à imagem do afro-brasileiro. Encontramos em
uma cantiga do Mestre Ezequiel interessante exemplo a este respeito. A ginga é
mostrada nessa cantiga como um atributo natural do afro-brasileiro, como se todo afro-
brasileiro nascesse com ginga, sabendo sambar e naturalmente sorridente e
candomblecista, ou ainda, generalizando “aquela raça” oriunda de uma mesma região,
religião e pertencentes a um mesmo conjunto de expressões culturais. Segue trecho da
cantiga do Mestre Ezequiel.
[…] eu venho daquela raça
Que lutou pra se libertar
Que criou o maculelê
Que acredita no candomblé
Que tem o sorriso no rosto
A ginga no corpo e o samba no pé
(Mestre Ezequiel)
96
De forma ainda mais explicita, sem contudo considerar como natural, Mestre
Suassuna canta sobre os atributos da afro-brasilidade, porém, de certo modo cobra do
baiano, pois nasceu na “Meca da capoeira”, aquilo que seriam seus sinais distintivos.
[…]
Mas você que é Baiano ouça ai
Um conselho que eu tenho pra te dar
Você tem que aprender capoeira,
ser Baiano é saber gingar é tocar berimbau mandingueiro
O pandeiro e saber sambar
(Mestre Suassuna) (Grifo nosso)
Com as experiências que tivemos com o mundo da capoeira, observamos que a
ginga, embora seja um movimento corporal intuitivo, não é natural nem do afro-
brasileiro nem do baiano, pois se assim o fosse não precisaríamos das “oitivas” nem das
aulas explicativas com mestre, muito menos segurando na mão, como fazia Bimba, um
grande Mestre, no sentido pedagógico do termo.
Esteves (2003) nota que “muitas vezes o turismo é o grande responsável pela
imagem estereotipada do baiano; imagem essa que atende a um forte apelo consumista”
(ESTEVES, 2003, p. 91). Contudo devemos observar que os mestres Ezequiel e
Suassuna são grandes compositores de cantigas de capoeira e possuem álbuns gravados
com estas cantigas que são ouvidas em treinos de capoeira em diversos grupos e
academias.
Deste modo, encontramos cantigas que expressam o pensar dos seus
compositores, que criam um estereótipo de comportamento e o difunde através das
cantigas. Nessa esteira, devido à “baianização” da capoeira, são cobrados ainda mais do
baiano esses comportamentos.
Os instrumentos
Diversos autores como Rego (1968), Biancardi (2006) e Pastinha (1988),
acreditam que a parte musical da capoeira era inexistente no início do seu
desenvolvimento. Contudo, vimos com Reis (2000), Soares (1994) e Rego (1968), que
no século XIX, no Rio de Janeiro, e no início do século XX na Bahia, a roda de
capoeira, mesmo sem um repertório musical próprio, se estabelecia atraída, não somente
pela aglomeração de pessoas nas ruas como também pela música, haja vista a presença
97
marcante dos capoeiras próximos às bandas de músicas presentes nas festas cívicas e
religiosas.
O pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802 - 1858), em sua “Viagem
pitoresca ao Brasil”, realizada na primeira metade do século XIX, retratou em óleo
sobre tela uma cena urbana intitulada Kriegsspiel (brinquedo guerreiro)62
, ou como
conhecemos “Dança da Guerra63
” na qual constam doze personagens, todos negros. No
centro, sugere dois lutadores a se enfrentarem, enquanto um personagem em pé bate
palmas, e outro, sentado, toca um instrumento que está entre suas pernas; duas mulheres
sentadas, sendo que uma delas cuida de uma panela que está no chão e se dirige a um
homem que recebe algo da sua mão, provavelmente um quitute, os outros personagens
observam os jogadores. Contudo, a partir desta ilustração podemos vislumbrar algumas
possibilidades a respeito da presença da música na capoeira. O tambor poderia ser
apenas uma eventualidade, do mesmo modo que a presença da quituteira. Podemos
intuir também que as palmas tivessem sido o primeiro acompanhamento musical da
capoeira, não o tambor ou o berimbau, por se tratar da produção de som a partir do
próprio corpo e com isso dar um ritmo ao jogo.
Outro elemento que nos permite pensar sobre a musicalidade na capoeira surge
com a possibilidade de sua referência africana, o n’golo, ser chamado de dança da
zebra. Como a dança sugere música, então talvez o n’golo angolano fosse
acompanhamento musical, e com isso a capoeira que pode ser uma releitura dessa dança
ritual, pode ter sua referência construída como dança-luta com acompanhamento
musical.
Atualmente na capoeira temos o berimbau como instrumento musical mais
importante, o qual é reverenciado e cantado nas cantigas de capoeira como tal. Isto nos
mostram os trechos selecionados de duas cantigas da capoeira de autoria desconhecida
[…]
O maculelê
A dança do pau
Na roda de capoeira
Quem comanda é o berimbau […]
(Autor desconhecido)
[…]
Na roda de capoeira
62
Tradução de Waldeloir Rego (1968). 63
Ilustração vide Anexo III.
98
Vou no pé do berimbau
Antes da volta ao mundo
Faço pelo sinal […]
(Mestre Brasília)
Salienta Albino Marinho de Oliveira (1958) uma relação de mutualismo
existente entre o berimbau e a capoeira, da qual se deve à esta expressão cultural,
permanência do instrumento musical que encontra-se presente na atualidade como um
dos elementos fundamentais que valorizam o jogo. Nas palavras do autor:
[…] Sem a capoeira o arco musical seria um instrumento inexpressivo
que talvez tivesse desaparecido […] Sem o berimbau a capoeira
perderia a força que leva seus lutadores a exaltado exacerbamento
motor que se manifesta em agilíssimos golpes e contragolpes.
(OLIVEIRA, 1958, p. 46).
Deste modo, o autor salienta também a exaltação que proporciona o som do
berimbau aos participantes do jogo. Vemos com isso, o que pudemos observar nas rodas
de capoeira, quando os instrumentos estão sendo executados e os jogadores estão na
roda, que a música na capoeira cumpre não somente a função de animar como vemos no
trecho cantiga do mestre Suassuna, que diz:
A roda tava desanimada,
O povo mal queria cantar,
Foi eu pegar na viola64
,
A roda inteira começou a jogar.
(Mestre Suassuna)
À música na capoeira cumpre também dar ritmo aos movimentos dos
capoeiristas, como também proporciona uma alteração nos sentidos dos jogadores, em
seu estado de ânimo e em sua percepção do espaço, o que poderia ser compreendido
como um leve estado de transe, mas no qual os sentidos do jogador estão aguçados,
permitindo uma performance ainda mais entrosada, como dizem os capoeiristas, um
“jogo bonito”.
Disto podemos observar que os jogadores não tocam as pessoas próximas que
estão na roda, por mais que os movimentos sejam rápidos e aparentemente
desequilibrados. Sobre a importância do jogo bonito, temos a cantiga de autoria
desconhecida, mas muito executada nas rodas de capoeira que diz: “Ai, ai, aidê, joga
bonito que eu quero aprender/ Ai, ai,aidê joga bonito que eu quero ver.”
O berimbau é um arco musical, formado por uma haste de madeira flexível,
arqueado por um arame e usa uma cabeça como caixa amplificadora do som. É tocado
64
Nesta cantiga o termo “viola”, refere-se ao berimbau viola, o menor e o que produz som menos grave
dos berimbaus.
99
golpeando o arame. Temos três tipos de berimbaus, o gunga, maior, de som mais grave,
o médio, de som intermediário e o viola, menor de som menos grave.
Os instrumentos são citados ou homenageados em várias cantigas nas rodas de
capoeira. Dos instrumentos da capoeira, o mais homenageado é o berimbau, desde o
material que é usado para confeccioná-lo. Como vemos na chula, registrada por diversos
mestres, que diz: “Biriba é pau, é madeira, madeira prá tocar” (Autor desconhecido).
Podemos ver o berimbau como aquele que chama, que anuncia ou de algum modo atrai
os capoeiristas. Como podemos ver em diversas cantigas, o berimbau chama para a
capoeira, atua como um meio de comunicação ao mesmo tempo passa a ideia de ser
imbuído de uma autoridade sobrenatural, como podemos ver nos trechos das cantigas
destacados.
Cabôco do mato vem cá
O meu berimbau
Mando lhe chamá.
(Autor desconhecido)
Seja de noite ou de dia
Não importa o lugar
Quando toca o berimbau
Dá vontade de jogar
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral […]
(Mestre Bigodinho)
O apreço pelo instrumento também se manifesta em cantigas como a seguir.
Percebemos o “gunga” da cantiga como um documento de identificação, que o liga à
sua família e à sua ancestralidade.
Esse gunga é meu, esse gunga é meu
Gunga é meu, eu não posso vender
Esse gunga é meu, esse gunga é meu
Gunga é meu, foi meu pai que me deu
(Autor desconhecido)
Uma cantiga do Mestre Pastinha, muito conhecida nos treinos e rodas de
capoeira, homenageia o berimbau. Esta cantiga, o “B-A- bá do berimbau”, fala não
somente do instrumento, como também cita os toques: São Bento Grande, que é usado
tanto na capoeira angola quanto regional, e o toque de Angola da capoeira, tradicional
da angola.
100
Eu vou ler o B-A-Bá
B-A-Bá do Berimbau
a moeda e o arame
com dois pedaçoes de pau
a cabaça e o caxixi
aí está o berimbau
Berimbau é um instrumento
que toca numa corda só
vai tocar São Bento Grande
toca Angola em tom maior
agora acabei de crer
o Berimbau é o maior
Camaradinho
Yê Viva meu Deus
Yê viva meus Deus camarado
(Mestre Pastinha)
O atabaque é um instrumento de percussão como um tambor, feito basicamente
de madeira e couro. No candomblé são considerados instrumentos sagrados. São três os
atabaques: o rum, o rumpi e o lé. Nesta sequência, do maior para o menor, do mais
grave para o menos grave;
O pandeiro, instrumento formado por um círculo de madeira com pequenas
peças de metal presas em sua lateral, forrado de couro em um dos lados. Este
instrumento é conhecido há milênios, por diversas culturas, e tem sua origem atribuída
aos povos árabes. Antes mesmo de 1500 era conhecido tanto na África quanto na
Europa, contudo Rego (1968) diz que o pandeiro que conhecemos, chegou ao Brasil
através dos portugueses e logo se popularizou entre os escravos.
O agogô, instrumento de percussão feito em ferro, o que é tradicionalmente
tocado nas rodas de capoeira possue duas campânulas, também chamadas de bocas ou
sinos. Existem outros modelos de agogô, também chamados de gâ. No candomblé é um
instrumento sagrado relacionado ao Orixá Ogum.
O reco-reco, ganzá ou querequexé também é usado na capoeira E pode ser feito
com madeira, bambu ou cabaça marcado com fortes sulcos horizontais, e o som é
produzido raspando uma haste de metal sobre esses sulcos. De acordo com Biancardi
(2006), segundo informação prestada pelo Mestre João Grande, este instrumento foi
incorporado à capoeira após o surgimento das academias do Mestre Bimba e do Mestre
Pastinha.
O caxixi um tipo de chocalho em formato de cesta, feito com palhas, sementes
secas e um pedaço da cabaça como fundo. É normalmente tocado pelo mesmo
capoeirista que toca o berimbau. Biancardi (2006) cita os estudos do pesquisador
101
Mukunda que em sua tese diz ser o caxixi um instrumento de origem bantu, que veio
para o Brasil através dos escravizados vindos das regiões onde hoje estão Angola e
Zaire.
Na capoeira regional, seguida pelos discípulos do Mestre Bimba, os únicos
instrumentos usados são um berimbau e dois pandeiros. Sendo que ao finalizar a roda da
capoeira podem fazer uso de outros instrumentos para fazer o samba de roda.
Talvez o fato de os outros instrumentos musicais da capoeira não serem cantados
com mesmo destaque que tem o berimbau, seja devido ao cantador, que normalmente é
mesmo mestre que toca o gunga. Segundo as entrevistas, pudemos observar que é tarefa
do mestre tornar seus alunos aptos a participar das rodas de capoeira da sua modalidade,
angola ou regional, no caso dos mestres pesquisados, ou mesmo de outra modalidade,
de modo que ele deve passar para seus alunos noções de todos os instrumentos,
seguindo um programa de treinamento que depende do avanço individual do aluno.
Contudo, como foi dito, via de regra é o mestre que toca o gunga e canta
durante os eventos do grupo e fora dele. Para que o discípulo cante na roda é necessário
que haja confiança do mestre para com este. Supomos então que por este motivo nas
cantigas da capoeira os outros instrumentos aparecem em recorrência menor e é comum
que não apareçam sozinhos, mas associados ao berimbau, ou a outros instrumentos
citados para ilustrar a situação da roda de capoeira, como vemos nos trechos destacados
a seguir.
[…]
Um esporte que é brasileiro
Com som berimbau, atabaque e pandeiro
Um esporte que é brasileiro
(Mestre Brasília)
[…]
Sou angoleiro que vem de Angola
Valha meu Deus minha Nossa Senhora
Sou angoleiro que vem de Angola
Tocando pandeiro, berimbau e viola
(Autoria desconhecida)
[…]
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
O berimbau é de Aramê, O pandeiro é de couro de cobra!
Quero ver vocês brincando, com a gente aqui na roda!
(Mestre Boa Gente)
102
Os fundamentos
No trabalho de Castilho (2008), que estuda a relação entre a oralidade e a escrita
nos candomblés na Bahia, a autora percebe os fundamentos religiosos como “um corpo
de conhecimentos de circulação restrita” (CASTILHO, 2008, p. 25). De acordo com as
observações, entrevistas e com as cantigas, percebemos que na capoeira os fundamentos
são transmitidos com menos restrições, contudo a apropriação destes depende muito
mais dos alunos. Os chamados fundamentos, que no candomblé são considerados
“segredo,” acessível aos que preenchem determinados requisitos como o tempo de
permanência na casa, as iniciações e o cumprimento das obrigações, que estabelecem
uma hierarquia, na capoeira podemos perceber como algo que é passado principalmente
nas aulas, nas conversas com os mestres, nas rodas, nas cantigas. Na capoeira a
passagem dos fundamentos é uma das tarefas do mestre, pois são vistos como parte do
jogo.
Entre os mestres os valores fundamentais não são institucionalizados, podendo
variar de acordo com o pensamento do mestre. Nas entrevistas e conversas, bem como
nas cantigas, notamos que alguns valores mencionados deixam subentendido que atuam
como fundamento de determinado mestre e seu grupo. Deste modo, percebemos que os
fundamentos variam de acordo com o mestre ou o grupo, e a aquisição destes
fundamentos não depende unicamente dos ensinamentos do mestre, mas do
desenvolvimento do aluno na capoeira.
Nas palavras transcritas abaixo, ditas pelo Mestre Valdec, notamos que mesmo
não havendo um rol fixo dos fundamentos da capoeira, o domínio desses elementos é,
ou deveria ser, um requisito essencial na formação do mestre, em suas palavras:
Um aluno não pode ser graduado mestre se ele não domina todos os
fundamentos. Por mais excepcional que o aluno seja você não vai
graduar ele com pouco tempo, mas eu acredito também que tem
outros valores. Tem aluno que tem até tempo, ele faz muitas coisas,
mas não domina o fundamento. (Mestre Valdec em entrevista
concedida à pesquisa) (Grifos nossos).
A partir da fala do Mestre Valdec verificamos que o tempo, a observação e o
exercício são práticas que viabilizam a apropriação dos fundamentos, e o domínio
destes constitui-se requisito para a graduação do aluno em mestre.
Dentre os valores que observamos considerados fundamentos entre os mestres, e
pudemos organizá-los como de ordem do conhecimento teórico e prático da capoeira,
tais como o respeito às tradições, aos mestres e heróis da capoeira; de ordem prática,
103
como o conhecimento dos golpes, dos instrumentos, das cantigas e da histórias da
capoeira e conhecimento do ritual do jogo. Também referentes ao comportamento e ao
autocontrole como a prudência, o bom senso e a sagacidade, que podem ser algumas das
feições da mandinga, bem como a humildade e o carisma.
Contudo, os mestres e os estudiosos da capoeira que contribuíram com suas
conversas e entrevistas para este trabalho, atentam para a formação de alguns mestres e
capoeiristas que não demonstram no seu jogo ou nos seus atos esses fundamentos. O
que pode ser verificado através dos cantos estranhos às cantigas tradicionais no
ambiente das rodas, o uso de violência gratuita, o desrespeito para com os mestres e
alunos e também a falta de domínio dos movimentos e instrumentos da capoeira.
Na cantiga que segue de autoria do Mestre Pastinha, considerado como o
“filósofo da capoeira” por demonstrar valores como a humildade, sagacidade e
prudência nas suas falas, cantigas e jogo, podemos perceber a expressão da humildade
como valor da capoeira e a religiosidade presente nos valores afro-brasileiros.
Iê!
Maior é Deus
Maior é Deus
Pequeno sou eu
O que tenho, foi Deus que me deu
O que tenho, foi Deus que me deu
Na roda da Capoeira, ha há!
Grande pequeno sou eu.
(Mestre Pastinha)
As cantigas de sotaques são advertências para os que estão jogando, estão cheias
de significados que o capoeirista que domina os fundamentos, tanto está habilitado a
produzir quanto interpretar os códigos de alerta presentes essas cantigas.
O trecho de quatro versos que segue é de uso comum em diversas cantigas.
Serve de alerta para o capoeirista que enfrenta outro demonstrando falta de humildade e
arrogância em seu jogo, ou ainda, no caso de um capoeirista querer derrubar outro mais
experiente, sem contudo tornar o jogo agradável de se ver. Esta atitude é interpretada
como se todos da roda estivessem sendo privados de apreciar um jogo bonito.
Quem não pode não intima
Deixe quem pode intimá
Quem não pode com mandinga
Não carrega patuá.
(Mestre Pastinha)
De acordo com Rego (1968), a mandinga na capoeira não possui o mesmo
significado religioso do universo afro-brasileiro, o que há de referência à religiosidade
104
vem por outras vias (REGO, 1968, p. 39). Conforme Reis (2000), a mandinga na
capoeira é uma forma de iludir o oponente e disfarçar seu golpe até desferi-lo. Contudo,
nesta cantiga prevalece o sentido associado à religiosidade, pois o patuá É uma espécie
de amuleto protetor que defende dos feitiços, maus olhados e das mandingas.
É muito comum, fundamentos como a sagacidade, a humildade e o respeito
serem passados nas cantigas de forma alegórica. Destacamos a cantiga do Mestre
Canjiquinha que é bastante conhecida entre os capoeiristas.
Iê !
O calado é vencedor,
O calado é vencedor
Mas prá quem juízo tem
Quem espera ser fisgado, o meu bem
Não roga praga a ninguém
A mulher é como a cobra
Tem sangue de Peçanha
Deixa o rico na miséria, o meu bem
Deixa o pobre sem vergonha
Vou dizer pra meu amigo
Que hoje a parada é dura
Quem ama mulé dos outros, o meu bem
Não tem a vida segura
Camaradinho
(Mestre Canjiquinha)
Assim, percebemos que os fundamentos da capoeira são um conjunto de
princípios que reportam às experiências de vida, regras de conduta e ao conhecimento
dos elementos do mundo da capoeira. Neste sentido, as cantigas ao mesmo tempo que
fazem parte desse conjunto de fundamentos, de modo que se constituem como
elementos do mundo da capoeira, que todo bom capoeirista deve dominar, são também
meios de transmissão desses fundamentos, transmitidos de forma educativa e lúdica.
Deste modo, o segredo da capoeira consiste muito mais em ser adquirido e
compreendido, através da observação e da vivência, do que como algo que o mestre
guarda como um segredo para privar o discípulo ou aluno do conhecimento.
4.9 O Espaço
Vimos até aqui que as referências à África e ao Brasil são observadas e sentidas
em grande parte das cantigas de capoeira, seja por meio de palavras ou ideias.
Considerando o que tratamos nos capítulos anteriores sobre a história da capoeira e seu
processo de construção social, podemos perceber nestas cantigas a presença da África e
105
de Angola como locais de referência da construção da identidade afro-brasileira dos
capoeiristas de Salvador.
Ao mesmo tempo que o Brasil, a Bahia e Salvador, em muitas dessas cantigas
exprimem o sentimento dúbio de sofrimento e superação associados à história do negro
brasileiro, observamos que em grande parte das cantigas de capoeira de Salvador, os
termos Bahia e Salvador muitas vezes se complementam, ou tornam-se sinônimos,
como vemos no corrido do Mestre Pelé da Bomba transcrito a seguir
Bahia, minha Bahia
Bahia, São Salvador
Bahia, minha Bahia
Bahia, São Salvador
Bahia, minha terra
Minha terra, sim senhor
Que Bahia boa
São Salvador
Que Bahia boa
É Salvador
(Mestre Pelé da Bomba em entrevista concedida à pesquisa)
Considerando o caráter de referencial histórico desses locais para a capoeira,
notamos que a origem desta manifestação ainda é uma questão não resolvida, ao menos
nas cantigas de capoeira de Salvador. Embora no âmbito e entre grande parte dos
capoeiristas esteja ultrapassada a questão acerca da origem da capoeira, pois os diversos
estudos mostram a capoeira como uma das várias manifestações criadas e desenvolvidas
no Brasil pelos africanos escravizados e seus descendentes, vemos em muitas cantigas a
negação desta origem afro-brasileira. De modo que algumas cantigas concebem a
capoeira como uma manifestação africana transportada para o Brasil, onde se
desenvolveu entre os negros escravizados. Logo, de acordo com esta concepção teria
havido um continuum transatlântico da capoeira. Fato que, como vimos, com Mintz e
Price não ter sido possível tal continuidade, uma vez que não houve o transplante da
estrutura institucional que demandava o n’golo. Contudo ainda hoje é possível encontrar
alguns poucos capoeiristas que acreditam nesta versão, acentuada pelas cantigas de
capoeira como as do Mestre Pastinha que diz “[…] Capoeira vem da África Africanos
quem nos trouxeram […]” ou a do Mestre Boca Rica “Capoeira veio de Angola, Veio
da Bahia não […]”
Porém, observamos que em Salvador são também cantadas cantigas que
enfatizam a perspectiva da capoeira como manifestação de base africana, mas que
afirmam ter sido produção dos negros escravizados no Brasil. Assim, dentre várias
106
cantigas, destacamos dois trechos que contradizem a ideia do continuum transatlântico
Angola-Brasil da capoeira e marcam a capoeira como construção afro-brasileira
mostrando o Estado da Bahia como sua terra mãe. Mestre Brasília compôs uma cantiga
a qual podemos perceber como contextualizando o ambiente do surgimento da capoeira.
Capoeira nasceu na Bahia
Pro negro escravo defender
O baiano espalhou pelo mundo
O grande esporte prá você ver […]
(Mestre Brasília) (Grifo nosso)
Mestre Boa Gente, na cantiga intitulada “Joga ai que eu quero ver”, faz uso das
duas perspectivas a cerca da origem da capoeira, ao mesmo tempo que enuncia as duas
modalidades de capoeira mais conhecidas na Bahia, angola e regional, como podemos
observar no verso “Capoeira é uma arte de Angola e regional […]”, ou seja, de Angola,
referência à África e regional, à Bahia.
Notamos nos trechos destacados e em outras várias dessas cantigas, a intenção
de afirmar a origem baiana da capoeira, de modo que o caráter nacional da luta é posto
em segundo plano. Lembramos aqui Reis (2000) quando diz ser a capoeira baiana um
projeto étnico e regional, ou seja, que traz a proposta da valorização da capoeira jogada
pelos negros baianos, enfatizando suas histórias e experiências como a “verdadeira
capoeira”.
Vemos também expressões que procuram abranger a capoeira em esfera
nacional, mas nas cantigas de Salvador percebemos que mesmo quando fazem
referência à capoeira como produto nacional, atrelam-se elementos que direcionam o
texto da cantiga à Bahia, como podemos ver no trecho da cantiga composta pelo Mestre
Burguês em destaque:
Tá no sangue da raça brasileira
Capoeira
É da nossa cor
Berimbau
É da nossa cor
Canjiquinha65
É da nossa cor.
(Mestre Burguês)
Assim, percebemos que a valorização da identidade étnica é um referencial que
muitas cantigas de capoeira de Salvador procuram trabalhar. Verificamos que em muitas
cantigas a identidade nacional é deixada de lado, marcando a identidade baiana. Deste
65
Washington Bruno da Silva (1025 - 1994), conhecido como Mestre Canjiquinha, é considerado um dos
grandes mestres da capoeira de Salvador
107
modo, verifica-se a valorização do que poderíamos chamar de afro-baianidade, ou
apenas baianidade, visto que a identidade baiana é extremamente relacionada ao local, à
Bahia e a etnicidade.
Lembramos aqui que Salvador começa a se construir como a terra mãe da
capoeira durante os anos 30, quando o então presidente Getúlio Vargas conhece a
capoeira do Mestre Bimba e a considera como esporte genuinamente brasileiro. Neste
sentido, não somente a capoeira foi vista como esporte nacional, atendendo à demanda
nacionalista proposta pelo governo deste presidente, mas especificamente a capoeira
baiana passou a ser conhecida como a capoeira legítima, de modo que a Bahia tonou-se
a “meca da capoeira”. Deste modo, o “modelo da capoeira baiana” foi levado para
outros estados, muitos dos quais já havia capoeiragem de semelhante forma, com
mestres e academias, ainda que na ilegalidade, como também havia sido na Bahia.
Assim percebemos nas cantigas de capoeira que falam da Bahia e Salvador como cidade
da capoeira e prestam diversas homenagens à “boa terra”, buscam também a afirmação
deste status, como que traz benefícios, principalmente aos capoeiristas que trabalham no
exterior e os que trabalham com o turismo.
Embora todos os mestres entrevistados tenham alguma experiência de ensinar a
capoeira para turistas de outros estados e países, observamos que no geral as cantigas
não tratam sobre turismo e capoeira. Todos os entrevistados veem com desconfiança
esta relação e concordam que a capoeira não deve se moldar às demandas impostas pela
indústria do turismo, ainda que reconhecendo e lamentando a existência de capoeiristas
que adéquam sua capoeira a tal demanda. A esta capoeira, jogada para impressionar
turistas, Esteves (2003) classifica como “capoeira espetáculo”, o que seria uma
expressão da indústria do turismo que
Porém, paralelas às mudanças evolutivas normais66
, se apresentam
outras que, por força das exigências de um mercado consumista, criam
evoluções [na capoeira] que a descaracterizam como acontece com as
evoluções provocadas por sua relação com o turismo. (ESTEVES,
2003, p. 114). (Grifo nosso.)
66
Estas “mudanças evolutivas normais”, seria a forma de Esteves (2003) conceber o aspecto dinâmico da
cultura que lhe permite aceitar as mudanças e transformações a partir de necessidades do grupo que a
desenvolve. Deste modo, se aproximaria à concepção de Hobsbawm sobre o costume nas sociedades
tradicionais, quando diz que este “tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e
pode mudar até certo ponto, embora seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou
idêntico ao precedente.”
108
A cantiga cujo trecho retiramos apresentada a seguir, de autoria do Mestre
Ezequiel, fala sobre a “Rampa do Cais da Bahia”, um dos primeiros lugares onde a
capoeira foi apresentada com a intenção de ser exibida para grupos de turistas.
Eu aprendi capoeira
Lá na rampa e no cais da Bahia
O gringo filmava me fotografava
Eu pouco ligava,também não sabia
Que essa foto ia sair no jornal
Na França ou na Rússia, ou talvez na Hungria.
(Mestre Ezequiel)
Percebemos nesta cantiga que o turista é considerado como público e apreciador
do jogo do capoeirista, contudo também notamos que o turista de certo modo se
aproveita da ignorância, sinalizada pelo o fato de o capoeirista não saber, que a foto
seria publicada em jornal no exterior. Por outro lado, nesse trecho da cantiga também se
percebe o papel do turismo na exportação da capoeira baiana para outros países.
4.10 Narrativas
Algumas cantigas de capoeira unem elementos da experiência pessoal e mística
do autor com fatos do cotidiano e sua religiosidade. Como podemos perceber na cantiga
composta por Mestre Pelé, apresentada no II Festival de Música Tradicional da
Capoeira e também cantada pelo próprio Mestre Pelé durante a entrevista concedida à
pesquisa.
Tava na beira da praia
Sem pensar, sem imaginar
Tava na beira da praia
Sem pensar sem imaginar
Apareceu moça bonita
Me mandou foi me chamar
O que foi que ela me disse?
“meu filho vai logo pescar”
Eu peguei o meu saveiro,
Comecei a remar
E peguei minha tarrafa
joguei no fundo do mar
Eu peguei mil e um peixe,
Eu peguei mil e um peixe
Janaina67
mandou pescar
Janaina, rainha do mar
Janaína, rainha do mar...
(Mestre Pelé da Bomba)
67
Janaína é a alcunha sincrética de Iemanjá considerada entre os devotos das religiões afro-brasileiras
como a Rainha do Mar.
109
Na entrevista, o mestre Pelé da Bomba complementou o que diz na cantiga com
a seguinte explicação que trata da sua experiência:
Isso é meu, cantiga propriamente minha. É do meu fundamento que
sai da capoeira ... e já aconteceu. Aconteceu o seguinte: Todo mundo
não vai prá praia, de vez em quando, tem uma visão? A gente tá ali na
beira da praia tomando um banho ou ali pescando qualquer coisa não
pede prá Janaína ajudar a entrar no mar? Ai então foi isso, ela que
estava lá no meio do mar, mandou que eu fosse. Eu estava na beira da
praia, [ela] mandou que eu fosse. Eu já tava preparado prá pescar,
mandou que eu fosse pescar. Ai eu peguei o saveiro68
e a tarrafa69
já
estava em cima do ombro. A tarrafa a gente joga assim: (mostrou com
movimento dos braços como se joga a tarrafa). Ela me chamou e disse
assim: ‘Meu filho vai logo pescar’. Ai eu peguei o meu saveiro e
comecei a remar. Ai quando eu peguei meu saveiro e comecei a remar,
ai peguei minha tarrafa, no meio do mar, joguei a tarrafa. Aí eu peguei
a tarrafa e ‘peguei mil e um peixes’. Quer dizer, eu peguei mais de mil
peixe. Ela mandou pescar... E ela é a rainha do mar. Essa história é
muito importante e não é todo mundo que usa (conta) essa história, né.
Principalmente na capoeira que fazem as músicas voluntaria, doida,
qualquer, não tem fundamento. Pois as minhas cantigas todas elas tem
fundamento. Tanto elas tem meus fundamentos que o compositor sou
eu mesmo. (Mestre Pelé da Bomba em entrevista concedida à
pesquisa.)
Um elemento que aparece na fala do Mestre Pelé da Bomba, e que tratamos
anteriormente, é o fundamento. Para este mestre, os seus fundamentos incluem a
transmissão de suas experiências como inspiração para a composição das suas cantigas
de modo que não somente o fato, como também a narrativa, a forma de contar o fato, é
transmitida através das cantigas.
Contudo, notamos outra linha de composição das cantigas de capoeira de
Salvador, também narradas em primeira pessoa, apresentadas em forma de narrativa e
que apresentam alguns fatos contraditórios e/ou idealizados. Notamos que as cantigas
da capoeira são em muito embasadas no que se conhece através da tradição oral,
passada principalmente através dos mais experientes na capoeira,e do que se aprende na
escola, nas aulas de História do Brasil.
Embora saibamos que a História oficial não tenha se preocupado em registrar as
narrativas e fatos relevantes para os negros escravizados, desde a sua chegada ao Brasil,
mas sim, o que era importante para seus comércios e suas demais atividades, vemos que
a memória foi um modo de registro daquilo que acontecia, e era transmitido oralmente,
devido a importância da tradição oral, para a maioria dos grupos escravizados.
68
Saveiro é um tipo de embarcação usada entre os pescadores. 69
Tarrafa: instrumento usado em pesca. O mesmo que rede de pesca.
110
Conforme podemos observar na próxima cantiga, de autoria de Nicolas Severin,
intitulada “Ancestrais Africanos”, apresentada no II Festival da Música Tradicional da
Capoeira, percebemos, aspectos desse tipo de narrativa.
Quando da África eu cheguei
Me trouxeram os portugueses
Travessia em caravela
Passei fome e humilhação
Num porão bem apertado
Dentro desta embarcação
Minha família eu perdi
Nunca mais vi os meus amigos
Até quisera tirar
A cultura que eu aprendi
Com esforço na Bahia
África eu reconstruí
Hoje canto capoeira
Danço n’golo com paixão
Você pode ter certeza
Disso eu não abro mão
Muito duro foi o trabalho
Pra manter a tradição
(Nicolas Severin)
Percebemos esta cantiga como uma ficção que procura recriar e narrar a
experiência dos negros escravizados chegando ao Brasil, mais exatamente à Bahia, o
que reforça a ideia da “legitimidade da capoeira baiana”. Também é lembrado o
desenvolvimento da capoeira a partir do n’golo, que remonta à questão acerca da origem
africana da capoeira. Percebemos também elementos referentes a Angola e ao navio
negreiro, que fazem parte do conjunto de imagens da escravidão colonial e, por
extensão, da construção da identidade afro-brasileira da capoeira, visto que foi contexto
da escravidão colonial que inúmeras práticas, instituições e expressões afro-brasileiras
tiveram seu início.
Encontramos também cantigas que, ao mesmo tempo pontuam como lembranças
fatos conhecidos através das narrativas sobre as experiências desumanas que passaram
os negros escravizados. Também imprimem a marca do seu contexto de produção, como
vemos na cantiga de Rose Meire Araújo, ou Speed, como é conhecida na capoeira.
Iê
Quando eu falar da capoeira
Fale de ancestralidade
Não esqueça meu irmão
Sua verdadeira identidade
A capoeira revelou
111
Pra você não esquecer
Negros e índios, meus irmãos
Apanharam pra valer
Tudo isso é muito forte
Pra poder recordar
Mas essa é nossa História
Temos que fazer respeitar
Capoeira, que capoeira
Se respeita meu irmão
Muitas vezes tive raiva
Do fundo do coração
Essa raiva emocionada
Que só nos fez chorar
Em pensar que o povo negro
Sofreu tanto pra poder se libertar
Esses fatos são relatos
De tamanha covardia
Nos tiraram do acalanto
E da profunda harmonia
Pensando que o negro era
Frágil, meu senhor
Massacraram nossa raça
Achando que não tínhamos valor
Apesar de tanto sofrimento
O negro se libertou
Imperando sua alegria
Ensinando sua filosofia
Se auto-afirmou
Iê, viva o negro
Viva o negro, camará
Iê, se libertou
Se libertou , câmara…
(Rose Meire Araújo)
Notamos neste tipo de cantiga a clara intenção de falar da História do negro no
Brasil, desde a África até o momento presente. Deste modo, compreendemos a cantiga
da capoeira como uma forma de contar essa história. De acordo com o Mestre Valmir
Damasceno, as cantigas têm a capacidade de trazer e manter o passado na memória, de
modo a poder questionar o contexto a que se reporta a narrativa, os usos das palavras e
expressões naquela cantiga, como verificamos em “Riachão tava cantando”, conhecida
cantiga do Mestre Waldemar, que descreve as feições de um negro em termos
pejorativos, ainda põe em questão a sua condição de homem livre.
112
Deste modo, percebemos que mesmo os antigos sambas de roda, convertidos
em cantigas de capoeira, podem ser trabalhados de modo a alertar os alunos para as
formas de preconceito racial, em músicas e outros textos que hoje se tem acesso.
Riachão tava cantando
Na cidade do Açu
Quando apareceu um negro,
Da espécie de urubu Tinha camisa de sola
Calça de couro cru
Beiços grossos e virados,
Como a sola de um chinelo Um olho muito encarnado
O outro bastante amarelo
Ele chamou o Riachão,
Para vim cantar martelo
Riachão arrespondeu
- Eu aqui não tô cantando,
Com negro desconhecido
Ele pode ser cativo
E andar aqui fugido Camaradinha
(Mestre Waldemar)
Lembramos aqui que esta cantiga não foi inicialmente composta para ser cantada
nas rodas de capoeira, mas nos sambas de roda. Apenas por volta dos anos 30 as
cantigas de capoeira passaram a ser compostas por capoeiristas, e com esta finalidade.
Hoje, alguns mestres de capoeira reprovam a execução de cantigas de samba de roda na
roda de capoeira, contudo, o Mestre Pelé da Bomba, o mais idoso e com maior tempo de
capoeiragem entre os entrevistados, afirmou em entrevista que grande parte das cantigas
da capoeira vinha não somente do samba de roda, como também do candomblé.
4.11 Definições da capoeira
São muitas, talvez tantas definições de capoeira quanto os que a definam. Os
argumentos apresentados são vários, transitam entre a subjetividade e as generalizações.
Com diz a célebre frase do filósofo da capoeira, o Mestre Pastinha, “Capoeira é tudo o
que a boca come”.
Campos (2001) apresenta algumas compreensões que a capoeira ao longo do seu
processo histórico adquiriu, ou que atualmente convivem harmoniosamente, como
diferentes feições da capoeira: luta, arte e dança, folclore, esporte, lazer e filosofia de
vida. Contudo não adotaremos estas como subcategorias, considerando o desuso da
capoeira como folclore e a necessidade abordá-la como esporte e ritual.
113
Considerando a sua origem e desenvolvimento, a capoeira é luta. A capoeira é
antes de tudo expressão da luta dos negros escravizados como forma de resistir
culturalmente, socialmente e fisicamente. De acordo com Campos (2001), “representa
sua origem e sobrevivência […] como instrumento de defesa pessoal genuinamente
brasileiro.” (CAMPOS, 2001, p. 83). Quanto à sua eficácia, uma cantiga mioto
conhecida adverte: “Zum, zum, zum / Capoeira mata um” (autor anônimo).
Semelhantemente a Campos (2001), Mestre Ezequiel define a capoeira em sua cantiga:
[…]
Uma luta que pode matar
Capoeira, arma poderosa
Luta de libertação
Brancos e negros na roda
e abraçam como irmãos.
(Mestre Ezequiel)
Conforme podemos observar nas cantigas, este é o aspecto que mais é
considerado pelos capoeiristas, ainda que em muitas cantigas a capoeira seja definida
com mais de uma feição, como vemos nos trechos destacados da cantiga do Mestre
Brasília:
É defesa é ataque
A ginga de corpo
E a malandragem
[…]
Capoeira nasceu na Bahia
Pro negro escravo defender
(Mestre Brasília)
De acordo com Rego (1968), os negros escravizados disfarçavam a capoeira luta
com uma forma de dança, praticada nas horas de folga, de modo que os senhores e
feitores ao ver aquela movimentação gingada não se dessem conta que tratava-se do
treino de uma luta. Também no final do período que vigorou o Decreto 847, de 11 de
outubro de 1890, que criminalizava a prática da capoeira, alguns capoeiristas procuraram
esconder o caráter marcial da capoeira através de uma roupagem de dança folclórica.
Contudo a capoeira até hoje é também entendida como arte e dança. Podemos ver a
dupla face luta/dança da capoeira no trecho destacado da cantiga de Mestre Brasília.
Você dança e se defende
Nesta ginga original
Que mexe tanto com a gente
Envolvendo até a mente
Na origem mundial
(Mestre Brasilia)
114
A capoeira como esporte foi institucionalizada desde a década de 70 do século
passado. Conforme Campos (2001) relaciona-se ao preparo físico enfocando a
competição desportiva. Contudo, Mestre Pastinha adverte (1988) que deve ser praticada
com cuidado, pois, lembra, possui golpes violentos que podem matar.
Hoje é luta nacional
Surgiu de baixo padrão
Na ginga defesa e ataque
Hoje é esporte e educação
(Mestre Brasília)
Ainda no sentido esportivo, mas de forma menos formal, a capoeira é
frequentemente chamada de jogo. Tanto quanto luta esta feição aparece nas cantigas
tradicionais. Observamos que este termo é tanto usado para designar um caráter
desportivo, quanto para falar da sua feição violenta, conforme observamos nos trechos
de cantigas que seguem.
Olha o jogo de dentro e o jogo de fora
Sou angoleiro que vem de Angola
Jogo por Deus e por Nossa Senhora
Sou angoleiro que vem de Angola
E jogo com você a qualquer hora
Sou angoleiro que vem de Angola
Vou mostrar prá você
O meu jogo de angola
(Autor desconhecido)
Percebemos também a capoeira como uma forma lúdica, associada ao lazer,
praticada nos momentos de folga com a finalidade de divertimento. Conforme dito,
ocorria durante a escravidão, mas também é possível perceber a capoeira como uma
prática lúdica para adultos e crianças, como podemos ver nos trechos selecionados de
algumas cantigas, a roda ou o jogo da capoeira adquire o sentido leve de uma
brincadeira: “Quero ver vocês brincando, com a gente aqui na roda!”.
Se você quiser
Vai ter que praticar
Mas na roda de Capoeira
E’ gostoso de jogar
(Mestre Brasília)
O aspecto educativo da capoeira é percebido através das relações de respeito
com os mestres, da disciplina que este impõe ao aluno e de uma série de princípios e
fundamentos ensinados e aprendidos, de modo informal, pelos alunos que estão
interessados em aprender sobre a capoeira, como vimos quando falamos sobre o mestre,
ancianidade e ancestralidade.
115
A capoeira tem uma forte feição ritual que pode ser percebida desde a formação
da roda, à sequencia das cantigas e à saída dos participantes no jogo. Nas cantigas as
referências ao aspecto ritual do jogo pode ser percebida com a descrição da
movimentação do capoeirista, como vemos detalhadamente descrita na cantiga em
destaque:
Na roda de capoeira
Vou no pé do berimbau
Antes da volta ao mundo
Faço pelo sinal
(Mestre Brasília)
Durante a ladainha, os capoeiristas permanecem agachados “no pé do berimbau”
ouvindo sua execução, até quando é cantada a chula, então, dá-se a volta por dentro da
roda como forma de cumprimentar os presentes. Sobre fazer o pelo sinal, é uma prática
realizada pelos capoeiristas católicos ou os identificam como sincretismo religioso,
podendo haver outras formas de realizar suas entradas na roda, saudando os seus orixás
ou realizando algum outro tipo de performance.
Vimos deste modo que as cantigas de capoeira relacionam-se à construção da
identidade cultural afro-brasileira por transmitir valores, princípios e um pouco da
História dos africanos e afrodescendentes no Brasil, com isso trazendo reflexão sobre o
lugar atual do negro na sociedade. Assim, percebemos através das categorias aqui
elencadas elementos do universo afro-brasileiro que são imbricadas na formação desta
identidade cultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A capoeira, muito antes do seu reconhecimento como patrimônio cultural
brasileiro em 2008, integra o conjunto da cultura nacional,70
não apenas como uma das
suas formas de expressão, mas também como discurso de liberdade, resistência e luta
por valores com os quais nos identificamos como sujeitos da cultura afro-brasileira.
70
Tomamos o conceito de Stuart Hall (2006) acerca das “culturas nacionais como comunidades
imaginadas” e salientamos o aspecto da cultura nacional apresentar-se segundo o autor, como “uma das
principais fontes de identidade cultural” (p.47).
116
Deste modo, a representação cultural da capoeira mostra-se cara aos afrodescendentes,
como um fator de afirmação identitária, e de sua luta social e política, ou seja,
A performance da capoeira é um drama narrativo. Cada vez que
ocorre, ela evoca o ato escravo da rebelião. É digno de nota que a
performance da capoeira somente reencena o confronto, a verdadeira
luta entre escravo e seu opressor, e não retrata sua lógica conclusão: a
fuga. (AQUINO, apud. REIS 2000, p. 180). (Grifo nosso)
Neste sentido, observamos ao longo do trabalho que a capoeira nasce do
contexto da escravidão colonial no Brasil e se apresenta como forma de luta e
resistência física e ideológica, transmitida através da memória e da oralidade, como
podemos ver nas narrativas, nos modos de vida, na corporeidade e nas cantigas dos
mestres e capoeiristas. A capoeira é, portanto, outro canal de expressão de
“fundamentos” e valores do universo afro-brasileiro.
Vimos ao longo deste trabalho que a capoeira é uma tradição multifacetada que
teve seu início no encontro forçado entre diversas etnias, às quais pertenciam negros
africanos escravizados e seus descendentes no Brasil e revelou seu caráter de luta e
resistência libertária. Vimos também que a capoeira vem sendo recriada pelos próprios
sujeitos que a praticam. São estes sujeitos que ressignificam esta tradição, inovando,
criando novos estilos de capoeira, tanto do ponto de vista técnico quanto simbólico.
Considerando os novos contextos nos quais estamos inseridos e do qual a
capoeira opera em conjunto, como os novos meios de comunicação e registro e demais
benefícios proporcionados pelos avanços tecnológicos, bem como as novas frentes de
batalha e resistência que buscam, não a tolerância, mas o respeito à diversidade étnica e
“racial”, à cultura e aos valores afro-brasileiros, dentre os quais OS movimentos sociais,
acadêmicos e culturais, podemos perceber que de modo geral, a capoeira ainda hoje
continua expressando seu caráter dinâmico e de luta social e política no combate à
discriminação e marginalização dos afrodescendentes.
Assim, pôde-se observar, ao longo deste trabalho, que a capoeira expressa seu
caráter ambíguo de diversos modos. Tanto por estar ancorada entre as categorias de luta,
jogo e dança, quanto pelo viés histórico que a relaciona à trajetória dos negros no Brasil.
Podemos ver seu aspecto cultural, social e político, que ainda tem como diferencial uma
série de elementos que entram em cena no momento da roda, dentro e fora dela, o que
lhe confere maior complexidade em ordem social e simbólica.
117
Com base na metodologia aplicada nos estudos das representações sociais,
buscamos identificar nas falas dos capoeiristas, através das entrevistas e das cantigas, as
representações que os capoeiristas constroem de si e da sua identidade, como sujeitos da
cultura afro-brasileira e, assim, analisando como estes se expressam nas cantigas da
capoeira.
Deste modo, o estabelecimento das categorias e subcategorias, através das quais
buscamos perceber as cantigas de capoeira como expressão da identidade cultural afro-
brasileira, nos permitiu perceber a estreita relação dos capoeiristas de Salvador em dois
aspectos principais ligados sempre à capoeira. O primeiro, diz respeito à sua origem
étnica, relacionada de modo geral à África e, quando especificada, Angola. Isto se deve
não somente à modalidade capoeira angola, mas também ao país africano, de onde
vieram grande parte dos povos de origem bantu, os quais praticavam o rito de passagem
chamado n’golo, o qual é a manifestação de origem africana conhecida que mais se
assemelha ao jogo da capoeira.
Notamos que de modo geral as referências aos valores afro-brasileiros permeiam
quase todas as cantigas, bem como a história dos afro-brasileiros, dentre as quais a da
criação da própria capoeira, apresentando-se principalmente como resultantes das
lembranças do tempo da escravidão. Neste caso, notamos a memória e a oralidade como
principais valores envolvidos neste processo de criação.
Tais referências ocorrem nas cantigas, tanto através de ideias ,como através de
palavras específicas que remetem ao discurso da identidade afro-brasileira. Assim,
percebemos como na cantiga que diz: “Vou dizer ao meu sinhô, que a manteiga
derramô” (autoria desconhecida), algo que remete à relação “senhor-escravo”. Neste
sentido notamos a construção de um todo de referências da identidade afro-brasileira,
que é maior que a soma das suas partes. Deste modo, percebemos que os capoeiristas,
na composição das suas cantigas, buscam declaradamente expressar valores, histórias e
experiências relacionadas ao universo afro-brasileiro, e esta intencionalidade pode ser
vista pelos capoeiristas como principal elemento das cantigas tradicionais da capoeira.
Por este motivo muitos capoeiristas reprovam a execução de cantigas de outras formas
de composição, que não seja no modelo de ladainha, quadra, chula ou corrido e que não
tenham a intenção de falar sobre o universo afro-brasileiro.
Cumpre salientar que o momento de criação de muitas cantigas de capoeira é
durante a própria roda. A composição se dá de forma espontânea, o que não quer dizer
que não existiu reflexão prévia sobre a temática, ou mesmo sobre os termos a serem
118
usados no momento da roda ou do treino. Após isso as cantigas vão se aprimorando de
treino em treino, de roda em roda, à medida em que são cantadas, até ganhar sua versão
final. Outras vezes, logo quando surge a cantiga, toma-se nota e faz-se as modificações
no papel posteriormente. Por estes motivos, podemos perceber ao comparar dois
registros da mesma cantiga, feito por mestres diferentes, ou ainda pelo mesmo mestre,
em momentos diferentes, algumas variações de palavras, ordem das estrofes e ideias.
Deste modo, compreendemos que o principal contexto de produção das cantigas,
é o momento da roda ou treino de capoeira, no qual ocorre sua elaboração, e ao mesmo
tempo ela se produz e se comunica. Observamos também que existem cantigas que são
conhecidas entre grande parte dos capoeiristas, em sua maioria composições de
capoeiristas desconhecidos, ou sambas de roda de épocas em que eram cantadas nas
rodas de capoeira por não haver cantigas específicas da capoeira.
Foi observado que à exceção de dois mestres, os demais utilizam em seus treinos
meio de reprodução de áudio, através de CD’s e/ou mp3 player, com músicas de
capoeira cantadas por mestres como Waldemar, Bimba, Canjiquinha, Boca Rica e
Acordeon, dentre outros. Com isto notamos que as novas tecnologias são usadas na
capoeira como uma forma de fazer conhecer ainda mais as cantigas tradicionais da
capoeira, pois, as cantigas registradas por estes mestres são entendidas por grande parte
dos capoeiristas como modelos de como compor, como tocar e como cantar as cantigas
tradicionais. Também foi possível notar, como no caso do grupo de capoeira Bantu, do
Mestre Valdec e da FICA, do Mestre Valmir, que alguns grupos possuem CD’s próprios
e publicações contendo registro das cantigas executadas em seus treinos e rodas. As
cantigas destes CD’s podem ser de composição do próprio grupo, em produção
individual ou coletiva, ou cantigas de mestres conhecidos ou ainda de autor anônimo.
Observa Rego (1968) no seu livro “Capoeira Angola”, que é arriscado tentar
estabelecer uma linha divisória entre as cantigas de capoeira mais antigas e as mais
recentes, uma vez que a sua maioria reproduz um padrão, e diversos elementos das
cantigas antigas são encontrados nas cantigas de composição recente, bem como
personagens e fatos do passado que ainda hoje são mencionados nestas cantigas.
Contudo, algumas cantigas mais recentes podem ser identificadas, considerando
alguns aspectos específicos, como a religiosidade afro-brasileira, com a exaltação
declarada aos orixás. Fato que quando ocorriam as referências à religiosidade, nas
cantigas de capoeira mais antigas, são citados mais nomes e práticas católicas, ainda que
algumas cantigas mencionem algum orixá, este poderia ser encoberto por nomes de
119
santos católicos como na chula de autoria desconhecida que diz: “Santa Bárbara de
relampuê”, ou “Valha me Deus, Senhor São Bento”. Também a religiosidade afro-
brasileira aparece em frases de efeito como “Quem não pode com a mandinga, não
carrega patuá.” ou “Bahia minha Bahia/Bahia dos Orixás/ Bahia de Menininha/
Menininha do Gantois.”.
Atualmente podem ser verificadas cantigas de capoeira que exaltam o nome de
Jesus Cristo. Fato decorrente do crescimento dos grupos evangélicos em Salvador,
iniciado a partir da segunda metade do século passado. Devemos ressaltar que estas
cantigas são compostas e cantadas apenas entre os grupos específicos formados por este
segmento religioso.
Alguns trechos ou estrofes inteiras são encontrados em cantigas diversas, alguns
apenas na modalidade chula, ou somente nos corridos, contudo podem também ser
encontradas em duas ou mais modalidades de cantigas, do mesmo modo que podem ser
encontradas em modalidade ladainha, na capoeira angola e na quadra da regional, cujos
trechos destacaremos e faremos as devidas anotações.
De acordo com as palavras do Mestre Valmir Damasceno, quando diz que: “A
música na capoeira é a expressão de uma coisa que você está sentindo, que você está
vivendo, de uma coisa que aconteceu no passado, que aconteceu no presente.” (Mestre
Valmir em entrevista concedida à pesquisa), podemos perceber que a noção de
temporalidade nas cantigas da capoeira imbrica o passado com o presente, no sentido de
proporcionar um constante relembrar e refletir sobre a situação do homem negro-
africano e seus descendentes. Tirados da sua terra natal como mercadoria, os africanos
chegaram ao Brasil como escravos, enfrentaram as situações desumanas do cativeiro,
dos trabalhos forçados, das coações e tentativas de torná-los objetos destituídos de alma
e humanidade.
Com a abolição, a maioria dos afro-brasileiros foi vista e tratada como cidadãos
de segunda classe, e, ainda hoje, grande parte é privada do acesso a bens e direitos
básicos, como moradia digna, educação de qualidade e saúde. Hoje, contudo, sob o
título de classe social, o que antes seria “classe racial”, visto que no Brasil, a pobreza e a
miséria, todos sabem, tem cor.
Deste modo, podemos perceber nas cantigas da capoeira não somente a intenção
de não se esquecer desse capítulo do passado compartilhado pelos ancestrais, como
também, com base nessa história, a intenção de enfatizar as lembranças das lutas e
resistências organizadas por esses africanos e afrodescendentes, os heróis, o modo de
120
vida, os valores, costumes e crenças e o processo de formação do que resulta no que
podemos chamar de culturas e identidades afro-brasileiras, que como tal, encontra-se
em permanente movimento. Neste sentido, longe de aceitar resignadamente a sujeição
aos senhores e autoridades, africanos e afrodescendentes resistiram e lutaram de
diversas formas. Deste modo, notamos que as cantigas de capoeira mostram-se como
uma das manifestações que promovem esta articulação do passado com o presente.
Outro aspecto que podemos perceber neste trabalho com relação às cantigas de
capoeira, diz respeito ao seu forte caráter local e regional. Vimos em Reis (2000), que
desde os anos 30 do século passado, a capoeira foi considerada esporte nacional,
lembrando a autora que o modelo da capoeira nacionalizado foi a capoeira baiana. Neste
sentido observamos que em Salvador as cantigas de capoeira, em sua maioria, procuram
salientar a capoeira como uma criação baiana. Assim, observamos que ao mesmo tempo
em que essas cantigas tratam do drama da escravidão, da “libertação” do negro
escravizado, das lutas, dos instrumentos da capoeira, dos valores afro-brasileiros e da
situação geral do negro no Brasil, também na vemos a celebração dos grandes mestres
da capoeira baiana, como Canjiquinha, Waldemar, Pastinha, bem como grandes mestres
baianos que levou a capoeira baiana para outros estados; a alusão a locais de Salvador
como o Bonfim, o Pelourinho e a Piedade e a cidades da Bahia, como Santo Amaro se
referirem a um local, a uma Bahia que procura se afirmar berço da capoeira original e
“legítima”, por isso considerada a “meca da capoeira”.
Deste modo percebemos esse movimento de localização da capoeira baiana em
Salvador e na Bahia, restrita exclusivamente às modalidades angola e regional. Como
uma construção que deve a sua manutenção tanto à sociedade civil, principalmente à
parcela formada pelos próprios capoeiristas, quanto ao poder público estadual e
municipal, no que concerne às propagandas das suas obras públicas e formas de
divulgar a Bahia como destino turístico, no qual a cultura afro-brasileira é o principal
diferencial e produto cultural.
Reis (2000) evidencia a promoção da capoeira baiana como a capoeira
“autêntica”, e o consequente esquecimento da capoeira carioca, entendendo a carioca e
as demais modalidades de capoeira, como inautênticas. Considera que “pode ser
interpretada como um embate político travado no interior de alguns segmentos negros
da população brasileira empenhados na hegemonia da cultura negra no país.” (REIS,
2000, p. 97), contudo a autora não informa quais seriam estes segmentos. Mesmo assim,
é possível perceber que esta localização da capoeira baiana tomou feição mítica a partir
121
da sua tentativa de regular a atividade capoeirística, considerando que houve em outros
momentos, outras tentativas de regular esta atividade.
Pudemos perceber com este trabalho que uma série de interesses entraram no
jogo da capoeira, como os interesses políticos da época da sua nacionalização, que
convenientemente correspondiam aos anseios da política nacionalista; também os
projetos do Mestre Pastinha, nos quais a capoeira Angola era pensada como a
representante da “capoeira africana”; e o projeto da capoeira regional do Mestre Bimba,
como a representante da capoeira da sua região, conforme sugere o próprio, mesmo sem
considerar os “segmentos negros da população” os quais Reis (2000) aponta como
grupos ligados aos movimentos negros o que, visto por este ângulo, denotaria a
prevalência da militância baiana, seja pela luta, pelas relações, seja pelos anseios do
governo populista.
Hoje percebemos que esses fatos foram fundamentais para a mitificação de
Salvador, se não como berço, ao menos como a “meca da capoeira”, e atrelado a este
status podemos observar a expansão do turismo em Salvador e a comercialização da
cultura e da imagem afro-brasileira no mercado da cultura e do turismo, o que leva a
alguns capoeiristas a criar adaptações na capoeira, reprovadas por muitos mestres mais
tradicionais.
Os mestres que trabalham com os segmentos mais tradicionais da capoeira, e
seus discípulos, consideram tais adaptações como descaracterizações da capoeira, por
estarem cedendo a uma demanda com a qual não se identifica nenhum aspecto da
cultura afro-brasileira, mas a uma nova forma de exploração desta cultura. Contudo,
notamos que os mestres não se opõem às mudanças decorrentes de novas necessidades,
e às adaptações da capoeira ao contexto atual, tais como a entrada das mulheres na
capoeira, o uso de aparelhos de reprodução de áudio, visto que nem sempre há no
momento do treino pessoas suficientes para a prática dos movimentos e composição da
orquestra, principalmente da capoeira angola; o uso e consultas aos livros sobre a
capoeira, em conjunto com as práticas orais; a publicação de livretos em papel e digital
contendo as cantigas que o grupo canta nos treinos e rodas, algumas vezes, dependendo
do público a que se destina são seguidas das traduções para o inglês e francês para que
não somente a questão musical seja passada, mas também o conteúdo e o discurso
presente nestas cantigas.
Notamos que a capoeira se formou juntamente com a História do negro no
Brasil. A capoeira passou diversas transformações processuais, tanto como prática (luta,
122
dança, esporte e patrimônio nacional), tornou-se também um ritual que envolve
instrumentos e cantos, movimentação e filosofia de vida, ou seja, a forma de se
relacionar com os outros e consigo mesmo, de perceber e reagir aos acontecimentos do
cotidiano.
Assim, das senzalas às maltas e aos mestres Bimba e Pastinha, pudemos
perceber as cantigas de capoeira como expressão que procura rememorar e manter viva
na memória dos afro-brasileiros a trajetória do negro no Brasil. Deste modo,
percebemos nas cantigas seu caráter cultural, social e político, pois, ainda se faz
necessário discutir em várias frentes sobre questões que envolvem a etnicidade, a
nacionalidade, bem como questões relacionadas ao racismo e às desigualdades sociais e
segregação urbana, estes dois últimos, sabe-se que atrelados, haja vista considerando os
estudos de Garcia (2009) que trata das desigualdades raciais nas cidades de Salvador e
do Rio de Janeiro.
Por fim, desejamos com o presente estudo acerca das feições da identidade
cultural afro-brasileira, expressada através das cantigas de capoeira em Salvador, ter
contribuído para as reflexões sobre a cultura afro-brasileira e para pensar sobre o papel
das cantigas que seguem os moldes tradicionais e o seu iniciado processo de
descaracterização ante as exigências de fatores externos, como a indústria do turismo
em Salvador. Pensando o quê ou quais seriam as inovações que mantém as referências e
permitem a sensação de continuidade histórica e cultural, ou a partir de quando se trata
do desenvolvimento uma caricatura cultural, se é que isto de fato acontece.
Vimos, tanto nas cantigas, quanto nas entrevistas, que a capoeira baiana propõe a
ideia de uma capoeira pontuada pelo exercício integrado, do corpo e dos fundamentos,
baseada no respeito às tradições e na valorização da identidade afro-brasileira. De
acordo com as palavras do Mestre Valmir, “A música na capoeira é a expressão de uma
coisa que você está sentindo, que você está vivendo, de uma coisa que aconteceu no
passado, que acontece no presente.” (Mestre Valmir em entrevista concedida à
pesquisa). Nesta fala, podemos perceber que esta temporalidade estabelece referência da
chegada dos africanos no Brasil ao momento presente, o qual a memória ancestral dos
que aqui aportaram se faz presente e se expressa nas cantigas. Disto, podemos concluir
que o principal papel das cantigas de capoeira é manter viva na memória dos
capoeiristas as referências das lutas dos seus antepassados na construção da identidade
afro-brasileira, a qual hoje somos portadores e sujeitos das suas ressignificações.
123
A relevância do presente estudo está em pensar nas cantigas dando visibilidade a
estas, destacando sua feição de documento da oralidade, que contam e expressam o que
há nas vivências e nas memórias dos afrodescendentes, que tratam de processos e
elementos que forjaram e hoje põem em constante movimento a identidade afro-
brasileira destes sujeitos sociais, culturais e políticos.
Conforme observa Rego (1969), “as cantigas de capoeira fornecem valiosos
elementos, para o estudo da vida brasileira, em suas várias manifestações, os quais
podem ser examinados sob o ponto de vista linguístico, folclórico, etnográfico e sócio-
histórico.” (REGO, 1969, p.127). Nesta perspectiva, percebemos, e é isto que
procuramos destacar nesta pesquisa, que estas cantigas da capoeira cantadas em
Salvador apresentam forte potencial para estudo das representações dos capoeiristas e
da identidade afro-brasileira. Escolhemos para a presente pesquisa o viés da Crítica
Cultural que atrela aos objetivos do estudo, a carga social e política na qual está
envolvido nosso objeto de pesquisa. Assim sendo, neste estudo investigamos as
representações dos capoeiristas vinculadas e veiculadas nas cantigas de capoeira que são
cantadas em Salvador, delineamos alguns aspectos da identidade afro-brasileira que
expressam as ideias de afro-brasilidade por parte dos compositores e/ou cantadores das
cantigas de capoeira. Deste modo, demonstramos com este trabalho que as cantigas da
capoeira podem ser percebidas como elementos que expressam aspectos significativos
da identidade afro-brasileira dos capoeiristas que atuam em Salvador. Buscamos com a
presente pesquisa, oferecer aos capoeiristas e amantes da capoeira um instrumento que
instigue a reflexão e o debate acerca das produções cantadas nas rodas e treinos de
capoeira, principalmente no que carrega aspectos importantes da construção da
identidade cultural afro-brasileira. Para estes então, fica o debate.
124
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Mestre Suassuna Capoeira Cordão de ouro vol.2, Musicolor, 1975 CD.
Mestre Waldemar e Canjiquinha. 1984 LP.
130
ANEXOS
131
ANEXO I - Cantigas citadas no texto.
O meu mestre me ensinou
Mestre Brasília
CD: As melhores do Mestre Brasília
Capoeira, capoeira
O meu mestre me ensinou
A jogar capoeira
Capoeira, capoeira
O meu mestre me ensinou
A jogar capoeira
Na roda de capoeira
Tem pandeiro e agogô
Vou jogar com o meu mestre
Foi ele que me ensinou
Refrão:
Na roda de capoeira
Vou no pé do berimbau
Antes da volta do mundo
Faço o pelo sinal
Refrão:
Meu mestre muito obrigado
Pela luz que tu me deu
O segredo da mandinga
Que muito me protegeu
Refrão:
Santa Maria Mãe de Deus
Anônimo
Treino de capoeira do Grupo Bantu, 2011.
Santa Maria mãe de Deus
Cheguei na igreja e me confessei71
Santa Maria mãe de Deus
Cheguei na igreja me ajoelhei.
71
Outras versões desta mesma cantiga é também cantada “Cheguei na igreja, não me confessei.”
132
Santo Antônio é meu protetor
Anônimo
Roda de capoeira do Conjunto ACM
Santo Antônio é meu protetor
Protetor da capoeira
Santo Antônio meu protetor
Protetor do berimbau
Santo Antônio meu protetor
Menino quem foi teu mestre
Mestre Bimba
CD Curso de capoeira regional
Iê quem foi teu mestre
Menino quem foi teu mestre
Mestre foi Salomão
Discípulo que aprendo
Mestre que dou lição
O Mestre quem me ensinou
No engenho da Conceição
A ele devo dinheiro,
Saúde e obrigação
Segredo de São Cosme
Mas quem sabe é São Damião
Camará
Água de beber
Ei Aruandê
Aia camaradinha
Ai tamo na escola
Óia Aprendendo a ler
E carta de ABC
Ah faca de ponta
Ei sabe furar
Iê quer me matar
Ai viva Deus do céu
Aia Viva meu mestre
Iê quem me ensinou
Aiai a malandragem
Iê volta do mundo
Menino quem foi seu mestre
Anônimo
(REGO, p. 102)
133
Minino quem foi seu mestre
Meu mestre foi Barroquinha
Barba ele não tinha
Metia o facão na poliça
E paisano tratava ele bem.
Quando eu era pequeno
Mestre Marcelo de João Pequeno
(Em entrevista, abril/2011)
Quando eu era pequeno
Gente de pouca idade
Eu não tinha nem dois anos
Conheci a fatalidade
O meu pai foi para o trabalho
Não sei bem o que aconteceu
Mas vi minha mãe chorando:
“Filho o seu pai morreu”
Me criei no sofrimento
No meio de uma escuridão
Quanto mais eu me aprumava,
mais caia pelo chão
Uma criança tão pequena
vivendo sem ter paz
E um homem tão adulto
chorando a falta do pai.
Mas um dia fui crescendo
aprendendo a brincadeira
Conheci João Pequeno
que é grande na capoeira.
E eu entrei na capoeira
prá aprender como se dança,
Tocando meu berimbau,
mostrando que eu também sou bamba,
meu camaradinho.
Improviso
Mestre Valmir
(Em entrevista abril/2011)
Iê!
Hoje é uma sexta-feira,
Hoje é uma sexta-feira,
Olha lá, dia de São Pedro
Olha vinte e oito de junho
Aqui viemos lembrar
Vim trazer a capoeira
De um momento eu vou lembrar
134
Olha lá cheguem amigos
É hora de celebrar
Berimbau marcou angola
Olha o médio a inverter
A viola chegue chorando
Olha lá nós vamos ver
Meu camarado chegue aqui
Agora vamos jogar
Olha lá jogo da vida
Jogo de angola
Olha lá chegue aqui
Camará
É hora nós vamos lá
camará
Às Vezes Me Chamam de Negro Mestre Ezequiel
(KUBOHARA, 2009)
Às vezes me chamam de negro
Pensando que vão me humilhar
Mas o que eles não sabem
É que só me fazem lembrar
Que eu venho daquela raça
Que lutou pra se libertar
Que eu venho daquela raça
Que lutou pra se libertar
Que criou o maculelê
Que acredita no candomblé
Que tem o sorriso no rosto
A ginga no corpo e o samba no pé
Que tem o sorriso no rosto
A ginga no corpo e
o samba no pé
Que fez surgir de uma dança
Uma luta que pode matar
Capoeira, arma poderosa
Luta de libertação
Brancos e negros na roda
e abraçam como irmãos
Capoeira revelou De: Rose Meire Sant’Anna Araújo (Speed)
Festival da musica tradicional da capoeira
Iê
Quando eu falar da capoeira
Fale de ancestralidade
135
Não esqueça meu irmão
Sua verdadeira identidade
A capoeira revelou
Pra você não esquecer
Negros e índios, meus irmãos
Apanharam pra valer
Tudo isso é muito forte
Pra poder recordar
Mas essa é nossa História
Temos que fazer respeitar
Capoeira, que capoeira
Se respeita meu irmão
Muitas vezes tive raiva
Do fundo do coração
Essa raiva emocionada
Que só nos fez chorar
Em pensar que o povo negro
Sofreu tanto pra poder se libertar
Esses fatos são relatos
De tamanha covardia
Nos tiraram do acalanto
E da profunda harmonia
Pensando que o negro era
Frágil, meu senhor
Massacraram nossa raça
Achando que não tínhamos valor
Apesar de tanto sofrimento
O negro se libertou
Imperando sua alegria
Ensinando sua filosofia
Se auto-afirmou
Iê, viva o negro
Viva o negro, camará
Iê, se libertou
Se libertou , câmara
O Japão disse que quer
Shinji Kubohara
KUBOHARA, 2000
O Japão disse que quer
O Japão disse que quer
136
O Brasil disse que dá uma arte mandingueira
Luta, dança, capoeira
Ela nasceu na senzala
Sua Meca é a Bahia
Mestre Bimba e Pastinha
Canjiquinha e Caiçara
Brincadeira de criança
Negro de sabedoria
Ela também é carioca
Malta, Zuma e Pernada
Senzala e seu Camisa
Leopoldina, velha guarda
Foi prá terra da garoa
Expandiu pelo mundo agora
Ananias e Brasília
Paulo Gomes e Suassuna
Vamos dar a volta ao mundo
Vem vadiar com a gente camará
Ancestrais africanos De: Nicolas Severin
Festival da musica tradicional da capoeira
Quando da África eu cheguei
Me trouxeram os portugueses
Travessia em caravela
Passei fome e humilhação
Num porão bem apertado
Dentro desta embarcação
Minha família eu perdi
Nunca mais vi os meus amigos
Até quisera tirar
A cultura que eu aprendi
Com esforço na Bahia
África eu reconstruí
Hoje canto capoeira
Danço n’golo com paixão
Você pode ter certeza
Disso eu não abro mão
Muito duro foi o trabalho
Pra manter a tradição
A palma de Bimba
Mestre Itapoan
DE: Capoeira 100% regional
137
A palma estava errada
Bimba parou outra vez
Bata esta palma direito
A palma de Bimba e um, dois, três
Olha a palma de Bimba
É um, dois, três
Se você é devoto de Bimba
Na roda ele vai lhe ajudar
Mas se não é, sai correndo
Que a roda ta aberta, E o bicho vai pegar
E a palma de Bimba é um, dois, três
Olha a palma de Bimba
E um, dois, três
A quadra estava errada
Bimba parou outra vez
Cante esta quadra direito
A palma de Bimba é um, dois, três
Olha a palma de Bimba
E um, dois, três
A Iuna estava errada
Bimba falou outra vez
Não maltrate esta arte moleque
E a palma de Bimba é um, dois, três
Olha a palma de Bimba
E um, dois, três
A ginga estava errada
Bimba parou outra vez
Ô ginga bonito moleque
E a palma de Bimba é um, dois, três
Olha a palma de Bimba
E um, dois, três
Essa terra não tem dono Ana Luiza Lemos Tomich (Sereia)
Festival da musica tradicional da capoeira
Essa terra não tem dono
Essa terra não tem dono
Essa terra é de ninguém
Todos querem se apropriar
Todos querem se dar bem
138
Ter dinheiro prá comprar
Acha que tudo é usura
Se já tem tudo na Terra
Fica de olho na Lua
Ter o poder da palavra
Ser o dono da verdade
E que falta é a humildade
E saber reconhecer
Que o orgulho cega os olhos
E tropeça na ganância
Falo isso meu amigo
Prá não te ver na lama
É virtude do espírito
É virtude do espírito
Saber o que é valor
A capoeira é um exemplo
Ensina a mandinga
A importância do respeito
E o bom da malandragem
Quem inventou foram o s escravos
E passou por gerações
Mestre Bimba e Pastinha
Não quebraram essa corrente
Ensinaram para os mestres
E os mestres ensinam par’a gente, camá
Bahia, minha Bahia
Mestre Pastinha
CD: Capoeira angola – Mestre Pastinha e sua academia
Bahia, minha Bahia
Bahia do Salvador
Quem não conhece capoeira
Não lhe pode dar valor.
Todos podem aprender
General até doutor
Mas, prá isso é necessário
Procurar um professor
(resposta do meu ex-aluno Colmenero)
Professor de capoeira
Nessa velha capital
Não se iluda minha gente
Mestre Pastinha é sem igual.
139
Maré me leva
Mestre Boa Voz
CD: Capoeira vol. 1
Maré Me Leva
coro
Maré me leva;
Maré me traz
A vida do capoeira;
É como a do pescador;
A onda balança o barco;
E a ginga o jogador;
coro
O vento sobrou nas velas;
Balançando a minha nau;
Na roda de capoeira;
Quem me leva é o berimbau;
coro
A noite olho as estrelas;
Que é pra me orientar;
Bom Jesus dos navegantes;
É quem me guia pelo mar;
coro
Na rede vem a traíra;
Um peixe que morde a mão;
Na roda brilha a navalha;
E os cinco salomão;
coro
Às vezes a pesca é boa;
Às vezes o jogo é bom;
Mas quando nada dá certo;
Eu volto a tentar então.
Tem que ter muita fé
Mestre Suassuna
CD: Tem que ter fé e muito axé
Mas você que é Baiano ouça ai
Um conselho que eu tenho pra te dar
Você tem que aprender capoeira,
ser Baiano é saber gingar
é tocar berimbau mandingueiro,
O pandeiro e saber sambar
Tem que ter muita fé
e muito Axé, sorriso no rosto
e gingado no pé
Tem que ter muita fé e muito Axé
Senhor do Bonfim em que ter muita fé
Tem que ter muita fé e muito Axé
140
Valha-me deus tem que ter muita fé
Tem que ter muita fé e muito Axé
A historia de Bimba e Pastinha
Canjiquinha e Totonho de Maré
Passar no Mercado modelo,
ver a capoeira como é que é
Tem que ter muita fé e muito Axé
é comer um ximxim de galinha
muita pimenta no acarajé
Vatapá, caruru e abará
E a famosa moqueca de Tucunaré
Tem que ter muita fé e muito Axé
é conhecer o sul da Bahia,
de Ilhéus, Itabuna até Itacaré
A historia de Séo Caruru
Maneca Brandão e de Mestre Abné
Tem que ter muita fé e muito Axé
Bahia que tem dendê Autor Marcelo de Castro (Cristal)
Festival da musica tradicional da capoeira
Bahia que tem dendê
Terra dos orixás
Bahia de Bimba, Pastinha,
Aberre, Waldemar do Pero Vaz
Bahia de encanto e magia
Terra de mãe Menininha
Das baianas do acarajé
Regina, Cira e Dinha
Bahia do sincretismo
Terra de igrejas e ladeiras
Bahia do candomblé
Do samba de roda e capoeira
Bahia de tradição
Terra das tijubinas
Das formaturas, emboscada de Bimba
No Nordeste de Amaralina
Bahia, minha Bahia
Que o tempo não faz voltar
Nas rodas do barracão
No Pero Vaz de Waldemar
Bahia dos angoleiros
Terra do maculelê
E dos mestres do passado
141
Waldemar, Pastinha e Aberrê.
Vou treinar capoeira
Anônimo
(KUBOHARA, 2009)
Vou treinar capoeira
Mestre Bimba criou
Capoeira regional
De São Salvador
Mestre Bimba me chamou
Prá treinar a capoeira
Pegando na minha mão
Ensinou a ginga da capoeira
A seqüência é o ABC
Da capoeira regional
Aprender a reagir
Atacar e defender
Quando aprendi a sequencia
Ele chamou um formado
Menino preste atenção
Você vai entrar no aço
Quando o jogo acabou
Ele olhou para o formado
Lhe dizendo em seguida
Dê um apelido ao camarado.
Capoeira Angola perdeu seu criador
Anônimo
(KUBOHARA, 2009)
Capoeira angola
Perdeu seu criador
Perdeu Mestre Pastinha
Um grande professor
A Bahia tá de luto
Capoeira também
Ai meu Deus, com noventa e dois anos
Não podia mais andar
Ficou cego, paralítico
Não podia mais jogar
Ele morreu, foi para o céu
Com seu Bimba se encontrar
142
São Pedro já reservou um lugar prá
capoeira
Outro pro seu criador
Ele jogava capoeira angola
Ele jogava capoeira angola
Vicente Ferreira Pastinha
Ele jogava capoeira angola... [coro]
Eu nasci na capoeira
Mestre Pastinha
CD: Mestre Pastinha e sua academia
Iê
Eu nasci para a capoeira
a capoeira homem me fez
Só deixarei a capoeira
Quando eu morrer
Quando eu vejo capoeira
Muitas coisas me faz lembrar
Me lembro de mestre Bimba
De Pastinha e Waldemar
Lembro de Aberrê, Colega velho
Doze Homens e Sabará
Lembro de Cobrinha verde
E Besouro Mangangá
Eles foram os velhos mestres
Que já se foram e não vão voltar
Eles foram pró infinito
Deus lhe bote em um bom lugar
Saudação a Zumbi
Mestre Régis e Jair
Festival da música tradicional da capoeira
Leva eu meu povo
Eu também quero ir
Jogar minha capoeira
Hoje eu vou saudar Zumbi
Lá em palmares
Aonde Zumbi atuou
Filosofia de vida
Das negras ensinou
Um canto livre
Foi o que Zumbi sonhou
Ô Zumbi se eu sou livre
Você muito me ajudou
143
Ô leva eu...
Negro Zumbi
Foi um criolo inteligente
Um criolo de coragem
Que lutou por sua gente
Se eu sou negro
De zumbi sou descendente
É jogando capoeira
Que eu me sinto tão contente
Ô leva eu...
Besouro Mangangá
Mestre Pastinha
CD: Capoeira angola – Mestre Pastinha e sua academia
Besouro Mangangá, Besouro Mangangá
Besouro, Besouro, Besouro,
Coro:
Besouro Mangangá
Besouro Mangangá
Cidade de Santo Amaro
Terra do Maculelê
Viu os Mestres Popo e Vavá
E viu Besouro a nascer
[…]
Besouro cordão de ouro
Manoel Henrique Pereira
Desordeiro pra polícia
Uma lenda pra capoeira
[…]
A lenda diz que Mangangá
Também sabia voar
Transformando em besouro
Pra da polícia escapar
[…]
Mataram Besouro Preto
Não foi tiro nem navalha
Com uma faca de tucum
Na velha Maracangalha
[…]
Capoeira é defesa, ataque
Mestre Brasília
CD: As melhores do Mestre Brasília
Capoeira
É defesa é ataque
144
A ginga de corpo
E a malandragem
Capoeira
É defesa é ataque
A ginga de corpo
E a malandragem
São Francisco Nunes
Preto velho meu avô
Ensinou para o meu pai
Mas meu pai não me ensinou
Capoeira
É defesa é ataque
A ginga de corpo
E a malandragem
O Maculelê
A dança do pau
Na roda de capoeira
Quem comanda é o berimbau
Capoeira
É defesa é ataque
A ginga de corpo
E a malandragem
Eu já tive em Moçambique
Eu já tive em Guiné
Tô voltando de Angola
Com o jogo de Malé
Capoeira
É defesa é ataque
A ginga de corpo
E a malandragem
Se você quiser aprende
Vai ter que praticar
Mas na roda de Capoeira
E’ gostoso de jogar
Capoeira
É defesa é ataque
A ginga de corpo
E a malandragem
Tim, Tim, Tim, Lá Vai Viola Mestre suassuna
CD: Tem que ter fé e muito axé
O moleque chegou lá em casa,
Perguntando o que eu ia fazer,
Eu vou no mato, vou pegar biriba,
Pra minha viola fazer,
Coro: Tim, tim, tim lá vai viola
145
Digue, digue, digue, digue, digue, digue, dom,
Coro: Tim, tim, tim lá vai viola
Ê mas viola meu bem, mas não é violão,
Coro: Tim, tim, tim lá vai viola
Ê lá vai viola,
Coro: Tim, tim, tim lá vai viola
A roda tava desanimada,
O povo mal queria cantar,
Foi eu pegar na viola,
A roda inteira começou a jogar
Coro: Tim, tim, tim lá vai viola
Digue, digue, digue, digue, digue, digue, dom,
Coro: Tim, tim, tim lá vai viola
Ê mas viola meu bem, mas não é violão,
Coro: Tim, tim, tim lá vai viola
Ê lá vai viola
Coro: Tim, tim, tim lá vai viola
Ai, ai, aidê
Anônimo
Ai, ai, aidê, joga bonito
que eu quero aprender
Ai, ai,aidê joga bonito
que eu quero ver
Ai, ai, aidê, na roda de angola
Eu sonhei com você
Ai, ai, aidê, joga bonito
que eu quero aprender
Biriba é pau, é madeira
Anônimo
CD: Capoeira Angola – Mestre Boca Rica e Bigodinho
Madeira de maçaranduba
Madeira de jacarandá
Madeira de maçaranduba
Madeira de jacarandá
Biriba é pau, é madeira
Madeira prá tocar
Biriba é pau,é madeira
Tocou, deixa tocar
Biriba é pau é madeira...
Cabôco do mato
146
Anônimo
REGO, 1968
Cabôco do mato vem cá
O meu berimbau
Mando lhe chamá.
Capoeira tem sangue na veia
Mestre Bigodinho
(Kubohara, 2009, p. 188)
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
Seja de noite ou de dia
Não importa o lugar
Quando toca o berimbau
Dá vontade de jogar
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
Na roda de capoeira
Todos têm o seu valor
Eu respeito a um aluno
Quanto mais um professor
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
O astral de capoeira
Vem do som do berimbau
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
Esse gunga é meu
Anônimo
CD: Capoeira Angola Mestre Acordeon
147
Esse gunga é meu, esse gunga é meu
Gunga é meu, eu não posso vender
Esse gunga é meu, esse gunga é meu
Gunga é meu, foi meu pai que me deu
Eu vou ler o B-A-Bá
Mestre Pastinha
CD : Capoeira angola
Eu vou ler o B-A-Bá
B-A-Bá do Berimbau
a moeda e o arame
com dois pedações de pau
a cabaça e o caxixi
aí está o berimbau
Berimbau é um instrumento
que toca numa corda só
vai tocar São Bento Grande
toca Angola em tom maior
agora acabei de crer
o Berimbau é o maior
Camaradinho
Yê Viva meu Deus
Yê viva meus Deus camarado
Capoeira nasceu na Bahia
Mestre Brasília
CD: As melhores do Mestre Brasília
Capoeira nasceu na Bahia
Pro negro escravo defender
Capoeira nasceu na Bahia
Pro negro escravo defender
O baiano espalhou pelo mundo
O grande esporte prá você ver
Capoeira nasceu na Bahia
Pro negro escravo defender
La La La uê
La La La uê, capoeira La La La uê
La La La uê, La La La uê
La La La uê, capoeira, La La La uê
Um esporte que é brasileiro
Com som berimbau, atabaque e pandeiro
Um esporte que é brasileiro
Com som berimbau, atabaque e pandeiro
Hoje é luta nacional
148
Surgiu de baixo padrão
Na ginga defesa e ataque
Hoje é esporte e educação
La La La uê
La La La uê, capoiera, La La uê
La La La uê, La La La uê
La La La uê, capoeira, La La La uê
Sou angoleiro que vem de angola
Anônimo
KUBOHARA, 2009
Sou angoleiro que vem de Angola
Valha meu Deus minha Nossa Senhora
Sou angoleiro que vem de Angola
Tocando pandeiro, berimbau e viola
Sou angoleiro que vem de Angola
Olha o jogo de dentro e o jogo de fora
Sou angoleiro que vem de Angola
Jogo por Deus e por Nossa Senhora
Sou angoleiro que vem de Angola
E Jogo com você a qualquer hora
Sou angoleiro que vem de Angola
Vou mostrar prá você
O meu jogo de angola
Valha-me Deus Nossa Senhora
Mestre Bimba
Valha-me Nossa Senhora
Mãe de Deus, o Criador
Nossa Senhora me ajude
Nosso Senhor me ajudou
Camará
Água de beber
Ei Aruandê
Joga pra lá
E campo de mandinga
Ai é mandingueiro
Ai ele é cabeceiro
Aiai sabe jogar
Aiai a capoeira
Òia Regional
Iê volta do mundo
Joga ai que eu quero ver
149
Mestre Boa Gente
CD: Mestre Itapoan: Capoeira Voices Vol.2
Joga ai que eu quero ver
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
Capoeira é para homem, menino, menina e mulher!
Capoeira da Bahia, não aprende
quem não quer!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
Capoeira é uma arte de Angola e Regional!
Ela foi discriminada, hoje ela é mundial!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
O berimbau é de Aramê,
O pandeiro é de couro de cobra!
Quero ver vocês brincando,
com a gente aqui na roda!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
êê, êê, joga ai que eu quero ver!
Maior é Deus
Mestre Pastinha
CD: Mestre Pastinha e sua academia
Iê!
Maior é Deus
Maior é Deus
Pequeno sou eu
O que tenho, foi Deus que me deu
O que tenho, foi Deus que me deu
Na roda da Capoeira, ha ha
Grande pequeno sou eu!
Stava in casa sem pensá, sem imaginá
Anônimo
(REGO, 1968)
Iê
Stava in casa
Sem pensá, sem maginá
Salomão mandô chamá
Pra ajudá a vencê
Esta batalha liberá
Eu que nunca viajei
150
Nem pretendo viaja
Dê meu nome eu vô
Pro sorteio militá
Quem não pode não intima
Deixe quem pode intimá
Quem não pode com mandinga
Não carrega patuá.
O calado é vencedor
Mestre Waldemar
(REGO, 1968 )
O calado é vencedô
Mas pra quem juízo tem
Quem espera sê fisgado
Não roga pegá a ninguém
Tum, tum, tum quem bate aí
Tum, tum, tum na minha porta
Sô eu mestre pintô
Mestre pintô da bôca torta
E aluandê
E aluandê
Joga-te pra lá
Joga-te pra cá
Faca de cortá
Faca de furá.
Bahia, minha Bahia
Mestre Pelé da Bomba
(Em entrevista)
Bahia, minha Bahia
Bahia, São Salvador
Bahia, minha Bahia
Bahia, São Salvador
Bahia, minha terra
Minha terra, sim senhor
Que Bahia boa
São Salvador
Que Bahia boa
É Salvador
Capoeira nasceu na Bahia
Mestre Brasília
(KUBOHARA, 2009)
Capoeira nasceu na Bahia
151
Pro negro escravo defender
Capoeira nasceu na Bahia
Pro negro escravo defender
O baiano espalhou pelo mundo
O grande esporte prá você ver
Capoeira nasceu na Bahia
Pro negro escravo defender
La La La uê
La La La uê, La La uê
La La La uê, La La La uê
La La La uê, capoeira, La La La uê
Um esporte que é brasileiro
Com som berimbau, atabaque e pandeiro
Um esporte que é brasileiro
Com som berimbau, atabaque e pandeiro
Hoje é luta nacional
Surgiu de baixo padrão
Na ginga defesa e ataque
Hoje é esporte e educação
La La La uê
La La La uê, La La La uê
La La La uê, La La La uê
La La La uê, capoeira, La La La uê
Tá no sangue da raça brasileira
Mestre Burguês
Auê, auê, auê ê
Lê, lê, lê, lê, lê, lê, lê, ê
Auê, auê, auê ê
Lê, lê, lê, lê, lê, lê, lê, ê
Tá no sangue da raça brasileira
Capoeira
É da nossa cor
Berimbau
É da nossa cor
Canjiquinha
É da nossa cor
Cais da Bahia
Mestre Ezequiel
Cais da Bahia
Eu aprendi capoeira
Lá na rampa e no cais da Bahia
152
Eu aprendi capoeira
Lá na rampa e no cais da Bahia
Vim de ilha de Maré,
No saveiro de mestre João
Fui morar lá na Preguiça,
Me criei na Conceição
Eu subi o Pelourinho,
Eu desci a Gameleira
Eu passava o dia-a-dia,
Nas rodas de capoeira
Eu aprendi capoeira
Camafeu e Traíra tocavam
Valdemar jogava com Seu Zacarias
Eu aprendi capoeira
Eu aprendi capoeira
Lá na rampa e no cais da Bahia
Eu aprendi capoeira
Lá na rampa e no cais da Bahia
O gringo filmava me fotografava
Eu pouco ligava,também não sabia
Que essa foto ia sair no jornal
Na França ou na Rússia,
ou talvez na Hungria.
Capoeira é uma arte,
Capoeira é uma luta,
Capoeira é um balé
Mas lindo da minha Bahia
Eu aprendi capoeira
Lá na rampa e no cais da Bahia
Eu aprendi capoeira
Lá na rampa e no cais da Bahia
Camafeu e Traíra tocavam
Valdemar jogava com Seu Zacarias
Eu aprendi capoeira
Lá na rampa e no cais da Bahia
Tava na beira da praia
Mestre Pelé da Bomba
Em entrevista
Tava na beira da praia
Sem pensar, sem imaginar
Tava na beira da praia
Sem pensar sem imaginar
Apareceu moça bonita
Me mandou foi me chamar
O que foi que ela me disse?
“meu filho vai logo pescar”
Eu peguei o meu saveiro,
153
Comecei a remar
E peguei minha tarrafa
joguei no fundo do mar
Eu peguei mil e um peixe,
Eu peguei mil e um peixe
Janaina72
mandou pescar
Janaina, rainha do mar
Janaína, rainha do mar...
(Mestre Pelé da Bomba)
Ancestrais africanos
Nicolas Severin
II Festival da música tradicional da capoeira
Quando da África eu cheguei
Me trouxeram os portugueses
Travessia em caravela
Passei fome e humilhação
Num porão bem apertado
Dentro desta embarcação
Minha família eu perdi
Nunca mais vi os meus amigos
Até quisera tirar
A cultura que eu aprendi
Com esforço na Bahia
África eu reconstruí
Hoje canto capoeira
Danço n’golo com paixão
Você pode ter certeza
Disso eu não abro mão
Muito duro foi o trabalho
Pra manter a tradição
Capoeira revelou
Rose Meire Araújo
Iê
Quando eu falar da capoeira
Fale de ancestralidade
Não esqueça meu irmão
Sua verdadeira identidade
A capoeira revelou
Pra você não esquecer
72
Janaína é a alcunha sincrética de Iemanjá considerada entre os devotos das religiões afro-brasileiras
como a Rainha do Mar.
154
Negros e índios, meus irmãos
Apanharam pra valer
Tudo isso é muito forte
Pra poder recordar
Mas essa é nossa História
Temos que fazer respeitar
Capoeira, que capoeira
Se respeita meu irmão
Muitas vezes tive raiva
Do fundo do coração
Essa raiva emocionada
Que só nos fez chorar
Em pensar que o povo negro
Sofreu tanto pra poder se libertar
Esses fatos são relatos
De tamanha covardia
Nos tiraram do acalanto
E da profunda harmonia
Pensando que o negro era
Frágil, meu senhor
Massacraram nossa raça
Achando que não tínhamos valor
Apesar de tanto sofrimento
O negro se libertou
Imperando sua alegria
Ensinando sua filosofia
Se auto-afirmou
Iê, viva o negro
Viva o negro, camará
Iê, se libertou
Se libertou , câmara…
Riachão tava cantando
Mestre Waldemar
Iê
Riachão tava cantando
Riachão tava cantando
Na cidade de Açu
Quando apareceu um negro, o meu bem
Da espécie de urubu
Tinha camisola de sola
Calça de couro cru
155
Beiços grossos e virados, o meu bem
Como a sola de um chinelo
Um olho muito encarnado
E outro bastante amarelo
Ele chamou Riachão o meu bem
Para vim canta martelo
Riachão arrespondeu
Eu aqui não tô cantando, o meu bem
Com nego desconhecido
Ele pode ser cativo
E andar aqui fugido
Camaradinho
Capoeira me chama
Mestre Brasília
Capoeira me chama
E eu vou atender
Entro na roda sem medo
Com malícia e segredo
Pronto para me defender
Capoeira me chama
E eu vou atender
Entro na roda sem medo
Com malícia e segredo
Pronto para me defender
Com o corpo de molejo
Vou de encontro ao berimbau
Quem não sabe agora aprende
É um arame, uma cabaça
E um pedaço de pau
Ieá iê oo capoeira me chama
Dá licença meu senhor
Ieá iê oo capoeira me chama
Dá licença meu senhor
Você dança e se defende
Nesta ginga original
Que mexe tanto com a gente
Envolvendo até a mente
Na origem mundial
Ieá iê oo capoeira me chama
Dá licença meu senhor
Ieá iê oo capoeira me chama
Dá licença meu senhor
156
Olha o jogo de dentro e o jogo de fora
Autor desconhecido
Aula de instrumentos do Grupo Bantu, 2011
Olha o jogo de dentro e o jogo de fora
Sou angoleiro que vem de Angola
Jogo por Deus e por Nossa Senhora
Sou angoleiro que vem de Angola
E jogo com você a qualquer hora
Sou angoleiro que vem de Angola
Vou mostrar prá você
O meu jogo de angola
Santa Bárbara de Relampuê
Anônimo
Mestre Valdec em entrevista 2011
O Santa Barbara de Relampuê,
O Santa Barbara de Relampuá.
O Santa Barbara de Relampué,
O Santa Barbara de Relampuá.
E Relampuê, de Relampuá.
O Santa Barbara de Relampué,
O Santa Barbara de Relampuá.
De Relampuê de Relampuá.
O Santa Barbara de Relampué,
O Santa Barbara de Relampua.
E Relampuê, de Relampuá.
O Santa Barbara de Relampué,
O Santa Barbara de Relampua.
De Relampuê de Relampuá.
Na Bahia tem capoeira
Zequinha
(KUBOHARA, 2009)
Na Bahia tem capoeira
Na Bahia tem capoeira
Na Bahia tem candomblé
No terreiro tem as baianas vendendo acarajé
Na Bahia tem angoleiro
Na Bahia tem regional
Na Bahia tem capoeira
No mercado popular
Bahia de todos os santos
Bahia dos orixás
Bahia de mãe menininha
157
Menininha do Gantois
Bahia de João Pequeno
Bahia de Curió
Na Bahia tem boca rica
Mestre Lua de Bobó
Valha-me Deus, Senhor São Bento
Anônimo
(KUBOHARA, 2009)
Valha- me Deus, Senhor São Bento
Eu vou jogar meu Barravento
Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)
Eu vou jogar meu Barravento
Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)
Ê, Buraco véio tem cobra dentro
Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)
Ê, quando vê cobra assanhada
Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)
Não põe o pé na rodilha
Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)
A cobra assanhada morde
Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)
Eu vou jogar meu Barravento
Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)
158
ANEXO II
Cantigas analisadas que não entraram no texto.
São Bento me Chama
Mestre Suassuna
CD: Capoeira Cordão de ouro vol.2
São Bento me chama
Ai ai ai ai
São Bento chamou
Ai ai ai ai
Caminhando pela rua
Ai ai ai ai
Uma cobra me mordeu
Ai ai ai ai
Meu veneno era mais forte
Ai ai ai ai
Foi a cobra quem morreu
Ai ai ai ai
Eu sou livre como o vento
Mestre Boca Rica e Bigodinho
CD: Capoeira Angola Mestre Rica e Bigodinho
Sou livre como o vento
A minha linguagem é nobre
Nasci dentro da grandeza
Não nasci na raça pobre
O senhor fique sabendo
O peso de um cantador
Quando me ver de outra vez
Me trate de professor
Deva-me obediência
Me dê o meu valor
Você diz que tem ciência
Dê uma explicação
O que é que em doze horas
Há uma transformação?
O Sol não é quem se move
É fixo em seu lugar
A Terra ta sobre o eixo
O eixo faz rodar
Uma cobra tão pequena
Mata um boi agigantado
159
Igreja do Bonfim
Mestre Suassuna
CD: Capoeira Cordão de ouro vol.2
Igreja do Bonfim
Igreja do Bonfim (2x)
e Mercado Modelo
Ladeira do Pelourinho, ai ai ai
a Baixa do Sapateiro
Por falar em Rio Vermelho
eu me lembrei de terreiro
Igreja de São Francisco (2x)
e a Praça de Sé
onde ficam as baianas, ai, ai, ai
vendendo acarajé
Por falar em Itapoã
e Lagoa do Abaeté, camará
ê... é a hora é hora
iê é hora é hora, camará
Ah, vamos embora
Ê vamos embora, camará
Ê, pro mundo afora
Ê, pro mundo afora, camará
Ah, viva a Bahia
Ê viva a Bahia, camará
Ê viva meu mestre
Ê viva meu mestre, camará
Vou embora prá Bahia
Mestre Matias
II Festival da música tradicional da capoeira
Oi vivendo aqui distante
eu não quero mais ficar,
vou voltar lá pra Bahia,
Salvador é meu lugar.
(coro 2x)
Eu vou me embora,
eu vou me embora,
lá prá Bahia, cidade de Salvador.
Cidade hospitaleira,
terra de muito axé
terra do samba reggae,
capoeira e candomblé.
(coro 2x)
Terra do Mestre Bimba,
criador da regional, e também,
Mestre Pastinha,
angola tradicional.
160
(coro 2x)
Em Salvador é terra de
mandingueiro,
tem roda lá no mercado,
praça da Sé e no terreiro.
(coro 2x)
Dá no nego, esse nego é o cão
Anônimo
REGO, 1968
Dá no nego
Dá, dá, dá no nego
No nego você não dá
dá, dá, dá no nego
Mas se der vai apanhar
dá, dá, dá no nego
Joga o nego para cima deixa o nego vadiar
dá, dá, dá no nego
Esse nego é malvado
Esse nego é um cão.
Pega esse nego
Anônimo
(KUBOHARA, 1968)
Pega esse nêgo, derruba no chão
Esse nego é o diabo, esse nego é o cão
Ele é mandingueiro, neguinho é bom
Pega esse nego derruba no chão
Esse nego é o diabo
esse nego é o cão
Rei Zumbi dos Palmares
Mestre Moraes
CD: Capoeira angola from Salvador Brazil
A história nos engana
Diz tudo pelo contrário
Até diz que abolição
Aconteceu no mês de maio
A prova dessa mentira
É que da miséria eu não saio
Viva vinte de novembro
Momento para se lembrar
Não vejo no treze de maio nada
161
Nada para comemorar
Muitos tempos se passaram
E o negro sempre a lutar
Zumbi é nosso herói, colega velho
Do Palmares foi senhor
Pela causa do homem negro
Foi ele que mais lutou
Apesar de toda luta, colega velho
O Negro não se libertou, camarada
Quando eu morrer
CD: Capoeira Angola – Mestre Pastinha e sua academia
Quando eu morrer,
Me enterrem na Lapinha
calça, culote e paletó almofadinha
Adeus Bahia, zum zum zum cordão de ouro
Eu vou partir porque mataram meu Besouro
Ê zum zum zum zum !
Ê Besouro !
Capoeira que tem sangue na veia
Mestre Bigoodinho
CD: Capoeira angola Mestre Boca Rica e Bigodinho
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
Seja de noite ou de dia
Não importa o lugar
Quando toca o berimbau
Dá vontade de jogar
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
Na roda de capoeira
162
Todos têm o seu valor
Eu respeito a um aluno
Quanto mais um professor
Capoeira que tem sangue na veia
Não pode escutar o berimbau
Sua perna estremece
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
O astral de capoeira
Vem do som do berimbau
Onde o capoeira cresce
E levanta o seu astral
A hora é essa, a hora é essa
Mestre Bigodinho
CD: Capoeira angola Mestre Boca Rica e Bigodinho
A hora é essa, a hora é essa
A hora é essa, a hora é essa
Berimbau tocou, capoeira
Berimbau tocou na capoeira
Berimbau tocou, eu vou jogar
A hora é essa, a hora é essa
A hora é essa, a hora é essa
Berimbau tocou, capoeira
Berimbau tocou na capoeira
Berimbau tocou, eu vou jogar
Pau pereira
Mestre Boca Rica e Bigodinho
CD: Capoeira angola Mestre Boca Rica e Bigodinho
Capoeira veio de Angola,
Veio da Bahia não.
Capoeira veio de Angola,
Veio da Bahia não.
Olha o gingar do capoeira
Tá no a-perto de mão
Capoeira tem angola
E tem regional
Capoeira tem angola
E tem regional
O ponta-pé de um capoeira
É um pé-daço de pau
O ponta-pé de um capoeira
É um pé-daço de pau
163
Ê, pau, pau, pereira
A flor da laranjeira
Pau, pau, pereira
Uma moça que cheira
Pau, pau, pereira
Bahia, minha Bahia
Pau, pau, pereira
Bahia, meu bem querer
Pau, pau, pereira
Quem não gosta da Bahia
Pau, pau, pereira
Pensa o mesmo de você
Pau, pau, pereira
E a madeira de pinho
Pau, pau, pereira
Madeira jacarandá
Pau, pau, pereira
Madeira pau-brasil
Pau, pau, pereira
Olha o tombo da madeira
Pau, pau, pereira
Samba de roda na Ribeira
Pau, pau, pereira
Eu também sou capoeira
Pau, pau, pereira
Lê, lê,lê
Pau, pau, pereira
Lá, lá, lá
Pau, pau, pereira
Quem não pode com mandinga
Pau, pau, pereira
Não carrega patuá
Pau, pau, pereira
Olha o tombo da madeira
Pau, pau, pereira
O calado é capoeira
Pau, pau, pereira
Mas carapina de ioiô
Mestre Bimba
Mas carapina de ioiô
Ói a manteiga n’era minha
Ai a manteiga de ioiô
Ói a manteiga do patrão
Mas caiu no chão, derramou
Ói a manteiga derramou
Mas carapina de ioiô
Ói a manteiga n’era minha
164
Ai a manteiga do senhor
Ói a manteiga do patrão
Mas caiu n’água, se molhou
Ói a manteiga do patrão
Caiu no chão, derramou
Ói a manteiga n’era minha
Ai a manteiga de ioiô
Ói a manteiga derramou
Mas carapina
de ioi.
O calado é vencedor
Mestre Canjiquinha
Iê !
O calado é vencedor
Mas prá quem juízo tem
Quem espera ser fisgado, o meu bem
Não roga praga a ninguém
A mulher é como a cobra
Tem sangue de Peçanha
Deixa o rico na miséria, o meu bem
Deixa o pobre sem vergonha
Vou dizer pra meu amigo
Que hoje a parada é dura
Quem ama mulhé dos outros, o meu bem
Não tem a vida segura
Camaradinho
A sexta feira, ele sobe a ladeira
Mestre Lua Rasta
CD: Roda do Terreiro, 2009.
A sexta feira, ele sobe a ladeira
para ir la no terreiro capoeira jogar
A sexta feira, ele sobe a ladeira
para ir la no terreiro capoeira jogar
Tem Maracatu, Samba de roda, lá na ladeira,
tem Bumba meu Boi, Capoeira de Angola
A sexta feira, ele sobe a ladeira
para ir lá no terreiro capoeira jogar
Amanhã é domingo
Mestre Boa Voz
(KUBOHARA, 2009)
Amanhã é domingo,
165
dia de vadiar,
vou jogar capoeira
no barracão de Mestre Waldemar
Amanhã é domingo…
Amanhã é domingo,
dia de vadiar, vou jogar capoeira
no barracão de Mestre Waldemar
Vou jogar com o seu Traira,
Cobrinha Verde e seu Maré,
vou jogar com Mestre Ricardo,
Só pra ver como é que é.
Amanhã é domingo…
Amanhã é domingo,
dia de vadiar, vou jogar capoeira
no barracão de Mestre Waldemar
Lá vai estar o Jorge Amado,
Pierre Verger e Carybé o
João que é trapicheiro
e o talheiro do seu Maré.
Amanhã é domingo…
Amanhã é domingo,
dia de vadiar, vou jogar capoeira
no barracão de Mestre Waldemar
Celeiro Cultural da Bahia de outrora,
com o povo, artista é político,
e os mestres de angola.
Amanhã é domingo…
Amanhã é domingo,
dia de vadiar, vou jogar capoeira
no barracão de Mestre Waldemar
Lá na liberdade,
em frente a venda do Âgnelo,
vou ouvir o Az de ouro,
e jogar com Mestre Buguelo.
Amanhã é domingo…
Amanhã é domingo, dia de vadiar,
vou jogar capoeira
no barracão de Mestre Waldemar.
Parana ê
Anônimo
Paraná ê
Paraná ê
Paraná
Vô mimbora pra Bahia
Paraná
Tão cedo não venho cá
Paraná
166
Paraná ê
Paraná ê
Paraná
Se não fôr essa semana
Paraná
E a semana qui passô
Paraná
Paraná ê
Paraná ê
Paraná
Do nó escondo a ponta
Paraná
Ninguém sabe desatá
Paraná
Paraná ê
Paraná ê
Paraná
Chique-chique mocambira
Paraná
Joga pra cima de mim
Paraná
Eu sô braço de maré
Paraná
Mas eu sô maré sem fim
Paraná
Paraná ê
Paraná ê
Paraná
O digêro, digêro
Paraná
O digêro, digêro
Paraná
O digêro, digêro
Paraná
Eu também sô digêro
Paraná.
Eu tava na minha casa
Anônimo
(REGO p. 118, canto 103)
Eu tava na minha casa
Sem pensá, sem maginá
Mandaro me chamá
Pra ajudá a vencê
A guerra no Paraguai.
167
Quem Vem La Sou Eu
Mestre Matias
II Festival da música tradicional da capoiera 2009
Quem vem lá - sou eu
Quem vem lá - sou eu
Berimbau bateu
Capoeira sou e
Quem vem lá - sou eu
Quem vem lá - sou eu
Berimbau bateu
Capoeira sou e
Eu venho de longe, venho da Bahia
Jogo Capoeira Capoeira sou eu
Quem vem lá - sou eu
Quem vem lá - sou eu
Berimbau bateu
Capoeira sou e
Mais sou eu, sou eu
Quem vem lá
Eu sou brevenuto
Quem vem lá
Montado a cavalo
Quem vem lá
Fumando a charuto-
Quem vem lá
Mais sou eu, sou eu
Quem vem lá
Sem pensar, sem imaginar
Mestre Bimba
CD: Capoeira Regional de Mestre Bimba
Sem pensar, sem imaginar
Mandaram me chamar
Pra ajudar a vencer
Mas a guerra do Paraná
Haha
Água de beber
Ei Aruandê
Aia quer me vender
E ai na falsidade
Ai viva Deus no céu
Viva meu mestre
Iê quem me ensinou
Aiai na malandragem
Ai água de beber
Ai água pra lavar
Aie volta do mundo.
168
Certo dia numa festa
Mestre Paulo dos Anjos
(KUBOHARA, 2009)
Certo dia numa festa
um moleque me chamou
pra jogar
Eu que sou desconfiado,
fiquei logo de lado a
reparar
O que estava escrito na camisa,
era um tal de Besouro Mangangá
O que estava escrito na camisa,
era um tal de Besouro Mangangá
é,é é,a
era um tal de Besouro Mangangá
é,é é,a
era um tal de Besouro Mangangá
Tô dormindo, tô sonhando
Anônimo
Roda de capoeira Conjunto ACM
Tô dormindo, tô sonhando
Tão falando mal de mim.
A capoeira jurou bandeira
Mestre Suassuna
As 12 melhores do Mestre Suassuna
Iê...
Capoeira jurou bandeira
Pediu seu santo sua proteção
Entrou na roda olhou parceiro
Oi mas olhando o céu pediu perdão
Oi mas deu uma volta de saudação
Oi ainda na volta falou
Capoeira eu sou baiano
Oi mestre Suassuna foi quem me ensinou
Estendeu a mão e lá no cumprimento
Um pé no peito logo levou
Oi mas sumiu no chão que nem corisco
Pra confirmar o que havia dito
Capoeira neste dia, eh lutou tudo o que sabia
Oi mas se não lutasse perdia
O amor do peito de Maria
169
Moça do seu coração
Jogou no ar e no chão
Fez diabruras do cão
Oi rezando uma oração
Ele é homem de corpo fechado
Oi mas não teme ferro da matar
Ogum é meu padrinho
Oi guerreiro no céu e guarda na lua
E na terra meu peito é de aço
Pela faca de ponta não fura
Iê viva meu Deus...
Santa Maria Mãe de Deus
Anônimo
(KUBOHARA, 2009)
Santa Maria
Mãe de Deus
Fui na igreja
Não me confessei
Santa Maria
Mãe de Deus
Oi Mãe de Deus
Olha o homem que eu matei
Anônimo
(KUBOHARA, 2009)
Ê, Ê, Ê, Ê
Ê, ê, ê, ê
Olha o homem que eu matei
Ê, ê, ê, ê
Na cadeia eu não vou
Ê, ê, ê, ê
Era um filho desordeiro
Ê, ê, ê, ê
Era um filho matador
Ê, ê, ê, ê
Amanhã eu vou-me embora
Ê, ê, ê, ê
Por este mundo de Deus
170
O valente Vilela
Mestre Waldemar
CD: Mestre Waldemar e Canjiquinha
Iê!
Senhores, peço licença.
Senhores, peço licença, o meu bem.
Para lhes conta uma história.
O valente Vilela, o meu bem,
Trago sempre na memória.
Evitou-lo quinze anos.
Sempre a canção da vitória.
Ali tinha um capitão, o meu bem,
Um sujeito muito ousado.
Disse eu vou na Serra Torta.
Trago Vilela amarrado.
No outro dia bem cedo.
Marcharam para o lugar.
Onde morava Vilela, o iaia
O povo foi ensinar.
Chegou lá o capitão.
Mandou a casa cercar.
Cercaram ali a casa.
Ficaram de prontidão.
Vilela abre a porta, o meu bem.
Por ordem do capitão!
Você hoje tâ dai, ô meu bem,
direitinho para Prisão
Vilela tava em casa.
Sem nada disso saber.
Porque vocês vão se embora.
Não venham me aborrecer.
Responda me soldado, ô iaia,
Matar ou Morrer?
Responda me soldado,
Se veio matar ou morrer?
O soldado arrespondeu.
Não vim matar nem morrer.
Ta enganado sujeito.
Por ordem do delegado, o meu bem,
Por ordem do juiz de direito.
Você hoje me dá conta.
Das mortes que já tem feito.
Eu aqui na Serra Torta,
ja brigo bem no comum!
Por mim quem mata cem.
também mata cento um!
Camaradinha, Aquinderreis!
171
Sei sim senhor
Anônimo
(KUBOHARA, 2009, p. 166)
Esse homem é valente
Sei sim senhor
Ele está com navalha
Sei sim senhor
Ele vai te cortar
Sei sim senhor
O moleque é ligeiro
Sei sim senhor
Cuidado com ele
Sei sim senhor
Ele vai te pegar
Quebra gereba
Anônimo
CD: Capoeira Angola Mestre Acordeon
Quebra, quebra gereba
Quebra, quebra gereba
Quebra tudo hoje amanhã quem te quebra
quebra, quebra gereba
Você quebra hoje, amanhã quem te quebra
quebra quebra gereba
Quebra lá tudo hoje amanhã nada quebra
Quebra gereba
Anônimo
(REGO, 1968, p. 116)
Quebra, quebra gereba
Quebra
Oi você quebra hoje
Amanhã quem te quebra?
Quebra
Oi quebra, quebra
Queima, queima Amará
Queima.
Quebra gereba
Anônimo
Roda de capoeira do Conjunto ACM
Quebra jereba
Coro: quebra!
Quebra tudo hoje
172
Coro: quebra!
Amanhã nada quebra
Coro: quebra!
Olha quebra gereba
Coro: quebra!
Oi Sim, sim, sim, ou não, não, não
Anônimo
(KUBOHARA, 2009, p.224)
Oi sim sim sim
O não não não
Ê ou não não não
O não não não
Íe uoi sim sim sim
Oi não não não
Íe uoi sim sim sim
Oi não não não
Ê uo não não não
O não não não
Esta cobra te morde
Anônimo
REGO, 1968, p. 96
Esta cobra te morde
Sinhô São Bento
Oi o bote da cobra
Sinhô São Bento
Oi a cobra mordeu
Sinhô São Bento
O veneno da cobra
Sinhô São Bento
Oi a casca da cobra
Sinhô São Bento
O que cobra danada
Sinhô São Bento
O que cobra marvada
Sinhô São Bento
Buraco velho
Sinhô São Bento
Tem cobra dentro
Sinhô São Bento
Oi o pulo da cobra
Sinhô São Bento
E cumpade.
173
Me trate com mais respeito
Anônimo
(REGO, 1968, p.99 )
Me trate com mais respeito
Que é a sua obrigação
Todo mundo é obrigado
A possuí inducação
Me trate com mais respeito
Veja qui eu lhe tratei bem
Como vai, como passô
Como vai, como não vem.
Não se meta meu irmão
(REGO, 1968, p113)
Não se mêta meu irmão
Qui esse home é valente
Na usina Caco Velho
Já matô Chico Simão
Vamo imbora camarado
Vamo saí dessa jogada
A festa é muito boa
Mas vai tê muita pancada.
Era eu era meu mano
Anônimo
(REGO p.11.)
Era eu era meu mano
Era meu mano mais eu
Eu vi a terra molhada
Mas não vi quando choveu
Era eu era meu mano
Era meu mano mais eu
Ele alugô uma casa
No fim do mês
Nem ele pagô nem eu.
Era eu, era meu mano
Anônimo
Coletada em trino de capoeira com o Grupo Bantu
Era eu era meu mano
Era meu mano mais eu
Eu vi a terra molhada
Mas não vi quando choveu
Era eu era meu mano
174
Era meu mano mais eu
Ele alugô uma casa
No fim do mês
Nem ele pagô nem eu.
Panha laranja no chão tico-tico
Anônimo
CD: Capoeira Angola Mestre Acordeon
Panhe a laranja no chão tico-tico
Pois tua saia é de renda de bico
Panhe a laranja no chão tico-tico
Se meu amô fô imbora eu não fico
Panhe a laranja no chão tico-tico
Na uma, nas duas, nas três eu não fico.
A soberba combatida foi quem matou Pedro Sem
Anônimo
(Rego ,1968)
A soberba combatida
Foi quem matô Pedro Sem
No céu vive meu Deu
Na terra vale quem tem
Lá se foi minha fortuna
Escramava Pedro Sem
Saía de porta em porta
Uma esmola a Pedro Sem
Hoje pede a quem negô
Qui onte teve e hoje não tem
A quem eu neguei esmola
Hoje me negue também
Na hora da sua morte
A justiça ensaminô
Correndo o bôlso dele
Uma muxila encontrô
Dentro dela um vintém
O letrêro qui dizia
Eu já tive hoje não tem
A soberba combatida
Foi quem matô Pedro Sem
Viva Pedro Sem
Quem não tem não é ninguém.
175
E vem a cavalaria
Anônimo
(Rego, 1968)
E vem a cavalaria
Da Princesa Teodora
Cada cavalo uma sela
Cada sela uma senhora
Minha mãe nunca me deu
Pra hoje eu apanhá
Quem não pode com mandinga
Não carrega mangangá.
O Brasil disse que sim
Anônimo
(Rego, 1968)
O Brasil disse que sim
O Japão disse que não
Uma esquadra poderosa
Pra brigá com alemão
O Brasil tem dois mil home
Pra pegá no pau furado
Eu não sô palha de cana
Pra morrê asfixiado
O qui foi qui a nêga disse
Quando viu o sabiá
Uma mão me dê, me dê
Outra mão dê cá, dê cá
E aquinderreis
E viva meu Deus.
Vô mimbora prá Bahia
Anônimo
(Kubohara, 2009)
Iê
Vô mimbora pra Bahia
Pra vê se o dinhêro corre
Se o dinhêro não corrê
De fome ninguém não morre
Vô mimbora pra São Paulo
Tão cedo não venho cá
Se voci quizé me vê
Bote o seu navio no má
O Brasil stá na guerra
Meu devê e í lutá.
176
O berimbau tá tocando
Mestre Waldemar
CD: Mestre Waldemar e Canjiquinha
O berimbau tá tocando
A roda já começou
Venha ver a capoeira
E os mestres de valor
Os mestres tava de branco
Com navalha e patuá
As vestes saia limpa
Na roda beira-mar
Esse jogo de mandinga
Na cantiga e no olhar
No clarão da lua cheia
Na brisa da beira-mar
Prá jogar com os mestres antigos
Você tem que conhecer
A seu Bimba e o seu Pastinha
Valdemar e Aberre
O tempo já passou
No caminho não vai voltar
Prá jogar com os mestres antigos
Na roda da beira-mar.
Adeus, adeus, boa viagem
Anônimo
Coletada em roda de capoeira
Adeus adeus,
boa viagem
Eu vou com Deus
boa viagem
Eu vou me embora
boa viagem
Com Nossa senhora
boa viagem
Almas gêmeas De: Raimundo José dos Santos
Festival da musica tradicional da capoeira
O que é do homem o bicho não come
O que é do homem o bicho não come
177
Se Deus uniu ninguém separa
A magia da capoeira, já nasceu com Caiçara
No velho cais da Bahia
É coisa linda de se ver
Foi seu Bimba e Pastinha, Waldemar e Canjiquinha
E também seu Aberre
Que na igreja do Bomfim eles já falavam assim
“Todos podem aprender…”
Ô lê, lê, lê,lê,lê, lê
Todos podem aprender
Todos podem aprender
Todos podem aprender
Essa nossa linda cultura
Que veio dos nossos ancestrais
Eu já fiz um juramento, que não me esqueço jamás
Pra jogar capoeira, vou louvar aos orixás
Ô lê, lê, lê,lê,lê, lê
Todos podem aprender
Todos podem aprender
Todos podem aprender
Essa nossa tradição
Que na festa da conceição
O povo batiam na mão
Somente a responder
Ô lê, lê, lê,lê,lê, lê
Todos podem aprender
Todos podem aprender
Todos podem aprender
Da África para o Brasil De: Evaldo Correia dos Santos
Festival da musica tradicional da capoeira
Iê
Da África chegou
No Brasil foi que surgiu
Ela é afra-brasileira, que pelo mundo se expandiu
Nós falamos da cultura
E lembramos a escravidão
Pois lembramos da princesa
Que trouxe a libertação
Hoje o negro traz na pele
A marca da escravidão
Por preconceito racial
E por falta de proteção
E hoje olho pró céu
Me diga senhor Deus
178
Se é mentira se é verdade
Ou se é só nos olhos meus
Criaturas na miséria
Maior em que se pode ver
Seres humanos explorados
Sem poder se defender.
Camaradinho, o que fazer?
Iê, o que fazer camará?
Eu nasci na boa terra
Autor: Mestre Valdec
CD do Grupo de Capoeira Bantu
Iê!
Eu nasci na boa terra
Eu nasci na boa terra
E aqui eu me criei
Conheci a capoeira
Ai, ai, ai
logo nela iniciei
Logo nela iniciei
Atabaque e viola agogô eu já toquei
Homem, menino e mulher
Vadiar eu ensinei
Angoleiro eu hoje sou
Angoleiro eu sempre serei
Camaradinha!
Aquinderrei
Aquinderrei, camarada
Ê viva meu Deus
Iê, viva meu Deus, camarada (coro)
Olha lá viva meu mestre
Iê, viva meu mestre, camará (coro)
Ele é mandingueiro
Iê é mandingueiro, camará (coro)
Olha lá sabe jogar
Iê, sabe jogar, camará
Iê a capoeira
A capoeira, camará
Minha Terra tem dendê
Autor: Mestre Valdec
CD do Grupo de Capoeira Bantu
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)
Oi iaiá ou filho de catendê
179
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)
Vai gingar para aprender
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)
Olha joga bonito que eu quero ver
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)
Vou gingar prá você ver
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)
Tem dendê que tem dendê
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)
Vai gingar para aprender
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)
Joga bonito que eu quero ver
Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)
Eu sou angoleiro
Anônimo
CD do Grupo de Capoeira Bantu
Eu sou angoleiro
Angoleiro sim senhor
Eu sou angoleiro (coro)
Angoleiro de valor
Eu sou angoleiro (coro)
Angoleiro imperador
Eu sou angoleiro (coro)
Angoleiro de Iaiá
Eu sou angoleiro (coro)
Ô Iaiá, angoleiro que eu sou
Eu sou angoleiro (coro)
Angoleiro babá
Dandara ê Dandara
CD do Grupo de Capoeira Bantu
Dandara ê dandara
Iê princesa do aiutá
Rainha lá dos altos montes
O dandara dandara
O minha filha minha vida
Ê Dan Dara
Ie gosto muito de você
Iê da da dandara
Ie princesa dos altos montes
O rainha do aiutá
...
Dandara ê, Dandara…
180
ANEXO III
Tela do pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802 - 1858) em sua “Viagem
pitoresca ao Brasil”, realizada na primeira metade do século XIX retratou em óleo sobre
tela uma cena urbana intitulada Kriegsspiel (brinquedo guerreiro), ou como conhecemos
“Dança da Guerra”.