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9 INTRODUÇÃO A concepção do projeto de pesquisa que resultou nesta dissertação foi motivada pelas observações realizadas entre os anos de 2008 e 2009, quando trabalhei como museóloga da Coleção de Instrumentos Musicais Tradicionais Emília Biancardi 1 . A casa que abriga, expõe e dinamiza a referida coleção localiza-se no Centro Histórico de Salvador, também conhecido como Pelourinho. Este é um dos locais mais frequentados por mestres, capoeiristas, interessados e estudiosos da capoeira, também local de concentração de muitas academias que ensinam capoeira para crianças e adolescentes do entorno e também turistas que vêm em busca de conhecer e aprender capoeira na “grande Meca dos capoeiristas 2 ” como é considerada a cidade de Salvador. Através desta experiência tive contato com mestres que atuam em Salvador, como Mestre Pelé da Bomba, Mestre Boca Rica, Mestre Valdec como também mestres que atuam fora de Salvador, em outras cidades, estados e países, como Mestre Cabello, Mestre Marcos Simplício de Campinas, São Paulo, e Val Boa Morte que atua na Austrália. Contudo, a minha curiosidade pelo mundo da capoeira já existia, pois durante a minha infância, a capoeira foi para mim a maior referência do meu pai, conhecido na capoeiragem como Mestre Marcelo de João Pequeno. O fato de relacionar a capoeira com a sua pessoa e personalidade me mantinha conectada a ele. Como se quanto mais eu conhecesse da capoeira, mais eu conheceria o meu pai. Passei a considerar as cantigas da capoeira 3 como um possível objeto de estudo, quando certa feita, indo para a Casa da Coleção, ao passar pelo Pelourinho, reduzi o passo para ouvir a cantiga em uma roda de capoeira. Percebi que era tocada uma música da chamada “axé music” 4 , muito executada nos trios elétricos durante o carnaval, mas, na roda de capoeira era cantada ao som do berimbau e do pandeiro. Sem dúvida era uma roda de capoeira e cantavam como se fosse uma cantiga da capoeira. Aquilo provocou em mim um desconforto. Pensei: “mas se é música baiana 1 A Coleção de Instrumentos Musicais Tradicionais Emília Biancardi é resultado de um trabalho de pesquisa e compilação, da etnomusicóloga baiana Emília Biancardi, ao longo dos seus mais de quarenta anos de trabalho nesta área. É composta por instrumentos musicais oriundos dos cinco continentes, na maioria das vezes coletados e estudados pela própria colecionadora. 2 Letícia Vidor Reis usa o termo “grande meca dos capoeiristas” referindo-se à Bahia, mais exatamente a Salvador, ao tratar do processo chamado por ela de “rebaianização” da capoeira que ocorre entre os capoeiristas de todo o país no sentido de apropriar-se dos fundamentos e demais ensinamentos da capoeira Angola. (REIS, 2000, p. 156). 3 Na capoeira as cantigas são composições para acompanhamentos vocais. Estas podem ser de improviso fazendo a crônica da roda sobre os acontecimentos do momento ou podem ser elaboradas anteriormente para serem apresentadas no momento da roda ou treino de capoeira. 4 “Axé music” é o termo que designa uma série de produções musicais da cidade de Salvador no início dos anos 90 do século passado que deu maior visibilidade a cantores e bandas de baianos no mercado da musical nacional.

INTRODUÇÃO - Programa de pós-graduação e crítica ... · capoeira Angola. (REIS, 2000, p. 156 ... Tomamos por substrato de estudo as cantigas de capoeira produzidas nos moldes

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9

INTRODUÇÃO

A concepção do projeto de pesquisa que resultou nesta dissertação foi motivada

pelas observações realizadas entre os anos de 2008 e 2009, quando trabalhei como

museóloga da Coleção de Instrumentos Musicais Tradicionais Emília Biancardi1. A casa

que abriga, expõe e dinamiza a referida coleção localiza-se no Centro Histórico de

Salvador, também conhecido como Pelourinho. Este é um dos locais mais frequentados

por mestres, capoeiristas, interessados e estudiosos da capoeira, também local de

concentração de muitas academias que ensinam capoeira para crianças e adolescentes

do entorno e também turistas que vêm em busca de conhecer e aprender capoeira na

“grande Meca dos capoeiristas2” como é considerada a cidade de Salvador.

Através desta experiência tive contato com mestres que atuam em Salvador,

como Mestre Pelé da Bomba, Mestre Boca Rica, Mestre Valdec como também mestres

que atuam fora de Salvador, em outras cidades, estados e países, como Mestre Cabello,

Mestre Marcos Simplício de Campinas, São Paulo, e Val Boa Morte que atua na

Austrália. Contudo, a minha curiosidade pelo mundo da capoeira já existia, pois

durante a minha infância, a capoeira foi para mim a maior referência do meu pai,

conhecido na capoeiragem como Mestre Marcelo de João Pequeno. O fato de relacionar

a capoeira com a sua pessoa e personalidade me mantinha conectada a ele. Como se

quanto mais eu conhecesse da capoeira, mais eu conheceria o meu pai.

Passei a considerar as cantigas da capoeira3 como um possível objeto de estudo,

quando certa feita, indo para a Casa da Coleção, ao passar pelo Pelourinho, reduzi o

passo para ouvir a cantiga em uma roda de capoeira. Percebi que era tocada uma música

da chamada “axé music”4, muito executada nos trios elétricos durante o carnaval, mas,

na roda de capoeira era cantada ao som do berimbau e do pandeiro.

Sem dúvida era uma roda de capoeira e cantavam como se fosse uma cantiga da

capoeira. Aquilo provocou em mim um desconforto. Pensei: “mas se é música baiana

1 A Coleção de Instrumentos Musicais Tradicionais Emília Biancardi é resultado de um trabalho de

pesquisa e compilação, da etnomusicóloga baiana Emília Biancardi, ao longo dos seus mais de quarenta

anos de trabalho nesta área. É composta por instrumentos musicais oriundos dos cinco continentes, na

maioria das vezes coletados e estudados pela própria colecionadora. 2 Letícia Vidor Reis usa o termo “grande meca dos capoeiristas” referindo-se à Bahia, mais exatamente a

Salvador, ao tratar do processo chamado por ela de “rebaianização” da capoeira que ocorre entre os

capoeiristas de todo o país no sentido de apropriar-se dos fundamentos e demais ensinamentos da

capoeira Angola. (REIS, 2000, p. 156). 3 Na capoeira as cantigas são composições para acompanhamentos vocais. Estas podem ser de improviso

fazendo a crônica da roda sobre os acontecimentos do momento ou podem ser elaboradas anteriormente

para serem apresentadas no momento da roda ou treino de capoeira. 4 “Axé music” é o termo que designa uma série de produções musicais da cidade de Salvador no início

dos anos 90 do século passado que deu maior visibilidade a cantores e bandas de baianos no mercado da

musical nacional.

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cantada na Bahia, certamente por baianos, por que esse incômodo?” Mas eu não me

convencia, me sentia ultrajada por ouvir alguém cantando “axé” 5 como se cantiga de

capoeira fosse. Qual seria a finalidade daquilo? Percebi então que tal desconforto se deu

por não ter me identificado como baiana afrodescendente e amante da capoeira com tal

demonstração. A sensação de ultraje permanecia, ainda que eu me questionasse acerca

da dinâmica da cultura, das possibilidades de apropriação de novos elementos que

dinamizam e ressignificam a cultura tradicional, ainda que considerando a possibilidade

da sua invenção, e ainda observando Canclini (2008) quando nos lembra que mesmo a

cultura popular6 se moderniza.

Pouco tempo depois, em conversas e em contato com outros meios de

informação, soube que não somente eu, mas também parte da comunidade capoeirística,

não se agradava da execução de músicas e canções outras, fora dos padrões tidos como

tradicionais, nas rodas de capoeira. Desta opinião é também o Mestre Itapoã ao dizer no

registro em audiovisual do II Festival de Ladainha, Corrido e Quadra ou Chula7,

promovido pela Coleção Emília Biancardi, em 2008, que “a capoeira tem se desvirtuado

muito. […] a música da capoeira, cada um canta o que quer do jeito que quer e esquece

muito da tradição […]”.

No mesmo evento sinaliza uma questão semelhante à minha inquietação, o

Mestre Nenéu, comentando sobre a importância do referido festival: “[…] pra não ficar

como acontece às vezes se cantando samba de roda, cantando candomblé, Xitãozinho e

Xororó, cantando Xuxa, em roda de capoeira”.

É interessante notar, nas falas destacadas, que o ambiente da roda ou treino de

capoeira foi percebido, identificado e aceito como tal pelos capoeiristas, por meio dos

elementos visíveis e interpretados como tradicionais da capoeira (a roda, os

instrumentos, os capoeiristas com suas indumentárias, seus movimentos etc.). Ao

perceber uma cantiga que sai do repertório das formas tradicionais da capoeira, sobre o

5 Nesse caso o termo é usado de forma coloquial. “axé” é empregado como forma resumida de “axé

music”. Segundo o verbete destacado no “Glossaire” proposto por Barlow e Eyre, para “Axé” é “termo

yoruba que significa “força vital” e atualmente qualifica um estilo pop-afro-baiano no Brasil, onde é cada

vez mais popular (1997, p. 72). 6 Tomamos aqui a noção de cultura popular como elemento de força e atuação política. Conforme chama

a atenção Stuart Hall, “A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos

poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. É a arena do

consentimento e da resistência” (2003, p. 246), notamos então ainda mais marcadamente a atuação da

capoeira no terreno da política. 7 O II Festival de Ladainhas Corridos Chulas ou Quadras, foi um evento promovido pela Coleção Emília

Biancardi com a finalidade de promover as formas tradicionais de composição e execução das cantigas

tradicionais da capoeira em agosto de 2008, na cidade de Salvador.

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qual trataremos em outro capítulo como se estivesse quebrando as regras, rompido com

a convenção e com o referencial que supostamente sustentaria a capoeira enquanto

fenômeno cultural8 que manifesta identidades.

De modo geral, esta pesquisa pensa nas cantigas de capoeira como documentos

que nos oferecem compreensão acerca das representações e das identidades culturais

afro-brasileiras, sobretudo entre os capoeiristas que se formaram, atuam ou atuaram em

Salvador. A partir destes documentos, de composição dos próprios mestres e

capoeiristas, principais sujeitos desta manifestação, e considerando suas vivências,

pontos de vista e valores veiculados nestas cantigas, pretendemos estabelecer as bases

para análise e compreensão de como se apresentam e atuam os elementos de origem

afro-brasileira nas cantigas de capoeira. Também busca a pesquisa conhecer o contexto

de produção, execução e aprendizagem das cantigas de capoeira em Salvador.

Tomamos por substrato de estudo as cantigas de capoeira produzidas nos moldes

tradicionais9, por acreditar que estas expressam elementos da identidade cultural afro-

brasileira, ao mesmo tempo em que participam da sua construção e afirmação. Notamos

a relação entre a identidade afro-brasileira e as músicas de capoeira, através do conteúdo

e do discurso das letras das cantigas, e elementos desta identidade, a partir dos quais

destacaremos as categorias representacionais aplicadas na análise das cantigas.

Observamos também, que através de valores e vivências configura-se a identidade

cultural, e que muitas destas cantigas são produzidas com base nestes, uma vez que a

música tradicional da capoeira expressa estes valores afro-brasileiros e aquilo que se

construiu com fundamentos da capoeira.

Considerando a tendência interdisciplinar da Crítica Cultural, e, com isto, a

abertura para uma gama de instrumentos metodológicos, a fim de compor a metodologia

deste trabalho, a pesquisa lançou mão de um conjunto técnico-instrumental que envolve,

principalmente, o levantamento bibliográfico, observação etnográfica e o

estabelecimento de quadro de análise.

Deste modo, o levantamento de bibliografia e pesquisa bibliográfica teve por

finalidade fornecer subsídio teórico e conceitual, principalmente no que se refere à

cultura e suas variantes, Estudos Culturais, identidade cultural, etnicidade, afro-

brasilidade, capoeira e cantigas da capoeira. Também foi realizada observação

8Thompson nos oferece o conceito de “fenômeno cultural” como sendo “formas simbólicas em contextos

estruturados” (1995, p.181). 9 Como moldes tradicionais são compreendidas as modalidades das cantigas (ladainha, quadras, corridos,

chulas e louvação), com temáticas que versam ou giram em torno dos elementos culturais afro-brasileiros.

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etnográfica junto às rodas de capoeira e treinos, conversas e entrevistas dirigidas,

voltadas à melhor compreensão do mundo da capoeira e do processo de produção e

recepção das suas cantigas.

No primeiro capítulo, Os Estudos Culturais e a Capoeira, apresentamos o

universo da capoeira como uma manifestação cultural afro-brasileira. Para isso,

retomamos alguns debates que envolveram esta manifestação cultural, como as

especulações acerca da sua origem e nome. Também buscamos salientar a condição da

escravidão colonial no Brasil como condição fundamental para a criação e

desenvolvimento da capoeira, bem como fazer um apanhado da história da capoeira,

desde a sua chegada às cidades, até a sua patrimonialização pelo Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2008, de modo a contextualizar

a produção das cantigas de capoeira em Salvador, e como as percebemos como objeto

de estudo.

No segundo capítulo, Capoeira e Identidade Afro-brasileira, tratamos da

identidade cultural afro-brasileira como construção social, elaborada a partir das

referências dos diversos grupos étnicos africanos que tiveram seus representantes

trazidos como escravos para o Brasil. Considerando a conjuntura da escravidão colonial

e a fragmentação das referências institucionais dos africanos aqui escravizados10

, como

fato que não lhes permitiu a continuidade das suas culturas, percebemos este contexto

como elemento fundamental que possibilitou a criação e desenvolvimento não somente

da capoeira, como também do universo da cultura afro-brasileira. Utilizamos

fundamentos teóricos de Stuart Hall (2003 / 2006) que abordam a formação das

identidades e a ideia de nação, com base nos Estudos Culturais; Berger e Luckmann

(2008), que tratam da construção social da realidade, e as relações de

intersubjetividades, bem como autores como Munanga (1990 e 2003), em conjunto com

Poutignat e Strieff-Fernart (1998) quando tratamos sobre raça e etnicidade. Também

apresentamos a ideia de afro-brasilidade, como uma reação defensiva às experiências

geradas pela desigualdade racial11

.

O terceiro capítulo, Os Valores Civilizatórios Afro-brasileiros nas Rodas de

Capoeira, é destinado à apresentação de alguns dos valores civilizatórios afro-

brasileiros, no sentido de acurar a percepção do leitor na identificação de aspectos

10

Segundo Sérgio Buarque de Holanda, os principais grupos culturais de africanos trazidos para o Brasil

foram os dos grupos linguísticos Bantu e Sudaneses, dos quais originavam-se diversos dialetos e

ocupavam vasta área do território africano. 11

Neste sentido, raça é concebida conforme Hall (2006, p. 63), como uma categoria discursiva.

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civilizatórios que se relacionam diretamente à construção das identidades afro-

brasileiras. Verificamos que estes valores se expressam no mundo da capoeira, em

particular nas cantigas de capoeira cantadas em Salvador.

O quarto capítulo, Mestres, Capoeiristas e Cantigas de Capoeira em Salvador,

destina-se a apresentação da metodologia de trabalho e à análise das cantigas a partir de

um quadro de categorias e subcategorias elaborado com base na noção de representação

social. São apresentados os instrumentos de coleta de dados, os perfis dos capoeiristas

entrevistados e algumas impressões colhidas nas visitas e participações em aulas de

capoeira. Além disso, verificamos nas cantigas a integração e a expressão da

cosmovisão, dos princípios e valores afro-brasileiros. Deste modo, através das

categorias que estabelecemos, analisamos trechos das cantigas, confrontando e

apresentando mais cantigas do que se analisássemos uma cantiga por categoria. De

qualquer forma, trazemos nos anexos as cantigas na íntegra, tanto as que utilizamos

como exemplos, quanto as que nos forneceram parâmetros para a análise, contudo não

foram citadas no texto.

Por fim, são feitas as considerações finais, apresentando as possíveis conclusões

que puderam ser feitas com este trabalho. Pensando a identidade cultural afro-brasileira

como uma construção social, a qual no mundo da capoeira, manifesta através das suas

cantigas elementos que nos fazem perceber as representações sociais elaboradas sobre

estes grupos pelos próprios capoeiristas, haja vista os contextos da sua produção e

execução, influenciado por demandas da indústria do turismo e outros fatores

econômicos.

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CAPÍTULO I

OS ESTUDOS CULTURAIS E A CAPOEIRA

Os Estudos Culturais, como área do conhecimento, tiveram seu início na Grã-

Bretanha durante a década de 50 do século passado. Derivou-se de uma corrente

teórico-política denominada leavisismo, a qual buscava, baseado no pensamento de F.

R. Leavis sobre cultura e educação, distribuir mais amplamente o conhecimento

oferecido às elites, entre as camadas da sociedade que não tinham acesso aos produtos

culturais da chamada alta cultura12

, - digo desses, os valorizados e produzidos pelas

elites dentro dos cânones por estas estabelecidos - através da organização esquerdista

voltada para a educação de adultos chamada Workere’s Educational Association

(WEA), onde eram professores Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward

Thompson. Na perspectiva destes pensadores, a produção cultural das classes

trabalhadoras não era creditada a ponto de ser estudada e discutida academicamente.

Assim, os Estudos Culturais, que tiveram influência dos pensadores da Escola de

Frankfurt, pensam a cultura como um produto das relações entre indivíduos.

Partindo deste ponto, Raymond Williams, um dos principais teóricos dos

Estudos Culturais, lança-se à compreensão mais ampla da cultura, tomando esta “como

modo de vida”, a qual todas as comunidades humanas e indivíduos atuam como

produtores. Deste modo, os Estudos Culturais, ao tomarem a cultura como um produto

das relações entre indivíduos, como modo de vida, volta um novo olhar para forma de

estudar a “alta cultura” e abre espaços para o estudo da cultura popular, das classes

subalternizadas, das comunidades e sub-culturas, enfim às culturas situadas à margem

da sociedade. Com isto, enfatizam também o estudo das relações locais ante o global,

por considerar a cultura uma esfera interrelacionada à ideologia, à economia, à história e

à política como marcas conjunturais do contexto. Neste sentido, as cantigas da capoeira

apresentam-se como objeto de estudo, relacionando-se com os valores tradicionais e os

12

O termo “alta cultura” aqui é empregado referindo-se contextualmente à idéia de desenvolvimento

durante o século XIX, relacionando-se às obras de arte produzidas e valorizadas pela elite da época, com

vistas a diferenciar-se da cultura popular, esta produzida fora dos cânones impostos pela chamada “alta

cultura”. Deste modo, o uso do termo “alta cultura” busca enfatizar a diferença de classes produtoras de

cultura.

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valores encontrados na pós-modernidade13

que de modo conjunto atuam sobre a

formação da identidade cultural afro-brasileira, a qual permeia o mundo da capoeira.

Os Estudos Culturais não apresentam desenvolvida uma metodologia própria, o

que pode parecer um tanto desconfortável, contudo, encontram-se em uma situação

privilegiada, pois, se permitem lançar mão de várias técnicas e instrumentos

metodológicos, sobretudo os desenvolvidos pelas ciências humanas para alcançar a

finalidade do estudo proposto. De fato, os Estudos Culturais são uma área do

conhecimento que atua nas fronteiras, tanto em termos de conceitos, quanto de

referências. Haja vista a construção de sua base teórica, notadamente orientada pelo

marxismo revisado, tanto quanto a apropriação de diversos conceitos forjados pela

Antropologia, a História, a Linguística ou a Sociologia. Aliás, é deste modo que

podemos compreender a afirmação de Nelson, Treichler e Grossberg quando dizem que

“os Estudos Culturais se aproveitam de quaisquer campos que forem necessários para

produzir o conhecimento exigido para um projeto particular.” (NELSON, TREICHLER

e GROSSBERG apud. SILVA, 2008, p. 9).

Segundo Thompson (1995), a convenção e o referencial são elementos cruciais

para o estudo das culturas, por se tratar de dois dos aspectos das formas simbólicas14

.

Deste modo, notamos que as tais quebras no repertório das formas tradicionais das

cantigas aparecem como fatores de estranhamento entre os capoeiristas e estudiosos da

capoeira. Vale lembrar que as convenções, como uma das característica das formas

simbólicas, são construções humanas socialmente estruturadas15

, e como tal, estão

dispostas em contextos que lhes permitem, através de diversos tipos de interação,

transformar-se, reconstruir-se e reinventar-se. Deste modo, a característica dinâmica da

cultura, permite que esta se abra a reinterpretações, novos usos e novas formas de

produção.

13

Compreendemos como pós-modernidade o momento pelo qual passam as sociedades capitalistas,

caracterizado por Eagleton (2005) como um movimento crescente de dependência destas sociedades em

“operações cotidianas de mitos e fantasias, riqueza ficcional, exotismo e hipérbole, retórica, realidade

virtual e mera aparência” (2005, p.100). Além disso, a pós-modernidade se manifesta como um momento

histórico de intenso e descontínuo fluxo de inter-relações, informações, narrativas e modos de vida que

revelam, mas também confundem o sentido da realidade e experiências humanas. 14

As formas simbólicas segundo a compreensão de Thompson referem-se a “ações, objetos sociais e

expressões significativas de vários tipos.” (1995, p. 181). 15

Thompson, (1995) considera o aspecto convencional como uma característica das formas simbólicas,

juntamente com os aspectos intencional, estrutural, referencial e contextual, indispensáveis ao estudo e

compreensão dos fenômenos culturais. As formas simbólicas segundo a compreensão de Thompson

referem-se a “ações, objetos e expressões significativas de vários tipos.” (1995, p. 181).

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De acordo com autores como John Thompson (1995), Lúcia Santaella (2003) e

Marilena Chaui (2007) que dedicaram momentos em suas obras para historiar em linhas

gerais o desenvolvimento do conceito de cultura, podemos observar que, ao longo do

tempo, foram atribuídos diversos significados e desenvolvidas concepções diversas para

este termo. Partindo da concepção etnológica, oriunda do latim colere, verbo que se

refere ao cuidado ou cultivo da terra, e relacionando este cultivo às sociedades humanas,

esses significados e concepções foram ganhando conotações variadas, algumas delas

ainda usadas em nosso cotidiano, através da concepção de cultura como instrução ou

como termo que descreve a “evolução” de processos de desenvolvimento humano.

Entendemos hoje a cultura como modo de vida, que envolve os saberes e fazeres, as

produções e significações materiais e imateriais, as mais diversas relações entre

indivíduos e entre estes e o meio, não somente onde vivem os indivíduos, como também

onde se dá a produção, construção e interpretação de símbolos culturais, além dos meios

virtuais.

Percebemos então cultura como um conceito em intensa transformação, pois,

como metaforiza Santaella “a cultura é como a vida” (2003, p. 29), e a vida, como um

gás que tenta ocupar todo espaço disponível, adaptando-se a esse espaço, torna-se cada

vez mais complexa e em constante crescimento. Ainda conforme a autora “[…] a

cultura humana existe num continuum, ela é cumulativa, não no sentido linear, mas no

sentido de interação incessante de tradição e mudança, persistência e transformação”

(SANTAELLA, 2003, p. 57). Essa constante transformação pode ser observada em

diversos fenômenos culturais, dentre os quais a capoeira, de um modo geral, ou nas suas

cantigas, de modo particular.

As culturas são produções humanas nas quais estão em relação o homem, o meio

e a sociedade. Neste sentido, nota Thompson que

[…] a vida social não é, simplesmente, uma questão de objetos e fatos que

ocorrem como fenômenos de um mundo natural: ela é também uma questão

de ações e expressões significativas, de manifestações verbais, símbolos,

textos e artefatos de vários tipos e de sujeitos que se expressam através

desses artefatos e que procuram entender a si mesmos e aos outros pela

interpretação das expressões que produzem e recebem (THOMPSON, 1995,

p. 165).

Deste modo, podemos entender que a noção de cultura está vinculada à vida em

grupo, e que tem como elementos fundamentais, os membros, os grupos e suas

interações, delas se originam as instituições, a produção, significação e

compartilhamento de símbolos e artefatos que envolvem os modos de vida e os

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contextos sociais estruturados,16

nos quais, ocorrem os “fenômenos culturais”. Estes

seriam as manifestações culturais que se apresentam em si, enquanto passíveis de serem

objetivadas, tanto quanto suas relações de poder e conflito, pontuadas por Thompson

(1995).

Assim, o conceito de cultura, considerando a dinâmica como uma das suas

principais características, nos permite pensar que tudo o que se pode assegurar é este

movimento dinâmico, de expansão, contração, interação e produção simbólica. Deste

modo, o delineamento do problema teórico-empírico que se apresenta neste trabalho

toma a compreensão da identidade cultural afro-brasileira como identidade, composta e

situada em um campo dialético que abarca raça, etnicidade e nacionalidade, como

formas simbólicas que atuaram diretamente na construção social e cultural da capoeira e

que podem ser observadas a partir das cantigas de capoeira.

1.1 Sobre a capoeira

Uma das versões mais conhecidas sobre a origem da capoeira, defendida pelo

historiador, antropólogo e folclorista, Luís da Câmara Cascudo (REGO, 1968), é a que

diz ter se originado em Angola, a partir de um rito de passagem conhecido como N’golo

ou “dança da zebra”. Tradicional na região sul de Angola, este jogo ritualístico, cujo

objetivo era acertar o rosto do adversário com um golpe desferido com o pé, além de

iniciar os jovens guerreiros, de alguns grupos dessa região, permitia também ao

vencedor escolher dentre as jovens que entraram na puberdade, naquele ano, no

cerimonial de iniciação, uma delas para ser sua noiva, desobrigando-se do pagamento

do dote (REGO, 1968, p. 19; ABREU e CASTRO, 2009, p.21, OLIVEIRA, 1971, p.

69).

Acontece que em terras americanas ocorreram modificações, supressões,

acréscimos de elementos e significações em diversas manifestações das culturas

africanas diaspóricas. Conforme Mintz e Price (2003) salientam, o sistema sóciocultural

africano não atravessou o Atlântico intacto, com todos os seus atores sociais, por

exemplo: estava na América o líder religioso, mas não os praticantes do culto; estava

aqui o súdito, mas não o seu rei. Sendo assim, podemos dizer sobre a suposta origem da

capoeira no Brasil, que o n´golo, passou por modificações tanto nos usos quantos nos

16

Segundo Thompson os contextos sociais estruturados são contextos nos quais “os fenômenos culturais

são produzidos, transmitidos e recebidos, podem estar caracterizados de várias maneiras, como por

relações assimétricas de poder, por acesso diferenciado a recursos e a oportunidades e por mecanismos

institucionalizados de produção, transmissão e recepção de formas simbólicas”. (1995, p. 180 - 181)

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significados de modo que ocorreram transformações do ponto de vista institucional e

tornou-se o que conhecemos e chamamos de capoeira.

Consideramos também que a capoeira foi desenvolvida no contexto da

escravidão, e este fato lhe imprimiu uma série de significados e características

diferentes do n’golo, que não se resumem aos golpes e contragolpes, mas também

envolvem uma História, uma concepção de mundo, construídas sobre um tenso e

imbricado contexto de relações sociais. Além disso, cumpre ressaltar que não somente a

capoeira, mas também outras manifestações da cultura afro-brasileira tiveram em seu

processo de construção influências de outras matrizes culturais. Por maior que tenham

sido as influências africanas, tais construções ocorreram no Brasil através do

tangenciamento e diálogo, entre manifestações e tradições, amalgamadas em fenômenos

que se apresentavam em sua completude e, desta forma, uniram-se não somente aos

elementos e símbolos que formam a roda da capoeira, do maculelê, do samba, da

batucada, como também a outros aspectos da cultura dos sujeitos envolvidos, como sua

cosmovisão e seus modos de vida.

A propósito, ainda existem, tanto no continente africano, quanto na América,

onde se deu a escravidão colonial de diversos povos africanos, o registro de

manifestações que mesclam luta, dança e brincadeira, envolvendo pernas e cabeça e

acompanhamento de músicas e cantigas, que são características comuns à capoeira, a

exemplo do “mani” ou “bombosa” em Cuba, da “ladjia” na Ilha de Guadalupe e na

Martinica e o “mourine” na Ilha de Reunión (ABIB, 2008).

Deste modo, é possível então compreender a capoeira como uma criação dos

africanos das várias nações que estavam no Brasil na condição de escravizados ou ex-

escravizados, que foi desenvolvida por seus descendentes como uma forma de resistir à

opressão que lhes era imposta, e que teve seu desenvolvimento continuado de modo a

ser transformada e disseminada com o decorrer do tempo, compartilhando uma cultura

ao mesmo tempo em que era construída essa nova cultura, ressignificando fragmentos

de várias heranças, agregando ou mantendo elementos do caráter lúdico, ritual e de luta

marcial. Nesse sentido, cumpre destacar as ideias trazidas por Price e Mintz sobre o

processo de formação de uma comunidade e de uma cultura em situação como a afro-

brasileira. Para os autores:

Os africanos de qualquer colônia do Novo Mundo só se transformaram de

fato em uma comunidade e começaram a compartilhar uma cultura na

medida e na velocidade que eles mesmos as criaram (MINTZ e PRICE, 2003,

p. 33).

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19

Deste modo, vemos que no Brasil as manifestações africanas que cruzaram o

Atlântico na memória dos negros escravizados, passaram por diversas modificações,

ressignificações e adaptações e se institucionalizaram de formas diferentes das

existentes na África. A exemplo do n’golo, um tipo de dança ritual, a qual é atribuída a

origem da capoeira, que apesar das semelhanças, salientamos que no Brasil a capoeira

foi desenvolvida destituída do caráter cerimonial de rito de passagem. Do mesmo modo,

seu nome tem como provável origem o termo tupi, “caa-apuam-era”, referindo-se ao

mato cortado bem baixo (REGO, 1968, p.13).

A partir desta especulação sobre a origem deste vocábulo, alguns estudiosos

conforme cita Soares (1962), Rego (1968) e Reis (2000) concebem o jogo da capoeira

como uma expressão de origem rural, praticada inicialmente em locais de mato baixo

pelos negros escravizados em fuga ou quilombolas, relacionado ao trabalho nas

fazendas. Entretanto, em oposição a esta colocação sobre o ambiente que fomentou a

criação e desenvolvimento da capoeira, observa Soares (1962) que de acordo com as

publicações de Adolfo Morales de Los Rios no jornal carioca Rio Esportivo, no período

entre julho e outubro de 1926, a capoeira é de origem urbana, valendo-se mais uma vez

da origem indígena do termo17

“capu”, tipo de cesto confeccionado com matéria-prima

extraída das matas, utilizado pelos negros escravizados que trabalhavam no

desembarque de produtos vindo nos barcos e navios que aportavam no Rio de Janeiro.

Logo, ao usar esses “capus”, teriam sido denominados, os “capoeiros”. Deste modo,

compreende Carlos Eugênio Líbano Soares que:

Nas hipóteses do estudioso (Adolfo Morales de Los Reios), a capoeira como

luta teria nascido nas disputas da estiva, nas horas de lazer, no ‘simulacro de

combate’ entre companheiros de trabalho, que pouco a pouco se tornaram

hierarquias de habilidades, onde se duelava pela primazia no grupo. Dessas

disputas de ‘perna’ teria nascido o ‘jogo da capoeira’ ou a dança do escravo

carregador do ‘capu’. (SOARES, 1962, p. 21)

Os estudos históricos sobre capoeira têm a maior parte dos seus referenciais

datados a partir do início do século XIX, quando passou a ser considerada um fenômeno

urbano, haja vista a disponibilidade de documentos escritos oficiais, oriundos das

delegacias, também do que se publicava em notícias de jornais, crônicas, poesias e

imagens de artistas como Debret e Rugendas. Contudo, diante da ausência de

17

Segundo o autor referido em Soares (1962) o termo “capus” tem sua origem indígena formada a partir

dos termos “ca”, que refere-se a elementos e matérias-primas encontradas na mata, e “pu”, que significa

cesto. Sendo assim “capu”, o nome dado ao cesto confeccionado com a matéria-prima extraída da mata.

Nesta perspectiva, formou-se o termo “capueiro” designando os negros escravizados que trabalhavam nos

portos carregando os “capus” (SOARES, 1962).

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20

documentos que norteiem a pesquisa, em um período anterior a esse, é comum, nas

especulações sobre o início do desenvolvimento da capoeira, os estudiosos cogitarem o

primeiro estágio de desenvolvimento deste processo nas zonas rurais, como podemos

ver nos trechos destacados de Valdemar de Oliveira (1971) e Letícia Vidor Reis (2000),

ao imprecisarem o processo de chegada da capoeira à urbis, conforme podemos

observar nos trechos destacados abaixo:

A existência da capoeira parece remontar aos quilombos brasileiros da época

colonial, quando os escravos fugitivos, para se defenderem, faziam do

próprio corpo uma arma. […]

Como não existem pesquisas históricas da capoeira entre os séculos 16 e 18,

não é possível reconstruirmos o processo que levou ao seu deslocamento do

campo à cidade, o que deve ter acontecido por volta do começo do século 19,

pois datam desse período as primeiras referências históricas a respeito dos

capoeiras urbanos (REIS, 2000, p. 11)

[…] A certa altura, deve ter-se transferido do campo para a cidade, do

escravo para o fôrro, êste ainda mais necessitado de impor a sua nova

condição, dentro da igualdade sonhada.

[...] Nasciam os capoeiras. […]

(OLIVEIRA, 1971, p. 70)

Com isso, ainda é possível intuir que a capoeira se desenvolveu em vários locais,

ao mesmo tempo, durante o período colonial, tanto nas senzalas quanto nos quilombos e

nas ruas. Com essa diversidade de locais também cogitamos que fora praticada de várias

formas, com movimentos e performances que em algo se assemelhavam, com base em

rituais e comemorações praticados em África, por africanos, de acordo com seus grupos

e seus descendentes, ocorrendo uma nova configuração e ressignificação em solo

brasileiro. Caminho semelhante também é observado em outras manifestações da

cultura afro-brasileira, como nas danças, nas músicas e na religiosidade.

Waldeloir Rego confere aos africanos e afrodescendentes no Brasil a criação e

desenvolvimento da capoeira, como salienta o desenvolvimento da capoeira como um

processo cultural em constante transformação, considerando para tanto o aspecto das

relações sociais e econômicas como fator de transformação e adequação da capoeira e

seus elementos, haja vista a afirmação do autor que diz:

Portanto, a minha tese é a de que a capoeira foi inventada no Brasil,

com uma série de golpes e toques18

comuns todos os que a praticam e

que os seus próprios inventores e descendentes, preocupados com o

seu aperfeiçoamento, modificaram-na com a introdução de novos

toques e golpes, transformando uns, extinguindo outros, associando a

18

O toque, que é um enunciado instrumental apenas proferido pelo berimbau, mas que pode ser também

acompanhado pelos outros instrumentos da bateria ou conjunto instrumental da capoeira, cantigas e

palmas. Existe uma variedade de toques que podem ter significados diversos, como avisos aos jogadores,

para determinar o ritmo do jogo e identificar o mestre que está a frente da roda.

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isso o fator tempo que se incumbiu de arquivar no esquecimento

muito deles e também o desenvolvimento social e econômico da

comunidade onde se pratica a capoeira (REGO, 1968, p. 36).

Deste modo, compreendemos que a capoeira passou por alterações em sua

estrutura, enquanto luta, dança e jogo, nos aspectos que a caracterizam, bem como em

seu status, que começou pejorativamente como “luta de escravos” e hoje figura no

elenco do patrimônio cultural brasileiro, registrado pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional – IPHAN - no livro das Formas de Expressão e no Livro

dos Saberes em 2008.

1.2 Capoeira: luta e mandinga - de marginal a patrimônio

De modo geral, é possível afirmar que as expressões da cultura afro-brasileira

sofreram e, a exemplo do candomblé na Bahia19

, ainda sofrem, perseguições diversas.

Até ser reconhecida com o título de Patrimônio Cultural do Brasil pelo IPHAN em

2008, a capoeira passou por momentos de marginalização e violenta perseguição, além

de ter sua prática criminalizada figurando em Código Penal.

Vale lembrar que os primeiros registros escritos nos quais a capoeira aparece,

são datados do final do século XVIII, oriundos principalmente dos arquivos policiais da

cidade do Rio de Janeiro. Contudo, antes de intuirmos que foi no século XVIII, na então

capital do vice-reino, que teve início a prática da capoeira, percebemos sim, o quanto

nesta época e lugar a capoeira e seus praticantes sofreram maior perseguição

institucionalizada, o que fez com que se produzisse grande parte dos documentos

encontrados a esse respeito. Pois, como vimos, a capoeira remonta a uma origem rural

que posteriormente migrou para as cidades, onde se fez notar como fenômeno urbano,

conforme apresenta a antropóloga Maria Paula Adinolfi, com base na historiografia

disponível, no parecer do Registro da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil, no

qual diz:

A historiografia, até este momento das pesquisas, no que se refere ao

Rio de Janeiro, Salvador e Recife, define-se como fenômeno urbano,

surgido provavelmente nas grandes cidades escravistas litorâneas,

entre crioulos e africanos escravizados ligados às atividades ‘de

ganho’, na zona portuária ou comercial. (IPHAN, 2008, p.6)

19 Lembro aqui dentre outros atos de perseguição a expressões da cultura afro-brasileira, a demolição de

parte da comunidade-terreiro do Oyá Nipó Neto, pela Superintendência de Manutenção, Conservação e

Uso do Solo (SUCOM) órgão da Prefeitura Municipal de Salvado,r em 22 de fevereiro de 2008.

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Conforme Carlos Eugênio Líbano Soares (1994), durante a primeira metade do

século XIX a capoeira estava diretamente relacionada a duas categorias: à condição

escrava e à origem africana. Corrobora Reis (2000), ao observar que

O estigma da escravidão estava inevitavelmente associado à cor e,

dessa maneira escravos e libertos enfrentavam no dia-a-dia

dificuldades bastantes semelhantes. Também os africanos pertencentes

a etnias diferentes, submetidos aqui à ‘experiências escravas de

classe’, acabaram por forjar, em muitos casos, uma cumplicidade que

engendrava ações conjuntas. (REIS, p. 108,109).

Contudo, devemos pensar que a capoeira, antes mesmo de assim ser nomeada,

tem em sua origem os grupos de negros escravizados, vindos da África, onde os povos

tinham a tradição oral como principal forma de registro dos fatos e da História, de modo

que as datas e locais dos registros escritos atestam não a sua origem ou época de

criação, mas o período, contexto e condições que esta se fez notar dentro da sociedade

escravocrata da época.

Na Bahia, os documentos encontrados sobre a capoeira datam da segunda

metade do século XIX, localizados nos registros provenientes das páginas policiais dos

jornais e dos processos criminais encontrados nos arquivos das delegacias (ABIB,

2009). Deste modo, a produção desses documentos fornece o desenho de um período

em que a prática da capoeiragem começou a ser mencionada e tratada como questão de

relevo, ligada à segurança pública.

Inserido no contexto da produção destes documentos, nos deparamos com a

ideologia do progresso que gerou a tentativa de se implantar no Brasil uma sociedade

nos moldes europeus, no início dos anos 50 do século XIX. No entanto, já era marcante

a presença dos negros e mulatos na sociedade brasileira, tanto como escravos, quanto

como trabalhadores livres ou libertos, vivendo tanto no meio rural quanto no meio

urbano. Registra-se ampla circulação dessas presenças na vida da sociedade, pois eram

usados em vários tipos de serviço e estavam espalhados em diversos meios, nas cidades,

nas residências, nos portos, nas ruas e nos mercados, e, no meio rural, como nas

plantações e nos engenhos.

Todavia, esta presença de negros e mestiços era compreendida como um entrave

à implantação da sociedade moderna, nos moldes que se pretendia. Isto porque, de

acordo com o modelo de civilização que se buscava alcançar, a presença de negros e

mestiços era tomada como fator de inferioridade do povo que pretendia tornar-se uma

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nação civilizada. Esta ideia de inferioridade do negro respaldava-se nas teorias raciais

do século XIX, com base no pensamento evolucionista europeu chamada por Reis

(2000, p. 56) de “teorias europeias do evolucionismo social”. Na mesma obra da

referida autora é lembrado o médico Nina Rodrigues, que com base em tais teorias

propôs a criação de códigos penais distintos para negros e para brancos.

Os adeptos dessas teorias buscavam provar, por meio dos estudos das ciências

biológicas, as supostas limitações e incapacidades dos negros. Ou seja, procuravam

justificar a situação social de exploração do homem negro, a partir de dados biológicos,

por meio de exames físicos, como a medida do índice cefálico e altura dos indivíduos,

pela determinação de características psicológicas que levavam à conclusão das

predisposições a determinados tipos de comportamentos violentos e perniciosos, bem

como à definição, como primitivas, as produções culturais dos negros.

Assim, acreditava-se que o elemento negro na formação do povo brasileiro

constituía ameaça de enegrecimento de todo o povo e cultura brasileira, o que

aniquilaria a possibilidade do progresso e de transformar o Brasil em uma civilização

“moderna” de acordo com o almejado modelo europeu. Por isso seria imprescindível

uma política de embranquecimento do povo e da sua cultura, a fim de tornar-se mais

próximo do padrão desejado. Diante disso, observa Reis (2000), que

Em meio a esse afã civilizador e civilizatório, as autoridades

republicanas, como comenta Nicolau Sevcenko (1983), investirão

contra grande parte das manifestações de cultura popular enquanto

‘práticas caracterizadas pelo discurso oficial como signos de atraso,

ignorância, barbárie, selvageria, sempre em oposição à civilização,

ao progresso, à modernidade.’ (REIS, 2000, p. 58)

Deste modo, para o embranquecimento do povo, que implicava tanto o fator

biológico quanto o cultural, o projeto de migração europeia apresentou-se como uma

das formas encontradas para relegar ao esquecimento a marca deixada pelos negros na

sociedade brasileira, atrelando a isso as ostensivas perseguições e toda forma de

controle e punição às manifestações da cultura afro-brasileira.

Paradoxalmente, o caráter marcial da capoeira foi realmente posto a prova e

comprovado no episódio da Guerra do Paraguai (1864-1870), quando muitos dos

chamados “voluntários da pátria”, negros, escravos ou não, eram compulsoriamente

alistados no exército, muitas vezes para tomar parte em batalhões, sendo prometida a

libertação destes quando retornassem, formados exclusivamente por negros, como foi o

“Corpo dos Zuavos”, batalhão formado na Bahia. O uso da destreza da capoeira foi

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imprescindível para esses “voluntários”, visto que estes foram postos para atuar na linha

de frente das batalhas, de modo que, na luta corporal, a capoeira era tanto o ataque,

quanto a defesa do “voluntário”, e da sua habilidade dependia sua própria vida. Este foi

um dos poucos momentos, destaca Letícia Vidor Reis (2000), no qual os capoeiras

tiveram uma representação social positiva, juntamente com o episódio da Cisplatina

(1825 - 1828).

Sobre isto, destaca Adinolfi, no seu parecer ao IPHAN, que mesmo na Bahia,

onde a capoeira parecia imprimir menos na sociedade a dimensão de violência e terror

se comparado ao Rio de Janeiro,

No entanto, a partir de 1890, quando a capoeira foi

criminalizada através do artigo 402 do Código Penal, a

repressão policial abateu-se duramente sobre seus praticantes,

em consonância como o projeto republicano ‘higienizador’ e

europeizante de construção de um Brasil ‘civilizado’. (IPHAN,

2008, p. 7).

Neste sentido, cumpre destacar o texto do artigo do Código Penal da República

dos Estados Unidos do Brasil de 1890, cujo capítulo XIII trata “Dos vadios e capoeiras”

e traz expresso no artigo 402.

Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e

destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem;

andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de

produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens,

ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de

algum mal. Pena - de prisão cellular de dous a seis mezes.

(Código Penal da República Federativa do Brasil, 1890. Artigo

402).

Mesmo considerando o contexto da escravidão como principal fator que

ocasionou a criação e desenvolvimento da capoeira no Brasil, autores como Soares

(1962), Reis (2000) e Falcão (2005), destacam a presença de membros da elite,

policiais e estrangeiros, na prática da capoeiragem ainda no século XIX. Contudo, estas

participações não se mostraram suficientes para gerar um movimento social, cultural ou

político que buscasse a descriminalização da capoeira neste período.

As primeiras intenções de tornar a capoeira a “gymnastica brazileira” (REIS,

2000), o que possibilitaria sua prática menos perseguida, ainda durante início do século

XIX, começou a ser defendida por partidários do próprio projeto modernizador e

civilizador da época. Neste sentido, observa Reis (2000), buscou-se “higienizar” a

capoeira, suprimindo os elementos referentes à cultura negra, pois como ginástica

nacional, a capoeira seria apresentada como um elemento da cultura nacional.

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Deste modo, promover uma capoeira destituída dos seus traços mestiços ou

africanos, significaria neste contexto, promover uma capoeira embranquecida, ou antes

“civilizada” nos moldes eutopeus. Entre os entusiastas deste projeto, que propõe uma

capoeira nacionalista, regrada, observável e controlável, como forma de

desenvolvimento físico e mental, destaca-se o folclorista Mello Moraes Filho, para

quem, de acordo com Reis (2000), a participação dos brancos na capoeira teria atuado

como elemento purificador, de modo que Mello Mores concebe e apresenta “a

capoeiragem como arte, como instrumento de defesa, é a luta própria do Brasil”.

(MORAES FILHO apud. REIS 2000, p. 62).

Outro entusiasta da capoeira como desporto, apresentado por Reis (2000) é o

Mestre Zuma, Aníbal Burlamaqui, que em 1928 editou o livro entitulado “Ginástica

Nacional (capoeiragem) Metodizada e Regrada”. (REIS, 2000, p. 66). Considerando

estas tentativas de adequar e higienizar a capoeira ao objetivo civilizador, ante a sua

criminalização, Letícia Vidor Reis assevera que

A criminalização da capoeria não foi mas significou a vitória política

de uma determinada facção social da classe dirigente nacional. A tese

da capoeira mestiça, inspirada na positividade da miscigenação (o que

era uma outra posição estratégica da elite para a incorporação do

negro à sociedade brasileira naquele momento histórico) teria

ressonância limitada na época. Da mesma maneira a tentativa de

esportização da capoeira, empreendida pela elite carioca no começo

do século, teria que esperar até às décadas de 30 e 40 para tornar-se

hegemônica. No entanto, se há um jeito branco e erudito de converter

a capoeira em esporte, há também um jeito negro e popular de fazê-lo,

o que se esboça na Bahia a partir da década de 30 do nosso século.

(REIS, 2000, p. 68)

Ressaltamos então a capoeira como uma luta dançada com “ginga”20

e

“mandinga”21

, com “esquivas” escorregadias, com a “negaça”22

enganadora, que com o

olhar distrai a atenção do adversário, para o lado oposto, quando é desferido o golpe.

Sobre os movimentos da capoeira, observa Reis (2000) que estes refletem o jogo social

entre os negros e escravizados e a sociedade que os explorava. No mesmo sentido

20

A ginga é o movimento básico da capoeira. Consiste em um movimento cadenciado que alterna o

movimento das pernas e dos braços de modo que sempre uma das pernas forneça apoio e ao menos um

dos braços a defesa. 21

A mandinga é um componente místico da capoeira que mesmo o mestre passando ao discípulo, este

deve desenvolver sozinho. Constitui-se uma parte do “segredo” da capoeira. Segundo conceitua Letícia

Vidor Reis, a mandinga é a “capacidade que têm de seduzir o adversário, iludi-lo, e se quiser ou puder,

derrotá-lo”. (REIS, 2000, p. 166). 22

A negaça é uma forma de enganar, de dissimular. Na capoeira é uma prática na qual o capoeirista

levado pelo movimento da ginga procura distrair o adversário dando a entender um determinado golpe

para um lado e desferindo-o para outro.

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aponta Pedro Abib, é a luta na qual “o mal se paga com malandragem” (2009, p. 29), e

como resistência às investidas de uma sociedade que procurava apagar as marcas da

presença afro-brasileira. Logo, notamos que a capoeira traz em seu próprio processo de

construção histórica as características de jogo, no seu vai-não-vai, no qual percebemos

as tentativas de moldá-la aos interesses de um grupo.

Durante o século XIX, os capoeiras eram temidos não somente como arruaçeiros

e violentos, mas também como uma ameaça moral, principalmente na cidade do Rio de

Janeiro, por se tratar da então capital do vice-reino, e postreiormente da República.

Neste sentido Reis (2000) atribui maior repressão à capoeira do Rio de Janeiro, por estar

na capital, enquanto que na Bahia, segundo a autora, tal repressão deu-se mais

tardiamente e em menor intensidade. Assevera Reis (2000).

A tardia repressão aos capoeiras baianos, se comparadas à que

sofreram os capoeiras cariocas, talvez deva-se à própria importância

política da capital federal: afinal, não foi lá que os capoeiras, ao

ensejar a aliança entre a ordem e a desordem, foram imediatamente

identificados pelos novos donos do poder como inimigos políticos? E

também não foi de lá que partiram as primeiras tentativas de

desafricanização da capoeira com o intuito de apropriação simbólica

da mesma como o esporte nacional? (REIS, 2000, p. 80)

De fato, na Bahia houve muitos capoeiras que estariam inseridos no rol dos

malquistos, e adjetivados por valentões, vadios, arruaceiros, desordeiros, facínoras e

capadócios. Alguns deles faziam uso de armas brancas como a navalha, a faca e o

cacumbú, o cacete e o cajado. Contudo, devemos frisar porém, que a maior parte dos

praticantes da capoeira, ou da “arte da vadiação”, não era formada por vadios. A

maioria dos capoeiras tinha profissão, quando não uma ocupação, ainda que em cargos

subalternos, eram carregadores, engraxates, estivadores, doqueiros, dentre outros

trabalhos, no cais do porto, eram comerciários. Mas isso não lhes impedia de fazerem as

arruaças nas horas vagas, por isso, de acordo com Rego (1968) marcavam presença nas

festas de largo e outras comemorações cívicas.

Segundo Rego (1968), muitas vezes os capoeiras de Salvador eram requisitados

para animar essas festas e comemorações, não somente com a capoeira, mas também

com o samba de roda que acontecia após encerrada a roda de capoeira. Tratava-se de

uma forma de promover interação da roda com aqueles que assistiam a roda e não eram

capoeiras. Contudo, a prática da capoeiragem na Bahia diferia das práticas do Rio de

Janeiro, principalmente se posto em relação ao caráter desportivo e ritual que a capoeira

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baiana passou a desenvolver nos anos 30 do século XX, quando a capoeira sai da

marginalidade.

Conforme ocorreu com outras manifestações afro-brasileiras, a capoeira valeu-se

de estratégias de autopreservação. No caso da capoeira baiana, a estratégia adotada foi

o desenvolvimento de uma linha menos combativa que procurava negar seu caráter

marcial, escondendo-se sob a forma de dança folclórica, de modo a garantir sua

sobrevivência, e quem sabe, sua aceitação. (CAMPOS, 2001, p.37).

Contudo, a intenção de tornar a capoeira um esporte reaparece como via para

tirá-la da marginalidade. Desta vez, na Bahia, mais especificamente em Salvador, o

projeto de esportização da capoeira obtem êxito, considerando a demanda sóciocultural

e política da época, personificada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Comparando os

dois contextos políticos nas duas tentativas de tornar a capoeira esporte, Reis (2000)

observa

Naquele momento (início do século XX), havia já o intuito de

homogeneização nacional da luta como o mostra, por exemplo a

publicação do livro Ginástica nacional (capoeiragem) metodizada e

regrada (Burlamaqui, 1928). Porém ao contrário do que pretendia

seus primeiros porta-vozes (…), que intentaram transformá-la em um

esporte branco e erudito, será a capoeira feita (na Bahia) esporte de

um jeito negro e popular que prevalecerá no momento de sua

descriminalização. ( REIS, 2000, p. 75)

Durante as primeiras décadas do século XX, em Salvadror, praticantes da

capoeira, ainda criminalizada, dissimulavam o aspecto combativo da luta, enfatizando a

movimentação como dança folclórica, de modo a tentar amenizar a perseguição aos

capoeiristas. Segundo Esteves (2003), Mestre Bimba23

procurou enfatizar o caráter

combativo da luta e, ao inserir golpes de jiu-jitso, do catsh, do box e do batuque24

,

tornou a capoeira uma luta mestiça de raízes afro-brasileira. Como isso, estava sendo

criada em 1928 a luta regional baiana, posteriormente conhecida como capoeira

regional. Em 1937, Mestre Bimba adquire a licença oficial para ensinar capoeira em sua

academia, até então todas as escolas de capoeira eram ilegais.

O Mestre Pastinha, com o nome de batismo Vicente Ferreira Pastinha (1889 –

1981) é a principal referência da capoeira angola. A ele é atribuído o feito de nomear a

capoeira praticada nas ruas com o nome “Angola,” para homenagear o país africano do

23

Mestre Bimba, como era conhecido o capoeirista Manoel dos Reis Machado, (1900 - 1974) é lembrado

como criador da capoeira regional. 24

O batuque é uma luta de origem afro-brasileira na qual, Luís Cândido Machado, pai de Mestre Bimba,

era campeão baiano, muito difundida no recôncavo baiano, no século XIX, atualmente está extinta.

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qual acreditava ter vindo a capoeira, defendendo assim a origem africana deste esporte.

Grande conhecedor dos fundamentos do jogo, Mestre Pastinha pode ser considerado

como o “filósofo da capoeira”, lembrado muitas vezes por frases como “A capoeira é

tudo o que a boca come” e "Capoeira foi para homem, menino, velho e até mulher, não

aprende quem não quer". Como Mestre Bimba, Mestre Pastinha também estruturou suas

aulas em ambiente fechado e, em 1941, fundou o Centro Esportivo de Capoeira Angola,

onde ensinava a capoeira.

A capoeira desenvolvida na Bahia, embora tenha sofrido forte repressão durante

os anos 20 do século passado, apresentou algumas características diferentes do Rio de

Janeiro. Lembramos então, que, quando Salvador passou a ser ex-capital, a cidade do

Rio de Janeiro tornou-se cada vez mais urbanizada. Os avanços da modernidade eram

primeiramente levados à nova capital, e com a instauração da República, da cidade do

Rio de Janeiro foi cobrado que caminhasse com os passos da ordem pública e do

progresso civilizador mais que os outros Estados. Isto acarretou maior perseguição aos

capoeiras cariocas, tanto pela prática de uma manifestação predominantemente negra,

quanto pela desordem que promoviam. Logo, para os dirigentes da época, a capoeira

deveria ser erradicada.

Contudo, a conjuntura formada no Brasil durante a década de 1930, sob a

presidência de Getúlio Vargas, apresentava uma proposta política nacionalista e buscava

a formação de uma cultura e identidade nacional que enfatizasse a feição mestiça do

país. Aqui, vale lembrar que as culturas e identidades nacionais trazem a idéia de

síntese, a homogeneização das diferenças culturais e das identidades, ao desconsiderar

a diversidade das culturas locais e regionais nesta homogeneização.

Assim, Reis (2000) apresenta as modalidades de capoeira angola e regional

como projetos de esportização e, por extensão, descriminalização da capoeira. Segundo

a autora, o processo de valorização da capoeira baiana notorizados pelos projetos dos

mestres Bimba e Pastinha eram de cunho regional e étnico. Quando a capoeira foi

posteriormente descriminalizada, por decreto presidencial assinado pelo então

presidente Getúlio Vargas, em 1936, e inscrito como modalidade desportiva, foi

institucionalizada em 1972 (CAMPOS, 2006, p. 85 e 46), e de modo relativamente

rápido ganhou caráter nacional. Criou-se o que podemos chamar de um consenso mítico

da capoeira baiana, como a forma legítima de capoeira. A este processo, Reis (2000)

chama de “baianização” da capoeira. Nesta conjuntura, que contou com o apoio do

Estado, salientamos o aspecto de tradição inventada.

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29

Destacamos aqui o conceito de “tradição inventada”, conceito cunhado pelo

historiador Eric Hobesbawm, que também adverte em relação ao seu uso.

O termo ‘tradição inventada’ é utilizado num sentido amplo, mas

nunca indefinido. Inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas,

construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram

de maneira mais difícil de localizar no período limitado de

determinado tempo – às vezes coisas de poucos anos apenas – e se

estabelecem com enorme rapidez. […] Por ‘tradição inventada’

entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras

tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou

simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento

através da repetição, o que implica automaticamente a uma

continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWM, 1984, p. 9)

Desta “invenção da tradição” da capoeira baiana que Reis (2000) nos chama a

atenção, podemos destacar seu aspecto ritual, do qual vem a organização do espaço em

forma de roda. A roda, apesar de ser uma forma espontânea na capoeira baiana, se

consolidou e se espalhou pelo Brasil e outros países da América, Europa, Ásia e

Oceania, como elemento ritual deste universo. As músicas e cantigas em sua sequência:

ladainha (angola) ou quadra (regional), louvação, chulas e corridos, os instrumentos e as

performances do início do jogo, tais como o ato de se benzer, saudar uma divindade, a

volta ao mundo, são rituais inerentes a este mundo. Através destes e outros elementos

que constróem e envolvem o mundo da capoeira, são feitas referências à cultura

africana em seus aspectos simbólicos, e com isso marcam a identidade cultural afro-

brasileira da capoeira.

Podemos dizer, de certo modo, que a “invenção da tradição” da capoeira baiana

foi mais uma forma de negociação, da capoeira e seus representantes afro-brasileiros,

ante o Estado e a sociedade. Nessa esteira, a capoeira passou de crime, a patrimônio

cultural brasileiro, considerando, não somente as ambiguidades inerentes à capoeira,

naquilo que a torna ao mesmo tempo esporte e luta, mas naquilo que a faz estar presente

na sociedade capitalista como modo de vida, como educação, como divertimento,

solidariedade e como forma de trabalho remunerado, com suas possibilidades de

ascensão social e perspectiva de saída do país, conforme podemos compreender através

do que nos diz Falcão:

Embora a capoeira venha sendo efetivamente ressignificada por força

da lógica comercial que orienta as grandes empresas (franquias,

merchandising, monopólios, oligopólios), que incita a ganância e

instila o desespero, contraditoriamente, ela vem operando uma espécie

de «revolução “silenciosa” à medida que significativa parte de

praticantes insere-se em redes e ações de intervenção social e de

solidariedade que se confrontam, através de programas de

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“contrapontos”, com a lógica mercadológica que tomou conta do

mundo dos homens. (FALCÃO, 2005, p. 22)

Deste modo, notamos na História da Capoeira e de seus sujeitos, que há desde a

sua criação, à sua patrimonialização, um longo processo que envolveu diversas

compreensões do conceito de cultura, patrimônio e de bens culturais. Contudo, tal é o

seu caráter de resistência e luta cultural, de afirmação identitária dos afro-brasileiros,

que no texto do parecer do Registro da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil,

esta característica é marcada em diversos trechos, dentre os quais citamos o parágrafo

de abertura, que diz da proposição do registro por parte do MinC:

A proposição do registro da capoeira como patrimônio cultural do

Brasil, feita por iniciativa do Ministério da Cultura e apoiada pelos

capoeiras, representados por velhos e respeitados mestres da Bahia,

Rio de Janeiro, Pernambuco e outros locais do país, pode ser mais

bem compreendida ao considerá-la como parte integrante de um rol

mais amplo de reivindicações de direitos culturais, sociais e políticos

pela população afro-brasileira, que foram incorporadas à agenda do

MinC, resultando na formulação de políticas de valorização e fomento

desta prática cultural. (IPHAN, 2008, p. 1)

Deste modo, considerando o trajeto da capoeira como uma manifestação dos

africanos e afrodescendentes escravizados no Brasil, libertos e livres, percebemos a sua

patrimonialização com o reconhecimento da capoeira como prática cultural, produzida

principalmente por estes africanos e afrodescendentes, enquanto sujeitos culturais,

sociais e políticos, que atuaram e atuam na sociedade. Com isso, destaco como

fundamentais três pontos da argumentação apresentado por Adinolfi no relatório do

Registro que salientam a relevância da capoeira para: “a história da resistência negra no

Brasil, durante e após a escravidão, através de estratégias que variaram da negociação

ao conflito aberto com a sociedade hegemônica”; “a formação de redes de solidariedade

e construção da identidade e da autoestima de grupos afro-brasileiros” e “a construção

da identidade nacional, testemunhada maciçamente na produção cultural e artística

brasileira, na música, artes plásticas, literatura, cinema e teatro”. (IPHAN, 2008, p. 8)

Neste sentido, entendemos a capoeira como elemento da expressão da identidade

cultural afro-brasileira e, com isso, as cantigas, como parte deste universo, observamos

como produções que se referenciam nas experiências dos negros no contexto da

escravidão colonial e no contexto atual. Deste modo, as cantigas consistem em fonte de

informações acerca das representações sociais e identidades dos grupos que as

produzem.

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1.3 As cantigas da capoeira como objeto de estudo

O ser humano desde tempos imemoriáveis se relaciona com a música. A música

está inserida em uma vasta gama de eventos ao longo da história da humanidade: nas

mais diversas festividades; nos rituais como a missa católica, o quarup25

, o xirê26

, nas

guerras, os hinos nacionais, os toques de avançar e recuar, no trabalho cotidiano nas

lavouras de cana, milho e café, na lavagem das roupas, no tear. A música, sobretudo a

música tradicional, como são as músicas da capoeira, estabelece relação com a memória

individual e coletiva, e tem notória relevância na formação da nossa identidade cultural,

e na transmissão de valores e ideologias. Conforme o professor Albino Rubim, sobre a

importância da música e das canções na formação da identidade brasileira:

A música é essencial para a cultura brasileira; para nossa memória,

individual e coletiva. Sempre companheira, ela acompanha nossa

existência. Ela delimita e marca os episódios significativos da nossa

vida. Não por acaso os brasileiros têm imensa e intensa memória

musical. Eles vivem vidas demarcadas temporalmente por canções. O

imbricamento – vida e música – faz da canção um lugar especial na

produção do imaginário que os brasileiros fazem de si, do país e do

mundo. A canção seduz e produz, no Brasil, identidade e imaginários.

(RUBIM in MARIANO, 2009, p. 13)

O corpo produz música, o corpo dança a música. A capoeira, mistura de dança,

luta e jogo, acompanhada por música far-se-ia passar facilmente por dança, não fosse

sua carga histórica de luta e resistência, não fosse a necessidade de momentos lúdicos

para aliviar as tensões cotidianas com jogos e brincadeiras. Ela é luta, dança e jogo ao

mesmo tempo e sendo um não deixa de ser outro.

A música na capoeira atua como expressão e elemento de sedimentação da

cultura afro-brasileira. O soar do berimbau entoando uma ladainha, quadra ou corrido,

muitas vezes evoca da memória coletiva a opressão pela qual passaram os negros

escravizados, ao mesmo tempo exprime a recusa em esquecer, e a ânsia de superação

das sequelas sociais produzidas no período da escravidão. Estabelecendo deste modo

outras formas de luta e resistência, a partir da capoeira, por meio dos seus fundamentos,

25

Quarup ou kuarup, é um ritual praticado por alguns grupos indígenas do Xingu, região do Brasil

Central, no qual homenageiam um membro importante do grupo. Relaciona-se à religiosidade do grupo

visto tratar-se de uma homenagem a um ancestral do grupo, na qual é realizada uma festa ritual. 26

Xirê ou Shiré, de acordo com Biancardi (2006) é uma festa pública praticada entre os candomblés de

origem jeje-nagô na Bahia, em homenagem a um orixá, nome atribuído a divindades africanas cultuadas

no Brasil, na qual são cantadas músicas específicas para chamar cada orixá. A sequencia do xirê pode

variar, mas normalmente começam com o Exu e finaliza com Oxalá. (BIANCARDI, 2006).

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músicas e cantigas, as quais atualmente unem-se às formas de organização social como

o movimento negro e a ações antirracistas.

Enquanto a movimentação no jogo da capoeira admite a criação e recriação de

golpes e contragolpes, a ginga, a negaça e a mandinga da capoeira expressam

movimentações que podem ser trazidas para a vida cotidiana do capoeirista. As canções

da capoeira falam principalmente de memórias e situações cotidianas, que tanto

produzem um discurso de afro-brasilidade, quanto transmitem os fundamentos da

capoeira, podendo ambos aparatar um discurso cultural, político, ideológico e educativo.

Embora grande parte das cantigas cantadas nas rodas de capoeira remetam ao

passado, a análise das cantigas da capoeira neste trabalho é realizada a partir das

observações feitas na perspectiva do presente, visto que são ainda cantadas neste

momento. Por isso consideraremos o cenário da pós-modernidade como contexto no

qual a capoeira está inserida, e no qual produz e reproduz uma série de significações, no

que envolvem o uso de novas tecnologias de reprodução, de áudio, registro e difusão

das cantigas, a indústria do turismo e as mídias.

O referido contexto também é percebido como momento específico no qual nos

colocamos a refletir acerca de aspectos de outras culturas, que não apenas os aspectos e

produções da chamada “alta cultura” ou “Cultura”, conceitos os quais estão

historicamente relacionados à produção cultural das classes hegemônicas. Este

momento específico, compreendemos como resultado de um processo histórico e social,

o qual possibilitou o estudo de temas relacionados à capoeira, que outrora figurava no

código penal e agora é reconhecida como patrimônio cultural do Brasil, verificando

assim uma mudança de mentalidade, no que diz respeito ao conceito e ao estudo das

culturas.

Para isto, consideramos principalmente os três eixos conjunturais estabelecidos

por Cornel West que contextualizam este momento histórico, social e cultural: 1. O

deslocamento da Europa como centro irradiador de modelos culturais; 2. O surgimento

dos EUA, como centro de produção e circulação de cultura de âmbito mundial; 3. A

descolonização do terceiro mundo, sobretudo “a descolonização das mentes dos povos

da diáspora negra”, como resultado de lutas de minorias (WEST apud HALL, 2003, p.

318). Deste modo, procuramos compreender como a identidade afro-brasileira assume

caráter dinâmico, se reinventando e diversificando, assumindo formas múltiplas neste

contexto que se propõe globalizante. Para este fim, tomamos por referência as

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representações sociais expressas nas cantigas de capoeira cantadas nas rodas de capoeira

em Salvador.

A relação entre capoeira e música se faz notar mesmo antes do estabelecimento

das músicas e cantigas de capoeira, o que começou a se firmar como parte integrante do

ritual do jogo somente a partir da década de 1930, período em que também repousou o

desejo de transformar a capoeira baiana em esporte nacional. Haja vista o fato narrado

por estudiosos da capoeira27

referindo-se à presença marcante de capoeiristas nas festas

de largo profanas, procissões religiosas e festas cívicas, sempre nas proximidades das

bandas de música.

Biancardi (2006, p. 108-109) através do seu contato com os grandes capoeiristas

da Bahia, afirma que a música vocal da capoeira ganhou importância a partir da década

de 30 do século passado, e sua produção não era tão específica como se pode pensar. No

jogo de capoeira eram também cantadas cantigas de roda, do samba de roda corrido que

aos poucos foram passando a ganhar destaque, e chegando a fazer parte do ritual do

jogo. Ou seja: as cantigas tradicionais da capoeira são uma invenção relativamente

recente.

Contudo, cumpre observar a presença das cantigas no universo capoeirístico,

principalmente entre os capoeiristas e estudiosos da capoeira. Salientamos com isso as

cantigas como expressões verbais e escritas daquilo que a movimentação, a ginga, os

golpes, a história e os fundamentos da capoeira expressam de outras formas.

Deste modo, as cantigas de capoeira podem ser interpretadas como uma das mais

belas “invenções” da capoeira baiana. De modo geral, cantigas tradicionais da capoeira

são repletas de elementos que remetem à identidade cultural afro-brasileira e às

representações sociais pertinentes a um segmento social particular, os capoeiristas ou

capoeiras. Tomadas como produto da criação destes sujeitos, cuja grande parte é

formada por afrodescendentes, podemos observar através destas cantigas como os

capoeiristas veem a si próprios enquanto sujeitos políticos atuantes dentro da sociedade.

Nesse sentido, a fim de melhor situar a presente pesquisa sobre a formação da

identidade cultural afro-brasileira a partir das cantigas de capoeira, cumpre refletir

acerca das especificidades conjunturais deste momento, no qual nos debruçamos sobre

este tema. Este procedimento nos ajudará a melhor compreender não somente a

produção das cantigas, como nos orientará no estudo sobre como estas cantigas são

27

REGO (1968), REIS (2006), SOARES (1994).

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codificadas e decodificadas pelos capoeiristas, que desenvolveremos a partir das

entrevistas realizadas com alguns mestres de capoeira.

1.4 As cantigas como substrato de análise

O ser humano é capaz de simbolizar e a partir daí produzir cultura. Conforme

Sandra Jovchelovitch (in. POSSAMAI e GUARESCHI, 2009, p. 180), a atividade

simbólica é resultado das atividades da mente, que se constroem de modo inconsciente,

e formam o conteúdo das representações. Os fenômenos culturais manifestam-se no

vasto e complexo campo das relações sociais, das quais podemos elencar a construção

das produções e expressões, bem como as interpretações e vivências relacionadas aos

símbolos, produzidos socialmente, que conferem às culturas seus diversos significados.

Thompson (1995) caracteriza a vida social como algo para além dos “objetos e fatos que

ocorrem no mundo natural”, mas considera também como:

(…) uma questão de ações e expressões significativas, de

manifestações verbais, símbolos, textos e artefatos de vários tipos e de

sujeitos que se expressam através desses artefatos e que procuram

entender a si mesmos e aos outros pela interpretação das expressões

que produzem e recebem. Em sentido mais amplo, o estudo dos

fenômenos culturais pode ser pensado como o campo do mundo sócio-

histórico construído como campo de significado. (THOMPSON, 1995,

p. 165)

Deste modo, para a análise das cantigas, tomamos por base o estudo de John

Thompson (1995), no qual formula a sua “concepção estrutural da cultura”, bem como

Sandra Jovchelovitch (1995) e Mary Jane Spink (1995) a cerca das Representações

Sociais e as atividades simbólicas, como a construção do real através da

intersubjetividade, o que complementa o que foi anteriormente visto com Berger e

Luckman (2008) sobre a construção social da realidade tomado por base para o estudo

da construção social da identidade cultural.

Na referida concepção estrutural da cultura, apresentada por Thompson, são

traçados os aspectos das formas simbólicas, que são: o intencional, o convencional, o

estrutural, o referencial e o contextual como dados fundamentais para o estudo das

culturas. O homem é um ser social, capaz de representar a si e ao outro através da sua

produção simbólica, logo, com base nos aspectos propostos por Thompson, para estudo

dos fenômenos culturais, analisaremos as cantigas.

As categorias de análise foram estabelecidas de acordo com a metodologia

oferecida pelas representações sociais, observando a recorrência de expressões e ideias

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significativas para o grupo de capoeiristas estudado. O estabelecimento das categorias

procurou por estes dois indicadores nas cantigas de capoeira reproduzidas nos treinos

através de CD e executadas nas rodas de capoeira selecionadas. Percebemos assim, estas

cantigas como produção e expressão simbólica, nas quais os capoeiristas de Salvador

falam de si, dos elementos que compõem seu mundo e o modo como se representam;

como parte do fenômeno cultural da capoeira como forma simbólica estruturada em

contexto específico, tanto no momento da produção quanto da recepção das cantigas de

capoeira, nos quais se expressam suas representações sociais enquanto capoeiristas afro-

brasileiros.

Antes de iniciarmos a análise das cantigas, trataremos de explicar a que se refere

cada um dos aspectos elencados por Thompson (1995) para os estudos dos fenômenos

simbólicos. A Concepção Estrutural da Cultura é pensada por Thompson como uma

alternativa à Concepção Simbólica de Cultura. Assim, Thompson busca superar as

limitações desta concepção e procura com a sua nova concepção, enfatizar aspectos,

segundo ele, menosprezados por Geertz. Então, em sua concepção, propõe enfatizar o

caráter simbólico dos fenômenos culturais, e, marca principalmente o fato de tais

fenômenos estarem em um contexto social estruturado, bem como os processos sociais

que envolvem os fenômenos culturais. Com isso, Thompson estabelece a base para sua

“análise cultural”, por ele definida como

[…] o estudo das formas simbólicas – isto é, ações, objetos,

expressões significativas de vários tipos – em relação a contextos e

processo historicamente específicos e socialmente estruturados dentro

dos quais e por meio dos quais, essas formas simbólicas são

produzidas, transmitidas e recebidas. (THOMPSON, 1995, p. 181)

Thompson considera as formas simbólicas apresentando cinco características e

propõe a discussão de cada uma delas como um aspecto a ser pensado:

O aspecto intencional nas formas simbólicas se constitui como expressões de um

sujeito para um ou mais sujeitos. Ou seja, neste aspecto salienta-se a intencionalidade na

produção simbólica com objetivo e conteúdo a ser percebido por outro (os) sujeito (os).

O aspecto convencional diz respeito à:

[…] produção, construção ou emprego das formas simbólicas, bem

como a interpretação das mesmas pelos sujeitos que as recebem, são

processos que, caracteristicamente, envolvem a aplicação de regras,

códigos e convenções de vários tipos (THOMPSON, 1995, p. 185).

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Mas ainda assim, o autor observa que, nem sempre, as convenções são

empregadas na interpretação de formas simbólicas de modo consciente, sendo no geral,

tácitas e passíveis de correções e sanções por parte dos outros sujeitos.

O aspecto estrutural, “significa que as formas simbólicas são construções que

exibem uma estrutura articulada” no sentido de “que consistem, tipicamente de

determinados elementos que se colocam em determinadas relações uns com os outros”

(THOMPSON, 1995, p. 187). Deste modo, a análise de uma estrutura implica na análise

das interrelações que se apresentam em dada forma simbólica.

O aspecto referencial indica que as formas simbólicas “são construções que

tipicamente representam algo, referem-se a algo, dizem algo sobre alguma coisa”

(THOMPSON, 1995, p. 190). Dependendo do contexto pode tanto representar um

objeto em particular como um objeto, indivíduo ou situação.

O aspecto contextual salienta “que as formas simbólicas estão sempre inseridas

em processos de contextos sócio-históricos específicos dentro dos quais e por meio dos

quais elas são produzidas, transmitidas e recebidas.” (THOMPSON, 1995, p. 192).

Assim, considerando os aspectos elencados por Thompson, eles se apresentam

nos fenômenos culturais a ponto de serem possíveis de objetivação, ou seja, como forma

simbólica que se manifesta em um dado contexto estruturado. No caso específico do

nosso estudo, as cantigas de capoeira em seu discurso podem ser percebidas como

elementos que expressam aspectos significativos da cultura e da identidade afro-

brasileira daqueles que se encontram inseridos no contexto de produção e recepção

destas. Deste modo, uma investigação acerca das representações sociais vinculadas e

veiculadas nessas cantigas nos permite identificar aspectos da identidade afro-brasileira

que envolvem os capoeiristas como grupo.

Letícia Vidor Reis (2000) destaca em diversas partes da sua obra, principalmente

no sub-capítulo intitulado “O terror da população pacífica”, representações sociais dos

capoeiras a partir do que se poderia chamar de “população branca”. Chama atenção o

fato de que “nas representações sociais sobre os capoeiras produzidas ao longo do

século XIX, um elemento logo se destaca: o medo.” (REIS, 2000, p. 46). Chamado pela

autora de “medo branco” o temor que se tinha por estes capoeiristas. Deste modo,

notamos nos termos que são caracterizados, os capoeiras estão relacionados à sua

capacidade de promover desordens e arruaças, ao uso da violência e das armas brancas,

até a prática de assassinatos.

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Podemos observar, dentre outros textos, o que traz o Código Penal de 1890, no

decreto número 847, e assim intuir as categorias que versam sobre semelhantes

representações. Vale lembrar, contudo, que as representações sociais são construções

sociais elaboradas por sujeitos sociais, em um dado contexto sociocultural, logo,

percebemos que as representações sociais estabelecidas por um grupo acerca de outro

podem ou não estar de acordo à representação que o grupo do “eu” faz sobre o grupo do

“outro”. Sinalizamos, porém, que o desacordo é muito mais provável em se tratando de

grupos que ocupam posições opostas dentro da sociedade.

Contudo, a referida autora salienta como os dois únicos momentos nos quais

pode se destacar representações positivas elaboradas pelas elites sobre os capoeiras, a

saber: o episódio da Guerra da Cisplatina (1825 a 1828), quando os capoeiristas foram

chamados de “defensores da pátria” e na Guerra do Paraguai, como “herói nacional”

lembrando nesses momentos que “[…] o nacionalismo se sobrepõe à questão negra”

(REIS, 2000, p. 36). Deste modo percebemos que desde o século XIX a nacionalização

da capoeira insinua-se como via de aceitação da capoeira, mas neste sentido, ainda

necessitaria de alguns ajustes e acomodações de interesses.

CAPITULO 2

CAPOEIRA E IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA

Este capítulo destina-se a discorrer sobre a formação da identidade cultural afro-

brasileira, salientando que esta, como as demais identidades, é uma construção social

determinada no tempo-espaço28

. Deste modo, são apresentados argumentos pautados no

pensamento de Stuart Hall (2003 / 2006) que abordam a formação das identidades e a

ideia de nação com base nos Estudos Culturais; de Berger e Luckmann (2008) que

tratam da construção social da realidade que direciono para o estudo proposto pensando

como construção social da identidade e os autores Poutignat e Streiff-Fenart (1998),

muito úteis no debate sobre as teorias da etnicidade, raça, identidade e nacionalidade.

28

Considero ao falar de tempo-espaço, momentos e locais nos quais o sujeito transita e desloca sua

identidade, de modo que considerando estes dois contextos como variáveis que determinam a identidade

que sobressai em determinado sujeito. Conforme Hall (2006, p.13) “O sujeito assume identidades

diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente.”

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2.1 Identidade cultural, uma construção social

Tomando por base os estudos acerca da construção do conhecimento de Berger e

Luckmann em “A construção social da realidade” (2008), bem como as observações de

Stuart Hall (2006) e Bauman (2005) sobre os processos que envolvem a formação das

identidades culturais, mais especificamente as identidades nacionais no cenário da

modernidade, podemos compreender que tais identidades são construções sociais as

quais podem ser moldadas e remodeladas, mantidas e continuadas com base nas

relações sociais estabelecidas tanto vertical quanto horizontalmente.

Stuart Hall chama-nos a atenção para o equívoco que pode ocorrer ao se

considerar a identidade como processo no qual se atinge a plenitude de sua construção.

Sugere então a troca do termo por “identificação” (2006, p. 39), o qual melhor oferece a

ideia de processo inacabado e em permanente construção. Esta “identificação” torna-se

condição imprescindível ao sujeito na modernidade, quando a identidade deixa de ser

compreendida como algo natural e inato e passa a ser compreendida como constructo

social, representacional, móvel e inacabado. Do mesmo modo Bauman (2005) utiliza a

ideia de identificação:

Quando a identidade perde suas âncoras sociais que a faziam parecer

‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna cada

vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente

um ‘nós’ a que possam pedir acesso (BAUMAN, 2005, p. 30).

Neste sentido compreendemos a identificação como uma construção fluida,

contínua e dinâmica que se relaciona ao pertencimento do sujeito, suas afiliações e

representações sociais.

Contudo, lembramos que essa questão não se assenta unicamente nas relações

estabelecidas entre sujeitos, mas também com instituições intersubjetivas como a

família, a escola, o trabalho e demais círculos e eventos sociais que funcionem como

“mediadores sociais”. Conforme Hall, de acordo com a concepção de sujeito

sociológico29

, a formação da identidade ocorre com a interação do sujeito “[…] com

‘outras pessoas importantes para ele’, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos

e símbolos – a cultura dos mundos que ele/ela habitava” (HALL, 2006, p. 11).

Pensamos então aqui em conformidade com a concepção de mediações sociais

fornecida por Sandra Jovchelovitch (1995), como estruturas que constituem o todo

29

Hall (2006) para pensar a identidade cultural distingue três tipos de sujeito, os quais se estruturariam

três concepções de identidade: o sujeito do iluminismo; o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. A

concepção da identidade do sujeito sociológico é caracterizada por ter sua formação “na “interação” entre

o eu e a sociedade” (2006, p. 11), ligando o sujeito à estrutura social.

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possibilitando a interpretação e interação entre as partes, de modo que estas estruturas

constituem parte relevante na construção das representações sociais. Assim as

mediações são estruturas que põem em relação os sujeitos com o contexto do qual

decorrem as identificações e representações sociais ( in POSSAMAI e GUARESCHI,

1995, p. 81)

Neste sentido, a ótica fornecida pela teoria das representações sociais ao

pensarmos a identidade como algo além de constructo social, mas também como um

processo inconsciente no qual o indivíduo interpreta símbolos e códigos apresentados,

constrói representações de si e do mundo à sua volta.

Deste modo, cito Stuart Hall (2006), que corrobora este pensamento ao afirmar

que “[…] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de

processos inconscientes e não algo inato, existente na consciência no momento do

nascimento.” (2006, p. 38). Ou seja, as identidades culturais não são nem podem ser

tomadas como algo natural, mas devem ser pensadas como um fenômeno resultante de

um processo de relações entre indivíduos, grupos e sociedades. Por outro lado,

conforme adverte Bauman ( 2005, p. 84), “a identidade é uma luta simultânea contra a

dissolução e a fragmentação, uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa

resoluta a ser devorado”. Deste modo, cumpre destacar que as relações que exigem

interação entre indivíduos, dentre as quais a formação das identidades, nem sempre são

harmoniosas e envolvem, muitas vezes, tensas relações de poder.

Por sua vez, o indivíduo, cuja principal referência de identidade30

foi formada

através do estabelecimento dessas relações sociais, que interage com as estruturas

sociais e históricas de modo crítico, pode promover questionamentos e produzir novos

discursos através dos quais provocarão, além de alterações na forma de como estes

sujeitos se identificam, mudanças na estrutura sociocultural e na sua realidade. Eis o

poder que há na tomada de consciência quanto à identidade de um grupo.

A formação da identidade negra fora da África foi uma condição vital para os

indivíduos nascidos no continente americano, criada de modo que ao menos garantisse

resistir física, emocional e psicologicamente e, ainda que coisificados pelos

colonizadores permitisse resistir também social e politicamente. Vale lembrar que os

30

Lembrando que são múltiplas as identidades que o sujeito moderno possui, haja vista Stuart Hall

quando diz “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés

disso, à medida em que os sistemas de significação e representações culturais se multiplicam, somos

confrontados por uma multiplicidade desconfortante e cambaliante de identidades possíveis, com cada

uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13).

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negros escravizados vindos da África não tinham todos a mesma origem, ou seja,

muitos eram provenientes de regiões, etnias, grupos linguísticos diferentes, deste modo

podemos pensar que, apesar de haver algumas familiaridades entre um grupo e outro

muitos grupos em muito ou algo se diferiam.

Com isso, não é possível trabalhar na perspectiva de que teria ocorrido um

transplante cultural África-América que teria dado origem a estas culturas. Mas sim,

uma construção de uma nova cultura com base nos elementos que foram trazidos nas

memórias destes povos e que passaram por adaptações de diversas ordens. Sobre isso

trata Gil (2007)

Para continuar resistindo, os africanos submetidos ao cativeiro e seus

descendentes tiveram que refazer tudo, refazer linguagem, refazer

parentesco, refazer religiões, refazer encontros e celebrações, refazer

solidariedades, refazer culturas. Esta foi a verdadeira Grande

Refazenda. O primeiro passo neste monumental processo de

reinvenção da humanidade foi a superação do estranhamento geral

[…] (GIL, 2007 p. 12).

Em relação às identidades culturais produzidas no contexto do que se

convencionou chamar diáspora africana, caracterizado pela situação de desterrados e

escravizados em terras americanas, como parte da engrenagem da máquina colonialista

a qual foram submetidos os negros africanos, destaca-se a formação das identidades e

culturas afro, a partir das relações estabelecidas com uma série de elementos comuns,

dentre estes, o próprio contexto diaspórico. O contato com elementos específicos das

culturas diversas vindas da África, juntamente às culturas do colonizador e dos

autóctones engrossaram este caldo cultural que originou diversas expressões da cultura

afro-brasileira, sobretudo no que diz respeito à cultura popular.

Deste modo, considerando o fato dos negros africanos escravizados nas

Américas terem deixado sua terra natal como mercadorias e mão-de-obra escrava, ao

serem tomados de assalto, em situação que pouco ou nada puderam trazer, exceto o que

estava em sua memória, verificamos assim a importância dos valores africanos trazidos

nessas memórias, que se constituíram também como valores afro-brasileiros. Assim,

através desse conjunto de princípios e valores legados pelos muitos povos vindos da

África, e as interações entre estes povos, tem início a construção das identidades

culturais afro-americanas, em especial as identidades afro-brasileiras, para as quais se

voltam os esforços de compreensão deste trabalho.

2.2 A construção das identidades afro-brasileiras

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O processo de formação das culturas e das identidades afro-brasileiras teve seu

início a partir da interação entre os povos que estavam escravizados no Brasil, mas

também das relações entre os africanos e os colonizadores e os autóctones. Conforme

assinala Mintz e Price (2003, p. 33) “[…] os africanos de qualquer colônia do Novo

Mundo só se transformaram de fato em uma comunidade e começaram a compartilhar

uma cultura na medida e na velocidade que eles mesmos as criaram.”

A princípio, podemos perceber duas formas de interação que envolveram o

negro escravizado no processo de formação da identidade afro-brasileira. Uma a partir

das relações de dominação31

entre negros e brancos, acentuadas pelo uso da violência

física, psicoemocional e cultural. Neste ponto, o homem negro escravizado era

considerado um bem móvel a disposição do seu proprietário, não como mero animal de

carga, pois “dotado de um mínimo de racionalidade”, eram considerados como

exemplares de homo sapiens32

, o que aumentava ainda mais as possibilidades da sua

exploração ante o que seria um animal de carga comum (MEILLASSOUX, 1995).

Deste modo, destituído de alma e humanidade, perfeitamente substituível em caso de

morte ou acidente que o incapacitasse a desenvolver a função que lhe era atribuída, este

era o status do escravo africano no período colonial escravista.

Assim era não somente marcada como também justificada a desigualdade entre o

senhor e o escravo. Outro aspecto histórico-social que sobressaiu na construção da

identidade afro-brasileira no contexto da escravidão, diz respeito às relações entre

negros e negros, muitas vezes de origem étnicas diferentes. Encontramos nesta forma,

algumas relações de solidariedade, nas quais a interação e a ajuda mútua eram formas

de amenizar as necessidades materiais, psicoemocionais e espirituais e de ordem prática,

as quais foram fundamentais na construção da nova identidade. Sobre isto, Martins

assinala que

A cultura negra nas Américas é de dupla face, de dupla voz, e

expressa, nos seus modos constitutivos fundacionais, a disjunção entre

o que o sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e o

que, por inúmeras práticas, realmente diziam e faziam. Nessa

operação de equilíbrio assimétrico, o deslocamento, a metamorfose, e

o recobrimento são alguns dos princípios e táticas básicos operadores

da formação cultural afro-americana que o estudo das práticas

performáticas reiteram e revelam. (MARTINS, 2002, p. 71)

31

Destas relações de dominação e sujeição entre povos africanos ver Waldman e Serrano (2008) e

Meillassoux (1995). 32

O homo sapiens, de acordo com a classificação científica é uma espécie de hominídeo abaixo na escala

evolutiva apenas dos homo sapiens-sapiens que é o homem atual.

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Deste modo percebemos que a produção cultural afro-brasileira no tocante às

relações entre o escravo e o senhor procurou criar estratégias que dissimulassem as

práticas culturais recriadas coibidas, como jogos, festas e rituais com vistas a minimizar

as represálias. Assim, notamos que estes deslocamentos, metamorfoses e recobrimentos

foram mais que disfarces, a considerar seu papel no processo de resistência cultural e

política que atuavam na construção da identidade afro-brasileira, tanto quanto as formas

de negociação, os atos de rebeldia, como boicote aos instrumentos de produção, o

chamado “corpo mole” que atrasava o andamento dos trabalhos, bem como, as

rebeliões, fugas individuais e coletivas e o suicídio. Estas formas de negociação e atos

extremos marcaram a resistência dos negros e sua forma de fazer política e preservar

seus elementos culturais distintivos durante o período escravista.

2.2.1 A afro-brasilidade: construção da identidade cultural múltipla

Considerando a afro-brasilidade uma identidade que, se decomposta seus termos

constituintes, perceberemos que se ancora em dois conceitos construídos socialmente:

etnia e nacionalidade. Contudo, notamos que ambos os termos componentes são

conceitos carregados ideologicamente que, via de regra, remetem à ideia sintética de

pertença a “um local”, neste caso à África e ao Brasil, os quais abrigam culturas e etnias

diversas. No bojo do processo de formação desta afro-brasilidade temos como resultado

interações intersubjetivas que envolveram uma gama de estratégias de resistência e

apropriação entre os diversos grupos envolvidos nesta questão. Portanto, para

adentrarmos à construção da afro-brasilidade, primeiro refletiremos acerca dos

conceitos de etnicidade e nacionalidade, os quais têm particular relevo nesta discussão.

Notamos que a construção das identidades, cujas bases se assentam nas

interações intersubjetivas estabelecidas no cenário da diáspora e da escravidão colonial,

apresentou-se como resultado de processos sociais, culturais e psicológicos complexos.

Deste modo, questões relacionadas à ideia de igualdade, diferença e desigualdade

emergem como elementos cruciais na compreensão da identidade cultural afro-

brasileira, sobretudo no ponto específico o qual tratamos aqui, que é a construção da

afro-brasilidade, a partir das fronteiras estabelecidas nestas noções se torna possível a

dicotomia do “eu” e do “outro,” empregada entre negros e brancos no contexto da

diáspora e escravidão colonial e, a partir daí, as classificações e generalizações

relacionadas não somente às ideias de etnia e nacionalidade, como também a construção

da noção de “raça”.

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Cabe aqui salientar que as questões de identidade, raça, cor ou etnicidade que

envolvem dominação ou exclusão, partem da constatação da diferença que pode ser de

ordem objetiva ou cultural. Para pensarmos os pares formados por “igualdade e

diferença” e “igualdade e desigualdade”, trazemos a explicação de Barros (2008) que

apresenta estas oposições relacionando o primeiro par à ordem dos contrários, no qual

se opõem duas essências, e o segundo à ordem dos contraditórios, a qual se opõem duas

circunstâncias. Nas palavras do autor

a oposição entre Igualdade e Diferença, para colocar em uma

perspectiva semiótica, é da ordem dos ‘contrários’ (de duas essências

que se confrontam). Já a oposição entre Igualdade e Desigualdade é da

ordem dos ‘contraditórios’ (duas circunstâncias que se opõem)

(BARROS, 2008, p. 40). (grifo nosso)

Deste modo, o autor mostra que uma diferença não deveria anular a outra,

simplesmente porque ambas, são em si, e não concorrem uma com a outra. Contudo, no

âmbito da desigualdade, ao serem estabelecidas escalas da ordem do contraste, podem

gerar situações de exclusão, segregação, exploração e discriminação. Esta última,

conforme observa Barros (2008), “[…] discriminar, remete também ao cultivo daquilo

que podemos conceituar como ‘preconceito’”, dentre os quais, o chamado “preconceito

racial” ou “preconceito de cor” (BARROS, 2008, p. 44).

Em muitos contextos, dentre os quais, o da diáspora e da escravidão colonial, o

discurso da desigualdade serviu para engrossar a conjuntura da dominação colonial.

Este discurso foi e continua sendo, mesmo que de forma velada, tomado como critério

que pretende justificar uma série de abusos e desmandos, dentre os quais as formas de

discriminação, subordinação, dominação e exclusão de grupos e indivíduos, em diversos

âmbitos da vida social. Ou seja, ocorre o erro grotesco de usar a diferença para justificar

a desigualdade entre os indivíduos e seus grupos. No momento em que as diferenças são

hierarquizadas e postas em escala de valor, gera a desigualdade. Desigualdades de

ordem social, cultural, legal, restrições ao acesso de determinados bens e capitais.

Canclini (2008, p. 250), referindo-se à dominação colonial, salienta que a

manutenção da diferença por parte dos colonizadores constituiu-se um recurso a serviço

da dominação dos aborígenes. Do mesmo modo, compreendemos que a manutenção da

diferença foi e é elemento de dominação, o qual procura fazer crer, impor e fruir desta

crença que apregoa uma suposta superioridade de uns, em detrimento à autonomia de

outros. Assim, vale lembrar a colocação de Gilles Deleuze e Félix Guattari, (1997) que,

ao trabalhar com a teoria das forças, reconhecem a existência de uma força que domina

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e outra, que é dominada, quando dizem que a força que domina age sobre a força

dominada, afirmando-se sobre esta última e gozando da sua diferença sobre esta, sem,

entretanto, negar a força dominada. Deste modo, compreendemos como atuou a

manutenção das diferenças entre negros africanos escravizados e o branco colonizador,

ao ponto de construírem-se duas identidades étnicas diferentes em posições sociais

opostas. Do mesmo modo, cito aqui a definição de etnicidade adotada por Philippe

Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, concebida com base nos estudos do antropólogo

Fredrik Barth, na qual compreendem a etnicidade como:

[…] uma forma de organização social, baseada na atribuição

categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta,

que se acha validada na interação social pela ativação de signos

culturais socialmente diferenciadores. (POUTIGNAT e STREIFF-

FENART, 1998, p. 141)

De forma semelhante Munanga conceitua etnia como “[…] um conjunto de

indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua

em comum, uma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente

num mesmo território.” (MUNANGA, 2003, p. 11). Com isso, podemos concluir que a

etnicidade é uma construção social que se baseia em um discurso que funciona tanto

categorizando (iguais e diferentes), quanto classificando as pessoas e grupos (nós e os

outros), baseando-se não somente na crença de uma origem comum, construída a partir

de um trecho de história, e um local comum, os quais são compartilhados desde então,

dos quais provêm a construção da memória, das tradições e um modo de vida

compartilhado, como também por meio das semelhanças na aparência, que dão margem

a concepção de grupo étnico.

Neste sentido, podemos inferir que a compreensão acerca do sentimento de

pertença a um determinado grupo, ou comunidade étnica, não exige exatamente que

seus membros tenham a mesma origem e/ou características físicas, mas uma interação

social, que compartilhem valores, modos de vida e símbolos culturais além da crença

subjetiva em uma origem comum, o que respalda o sentimento de pertencimento àquele

grupo. Contudo, devemos observar que a identidade étnica não é estabelecida apenas

pelo sentimento de pertencimento, esta também se constrói nas fronteiras por meio das

categorizações estabelecidas por outros grupos étnicos.

Devemos, entretanto, atentar para o uso do termo “etnia” como uma

reformulação do conceito de “raça”, pois este possui um longo processo que vai desde a

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sua concepção nas Ciências Naturais até seu uso como elemento acirrador das tensões

sociais que envolvem manifestações de racismo.

Disto devemos lembrar que o conceito de raça teve sua origem nos estudos das

Ciências Naturais, usado para estabelecer categorias com base nas semelhanças e

diferenças entre espécies animais e vegetais. Contudo sua aplicação relacionada à

espécie humana, por François Bernier em 1684, com fins de designar grupos humanos

fisicamente diferentes, para Munanga, (2003), deu origem ao processo de construção do

moderno conceito de raça, o qual foi posteriormente ligado pelos cientistas à ideia de

hierarquização dos grupos humanos e com isso justificando e legitimando a dominação,

a escravidão colonial, dentre outros modos de subjugar grupos tidos como minorias

sociais.

Neste sentido, durante o século XVIII a cor da pele tornou-se o principal critério

no estabelecimento das “raças,” e no século XIX foram estabelecidos outros critérios

que se somavam à cor da pele para categorizar e hierarquizar os seres humanos e seus

grupos. Com base nestes estudos, influenciados pelo evolucionismo e pela ideologia

colonialista, foram-se respaldando as teorias raciais. Hoje é sabido que embora

biológica e cientificamente inaplicável, o conceito de raça socialmente existe como

“uma construção sociológica e uma categoria social de dominação e de exclusão.”

(MUNANGA, 2003, p. 6). Deste modo, Stuart Hall (2006) compreende raça como uma

categoria discursiva que se vale de marcas simbólicas para diferenciar socialmente os

grupos.

Munanga (2003) nota que os conceitos de etnia e raça são aplicados socialmente,

e, algumas vezes, com sentidos muito próximos, sobretudo no Brasil, em se tratando de

relações raciais e manifestações de racismo. Salienta Munanga (2003), que além destes

dois conceitos, também os conceitos de “identidade cultural” e “diferença cultural” são

usados no sentido de reformular o conceito de raça. O conceito raça, do qual se deriva o

termo “racismo”, infelizmente ainda está em voga, tanto no campo dos estudos quanto

nas práticas e nas representações. Observa assim Munanga, “O que mudou na realidade

são os termos ou conceitos, mas o esquema ideológico que subentende a dominação e a

exclusão ficou intacto” (MUNANGA, 2003, p.13).

Sobre a ideia de nacionalidade, é relevante pensar a nação, conforme sugere

Stuart Hall (2006), como algo além de uma entidade política e também como um

sistema de representação cultural que dá significado a uma série de outras

representações, sendo a cultura nacional como “um discurso – um modo de construir

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sentidos que influencia e organiza as nossas ações quanto à concepção que temos de nós

mesmos” (HALL, 2006, p. 50). Com isto devemos observar que a nacionalidade é uma

construção social. Através desta construção ergue-se e, muitas vezes reifica-se, a ideia

de pertencimento a uma determinada nação. Deste modo, este conceito opera na

sociedade oferecendo aos indivíduos um sentimento de pertença, não somente a um

suposto local de origem, como também a um grupo maior, unificado e genérico. É neste

sentido que Hall argumenta que “[…] na verdade, as identidades nacionais não são

coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da

representação” (HALL, 2006, p. 48).

Daí, a identidade nacional se faz perceber quando ocorre a identificação dos

indivíduos com este discurso, composto por narrativas que constroem a ideia, quase

naturalizada, sobre a nação e a própria nacionalidade. Contudo, não basta identificar-se

com o discurso de nacionalidade, é também necessário, além do sentimento de pertença,

o domínio de diversos códigos culturais incorporados, que manifestam, por meio de

expressões triviais, como sua postura, seus gestos, fala e demais expressões que

possibilitam ao “outro” a identificação deste como pertencente a tal nacionalidade.

Por outro lado, é possível compreendemos que a identidade nacional é um

fenômeno, ou seja, algo que se manifesta, e é objeto de reflexões, construído a partir de

um discurso que procura unificar a identidade de uma nação inteira, desconsiderando as

diversidades regionais, sociais, étnicas e de gênero, dentre outras. Ou seja: apresenta

como prejuízo inseparável desta “unidade”, a invisibilização de uma gama de outras

expressões culturais produzidas pelas diferentes identidades étnicas, sociais, históricas,

dos indivíduos que operam no interior desta generalização.

A identidade nacional é um discurso construído que busca se estabelecer para

atender em grande parte às demandas ideológicas da classe que o constrói. Daí lembra-

nos Poutignat e Streiff-Fenart (1998) acerca da importância da memória, e do

esquecimento, na construção das identidades e das culturas nacionais, ao argumentar

que:

[…] a memória fundadora da unidade nacional, é ao mesmo tempo e

necessariamente o esquecimento das condições de produção desta

unidade: a violência e o arbitrário originais e a multiplicidade das

origens étnicas. (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 36).

Deste modo, notamos que na atualidade, o referido processo de lembrança-

esquecimento insere-se em uma conjuntura na qual, via de regra, procura-se

implementar o discurso das classes hegemônicas. Estas, por muito tempo, através do seu

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discurso, buscaram equacionar as tensões sociais de âmbito nacional a favor dos seus

interesses, selecionando, elegendo e promovendo manifestações de grupos populares

específicos ou segmentos sociais, regionais ou locais como representantes da cultura

nacional.

Neste processo, obrigatoriamente os esquecimentos e as lembranças servem a

uma narrativa unificadora, que lança seus heróis, mártires e fatos históricos de acordo

com a imaginação da classe que a constrói, deixando de fora muitas outras narrativas,

contudo não menos relevantes para seus grupos específicos engolidos ou esquecidos

pelo discurso maior da nacionalidade.

Stuart Hall (2006) chama a atenção para dois aspectos acerca das identidades

nacionais: um é o aspecto de construção social, e outro, de invenção. Neste sentido,

observa o referido autor, que a identidade nacional é um fenômeno moderno no qual,

“no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das

principais fontes de identidade cultural” (HALL, 2006, p. 47). Contudo, frisa que esta

identidade nacional é uma invenção da era moderna, localizável no tempo e no espaço,

tendo sua origem a partir da formação dos estados nacionais. Com base na ideia de

nacionalidade, as diferenças culturais e étnicas, como religião, língua e organização

social são, de certo modo, unificadas. Esta identidade cultural é construída e atua

ligando o indivíduo a um grupo maior, a nação.

Com isso podemos considerar que o discurso de nacionalidade localiza tanto o

indivíduo quanto o grupo de indivíduos em um tempo-espaço, o que lhes oferece certo

conforto, tanto social quanto psicológico, por se tratar de uma comunidade simbólica

que produz sentidos e, deste modo, promove o sentimento de pertença e identidade entre

os indivíduos e grupos.

Hall (2006) percebe o esfacelamento das identidades culturais definidas e bem

acabadas, considerando o movimento de generalização da cultura tanto por meio dos

hibridismos culturais, quanto da homogeneização, e o movimento que chamou de

“retorno à etnia”, o qual os sentimentos de pertença e as identidades locais são

reforçados por meio de identificações simbólicas e busca pela origem comum. Neste

ponto o autor chama a atenção para as reações defensivas de grupos étnicos dominantes,

que, ao se sentirem ameaçados pela presença de outras culturas, este sentimento de

pertença ante algum movimento interpretado como ameaça, pode desencadear reações

de violência e preconceitos, o qual o autor chama de “racismo cultural”.

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Isto posto, percebemos que existe uma gama de elementos e contextos que

tornam o pensar acerca da construção da identidade cultural afro-brasileira, um

exercício complexo, postas as ambiguidades dos processos que o envolve. Verificamos

portanto, que a construção da identidade cultural afro-brasileira se dá, principalmente,

através dos elementos de significação de origem africana, nos quais, os sujeitos que

vivem e produzem esta cultura ao interagirem, através das adaptações, atualizações,

ressignificações e recriações, produzem novas formas culturais. Deste modo, ao

compartilham esta cultura ao mesmo tempo em que a produzem. Ou seja,

compartilharem elementos comuns, como os narrativas e valores gerados a partir dos

diversos conjuntos de referências vindos da África, ressignificaram no Brasil estes

elementos que neste processo passaram a integrar, reforçando a ideia de uma área

geográfica e de origem comum, genérica, a África. Estas ideias estão presentes nos

conceitos de identidade étnica, anteriormente apresentados, bem como atuam também

no cenário globalizado onde se apresentam as novas tecnologias, os novos meios de

comunicação que permitem acesso e interações a uma infinidade de informações

culturais.

Percebemos que até mesmo as noções de cultura e identidade afro-brasileira

passam por uma unificação que desconsidera as diferenças regionais que imprimem

marcas nas feições destas culturas e identidades. Deste modo podemos então falar em

identidades afro-brasileiras, considerando que as identidades nacionais são também

atravessadas por diferenças internas, unificadas através do exercício de diferentes

formas de poder cultural e que a unificação de uma identidade nacional, pautada na

ideia de raça ou etnia, como era comum na Europa, no cenário atual é visto como fora

de questão, no sentido que “As nações modernas são, todas, híbridos culturais” (HALL,

2006, p. 62).

Constatamos, contudo que no caso da identidade cultural afro-brasileira, ainda

que sendo uma identidade marcada historicamente pela desigualdade e subalternidade

no âmbito das relações sócio-econômicas e culturais, ocorre o movimento chamado por

Hall (2006) de formação de posições-de-identidade. Estas polarizadas reagem

defensivamente e produzem sentimentos que poderíamos chamar de “afro-brasilidade”.

Hall (2006, p. 85) chama de “inglesidade”, a resultante do fortalecimento da identidade

local que reage defensivamente em situações nas quais uma identidade dominante se

sente culturalmente ameaçada por outra identidade. Esta reação defensiva pode

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desencadear atos extremos de violência, estágio o qual Hall (2006) chama de

“inglesismo”.

Deste modo, observamos o desenvolvimento do que Hall (2003) caracterizou

como “estratégia da différance”, ao defender a “produção subalterna da diferença”, com

base no pensamento de Derrida. Esta estratégia, incapaz de criar formas novas de

cultura, também não pode conservar intactas as formas antigas (HALL, 2003, p. 58).

Deste modo, na formação da afro-brasilidade, a idéia de “estratégia da différance”

funciona no ambivalente cenário da globalização, dizemos isto considerando sua dupla

feição generalizante e localizante, donde, nem uma, nem outra, permanece por muito

tempo como grupo hegemônico, nem no âmbito da subalternidade resistente.

Vemos materializadas estas estratégias ao considerarmos a afro-brasilidade

como uma resposta defensiva dada a uma experiência de exclusão social e racismo33

.

Deste modo, relacionando especificamente à questão racial que envolve os afro-

brasileiros, esta posição reacionária provém da tomada de consciência de que a

assimilação dos modos hegemônicos não garantem sua plena integração na sociedade.

Neste sentido, a ideia de “negritude”, por exemplo, conforme compreensão de Munanga

(1990), apresenta-se como um posicionamento que afirma os valores civilizatórios e

culturais do mundo negro, ao mesmo tempo em que atua como um posicionamento

político voltado a resolver questões sociais relacionadas principalmente ao racismo. De

acordo com Kabenguele Munanga, o processo de construção social da negritude ocorre

da seguinte forma:

O negro se dá conta de que sua salvação não está na busca da

assimilação do branco, mas sim na retomada de si, isto é na sua

afirmação cultural, moral, física e intelectual, na crença de que ele é

sujeito de uma história e de uma civilização que lhe foram negadas e

que precisava recuperar. A essa retomada, essa afirmação de valores

da civilização do mundo negro deu-se o nome de ‘negritude’

(MUNANGA, 1990, p. 111).

33

Kabenguelê Munanga (2003), explica seu conceito de racismo a partir das relações estabelecidas como

o conceito de raça. Segundo este autor, “o racismo seria teoricamente uma ideologia essencialista que

postula a divisão da humanidade em grandes grupos chamados raças contrastadas que têm características

físicas hereditárias comuns, sendo estas últimas suportes das características psicológicas, morais,

intelectuais e estéticas e se situam numa escala de valores desiguais […] é uma crença na existência das

raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral o físico e o intelecto, o

físico e o cultural” (MUNANGA, 2003, p. 6 - 7).

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50

Deste modo, a afro-brasilidade seria um discurso que gera um sentimento de

pertença étnico ou racial34

e nacional, que toma de empréstimo da ideia de negritude,

naquilo que concerne a um posicionamento político-ideológico, no que busca promover

a valorização – ou supervalorização - dos valores e da cultura afro-brasileira, com

ênfase nos elementos e valores de origem africana. Contudo, nesta busca por afirmar

sua identidade “afro”, ou seja, negra, peca ao tentar tornar positiva a imagem

estereotipada do negro afro-brasileiro, formada sob preconceito e que tanto alienou

muitos portadores desta identidade. Neste caso vale mais trabalhar uma nova imagem

do negro brasileiro no sentido de conhecedor e sujeito da sua história e cultura, como

sujeito político que atua dentro da sociedade e, enquanto grupo que se mostra portador

de valores e identidades específicas.

Consideramos também as interações intersubjetivas e o fato de a capoeira

também ter sido praticada por outros grupos, que não exatamente de africanos e afro-

descendentes escravizados, libertos ou livres. Deste modo, a capoeira não pode ser

considerada uma manifestação homogênea, pois é notório o imbricamento entre o

processo de construção da capoeira e as identidades afro-brasileiras, através das suas

lutas no âmbito político e ideológico, e a atribuição de marginalidade aos capoeiras,

desde que sujeitos negros e escravizados.

A capoeira ainda assim se mostra como manifestação de nítidos traços oriundos

das culturas africanas. Cumpre destacar que no âmbito do registro da capoeira como

manifestação cultural brasileira, fazem-se necessárias medidas de políticas públicas, não

somente de reconhecimento e valorização dos sujeitos que trabalham com esta

expressão em seu local de origem (cidade e país), como também de reparação. É neste

sentido que a antropóloga Maria Paula Adinolfi, no texto do Parecer do Registro da

Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil, salienta o sentido político que tem tal

Registro para as comunidades afro-brasileira e principalmente os capoeiristas:

A proposição do registro da capoeira como patrimônio cultural do

Brasil, (…) pode ser mais bem compreendida ao considerá-la como

parte integrante de um rol mais amplo de reivindicações de direitos

culturais, sociais e políticos pela população afro-brasileira, que foram

incorporados a agenda do MinC, resultando na formulação de políticas

públicas de valorização e fomento desta prática social. (IPHAN, 2008,

p. 1)

34

Deixamos os dois conceitos por considerar que ambos são igualmente aptos para se pensar e discutir

não somente questões raciais como também o próprio conceito de afro-brasilidade e questões relacionadas

a esta.

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51

Assim, com vistas a viabilizar as reflexões feitas neste trabalho, tomaremos a

perspectiva de “matriz africana” como conjunto de valores civilizatórios e elementos

simbólicos, que possibilita a análise e interpretação daquilo que é compartilhado, ou ao

menos, aderido por muitos, como aspectos constitutivos dos diferentes povos vindos da

África, que aqui estavam e interagiram uns com os outros, com vistas a resistir ao

contexto opressor.

Enfim, sem desconsiderar a heterogeneidade cultural do continente africano,

trabalhamos com a perspectiva de “matriz africana”, com a finalidade de refletir acerca

da identidade cultural afro-brasileira que tem como marca distintiva elementos culturais

que definiram uma diáspora africana no Brasil. Elementos estes que hoje notadamente

encontram-se arraigados na identidade e na cultura afro-brasileira, não porque foram

impostos, mas por serem referências que remetem de forma genérica a um continente

inteiro, haja vista a impossibilidade de precisar o local dos nossos ancestrais, mas que

ainda assim são caros como termos de referência de histórias de luta e resistência contra

o tempo, o esquecimento e a opressão.

CAPITULO 3

OS VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS NAS

RODAS DE CAPOEIRA

A noção de valores africanos foi elemento fundamental na construção do amplo

patrimônio cultural e das identidades afro-brasileiras. Como conjunto de elementos de

significações diversas (ética, religiosa, social, corporal, científica, dentre outras) estes

valores nortearam a reorganização da vida dos grupos de indivíduos escravizados. Deste

modo, percebemos tais valores como elementos que atuaram na criação das novas

formas culturais desses indivíduos desterrados, e de seus descendentes, na medida em

que buscavam reorganizar suas vidas no Brasil. Tais criações e recriações foram

configurando-se através dos muitos processos de interação que resultaram em novas

formas culturais e novas instituições. Esses valores culturais atuaram tanto no

consciente quanto no inconsciente, e agiram na formação de identidade, de

autocompreensão e da sociedade brasileira. Azoilda Loretto da Trindade fornece-nos

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uma ideia clara do quanto, e de como estes valores compõem o indivíduo, no âmbito da

cultura e da identidade, ao afirmar que:

A África e seus descendentes imprimiram e imprimem no Brasil

valores civilizatórios ou seja, princípios e normas que corporificam

um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais,

intelectuais e materiais, objetivas e subjetivas, que se constituíram e se

constituem num processo histórico, social e cultural. (TRINDADE,

2005, p.30-31)

A questão da continuidade transatlântica da cultura africana, via de regra, é uma

discussão presente ao se trabalhar com estes valores. Enquanto alguns autores pensam

nesta continuidade como o modo que garantiu a reestruturação, do ponto de vista

cultural e social do negro no Brasil, naquilo que concerne à formação da identidade e da

cultura afro-brasileira, outros autores como Sidney Mintz e Richard Price são mais

cautelosos ao trabalhar com a ideia de uma continuidade transatlântica, por considerar

principalmente a heterogeneidade do continente africano. Os referidos autores

asseveram que:

De uma perspectiva transatlântica, os princípios, pressupostos e

modos de compreensão culturais de nível profundo compartilhados

pelos africanos de qualquer colônia do Novo Mundo […] teriam sido

um recurso limitado apesar de crucial. É que eles podem ter servido de

catalisadores nos processos pelos quais os indivíduos de diversas

sociedades forjaram novas instituições, e podem ter fornecido alguns

arcabouços dentro dos quais foi possível desenvolver novas formas

(MINTZ E PRICE, 1992, p. 33)

Deste modo, embora concebam como crucial a relevância dos princípios e

valores africanos para a construção das instituições afro-americanas, dentre elas as afro-

brasileiras, estes autores consideram sua atuação limitada, visto que o continuum não foi

integralmente concretizado, principalmente do ponto de vista institucional. Contudo,

consideram que novas instituições foram criadas, a partir destes princípios e valores

compartilhados entre interações sociais da vida cotidiana. Deste modo, os valores em si

não foram suficientes para recriar fielmente o modo de vida das várias comunidades

africanas na América, como supõe a ideia de continuum, mas que foram fundamentais

para a criação de novas formas culturais.

Marco Aurélio Luz (2000) compartilha da perspectiva da continuidade

transatlântica da cultura africana em solo brasileiro. Neste sentido, este autor enfatiza o

conjunto dos princípios e valores africanos como elemento responsável pelo que seria a

reconstrução da cultura africana no Brasil. Para Luz houve um continuum da África para

o Brasil, de modo que as transformações ocorridas com a diáspora não foram suficientes

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para alterarem este legado. Desconsidera, ou antes, minimiza portanto a diversidade das

culturas africanas, as estratégias usadas no apresamento e transporte dos africanos como

a separação das famílias e demais instituições sociais, a proposital mistura de grupos

linguísticos diferentes, e demais efeitos da escravidão colonial, enquanto contexto no

qual teria se dado tal continuum. Nas palavras do referido autor:

Na Afro-América, especialmente no Brasil, o legado africano se

expandiu de tal forma que hoje vemos da mesma maneira os

princípios e valores desta tradição civilizatória, apesar de algumas

transformações que, todavia, não alteram a sua totalidade dinâmica

constituinte de um mesmo continuum. (LUZ, 2000, p. 31) (Grifos

nossos)

Decerto, os valores civilizatórios africanos tiveram e ainda têm fundamental

importância na construção das identidades afro-brasileira e são visíveis as suas marcas

em vários âmbitos da vida dos afro-brasileiros. Contudo, não seria lícito afirmar que o

conjunto destes valores proporcionaram um continuum transatlântico da cultura

africana, mas sim, podemos dizer que possibilitou a criação de novas manifestações, de

novas culturas, novas identidades e novas instituições e relações sociais a partir das

relações estabelecidas sob as conjunturas que se apresentavam a estes sujeitos.

Deste modo, é possível melhor compreender como grupos distintos, algumas

vezes rivais, uniram-se e impuseram resistência à invasão das mentes, ao processo de

aculturação e a obliteração decorrentes da escravidão e do racismo35

e, a partir desta

conjuntura, articularam seus valores com o que havia de vivo em suas memórias. Os

referidos valores permeiam e se manifestam na memória coletiva, na cultura, na lógica

dos pensamentos e comportamentos, enfim nos modos de vida dos afrodescendentes,

expressando-se de formas diferentes entre os diversos grupos afro-brasileiros. Neste

sentido, Mintz e Price, salientam a heterogeneidade do continente africano, bem como

consideram limitada a possibilidade de atuação destes valores, observam que:

Uma herança cultural africana, largamente compartilhada pelas

pessoas importadas por uma nova colônia, terá que ser definida em

termos menos concretos, concentrando-se mais nos valores e menos

nas formas socioculturais, e até tentando identificar princípios

‘gramaticais’ inconscientes que pudessem estar subjacentes à resposta

comportamental e fossem capazes de moldá-la. (MINTZ e

PRICE,1992, p. 27 - 28)

35

Consideramos aqui “raça” como um conceito histórico sociológico utilizado muito mais para tratar

características fenotípicas que genotípicas, do qual o conceito de “raça” caiu, permanecendo, tão somente

e infelizmente o preconceito. Segundo Munanga, “[…] se cientificamente ‘raça’ é um conceito pouco

significativo, política e ideologicamente ele é muito significativo, pois funciona como uma categoria

etno-semântica, isto é, política e econômico-social de acordo com a estrutura de poder em cada sociedade

multirracial” (MUNANGA, 1990, p. 110).

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A princípio, tais valores, diferenciais na composição da identidade afro-

brasileira, se distinguem ou mesmo se opõem a muitas das concepções e valores

ocidentais, como por exemplo, ao individualismo, à busca obcecada pela vantagem e

pelo lucro capitalista e ao consumismo desenfreado, imposto pela cultura de massas,

que ao mesmo tempo foram e são institucionalizados e estão inseridos nestes contextos.

Nesse sentido, cabe a fala de Gilberto Gil (2007), no que toca as relações de

solidariedade como princípio africano:

A predominância nesses mundos negros de uma grande diversidade de

projetos não produziu uma Torre de Babel exatamente porque não

predominou a lógica materialista de Marx, pela qual os interesses

objetivos soldariam as solidariedades de grupo ou classe. O cimento

era outro. Acredito que nossas solidariedades sempre foram uma

expressão de nossas identidades que vicejaram em uma cultura afro-

global, o que significa dizer que as representações que construímos de

nós mesmos foram mais fortes do que as condições de exploração e de

pobreza a que fomos submetidos. (GIL, 2007 p. 11).

Deste modo, percebemos que a cultura afro-brasileira é resultado da interação

dos povos da África que se encontravam no Brasil sob a condição de escravos. Assim, o

contexto da escravidão no Brasil, com suas formas de dominação, aculturação e de certo

modo negociação, atuou como elemento fundamental na construção da cultura afro-

brasileira, pois em outra situação o resultado jamais seria o mesmo. É dado destaque

neste trabalho, a alguns elementos do conjunto de valores e princípios que atuaram na

estruturação deste processo identitário. Lembramos, porém, que estes valores não atuam

ou manifestam-se isoladamente, mas em conjunto, de forma integrada, como se faz

perceber em muitos outros aspectos da vida e da visão de mundo dos afrodescendentes,

como herança dos que vieram do continente africano.

Deste modo, podemos melhor compreender a oralidade, a memória, a

corporeidade, a musicalidade, a força vital ou axé, a ancianidade, a ancestralidade, a

ludicidade, dentre outros valores do mundo afro e mais especificamente, os valores

civilizatórios afro-brasileiros.

3.1 A religiosidade

A religiosidade pode ser compreendida como um sentimento ou uma tendência

natural do homem a relacionar-se com o divino ou sobrenatural. O divino ou

sobrenatural circunscreve-se em uma lógica empírica sobre a qual ainda não existe

explicação. Daí os mitos, os ritos, as divindades e uma gama de manifestações

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relacionadas à religiosidade. Esta dispõe de uma permeabilidade no modo de vida dos

indivíduos e da comunidade, tanto do ponto de vista objetivo quanto subjetivo, ou seja:

a religiosidade atua dentro dos grupos, muitas vezes influenciando ou determinando,

não somente a crença, os ritos e a conduta moral, como também pode determinar a

forma de se pensar e a compreensão de determinados textos, símbolos, eventos da

natureza e demais situações e ações em outros âmbitos da vida cotidiana, manifestando-

se também através de performances individuais ou coletivas, públicas ou privadas.

Tomamos como exemplo, o ato de fazer o “pelo sinal” da cruz ou o ato de se

benzer36

que são performances religiosas, tradicionais do catolicismo. Estas possuem

uma correspondente no candomblecismo adotada atualmente por alguns mestres e

capoeiristas que consiste em abaixar-se e com a mão direita tocar o chão, simbolizando

uma troca de energia vital (axé) entre o capoeirista e a Terra, em seguida toca a testa,

reverenciando o orixá de frente do capoeirista e depois a nuca, reverenciando os

ancestrais.

Esta capilaridade da religiosidade, através da qual flui na vida social

determinando pensamentos e comportamentos, está presente em muitas das culturas

africanas e também na cultura afro-brasileira. Deste modo, a religiosidade tem um papel

de destaque na formação das comunidades e da cultura afro-brasileira, pois foi em torno

da religiosidade que muitos dos povos passaram a se agrupar. Graças ao sentimento de

religiosidade, um valor compartilhado entre as comunidades africanas, que várias

instituições de relevante papel entre as comunidades afro-brasileiras foram criadas,

dentre as quais, o candomblé e outras religiões afro-brasileiras, bem como as

irmandades e ordens terceiras de negros, estas últimas impregnadas dos devocionais

católicos (ibéricos) e afro-brasileiros.

Segundo Marco Aurélio Luz, “o legado dos valores africanos que permitiu uma

continuidade transatlântica, está consubstanciado nas instituições religiosas” (LUZ,

2000. p. 32). Deste modo, lembro aqui que a religiosidade afro-brasileira é um valor

construído inerente ao discurso desta identidade. Este valor ultrapassa a já complexa

necessidade de lidar com o divino e abrange também os referenciais históricos e sociais

dos quais vem a compreensão de si, o que torna ainda mais complexo este valor, visto

que a ancestralidade, a memória, a oralidade, o axé estão intimamente ligados a esta

36

A performance que corresponde a este ato consiste em levar a mão direita na seguinte seqüência: a

testa, ao peito, ao ombro esquerdo, ao ombro direito e aos lábios, acompanhada pela evocação oral “Em

nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!”.

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religiosidade. Por esta razão à religiosidade é atribuído o papel de principal valor, pois

se crê que esta possibilitou a preservação transatlântica de tantos outros princípios e

valores africanos e sua incorporação à cultura e identidade afro-brasileira.

3.2 A oralidade

O fenômeno da oralidade sempre esteve e continua presente em muitas culturas

e é responsável pela transmissão e preservação de vários conhecimentos, tradições e

modos de vida. Nas sociedades ocidentais, com o advento e a adoção da escrita

alfabética, a oralidade passou a ocupar um status secundário na transmissão do

conhecimento. Contudo, ainda encontramos diversos grupos que estão inseridos na

sociedade letrada, mas para os quais a escrita não é a principal forma de transmissão, e

sim, a oralidade. A estes grupos, chamamos de grupos de tradição oral, sem mensurar o

seu envolvimento com a escrita. Com base neste entendimento, podemos perceber

diversos entre-lugares nos quais estão situados tanto a escrita quanto a oralidade, onde

ambos estabelecem uma relação harmoniosa, como é o caso dos cordéis, estudados por

Idelette Muzart-Fonseca dos Santos (2006), as canções de gesta medievais, estudadas

por Paul Zumthor (1993) e a principal religião afro-brasileira, o candomblé, estudado

por Lisa Earl Castillo (2008).

Acrescenta Santos (2006), que a passagem dos romances e cantorias da

linguagem oral para o folheto37

escrito, permeado da tradição popular ibérica, vem

tornando-se uma prática cada vez mais frequente entre os romanceiros brasileiros.

Dentro deste diálogo entre a tradição oral e a escrita, o folheto, representante da escrita,

torna-se parte de um ciclo que oxigena a tradição oral, além de tornar-se um elemento

de divulgação da cultura popular à qual pertence. Assim, salienta a autora que:

[...] o folheto participa também dessa dinâmica cultural: entra por sua

vez no circuito que realimenta e renova do ponto de vista poético tanto

quanto narrativo, a tradição oral da cantoria e dos contos. (SANTOS,

2006, p. 66).

Lisa Earl Castillo (2008), que dedicou uma pesquisa aos entre-lugares da

oralidade e da escrita no candomblé, conclui que existe muito mais uma relação que

uma oposição entre estas duas práticas da comunicação humana e da transmissão do

37

Folheto, segundo Santos, trata-se “uma forma poética de escrita que mantém vários aspectos da

oralidade.”, ainda que tendo passado por um processo de “harmonização” que veio a apagar algumas

marcas “por demais visíveis da oralidade” (SANTOS, 2006).

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conhecimento, neste caso, um conhecimento específico que envolve a esfera sagrada

com seus rituais, preceitos e segredos da tradição.

Ainda refletindo sobre o diálogo firmado entre a oralidade e a escrita, nota-se em

outras áreas, além da literatura, este processo de interação, como no caso exemplificado

pelo historiador David Henige, que ao utilizar-se da entrevista como instrumento de

pesquisa, e da História Oral como metodologia em comunidades tradicionalmente orais,

observou que, dentre

Os materiais que o informante consulta pode variar da Bíblia a livros

em geral ou à história local, a publicações governamentais, a recorte

de jornais, e mesmo a dissertações ou publicações de um predecessor

recente. O historiador pode ficar perplexo pela percepção

inconfundível de que a tradição oral nem sempre é apenas oral.

Entretanto esta situação está se tornando cada vez mais freqüente, à

medida que a proliferação do trabalho nas sociedades orais se combina

com o índice de alfabetização. (HENIGE apud. FERREIRA e

AMADO, 1996, p. xxi).

Pensemos então no desenvolvimento da escrita sistematizada no mundo

ocidental: Os gregos criaram o primeiro sistema linguístico que dava conta dos três

requisitos para uma escrita eficaz, que, segundo Havelock38

eram: o apanhado dos sons

linguísticos deve ser exaustivo; a quantidade de formas (letras) deve estar entre 20 e 30

formas diferentes, para não sobrecarregar a memória; não permitir ambiguidades, ou

seja, cada forma deve se referir a um determinado fonema. Deste modo, podemos

observar que o advento, e consequente uso gradual da escrita alfabética, sistematizada

pelos gregos e por outros povos, marcou profundamente, não apenas a forma de

comunicação, a organização e a expressão do pensamento, como também a forma de

preservação e organização da memória. Contudo, percebemos que está na oralidade, (na

voz, em se tratando do objeto concreto da oralidade) por sua vez, a origem de todo esse

processo.

O continente africano, cuja cultura influencia a nossa cultura nacional, é

considerado por muitos autores um dos berços da escrita39

(SERRANO e WALDMAN,

2008). No entanto, houve a adoção da oralidade por grande parte dos povos africanos,

pois esta se constituía um meio de comunicação eficiente e de tal modo integrado aos

38

Erick Havelock, teórico canadense nascido em Londres, em 1922, que dedicou parte da sua

vida acadêmica ao estudo da comunicação na Grécia antiga. 39

Sobre este assunto, Serrano e Waldman citam os hieróglifos egípcios e sistemas como o

meroídico, o núbio antigo, o copta, o tifinagh, o ge’ez e o bamun; os ideogramas estilizados dos

povos ejagham e outras escritas vindas de outros continente, como o uso da escrita árabe, com

vistas à leitura do Alcorão, pelos africanos islamizados.

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valores e à cosmovisão destes povos, que não se poderia separar a tradição oral sem o

prejuízo desta cosmovisão. Vale lembrar que em muitas sociedades africanas as

palavras têm poder, que ditas corretamente agem no equilíbrio e harmonia, tanto no

âmbito da vida humana, quanto nas forças da natureza.

A voz humana é o veículo da oralidade, pois na oralidade, à voz somam-se

elementos como a memória, a narrativa, a gestualidade, a corporeidade, a ludicidade, a

própria força da energia vital, conhecida como “axé” e uma gama de valores

civilizatórios africanos e afro-brasileiros. Zumthor compreende a voz como um

fenômeno poderoso o qual diversos autores já assinalaram sua capacidade de determinar

o plano físico, psíquico e sociocultural (ZUMTHOR, 1993). E a palavra, detentora de

força, tanto no sentido de autoridade e poder, quanto relacionada com o mundo

religioso, trata da força vital e deve ser proferida com respeito e responsabilidade,

principalmente em se tratando de alguns grupos e/ou espaços de tradição africana e

afrodescendente.

Ainda hoje encontramos diversos grupos e comunidades cuja tradição oral

constitui parte importante do seu patrimônio cultural. Grupos localizados tanto na zona

rural quanto na zona urbana, nas diversas regiões do Brasil e em várias partes do mundo

são encontradas comunidades tradicionais que têm em comum a tradição de assegurar

através da oralidade a transmissão dos seus hábitos, trabalhos, valores, modos de vida e

sua História, de modo que as tradições orais são meios nos quais se expressam

identidades e culturas de grupos.

No âmbito das tradições afro-brasileiras, sobre o uso da oralidade, Pedro Abib

destaca que “O samba, tal como a capoeira em suas formas tradicionais, é até hoje

expressão viva da oralidade, enquanto forma principal de transmissão de saberes.”

(ABIB, 2006). Ainda salienta o referido autor a independência e eficácia da oralidade

como processo de transmissão do conhecimento ante os meios formais

institucionalizados de educação, e considera o meio de transmissão oral um meio eficaz,

capaz de regular sua produção e transmissão, que tem por base a memória e a

ancestralidade, elementos de grande relevância nas culturas tradicionais afro-brasileiras,

alguns dos quais tratamos neste capítulo.

Deste modo, compreendemos então a oralidade não somente enquanto meio de

transmissão de conhecimento, mas também como um valor portador de princípios que

expressam o modo de vida afro-brasileiro.

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3.3 A memória

A memória por ser fruto de uma experiência com o tempo, relaciona-se

diretamente com a noção de temporalidade e possui três funções básicas: adquirir

informações, armazenar estas informações e evocar, rememorar ou lembrar estas

informações. Estas são formas de manter o mecanismo da memória sempre em

funcionamento, contudo, o que justifica todo o processo que compõe esta faculdade é a

sua capacidade de localizar o ser humano em um tempo-espaço dando sentido à sua

biografia e existência.

Somente uma parte da experiência humana é retida e sedimentada na consciência

de modo a tornar possível ser acionada pela memória como algo reconhecível, e dar

sentido à sua história de vida individual e coletiva. Desse modo, quando tais

experiências são vividas e compartilhadas entre uma comunidade, e esta experiência é

reportada a um acervo de conhecimentos comuns, que venham a sedimentar-se e formar

a memória coletiva, temos a ideia de tradição, que em verdade é construída a partir de

processo semelhante, somente que deste ponto ocorrem as chamadas manifestações

tradicionais.

Considerando o visto, compreendemos que a oralidade, como um valor

civilizatório afro-brasileiro, não age sozinha, mas se manifesta em conjunto com outros

fenômenos igualmente relacionados à questão da formação da identidade afro-brasileira,

dentre os quais, a memória.

A memória, diz Walter Benjamin (1994), “é a mais épica de todas as

faculdades”, é a faculdade acionada na construção das narrativas, de onde vêm a

História, os mitos, os contos e as lendas, valiosos elementos culturais. Considerada por

este autor como “a musa da narrativa”, da qual também depende a transmissão oral do

conhecimento, a preservação, a recriação da tradição, fatores fundamentais da formação

da cultura afro-brasileira.

Pelo que acabamos de ver, já é possível perceber que a oralidade e a memória

são mais que um meio de transmissão de conhecimento, estas se apresentam não

somente como meios de transmissão e preservação da cultura, como também um

elemento de formação e reformulação da identidade, haja vista ocuparem lugar de

destaque entre os valores civilizatórios afro-brasileiros.

Saliento aqui que, o que para o mundo ocidental é compreendido apenas como

uma faculdade, na cultura africana e afro-brasileira, tanto a oralidade quanto a memória

ganham sentido de valor civilizatório, conquanto atuam nestes grupos como elementos

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pertencentes a uma outra dimensão da realidade, na qual se localizam na realidade

subjetiva e intersubjetiva, as quais envolvem o universo místico, ancestral e de forças

que justificam estas faculdades como valores em seus processos existenciais, históricos,

intelectuais sociais e culturais e com a realidade objetiva.

Outro ponto a ser ressaltado na questão da memória é a relação lembrança-

esquecimento que participou do processo de criação da identidade cultural afro-

brasileira. O esquecimento era provocado por limitação de ordem material, física ou

epistemológica, ou mesmo devido à própria estrutura escravista que impunha a

vigilância de feitores e penalidades em forma de castigos e torturas a quem promovesse

manifestações da sua cultura. Esta forma de promover o esquecimento comumente tinha

por finalidade coibir e destituir a memória dos negros que aqui estavam sob a condição

de escravos com vistas a aculturá-los, enfraquecendo-os culturalmente de modo que

permitisse maior dominação e controle. Contudo, muitos grupos de negros em busca de

criar alternativas que amenizassem a perda de elementos, preservassem elementos

característicos da sua cultura e identidade de grupo e ao mesmo tempo criassem um

modo de vida com o qual se identificassem a partir desses elementos remanescentes,

oriundos da memória e, em muito da tradição oral, deu-se o processo de recriação e

criação de uma nova cultura. Neste sentido, nota-se que a cultura afro-brasileira só

passou a se constituir como tal a partir do momento em que diversas culturas vindas da

África para o Brasil passaram a interagir e a compartilhar da cultura que se formava

(MINTZ e PRICE, 2003). Neste sentido, vale destacar a fala de Roach, lembrada por

Leda Maria Martins, que diz:

Na vida de uma comunidade, o processo de substituição não começa

ou termina, mas sim, continua quando lacunas reais ou pressentidas

ocorrem na rede de relações que constitui o tecido local. Nas

cavidades criadas pelas perdas, seja pela morte, seja por outras formas

de vacância, penso que sobreviventes tentam criar alternativas

satisfatórias. (ROSCH, apud. MARTINS, 2002, p. 71)

3.4 A ancianidade

De acordo com Luz (2000), entre os grupos africanos que foram trazidos para

terras brasileiras durante o período escravista, a voz dos mais velhos mostra-se como

uma expressão de autoridade, pois os mais velhos são os que mais viveram e por isso

lhes são atribuídos maiores conhecimentos das coisas da vida, dentre as quais da

natureza e do sobrenatural. Lembramos aqui que em muitas sociedades africanas a vida

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religiosa e a vida cotidiana imbricam-se de modo que em pouco ou nada se distinguem

uma da outra.

A longevidade, segundo Luz (2000), na maior parte das culturas tradicionais

africanas, é prova de que a pessoa tem agido de forma correta consigo mesma, com a

comunidade, com a natureza e com o sagrado, no que tange a sua saúde física, moral e

psicológica, pois passou por diversos processos iniciáticos que lhe permitiram adquirir

maior sabedoria. Neste sentido, a própria longevidade é fato que corrobora a sabedoria

no viver do ancião.

Ser ancião é um status que confere a este poder entre as pessoas da comunidade.

Marco Aurélio Luz vai buscar na construção do termo nagô que designa “pessoa forte”

o sentido ao qual se refere o termo: “O conceito nagô de pessoa forte, com grande

poder, é ‘agbara’, que quer dizer ‘agba’ = velho, ancião, e ‘ara’= corpo.” (LUZ, 2000,

p.93). Sobre a ancianidade entre comunidades africanas, Marco Aurélio Luz afirma:

Quanto mais velho institucionalmente o indivíduo, isto é, mais tempo

e ocasiões teve para incorporar axé e sabedoria através dos processos

iniciáticos, maior saber e poder deterá nas sociedades africanas (LUZ,

2000, p. 93)

Levando para o mundo da capoeira, afirmam os capoeiristas que quanto mais

tempo de capoeiragem tem o mestre, maior será seu conhecimento e prática dos

fundamentos, com isso maior sua autoridade no mundo da capoeira, tanto no âmbito da

roda de capoeira quanto na “roda da vida”, sobre a qual falaremos mais adiante ao

tratarmos do princípio da “força vital” e da “circularidade”. Percebemos então a relação

da ancianidade, valor que explica em muitos casos a reverência que se tem aos mais

velhos, atribuindo-lhes a estes sabedoria e conhecimento, supostamente acumulados por

suas experiências ao longo da vida. No mundo da capoeira este valor se faz presente

quando, semelhantemente ao status do ancião, por alusão, pode ser atribuído status aos

mestres de capoeiras mais velhos.

Uma manifestação deste princípio no mundo da capoeira se faz notar através da

relação de respeito e reverência entre o discípulo ou aluno e seu mestre. As aulas ou

treinos e as rodas, bem como as conversas informais, em contexto relacionado à

capoeira, são momentos nos quais nota-se que a figura do mestre é constituída desta

autoridade. Estes são momentos fundamentais na formação prática, teórica e filosófica

do capoeirista. Essa autoridade do mestre vem da compreensão incorporada do princípio

em questão. Neste caso, vale destacar que o mestre é aquele “mais velho

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62

institucionalmente40

”, pois hoje é comum pessoas de idade mais avançada que o mestre

praticarem capoeira como alunos de um mestre que é mais jovem em termos de idade.

Um outro valor com o qual se relaciona o princípio da ancianidade é o princípio

da expansão da linhagem. A este princípio também se engendra a questão do casamento

poligâmico, comum em muitos grupos africanos, mas o qual não houve continuidade na

cultura afro-brasileira. Do mesmo modo que em algumas comunidades africanas, é de

importância vital que o homem tenha uma descendência numerosa, com vistas a garantir

a continuidade da sua linhagem, no que compreende sua memória e suas tradições. O

mestre de capoeira pretende através dos seus discípulos perpetuar sua filosofia, sendo

lembrado pelas novas gerações de capoeiristas. Deste modo, a expansão da linhagem

também diz respeito à ancestralidade, pois serão os discípulos que manterão viva a

memória do mestre através dos ensinamentos e homenagens após a sua morte.

3.5 A ancestralidade

A ancestralidade ocupa lugar privilegiado na cosmogonia africana e afro-

brasileira, pois de acordo com Marco Aurélio Luz, sedimenta-se neste valor grande

parte do conhecimento sobre o axé e a origem do seu grupo. Interliga-se a outros valores

dentre os quais, a religiosidade, a memória e a oralidade, fundamentais para que ocorra

a transmissão do conhecimento e da cultura, bem como as criações e recriações das

tradições afro-brasileiras.

Ao mais velho cabe a missão de transmitir aos mais novos sua sabedoria e sua

experiência de vida, também aos primeiros é confiada a missão de manter viva a

memória dos ancestrais. O ancestral é uma pessoa da família que deu origem ao grupo,

este antepassado, de destacada importância para o grupo, mesmo depois da sua

passagem para o Orum41

, ainda participa da vida do grupo ao ser consultado nos jogos

divinatórios e em outros rituais específicos. À ideia de ancestral, liga-se o

autoconhecimento, à ideia de origem, deste modo, à identidade, ao passado e ao nosso

futuro.

40

Mintz e Price, definem instituição como “qualquer interação social regular ou ordeira que adquira um

caráter normativo, e por conseguinte, possa ser empregada para atender a necessidades reiteradas.” (2000,

p. 43). No parágrafo anterior, a instituição a qual se refere Marco Aurélio Luz, é a instituição religiosa,

que no contexto africano está imbricado com muitas das suas dimensões (LUZ, 2000, p. 93). 41

Orum pode ser compreendido como o mundo dos mortos ou de espíritos ancestrais, os egunguns.

.

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63

3.6 O axé

Podemos entender o axé ou “princípio da força vital” se relacionado diretamente

com oralidade, à ancestralidade e à circularidade a partir do que observa Luz (2000),

com base no pensamento do Mestre Didi (Deoscoredes M. dos Santos).

Axé é um conceito que exprime a idéia de forças circulantes capazes

de engendrar a criação e a expansão da vida. Ele implica na idéia de

restituição que se concretiza através do conceito de ebó, isto é,

oferenda ou sacrifício (Luz, 2000, p.32)

A força vital é conhecida entre os povos de origem Banto como “muntu” e “axé”

entre os Nagô e Yorubás. O axé, termo mais conhecido no Brasil, refere-se ao princípio

da força vital que rege a vida em suas diversas manifestações. É a força que vem do

mundo sobrenatural e permeia todas as formas de vida e tudo o que alimenta a vida.

Deste modo, a terra, o fogo, o metal tem seu axé, o homem, a mulher, a criança também

tem seu axé, a palavra, a dança e a música também. (LUZ, 2000)

É o axé que permite a existência. Este se relaciona à oralidade ao investir a

palavra de vida e poder, conforme observamos nas palavras de Antônio Risério:

Traduzida literalmente a expressão significa: a enunciação que faz

(alguma coisa) acontecer. Ou numa tradução mais poética, a fala que

faz. Em yoruba, ‘afoxé’ significa encantamento, palavra eficaz,

formula mágica. (RISÉRIO, 2004).

3.7 A circularidade

O axé é compreendido como uma energia que funciona de forma dinâmica, ou

seja, ele ganha seu sentido pleno quando em circulação, deste modo a circularidade é

um princípio que permite a fluidez da força vital e que equilibra a vida. De acordo com

Leda Martins (2002) o movimento circular do axé estabelece o circuito entre “o tempo,

a ancestralidade e a morte” (MARTINS, 2002, p. 84). É o que faz uma geração celebrar

seus ancestrais e ter consciência de que será ancestral das gerações vindouras.

O círculo é percebido como uma formação espontânea de organização dos

indivíduos no espaço, disto vem a roda de capoeira, de samba, de conversa. É uma

forma que propõe que todos se vejam e interajam.

A circularidade permite a transformação das forças e o retorno destas. Também

pode ser percebida nos movimentos das danças, no corpo inteiro, mas, sobretudo nos

ombros e no movimento dos braços em espiral. Na capoeira vemos a circularidade na

“volta no mundo”, quando o capoeirista caminha em círculo dentro da roda

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64

cumprimentando seus participantes, no aú42

, dentre outros golpes que aludem a

circularidade.

3.8 A musicalidade

Lembrando que o próprio corpo humano é por si um instrumento musical, daí o

pulsar do coração, as palmas, os assobios, o estalar dos dedos, percebemos que a

musicalidade é um valor intrinsecamente humano que varia de acordo com o

relacionamento do grupo com a música, ou seja, do modo como a música é inserida na

vida de dada cultura. Todas as culturas têm entre suas manifestações um repertório de

músicas executadas em ocasiões especiais, relacionadas aos eventos religiosos e sociais,

ou ao menos cantaroladas em um momento corriqueiro.

Entre muitos dos grupos tradicionais africanos e seus descendentes não poderia

ser diferente. Nestas culturas a música estabelece relação sobremodo com a

corporeidade e com a circulação da força vital, o axé. Segundo Azoilda Loretto

Trindade (2005), esta musicalidade é caracterizada principalmente por ser de tradição

oral, pela presença marcante do canto, por estar relacionada aos acontecimentos da vida

cotidiana e por ser notadamente uma musicalidade associada à corporeidade, ao

movimento, pois o próprio ritmo da música impele o corpo a uma performance.

A musicalidade é considerada por Trindade (2005) como um valor afro-

brasileiro que está em permanente interação, justificando que a presença da música e da

movimentação do corpo são fundamentais em muitas manifestações dessa cultura, e se

estabelecem como condições sem as quais não pode existir, em seu sentido pleno, as

comemorações da vida social, os cultos religiosos do candomblé ou a roda de capoeira.

Os valores culturais afro-brasileiros fazem parte não somente do mundo da

capoeira, mas de inúmeras outras manifestações culturais afro-brasileiras. Percebemos

que estes valores não se encontram ou atuam isoladamente uns dos outros, mas

perpassam-se e interagem uns com os outros. Estes valores fazem-se presentes em um

sem número de culturas, contudo seus símbolos e significações são estabelecidos de

modos diferentes em decorrência das marcas históricas, sociais e da formação da

42

O aú é um dos movimentos básicos e mais conhecidos da capoeira e pode ser realizado na entrada no

jogo propriamente dito, com na “saída de aú” ou combinado com outros golpes. O aú consiste realizar um

meio giro lateral com todo o corpo, apoiando o corpo com as mãos no chão e girar com as pernas para

cima sobre o corpo, caindo com os pés no chão. Na modalidade angola, as pernas no ato do giro

encontram-se flexionadas, enquanto na regional as pernas ficam retas.

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própria cultura que envolve uma série de construções de ordem simbólica, afetiva e

mitológica que representam os indivíduos e fazem com que estes se reconheçam.

No universo da cultura afro-brasileira, os contextos da diáspora, da escravidão,

das desigualdades e do racismo presentes, somam-se aos valores civilizatórios de

origem africana que atuam como referência na formação das identidades construídas

pelos africanos e afrodescendentes.

CAPITULO 4

MESTRES, CAPOEIRISTAS E CANTIGAS DE CAPOEIRA

EM SALVADOR

Neste capítulo apresentamos a metodologia do trabalho de pesquisa e a análise

das cantigas de capoeira apresentadas em um quadro de categorias e subcategorias,

elaborado com base na noção de representação social. Realizamos, fundamentalmente,

uma abordagem qualitativa de modo a apreender o que as cantigas de capoeira revelam

sobre a identidade afro-brasileira. Foram utilizados como instrumentos de coleta de

dados a observação participante e entrevistas semi-estruturadas. Participaram da

pesquisa seis mestres de capoeira e coletamos cerca de oitenta cantigas. Apresentamos

os perfis dos capoeiristas entrevistados e algumas impressões colhidas nas visitas e

participações em aulas de capoeira. Além disso, verificamos nas cantigas a integração e

a expressão da cosmovisão, dos princípios e valores afro-brasileiros. Deste modo,

através de categorias que estabelecemos, analisamos trechos das cantigas, confrontando

e apresentando mais cantigas do que se analisássemos uma cantiga por categoria. De

qualquer forma, trazemos nos anexos as cantigas na íntegra, tanto as que utilizamos

como exemplos quanto as que nos forneceram parâmetros para a análise, contudo não

foram citadas no texto.

No que diz respeito à escolha em trabalhar com a teoria e a metodologia das

representações sociais, como embasamento teórico-metodológico para a análise das

cantigas de roda de capoeira, consideramos o fato de que esta teoria considera que o

conhecimento da realidade se constrói a partir das vivências diárias, envolvendo, assim,

o estudo do senso comum. Além disso, oferece-nos a possibilidade de trabalhar com as

cantigas de capoeira como elementos como construção e expressão das representações

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elaboradas pelos próprios capoeiristas sobre si mesmos, a partir das suas experiências

como sujeitos sociais inseridos em dado contexto. Neste sentido, podemos observar que

as “representações sociais são uma estratégia desenvolvida por atores sociais para

enfrentar a diversidade e a mobilidade de um mundo que, embora pertença a todos,

transcende a cada um individualmente” (JOVCHELOVITCH, 1994, p. 81) ou ainda

que:

Tal privilegiamento (em estudar o senso comum) pressupõe uma

ruptura com as vertentes clássicas das teorias do conhecimento

anunciando importantes mudanças no posicionamento quanto ao

estatuto da objetividade e da busca da verdade. Trata-se ao nosso ver,

de inserir o estudo das representações sociais entre os esforços de

deconstrução da retórica da verdade, (IBANEZ, 1991), componente

intrínseco da Revolução Científica que inaugura a modernidade nas

sociedades ocidentais (SPINK, 1994, p. 118 - 119).

Trabalhamos com a perspectiva fornecida pela teoria das representações sociais,

que nos permite melhor compreender e analisar aspectos da construção social da

realidade do capoeirista, mais precisamente do sentido da identidade cultural afro-

brasileira formulada no universo da capoeira, e da compreensão que os próprios sujeitos

capoeiristas elaboram sobre si mesmos e sobre a capoeira. Assim, a metodologia

fornecida pela teoria das representações sociais contempla as necessidades da pesquisa,

que procura pensar nas cantigas de capoeira, salientando que estas são pensadas tanto

como produção dos capoeiristas, quanto como fonte de informação sobre estes. Deste

modo, para fins do nosso estudo, a noção de representação social tanto como

metodologia quanto teoria, mostra-se eficiente ao ser aproximada das concepções dos

Estudos.

4.1. A observação direta

As observações se iniciaram em novembro de 2009 e se encerraram em abril de

2011, tendo maior concentração e assiduidade a partir de 2010, com frequência mensal.

Cada observação durava o tempo da roda ou treino, tempo que não é fixo, algo em torno

de duas horas. As observações aconteceram em diversos espaços, pois buscamos

mestres de capoeiras de perfis diferentes, logo, que ocupam espaços distintos. As turmas

são formadas por alunos de faixas etárias diferentes e com objetivos diferentes, do

mesmo modo os mestres possuem diferentes formas de ensinar a parte musical da

capoeira. Observamos aulas realizadas nos pátios da Universidade Federal da Bahia, no

Terreiro de Candomblé Awzizii Junçara, em associações e academias. Nestas aulas foi

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possível perceber que a frequência de música, instrumentos musicais e canto nas aulas

de capoeira, varia conforme o planejamento do mestre ou, no caso da Federação

Internacional de Capoeira Angola (FICA), conforme dias e horários previstos, e no caso

do Mestre Pelé da Bomba, conforme a solicitação do aluno. Isto porque as aulas de

capoeira do Mestre Pelé da Bomba ocorrem no Pelourinho, e tem um grande fluxo de

turistas, que, muitas vezes, reorientam o planejamento das aulas do referido mestre.

A observação esteve centrada nas letras das cantigas, nos toques e na

participação dos componentes da roda. Foi observado que existem cantigas específicas

dos grupos, contudo os refrões e as louvações são muitas vezes conhecidos, adaptados

de outras cantigas de capoeira. Também foi observado que as sequencias das cantigas

são mantidas durante as rodas, mas nem todas encerram com o samba de roda abrindo a

participação dos observadores. Na roda de capoeira, o jogo inicia-se com a execução da

ladainha, que é um canto de ritmo lento. Nem sempre é cantada, podendo ser em

algumas rodas apenas o toque do berimbau. Esta é tocada antes do jogo propriamente

dito. Na música vocal quando executada na roda, é a hora de render homenagens aos

mestres e a ancestralidade negra, rememorar a história da origem afro-brasileira, a terra

dos antepassados, como indica a cantiga de Mestre Burguês, transcrita a seguir:

Negro vinha de Luanda

Não sabia qual era o seu destino

Saudade das suas mulheres

Da sua terra e dos seus filhos

Da terra onde há liberdade

Era um nascer de um novo dia

Lá não existia escravidão

E o negro não sofria

Vai, vai, vai pra Luanda

Vem, vem, vem de a Luanda/ Mestre Burguês

(in. KUBOHARA, 2009. p. 74).

Destaco aqui que normalmente as cantigas de capoeira que se referem às terras

africanas, evocam a ancestralidade, a terra dos ancestrais e como regra, é cantada como

um local idealizado, onde não havia sofrimento, guerras, escravidão, nem necessidades.

As chulas são os cantos que se seguem após a ladainha e a louvação, e, segundo

Biancardi (2006), reporta a elementos culturais e a contextos históricos, regionais ou

locais, enquanto as quadras, executadas nas rodas de capoeira regional, como o próprio

nome diz, são cantos formados por quatro versos rimados, executados após as chulas e

seguido pelos corridos. Estes últimos, os corridos, são canções de ritmo acelerado e

como as quadras, também cantadas com coro. Podem ter como tema a narrativa de fatos

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da vida cotidiana como podem trazer em sua letra uma intenção posicionada e crítica

acerca da História do negro no Brasil, como na letra transcrita a seguir: Onde está a

liberdade?

Onde está a liberdade?

Se a algema não se quebrou

O negro quer felicidade

O negro também quer ser doutor

Princesa Isabel, Princesa Isabel

Liberdade do negro só está no papel

Princesa Isabel, Princesa Isabel

Liberdade do negro só está no papel

(KUBOHARA, 2009. p. 160)

4.2 As entrevistas e os sujeitos da pesquisa (capoeiristas)

Com a finalidade de melhor compreender os aspectos relacionados ao universo

da capoeira, e o significado de suas cantigas, tomamos por base entrevistas realizadas

com seis mestres/professores de capoeira de Salvador. Por um lado, estes mestres

apresentam perfis distintos, no que diz respeito aos objetivos do grupo do qual fazem

parte, quanto à localização dos espaços onde ocorrem as aulas, o público (alunos) que

atingem, faixa etária, etc. Por outro lado, convergem em relação ao sentido que, em

geral, atribuem à capoeira, à expressão da identidade cultural afro-brasileira, às

representações sociais que constroem sobre si, como sujeitos da cultura afro-brasileira, e

ao uso que fazem das cantigas de capoeira como forma de expressão de ideias e

sentimentos.

Os seis mestres entrevistados atuam na cidade de Salvador, no Centro Histórico

de Salvador (Pelourinho), na Avenida Carlos Gomes (Centro), nos bairros da

Federação, da Cidade Nova, de Cosme de Farias e da Massaranduba. Todos os

entrevistados são do sexo masculino, com idades entre 35 e 77 anos, com média de 30

anos na prática da capoeira, com iniciação na infância. Exceto mestre Marcelo de João

Pequeno que foi iniciado aos 30 anos.

O Mestre Dnei Gingarte (Elinei Jorge Santa Rosa) é discípulo do Mestre Um por

Um. Iniciou na capoeira aos sete anos, jogando capoeira de rua. Atualmente, com 28

anos de capoeira, atua há cinco como mestre no bairro da Cidade Nova. Neste bairro,

fundou a Associação Gingarte Cultural de Capoeira Angoregional (AGICUCAR) da

qual é presidente. Mestre Dinei também desenvolve trabalho como arte-educador na

Escola Municipal da Cidade Nova.

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A entrevista com o Mestre Dinei foi realizada na sede da AGICUCAR, depois

de alguns dias de observação das aulas de capoeira ministradas neste espaço, duas horas

antes do início dos treinos que ocorrem as segundas e quartas-feiras. Foi possível

observar que a maior parte dos alunos é formada por crianças na faixa de seis a 14 anos,

com a presença de poucos adultos com idades entre 30 e 40 anos. Apesar das diversas

conversas sobre a capoeira, as cantigas e a didática dos mestres, firmadas durante as

visitas anteriores, este mestre se mostrou pouco a vontade durante o momento da

entrevista. Talvez por saber que estava sendo gravado em áudio. Foi observado que

houve, talvez por esse motivo, grande preocupação, não somente com a escolha das

palavras, como também com as pronúncias destas, e seus gestos pareciam mais contidos

que o habitual.

O Mestre Valdec (Valdec Sidnei Santos Cirne) tem 38 anos de idade e 29 de

capoeira e aos 18 já dava aulas de capoeira como treinel43

. Lembra-se de ter sido

considerado como “o mais novo dos velhos mestres e o mais velho dos novos”. Iniciou

na capoeira junto ao Grupo Filhos de Angola, em 1982, como aluno do Mestre Roberval

e do Mestre Laércio, aos nove anos de idade. Comentou na entrevista que as aulas

aconteciam no Colégio João Pedro, na Avenida Bonocô. Em 27 de Outubro de 1997

fundou o Grupo Bantu de Capoeira Angola, atualmente com dois núcleos em Salvador,

localizados no Pelourinho e em Cosme de Farias; dois núcleos na Alemanha, em Berlim

e Mainz; outro núcleo na Colômbia, em Bogotá, e um nos Estados Unidos, no Estado do

Michigan. O Mestre Valdec não tem a capoeira como única atividade pois também é

professor, trabalhando na Associação de Ensino Social e Profissionalizante (ESPRO) e

no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) e tem também uma

microempresa de organização de eventos e consultoria. Atualmente termina o Curso de

Gestão de Eventos na Unifacs.

A entrevista foi realizada na sede da Associação Cultural de Preservação do

Patrimônio Bantu (ACBANTU), localizada no Centro Histórico de Salvador,

Pelourinho. A entrevista correu bem. O Mestre Valdec estava seguro, como esteve em

todas as vezes que nos encontramos. Marcou seu posicionamento como um mestre

tradicionalista, em suas próprias palavras:

43

Treinel é a primeira graduação da capoeira angola. Designa aluno mais experiente, que domina em

nível básico os fundamentos da capoeira, os movimentos, os instrumentos e o canto da capoeira angola,

de modo que este aluno já pode dar aulas e assumir turma como treinel, mas ainda ligado ao nome do

mestre e sua academia.

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Nós temos alguns segmentos de capoeira angola aqui na Bahia. Isso é

bem segmentado. Então é assim, tem o segmento do qual eu faço parte

de capoeira angola, que é um pouco mais tradicionalista, então a gente

procura não só manter vivas não só as canções antigas, como também

compor em cima da tradição. […] E tem segmentos da capoeira

angola que são mais ligados às questões raciais, que eu até sou um

pouco ligado, mas que falam mais de religiosidade, falam mais de

questões atuais também, política etc. E tem um segmento que posso

falar de todo mundo, regional, contemporâneo, o que for que você

possa chamar, que eles fazem música aleatoriamente assim, que tenha

ritmo, que tenha alguma coisa a ver, eles pegam um assunto que tenha

a ver com o interesse, que pode ser uma música de axé e pode ser uma

música de capoeira. (Mestre Valdec, em entrevista concedida para a

pesquisa)

Mestre Marcelo de João Pequeno (Marcelo Maciel Cabral) iniciou na capoeira

aos trinta anos e teve convivência intensa com o mestre João Pequeno de Pastinha, seu

mestre. Hoje tem 56 anos de idade e 26 anos de capoeira. Seu grupo não tem nome, é

formado em sua maioria por alunos da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

graduandos, mestrandos e graduados. O espaço onde ocorrem os treinos é cedido pela

UFBA, no pátio das faculdades de Arquitetura, Farmácia e Biologia, e as aulas ocorrem

de segunda a sexta-feira.

Em suas aulas não faz uso de aparelho de reprodução de áudio. Normalmente, o

treino segue sem música. Apenas o treino dos movimentos e suas correções. Ao término

desta parte, o mestre arma44

o berimbau, e executa alguns toques da capoeira angola

enquanto os alunos em dupla treinam os movimentos. Suas cantigas são de feição

subjetiva e partem de experiências de vida, dramas pessoais e da observação do

contexto da roda. Nas palavras do mestre:

A pessoa tem que fazer suas próprias ladainhas, porque ladainha é

uma coisa muito particular. É uma coisa muito da pessoa, subjetiva

como dizem, não é? É muito de cada um mesmo. Você pode até cantar

a música de alguém e tal, até para prestar uma homenagem e tudo,

mas eu não gosto não, eu mesmo gosto de ter minhas ladainhas. Eu

vou cantando as minhas ladainhas. (Mestre Marcelo de João Pequeno

em entrevista concedida à pesquisa)

As cantigas são passadas nas conversas entre mestre e aluno, antes ou após as

aulas, nas rodas que fazem ou visitam junto como o grupo. Este mestre marca também

que é preciso de uma boa bateria e uma boa música para “se fazer um jogo realmente

bonito”, pois os jogadores que estão na roda buscam sincronia com a música que está

sendo tocada.

44

O mestre Marcelo costuma levar o berimbau desmontado em suas partes, cabaça, biriba e arame e o arma antes de tocá-lo, desmontando-o novamente antes de sair do local.

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Mestre Valmir Damasceno, iniciou na capoeira com o Grupo de Capoeira

Angola Pelourinho, como discípulo do Mestre Moraes. Atualmente, aos 45 anos de

idade e 29 de capoeira, é mestre da Fundação Internacional Capoeira Angola - FICA,

que tem núcleos em diversos países. Em Salvador, o local dos treinos está localizado na

Avenida Carlos Gomes, no Centro da cidade, onde realizamos a visita e a entrevista. O

corpo de alunos deste mestre é formado por adultos. Considerando que os horários das

aulas em sua maioria se concentram à noite, entre as 19h00 e 22h00 horas, e a

localização da Fundação, não favorecem a presença de crianças. As cantigas que são

cantadas em Salvador por esse grupo são também cantadas nos outros núcleos no

exterior. A Federação edita cadernos com suas cantigas, sempre em português.

No momento da entrevista o mestre Valmir tratava as biribas45

que seriam

usadas na confecção de berimbaus. Perguntei se preferiria remarcar a entrevista, mas ele

disse que não se incomodava. Embora estivesse com esta ocupação, o mestre Valmir foi

muito atencioso e, muitas vezes, deixava de lado a faca e a biriba de lado para

gesticular, ampliando a dimensão do que era falado. O mestre Valmir, embora tenha

diversos instrumentos de capoeira na sede da Fundação, prefere na hora do treino, dos

movimentos, fazer uso do aparelho de reprodução de áudio, um mp3, no qual tem

gravado tanto cantigas tradicionais dos grandes mestres da capoeira angola, quanto as

cantigas criadas pelo grupo da Federação. As aulas com os instrumentos são realizadas

segundo mestre Valmir, entre duas a três vezes por semana, ocupando uma parte da

aula. Faz questão que a disposição dos instrumentos esteja na mesma organização das

rodas organizadas pela FICA.

Mestre Pelé da Bomba, conforme suas próprias palavras, “apresentando a mim

mesmo: Eu me chamo Natalício Neves da Silva, eu nasci em 1934, conhecido hoje em

dia dentro da roda da capoeira como Mestre Pelé da Bomba.” (Mestre Pelé da Bomba

em entrevista concedida à pesquisa). Iniciou na capoeira por volta dos nove anos de

idade como aluno do mestre Bugalho, nas aulas que aconteciam “na rampa do Mercado

Modelo. O Mercado Modelo velho, não o novo. Antes de incendiar” (Trecho da

entrevista do Mestre Pelé da Bomba concedida durante a pesquisa). Seu nome de

capoeira vem da profissão que exerceu até ser aposentado, bombeiro. Como bombeiro e

capoeirista, chegou a ensinar a capoeira a seus colegas de quartel e lembra-se do dia em

que ajudou a combater a um dos incêndios que ocorreu no Mercado Modelo, local onde

45

Biriba é a madeira mais indicada para fazer berimbaus, pois se permite arquear sem quebrar com a

pressão do arame e resiste melhor ao tempo sem rachar.

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aprendeu a jogar capoeira. Hoje aos 77 anos e faltando pouco para completar 70 anos de

capoeira é considerado um dos mestres mais antigos da Bahia. Possui uma academia no

Forte da Capoeira, no bairro de Santo Antônio Além do Carmo e uma que funciona no

Pelourinho, no primeiro andar da sua loja de produtos e lembranças da Bahia. O quadro

de alunos do Mestre Pelé é bem diversificado, principalmente na academia que funciona

no Pelourinho. Ele tem turmas formadas por crianças que moram no entorno, turmas

formadas por adultos que vivem em Salvador, e turmas formadas por turistas.

Mestre Pelé da Bomba não faz uso de CD ou outro tipo de aparelho de

reprodução de áudio em suas aulas. A aula de movimentos é orientada enfatizando os

golpes e contragolpes, as defesas e o gingado, bem como o nome de cada um dos

movimentos. Nas aulas de instrumento, que ocorrem separadamente às aulas de

movimento, o mestre ensina os toques e as cantigas através da demonstração do mestre

e repetição do aluno. As cantigas são passadas de modo semelhante, quando o mestre

canta e a turma entoa o coro, e com o passar do tempo os alunos mais experientes

podem cantar as cantigas e tocar o gunga.

Bambam Capoeira é como é conhecido Idelvan Barbosa da Silva no mundo da

capoeira. Nascido no Piauí tem 38 anos de idade e 30 de capoeira. O Mestre Bambam

Capoeira é responsável pelo núcleo da Escola de Capoeira Filhos de Bimba no bairro de

Massaranduba onde desenvolve um trabalho com crianças carentes do bairro através do

Projeto Capoerê. Seu primeiro contato com a capoeira foi aos oito anos em Teresina –

Piauí e a partir de então manteve sempre contato com a capoeira. Aos 18 anos entrou

para o Exército onde continua trabalhando como oficial. Por este motivo mudou de

cidade algumas vezes e em cada lugar que era designado a ir buscava se integrar em um

grupo de capoeira, assim praticou com vários mestres de diferentes modalidades de

capoeira (abada, senzala46

, regional). Em 1998, foi formado pelo Grupo de Capoeira

Filhos de Bantu em Corumbá – Mato Grosso do Sul, com o Mestre China. Mestre

Bambam Capoeira pondera ao dizer que “a todos tenho como referência, mas em

especial ao mestre Garrincha que hoje me fez entender mais um pouco o que significa

ser capoeira regional.” Após dez anos de capoeira regional, o Mestre Bambam Capoeira

formar-se-á novamente em 2012 como discípulo do Mestre Garrincha, pela Filhos de

Bimba.

46

São novas modalidades de capoeira que surgiram posteriormente às modalidades regional e angola.

Trazem algumas diferenças práticas e teóricas, mas em si, também são compreendidas como capoeira.

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73

Além de oficial do Exército, o mestre Bambam Capoeira também é bacharel em

contabilidade, de modo que a capoeira para este mestre não é vista como principal

ocupação. O Mestre Bambam Capoeira considera as cantigas de grande importância

para a transmissão da História e dos fundamentos da capoeira. Faz uso do CD em suas

aulas e diz que na capoeira regional os discípulos são orientados a sempre seguir os

fundamentos da capoeira inclusive na parte musical.

4.3 As categorias de análise

O estabelecimento das categorias teve por objetivo sistematizar a análise das

cantigas de capoeira, no tocante aos aspectos referentes à compreensão da sua produção,

transmissão e recepção, considerando que pretendemos conhecer o que o capoeirista,

autor das cantigas, procura intencionalmente ou não expressar em termos de conteúdo e

ideologia, principalmente no que diz respeito à identidade cultural afro-brasileira.

Procuramos também identificar temáticas abordadas nestas cantigas e seus

modos de transmissão, assim como estas são trabalhadas pelos mestres no ensino da

capoeira e como são recebidas pelos discípulos e alunos. Em Salvador, considerada

entre os capoeiristas como “a Meca da capoeira”, cidade que possui número expressivo

de afrodescendentes, buscamos conhecer quais são os valores culturais afro-brasileiros

intencionalmente transmitidos nas cantigas de capoeira; o que da História do negro no

Brasil é passado por meio das cantigas; quais as representações sociais que estas

cantigas produzem e reproduzem, com base nessas questões estabelecemos as categorias

de análise.

CATEGORIAS SUBCATEGORIAS

1. Valorização da identidade cultural

afro-brasileira

1.1 Valores afro-brasileiros

1.2 Tradição

2. Pessoas de referências 2.1 Mestres

2.2 Heróis

3. Elementos do mundo da capoeira 3.1 Ginga

3.2 Instrumentos

3.3 Fundamentos

4. O Espaço 4.1 Bahia

4.2 Brasil

4.3 África

4.4 Angola

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5. Narrativas 5.1 História do negro

5.2 Experiências e causos

6. Definições sobre a capoeira 6.1Esporte

6.2 Arte

6.3 Luta

6.4 Cultura

6.5 Ritualidade

4.4 A análise das cantigas

A roda está formada e a bateria a posto. Dois capoeiristas agachados ao pé do

berimbau se concentram para ouvir a música que vai começar. Primeiro o gunga soa

com o lento toque de Angola, antes do início dos primeiros versos da ladainha. O

cantador, normalmente um mestre ou aluno mais experiente que canta com a

autorização do mestre, envia um único e sonoro grito: Iê! Este é o aviso que a parte

cantada da ladainha vai começar.

De acordo com o Mestre Marcelo de João Pequeno, as ladainhas são

composições de ordem pessoal e subjetiva. Conforme podemos observar na cantiga

composta pelo referido mestre, que trata de dois fatos que marcaram sua vida. Um

marcou a sua infância, foi a morte prematura do seu pai. O outro fato foi ter conhecido o

Mestre João Pequeno de Pastinha, a quem adotou como pai. Mais um aspecto que pode

ser notado nesta cantiga, diz respeito à capoeira como recurso que trabalha a autoestima

do praticante.

Quando eu era pequeno

Gente de pouca idade

Eu não tinha nem dois anos

Conheci a fatalidade

O meu pai foi para o trabalho

Não sei bem o que aconteceu

Mas vi minha mãe chorando:

“Filho o seu pai morreu”

Me criei no sofrimento

No meio de uma escuridão

Quanto mais eu me aprumava,

mais caia pelo chão

Uma criança tão pequena

vivendo sem ter paz

E um homem tão adulto

chorando a falta do pai.

Mas um dia fui crescendo

aprendendo a brincadeira

Conheci João Pequeno

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que é grande na capoeira.

E eu entrei na capoeira

prá aprender como se dança,

Tocando meu berimbau,

mostrando que eu também sou bamba,

meu camaradinho.

Viva meu Deus, Iê, viva meu Deus camará…

Iê viva meu mestre…

Iê, viva meu mestre camará…

Iê viva meu pai, Iê viva meu pai camará...

A capoeira

A capoeira camará...

Grande parte das cantigas da capoeira surge no improviso, e, com o passar do

tempo, o mestre vai incorporando os versos daquele momento ao seu repertório, até que,

memorizados, o mestre canta outras vezes em outras rodas e é aprendida por outros

capoeiristas. Como nos conta o Mestre Pelé, em entrevista sobre fatos que aconteceram

em sua mocidade, e, transformados em cantigas, são hoje cantados em outras rodas.

A cantiga a seguir é uma cantiga de improviso, na qual o cantador, no caso o

Mestre Valmir Damasceno, procurou demonstrar durante a entrevista como pode ser o

processo de criação de uma cantiga no momento da roda de capoeira, a partir de

elementos simples que surgem no contexto:

Eê!

Hoje é uma sexta-feira,

Hoje é uma sexta-feira,

Olha lá, dia de São Pedro

Olha vinte e oito de junho

Aqui viemos lembrar

Vim trazer a capoeira

De um momento eu vou lembrar

Olha lá cheguem amigos

É hora de celebrar

Berimbau marcou angola

Olha o médio a inverter

A viola chegue chorando

Olha lá nós vamos ver

Meu camarado chegue aqui

Agora vamos jogar

Olha lá jogo da vida

Jogo de angola

Olha lá chegue aqui

Camará

É hora nós vamos lá

Câmara.

(Mestre Valmir Damasceno)

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Percebe-se também, de modo marcante, em muitas dessas cantigas, o objetivo de

educar e consolidar na memória fatos relacionados à História do homem negro no

Brasil. Destacam-se também as cantigas de temas relacionados à História da capoeira e

da luta contra a escravidão. Contudo, cabe alertar que as músicas da capoeira nem

sempre revelam fatos históricos comprovados, podem algumas vezes contar histórias de

personagens reais, porém com muito de criação popular, em outros casos podem

corroborar equívocos e criar ou reafirmar estereótipos.

4.5 Valorização da identidade cultural afro-brasileira

A valorização da identidade cultural afro-brasileira, como veremos, está

expressa em grande parte das cantigas da capoeira. Muitas vezes percebemos que esta

valorização se dá através da oposição preconceito “racial” – História. Podemos verificar

na cantiga do Mestre Ezequiel, discípulo do Mestre Bimba, que diz:

Às vezes me chamam de negro

Pensando que vão me humilhar

Mas o que eles não sabem

É que só me fazem lembrar

Que eu venho daquela raça

Que lutou pra se libertar

Que eu venho daquela raça

Que lutou pra se libertar

Que criou o maculelê

Que acredita no candomblé

Que tem o sorriso no rosto

A ginga no corpo e o samba no pé

Que tem o sorriso no rosto

A ginga no corpo e

o samba no pé

Que fez surgir de uma dança

Uma luta que pode matar

Capoeira, arma poderosa

Luta de libertação

Brancos e negros na roda

se abraçam como irmãos

(Mestre Ezequiel)

Deste modo, podemos perceber na cantiga apresentada que o preconceito não é

ignorado pelo compositor, pois parte de experiências concretas do autor com a

discriminação. Neste aspecto, a cantiga também faz uma denúncia. O preconceito é

mostrado como primeiro elemento, e isso não pode ser negligenciado, pois é a partir da

colocação “às vezes me chamam de negro/ Pensando que vão me humilhar” que se

desenvolve a cantiga. O preconceito como algo que se apresenta no cotidiano. “Às

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vezes” entende-se como algo corriqueiro, que acontece sem dar importância à sua

periodicidade. A intenção de chamar “de negro,” com a finalidade de humilhar, reflete a

ignorância de quem o faz. No caso da cantiga o autor marca a intenção de humilhar, por

associar o “chamar de negro”, assim percebemos ideias e imagens pejorativas, oriundas

da convivência com constructos sociais racistas, e a manifestação da ignorância de

quem o faz.

“Mas o que eles não sabem/ É que só me fazem lembrar / Que eu venho daquela

raça/ Que lutou pra se libertar.” Embora aqui se apresente a ideia de raça, não se trata de

uma referência ao conceito biológico de raça, mas ao sentido de raça como uma

construção social o qual ainda hoje pode ser encontrado nas Ciências Sociais, ou

conforme adverte Munanga “Os conceitos de negro e de branco têm um fundamento

etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico.” (MUNANGA,

2004, p. 52).

Outro aspecto que podemos destacar nesta cantiga, que é recorrente em outras

tantas, relaciona-se à contestação da “abolição da escravatura” como fato ou evento

histórico que veio de fato a libertar os negros escravizados do Brasil. Nesta cantiga, esta

contestação pode ser encontrada nos versos: “Que eu venho daquela raça/ Que lutou pra

se libertar.” Encontramos em outras cantigas referências com a mesma tônica como a de

Rose Meire Sant’Anna Araújo, conhecida na capoeira como Speed, cujo trecho

destacamos:

A pesar de tanto sofrimento

O negro se libertou

Imperando sua alegria

Ensinando sua filosofia

Se alto afirmou.

(Rose Meire Sant’Ana de Araújo)

Sobre o 13 de maio e o fim da escravidão, lembra-nos Albuquerque e Fraga

(2006), “[…] os conflitos que ocuparam a política durante e depois do dia 13 de maio

denunciavam que, nem de longe a Lei Áurea encerrava a tensão “racial” que a

escravidão produzira“ (ALBUQUERQUE e FRAGA, 2006, p. 203). Vemos nestas

cantigas já o reflexo de uma tomada de consciência política que se estabelece como

fator essencial na construção das identidades culturais afro-brasileiras.

Os versos que se seguem na citada cantiga do Mestre Ezequiel, mencionam

outras instituições culturais criadas pelos africanos e afro-brasileiros como candomblé,

samba e maculelê, construindo uma imagem idealizada do afro-brasileiro, aquele “que

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acredita no candomblé/ Que tem o sorriso no rosto/ A ginga no corpo e o samba no pé”.

Ao falar da capoeira, também uma instituição de origem afro-brasileira, se expressa na

cantiga uma das suas ambiguidades: capoeira como dança e luta, assunto que trataremos

mais a frente.

Nos dois últimos versos deste corrido percebemos a intenção de apaziguar os

ânimos, visto que esta cantiga é uma resposta direcionada a quem usa pejorativamente o

termo “negro,” a fim de humilhar e constranger, expressando seu preconceito “racial”.

Por isso, termina a cantiga lembrando o que muitos mestres falam, que a capoeira aceita

a todos, independente de “raça” credo, cor. Ou seja, na roda de capoeira todos são

“camarados47

” independente das desavenças de outras ordens, por isso “brancos e

negros na roda/ se abraçam como irmãos”.

De modo geral compreendemos que todas as cantigas que procuram seguir os

padrões tradicionais destas cantigas, de certo modo se propõem à valorização da

identidade cultural afro-brasileira. Corrobora esta compreensão a cantiga intitulada “O

Japão disse que sim”, composta pelo capoeirista, estudioso e professor de capoeira que

atua no Japão, Shinji Kubohara, conhecido na capoeira como Liberdade.

O Japão disse que quer

O Japão disse que quer

O Brasil disse que dá uma arte mandingueira

Luta, dança, capoeira

Ela nasceu na senzala

Sua Meca é a Bahia

Mestre Bimba e Pastinha

Canjiquinha e Caiçara

Brincadeira de criança

Negro de sabedoria

Ela também é carioca

Malta, Zuma e pernada

Senzala e seu Camisa

Leopoldina, velha guarda

Foi prá terra da garoa

Expandiu pelo mundo agora

Ananias e Brasília

Paulo Gomes e Suassuna

Vamos dar a volta ao mundo

Vem vadiar com a gente camará

(KUBOHARA, 2009, p.74)

Nesta ladainha, desde o título, inspirado na cantiga dos mestres Canjiquinha e

Waldemar “O Brasil disse que sim”, o autor deixa claro o interesse do Japão, seu país de

origem, na pela capoeira. De modo breve, no tempo que cabe à cantiga, pode ser 47

Termo usado pelos antigos mestres da capoeira e ainda presente em muitas cantigas. É o mesmo que

camarada, conhecido ou companheiro.

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pontuada uma série de eventos que cruzam a capoeira e a identidade afro-brasileira.

Disto salientamos, a adoção da ladainha como estrutura da cantiga. A capoeira como

manifestação ambígua, concebida como luta e dança, de onde pode ser considerada a

sua mandinga; os versos, “ela nasceu na senzala” “brincadeira de criança/ negro de

sabedoria” fazem alusão ao início do processo de construção da capoeira como luta dos

negros escravizados, que muitas vezes precisaram disfarçar a capoeira em brincadeira.

Mostra assim a sagacidade do negro em dissimular a sua luta em brincadeira.

Compartilha da concepção de que a Bahia é o berço da capoeira; homenageia

grandes mestres da capoeira baiana. Em seguida chama a atenção para a importância do

Rio de Janeiro como cenário e contexto da capoeira, entre o final do século XVIII e

século XIX, quando atuavam as maltas de capoeiras lembradas principalmente pelos

Nagoas e Guaiamuns; recobra o nome de Zumba capoeirista (Anibal Burlamaqui),

carioca, que antes mesmo do Mestre Bimba sistematizou a capoeira em golpes que

misturava a capoeira ao batuque, e outros elementos da cultura afro-brasileira buscando

a sua esportização (REIS, 2000).

Fala das novas modalidades de capoeira como a Senzala, e a Abadá, cujo

principal nome é o Mestre Camisa. Mestre Leopoldina (Dermerval Lopes de Lacerda),

representante da velha guarda da capoeira carioca, teve um mestre carioca, chamado

Quinzinho e posteriormente outro mestre baiano, Arthur Emídio, baiano que migrou

para o Rio de Janeiro. Mestre Leopoldina faleceu em 2007, aos 74 anos, em São Paulo.

Outro grande mestre da capoeira e das tradições afro-brasileiras lembrado na cantiga de

Hubohara é o Mestre Ananias, baiano, considerado um dos precursores da capoeira

paulista, seguido pelo também baiano, Mestre Brasília, Paulo Gomes da Cruz, outro

mestre também considerado fundador da capoeira paulista, falecido 1998 aos 41 anos de

idade.

Depois de traçar um panorama da capoeira na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo,

fecha o ciclo trazendo para a cantiga o Mestre Suassuna, que chegou a ir para a terra da

garoa, mas voltou para a Bahia e hoje desenvolve seu trabalho com modalidade de

capoeira cordão de ouro, da qual é criador e principal representante.

Ao fazer uma ladainha com o uso de palavras recorrentes nas tradicionais

cantigas de capoeira, como “senzala”, “negro”, “volta ao mundo”, “camará”, “vadiar”,

reforça as evocações feitas ao falar dos mestres da capoeira por meio do qual estabelece

uma linha histórica do processo de criação e desenvolvimento da capoeira

(considerando a Bahia local de origem da capoeira), que é indissociável da construção

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da identidade cultural afro-brasileira. Contudo, nota-se nesta cantiga a presença de um

racionalismo e intencionalidade que não é percebida em muitas cantigas de capoeira,

sobretudo, nas cantigas nascidas de improviso compostas na Bahia.

Outro aspecto da identidade afro-brasileira comum nas cantigas da capoeira é a

religiosidade. Expresso em muitas cantigas, como o seguinte trecho do corrido que diz:

“Na roda de capoeira/ vou no pé do berimbau / Antes da volta do mundo / Faço pelo

sinal”. Deste modo, percebemos que na roda de capoeira a relação com a religiosidade

se faz presente também através de gestos performáticos, como o sinal da cruz ao entrar

na roda, um toque no chão, no nome do golpe “benção”. Nas cantigas notamos esta

relação, desde o início do ritual da roda, que é aberta por um gênero de cantiga chamado

“ladainha”, que na tradição católica trata-se de uma série de louvações em frases curtas

em honra de Deus, Nossa Senhora e outros santos. Na roda de capoeira a ladainha é

atentamente ouvida e não se joga durante sua execução, tem um toque mais lento e é

cantada solo, normalmente pelo tocador do berimbau gunga48

, com respostas do coro

formado pelos outros componentes da roda.

Nas cantigas mais tradicionais da capoeira, sobretudo as de autoria dos grandes

mestres, os quais já não se encontram no ayê,49

são ainda mais presentes as aclamações

aos santos católicos, como a cantiga que diz “Santa Maria mãe de Deus/ Cheguei na

igreja e me confessei/ Santa Maria mãe de Deus/ Cheguei na igreja me ajoelhei”.

Notamos aqui, além da aclamação à Santa Maria, também a performance católica de

entrar na igreja e ajoelhar em sinal de humildade e respeito ante ao santo, e o ato de

confessar, que revela um maior envolvimento com o universo católico, no âmbito de

cumprir com os sacramentos do catolicismo. Em outras cantigas notamos outras

reverências como em “Santo Antônio é meu protetor/ protetor da capoeira/ Santo

Antônio meu protetor/ Protetor do berimbau/ Santo Antônio meu protetor/” em que

expressa orações e pedidos.

A ideia de tradição é mais um aspecto-chave relacionado à identidade cultural

afro-brasileira, expressado nas cantigas de capoeira. Nas entrevistas e conversas,

pudemos observar que esta ideia tem grande relevo entre os capoeiristas, ao tratar da

produção das suas cantigas. Faz-se perceber a tradição como principal elemento que se

48

O gunga é o nome dado ao maior dos berimbaus. Este possui o som mais grave de todos. Os outros são

o Médio, de som intermediário e o Viola, cujo som é mais agudo.

49

Ayê, trata-se do plano onde estão os vivos, contudo é permitida a manifestação dos que já se foram para

o “Orum”, que pode ser compreendido como o mundo dos mortos ou de espíritos ancestrais, os egunguns.

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estabelece como referência e intenção do compositor em seguir os padrões dessa

tradição, tendo em vista que seu objetivo, não é somente animar a roda de capoeira,

como também dar continuidade a essa tradição, através dos ouvintes das cantigas. Ou

seja, há uma intenção de passar através da cantiga o discurso do compositor.

Através das entrevistas e conversas foi possível identificar duas vertentes de

compositores de cantigas de capoeira: uma que procura seguir os referenciais

tradicionais, em suas formas e temas, e outra linha que se mostra mais aberta a

incorporar novos elementos e temas contemporâneos. Sobre estes aspectos o Mestre

Valdec observa: “O segmento do qual eu faço parte, de capoeira angola, que é um

pouco mais tradicionalista, então a gente procura não só manter vivas as canções

antigas, como também sempre compor em cima da tradição.” (Mestre Valdec, em

entrevista concedida à pesquisa). Deste modo a tradição se faz notar nas cantigas de

capoeira através das modalidades (ladainha (angola), quadra (regional), louvação, chula

e corrido), das temáticas, das palavras usadas e referências. Podemos perceber este

apreço pela tradição através da cantiga de Nicolau Severin, intitulada “Ancestrais

africanos” cuja última estrofe destacamos: “Hoje canto capoeira/ Danço n’golo com

paixão/ Você pode ter certeza/ Disso eu não abro mão/ Muito duro foi o trabalho/ Prá

manter a tradição”50

.

Algumas vezes é atribuído às cantigas de capoeira papel equiparado aos

ensinamentos dos mestres, tomando-as como elementos responsáveis pela transmissão

dessa tradição. No caso dos antigos mestres como Waldemar, Bimba, Pastinha,

Canjiquinha, dentre outros, que foram grandes compositores e hoje não estão mais entre

nós, suas cantigas são relembradas e cantadas como modelo, tanto no aspecto formal,

quanto em relação aos seus discursos e conteúdos, de onde se pode extrair os

ensinamentos e fundamentos dos grandes mestres da capoeira.

Na cantiga “A Palma de Bimba”, composta por Mestre Itapoan, podemos

perceber a ideia de tradição através da ênfase dada ao ritmo das palmas. A cadência

“um, dois, três” é considerada uma tradição entre os regionais51

, discípulos do Mestre

Bimba. Perpassando esta cantiga, observamos também a questão da capoeira como

forma de educação e disciplina, bem como a forma de ensino adotada pelo mestre

Bimba. Deste modo, o capoeirista que incorpora os ensinamentos veiculados nas

50

Trecho destacado da ladainha intitulada “Ancestrais Africanos” de autoria de Nicolas Severin. Inscrita

no II Festival de música tradicional da capoeira da Coleção Emília Biancardi, ano 2008. 51

“Regional”, é um termo usado para designar os capoeiristas praticantes da capoeira regional. Esta para

o termo “angola” ou “angoleiro” que designa os capoeiristas adeptos da capoeira angola.

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cantigas, aprende o aspecto formal da cantiga, no que envolve a cadência das palmas, a

estrutura da quadra da capoeira regional,

A palma estava errada

Bimba parou outra vez

Bata esta palma direito

A palma de Bimba é um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três

(…)

A quadra estava errada

Bimba parou outra vez

Cante esta quadra direito

A palma de Bimba é um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três

A Iuna estava errada

Bimba parou outra vez

Não maltrate esta ave moleque

E a palma de Bimba é um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três

A ginga estava errada

Bimba parou outra vez

O ginga bonito moleque

E a palma de Bimba é um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três.

(Mestre Itapoan)

Percebemos o modo de educar através da oralidade, bem como o registro da

experiência feita na memória, acerca de como ensinar a partir do exemplo e da

corporeidade. Dentro deste universo simbólico, as cantigas não se limitam a transmitir

aspectos do jogo capoeira, mas adquirem sentido amplo, pensando na capoeira como

uma manifestação indissociável da cultura afro-brasileira.

Neste sentido, a cantiga de Ana Luiza Tomich nos oferece uma ideia do que é a

tradição da capoeira para os capoeiristas. Diz a última estrofe da cantiga:

[…]

Quem inventou a capoeira foram os escravos

E passou por gerações

Mestre Bimba e Pastinha

Não quebraram esta corrente

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Ensinaram para os mestres

E os mestres ensinam para a gente, camará...52

.

(Ana Luisa Tomich - Sereia)

De acordo com alguns mestres entrevistados, as músicas e cantigas devem seguir

os padrões fundados pelos grandes mestres, tais como Bimba e Pastinha, que por sua

vez, procuram nas experiências e nos modos de vida dos seus mestres e antepassados

africanos, inspiração para criar suas cantigas. Deste modo definimos a próxima

categoria de análise das cantigas de capoeira a qual está ligada às referências e ao

processo de ensino e aprendizagem, tanto da capoeira, quanto das cantigas.

4.6 Pessoas de referências

De modo geral, os objetivos e as temáticas das cantigas que encontramos,

principalmente nas ladainhas da capoeira angola e nas quadras da capoeira regional, têm

o notório intento de prestar homenagens aos grandes mestres da capoeira, como

Valdemar, Bimba e Pastinha; aos heróis da capoeira, como Besouro Mangangá; e a

personagens históricos significativos na luta pela liberdade do negro escravizado, como

Zumbi. Ao cantar fatos da vida dos mestres e heróis, busca-se assegurar que outros

capoeiristas também conhecerão a sua história. Isto pode ser compreendido como uma

forte manifestação da “ancianidade”, um valor afro-brasileiro que se faz presente no

mundo da capoeira através da reverência aos mais velhos. Esta reverência continua

mesmo após sua morte, quando se acredita, também na capoeira, que o ente passa a

habitar em uma outra dimensão, à qual o nosso corpo físico não tem acesso, tornando-

se assim um ancestral.

No mundo da capoeira é muito comum o aluno ou discípulo se referir e se alocar

à linhagem atribuída ao seu mestre. Por exemplo: Mestre Marcelo de João Pequeno,

discípulo de João Pequeno de Pastinha; Mestre João Pequeno de Pastinha, discípulo de

Mestre Pastinha. Deste modo, o aluno se localiza no mundo da capoeira através dos

referenciais dos mestres. Cumpre salientar, aqui que na capoeira, a linhagem é

percebida da mesma forma como é compreendida em algumas religiões de matriz

africana, como os candomblés. Conforme o conceito fornecido por Muniz Sodré (2002),

[…] linhagem, ou seja, o conjunto das relações de ascendência e

descendência regido por uma ancestralidade que não se define apenas

52

Trecho retirado da cantiga intitulada “Essa terra não tem dono” de autoria de Ana Luiza Lemos

Tomich, conhecida na capoeira como Sereia. A cantiga perticpou do II Festival de Música Tradicional da

Capoeira Emília Biancardi, em 2008.

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biologicamente, mas também política, mítica, ideologicamente. […]

Isto é precisamente linhagem: um grupo ao mesmo tempo real e

simbólico (SODRÉ, 2002, p. 74)

A linhagem ou ancestralidade na capoeira, pode também determinar as relações

de solidariedade e companheirismo que se estabelecem a partir de conversas entre

capoeiristas. É fato corriqueiro nas conversas de capoeiristas que acabaram de se

conhecer, esta localização com referência em sua “ancestralidade” no mundo da

capoeira. Esta localização vem carregada de referências, através das quais a conversa

flui e as defesas são erguidas ou desmontadas, inclusive tais referências podem

determinar a simpatia ou antipatia, levadas ao jogo propriamente dito, ou para as

cantigas de sotaque e improviso.

Deste modo, encontramos expressa na relação mestre-discípulo o valor afro-

brasileiro conhecido por “ancianidade”. Em conjunto com a ancestralidade, formam a

base dos referenciais pessoais na cosmovisão do capoeirista. Encontramos nas rodas e

eventos de capoeira aqueles que são atualmente intitulados de “grandes mestres da

capoeira”, referindo-se ao seu tempo de vivência e prática no mundo da capoeira.

Nestas ocasiões, o “grande mestre” é reverenciado e ocupa lugar de destaque na

bateria53

, geralmente tocando o gunga ou um dos pandeiros. Estes mestres se

diferenciam dos demais por serem mestres de outros mestres mais jovens, depositários

do seu legado prático, teórico e “filosófico”, ou seja, de concepção de mundo e

princípios morais e éticos na capoeira. Os grandes mestres e mesmo o mestre, deste

modo, são mais que uma referência para o discípulo, estes se tornam referência também

para outros capoeiristas.

Na capoeira, como em algumas outras instituições da cultura afro-brasileira, a

temporalidade é uma noção que expressa o processo de amadurecimento das

comunidades e dos indivíduos nas diversas esferas da vida social e cultural. Deste

modo, percebemos que se leva tempo para ser mestre e para ser capoeirista também.

Esta importância atribuída ao tempo está relacionada ao contato e às experiências no

mundo da capoeira, um cabedal de conhecimentos que se constrói a partir do contato e

das vivências.

Esta observação esteve presente nas falas de muitos capoeiristas com os quais

tivemos contato, através das muitas conversas e nas entrevistas com mestres e

capoeiristas de Salvador. Citamos aqui como exemplo a fala do Mestre Valmir: 53

Bateria é o nome que se dá ao conjunto musical da capoeira. Esta é composta de agogô, atabaques,

berimbaus e pandeiros.

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Menino quem foi teu mestre? Se você não tem história você não sabe

o que falar, não sabe o que cantar, porque você deu um passo maior

que a sua perna... eu costumo dizer que prá você crescer leva tempo...

Eu levei nove meses prá nascer, uma média de nove meses para

começar a andar, eu levei mais quatro depois desses nove messes para

começar a falar e levamos quarenta, vinte anos para chegarmos onde

nós estamos, então prá que essa pressa prá determinadas coisas? E ai?

É uma coisa que precisamos tomar cuidado para que a capoeira não se

perca. Porque hoje para eu e você ser capoeirista, você precisa ter uma

condição e só adquire isso com o tempo, porque isso está aliado à

experiência de vida. (Mestre Valmir em entrevista concedida à

pesquisa)

Por isso devemos considerar que existem muitos motivos para se aprender

capoeira, de modo que o objetivo e o interesse do aluno influenciam no relacionamento,

não somente com o mestre, mas também com todo o mundo da capoeira. Deste modo,

salientamos aqui, que muitos paralelos estabelecidos nesta pesquisa são possíveis de

serem pensados apenas se limitando aos mestres e seus discípulos, aqueles que

estabeleceram ou se propuseram a um relacionamento mais próximo à capoeira, como

esporte, como luta ou como filosofia de vida, mesmo que ainda que não haja a intenção

de ser mestre de capoeira, mas que se lance a compreender este mundo porque se

identifica com ele. Logo, excluem-se os praticantes ocasionais da capoeira.

4.7 O mestre e os heróis da capoeira

Ainda hoje é possível ver crianças gingando como os capoeiristas sem, contudo,

nunca terem participado de uma aula de capoeira, aprenderam a gingar observando os

corpos dos capoeiristas nas rodas ou treinos. Muitos capoeiras começaram a gingar

dessa forma, observando, “de oitiva”54

, como dizem os capoeiristas mais antigos.

Contudo, antes mesmo da sistematização das aulas de capoeira e sua organização em

academias e grupos, a ideia do mestre já estava presente. Mestre Pastinha dizia ter

aprendido a capoeira com um velho africano chamado Mestre Benedito, Mestre Bimba

aprendeu com Bentinho, um ex-escravo africano que trabalhava na Companhia de

Navegação Baiana, o Mestre Canjiquinha com o conhecido Mestre Aberrê.

As louvações que seguem após as ladainhas ou quadras usualmente cantam de

forma genérica, subentendendo que todo capoeirista tem ou teve um mestre. “Iê viva

meu mestre (solo)/ Iê, viva meu mestre camará (coro)” (domínio público), podendo ser

54

O termo oitiva encontra-se entre aspas no texto devido ao fato de referir-se apenas ao sentido da

audição, e não à observação tal conforme é empregado pelos capoeiristas. Desta acepção capoeirística

Abib (2006) diz “A oitiva constitui-se como um claro exemplo de como se dá a transmissão através da

oralidade na capoeira, baseada na experiência e na observação”. (ABIB, 2008 p. 88).

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86

citado o nome do mestre em substituição do termo genérico, deste modo direcionando a

louvação para um mestre específico.

De acordo com o Mestre Pastinha (1988), “capoeira só se aprende praticando

sob a orientação de um professor competente” (PASTINHA, 1988, p. 16). No mesmo

livro, Mestre Pastinha cita a cantiga que diz:

Todos podem aprender

General até doutor,

Mas prá isso é necessário

Procurar um professor

(Pastinha, 1988, p. 32)

Deste modo Abib (2006) define o mestre como educador responsável pela

transmissão do conhecimento tradicional, em suas palavras “O mestre é aquele que

permite que os saberes transmitidos pelos antepassados vivam e sejam dignificados na

memória coletiva.” (ABIB, 2006 p. 93). Este processo de transmissão na capoeira se dá,

como em muitas outras formas culturais de origem afro-brasileira, com a predominância

da oralidade. Mas não devemos desconsiderar as formas de registro escritas e

audiovisuais, que vêm cada vez mais ganhando espaço no mundo da capoeira. Isto

podemos perceber na fala do Mestre Valmir que conta como são passadas as cantigas

para seus alunos.

Eu digo (para o aluno): ‘Eu quero que você me cante uma ladainha’,

‘Ah Valmir, mas eu não sei a ladainha’, ‘Tudo bem, ali a gente tem

uma biblioteca, vai lá buscar uma ladainha, aprender essa ladainha e

trazer essa ladainha na próxima aula’. Ele já tem uma tarefa de casa

para executar. Eu preciso aprender ladainha porque é importante

enquanto eu capoeirista eu cantar numa roda de capoeira. A roda não é

só jogar. (Mestre Valmir em entrevista concedida à pesquisa).

Deste modo, o aprendizado da capoeira é passado não somente através do

conteúdo das cantigas, mas da compreensão da cantiga como parte do jogo, como

elemento de significação do jogo e seu ritual. Ao contrário do que imaginávamos,

percebemos com a pesquisa que nem todos os discípulos e mestres consideram como “o

seu mestre” aquele por quem foi introduzido na capoeira, que passou as primeiras

lições, ou aquele que o formou ou graduou. Vimos que nem todos falam com o mesmo

orgulho com que o Mestre Marcelo de João Pequeno se referiu ao seu mestre. Diz:

“Meu mestre foi e é João Pequeno, nunca tive outro mestre. Ele é o primeiro e o único

que tive”. (Mestre Marcelo de João Pequeno em entrevista concedida à pesquisa), ou

ainda como o Mestre Valdec, que iniciou na capoeira fazendo aula com dois mestres, o

Mestre Laércio e o Mestre Roberval. Diz: “Esses foram os que me deram régua e

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compasso, que me ensinaram, que me formaram como capoeirista” (Mestre Valdec em

entrevista concedida à pesquisa).

Outros capoeiristas, no entanto, podem romper a relação com o seu primeiro

mestre, ou com aquele que o graduou, e restabelecer esta relação discípulo-mestre

considerando um outro mestre. Deste modo percebemos como a figura do mestre é

permeada pela ideia de afeto e afinidades que passam por ideologias, comportamentos e

pela reciprocidade das ações e sentimentos.

Os mestres estão presentes em muitas cantigas de capoeira, principalmente nas

ladainhas ou quadras e nas louvações. Duas das cantigas mais conhecidas na capoeira,

normalmente entoadas nas rodas de capoeira regional, foram anotadas por Waldeloir

Rego (1968) trazem a pergunta “Menino quem foi seu meste”? a resposta vem em forma

de versos que mostram o relacionamento e a proximidade entre mestre e discípulo.

Iê quem foi teu mestre

Menino quem foi teu mestre

Mestre foi Salomão

Discípulo que aprendo

Mestre que dou lição

O Mestre quem me ensinou

No engenho da Conceição

A ele devo dinheiro,

Saúde e obrigação

Segredo de São Cosme

Mas quem sabe é São Damião

Camará (Mestre Bimba)

Percebemos no texto da cantiga que trata-se de um mestre cantando para o seu

mestre, que como discípulo aprende, e como mestre, dá lição. Trata-se assim do

constante processo de aprender e ensinar que os mestres entrevistados salientaram,

conforme vemos na fala do Mestre Dinei que afirma: “Começei a perceber que eu só

sou mestre de capoeira porque começei a aprender com os meus alunos.” (Mestre Dinei,

em entrevista concedida à pesquisa). Evidencia também a sua fala que o tornar-se

mestre de capoeira é processual, e além da concordância do mestre que faz a formação,

considera-se também o tempo na capoeira e a aceitação da comunidade capoeirística do

capoeirista como mestre.

O relacionamento entre discípulo e mestre nesta cantiga é compreendida como

uma relação de amizade e companheirismo. Ao cantar “a ele devo dinheiro, saúde e

obrigação”, percebemos daí o amparo ao mestre no aspecto material, aspecto físico, no

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sentido de companhia e no aspecto místico de devoção, inclusive na hora da morte55

,

conforme as obrigações que têm os religiosos do candomblé para com seus orixás de

iniciação. Em “Segredo de São Cosme, quem sabe é São Damião”, percebemos

elementos do sincretismo religioso afro-brasileiro. As figuras de São Cosme e São

Damião, representadas pelos ibejis56

no candomblé, são evocadas na cantiga para falar

de pessoas que andam juntas, deste modo, o discípulo que acompanha seu mestre

compartilha com ele segredos e fundamentos do mestre.

Algumas vezes a menção ao mestre pode vir codificada, como vemos nos versos

da cantiga abaixo, na qual o nome do Mestre Traíra aparece como o nome do peixe, que

serviu para nomear o capoeirista.

Na rede vem a traíra

Um peixe que morde a mão,

Na roda brilha a navalha

E os cinco Salomão (Mestre Boa Voz)

Os grandes mestres do passado são cantados nas rodas de capoeira, no entanto

poucas cantigas fazem distinção quanto à modalidade da capoeira do mestre (angola ou

regional), quando são cantados em grupo. Assim sendo, é muito comum ouvirmos na

mesma cantiga referências a mestres regionais e angoleiros, conforme os trechos

destacados da cantiga do Mestre Suassuna e Cristal:

[…]

A historia de Bimba e Pastinha

Canjiquinha e Totonho de Maré

Passar no Mercado modelo,

ver a capoeira como é que é

Tem que ter muita fé e muito Axé

[…] (Suassuna)

Bahia que tem dendê

Terra de todos os Orixás

Bahia de Bimba, Pastinha,

Aberrê, Waldemar do Pero Vaz.

[…] Marcelo de Castro (Cristal)

Outro aspecto que as cantigas procuram expressar referem-se às noções dos

ensinamentos da capoeira. Na cantiga “A palma de Bimba” temos expresso o modo

como o Mestre Bimba ensinava aos seus alunos, no que diz respeito à musicalidade

como as palmas, a iúna, ou pode ser outro toque usado na capoeira regional, a quadra ou

outra cantiga, a ginga com base na contagem um, dois, três.

55

Dentre as obrigações que existem no candomblé, o aku, que é uma obrigação funerária. 56

Ibejis, ou seja gêmeos em ketu, também conhecidos como orixás crianças.

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O jeito do mestre lidar com seus alunos, também é mostrado nas cantigas. Nestas

composições percebemos as lembranças do contato com o mestre e as experiências do

discípulo, como na quadra “Bimba chamou” de Aurélio Cardoso, conhecido na capoeira

como Vergalhão. Na primeira estrofe, o autor conta como foi o seu início na capoeira.

Muitos alunos do Mestre Bimba foram convidados por ele a frequentar as aulas em sua

academia, lá aprendiam o ABC da capoeira regional, que é uma sequencia de golpes e

contragolpes, definidos por Mestre Bimba, de modo a facilitar o aprendizado do aluno

iniciante. Quando o aluno já dominava esta sequencia, ou seja, já sabia o ABC, o mestre

convidava um aluno mais experiente para fazer o primeiro jogo deste aluno. A este

primeiro jogo, Mestre Bimba chamava “cair no aço”. Ao final do jogo pedia ao aluno

mais experiente, o formado, que desse um apelido, um nome de capoeira, pelo qual seria

conhecido o aluno a partir de então.

Vou treinar capoeira

Mestre Bimba criou

Capoeira regional

De São Salvador

Mestre Bimba me chamou

Prá treinar a capoeira

Pegando na minha mão

Ensinou a ginga da capoeira

A seqüência é o ABC

Da capoeira regional

Aprender a reagir

Atacar e defender

Quando aprendi a sequencia

Ele chamou um formado

Menino preste atenção

Você vai entrar no aço

Quando o jogo acabou

Ele olhou para o formado

Lhe dizendo em seguida

Dê um apelido ao camarado.57

Diversas cantigas foram compostas lamentando a morte dos mestres Bimba e

Pastinha, tão logo estes faleceram. Neste momento, e ainda hoje, as crenças do

candomblecismo e do catolicismo sincrético fazem-se presentes nas cantigas em forma

de orações que pedem a Deus e santos católicos, e aos Orixás, que os recepcionem no

outro lado da vida, agradecendo e pedindo bênçãos aos mestres.

57

Cantiga composta por Aurélio Vagner Cardoso, conhecido na capoeira como Vergalhão. Esta cantiga

participou do II Festival de Música Tradicional da Capoeira Emília Biancardi em 2008.

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Neste sentido observamos alguns desses elementos afro-brasileiros presentes

nas duas cantigas seguintes. A primeira, que fala sobre o Mestre Pastinha, é de autoria

de Raimundo Santos Cardoso, conhecido na capoeira como Mestre Banguelo, intitulada

“A capoeira angola perdeu seu criador”.

Capoeira angola

Perdeu seu criador

Perdeu Mestre Pastinha

Um grande professor

A Bahia tá de luto

Capoeira também

Ai meu Deus, com noventa e dois anos

Não podia mais andar

Ficou cego, paralítico

Não podia mais jogar

Ele morreu, foi para o céu

Com seu Bimba se encontrar

São Pedro já reservou um lugar prá capoeira

Outro pro seu criador

Ele jogava capoeira angola

Ele jogava capoeira angola

Vicente Ferreira Pastinha

[coro] Ele jogava capoeira angola...

(Mestre Banguelo)

Observamos nesta, e em outras cantigas que trazem a morte do mestre como

tema, estruturas parecidas. Expressam de modo geral (a Bahia, o Brasil, a capoeira,

“todo mundo”) o sentimento de perda ocasionado pela morte do mestre, relacionando-o

com seus feitos, em seguida apresenta um argumento místico o qual serve como

refrigério para o espírito dos que ficaram, o qual sugere o encontro dos capoeiristas em

outro plano, agora ocupando um novo e merecido lugar na memória e/ou na História.

Assim, apesar da tristeza dos que ficaram, a Bahia e a capoeira, como está

presente na cantiga transcrita, a esperança espiritualista presente no catolicismo

sincrético e no candomblecismo, dentre outras religiões de matriz africana, evocam a

ideia da libertação do corpo físico, que proporciona o encontro com outros mestres que

partiram, e seu encaminhamento para o lugar que lhe é reservado.

Considerando a capoeira como instituição de origem afro-brasileira, que

manifesta uma diversidade dessas características, reportamos aqui os laços de

parentesco simbólico58

formados durante a escravidão, como forma de amenizar os

efeitos da dissolução das famílias, e, que ainda hoje, podem ser percebidos em outras

58

Os parentescos simbólicos ou família estendida foram laços criados entre os escravizados independente

dos laços conjugais ou consangüíneos. São percebidos como estratégias que visavam manter a coesão do

grupo e oferecer lhes certa segurança.

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situações na sociedade atual. Com esta ideia de parentesco simbólico, podemos entender

a capoeira como uma família na qual os mestres que partiram passam a ocupar lugar

correspondente ao dos ancestrais.

Na ladainha de Olavo Paixão dos Santos (Mestre Olavo), transcrita abaixo,

percebemos a capoeira como um contexto que favorece a lembrança dos velhos mestres,

e de modo geral a história do negro brasileiro, que representa cada mestre.

Quando eu vejo capoeira

Muitas coisas me faz lembrar

Me lembro de mestre Bimba

De Pastinha e Waldemar

Lembro de Aberrê, colega velho

Doze Homens e Sabará

Lembro de Cobrinha Verde

E Besouro Mangangá

Eles foram os velhos mestres

Que já se foram e não vão voltar

Eles foram pro infinito

Deus lhe bote em um bom lugar!

(Mestre Olavo)

Deste modo, podemos dizer que as cantigas de capoeira são em grande parte

expressões destas lembranças e construções, feitas a partir da história e das

representações do negro no Brasil. Percebemos a memória como um valor afro-

brasileiro que atua nas cantigas de capoeira como elemento que oferece base para suas

construções narrativas ou dialógicas com o passado próximo ou longínquo, que pode

muitas vezes reproduzir recordações inventadas, tais como as tradições das quais Eric

Hobsbawm (1984) se refere.

Todo aquele que lutou pela liberdade do negro brasileiro, que representou o

negro em algum momento histórico, é considerado um herói. Na capoeira os grandes

mestres da capoeira, ao lado de Besouro Mangangá, capoeirista de renome do

Recôncavo Baiano, e o líder quilombola Zumbi dos Palmares, são saudados como

heróis nas cantigas de capoeira.

Zumbi é lembrado como uma das figuras mais emblemáticas do movimento de

luta e resistência do negro no Brasil. Nascido em 1655, é considerado como líder,

comandante e brilhante estrategista do Quilombo de Palmares. Este quilombo tornou-se

um ícone, não somente em face da sua resistência ante os portugueses, como por seu

projeto social de base africana. Zumbi foi morto em 20 de novembro de 1695, aos 39

anos de idade. O dia da sua morte é lembrado desde 1978 como dia Nacional da

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Consciência Negra, e desde então vem crescendo a visibilidade dos eventos organizados

durante a semana de 20 de novembro que propõem reflexões sobre o negro.

No transcrito da cantiga dos Mestres Régis e Jair, intencionalmente feita para

homenagear a figura Zumbi dos Palmares, percebemos como este personagem é

reverenciado como ancestral, do mesmo modo que são os grandes mestres da capoeira.

Deste modo, mais uma vez destacamos a ancestralidade como valor afro-brasileiro

expressado nas cantigas de capoeira.

Negro Zumbi

Foi um criolo inteligente

Um criolo de coragem

Que lutou por sua gente

Se eu sou negro

De Zumbi sou descendente

É jogando capoeira

Que eu me sinto tão contente

Ô leva eu...

(Mestre Régis e Jair)

Outro renomado herói muito lembrado nas cantigas é Manoel Henrique Pereira,

conhecido como Besouro Cordão-de-Ouro ou Besouro Mangangá. Viveu na região de

Santo Amaro da Purificação, entre a última década do século XIX e a segunda do século

XX. A este personagem são atribuídos poderes sobrenaturais, como ter o corpo fechado

e capacidade de voar. Ganhou notoriedade ao enfrentar a polícia e os fazendeiros, e por

tomar partido na defesa dos negros mais fracos, fazendo uso da capoeira ou de outras

estratégias. Suas façanhas são contadas com muita criatividade entre cordéis e cantigas.

A cantiga que segue, de autoria do Mestre Perninha, é uma narrativa que homenageia

Besouro, faz referências às cidades de Santo Amaro e Maracangalha, locais que este

herói costumava frequentar para procurar trabalho nas usinas de açúcar.

Besouro Mangangá, Besouro Mangangá

Besouro, Besouro, Besouro,

Coro

Besouro Mangangá

Besouro Mangangá

Cidade de Santo Amaro

Terra do Maculelê

Viu os Mestres Popo e Vavá

E viu Besouro a nascer

[…]

Besouro cordão de ouro

Manoel Henrique Pereira

Desordeiro pra polícia

Uma lenda pra capoeira

[…]

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A lenda diz que Mangangá

Também sabia voar

Transformando em besouro

Pra da polícia escapar

[…]

Mataram Besouro Preto

Não foi tiro nem navalha

Com uma faca de tucum

Na velha Maracangalha

[…]

(Mestre Pastinha)

Acredita-se que Besouro Mangangá morreu aos vinte e sete anos vítima de

assassinato. A versão mais conhecida acerca da sua morte, a mesma que a cantiga se

refere, considera que Besouro tinha o corpo fechado, ou seja, não poderia ser atingido

por mal que atentasse contra a sua vida, como venenos, feitiços ou armas comuns.

Haveria de ser uma faca de ticum, considerada madeira de Orixás, oriunda de uma

palmeira, ticum, cujo cerne é muito duro. Contudo para o sucesso dessa empresa, era

necessário que este tivesse deixado de cumprir alguma obrigação religiosa.

Assim, percebemos os heróis e os mestres da capoeira como pessoas de

referência, que não somente inspiram as cantigas, mas também um modo de vida. De

Zumbi, a liderança, de Besouro a ousadia, dos mestres, os ensinamentos e a filosofia da

capoeira como esporte, arte e luta que pode matar. Nas cantigas estes personagens estão

envolvidos em uma áurea mística idealizada, favorecida pela emoção do contexto da sua

execução na roda, muitas vezes sensível nestes momentos.

4.8 Elementos do mundo59

da capoeira

O mundo da capoeira é formado pelos elementos da cultura afro-brasileira.

Alguns desses elementos podem ser percebidos como peculiares a esse mundo devido

aos significados que a capoeira imprime e à forma como são evidenciados no seu

mundo. Haja vista a circularidade presente nos movimentos corporais das danças dos

orixás, e no ijexá, dentre outras movimentações do universo afro-brasileiro, dos quais a

59

No presente sentido, o termo “mundo” foi aplicado em concordância com a idéia de mundo oferecida

por Heidegger (2008), na qual compreendemos “mundo” como um espaço transpessoal de construção

simbólica da realidade, bem como da identidade. No mesmo sentido Berger e Luckmann (2008, p. 216-

228) também assinalam que a compreensão identitária dos indivíduos encontra-se diretamente relacionada

com as estruturas sociais incorporadas pelos sujeitos no processo de socialização com o grupo.

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ginga, o aú60

e a armada61

, dentre outros movimentos da capoeira, também expressam a

ideia de circularidade. De modo análogo percebemos aí a ideia do movimento circular

que traz consigo as ideias de transformação, a alternância e o retorno. Deste modo,

observamos o fluxo da energia vital, o axé, que tende ao movimento, à transformação e

ao retorno: a circularidade. Nas cantigas da capoeira pode ser observado através das

sentenças, aparentemente simples, contidas em muitas chulas. As chulas são a primeira

parte do corrido, tratando-se de estrofes curtas, estruturadas em pergunta e resposta,

solo e coro, tais como “Ou sim, sim, sim, ou não, não, não, hoje sim amanhã não.” “Ê,

ê... volta no mundo camará”.

Dentre os elementos da capoeira que foram estabelecidos como subcategorias

para nossa análise, temos a ginga, os instrumentos, a mandinga e os fundamentos. Para

muitos capoeiristas todos estes elementos são vistos como fundamentos de diferentes

esferas e níveis de atuação: funcional ou prático, a exemplo do saber gingar, tocar os

instrumentos e cantar, espiritual ou filosófico, como dos fundamentos, dentre os quais, a

mandinga, sendo que todos se encontram na esfera do ritual. Estes elementos muitas

vezes perpassam-se, de modo a tornarem-se todos fundamentos. Isto foi colocado de

maneira explícita na fala do mestre Valdec que diz “Como fundamento da capoeira nós

temos o movimento, que é o jogo propriamente dito, você tem o canto, você tem o

toque, e o que nós chamamos de “falar”, o falar é muito importante”. (Mestre Valdec

em entrevista concedida à pesquisa).

A ginga

A ginga é o movimento básico de todo o jogo da capoeira. É uma alternância

cíclica da posição das pernas e braços do capoeirista, de modo que lhe permite estar

pronto para o ataque ou para a defesa. Deste modo podemos entender a ginga como a

mãe de todos os golpes e contragolpes da capoeira. Neste sentido, uma cantiga de

autoria desconhecida nos oferece um conceito sobre o que é capoeira. Diz a cantiga em

seu refrão:

Capoeira

60

Movimento geralmente usado na entrada do capoeirista no jogo, consiste em envergar o corpo

lateralmente, apoiando-o com as mãos no chão, enquanto as pernas giram sobre o tronco. 61

Armada golpe aplicado com o pé, enquanto uma perna está firmada no chão, a outra gira em torno

corpo do capoeirista, atingindo com o pé o adversário.

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É defesa é ataque

A ginga de corpo

E a malandragem

(Autor desconhecido)

A ginga sendo o primeiro movimento da capoeira, muitos aprendem apenas

observando, contudo, como vimos na cantiga “ A palma de Bimba,” a ginga é coisa

séria na capoeira, por este motivo este mestre fazia questão de ensiná-la pegando na

mão do aluno. Quem ginga deve estar em sincronia com o movimento do outro jogador

e, dependendo do jogo, pode ser visto como opositor ou parceiro. Vemos na cantiga do

Mestre Boa Voz, da alternância, do leva e traz, como movimento essencial da capoeira,

como também a sincronia com a música, pois lembramos aqui, capoeira também é

dança.

Maré Me Leva

coro

Maré me leva;

Maré me traz

A vida do capoeira;

É como a do pescador;

A onda balança o barco;

E a ginga o jogador;

coro

O vento sobrou nas velas;

Balançando a minha nau;

Na roda de capoeira;

Quem me leva é o berimbau;

(Mestre Boa Voz)

Em algumas cantigas notamos tendências a equívocos, nas formas de

generalizações e estereótipos vinculados à imagem do afro-brasileiro. Encontramos em

uma cantiga do Mestre Ezequiel interessante exemplo a este respeito. A ginga é

mostrada nessa cantiga como um atributo natural do afro-brasileiro, como se todo afro-

brasileiro nascesse com ginga, sabendo sambar e naturalmente sorridente e

candomblecista, ou ainda, generalizando “aquela raça” oriunda de uma mesma região,

religião e pertencentes a um mesmo conjunto de expressões culturais. Segue trecho da

cantiga do Mestre Ezequiel.

[…] eu venho daquela raça

Que lutou pra se libertar

Que criou o maculelê

Que acredita no candomblé

Que tem o sorriso no rosto

A ginga no corpo e o samba no pé

(Mestre Ezequiel)

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De forma ainda mais explicita, sem contudo considerar como natural, Mestre

Suassuna canta sobre os atributos da afro-brasilidade, porém, de certo modo cobra do

baiano, pois nasceu na “Meca da capoeira”, aquilo que seriam seus sinais distintivos.

[…]

Mas você que é Baiano ouça ai

Um conselho que eu tenho pra te dar

Você tem que aprender capoeira,

ser Baiano é saber gingar é tocar berimbau mandingueiro

O pandeiro e saber sambar

(Mestre Suassuna) (Grifo nosso)

Com as experiências que tivemos com o mundo da capoeira, observamos que a

ginga, embora seja um movimento corporal intuitivo, não é natural nem do afro-

brasileiro nem do baiano, pois se assim o fosse não precisaríamos das “oitivas” nem das

aulas explicativas com mestre, muito menos segurando na mão, como fazia Bimba, um

grande Mestre, no sentido pedagógico do termo.

Esteves (2003) nota que “muitas vezes o turismo é o grande responsável pela

imagem estereotipada do baiano; imagem essa que atende a um forte apelo consumista”

(ESTEVES, 2003, p. 91). Contudo devemos observar que os mestres Ezequiel e

Suassuna são grandes compositores de cantigas de capoeira e possuem álbuns gravados

com estas cantigas que são ouvidas em treinos de capoeira em diversos grupos e

academias.

Deste modo, encontramos cantigas que expressam o pensar dos seus

compositores, que criam um estereótipo de comportamento e o difunde através das

cantigas. Nessa esteira, devido à “baianização” da capoeira, são cobrados ainda mais do

baiano esses comportamentos.

Os instrumentos

Diversos autores como Rego (1968), Biancardi (2006) e Pastinha (1988),

acreditam que a parte musical da capoeira era inexistente no início do seu

desenvolvimento. Contudo, vimos com Reis (2000), Soares (1994) e Rego (1968), que

no século XIX, no Rio de Janeiro, e no início do século XX na Bahia, a roda de

capoeira, mesmo sem um repertório musical próprio, se estabelecia atraída, não somente

pela aglomeração de pessoas nas ruas como também pela música, haja vista a presença

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marcante dos capoeiras próximos às bandas de músicas presentes nas festas cívicas e

religiosas.

O pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802 - 1858), em sua “Viagem

pitoresca ao Brasil”, realizada na primeira metade do século XIX, retratou em óleo

sobre tela uma cena urbana intitulada Kriegsspiel (brinquedo guerreiro)62

, ou como

conhecemos “Dança da Guerra63

” na qual constam doze personagens, todos negros. No

centro, sugere dois lutadores a se enfrentarem, enquanto um personagem em pé bate

palmas, e outro, sentado, toca um instrumento que está entre suas pernas; duas mulheres

sentadas, sendo que uma delas cuida de uma panela que está no chão e se dirige a um

homem que recebe algo da sua mão, provavelmente um quitute, os outros personagens

observam os jogadores. Contudo, a partir desta ilustração podemos vislumbrar algumas

possibilidades a respeito da presença da música na capoeira. O tambor poderia ser

apenas uma eventualidade, do mesmo modo que a presença da quituteira. Podemos

intuir também que as palmas tivessem sido o primeiro acompanhamento musical da

capoeira, não o tambor ou o berimbau, por se tratar da produção de som a partir do

próprio corpo e com isso dar um ritmo ao jogo.

Outro elemento que nos permite pensar sobre a musicalidade na capoeira surge

com a possibilidade de sua referência africana, o n’golo, ser chamado de dança da

zebra. Como a dança sugere música, então talvez o n’golo angolano fosse

acompanhamento musical, e com isso a capoeira que pode ser uma releitura dessa dança

ritual, pode ter sua referência construída como dança-luta com acompanhamento

musical.

Atualmente na capoeira temos o berimbau como instrumento musical mais

importante, o qual é reverenciado e cantado nas cantigas de capoeira como tal. Isto nos

mostram os trechos selecionados de duas cantigas da capoeira de autoria desconhecida

[…]

O maculelê

A dança do pau

Na roda de capoeira

Quem comanda é o berimbau […]

(Autor desconhecido)

[…]

Na roda de capoeira

62

Tradução de Waldeloir Rego (1968). 63

Ilustração vide Anexo III.

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98

Vou no pé do berimbau

Antes da volta ao mundo

Faço pelo sinal […]

(Mestre Brasília)

Salienta Albino Marinho de Oliveira (1958) uma relação de mutualismo

existente entre o berimbau e a capoeira, da qual se deve à esta expressão cultural,

permanência do instrumento musical que encontra-se presente na atualidade como um

dos elementos fundamentais que valorizam o jogo. Nas palavras do autor:

[…] Sem a capoeira o arco musical seria um instrumento inexpressivo

que talvez tivesse desaparecido […] Sem o berimbau a capoeira

perderia a força que leva seus lutadores a exaltado exacerbamento

motor que se manifesta em agilíssimos golpes e contragolpes.

(OLIVEIRA, 1958, p. 46).

Deste modo, o autor salienta também a exaltação que proporciona o som do

berimbau aos participantes do jogo. Vemos com isso, o que pudemos observar nas rodas

de capoeira, quando os instrumentos estão sendo executados e os jogadores estão na

roda, que a música na capoeira cumpre não somente a função de animar como vemos no

trecho cantiga do mestre Suassuna, que diz:

A roda tava desanimada,

O povo mal queria cantar,

Foi eu pegar na viola64

,

A roda inteira começou a jogar.

(Mestre Suassuna)

À música na capoeira cumpre também dar ritmo aos movimentos dos

capoeiristas, como também proporciona uma alteração nos sentidos dos jogadores, em

seu estado de ânimo e em sua percepção do espaço, o que poderia ser compreendido

como um leve estado de transe, mas no qual os sentidos do jogador estão aguçados,

permitindo uma performance ainda mais entrosada, como dizem os capoeiristas, um

“jogo bonito”.

Disto podemos observar que os jogadores não tocam as pessoas próximas que

estão na roda, por mais que os movimentos sejam rápidos e aparentemente

desequilibrados. Sobre a importância do jogo bonito, temos a cantiga de autoria

desconhecida, mas muito executada nas rodas de capoeira que diz: “Ai, ai, aidê, joga

bonito que eu quero aprender/ Ai, ai,aidê joga bonito que eu quero ver.”

O berimbau é um arco musical, formado por uma haste de madeira flexível,

arqueado por um arame e usa uma cabeça como caixa amplificadora do som. É tocado

64

Nesta cantiga o termo “viola”, refere-se ao berimbau viola, o menor e o que produz som menos grave

dos berimbaus.

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golpeando o arame. Temos três tipos de berimbaus, o gunga, maior, de som mais grave,

o médio, de som intermediário e o viola, menor de som menos grave.

Os instrumentos são citados ou homenageados em várias cantigas nas rodas de

capoeira. Dos instrumentos da capoeira, o mais homenageado é o berimbau, desde o

material que é usado para confeccioná-lo. Como vemos na chula, registrada por diversos

mestres, que diz: “Biriba é pau, é madeira, madeira prá tocar” (Autor desconhecido).

Podemos ver o berimbau como aquele que chama, que anuncia ou de algum modo atrai

os capoeiristas. Como podemos ver em diversas cantigas, o berimbau chama para a

capoeira, atua como um meio de comunicação ao mesmo tempo passa a ideia de ser

imbuído de uma autoridade sobrenatural, como podemos ver nos trechos das cantigas

destacados.

Cabôco do mato vem cá

O meu berimbau

Mando lhe chamá.

(Autor desconhecido)

Seja de noite ou de dia

Não importa o lugar

Quando toca o berimbau

Dá vontade de jogar

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral […]

(Mestre Bigodinho)

O apreço pelo instrumento também se manifesta em cantigas como a seguir.

Percebemos o “gunga” da cantiga como um documento de identificação, que o liga à

sua família e à sua ancestralidade.

Esse gunga é meu, esse gunga é meu

Gunga é meu, eu não posso vender

Esse gunga é meu, esse gunga é meu

Gunga é meu, foi meu pai que me deu

(Autor desconhecido)

Uma cantiga do Mestre Pastinha, muito conhecida nos treinos e rodas de

capoeira, homenageia o berimbau. Esta cantiga, o “B-A- bá do berimbau”, fala não

somente do instrumento, como também cita os toques: São Bento Grande, que é usado

tanto na capoeira angola quanto regional, e o toque de Angola da capoeira, tradicional

da angola.

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Eu vou ler o B-A-Bá

B-A-Bá do Berimbau

a moeda e o arame

com dois pedaçoes de pau

a cabaça e o caxixi

aí está o berimbau

Berimbau é um instrumento

que toca numa corda só

vai tocar São Bento Grande

toca Angola em tom maior

agora acabei de crer

o Berimbau é o maior

Camaradinho

Yê Viva meu Deus

Yê viva meus Deus camarado

(Mestre Pastinha)

O atabaque é um instrumento de percussão como um tambor, feito basicamente

de madeira e couro. No candomblé são considerados instrumentos sagrados. São três os

atabaques: o rum, o rumpi e o lé. Nesta sequência, do maior para o menor, do mais

grave para o menos grave;

O pandeiro, instrumento formado por um círculo de madeira com pequenas

peças de metal presas em sua lateral, forrado de couro em um dos lados. Este

instrumento é conhecido há milênios, por diversas culturas, e tem sua origem atribuída

aos povos árabes. Antes mesmo de 1500 era conhecido tanto na África quanto na

Europa, contudo Rego (1968) diz que o pandeiro que conhecemos, chegou ao Brasil

através dos portugueses e logo se popularizou entre os escravos.

O agogô, instrumento de percussão feito em ferro, o que é tradicionalmente

tocado nas rodas de capoeira possue duas campânulas, também chamadas de bocas ou

sinos. Existem outros modelos de agogô, também chamados de gâ. No candomblé é um

instrumento sagrado relacionado ao Orixá Ogum.

O reco-reco, ganzá ou querequexé também é usado na capoeira E pode ser feito

com madeira, bambu ou cabaça marcado com fortes sulcos horizontais, e o som é

produzido raspando uma haste de metal sobre esses sulcos. De acordo com Biancardi

(2006), segundo informação prestada pelo Mestre João Grande, este instrumento foi

incorporado à capoeira após o surgimento das academias do Mestre Bimba e do Mestre

Pastinha.

O caxixi um tipo de chocalho em formato de cesta, feito com palhas, sementes

secas e um pedaço da cabaça como fundo. É normalmente tocado pelo mesmo

capoeirista que toca o berimbau. Biancardi (2006) cita os estudos do pesquisador

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Mukunda que em sua tese diz ser o caxixi um instrumento de origem bantu, que veio

para o Brasil através dos escravizados vindos das regiões onde hoje estão Angola e

Zaire.

Na capoeira regional, seguida pelos discípulos do Mestre Bimba, os únicos

instrumentos usados são um berimbau e dois pandeiros. Sendo que ao finalizar a roda da

capoeira podem fazer uso de outros instrumentos para fazer o samba de roda.

Talvez o fato de os outros instrumentos musicais da capoeira não serem cantados

com mesmo destaque que tem o berimbau, seja devido ao cantador, que normalmente é

mesmo mestre que toca o gunga. Segundo as entrevistas, pudemos observar que é tarefa

do mestre tornar seus alunos aptos a participar das rodas de capoeira da sua modalidade,

angola ou regional, no caso dos mestres pesquisados, ou mesmo de outra modalidade,

de modo que ele deve passar para seus alunos noções de todos os instrumentos,

seguindo um programa de treinamento que depende do avanço individual do aluno.

Contudo, como foi dito, via de regra é o mestre que toca o gunga e canta

durante os eventos do grupo e fora dele. Para que o discípulo cante na roda é necessário

que haja confiança do mestre para com este. Supomos então que por este motivo nas

cantigas da capoeira os outros instrumentos aparecem em recorrência menor e é comum

que não apareçam sozinhos, mas associados ao berimbau, ou a outros instrumentos

citados para ilustrar a situação da roda de capoeira, como vemos nos trechos destacados

a seguir.

[…]

Um esporte que é brasileiro

Com som berimbau, atabaque e pandeiro

Um esporte que é brasileiro

(Mestre Brasília)

[…]

Sou angoleiro que vem de Angola

Valha meu Deus minha Nossa Senhora

Sou angoleiro que vem de Angola

Tocando pandeiro, berimbau e viola

(Autoria desconhecida)

[…]

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

O berimbau é de Aramê, O pandeiro é de couro de cobra!

Quero ver vocês brincando, com a gente aqui na roda!

(Mestre Boa Gente)

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Os fundamentos

No trabalho de Castilho (2008), que estuda a relação entre a oralidade e a escrita

nos candomblés na Bahia, a autora percebe os fundamentos religiosos como “um corpo

de conhecimentos de circulação restrita” (CASTILHO, 2008, p. 25). De acordo com as

observações, entrevistas e com as cantigas, percebemos que na capoeira os fundamentos

são transmitidos com menos restrições, contudo a apropriação destes depende muito

mais dos alunos. Os chamados fundamentos, que no candomblé são considerados

“segredo,” acessível aos que preenchem determinados requisitos como o tempo de

permanência na casa, as iniciações e o cumprimento das obrigações, que estabelecem

uma hierarquia, na capoeira podemos perceber como algo que é passado principalmente

nas aulas, nas conversas com os mestres, nas rodas, nas cantigas. Na capoeira a

passagem dos fundamentos é uma das tarefas do mestre, pois são vistos como parte do

jogo.

Entre os mestres os valores fundamentais não são institucionalizados, podendo

variar de acordo com o pensamento do mestre. Nas entrevistas e conversas, bem como

nas cantigas, notamos que alguns valores mencionados deixam subentendido que atuam

como fundamento de determinado mestre e seu grupo. Deste modo, percebemos que os

fundamentos variam de acordo com o mestre ou o grupo, e a aquisição destes

fundamentos não depende unicamente dos ensinamentos do mestre, mas do

desenvolvimento do aluno na capoeira.

Nas palavras transcritas abaixo, ditas pelo Mestre Valdec, notamos que mesmo

não havendo um rol fixo dos fundamentos da capoeira, o domínio desses elementos é,

ou deveria ser, um requisito essencial na formação do mestre, em suas palavras:

Um aluno não pode ser graduado mestre se ele não domina todos os

fundamentos. Por mais excepcional que o aluno seja você não vai

graduar ele com pouco tempo, mas eu acredito também que tem

outros valores. Tem aluno que tem até tempo, ele faz muitas coisas,

mas não domina o fundamento. (Mestre Valdec em entrevista

concedida à pesquisa) (Grifos nossos).

A partir da fala do Mestre Valdec verificamos que o tempo, a observação e o

exercício são práticas que viabilizam a apropriação dos fundamentos, e o domínio

destes constitui-se requisito para a graduação do aluno em mestre.

Dentre os valores que observamos considerados fundamentos entre os mestres, e

pudemos organizá-los como de ordem do conhecimento teórico e prático da capoeira,

tais como o respeito às tradições, aos mestres e heróis da capoeira; de ordem prática,

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como o conhecimento dos golpes, dos instrumentos, das cantigas e da histórias da

capoeira e conhecimento do ritual do jogo. Também referentes ao comportamento e ao

autocontrole como a prudência, o bom senso e a sagacidade, que podem ser algumas das

feições da mandinga, bem como a humildade e o carisma.

Contudo, os mestres e os estudiosos da capoeira que contribuíram com suas

conversas e entrevistas para este trabalho, atentam para a formação de alguns mestres e

capoeiristas que não demonstram no seu jogo ou nos seus atos esses fundamentos. O

que pode ser verificado através dos cantos estranhos às cantigas tradicionais no

ambiente das rodas, o uso de violência gratuita, o desrespeito para com os mestres e

alunos e também a falta de domínio dos movimentos e instrumentos da capoeira.

Na cantiga que segue de autoria do Mestre Pastinha, considerado como o

“filósofo da capoeira” por demonstrar valores como a humildade, sagacidade e

prudência nas suas falas, cantigas e jogo, podemos perceber a expressão da humildade

como valor da capoeira e a religiosidade presente nos valores afro-brasileiros.

Iê!

Maior é Deus

Maior é Deus

Pequeno sou eu

O que tenho, foi Deus que me deu

O que tenho, foi Deus que me deu

Na roda da Capoeira, ha há!

Grande pequeno sou eu.

(Mestre Pastinha)

As cantigas de sotaques são advertências para os que estão jogando, estão cheias

de significados que o capoeirista que domina os fundamentos, tanto está habilitado a

produzir quanto interpretar os códigos de alerta presentes essas cantigas.

O trecho de quatro versos que segue é de uso comum em diversas cantigas.

Serve de alerta para o capoeirista que enfrenta outro demonstrando falta de humildade e

arrogância em seu jogo, ou ainda, no caso de um capoeirista querer derrubar outro mais

experiente, sem contudo tornar o jogo agradável de se ver. Esta atitude é interpretada

como se todos da roda estivessem sendo privados de apreciar um jogo bonito.

Quem não pode não intima

Deixe quem pode intimá

Quem não pode com mandinga

Não carrega patuá.

(Mestre Pastinha)

De acordo com Rego (1968), a mandinga na capoeira não possui o mesmo

significado religioso do universo afro-brasileiro, o que há de referência à religiosidade

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vem por outras vias (REGO, 1968, p. 39). Conforme Reis (2000), a mandinga na

capoeira é uma forma de iludir o oponente e disfarçar seu golpe até desferi-lo. Contudo,

nesta cantiga prevalece o sentido associado à religiosidade, pois o patuá É uma espécie

de amuleto protetor que defende dos feitiços, maus olhados e das mandingas.

É muito comum, fundamentos como a sagacidade, a humildade e o respeito

serem passados nas cantigas de forma alegórica. Destacamos a cantiga do Mestre

Canjiquinha que é bastante conhecida entre os capoeiristas.

Iê !

O calado é vencedor,

O calado é vencedor

Mas prá quem juízo tem

Quem espera ser fisgado, o meu bem

Não roga praga a ninguém

A mulher é como a cobra

Tem sangue de Peçanha

Deixa o rico na miséria, o meu bem

Deixa o pobre sem vergonha

Vou dizer pra meu amigo

Que hoje a parada é dura

Quem ama mulé dos outros, o meu bem

Não tem a vida segura

Camaradinho

(Mestre Canjiquinha)

Assim, percebemos que os fundamentos da capoeira são um conjunto de

princípios que reportam às experiências de vida, regras de conduta e ao conhecimento

dos elementos do mundo da capoeira. Neste sentido, as cantigas ao mesmo tempo que

fazem parte desse conjunto de fundamentos, de modo que se constituem como

elementos do mundo da capoeira, que todo bom capoeirista deve dominar, são também

meios de transmissão desses fundamentos, transmitidos de forma educativa e lúdica.

Deste modo, o segredo da capoeira consiste muito mais em ser adquirido e

compreendido, através da observação e da vivência, do que como algo que o mestre

guarda como um segredo para privar o discípulo ou aluno do conhecimento.

4.9 O Espaço

Vimos até aqui que as referências à África e ao Brasil são observadas e sentidas

em grande parte das cantigas de capoeira, seja por meio de palavras ou ideias.

Considerando o que tratamos nos capítulos anteriores sobre a história da capoeira e seu

processo de construção social, podemos perceber nestas cantigas a presença da África e

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de Angola como locais de referência da construção da identidade afro-brasileira dos

capoeiristas de Salvador.

Ao mesmo tempo que o Brasil, a Bahia e Salvador, em muitas dessas cantigas

exprimem o sentimento dúbio de sofrimento e superação associados à história do negro

brasileiro, observamos que em grande parte das cantigas de capoeira de Salvador, os

termos Bahia e Salvador muitas vezes se complementam, ou tornam-se sinônimos,

como vemos no corrido do Mestre Pelé da Bomba transcrito a seguir

Bahia, minha Bahia

Bahia, São Salvador

Bahia, minha Bahia

Bahia, São Salvador

Bahia, minha terra

Minha terra, sim senhor

Que Bahia boa

São Salvador

Que Bahia boa

É Salvador

(Mestre Pelé da Bomba em entrevista concedida à pesquisa)

Considerando o caráter de referencial histórico desses locais para a capoeira,

notamos que a origem desta manifestação ainda é uma questão não resolvida, ao menos

nas cantigas de capoeira de Salvador. Embora no âmbito e entre grande parte dos

capoeiristas esteja ultrapassada a questão acerca da origem da capoeira, pois os diversos

estudos mostram a capoeira como uma das várias manifestações criadas e desenvolvidas

no Brasil pelos africanos escravizados e seus descendentes, vemos em muitas cantigas a

negação desta origem afro-brasileira. De modo que algumas cantigas concebem a

capoeira como uma manifestação africana transportada para o Brasil, onde se

desenvolveu entre os negros escravizados. Logo, de acordo com esta concepção teria

havido um continuum transatlântico da capoeira. Fato que, como vimos, com Mintz e

Price não ter sido possível tal continuidade, uma vez que não houve o transplante da

estrutura institucional que demandava o n’golo. Contudo ainda hoje é possível encontrar

alguns poucos capoeiristas que acreditam nesta versão, acentuada pelas cantigas de

capoeira como as do Mestre Pastinha que diz “[…] Capoeira vem da África Africanos

quem nos trouxeram […]” ou a do Mestre Boca Rica “Capoeira veio de Angola, Veio

da Bahia não […]”

Porém, observamos que em Salvador são também cantadas cantigas que

enfatizam a perspectiva da capoeira como manifestação de base africana, mas que

afirmam ter sido produção dos negros escravizados no Brasil. Assim, dentre várias

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cantigas, destacamos dois trechos que contradizem a ideia do continuum transatlântico

Angola-Brasil da capoeira e marcam a capoeira como construção afro-brasileira

mostrando o Estado da Bahia como sua terra mãe. Mestre Brasília compôs uma cantiga

a qual podemos perceber como contextualizando o ambiente do surgimento da capoeira.

Capoeira nasceu na Bahia

Pro negro escravo defender

O baiano espalhou pelo mundo

O grande esporte prá você ver […]

(Mestre Brasília) (Grifo nosso)

Mestre Boa Gente, na cantiga intitulada “Joga ai que eu quero ver”, faz uso das

duas perspectivas a cerca da origem da capoeira, ao mesmo tempo que enuncia as duas

modalidades de capoeira mais conhecidas na Bahia, angola e regional, como podemos

observar no verso “Capoeira é uma arte de Angola e regional […]”, ou seja, de Angola,

referência à África e regional, à Bahia.

Notamos nos trechos destacados e em outras várias dessas cantigas, a intenção

de afirmar a origem baiana da capoeira, de modo que o caráter nacional da luta é posto

em segundo plano. Lembramos aqui Reis (2000) quando diz ser a capoeira baiana um

projeto étnico e regional, ou seja, que traz a proposta da valorização da capoeira jogada

pelos negros baianos, enfatizando suas histórias e experiências como a “verdadeira

capoeira”.

Vemos também expressões que procuram abranger a capoeira em esfera

nacional, mas nas cantigas de Salvador percebemos que mesmo quando fazem

referência à capoeira como produto nacional, atrelam-se elementos que direcionam o

texto da cantiga à Bahia, como podemos ver no trecho da cantiga composta pelo Mestre

Burguês em destaque:

Tá no sangue da raça brasileira

Capoeira

É da nossa cor

Berimbau

É da nossa cor

Canjiquinha65

É da nossa cor.

(Mestre Burguês)

Assim, percebemos que a valorização da identidade étnica é um referencial que

muitas cantigas de capoeira de Salvador procuram trabalhar. Verificamos que em muitas

cantigas a identidade nacional é deixada de lado, marcando a identidade baiana. Deste

65

Washington Bruno da Silva (1025 - 1994), conhecido como Mestre Canjiquinha, é considerado um dos

grandes mestres da capoeira de Salvador

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modo, verifica-se a valorização do que poderíamos chamar de afro-baianidade, ou

apenas baianidade, visto que a identidade baiana é extremamente relacionada ao local, à

Bahia e a etnicidade.

Lembramos aqui que Salvador começa a se construir como a terra mãe da

capoeira durante os anos 30, quando o então presidente Getúlio Vargas conhece a

capoeira do Mestre Bimba e a considera como esporte genuinamente brasileiro. Neste

sentido, não somente a capoeira foi vista como esporte nacional, atendendo à demanda

nacionalista proposta pelo governo deste presidente, mas especificamente a capoeira

baiana passou a ser conhecida como a capoeira legítima, de modo que a Bahia tonou-se

a “meca da capoeira”. Deste modo, o “modelo da capoeira baiana” foi levado para

outros estados, muitos dos quais já havia capoeiragem de semelhante forma, com

mestres e academias, ainda que na ilegalidade, como também havia sido na Bahia.

Assim percebemos nas cantigas de capoeira que falam da Bahia e Salvador como cidade

da capoeira e prestam diversas homenagens à “boa terra”, buscam também a afirmação

deste status, como que traz benefícios, principalmente aos capoeiristas que trabalham no

exterior e os que trabalham com o turismo.

Embora todos os mestres entrevistados tenham alguma experiência de ensinar a

capoeira para turistas de outros estados e países, observamos que no geral as cantigas

não tratam sobre turismo e capoeira. Todos os entrevistados veem com desconfiança

esta relação e concordam que a capoeira não deve se moldar às demandas impostas pela

indústria do turismo, ainda que reconhecendo e lamentando a existência de capoeiristas

que adéquam sua capoeira a tal demanda. A esta capoeira, jogada para impressionar

turistas, Esteves (2003) classifica como “capoeira espetáculo”, o que seria uma

expressão da indústria do turismo que

Porém, paralelas às mudanças evolutivas normais66

, se apresentam

outras que, por força das exigências de um mercado consumista, criam

evoluções [na capoeira] que a descaracterizam como acontece com as

evoluções provocadas por sua relação com o turismo. (ESTEVES,

2003, p. 114). (Grifo nosso.)

66

Estas “mudanças evolutivas normais”, seria a forma de Esteves (2003) conceber o aspecto dinâmico da

cultura que lhe permite aceitar as mudanças e transformações a partir de necessidades do grupo que a

desenvolve. Deste modo, se aproximaria à concepção de Hobsbawm sobre o costume nas sociedades

tradicionais, quando diz que este “tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e

pode mudar até certo ponto, embora seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou

idêntico ao precedente.”

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A cantiga cujo trecho retiramos apresentada a seguir, de autoria do Mestre

Ezequiel, fala sobre a “Rampa do Cais da Bahia”, um dos primeiros lugares onde a

capoeira foi apresentada com a intenção de ser exibida para grupos de turistas.

Eu aprendi capoeira

Lá na rampa e no cais da Bahia

O gringo filmava me fotografava

Eu pouco ligava,também não sabia

Que essa foto ia sair no jornal

Na França ou na Rússia, ou talvez na Hungria.

(Mestre Ezequiel)

Percebemos nesta cantiga que o turista é considerado como público e apreciador

do jogo do capoeirista, contudo também notamos que o turista de certo modo se

aproveita da ignorância, sinalizada pelo o fato de o capoeirista não saber, que a foto

seria publicada em jornal no exterior. Por outro lado, nesse trecho da cantiga também se

percebe o papel do turismo na exportação da capoeira baiana para outros países.

4.10 Narrativas

Algumas cantigas de capoeira unem elementos da experiência pessoal e mística

do autor com fatos do cotidiano e sua religiosidade. Como podemos perceber na cantiga

composta por Mestre Pelé, apresentada no II Festival de Música Tradicional da

Capoeira e também cantada pelo próprio Mestre Pelé durante a entrevista concedida à

pesquisa.

Tava na beira da praia

Sem pensar, sem imaginar

Tava na beira da praia

Sem pensar sem imaginar

Apareceu moça bonita

Me mandou foi me chamar

O que foi que ela me disse?

“meu filho vai logo pescar”

Eu peguei o meu saveiro,

Comecei a remar

E peguei minha tarrafa

joguei no fundo do mar

Eu peguei mil e um peixe,

Eu peguei mil e um peixe

Janaina67

mandou pescar

Janaina, rainha do mar

Janaína, rainha do mar...

(Mestre Pelé da Bomba)

67

Janaína é a alcunha sincrética de Iemanjá considerada entre os devotos das religiões afro-brasileiras

como a Rainha do Mar.

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Na entrevista, o mestre Pelé da Bomba complementou o que diz na cantiga com

a seguinte explicação que trata da sua experiência:

Isso é meu, cantiga propriamente minha. É do meu fundamento que

sai da capoeira ... e já aconteceu. Aconteceu o seguinte: Todo mundo

não vai prá praia, de vez em quando, tem uma visão? A gente tá ali na

beira da praia tomando um banho ou ali pescando qualquer coisa não

pede prá Janaína ajudar a entrar no mar? Ai então foi isso, ela que

estava lá no meio do mar, mandou que eu fosse. Eu estava na beira da

praia, [ela] mandou que eu fosse. Eu já tava preparado prá pescar,

mandou que eu fosse pescar. Ai eu peguei o saveiro68

e a tarrafa69

estava em cima do ombro. A tarrafa a gente joga assim: (mostrou com

movimento dos braços como se joga a tarrafa). Ela me chamou e disse

assim: ‘Meu filho vai logo pescar’. Ai eu peguei o meu saveiro e

comecei a remar. Ai quando eu peguei meu saveiro e comecei a remar,

ai peguei minha tarrafa, no meio do mar, joguei a tarrafa. Aí eu peguei

a tarrafa e ‘peguei mil e um peixes’. Quer dizer, eu peguei mais de mil

peixe. Ela mandou pescar... E ela é a rainha do mar. Essa história é

muito importante e não é todo mundo que usa (conta) essa história, né.

Principalmente na capoeira que fazem as músicas voluntaria, doida,

qualquer, não tem fundamento. Pois as minhas cantigas todas elas tem

fundamento. Tanto elas tem meus fundamentos que o compositor sou

eu mesmo. (Mestre Pelé da Bomba em entrevista concedida à

pesquisa.)

Um elemento que aparece na fala do Mestre Pelé da Bomba, e que tratamos

anteriormente, é o fundamento. Para este mestre, os seus fundamentos incluem a

transmissão de suas experiências como inspiração para a composição das suas cantigas

de modo que não somente o fato, como também a narrativa, a forma de contar o fato, é

transmitida através das cantigas.

Contudo, notamos outra linha de composição das cantigas de capoeira de

Salvador, também narradas em primeira pessoa, apresentadas em forma de narrativa e

que apresentam alguns fatos contraditórios e/ou idealizados. Notamos que as cantigas

da capoeira são em muito embasadas no que se conhece através da tradição oral,

passada principalmente através dos mais experientes na capoeira,e do que se aprende na

escola, nas aulas de História do Brasil.

Embora saibamos que a História oficial não tenha se preocupado em registrar as

narrativas e fatos relevantes para os negros escravizados, desde a sua chegada ao Brasil,

mas sim, o que era importante para seus comércios e suas demais atividades, vemos que

a memória foi um modo de registro daquilo que acontecia, e era transmitido oralmente,

devido a importância da tradição oral, para a maioria dos grupos escravizados.

68

Saveiro é um tipo de embarcação usada entre os pescadores. 69

Tarrafa: instrumento usado em pesca. O mesmo que rede de pesca.

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110

Conforme podemos observar na próxima cantiga, de autoria de Nicolas Severin,

intitulada “Ancestrais Africanos”, apresentada no II Festival da Música Tradicional da

Capoeira, percebemos, aspectos desse tipo de narrativa.

Quando da África eu cheguei

Me trouxeram os portugueses

Travessia em caravela

Passei fome e humilhação

Num porão bem apertado

Dentro desta embarcação

Minha família eu perdi

Nunca mais vi os meus amigos

Até quisera tirar

A cultura que eu aprendi

Com esforço na Bahia

África eu reconstruí

Hoje canto capoeira

Danço n’golo com paixão

Você pode ter certeza

Disso eu não abro mão

Muito duro foi o trabalho

Pra manter a tradição

(Nicolas Severin)

Percebemos esta cantiga como uma ficção que procura recriar e narrar a

experiência dos negros escravizados chegando ao Brasil, mais exatamente à Bahia, o

que reforça a ideia da “legitimidade da capoeira baiana”. Também é lembrado o

desenvolvimento da capoeira a partir do n’golo, que remonta à questão acerca da origem

africana da capoeira. Percebemos também elementos referentes a Angola e ao navio

negreiro, que fazem parte do conjunto de imagens da escravidão colonial e, por

extensão, da construção da identidade afro-brasileira da capoeira, visto que foi contexto

da escravidão colonial que inúmeras práticas, instituições e expressões afro-brasileiras

tiveram seu início.

Encontramos também cantigas que, ao mesmo tempo pontuam como lembranças

fatos conhecidos através das narrativas sobre as experiências desumanas que passaram

os negros escravizados. Também imprimem a marca do seu contexto de produção, como

vemos na cantiga de Rose Meire Araújo, ou Speed, como é conhecida na capoeira.

Quando eu falar da capoeira

Fale de ancestralidade

Não esqueça meu irmão

Sua verdadeira identidade

A capoeira revelou

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Pra você não esquecer

Negros e índios, meus irmãos

Apanharam pra valer

Tudo isso é muito forte

Pra poder recordar

Mas essa é nossa História

Temos que fazer respeitar

Capoeira, que capoeira

Se respeita meu irmão

Muitas vezes tive raiva

Do fundo do coração

Essa raiva emocionada

Que só nos fez chorar

Em pensar que o povo negro

Sofreu tanto pra poder se libertar

Esses fatos são relatos

De tamanha covardia

Nos tiraram do acalanto

E da profunda harmonia

Pensando que o negro era

Frágil, meu senhor

Massacraram nossa raça

Achando que não tínhamos valor

Apesar de tanto sofrimento

O negro se libertou

Imperando sua alegria

Ensinando sua filosofia

Se auto-afirmou

Iê, viva o negro

Viva o negro, camará

Iê, se libertou

Se libertou , câmara…

(Rose Meire Araújo)

Notamos neste tipo de cantiga a clara intenção de falar da História do negro no

Brasil, desde a África até o momento presente. Deste modo, compreendemos a cantiga

da capoeira como uma forma de contar essa história. De acordo com o Mestre Valmir

Damasceno, as cantigas têm a capacidade de trazer e manter o passado na memória, de

modo a poder questionar o contexto a que se reporta a narrativa, os usos das palavras e

expressões naquela cantiga, como verificamos em “Riachão tava cantando”, conhecida

cantiga do Mestre Waldemar, que descreve as feições de um negro em termos

pejorativos, ainda põe em questão a sua condição de homem livre.

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Deste modo, percebemos que mesmo os antigos sambas de roda, convertidos

em cantigas de capoeira, podem ser trabalhados de modo a alertar os alunos para as

formas de preconceito racial, em músicas e outros textos que hoje se tem acesso.

Riachão tava cantando

Na cidade do Açu

Quando apareceu um negro,

Da espécie de urubu Tinha camisa de sola

Calça de couro cru

Beiços grossos e virados,

Como a sola de um chinelo Um olho muito encarnado

O outro bastante amarelo

Ele chamou o Riachão,

Para vim cantar martelo

Riachão arrespondeu

- Eu aqui não tô cantando,

Com negro desconhecido

Ele pode ser cativo

E andar aqui fugido Camaradinha

(Mestre Waldemar)

Lembramos aqui que esta cantiga não foi inicialmente composta para ser cantada

nas rodas de capoeira, mas nos sambas de roda. Apenas por volta dos anos 30 as

cantigas de capoeira passaram a ser compostas por capoeiristas, e com esta finalidade.

Hoje, alguns mestres de capoeira reprovam a execução de cantigas de samba de roda na

roda de capoeira, contudo, o Mestre Pelé da Bomba, o mais idoso e com maior tempo de

capoeiragem entre os entrevistados, afirmou em entrevista que grande parte das cantigas

da capoeira vinha não somente do samba de roda, como também do candomblé.

4.11 Definições da capoeira

São muitas, talvez tantas definições de capoeira quanto os que a definam. Os

argumentos apresentados são vários, transitam entre a subjetividade e as generalizações.

Com diz a célebre frase do filósofo da capoeira, o Mestre Pastinha, “Capoeira é tudo o

que a boca come”.

Campos (2001) apresenta algumas compreensões que a capoeira ao longo do seu

processo histórico adquiriu, ou que atualmente convivem harmoniosamente, como

diferentes feições da capoeira: luta, arte e dança, folclore, esporte, lazer e filosofia de

vida. Contudo não adotaremos estas como subcategorias, considerando o desuso da

capoeira como folclore e a necessidade abordá-la como esporte e ritual.

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Considerando a sua origem e desenvolvimento, a capoeira é luta. A capoeira é

antes de tudo expressão da luta dos negros escravizados como forma de resistir

culturalmente, socialmente e fisicamente. De acordo com Campos (2001), “representa

sua origem e sobrevivência […] como instrumento de defesa pessoal genuinamente

brasileiro.” (CAMPOS, 2001, p. 83). Quanto à sua eficácia, uma cantiga mioto

conhecida adverte: “Zum, zum, zum / Capoeira mata um” (autor anônimo).

Semelhantemente a Campos (2001), Mestre Ezequiel define a capoeira em sua cantiga:

[…]

Uma luta que pode matar

Capoeira, arma poderosa

Luta de libertação

Brancos e negros na roda

e abraçam como irmãos.

(Mestre Ezequiel)

Conforme podemos observar nas cantigas, este é o aspecto que mais é

considerado pelos capoeiristas, ainda que em muitas cantigas a capoeira seja definida

com mais de uma feição, como vemos nos trechos destacados da cantiga do Mestre

Brasília:

É defesa é ataque

A ginga de corpo

E a malandragem

[…]

Capoeira nasceu na Bahia

Pro negro escravo defender

(Mestre Brasília)

De acordo com Rego (1968), os negros escravizados disfarçavam a capoeira luta

com uma forma de dança, praticada nas horas de folga, de modo que os senhores e

feitores ao ver aquela movimentação gingada não se dessem conta que tratava-se do

treino de uma luta. Também no final do período que vigorou o Decreto 847, de 11 de

outubro de 1890, que criminalizava a prática da capoeira, alguns capoeiristas procuraram

esconder o caráter marcial da capoeira através de uma roupagem de dança folclórica.

Contudo a capoeira até hoje é também entendida como arte e dança. Podemos ver a

dupla face luta/dança da capoeira no trecho destacado da cantiga de Mestre Brasília.

Você dança e se defende

Nesta ginga original

Que mexe tanto com a gente

Envolvendo até a mente

Na origem mundial

(Mestre Brasilia)

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A capoeira como esporte foi institucionalizada desde a década de 70 do século

passado. Conforme Campos (2001) relaciona-se ao preparo físico enfocando a

competição desportiva. Contudo, Mestre Pastinha adverte (1988) que deve ser praticada

com cuidado, pois, lembra, possui golpes violentos que podem matar.

Hoje é luta nacional

Surgiu de baixo padrão

Na ginga defesa e ataque

Hoje é esporte e educação

(Mestre Brasília)

Ainda no sentido esportivo, mas de forma menos formal, a capoeira é

frequentemente chamada de jogo. Tanto quanto luta esta feição aparece nas cantigas

tradicionais. Observamos que este termo é tanto usado para designar um caráter

desportivo, quanto para falar da sua feição violenta, conforme observamos nos trechos

de cantigas que seguem.

Olha o jogo de dentro e o jogo de fora

Sou angoleiro que vem de Angola

Jogo por Deus e por Nossa Senhora

Sou angoleiro que vem de Angola

E jogo com você a qualquer hora

Sou angoleiro que vem de Angola

Vou mostrar prá você

O meu jogo de angola

(Autor desconhecido)

Percebemos também a capoeira como uma forma lúdica, associada ao lazer,

praticada nos momentos de folga com a finalidade de divertimento. Conforme dito,

ocorria durante a escravidão, mas também é possível perceber a capoeira como uma

prática lúdica para adultos e crianças, como podemos ver nos trechos selecionados de

algumas cantigas, a roda ou o jogo da capoeira adquire o sentido leve de uma

brincadeira: “Quero ver vocês brincando, com a gente aqui na roda!”.

Se você quiser

Vai ter que praticar

Mas na roda de Capoeira

E’ gostoso de jogar

(Mestre Brasília)

O aspecto educativo da capoeira é percebido através das relações de respeito

com os mestres, da disciplina que este impõe ao aluno e de uma série de princípios e

fundamentos ensinados e aprendidos, de modo informal, pelos alunos que estão

interessados em aprender sobre a capoeira, como vimos quando falamos sobre o mestre,

ancianidade e ancestralidade.

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A capoeira tem uma forte feição ritual que pode ser percebida desde a formação

da roda, à sequencia das cantigas e à saída dos participantes no jogo. Nas cantigas as

referências ao aspecto ritual do jogo pode ser percebida com a descrição da

movimentação do capoeirista, como vemos detalhadamente descrita na cantiga em

destaque:

Na roda de capoeira

Vou no pé do berimbau

Antes da volta ao mundo

Faço pelo sinal

(Mestre Brasília)

Durante a ladainha, os capoeiristas permanecem agachados “no pé do berimbau”

ouvindo sua execução, até quando é cantada a chula, então, dá-se a volta por dentro da

roda como forma de cumprimentar os presentes. Sobre fazer o pelo sinal, é uma prática

realizada pelos capoeiristas católicos ou os identificam como sincretismo religioso,

podendo haver outras formas de realizar suas entradas na roda, saudando os seus orixás

ou realizando algum outro tipo de performance.

Vimos deste modo que as cantigas de capoeira relacionam-se à construção da

identidade cultural afro-brasileira por transmitir valores, princípios e um pouco da

História dos africanos e afrodescendentes no Brasil, com isso trazendo reflexão sobre o

lugar atual do negro na sociedade. Assim, percebemos através das categorias aqui

elencadas elementos do universo afro-brasileiro que são imbricadas na formação desta

identidade cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A capoeira, muito antes do seu reconhecimento como patrimônio cultural

brasileiro em 2008, integra o conjunto da cultura nacional,70

não apenas como uma das

suas formas de expressão, mas também como discurso de liberdade, resistência e luta

por valores com os quais nos identificamos como sujeitos da cultura afro-brasileira.

70

Tomamos o conceito de Stuart Hall (2006) acerca das “culturas nacionais como comunidades

imaginadas” e salientamos o aspecto da cultura nacional apresentar-se segundo o autor, como “uma das

principais fontes de identidade cultural” (p.47).

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Deste modo, a representação cultural da capoeira mostra-se cara aos afrodescendentes,

como um fator de afirmação identitária, e de sua luta social e política, ou seja,

A performance da capoeira é um drama narrativo. Cada vez que

ocorre, ela evoca o ato escravo da rebelião. É digno de nota que a

performance da capoeira somente reencena o confronto, a verdadeira

luta entre escravo e seu opressor, e não retrata sua lógica conclusão: a

fuga. (AQUINO, apud. REIS 2000, p. 180). (Grifo nosso)

Neste sentido, observamos ao longo do trabalho que a capoeira nasce do

contexto da escravidão colonial no Brasil e se apresenta como forma de luta e

resistência física e ideológica, transmitida através da memória e da oralidade, como

podemos ver nas narrativas, nos modos de vida, na corporeidade e nas cantigas dos

mestres e capoeiristas. A capoeira é, portanto, outro canal de expressão de

“fundamentos” e valores do universo afro-brasileiro.

Vimos ao longo deste trabalho que a capoeira é uma tradição multifacetada que

teve seu início no encontro forçado entre diversas etnias, às quais pertenciam negros

africanos escravizados e seus descendentes no Brasil e revelou seu caráter de luta e

resistência libertária. Vimos também que a capoeira vem sendo recriada pelos próprios

sujeitos que a praticam. São estes sujeitos que ressignificam esta tradição, inovando,

criando novos estilos de capoeira, tanto do ponto de vista técnico quanto simbólico.

Considerando os novos contextos nos quais estamos inseridos e do qual a

capoeira opera em conjunto, como os novos meios de comunicação e registro e demais

benefícios proporcionados pelos avanços tecnológicos, bem como as novas frentes de

batalha e resistência que buscam, não a tolerância, mas o respeito à diversidade étnica e

“racial”, à cultura e aos valores afro-brasileiros, dentre os quais OS movimentos sociais,

acadêmicos e culturais, podemos perceber que de modo geral, a capoeira ainda hoje

continua expressando seu caráter dinâmico e de luta social e política no combate à

discriminação e marginalização dos afrodescendentes.

Assim, pôde-se observar, ao longo deste trabalho, que a capoeira expressa seu

caráter ambíguo de diversos modos. Tanto por estar ancorada entre as categorias de luta,

jogo e dança, quanto pelo viés histórico que a relaciona à trajetória dos negros no Brasil.

Podemos ver seu aspecto cultural, social e político, que ainda tem como diferencial uma

série de elementos que entram em cena no momento da roda, dentro e fora dela, o que

lhe confere maior complexidade em ordem social e simbólica.

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Com base na metodologia aplicada nos estudos das representações sociais,

buscamos identificar nas falas dos capoeiristas, através das entrevistas e das cantigas, as

representações que os capoeiristas constroem de si e da sua identidade, como sujeitos da

cultura afro-brasileira e, assim, analisando como estes se expressam nas cantigas da

capoeira.

Deste modo, o estabelecimento das categorias e subcategorias, através das quais

buscamos perceber as cantigas de capoeira como expressão da identidade cultural afro-

brasileira, nos permitiu perceber a estreita relação dos capoeiristas de Salvador em dois

aspectos principais ligados sempre à capoeira. O primeiro, diz respeito à sua origem

étnica, relacionada de modo geral à África e, quando especificada, Angola. Isto se deve

não somente à modalidade capoeira angola, mas também ao país africano, de onde

vieram grande parte dos povos de origem bantu, os quais praticavam o rito de passagem

chamado n’golo, o qual é a manifestação de origem africana conhecida que mais se

assemelha ao jogo da capoeira.

Notamos que de modo geral as referências aos valores afro-brasileiros permeiam

quase todas as cantigas, bem como a história dos afro-brasileiros, dentre as quais a da

criação da própria capoeira, apresentando-se principalmente como resultantes das

lembranças do tempo da escravidão. Neste caso, notamos a memória e a oralidade como

principais valores envolvidos neste processo de criação.

Tais referências ocorrem nas cantigas, tanto através de ideias ,como através de

palavras específicas que remetem ao discurso da identidade afro-brasileira. Assim,

percebemos como na cantiga que diz: “Vou dizer ao meu sinhô, que a manteiga

derramô” (autoria desconhecida), algo que remete à relação “senhor-escravo”. Neste

sentido notamos a construção de um todo de referências da identidade afro-brasileira,

que é maior que a soma das suas partes. Deste modo, percebemos que os capoeiristas,

na composição das suas cantigas, buscam declaradamente expressar valores, histórias e

experiências relacionadas ao universo afro-brasileiro, e esta intencionalidade pode ser

vista pelos capoeiristas como principal elemento das cantigas tradicionais da capoeira.

Por este motivo muitos capoeiristas reprovam a execução de cantigas de outras formas

de composição, que não seja no modelo de ladainha, quadra, chula ou corrido e que não

tenham a intenção de falar sobre o universo afro-brasileiro.

Cumpre salientar que o momento de criação de muitas cantigas de capoeira é

durante a própria roda. A composição se dá de forma espontânea, o que não quer dizer

que não existiu reflexão prévia sobre a temática, ou mesmo sobre os termos a serem

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usados no momento da roda ou do treino. Após isso as cantigas vão se aprimorando de

treino em treino, de roda em roda, à medida em que são cantadas, até ganhar sua versão

final. Outras vezes, logo quando surge a cantiga, toma-se nota e faz-se as modificações

no papel posteriormente. Por estes motivos, podemos perceber ao comparar dois

registros da mesma cantiga, feito por mestres diferentes, ou ainda pelo mesmo mestre,

em momentos diferentes, algumas variações de palavras, ordem das estrofes e ideias.

Deste modo, compreendemos que o principal contexto de produção das cantigas,

é o momento da roda ou treino de capoeira, no qual ocorre sua elaboração, e ao mesmo

tempo ela se produz e se comunica. Observamos também que existem cantigas que são

conhecidas entre grande parte dos capoeiristas, em sua maioria composições de

capoeiristas desconhecidos, ou sambas de roda de épocas em que eram cantadas nas

rodas de capoeira por não haver cantigas específicas da capoeira.

Foi observado que à exceção de dois mestres, os demais utilizam em seus treinos

meio de reprodução de áudio, através de CD’s e/ou mp3 player, com músicas de

capoeira cantadas por mestres como Waldemar, Bimba, Canjiquinha, Boca Rica e

Acordeon, dentre outros. Com isto notamos que as novas tecnologias são usadas na

capoeira como uma forma de fazer conhecer ainda mais as cantigas tradicionais da

capoeira, pois, as cantigas registradas por estes mestres são entendidas por grande parte

dos capoeiristas como modelos de como compor, como tocar e como cantar as cantigas

tradicionais. Também foi possível notar, como no caso do grupo de capoeira Bantu, do

Mestre Valdec e da FICA, do Mestre Valmir, que alguns grupos possuem CD’s próprios

e publicações contendo registro das cantigas executadas em seus treinos e rodas. As

cantigas destes CD’s podem ser de composição do próprio grupo, em produção

individual ou coletiva, ou cantigas de mestres conhecidos ou ainda de autor anônimo.

Observa Rego (1968) no seu livro “Capoeira Angola”, que é arriscado tentar

estabelecer uma linha divisória entre as cantigas de capoeira mais antigas e as mais

recentes, uma vez que a sua maioria reproduz um padrão, e diversos elementos das

cantigas antigas são encontrados nas cantigas de composição recente, bem como

personagens e fatos do passado que ainda hoje são mencionados nestas cantigas.

Contudo, algumas cantigas mais recentes podem ser identificadas, considerando

alguns aspectos específicos, como a religiosidade afro-brasileira, com a exaltação

declarada aos orixás. Fato que quando ocorriam as referências à religiosidade, nas

cantigas de capoeira mais antigas, são citados mais nomes e práticas católicas, ainda que

algumas cantigas mencionem algum orixá, este poderia ser encoberto por nomes de

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santos católicos como na chula de autoria desconhecida que diz: “Santa Bárbara de

relampuê”, ou “Valha me Deus, Senhor São Bento”. Também a religiosidade afro-

brasileira aparece em frases de efeito como “Quem não pode com a mandinga, não

carrega patuá.” ou “Bahia minha Bahia/Bahia dos Orixás/ Bahia de Menininha/

Menininha do Gantois.”.

Atualmente podem ser verificadas cantigas de capoeira que exaltam o nome de

Jesus Cristo. Fato decorrente do crescimento dos grupos evangélicos em Salvador,

iniciado a partir da segunda metade do século passado. Devemos ressaltar que estas

cantigas são compostas e cantadas apenas entre os grupos específicos formados por este

segmento religioso.

Alguns trechos ou estrofes inteiras são encontrados em cantigas diversas, alguns

apenas na modalidade chula, ou somente nos corridos, contudo podem também ser

encontradas em duas ou mais modalidades de cantigas, do mesmo modo que podem ser

encontradas em modalidade ladainha, na capoeira angola e na quadra da regional, cujos

trechos destacaremos e faremos as devidas anotações.

De acordo com as palavras do Mestre Valmir Damasceno, quando diz que: “A

música na capoeira é a expressão de uma coisa que você está sentindo, que você está

vivendo, de uma coisa que aconteceu no passado, que aconteceu no presente.” (Mestre

Valmir em entrevista concedida à pesquisa), podemos perceber que a noção de

temporalidade nas cantigas da capoeira imbrica o passado com o presente, no sentido de

proporcionar um constante relembrar e refletir sobre a situação do homem negro-

africano e seus descendentes. Tirados da sua terra natal como mercadoria, os africanos

chegaram ao Brasil como escravos, enfrentaram as situações desumanas do cativeiro,

dos trabalhos forçados, das coações e tentativas de torná-los objetos destituídos de alma

e humanidade.

Com a abolição, a maioria dos afro-brasileiros foi vista e tratada como cidadãos

de segunda classe, e, ainda hoje, grande parte é privada do acesso a bens e direitos

básicos, como moradia digna, educação de qualidade e saúde. Hoje, contudo, sob o

título de classe social, o que antes seria “classe racial”, visto que no Brasil, a pobreza e a

miséria, todos sabem, tem cor.

Deste modo, podemos perceber nas cantigas da capoeira não somente a intenção

de não se esquecer desse capítulo do passado compartilhado pelos ancestrais, como

também, com base nessa história, a intenção de enfatizar as lembranças das lutas e

resistências organizadas por esses africanos e afrodescendentes, os heróis, o modo de

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vida, os valores, costumes e crenças e o processo de formação do que resulta no que

podemos chamar de culturas e identidades afro-brasileiras, que como tal, encontra-se

em permanente movimento. Neste sentido, longe de aceitar resignadamente a sujeição

aos senhores e autoridades, africanos e afrodescendentes resistiram e lutaram de

diversas formas. Deste modo, notamos que as cantigas de capoeira mostram-se como

uma das manifestações que promovem esta articulação do passado com o presente.

Outro aspecto que podemos perceber neste trabalho com relação às cantigas de

capoeira, diz respeito ao seu forte caráter local e regional. Vimos em Reis (2000), que

desde os anos 30 do século passado, a capoeira foi considerada esporte nacional,

lembrando a autora que o modelo da capoeira nacionalizado foi a capoeira baiana. Neste

sentido observamos que em Salvador as cantigas de capoeira, em sua maioria, procuram

salientar a capoeira como uma criação baiana. Assim, observamos que ao mesmo tempo

em que essas cantigas tratam do drama da escravidão, da “libertação” do negro

escravizado, das lutas, dos instrumentos da capoeira, dos valores afro-brasileiros e da

situação geral do negro no Brasil, também na vemos a celebração dos grandes mestres

da capoeira baiana, como Canjiquinha, Waldemar, Pastinha, bem como grandes mestres

baianos que levou a capoeira baiana para outros estados; a alusão a locais de Salvador

como o Bonfim, o Pelourinho e a Piedade e a cidades da Bahia, como Santo Amaro se

referirem a um local, a uma Bahia que procura se afirmar berço da capoeira original e

“legítima”, por isso considerada a “meca da capoeira”.

Deste modo percebemos esse movimento de localização da capoeira baiana em

Salvador e na Bahia, restrita exclusivamente às modalidades angola e regional. Como

uma construção que deve a sua manutenção tanto à sociedade civil, principalmente à

parcela formada pelos próprios capoeiristas, quanto ao poder público estadual e

municipal, no que concerne às propagandas das suas obras públicas e formas de

divulgar a Bahia como destino turístico, no qual a cultura afro-brasileira é o principal

diferencial e produto cultural.

Reis (2000) evidencia a promoção da capoeira baiana como a capoeira

“autêntica”, e o consequente esquecimento da capoeira carioca, entendendo a carioca e

as demais modalidades de capoeira, como inautênticas. Considera que “pode ser

interpretada como um embate político travado no interior de alguns segmentos negros

da população brasileira empenhados na hegemonia da cultura negra no país.” (REIS,

2000, p. 97), contudo a autora não informa quais seriam estes segmentos. Mesmo assim,

é possível perceber que esta localização da capoeira baiana tomou feição mítica a partir

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da sua tentativa de regular a atividade capoeirística, considerando que houve em outros

momentos, outras tentativas de regular esta atividade.

Pudemos perceber com este trabalho que uma série de interesses entraram no

jogo da capoeira, como os interesses políticos da época da sua nacionalização, que

convenientemente correspondiam aos anseios da política nacionalista; também os

projetos do Mestre Pastinha, nos quais a capoeira Angola era pensada como a

representante da “capoeira africana”; e o projeto da capoeira regional do Mestre Bimba,

como a representante da capoeira da sua região, conforme sugere o próprio, mesmo sem

considerar os “segmentos negros da população” os quais Reis (2000) aponta como

grupos ligados aos movimentos negros o que, visto por este ângulo, denotaria a

prevalência da militância baiana, seja pela luta, pelas relações, seja pelos anseios do

governo populista.

Hoje percebemos que esses fatos foram fundamentais para a mitificação de

Salvador, se não como berço, ao menos como a “meca da capoeira”, e atrelado a este

status podemos observar a expansão do turismo em Salvador e a comercialização da

cultura e da imagem afro-brasileira no mercado da cultura e do turismo, o que leva a

alguns capoeiristas a criar adaptações na capoeira, reprovadas por muitos mestres mais

tradicionais.

Os mestres que trabalham com os segmentos mais tradicionais da capoeira, e

seus discípulos, consideram tais adaptações como descaracterizações da capoeira, por

estarem cedendo a uma demanda com a qual não se identifica nenhum aspecto da

cultura afro-brasileira, mas a uma nova forma de exploração desta cultura. Contudo,

notamos que os mestres não se opõem às mudanças decorrentes de novas necessidades,

e às adaptações da capoeira ao contexto atual, tais como a entrada das mulheres na

capoeira, o uso de aparelhos de reprodução de áudio, visto que nem sempre há no

momento do treino pessoas suficientes para a prática dos movimentos e composição da

orquestra, principalmente da capoeira angola; o uso e consultas aos livros sobre a

capoeira, em conjunto com as práticas orais; a publicação de livretos em papel e digital

contendo as cantigas que o grupo canta nos treinos e rodas, algumas vezes, dependendo

do público a que se destina são seguidas das traduções para o inglês e francês para que

não somente a questão musical seja passada, mas também o conteúdo e o discurso

presente nestas cantigas.

Notamos que a capoeira se formou juntamente com a História do negro no

Brasil. A capoeira passou diversas transformações processuais, tanto como prática (luta,

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dança, esporte e patrimônio nacional), tornou-se também um ritual que envolve

instrumentos e cantos, movimentação e filosofia de vida, ou seja, a forma de se

relacionar com os outros e consigo mesmo, de perceber e reagir aos acontecimentos do

cotidiano.

Assim, das senzalas às maltas e aos mestres Bimba e Pastinha, pudemos

perceber as cantigas de capoeira como expressão que procura rememorar e manter viva

na memória dos afro-brasileiros a trajetória do negro no Brasil. Deste modo,

percebemos nas cantigas seu caráter cultural, social e político, pois, ainda se faz

necessário discutir em várias frentes sobre questões que envolvem a etnicidade, a

nacionalidade, bem como questões relacionadas ao racismo e às desigualdades sociais e

segregação urbana, estes dois últimos, sabe-se que atrelados, haja vista considerando os

estudos de Garcia (2009) que trata das desigualdades raciais nas cidades de Salvador e

do Rio de Janeiro.

Por fim, desejamos com o presente estudo acerca das feições da identidade

cultural afro-brasileira, expressada através das cantigas de capoeira em Salvador, ter

contribuído para as reflexões sobre a cultura afro-brasileira e para pensar sobre o papel

das cantigas que seguem os moldes tradicionais e o seu iniciado processo de

descaracterização ante as exigências de fatores externos, como a indústria do turismo

em Salvador. Pensando o quê ou quais seriam as inovações que mantém as referências e

permitem a sensação de continuidade histórica e cultural, ou a partir de quando se trata

do desenvolvimento uma caricatura cultural, se é que isto de fato acontece.

Vimos, tanto nas cantigas, quanto nas entrevistas, que a capoeira baiana propõe a

ideia de uma capoeira pontuada pelo exercício integrado, do corpo e dos fundamentos,

baseada no respeito às tradições e na valorização da identidade afro-brasileira. De

acordo com as palavras do Mestre Valmir, “A música na capoeira é a expressão de uma

coisa que você está sentindo, que você está vivendo, de uma coisa que aconteceu no

passado, que acontece no presente.” (Mestre Valmir em entrevista concedida à

pesquisa). Nesta fala, podemos perceber que esta temporalidade estabelece referência da

chegada dos africanos no Brasil ao momento presente, o qual a memória ancestral dos

que aqui aportaram se faz presente e se expressa nas cantigas. Disto, podemos concluir

que o principal papel das cantigas de capoeira é manter viva na memória dos

capoeiristas as referências das lutas dos seus antepassados na construção da identidade

afro-brasileira, a qual hoje somos portadores e sujeitos das suas ressignificações.

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A relevância do presente estudo está em pensar nas cantigas dando visibilidade a

estas, destacando sua feição de documento da oralidade, que contam e expressam o que

há nas vivências e nas memórias dos afrodescendentes, que tratam de processos e

elementos que forjaram e hoje põem em constante movimento a identidade afro-

brasileira destes sujeitos sociais, culturais e políticos.

Conforme observa Rego (1969), “as cantigas de capoeira fornecem valiosos

elementos, para o estudo da vida brasileira, em suas várias manifestações, os quais

podem ser examinados sob o ponto de vista linguístico, folclórico, etnográfico e sócio-

histórico.” (REGO, 1969, p.127). Nesta perspectiva, percebemos, e é isto que

procuramos destacar nesta pesquisa, que estas cantigas da capoeira cantadas em

Salvador apresentam forte potencial para estudo das representações dos capoeiristas e

da identidade afro-brasileira. Escolhemos para a presente pesquisa o viés da Crítica

Cultural que atrela aos objetivos do estudo, a carga social e política na qual está

envolvido nosso objeto de pesquisa. Assim sendo, neste estudo investigamos as

representações dos capoeiristas vinculadas e veiculadas nas cantigas de capoeira que são

cantadas em Salvador, delineamos alguns aspectos da identidade afro-brasileira que

expressam as ideias de afro-brasilidade por parte dos compositores e/ou cantadores das

cantigas de capoeira. Deste modo, demonstramos com este trabalho que as cantigas da

capoeira podem ser percebidas como elementos que expressam aspectos significativos

da identidade afro-brasileira dos capoeiristas que atuam em Salvador. Buscamos com a

presente pesquisa, oferecer aos capoeiristas e amantes da capoeira um instrumento que

instigue a reflexão e o debate acerca das produções cantadas nas rodas e treinos de

capoeira, principalmente no que carrega aspectos importantes da construção da

identidade cultural afro-brasileira. Para estes então, fica o debate.

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ANEXOS

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ANEXO I - Cantigas citadas no texto.

O meu mestre me ensinou

Mestre Brasília

CD: As melhores do Mestre Brasília

Capoeira, capoeira

O meu mestre me ensinou

A jogar capoeira

Capoeira, capoeira

O meu mestre me ensinou

A jogar capoeira

Na roda de capoeira

Tem pandeiro e agogô

Vou jogar com o meu mestre

Foi ele que me ensinou

Refrão:

Na roda de capoeira

Vou no pé do berimbau

Antes da volta do mundo

Faço o pelo sinal

Refrão:

Meu mestre muito obrigado

Pela luz que tu me deu

O segredo da mandinga

Que muito me protegeu

Refrão:

Santa Maria Mãe de Deus

Anônimo

Treino de capoeira do Grupo Bantu, 2011.

Santa Maria mãe de Deus

Cheguei na igreja e me confessei71

Santa Maria mãe de Deus

Cheguei na igreja me ajoelhei.

71

Outras versões desta mesma cantiga é também cantada “Cheguei na igreja, não me confessei.”

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Santo Antônio é meu protetor

Anônimo

Roda de capoeira do Conjunto ACM

Santo Antônio é meu protetor

Protetor da capoeira

Santo Antônio meu protetor

Protetor do berimbau

Santo Antônio meu protetor

Menino quem foi teu mestre

Mestre Bimba

CD Curso de capoeira regional

Iê quem foi teu mestre

Menino quem foi teu mestre

Mestre foi Salomão

Discípulo que aprendo

Mestre que dou lição

O Mestre quem me ensinou

No engenho da Conceição

A ele devo dinheiro,

Saúde e obrigação

Segredo de São Cosme

Mas quem sabe é São Damião

Camará

Água de beber

Ei Aruandê

Aia camaradinha

Ai tamo na escola

Óia Aprendendo a ler

E carta de ABC

Ah faca de ponta

Ei sabe furar

Iê quer me matar

Ai viva Deus do céu

Aia Viva meu mestre

Iê quem me ensinou

Aiai a malandragem

Iê volta do mundo

Menino quem foi seu mestre

Anônimo

(REGO, p. 102)

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Minino quem foi seu mestre

Meu mestre foi Barroquinha

Barba ele não tinha

Metia o facão na poliça

E paisano tratava ele bem.

Quando eu era pequeno

Mestre Marcelo de João Pequeno

(Em entrevista, abril/2011)

Quando eu era pequeno

Gente de pouca idade

Eu não tinha nem dois anos

Conheci a fatalidade

O meu pai foi para o trabalho

Não sei bem o que aconteceu

Mas vi minha mãe chorando:

“Filho o seu pai morreu”

Me criei no sofrimento

No meio de uma escuridão

Quanto mais eu me aprumava,

mais caia pelo chão

Uma criança tão pequena

vivendo sem ter paz

E um homem tão adulto

chorando a falta do pai.

Mas um dia fui crescendo

aprendendo a brincadeira

Conheci João Pequeno

que é grande na capoeira.

E eu entrei na capoeira

prá aprender como se dança,

Tocando meu berimbau,

mostrando que eu também sou bamba,

meu camaradinho.

Improviso

Mestre Valmir

(Em entrevista abril/2011)

Iê!

Hoje é uma sexta-feira,

Hoje é uma sexta-feira,

Olha lá, dia de São Pedro

Olha vinte e oito de junho

Aqui viemos lembrar

Vim trazer a capoeira

De um momento eu vou lembrar

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Olha lá cheguem amigos

É hora de celebrar

Berimbau marcou angola

Olha o médio a inverter

A viola chegue chorando

Olha lá nós vamos ver

Meu camarado chegue aqui

Agora vamos jogar

Olha lá jogo da vida

Jogo de angola

Olha lá chegue aqui

Camará

É hora nós vamos lá

camará

Às Vezes Me Chamam de Negro Mestre Ezequiel

(KUBOHARA, 2009)

Às vezes me chamam de negro

Pensando que vão me humilhar

Mas o que eles não sabem

É que só me fazem lembrar

Que eu venho daquela raça

Que lutou pra se libertar

Que eu venho daquela raça

Que lutou pra se libertar

Que criou o maculelê

Que acredita no candomblé

Que tem o sorriso no rosto

A ginga no corpo e o samba no pé

Que tem o sorriso no rosto

A ginga no corpo e

o samba no pé

Que fez surgir de uma dança

Uma luta que pode matar

Capoeira, arma poderosa

Luta de libertação

Brancos e negros na roda

e abraçam como irmãos

Capoeira revelou De: Rose Meire Sant’Anna Araújo (Speed)

Festival da musica tradicional da capoeira

Quando eu falar da capoeira

Fale de ancestralidade

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Não esqueça meu irmão

Sua verdadeira identidade

A capoeira revelou

Pra você não esquecer

Negros e índios, meus irmãos

Apanharam pra valer

Tudo isso é muito forte

Pra poder recordar

Mas essa é nossa História

Temos que fazer respeitar

Capoeira, que capoeira

Se respeita meu irmão

Muitas vezes tive raiva

Do fundo do coração

Essa raiva emocionada

Que só nos fez chorar

Em pensar que o povo negro

Sofreu tanto pra poder se libertar

Esses fatos são relatos

De tamanha covardia

Nos tiraram do acalanto

E da profunda harmonia

Pensando que o negro era

Frágil, meu senhor

Massacraram nossa raça

Achando que não tínhamos valor

Apesar de tanto sofrimento

O negro se libertou

Imperando sua alegria

Ensinando sua filosofia

Se auto-afirmou

Iê, viva o negro

Viva o negro, camará

Iê, se libertou

Se libertou , câmara

O Japão disse que quer

Shinji Kubohara

KUBOHARA, 2000

O Japão disse que quer

O Japão disse que quer

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O Brasil disse que dá uma arte mandingueira

Luta, dança, capoeira

Ela nasceu na senzala

Sua Meca é a Bahia

Mestre Bimba e Pastinha

Canjiquinha e Caiçara

Brincadeira de criança

Negro de sabedoria

Ela também é carioca

Malta, Zuma e Pernada

Senzala e seu Camisa

Leopoldina, velha guarda

Foi prá terra da garoa

Expandiu pelo mundo agora

Ananias e Brasília

Paulo Gomes e Suassuna

Vamos dar a volta ao mundo

Vem vadiar com a gente camará

Ancestrais africanos De: Nicolas Severin

Festival da musica tradicional da capoeira

Quando da África eu cheguei

Me trouxeram os portugueses

Travessia em caravela

Passei fome e humilhação

Num porão bem apertado

Dentro desta embarcação

Minha família eu perdi

Nunca mais vi os meus amigos

Até quisera tirar

A cultura que eu aprendi

Com esforço na Bahia

África eu reconstruí

Hoje canto capoeira

Danço n’golo com paixão

Você pode ter certeza

Disso eu não abro mão

Muito duro foi o trabalho

Pra manter a tradição

A palma de Bimba

Mestre Itapoan

DE: Capoeira 100% regional

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A palma estava errada

Bimba parou outra vez

Bata esta palma direito

A palma de Bimba e um, dois, três

Olha a palma de Bimba

É um, dois, três

Se você é devoto de Bimba

Na roda ele vai lhe ajudar

Mas se não é, sai correndo

Que a roda ta aberta, E o bicho vai pegar

E a palma de Bimba é um, dois, três

Olha a palma de Bimba

E um, dois, três

A quadra estava errada

Bimba parou outra vez

Cante esta quadra direito

A palma de Bimba é um, dois, três

Olha a palma de Bimba

E um, dois, três

A Iuna estava errada

Bimba falou outra vez

Não maltrate esta arte moleque

E a palma de Bimba é um, dois, três

Olha a palma de Bimba

E um, dois, três

A ginga estava errada

Bimba parou outra vez

Ô ginga bonito moleque

E a palma de Bimba é um, dois, três

Olha a palma de Bimba

E um, dois, três

Essa terra não tem dono Ana Luiza Lemos Tomich (Sereia)

Festival da musica tradicional da capoeira

Essa terra não tem dono

Essa terra não tem dono

Essa terra é de ninguém

Todos querem se apropriar

Todos querem se dar bem

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Ter dinheiro prá comprar

Acha que tudo é usura

Se já tem tudo na Terra

Fica de olho na Lua

Ter o poder da palavra

Ser o dono da verdade

E que falta é a humildade

E saber reconhecer

Que o orgulho cega os olhos

E tropeça na ganância

Falo isso meu amigo

Prá não te ver na lama

É virtude do espírito

É virtude do espírito

Saber o que é valor

A capoeira é um exemplo

Ensina a mandinga

A importância do respeito

E o bom da malandragem

Quem inventou foram o s escravos

E passou por gerações

Mestre Bimba e Pastinha

Não quebraram essa corrente

Ensinaram para os mestres

E os mestres ensinam par’a gente, camá

Bahia, minha Bahia

Mestre Pastinha

CD: Capoeira angola – Mestre Pastinha e sua academia

Bahia, minha Bahia

Bahia do Salvador

Quem não conhece capoeira

Não lhe pode dar valor.

Todos podem aprender

General até doutor

Mas, prá isso é necessário

Procurar um professor

(resposta do meu ex-aluno Colmenero)

Professor de capoeira

Nessa velha capital

Não se iluda minha gente

Mestre Pastinha é sem igual.

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139

Maré me leva

Mestre Boa Voz

CD: Capoeira vol. 1

Maré Me Leva

coro

Maré me leva;

Maré me traz

A vida do capoeira;

É como a do pescador;

A onda balança o barco;

E a ginga o jogador;

coro

O vento sobrou nas velas;

Balançando a minha nau;

Na roda de capoeira;

Quem me leva é o berimbau;

coro

A noite olho as estrelas;

Que é pra me orientar;

Bom Jesus dos navegantes;

É quem me guia pelo mar;

coro

Na rede vem a traíra;

Um peixe que morde a mão;

Na roda brilha a navalha;

E os cinco salomão;

coro

Às vezes a pesca é boa;

Às vezes o jogo é bom;

Mas quando nada dá certo;

Eu volto a tentar então.

Tem que ter muita fé

Mestre Suassuna

CD: Tem que ter fé e muito axé

Mas você que é Baiano ouça ai

Um conselho que eu tenho pra te dar

Você tem que aprender capoeira,

ser Baiano é saber gingar

é tocar berimbau mandingueiro,

O pandeiro e saber sambar

Tem que ter muita fé

e muito Axé, sorriso no rosto

e gingado no pé

Tem que ter muita fé e muito Axé

Senhor do Bonfim em que ter muita fé

Tem que ter muita fé e muito Axé

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Valha-me deus tem que ter muita fé

Tem que ter muita fé e muito Axé

A historia de Bimba e Pastinha

Canjiquinha e Totonho de Maré

Passar no Mercado modelo,

ver a capoeira como é que é

Tem que ter muita fé e muito Axé

é comer um ximxim de galinha

muita pimenta no acarajé

Vatapá, caruru e abará

E a famosa moqueca de Tucunaré

Tem que ter muita fé e muito Axé

é conhecer o sul da Bahia,

de Ilhéus, Itabuna até Itacaré

A historia de Séo Caruru

Maneca Brandão e de Mestre Abné

Tem que ter muita fé e muito Axé

Bahia que tem dendê Autor Marcelo de Castro (Cristal)

Festival da musica tradicional da capoeira

Bahia que tem dendê

Terra dos orixás

Bahia de Bimba, Pastinha,

Aberre, Waldemar do Pero Vaz

Bahia de encanto e magia

Terra de mãe Menininha

Das baianas do acarajé

Regina, Cira e Dinha

Bahia do sincretismo

Terra de igrejas e ladeiras

Bahia do candomblé

Do samba de roda e capoeira

Bahia de tradição

Terra das tijubinas

Das formaturas, emboscada de Bimba

No Nordeste de Amaralina

Bahia, minha Bahia

Que o tempo não faz voltar

Nas rodas do barracão

No Pero Vaz de Waldemar

Bahia dos angoleiros

Terra do maculelê

E dos mestres do passado

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141

Waldemar, Pastinha e Aberrê.

Vou treinar capoeira

Anônimo

(KUBOHARA, 2009)

Vou treinar capoeira

Mestre Bimba criou

Capoeira regional

De São Salvador

Mestre Bimba me chamou

Prá treinar a capoeira

Pegando na minha mão

Ensinou a ginga da capoeira

A seqüência é o ABC

Da capoeira regional

Aprender a reagir

Atacar e defender

Quando aprendi a sequencia

Ele chamou um formado

Menino preste atenção

Você vai entrar no aço

Quando o jogo acabou

Ele olhou para o formado

Lhe dizendo em seguida

Dê um apelido ao camarado.

Capoeira Angola perdeu seu criador

Anônimo

(KUBOHARA, 2009)

Capoeira angola

Perdeu seu criador

Perdeu Mestre Pastinha

Um grande professor

A Bahia tá de luto

Capoeira também

Ai meu Deus, com noventa e dois anos

Não podia mais andar

Ficou cego, paralítico

Não podia mais jogar

Ele morreu, foi para o céu

Com seu Bimba se encontrar

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142

São Pedro já reservou um lugar prá

capoeira

Outro pro seu criador

Ele jogava capoeira angola

Ele jogava capoeira angola

Vicente Ferreira Pastinha

Ele jogava capoeira angola... [coro]

Eu nasci na capoeira

Mestre Pastinha

CD: Mestre Pastinha e sua academia

Eu nasci para a capoeira

a capoeira homem me fez

Só deixarei a capoeira

Quando eu morrer

Quando eu vejo capoeira

Muitas coisas me faz lembrar

Me lembro de mestre Bimba

De Pastinha e Waldemar

Lembro de Aberrê, Colega velho

Doze Homens e Sabará

Lembro de Cobrinha verde

E Besouro Mangangá

Eles foram os velhos mestres

Que já se foram e não vão voltar

Eles foram pró infinito

Deus lhe bote em um bom lugar

Saudação a Zumbi

Mestre Régis e Jair

Festival da música tradicional da capoeira

Leva eu meu povo

Eu também quero ir

Jogar minha capoeira

Hoje eu vou saudar Zumbi

Lá em palmares

Aonde Zumbi atuou

Filosofia de vida

Das negras ensinou

Um canto livre

Foi o que Zumbi sonhou

Ô Zumbi se eu sou livre

Você muito me ajudou

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143

Ô leva eu...

Negro Zumbi

Foi um criolo inteligente

Um criolo de coragem

Que lutou por sua gente

Se eu sou negro

De zumbi sou descendente

É jogando capoeira

Que eu me sinto tão contente

Ô leva eu...

Besouro Mangangá

Mestre Pastinha

CD: Capoeira angola – Mestre Pastinha e sua academia

Besouro Mangangá, Besouro Mangangá

Besouro, Besouro, Besouro,

Coro:

Besouro Mangangá

Besouro Mangangá

Cidade de Santo Amaro

Terra do Maculelê

Viu os Mestres Popo e Vavá

E viu Besouro a nascer

[…]

Besouro cordão de ouro

Manoel Henrique Pereira

Desordeiro pra polícia

Uma lenda pra capoeira

[…]

A lenda diz que Mangangá

Também sabia voar

Transformando em besouro

Pra da polícia escapar

[…]

Mataram Besouro Preto

Não foi tiro nem navalha

Com uma faca de tucum

Na velha Maracangalha

[…]

Capoeira é defesa, ataque

Mestre Brasília

CD: As melhores do Mestre Brasília

Capoeira

É defesa é ataque

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144

A ginga de corpo

E a malandragem

Capoeira

É defesa é ataque

A ginga de corpo

E a malandragem

São Francisco Nunes

Preto velho meu avô

Ensinou para o meu pai

Mas meu pai não me ensinou

Capoeira

É defesa é ataque

A ginga de corpo

E a malandragem

O Maculelê

A dança do pau

Na roda de capoeira

Quem comanda é o berimbau

Capoeira

É defesa é ataque

A ginga de corpo

E a malandragem

Eu já tive em Moçambique

Eu já tive em Guiné

Tô voltando de Angola

Com o jogo de Malé

Capoeira

É defesa é ataque

A ginga de corpo

E a malandragem

Se você quiser aprende

Vai ter que praticar

Mas na roda de Capoeira

E’ gostoso de jogar

Capoeira

É defesa é ataque

A ginga de corpo

E a malandragem

Tim, Tim, Tim, Lá Vai Viola Mestre suassuna

CD: Tem que ter fé e muito axé

O moleque chegou lá em casa,

Perguntando o que eu ia fazer,

Eu vou no mato, vou pegar biriba,

Pra minha viola fazer,

Coro: Tim, tim, tim lá vai viola

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145

Digue, digue, digue, digue, digue, digue, dom,

Coro: Tim, tim, tim lá vai viola

Ê mas viola meu bem, mas não é violão,

Coro: Tim, tim, tim lá vai viola

Ê lá vai viola,

Coro: Tim, tim, tim lá vai viola

A roda tava desanimada,

O povo mal queria cantar,

Foi eu pegar na viola,

A roda inteira começou a jogar

Coro: Tim, tim, tim lá vai viola

Digue, digue, digue, digue, digue, digue, dom,

Coro: Tim, tim, tim lá vai viola

Ê mas viola meu bem, mas não é violão,

Coro: Tim, tim, tim lá vai viola

Ê lá vai viola

Coro: Tim, tim, tim lá vai viola

Ai, ai, aidê

Anônimo

Ai, ai, aidê, joga bonito

que eu quero aprender

Ai, ai,aidê joga bonito

que eu quero ver

Ai, ai, aidê, na roda de angola

Eu sonhei com você

Ai, ai, aidê, joga bonito

que eu quero aprender

Biriba é pau, é madeira

Anônimo

CD: Capoeira Angola – Mestre Boca Rica e Bigodinho

Madeira de maçaranduba

Madeira de jacarandá

Madeira de maçaranduba

Madeira de jacarandá

Biriba é pau, é madeira

Madeira prá tocar

Biriba é pau,é madeira

Tocou, deixa tocar

Biriba é pau é madeira...

Cabôco do mato

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146

Anônimo

REGO, 1968

Cabôco do mato vem cá

O meu berimbau

Mando lhe chamá.

Capoeira tem sangue na veia

Mestre Bigodinho

(Kubohara, 2009, p. 188)

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

Seja de noite ou de dia

Não importa o lugar

Quando toca o berimbau

Dá vontade de jogar

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

Na roda de capoeira

Todos têm o seu valor

Eu respeito a um aluno

Quanto mais um professor

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

O astral de capoeira

Vem do som do berimbau

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

Esse gunga é meu

Anônimo

CD: Capoeira Angola Mestre Acordeon

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147

Esse gunga é meu, esse gunga é meu

Gunga é meu, eu não posso vender

Esse gunga é meu, esse gunga é meu

Gunga é meu, foi meu pai que me deu

Eu vou ler o B-A-Bá

Mestre Pastinha

CD : Capoeira angola

Eu vou ler o B-A-Bá

B-A-Bá do Berimbau

a moeda e o arame

com dois pedações de pau

a cabaça e o caxixi

aí está o berimbau

Berimbau é um instrumento

que toca numa corda só

vai tocar São Bento Grande

toca Angola em tom maior

agora acabei de crer

o Berimbau é o maior

Camaradinho

Yê Viva meu Deus

Yê viva meus Deus camarado

Capoeira nasceu na Bahia

Mestre Brasília

CD: As melhores do Mestre Brasília

Capoeira nasceu na Bahia

Pro negro escravo defender

Capoeira nasceu na Bahia

Pro negro escravo defender

O baiano espalhou pelo mundo

O grande esporte prá você ver

Capoeira nasceu na Bahia

Pro negro escravo defender

La La La uê

La La La uê, capoeira La La La uê

La La La uê, La La La uê

La La La uê, capoeira, La La La uê

Um esporte que é brasileiro

Com som berimbau, atabaque e pandeiro

Um esporte que é brasileiro

Com som berimbau, atabaque e pandeiro

Hoje é luta nacional

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148

Surgiu de baixo padrão

Na ginga defesa e ataque

Hoje é esporte e educação

La La La uê

La La La uê, capoiera, La La uê

La La La uê, La La La uê

La La La uê, capoeira, La La La uê

Sou angoleiro que vem de angola

Anônimo

KUBOHARA, 2009

Sou angoleiro que vem de Angola

Valha meu Deus minha Nossa Senhora

Sou angoleiro que vem de Angola

Tocando pandeiro, berimbau e viola

Sou angoleiro que vem de Angola

Olha o jogo de dentro e o jogo de fora

Sou angoleiro que vem de Angola

Jogo por Deus e por Nossa Senhora

Sou angoleiro que vem de Angola

E Jogo com você a qualquer hora

Sou angoleiro que vem de Angola

Vou mostrar prá você

O meu jogo de angola

Valha-me Deus Nossa Senhora

Mestre Bimba

Valha-me Nossa Senhora

Mãe de Deus, o Criador

Nossa Senhora me ajude

Nosso Senhor me ajudou

Camará

Água de beber

Ei Aruandê

Joga pra lá

E campo de mandinga

Ai é mandingueiro

Ai ele é cabeceiro

Aiai sabe jogar

Aiai a capoeira

Òia Regional

Iê volta do mundo

Joga ai que eu quero ver

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149

Mestre Boa Gente

CD: Mestre Itapoan: Capoeira Voices Vol.2

Joga ai que eu quero ver

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

Capoeira é para homem, menino, menina e mulher!

Capoeira da Bahia, não aprende

quem não quer!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

Capoeira é uma arte de Angola e Regional!

Ela foi discriminada, hoje ela é mundial!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

O berimbau é de Aramê,

O pandeiro é de couro de cobra!

Quero ver vocês brincando,

com a gente aqui na roda!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

êê, êê, joga ai que eu quero ver!

Maior é Deus

Mestre Pastinha

CD: Mestre Pastinha e sua academia

Iê!

Maior é Deus

Maior é Deus

Pequeno sou eu

O que tenho, foi Deus que me deu

O que tenho, foi Deus que me deu

Na roda da Capoeira, ha ha

Grande pequeno sou eu!

Stava in casa sem pensá, sem imaginá

Anônimo

(REGO, 1968)

Stava in casa

Sem pensá, sem maginá

Salomão mandô chamá

Pra ajudá a vencê

Esta batalha liberá

Eu que nunca viajei

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150

Nem pretendo viaja

Dê meu nome eu vô

Pro sorteio militá

Quem não pode não intima

Deixe quem pode intimá

Quem não pode com mandinga

Não carrega patuá.

O calado é vencedor

Mestre Waldemar

(REGO, 1968 )

O calado é vencedô

Mas pra quem juízo tem

Quem espera sê fisgado

Não roga pegá a ninguém

Tum, tum, tum quem bate aí

Tum, tum, tum na minha porta

Sô eu mestre pintô

Mestre pintô da bôca torta

E aluandê

E aluandê

Joga-te pra lá

Joga-te pra cá

Faca de cortá

Faca de furá.

Bahia, minha Bahia

Mestre Pelé da Bomba

(Em entrevista)

Bahia, minha Bahia

Bahia, São Salvador

Bahia, minha Bahia

Bahia, São Salvador

Bahia, minha terra

Minha terra, sim senhor

Que Bahia boa

São Salvador

Que Bahia boa

É Salvador

Capoeira nasceu na Bahia

Mestre Brasília

(KUBOHARA, 2009)

Capoeira nasceu na Bahia

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151

Pro negro escravo defender

Capoeira nasceu na Bahia

Pro negro escravo defender

O baiano espalhou pelo mundo

O grande esporte prá você ver

Capoeira nasceu na Bahia

Pro negro escravo defender

La La La uê

La La La uê, La La uê

La La La uê, La La La uê

La La La uê, capoeira, La La La uê

Um esporte que é brasileiro

Com som berimbau, atabaque e pandeiro

Um esporte que é brasileiro

Com som berimbau, atabaque e pandeiro

Hoje é luta nacional

Surgiu de baixo padrão

Na ginga defesa e ataque

Hoje é esporte e educação

La La La uê

La La La uê, La La La uê

La La La uê, La La La uê

La La La uê, capoeira, La La La uê

Tá no sangue da raça brasileira

Mestre Burguês

Auê, auê, auê ê

Lê, lê, lê, lê, lê, lê, lê, ê

Auê, auê, auê ê

Lê, lê, lê, lê, lê, lê, lê, ê

Tá no sangue da raça brasileira

Capoeira

É da nossa cor

Berimbau

É da nossa cor

Canjiquinha

É da nossa cor

Cais da Bahia

Mestre Ezequiel

Cais da Bahia

Eu aprendi capoeira

Lá na rampa e no cais da Bahia

Page 144: INTRODUÇÃO - Programa de pós-graduação e crítica ... · capoeira Angola. (REIS, 2000, p. 156 ... Tomamos por substrato de estudo as cantigas de capoeira produzidas nos moldes

152

Eu aprendi capoeira

Lá na rampa e no cais da Bahia

Vim de ilha de Maré,

No saveiro de mestre João

Fui morar lá na Preguiça,

Me criei na Conceição

Eu subi o Pelourinho,

Eu desci a Gameleira

Eu passava o dia-a-dia,

Nas rodas de capoeira

Eu aprendi capoeira

Camafeu e Traíra tocavam

Valdemar jogava com Seu Zacarias

Eu aprendi capoeira

Eu aprendi capoeira

Lá na rampa e no cais da Bahia

Eu aprendi capoeira

Lá na rampa e no cais da Bahia

O gringo filmava me fotografava

Eu pouco ligava,também não sabia

Que essa foto ia sair no jornal

Na França ou na Rússia,

ou talvez na Hungria.

Capoeira é uma arte,

Capoeira é uma luta,

Capoeira é um balé

Mas lindo da minha Bahia

Eu aprendi capoeira

Lá na rampa e no cais da Bahia

Eu aprendi capoeira

Lá na rampa e no cais da Bahia

Camafeu e Traíra tocavam

Valdemar jogava com Seu Zacarias

Eu aprendi capoeira

Lá na rampa e no cais da Bahia

Tava na beira da praia

Mestre Pelé da Bomba

Em entrevista

Tava na beira da praia

Sem pensar, sem imaginar

Tava na beira da praia

Sem pensar sem imaginar

Apareceu moça bonita

Me mandou foi me chamar

O que foi que ela me disse?

“meu filho vai logo pescar”

Eu peguei o meu saveiro,

Page 145: INTRODUÇÃO - Programa de pós-graduação e crítica ... · capoeira Angola. (REIS, 2000, p. 156 ... Tomamos por substrato de estudo as cantigas de capoeira produzidas nos moldes

153

Comecei a remar

E peguei minha tarrafa

joguei no fundo do mar

Eu peguei mil e um peixe,

Eu peguei mil e um peixe

Janaina72

mandou pescar

Janaina, rainha do mar

Janaína, rainha do mar...

(Mestre Pelé da Bomba)

Ancestrais africanos

Nicolas Severin

II Festival da música tradicional da capoeira

Quando da África eu cheguei

Me trouxeram os portugueses

Travessia em caravela

Passei fome e humilhação

Num porão bem apertado

Dentro desta embarcação

Minha família eu perdi

Nunca mais vi os meus amigos

Até quisera tirar

A cultura que eu aprendi

Com esforço na Bahia

África eu reconstruí

Hoje canto capoeira

Danço n’golo com paixão

Você pode ter certeza

Disso eu não abro mão

Muito duro foi o trabalho

Pra manter a tradição

Capoeira revelou

Rose Meire Araújo

Quando eu falar da capoeira

Fale de ancestralidade

Não esqueça meu irmão

Sua verdadeira identidade

A capoeira revelou

Pra você não esquecer

72

Janaína é a alcunha sincrética de Iemanjá considerada entre os devotos das religiões afro-brasileiras

como a Rainha do Mar.

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154

Negros e índios, meus irmãos

Apanharam pra valer

Tudo isso é muito forte

Pra poder recordar

Mas essa é nossa História

Temos que fazer respeitar

Capoeira, que capoeira

Se respeita meu irmão

Muitas vezes tive raiva

Do fundo do coração

Essa raiva emocionada

Que só nos fez chorar

Em pensar que o povo negro

Sofreu tanto pra poder se libertar

Esses fatos são relatos

De tamanha covardia

Nos tiraram do acalanto

E da profunda harmonia

Pensando que o negro era

Frágil, meu senhor

Massacraram nossa raça

Achando que não tínhamos valor

Apesar de tanto sofrimento

O negro se libertou

Imperando sua alegria

Ensinando sua filosofia

Se auto-afirmou

Iê, viva o negro

Viva o negro, camará

Iê, se libertou

Se libertou , câmara…

Riachão tava cantando

Mestre Waldemar

Riachão tava cantando

Riachão tava cantando

Na cidade de Açu

Quando apareceu um negro, o meu bem

Da espécie de urubu

Tinha camisola de sola

Calça de couro cru

Page 147: INTRODUÇÃO - Programa de pós-graduação e crítica ... · capoeira Angola. (REIS, 2000, p. 156 ... Tomamos por substrato de estudo as cantigas de capoeira produzidas nos moldes

155

Beiços grossos e virados, o meu bem

Como a sola de um chinelo

Um olho muito encarnado

E outro bastante amarelo

Ele chamou Riachão o meu bem

Para vim canta martelo

Riachão arrespondeu

Eu aqui não tô cantando, o meu bem

Com nego desconhecido

Ele pode ser cativo

E andar aqui fugido

Camaradinho

Capoeira me chama

Mestre Brasília

Capoeira me chama

E eu vou atender

Entro na roda sem medo

Com malícia e segredo

Pronto para me defender

Capoeira me chama

E eu vou atender

Entro na roda sem medo

Com malícia e segredo

Pronto para me defender

Com o corpo de molejo

Vou de encontro ao berimbau

Quem não sabe agora aprende

É um arame, uma cabaça

E um pedaço de pau

Ieá iê oo capoeira me chama

Dá licença meu senhor

Ieá iê oo capoeira me chama

Dá licença meu senhor

Você dança e se defende

Nesta ginga original

Que mexe tanto com a gente

Envolvendo até a mente

Na origem mundial

Ieá iê oo capoeira me chama

Dá licença meu senhor

Ieá iê oo capoeira me chama

Dá licença meu senhor

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156

Olha o jogo de dentro e o jogo de fora

Autor desconhecido

Aula de instrumentos do Grupo Bantu, 2011

Olha o jogo de dentro e o jogo de fora

Sou angoleiro que vem de Angola

Jogo por Deus e por Nossa Senhora

Sou angoleiro que vem de Angola

E jogo com você a qualquer hora

Sou angoleiro que vem de Angola

Vou mostrar prá você

O meu jogo de angola

Santa Bárbara de Relampuê

Anônimo

Mestre Valdec em entrevista 2011

O Santa Barbara de Relampuê,

O Santa Barbara de Relampuá.

O Santa Barbara de Relampué,

O Santa Barbara de Relampuá.

E Relampuê, de Relampuá.

O Santa Barbara de Relampué,

O Santa Barbara de Relampuá.

De Relampuê de Relampuá.

O Santa Barbara de Relampué,

O Santa Barbara de Relampua.

E Relampuê, de Relampuá.

O Santa Barbara de Relampué,

O Santa Barbara de Relampua.

De Relampuê de Relampuá.

Na Bahia tem capoeira

Zequinha

(KUBOHARA, 2009)

Na Bahia tem capoeira

Na Bahia tem capoeira

Na Bahia tem candomblé

No terreiro tem as baianas vendendo acarajé

Na Bahia tem angoleiro

Na Bahia tem regional

Na Bahia tem capoeira

No mercado popular

Bahia de todos os santos

Bahia dos orixás

Bahia de mãe menininha

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157

Menininha do Gantois

Bahia de João Pequeno

Bahia de Curió

Na Bahia tem boca rica

Mestre Lua de Bobó

Valha-me Deus, Senhor São Bento

Anônimo

(KUBOHARA, 2009)

Valha- me Deus, Senhor São Bento

Eu vou jogar meu Barravento

Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)

Eu vou jogar meu Barravento

Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)

Ê, Buraco véio tem cobra dentro

Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)

Ê, quando vê cobra assanhada

Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)

Não põe o pé na rodilha

Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)

A cobra assanhada morde

Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)

Eu vou jogar meu Barravento

Valha- me Deus, Senhor São Bento (coro)

Page 150: INTRODUÇÃO - Programa de pós-graduação e crítica ... · capoeira Angola. (REIS, 2000, p. 156 ... Tomamos por substrato de estudo as cantigas de capoeira produzidas nos moldes

158

ANEXO II

Cantigas analisadas que não entraram no texto.

São Bento me Chama

Mestre Suassuna

CD: Capoeira Cordão de ouro vol.2

São Bento me chama

Ai ai ai ai

São Bento chamou

Ai ai ai ai

Caminhando pela rua

Ai ai ai ai

Uma cobra me mordeu

Ai ai ai ai

Meu veneno era mais forte

Ai ai ai ai

Foi a cobra quem morreu

Ai ai ai ai

Eu sou livre como o vento

Mestre Boca Rica e Bigodinho

CD: Capoeira Angola Mestre Rica e Bigodinho

Sou livre como o vento

A minha linguagem é nobre

Nasci dentro da grandeza

Não nasci na raça pobre

O senhor fique sabendo

O peso de um cantador

Quando me ver de outra vez

Me trate de professor

Deva-me obediência

Me dê o meu valor

Você diz que tem ciência

Dê uma explicação

O que é que em doze horas

Há uma transformação?

O Sol não é quem se move

É fixo em seu lugar

A Terra ta sobre o eixo

O eixo faz rodar

Uma cobra tão pequena

Mata um boi agigantado

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159

Igreja do Bonfim

Mestre Suassuna

CD: Capoeira Cordão de ouro vol.2

Igreja do Bonfim

Igreja do Bonfim (2x)

e Mercado Modelo

Ladeira do Pelourinho, ai ai ai

a Baixa do Sapateiro

Por falar em Rio Vermelho

eu me lembrei de terreiro

Igreja de São Francisco (2x)

e a Praça de Sé

onde ficam as baianas, ai, ai, ai

vendendo acarajé

Por falar em Itapoã

e Lagoa do Abaeté, camará

ê... é a hora é hora

iê é hora é hora, camará

Ah, vamos embora

Ê vamos embora, camará

Ê, pro mundo afora

Ê, pro mundo afora, camará

Ah, viva a Bahia

Ê viva a Bahia, camará

Ê viva meu mestre

Ê viva meu mestre, camará

Vou embora prá Bahia

Mestre Matias

II Festival da música tradicional da capoeira

Oi vivendo aqui distante

eu não quero mais ficar,

vou voltar lá pra Bahia,

Salvador é meu lugar.

(coro 2x)

Eu vou me embora,

eu vou me embora,

lá prá Bahia, cidade de Salvador.

Cidade hospitaleira,

terra de muito axé

terra do samba reggae,

capoeira e candomblé.

(coro 2x)

Terra do Mestre Bimba,

criador da regional, e também,

Mestre Pastinha,

angola tradicional.

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160

(coro 2x)

Em Salvador é terra de

mandingueiro,

tem roda lá no mercado,

praça da Sé e no terreiro.

(coro 2x)

Dá no nego, esse nego é o cão

Anônimo

REGO, 1968

Dá no nego

Dá, dá, dá no nego

No nego você não dá

dá, dá, dá no nego

Mas se der vai apanhar

dá, dá, dá no nego

Joga o nego para cima deixa o nego vadiar

dá, dá, dá no nego

Esse nego é malvado

Esse nego é um cão.

Pega esse nego

Anônimo

(KUBOHARA, 1968)

Pega esse nêgo, derruba no chão

Esse nego é o diabo, esse nego é o cão

Ele é mandingueiro, neguinho é bom

Pega esse nego derruba no chão

Esse nego é o diabo

esse nego é o cão

Rei Zumbi dos Palmares

Mestre Moraes

CD: Capoeira angola from Salvador Brazil

A história nos engana

Diz tudo pelo contrário

Até diz que abolição

Aconteceu no mês de maio

A prova dessa mentira

É que da miséria eu não saio

Viva vinte de novembro

Momento para se lembrar

Não vejo no treze de maio nada

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161

Nada para comemorar

Muitos tempos se passaram

E o negro sempre a lutar

Zumbi é nosso herói, colega velho

Do Palmares foi senhor

Pela causa do homem negro

Foi ele que mais lutou

Apesar de toda luta, colega velho

O Negro não se libertou, camarada

Quando eu morrer

CD: Capoeira Angola – Mestre Pastinha e sua academia

Quando eu morrer,

Me enterrem na Lapinha

calça, culote e paletó almofadinha

Adeus Bahia, zum zum zum cordão de ouro

Eu vou partir porque mataram meu Besouro

Ê zum zum zum zum !

Ê Besouro !

Capoeira que tem sangue na veia

Mestre Bigoodinho

CD: Capoeira angola Mestre Boca Rica e Bigodinho

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

Seja de noite ou de dia

Não importa o lugar

Quando toca o berimbau

Dá vontade de jogar

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

Na roda de capoeira

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162

Todos têm o seu valor

Eu respeito a um aluno

Quanto mais um professor

Capoeira que tem sangue na veia

Não pode escutar o berimbau

Sua perna estremece

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

O astral de capoeira

Vem do som do berimbau

Onde o capoeira cresce

E levanta o seu astral

A hora é essa, a hora é essa

Mestre Bigodinho

CD: Capoeira angola Mestre Boca Rica e Bigodinho

A hora é essa, a hora é essa

A hora é essa, a hora é essa

Berimbau tocou, capoeira

Berimbau tocou na capoeira

Berimbau tocou, eu vou jogar

A hora é essa, a hora é essa

A hora é essa, a hora é essa

Berimbau tocou, capoeira

Berimbau tocou na capoeira

Berimbau tocou, eu vou jogar

Pau pereira

Mestre Boca Rica e Bigodinho

CD: Capoeira angola Mestre Boca Rica e Bigodinho

Capoeira veio de Angola,

Veio da Bahia não.

Capoeira veio de Angola,

Veio da Bahia não.

Olha o gingar do capoeira

Tá no a-perto de mão

Capoeira tem angola

E tem regional

Capoeira tem angola

E tem regional

O ponta-pé de um capoeira

É um pé-daço de pau

O ponta-pé de um capoeira

É um pé-daço de pau

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163

Ê, pau, pau, pereira

A flor da laranjeira

Pau, pau, pereira

Uma moça que cheira

Pau, pau, pereira

Bahia, minha Bahia

Pau, pau, pereira

Bahia, meu bem querer

Pau, pau, pereira

Quem não gosta da Bahia

Pau, pau, pereira

Pensa o mesmo de você

Pau, pau, pereira

E a madeira de pinho

Pau, pau, pereira

Madeira jacarandá

Pau, pau, pereira

Madeira pau-brasil

Pau, pau, pereira

Olha o tombo da madeira

Pau, pau, pereira

Samba de roda na Ribeira

Pau, pau, pereira

Eu também sou capoeira

Pau, pau, pereira

Lê, lê,lê

Pau, pau, pereira

Lá, lá, lá

Pau, pau, pereira

Quem não pode com mandinga

Pau, pau, pereira

Não carrega patuá

Pau, pau, pereira

Olha o tombo da madeira

Pau, pau, pereira

O calado é capoeira

Pau, pau, pereira

Mas carapina de ioiô

Mestre Bimba

Mas carapina de ioiô

Ói a manteiga n’era minha

Ai a manteiga de ioiô

Ói a manteiga do patrão

Mas caiu no chão, derramou

Ói a manteiga derramou

Mas carapina de ioiô

Ói a manteiga n’era minha

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Ai a manteiga do senhor

Ói a manteiga do patrão

Mas caiu n’água, se molhou

Ói a manteiga do patrão

Caiu no chão, derramou

Ói a manteiga n’era minha

Ai a manteiga de ioiô

Ói a manteiga derramou

Mas carapina

de ioi.

O calado é vencedor

Mestre Canjiquinha

Iê !

O calado é vencedor

Mas prá quem juízo tem

Quem espera ser fisgado, o meu bem

Não roga praga a ninguém

A mulher é como a cobra

Tem sangue de Peçanha

Deixa o rico na miséria, o meu bem

Deixa o pobre sem vergonha

Vou dizer pra meu amigo

Que hoje a parada é dura

Quem ama mulhé dos outros, o meu bem

Não tem a vida segura

Camaradinho

A sexta feira, ele sobe a ladeira

Mestre Lua Rasta

CD: Roda do Terreiro, 2009.

A sexta feira, ele sobe a ladeira

para ir la no terreiro capoeira jogar

A sexta feira, ele sobe a ladeira

para ir la no terreiro capoeira jogar

Tem Maracatu, Samba de roda, lá na ladeira,

tem Bumba meu Boi, Capoeira de Angola

A sexta feira, ele sobe a ladeira

para ir lá no terreiro capoeira jogar

Amanhã é domingo

Mestre Boa Voz

(KUBOHARA, 2009)

Amanhã é domingo,

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165

dia de vadiar,

vou jogar capoeira

no barracão de Mestre Waldemar

Amanhã é domingo…

Amanhã é domingo,

dia de vadiar, vou jogar capoeira

no barracão de Mestre Waldemar

Vou jogar com o seu Traira,

Cobrinha Verde e seu Maré,

vou jogar com Mestre Ricardo,

Só pra ver como é que é.

Amanhã é domingo…

Amanhã é domingo,

dia de vadiar, vou jogar capoeira

no barracão de Mestre Waldemar

Lá vai estar o Jorge Amado,

Pierre Verger e Carybé o

João que é trapicheiro

e o talheiro do seu Maré.

Amanhã é domingo…

Amanhã é domingo,

dia de vadiar, vou jogar capoeira

no barracão de Mestre Waldemar

Celeiro Cultural da Bahia de outrora,

com o povo, artista é político,

e os mestres de angola.

Amanhã é domingo…

Amanhã é domingo,

dia de vadiar, vou jogar capoeira

no barracão de Mestre Waldemar

Lá na liberdade,

em frente a venda do Âgnelo,

vou ouvir o Az de ouro,

e jogar com Mestre Buguelo.

Amanhã é domingo…

Amanhã é domingo, dia de vadiar,

vou jogar capoeira

no barracão de Mestre Waldemar.

Parana ê

Anônimo

Paraná ê

Paraná ê

Paraná

Vô mimbora pra Bahia

Paraná

Tão cedo não venho cá

Paraná

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166

Paraná ê

Paraná ê

Paraná

Se não fôr essa semana

Paraná

E a semana qui passô

Paraná

Paraná ê

Paraná ê

Paraná

Do nó escondo a ponta

Paraná

Ninguém sabe desatá

Paraná

Paraná ê

Paraná ê

Paraná

Chique-chique mocambira

Paraná

Joga pra cima de mim

Paraná

Eu sô braço de maré

Paraná

Mas eu sô maré sem fim

Paraná

Paraná ê

Paraná ê

Paraná

O digêro, digêro

Paraná

O digêro, digêro

Paraná

O digêro, digêro

Paraná

Eu também sô digêro

Paraná.

Eu tava na minha casa

Anônimo

(REGO p. 118, canto 103)

Eu tava na minha casa

Sem pensá, sem maginá

Mandaro me chamá

Pra ajudá a vencê

A guerra no Paraguai.

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Quem Vem La Sou Eu

Mestre Matias

II Festival da música tradicional da capoiera 2009

Quem vem lá - sou eu

Quem vem lá - sou eu

Berimbau bateu

Capoeira sou e

Quem vem lá - sou eu

Quem vem lá - sou eu

Berimbau bateu

Capoeira sou e

Eu venho de longe, venho da Bahia

Jogo Capoeira Capoeira sou eu

Quem vem lá - sou eu

Quem vem lá - sou eu

Berimbau bateu

Capoeira sou e

Mais sou eu, sou eu

Quem vem lá

Eu sou brevenuto

Quem vem lá

Montado a cavalo

Quem vem lá

Fumando a charuto-

Quem vem lá

Mais sou eu, sou eu

Quem vem lá

Sem pensar, sem imaginar

Mestre Bimba

CD: Capoeira Regional de Mestre Bimba

Sem pensar, sem imaginar

Mandaram me chamar

Pra ajudar a vencer

Mas a guerra do Paraná

Haha

Água de beber

Ei Aruandê

Aia quer me vender

E ai na falsidade

Ai viva Deus no céu

Viva meu mestre

Iê quem me ensinou

Aiai na malandragem

Ai água de beber

Ai água pra lavar

Aie volta do mundo.

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168

Certo dia numa festa

Mestre Paulo dos Anjos

(KUBOHARA, 2009)

Certo dia numa festa

um moleque me chamou

pra jogar

Eu que sou desconfiado,

fiquei logo de lado a

reparar

O que estava escrito na camisa,

era um tal de Besouro Mangangá

O que estava escrito na camisa,

era um tal de Besouro Mangangá

é,é é,a

era um tal de Besouro Mangangá

é,é é,a

era um tal de Besouro Mangangá

Tô dormindo, tô sonhando

Anônimo

Roda de capoeira Conjunto ACM

Tô dormindo, tô sonhando

Tão falando mal de mim.

A capoeira jurou bandeira

Mestre Suassuna

As 12 melhores do Mestre Suassuna

Iê...

Capoeira jurou bandeira

Pediu seu santo sua proteção

Entrou na roda olhou parceiro

Oi mas olhando o céu pediu perdão

Oi mas deu uma volta de saudação

Oi ainda na volta falou

Capoeira eu sou baiano

Oi mestre Suassuna foi quem me ensinou

Estendeu a mão e lá no cumprimento

Um pé no peito logo levou

Oi mas sumiu no chão que nem corisco

Pra confirmar o que havia dito

Capoeira neste dia, eh lutou tudo o que sabia

Oi mas se não lutasse perdia

O amor do peito de Maria

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169

Moça do seu coração

Jogou no ar e no chão

Fez diabruras do cão

Oi rezando uma oração

Ele é homem de corpo fechado

Oi mas não teme ferro da matar

Ogum é meu padrinho

Oi guerreiro no céu e guarda na lua

E na terra meu peito é de aço

Pela faca de ponta não fura

Iê viva meu Deus...

Santa Maria Mãe de Deus

Anônimo

(KUBOHARA, 2009)

Santa Maria

Mãe de Deus

Fui na igreja

Não me confessei

Santa Maria

Mãe de Deus

Oi Mãe de Deus

Olha o homem que eu matei

Anônimo

(KUBOHARA, 2009)

Ê, Ê, Ê, Ê

Ê, ê, ê, ê

Olha o homem que eu matei

Ê, ê, ê, ê

Na cadeia eu não vou

Ê, ê, ê, ê

Era um filho desordeiro

Ê, ê, ê, ê

Era um filho matador

Ê, ê, ê, ê

Amanhã eu vou-me embora

Ê, ê, ê, ê

Por este mundo de Deus

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170

O valente Vilela

Mestre Waldemar

CD: Mestre Waldemar e Canjiquinha

Iê!

Senhores, peço licença.

Senhores, peço licença, o meu bem.

Para lhes conta uma história.

O valente Vilela, o meu bem,

Trago sempre na memória.

Evitou-lo quinze anos.

Sempre a canção da vitória.

Ali tinha um capitão, o meu bem,

Um sujeito muito ousado.

Disse eu vou na Serra Torta.

Trago Vilela amarrado.

No outro dia bem cedo.

Marcharam para o lugar.

Onde morava Vilela, o iaia

O povo foi ensinar.

Chegou lá o capitão.

Mandou a casa cercar.

Cercaram ali a casa.

Ficaram de prontidão.

Vilela abre a porta, o meu bem.

Por ordem do capitão!

Você hoje tâ dai, ô meu bem,

direitinho para Prisão

Vilela tava em casa.

Sem nada disso saber.

Porque vocês vão se embora.

Não venham me aborrecer.

Responda me soldado, ô iaia,

Matar ou Morrer?

Responda me soldado,

Se veio matar ou morrer?

O soldado arrespondeu.

Não vim matar nem morrer.

Ta enganado sujeito.

Por ordem do delegado, o meu bem,

Por ordem do juiz de direito.

Você hoje me dá conta.

Das mortes que já tem feito.

Eu aqui na Serra Torta,

ja brigo bem no comum!

Por mim quem mata cem.

também mata cento um!

Camaradinha, Aquinderreis!

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171

Sei sim senhor

Anônimo

(KUBOHARA, 2009, p. 166)

Esse homem é valente

Sei sim senhor

Ele está com navalha

Sei sim senhor

Ele vai te cortar

Sei sim senhor

O moleque é ligeiro

Sei sim senhor

Cuidado com ele

Sei sim senhor

Ele vai te pegar

Quebra gereba

Anônimo

CD: Capoeira Angola Mestre Acordeon

Quebra, quebra gereba

Quebra, quebra gereba

Quebra tudo hoje amanhã quem te quebra

quebra, quebra gereba

Você quebra hoje, amanhã quem te quebra

quebra quebra gereba

Quebra lá tudo hoje amanhã nada quebra

Quebra gereba

Anônimo

(REGO, 1968, p. 116)

Quebra, quebra gereba

Quebra

Oi você quebra hoje

Amanhã quem te quebra?

Quebra

Oi quebra, quebra

Queima, queima Amará

Queima.

Quebra gereba

Anônimo

Roda de capoeira do Conjunto ACM

Quebra jereba

Coro: quebra!

Quebra tudo hoje

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172

Coro: quebra!

Amanhã nada quebra

Coro: quebra!

Olha quebra gereba

Coro: quebra!

Oi Sim, sim, sim, ou não, não, não

Anônimo

(KUBOHARA, 2009, p.224)

Oi sim sim sim

O não não não

Ê ou não não não

O não não não

Íe uoi sim sim sim

Oi não não não

Íe uoi sim sim sim

Oi não não não

Ê uo não não não

O não não não

Esta cobra te morde

Anônimo

REGO, 1968, p. 96

Esta cobra te morde

Sinhô São Bento

Oi o bote da cobra

Sinhô São Bento

Oi a cobra mordeu

Sinhô São Bento

O veneno da cobra

Sinhô São Bento

Oi a casca da cobra

Sinhô São Bento

O que cobra danada

Sinhô São Bento

O que cobra marvada

Sinhô São Bento

Buraco velho

Sinhô São Bento

Tem cobra dentro

Sinhô São Bento

Oi o pulo da cobra

Sinhô São Bento

E cumpade.

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173

Me trate com mais respeito

Anônimo

(REGO, 1968, p.99 )

Me trate com mais respeito

Que é a sua obrigação

Todo mundo é obrigado

A possuí inducação

Me trate com mais respeito

Veja qui eu lhe tratei bem

Como vai, como passô

Como vai, como não vem.

Não se meta meu irmão

(REGO, 1968, p113)

Não se mêta meu irmão

Qui esse home é valente

Na usina Caco Velho

Já matô Chico Simão

Vamo imbora camarado

Vamo saí dessa jogada

A festa é muito boa

Mas vai tê muita pancada.

Era eu era meu mano

Anônimo

(REGO p.11.)

Era eu era meu mano

Era meu mano mais eu

Eu vi a terra molhada

Mas não vi quando choveu

Era eu era meu mano

Era meu mano mais eu

Ele alugô uma casa

No fim do mês

Nem ele pagô nem eu.

Era eu, era meu mano

Anônimo

Coletada em trino de capoeira com o Grupo Bantu

Era eu era meu mano

Era meu mano mais eu

Eu vi a terra molhada

Mas não vi quando choveu

Era eu era meu mano

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174

Era meu mano mais eu

Ele alugô uma casa

No fim do mês

Nem ele pagô nem eu.

Panha laranja no chão tico-tico

Anônimo

CD: Capoeira Angola Mestre Acordeon

Panhe a laranja no chão tico-tico

Pois tua saia é de renda de bico

Panhe a laranja no chão tico-tico

Se meu amô fô imbora eu não fico

Panhe a laranja no chão tico-tico

Na uma, nas duas, nas três eu não fico.

A soberba combatida foi quem matou Pedro Sem

Anônimo

(Rego ,1968)

A soberba combatida

Foi quem matô Pedro Sem

No céu vive meu Deu

Na terra vale quem tem

Lá se foi minha fortuna

Escramava Pedro Sem

Saía de porta em porta

Uma esmola a Pedro Sem

Hoje pede a quem negô

Qui onte teve e hoje não tem

A quem eu neguei esmola

Hoje me negue também

Na hora da sua morte

A justiça ensaminô

Correndo o bôlso dele

Uma muxila encontrô

Dentro dela um vintém

O letrêro qui dizia

Eu já tive hoje não tem

A soberba combatida

Foi quem matô Pedro Sem

Viva Pedro Sem

Quem não tem não é ninguém.

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175

E vem a cavalaria

Anônimo

(Rego, 1968)

E vem a cavalaria

Da Princesa Teodora

Cada cavalo uma sela

Cada sela uma senhora

Minha mãe nunca me deu

Pra hoje eu apanhá

Quem não pode com mandinga

Não carrega mangangá.

O Brasil disse que sim

Anônimo

(Rego, 1968)

O Brasil disse que sim

O Japão disse que não

Uma esquadra poderosa

Pra brigá com alemão

O Brasil tem dois mil home

Pra pegá no pau furado

Eu não sô palha de cana

Pra morrê asfixiado

O qui foi qui a nêga disse

Quando viu o sabiá

Uma mão me dê, me dê

Outra mão dê cá, dê cá

E aquinderreis

E viva meu Deus.

Vô mimbora prá Bahia

Anônimo

(Kubohara, 2009)

Vô mimbora pra Bahia

Pra vê se o dinhêro corre

Se o dinhêro não corrê

De fome ninguém não morre

Vô mimbora pra São Paulo

Tão cedo não venho cá

Se voci quizé me vê

Bote o seu navio no má

O Brasil stá na guerra

Meu devê e í lutá.

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176

O berimbau tá tocando

Mestre Waldemar

CD: Mestre Waldemar e Canjiquinha

O berimbau tá tocando

A roda já começou

Venha ver a capoeira

E os mestres de valor

Os mestres tava de branco

Com navalha e patuá

As vestes saia limpa

Na roda beira-mar

Esse jogo de mandinga

Na cantiga e no olhar

No clarão da lua cheia

Na brisa da beira-mar

Prá jogar com os mestres antigos

Você tem que conhecer

A seu Bimba e o seu Pastinha

Valdemar e Aberre

O tempo já passou

No caminho não vai voltar

Prá jogar com os mestres antigos

Na roda da beira-mar.

Adeus, adeus, boa viagem

Anônimo

Coletada em roda de capoeira

Adeus adeus,

boa viagem

Eu vou com Deus

boa viagem

Eu vou me embora

boa viagem

Com Nossa senhora

boa viagem

Almas gêmeas De: Raimundo José dos Santos

Festival da musica tradicional da capoeira

O que é do homem o bicho não come

O que é do homem o bicho não come

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177

Se Deus uniu ninguém separa

A magia da capoeira, já nasceu com Caiçara

No velho cais da Bahia

É coisa linda de se ver

Foi seu Bimba e Pastinha, Waldemar e Canjiquinha

E também seu Aberre

Que na igreja do Bomfim eles já falavam assim

“Todos podem aprender…”

Ô lê, lê, lê,lê,lê, lê

Todos podem aprender

Todos podem aprender

Todos podem aprender

Essa nossa linda cultura

Que veio dos nossos ancestrais

Eu já fiz um juramento, que não me esqueço jamás

Pra jogar capoeira, vou louvar aos orixás

Ô lê, lê, lê,lê,lê, lê

Todos podem aprender

Todos podem aprender

Todos podem aprender

Essa nossa tradição

Que na festa da conceição

O povo batiam na mão

Somente a responder

Ô lê, lê, lê,lê,lê, lê

Todos podem aprender

Todos podem aprender

Todos podem aprender

Da África para o Brasil De: Evaldo Correia dos Santos

Festival da musica tradicional da capoeira

Da África chegou

No Brasil foi que surgiu

Ela é afra-brasileira, que pelo mundo se expandiu

Nós falamos da cultura

E lembramos a escravidão

Pois lembramos da princesa

Que trouxe a libertação

Hoje o negro traz na pele

A marca da escravidão

Por preconceito racial

E por falta de proteção

E hoje olho pró céu

Me diga senhor Deus

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178

Se é mentira se é verdade

Ou se é só nos olhos meus

Criaturas na miséria

Maior em que se pode ver

Seres humanos explorados

Sem poder se defender.

Camaradinho, o que fazer?

Iê, o que fazer camará?

Eu nasci na boa terra

Autor: Mestre Valdec

CD do Grupo de Capoeira Bantu

Iê!

Eu nasci na boa terra

Eu nasci na boa terra

E aqui eu me criei

Conheci a capoeira

Ai, ai, ai

logo nela iniciei

Logo nela iniciei

Atabaque e viola agogô eu já toquei

Homem, menino e mulher

Vadiar eu ensinei

Angoleiro eu hoje sou

Angoleiro eu sempre serei

Camaradinha!

Aquinderrei

Aquinderrei, camarada

Ê viva meu Deus

Iê, viva meu Deus, camarada (coro)

Olha lá viva meu mestre

Iê, viva meu mestre, camará (coro)

Ele é mandingueiro

Iê é mandingueiro, camará (coro)

Olha lá sabe jogar

Iê, sabe jogar, camará

Iê a capoeira

A capoeira, camará

Minha Terra tem dendê

Autor: Mestre Valdec

CD do Grupo de Capoeira Bantu

Minha ginga tem dendê, dendê de Angola

Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)

Oi iaiá ou filho de catendê

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Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)

Vai gingar para aprender

Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)

Olha joga bonito que eu quero ver

Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)

Vou gingar prá você ver

Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)

Tem dendê que tem dendê

Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)

Vai gingar para aprender

Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)

Joga bonito que eu quero ver

Minha ginga tem dendê, dendê de Angola (coro)

Eu sou angoleiro

Anônimo

CD do Grupo de Capoeira Bantu

Eu sou angoleiro

Angoleiro sim senhor

Eu sou angoleiro (coro)

Angoleiro de valor

Eu sou angoleiro (coro)

Angoleiro imperador

Eu sou angoleiro (coro)

Angoleiro de Iaiá

Eu sou angoleiro (coro)

Ô Iaiá, angoleiro que eu sou

Eu sou angoleiro (coro)

Angoleiro babá

Dandara ê Dandara

CD do Grupo de Capoeira Bantu

Dandara ê dandara

Iê princesa do aiutá

Rainha lá dos altos montes

O dandara dandara

O minha filha minha vida

Ê Dan Dara

Ie gosto muito de você

Iê da da dandara

Ie princesa dos altos montes

O rainha do aiutá

...

Dandara ê, Dandara…

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ANEXO III

Tela do pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802 - 1858) em sua “Viagem

pitoresca ao Brasil”, realizada na primeira metade do século XIX retratou em óleo sobre

tela uma cena urbana intitulada Kriegsspiel (brinquedo guerreiro), ou como conhecemos

“Dança da Guerra”.