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Investigação Clínica: como preparar Portugal? Clinical research: How should Portugal prepare? Autores: - Filipe Araújo - Unidade de Reumatologia, Hospital Ortopédico de Sant'Ana; Assistente Convidado de Especialidades Médico-Cirúrgicas I da NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; Assistente Convidado de Microbiologia Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. - Jaime C. Branco - Diretor da NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; Investigador Principal do CEDOC, NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; Diretor do Serviço de Reumatologia, Hospital Egas Moniz, Centro Hospitalar Lisboa Ocidental EPE Correspondência para: Filipe Araújo Hospital Ortopédico de Sant'Ana, Rua de Benguela, 2779-501 Parede e-mail: [email protected] Título breve: Investigação Clínica em Portugal

Investigação Clínica: como preparar Portugal? · Conceito e tipos de Investigação Clínica ... avaliar interações ... o Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa,

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Investigação Clínica: como preparar Portugal?

Clinical research: How should Portugal prepare?

Autores:

- Filipe Araújo - Unidade de Reumatologia, Hospital Ortopédico de Sant'Ana; Assistente Convidado

de Especialidades Médico-Cirúrgicas I da NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas

da Universidade Nova de Lisboa; Assistente Convidado de Microbiologia Clínica da Faculdade de

Medicina da Universidade de Lisboa.

- Jaime C. Branco - Diretor da NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas da

Universidade Nova de Lisboa; Investigador Principal do CEDOC, NOVA Medical School | Faculdade

de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; Diretor do Serviço de Reumatologia, Hospital

Egas Moniz, Centro Hospitalar Lisboa Ocidental EPE

Correspondência para:

Filipe Araújo

Hospital Ortopédico de Sant'Ana, Rua de Benguela, 2779-501 Parede

e-mail: [email protected]

Título breve: Investigação Clínica em Portugal

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Investigação Clínica: como preparar Portugal?

Keywords: biomedical research, medical education, financial support, healthcare costs

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1. Introdução

A investigação clínica (IC) desempenha, nas sociedades desenvolvidas de hoje, um papel

absolutamente fundamental. Com o objectivo de melhorar a qualidade dos serviços de saúde e,

em última instância, a saúde das próprias populações, cabe à IC fornecer a melhor evidência que

suporte a avaliação diagnóstica, a decisão terapêutica, a estimativa prognóstica e a atitude

preventiva. A prática clínica moderna tornou-se mais complexa com a descrição de novas

patologias e a melhor caracterização das já conhecidas, com o crescimento exponencial de

métodos diagnósticos, terapêuticas e dispositivos médicos, e com o maior grau de exigência por

parte de doentes mais conscientes e informados. Nesta desafiante realidade, a IC fornece a

fundamentação científica e reduz a incerteza da tomada de decisão. Ademais, a prática médica

baseada na evidência apresenta outras implicações. Numa perspectiva socioeconómica, por

exemplo, a melhor evidência científica deverá ser contextualizada na realidade de cada país de

forma a garantir a sustentabilidade dos sistemas de saúde e uma adequada gestão e equidade de

acesso aos recursos.

A criação de unidades ou polos dedicados especificamente a IC cria ainda emprego e atrai

investimento. Por outro lado, numa perspectiva legal, a tomada de decisões fundamentadas na

melhor evidência disponível poderá ser importante na defesa dos profissionais de saúde perante

uma eventual situação litigiosa.

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Assim, é do maior interesse das entidades governamentais, regulamentares e administrativas

implementar, nas suas políticas de saúde, estratégias que fomentem a IC e permitam a

mobilização dos recursos financeiros, logísticos e humanos necessários ao seu sucesso.

Tendo em consideração a realidade portuguesa no que à IC diz respeito, o presente documento

tem por objectivo a apresentação de propostas que visem incrementar e dinamizar a prática da IC

em Portugal.

2. Conceito e tipos de Investigação Clínica

A IC é definida pelo National Institutes of Health (NIH) dos EUA como um "tipo de investigação que

envolve diretamente um indivíduo ou um grupo de indivíduos ou que utiliza material humano,

como por exemplo características comportamentais ou amostras de tecidos"1. Subdivide-a, ainda,

em, 1) "investigação orientada para o doente", em que existe uma interação direta do

investigador com o doente e engloba o estudo dos mecanismos de doença, intervenções

terapêuticas, ensaios clínicos e desenvolvimento de novas tecnologias; 2) "investigação

epidemiológica e comportamental" e, 3) "investigação sobre serviços de saúde e sobre

resultados/outcomes"2. A Lei Portuguesa que aprova a IC, Lei nº 21/2014 de 16 de abril, define-a

como "todo o estudo sistemático destinado a descobrir ou a verificar a distribuição ou o efeito de

fatores de saúde, de estados ou resultados em saúde, de processos de saúde ou de doença, do

desempenho e, ou, segurança de intervenções ou da prestação de cuidados de saúde"3.

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A IC tem como propósito encontrar a resposta para uma questão científica que seja relevante para

o doente. Contudo, a infindável diversidade de questões que pode ser colocada leva

necessariamente a que os métodos utilizados para as esclarecer sejam diferentes. A escolha do

tipo de estudo clínico adequado vai depender do objectivo e é absolutamente crucial para o

sucesso e qualidade dos resultados.

O nível mais elevado em termos de evidência científica é dado pelos ensaios clínicos aleatorizados,

duplamente cegos e controlados que têm por objectivo avaliar o efeito de uma determinada

intervenção, por comparação à sua ausência, em termos de eficácia e segurança. São os estudos

preferidos sempre que se deseja testar um novo fármaco, embora o espectro englobe qualquer

intervenção biomédica (fármacos, tratamentos ou dispositivos) ou comportamental. São de

natureza prospectiva e decorrem, habitualmente, em ambientes controlados que permitem

grande rigor metodológico e fiabilidade no estabelecimento da relação causal entre a intervenção

e o resultado obtido4. Podem percorrer 4 fases:

- ensaio clínico de fase 1 - são os primeiros estudos em que a intervenção é efectuada em

seres humanos, geralmente num grupo reduzido de indivíduos saudáveis (20 a 80) de forma a

avaliar a segurança e tolerabilidade e determinar o perfil farmacocinético e farmacodinâmico. Em

contextos concretos de patologia grave, como neoplasias ou infecção por VIH/SIDA, o estudo pode

ser realizado direta e imediatamente em doentes.

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- ensaio clínico de fase 2 - estudos que contam com maior número de indivíduos (várias

dezenas a algumas centenas), desta feita padecendo da doença em estudo. O objectivo desta fase

é a avaliação inicial de eficácia da intervenção e continuação da avaliação da segurança. Quando a

intervenção avaliada consiste num fármaco testam-se, igualmente, propriedades farmacocinéticas

relacionadas com a dose e frequência de administração a serem usadas nos ensaios de fase 3.

- ensaio clínico de fase 3 - estudos que contam com um número muito elevado de doentes

(várias centenas a alguns milhares). Através da distribuição aleatória dos participantes em dois ou

mais grupos, pretende-se comprovar a eficácia e benefício da intervenção sob estudo

relativamente ao placebo ou a um tratamento comparador, mantendo-se a monitorização de

segurança. Estes estudos são obrigatórios para a atribuição de autorização de introdução no

mercado (AIM).

- ensaio clínico de fase 4 - estudos que são realizados após a comercialização da intervenção

e que continuam a monitorização da eficácia e segurança, desta feita na população geral,

permitindo detectar de reações adversas previamente desconhecidas, avaliar interações

medicamentosas, testar novas formulações ou comparar com produtos da concorrência2.

Nos últimos anos, tem-se assistido a uma revisão da estratégia de desenvolvimento de ensaios

clínicos com o abandono do conceito clássico das 4 fases previamente descritas e considerando-se

agora o ensaio clínico como um contínuo. Este novo paradigma visa optimizar todos os recursos

das fases pré-clínica e clínica e introduzir mais precocemente a intervenção no ser humano (first

use in man).

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Logo a seguir na escala de evidência científica encontramos os estudos observacionais, ou seja, os

estudos em que não existe qualquer tipo de intervenção e o investigador apenas observa. Nesta

categoria estão incluídos os estudos de coorte, os estudos caso-controlo e os estudos transversais.

Apesar de não serem metodologicamente tão complexos nem rigorosos como os ensaios clínicos,

são os estudos indicados para responder a questões relativas à prevalência, incidência,

causalidade e prognóstico5.

Os estudos de coorte são, do ponto de vista metodológico, aqueles que mais se aproximam dos

ensaios clínicos aleatorizados e controlados. Uma coorte consiste num grupo de indivíduos que

partilha uma determinada característica. Assim, existem dois tipos de estudos de coorte:

prospetivos e retrospetivos. Nos estudos de coorte prospetivos escolhe-se uma população que

ainda não tem o resultado de interesse, por exemplo, neoplasia do pulmão, e esse grupo é seguido

durante um determinado período de tempo, verificando-se quais os indivíduos que desenvolvem a

condição e medindo-se variáveis potencialmente relevantes para o seu desenvolvimento. Através

deste tipo de estudos torna-se possível estimar a incidência, fatores de risco (preditivos) e

potenciais fatores etiológicos, não sendo contudo indicados para resultados/outcomes de

ocorrência rara. Nos estudos de coorte retrospetivos, as variáveis de interesse foram já medidas

com outros propósitos e a coorte é estudada olhando para trás, caracterizando o percurso até ao

desenvolvimento do resultado/outcome de interesse. São menos dispendiosos e

significativamente mais rápidos de realizar que os estudos de coorte prospetivos, já que os dados

estão prontamente disponíveis. Contudo, este facto coloca alguns problemas, nomeadamente a

impossibilidade de definir a natureza e qualidade dos fatores preditivos de doença, a difícil seleção

de doentes a incluir no estudo e problemas na obtenção e tratamento dos dados5-7.

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Os estudos transversais são estudos observacionais simples que são utilizados primariamente para

determinar a prevalência de uma determinada condição. Do ponto de vista metodológico, a

avaliação é feita num único momento e nesse momento é determinado o número de indivíduos

com o resultado/outcome de interesse ou expostos a um fator causal. É ainda utilizado para definir

as características diagnósticas de um teste comparando-o com o teste de referência, e para avaliar

a capacidade preditiva de características clínicas. É de realização rápida e pouco dispendiosa,

embora apresente algumas limitações, como a incapacidade de diferenciar entre causa e efeito ou

sequência de eventos, e também incapacidade para estudar doenças de ocorrência rara5, 6, 8.

O últimos estudos observacionais a referir são os estudos caso-controlo, em que um grupo de

indivíduos com o resultado/outcome de interesse (casos) é emparelhado e comparado com outro

grupo de indivíduos sem o resultado de interesse (controlos). Retrospectivamente, o investigador

verifica quais os indivíduos em cada grupo expostos a um agente ou tratamento ou verifica a

prevalência de variáveis relevantes para o surgimento do resultado. Como o grupo de casos é

escolhido à partida, este tipo de estudos é uma opção válida para investigar doenças raras. Pela

facilidade de execução e custo acessível, são muitas vezes utilizados para gerar hipóteses que são

posteriormente testadas em estudos mais robustos e complexos5, 9.

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3. Requisitos para a realização de Investigação Clínica

A realização de IC requer toda uma logística cuja complexidade é inerente à qualidade que lhe é

exigida. O constante desenvolvimento da investigação básica, a morosa aprovação dos estudos, a

necessidade de respeitar escrupulosamente os princípios estabelecidos pelas diversas entidades

reguladoras, a dificuldade no financiamento, o recrutamento e retenção de doentes, assim como a

articulação entre as várias infraestruturas e profissionais de saúde envolvidos representam apenas

alguns dos desafios que o investigador tem de enfrentar. Serão de seguida abordados os principais

requisitos para a prática da IC.

Como já referido, a IC tem por finalidade responder a uma ou mais questões relevantes para o

doente e assim fornecer a melhor evidência possível à tomada de decisão clínica. Frequentemente,

a génese da questão assenta na chamada ciência básica, ou pré-clínica, que investiga os conceitos

fundamentais que vão ser posteriormente testados na IC. Os investigadores em ciência básica

envidam esforços no sentido da compreensão dos processos biológicos e dos mecanismos

causadores de doença, fornecendo substrato à geração de novas hipóteses e também à criação de

potenciais alvos terapêuticos. O seu espectro de ação inclui a genética, a bioquímica, a imunologia

e a biologia molecular. Por conseguinte, a promoção e desenvolvimento da IC estão dependentes

de uma estrutura de ciência básica sólida. Em Portugal, algumas referências da investigação em

ciência básica na área da medicina incluem o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da

Universidade do Porto, Ipatimup, dedicado à investigação em oncobiologia; o Centro de

Neurociências e Biologia Celular de Coimbra, que estuda o envelhecimento e doenças

neurológicas; o Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, dedicado aos campos

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da imunologia e doenças infecciosas, neurociências e biologia celular e do desenvolvimento; o

Centro de Estudo de Doenças Crónicas (CEDOC) da NOVA Medical School | Faculdade de Ciências

Médicas da Universidade Nova de Lisboa, (agora incluído no consórcio iNOVA4Health), com

investigação em saúde mental, metabolismo e inflamação, oncobiologia e doenças raras; ou o

Instituto Gulbenkian de Ciência, em Lisboa, com variadas linhas de investigação em biologia

molecular, genética, inflamação e infecção.

Nos últimos anos temos assistido ao surgimento de correntes científicas que visam eliminar a

separação que existe entre a investigação básica e a IC, sendo a investigação translacional o

exemplo paradigmático e a medicina personalizada o exemplo extremo. A investigação

translacional visa agilizar e acelerar a aplicação das descobertas laboratoriais e pré-clínicas na IC e

noutros estudos em humanos, contribuindo assim para melhorar a saúde das populações num

contínuo que se inicia na bancada do investigador, passa pela cabeceira do doente e termina na

comunidade10, 11. O conceito de medicina personalizada advém dos crescentes progressos na

compreensão e tratamento das patologias e visa uma prática de saúde totalmente adaptada à

individualidade do doente. Através da sua caracterização genética e molecular, será possível

diagnosticar com precisão doenças ou identificar risco de as desenvolver, originando intervenções

preventivas. Da mesma forma, o conhecimento do genoma de um doente permitirá o

desenvolvimento de fármacos adaptados e altamente específicos. Este conceito, para além de

representar um novo paradigma de prática médica, terá de ter subjacente uma dramática

modificação no processo de investigação, já que a personalização de cuidados não se coaduna

com ensaios de grandes dimensões que almejam a superioridade estatística de tratamentos não

individualizados. O conhecimento do genoma e/ou de outras características (p. ex. clínicas,

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laboratoriais, imagiológicas, comportamentais) do indivíduo permitirá selecionar e incluir nos

estudos os doentes que mais beneficiarão, do ponto de vista de eficácia e segurança, com

determinada terapêutica, tornando os estudos mais pequenos, económicos e rápidos e trazendo

os avanços científicos diretamente à comunidade12.

Considerando a sua complexidade e o elevado custo associado, a grande maioria dos estudos de IC

com intervenção em Portugal é promovida pela indústria farmacêutica e apenas uma pequena

parte pelos centros de investigação académicos13. A estas entidades patrocinadoras dos estudos

denominamos de promotores, que são responsáveis pela concepção, execução e monitorização do

estudo, assim como pela determinação dos centros de ensaio e a contratação da equipa de

investigação. No caso da investigação académica, os centros académicos desempenham um papel

crucial na integração e articulação entre as universidades e os centros de ensaio onde decorre o

estudo. É, contudo, frequente o recurso a Contract Research Organizations (CRO), ou seja,

empresas que são subcontratadas pelos promotores e que prestam apoio na organização de todas

ou de apenas algumas das atividades do estudo, que podem ir desde a preparação do protocolo e

da documentação necessária às entidades reguladoras, à própria implementação e monitorização

do ensaio, gestão dos dados e farmacovigilância. As CRO podem ser organizações totalmente

privadas ou pertencerem a centros académicos, como é o caso da Clinical Research Unit do CEDOC,

NOVA-CRU. Os centros de ensaio deverão ser locais que reúnam as condições materiais e

humanas adequadas ao planeamento e execução do estudo. Podem ser de natureza pública ou

privada, sendo na grande maioria dos casos hospitais. Muitos estudos de IC com intervenção são

multicêntricos, ou seja, guiam-se por um único protocolo mas têm lugar simultaneamente em

vários centros clínicos, a maioria das vezes de diferentes países.

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Os recursos humanos são uma componente fundamental da IC. Sendo a IC orientada para o

doente, terá naturalmente como protagonista o médico investigador que deverá contudo fazer

parte de uma equipa pluridisciplinar de pessoas competentes e motivadas, com a formação

adequada para o tipo de função desempenhada, e que poderá integrar outros médicos,

enfermeiros, farmacêuticos, técnicos de exames complementares de diagnóstico, engenheiros

biomédicos, biólogos, físicos, auxiliares e pessoal administrativo14. O investigador deverá ainda

possuir competências específicas ou, pelo menos, rodear-se de colaboradores que as possuam. O

domínio da bioestatística é da maior importância já que dela dependem a qualidade do estudo e a

veracidade dos resultados: a formulação da questão científica, a escolha da metodologia

adequada e da amostra, o seguimento dos doentes e a recolha, processamento e apresentação

dos dados oferecem múltiplas possibilidades de enviesamento que devem ser previstas e evitadas.

Outras competências que se exigem ao investigador são a capacidade de organizar e coordenar a

equipa de investigação; manter contactos com as várias entidades envolvidas, nomeadamente a

instituição onde decorre o estudo, comissões reguladoras e doentes; e a exposição dos resultados

e conclusões do estudo em reuniões e/ou publicações científicas.

Tendo em atenção o financiamento do projeto, podemos considerar a existência de dois tipos

distintos de IC: a IC da iniciativa da indústria (incluindo farmacêutica e de dispositivos diagnósticos

ou terapêuticos, dirigida à autorização de comercialização) e a IC da iniciativa do investigador.

Nesta última, recaem sobre o investigador um maior número de responsabilidades já que o apoio

logístico e os recursos à sua disposição não são tão vastos e robustos como no caso da

investigação patrocinada pela indústria. A angariação de financiamento é, igualmente,

problemática, sobretudo nos países de menores dimensões, com sérias restrições orçamentais e

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com défice de infraestruturas criadas de raiz para IC, como acontece em Portugal. O patrocínio,

habitualmente sob a forma de bolsa, pode chegar através de instituições privadas, como as que

são atribuídas pelos grandes grupos financeiros ou pelas fundações (p.ex. Fundação Calouste

Gulbenkian, Fundação Champalimaud) ou através de instituições públicas como a Fundação para a

Ciência e Tecnologia do Ministério da Educação e Ciência. Mais recentemente, foi criado pelo

Ministério da Saúde o Fundo para a Investigação em Saúde que, gerido pela Autoridade Nacional

do Medicamento e Produtos de Saúde I.P., INFARMED I.P., destina-se a financiar IC, investigação

básica ou translacional de interesse clínico/terapêutico ou investigação em saúde pública/serviços

de saúde15.

A regulamentação em IC é crucial não apenas para garantir a qualidade e veracidade dos

resultados, mas também para assegurar a salvaguarda dos direitos fundamentais dos doentes,

independentemente dos interesses envolvidos no estudo. Cada país tem a sua regulamentação

própria que resulta da transposição de diretivas europeias. Em Portugal, a Assembleia da

República, através da Lei nº 21/2014 de 16 de abril, regula a IC com medicamentos de uso humano

e dispositivos médicos, estabelecendo os princípios, as condições, as competências e as

responsabilidades dos diferentes intervenientes3. Para a realização de um ensaio clínico, é

mandatório o pedido de autorização ao INFARMED I.P., assim como o pedido de parecer à

comissão de ética competente. A deliberação favorável é feita se estiverem garantidas as boas

práticas clínicas durante o estudo e se o benefício presente ou futuro da intervenção superar os

riscos esperados para os doentes. A Comissão de Ética para a Investigação Clínica (CEIC) é o

organismo responsável por garantir a segurança e bem-estar dos participantes nos estudos clínicos.

O parecer da comissão de ética previsto na lei poderá ser emitido pela CEIC ou por uma comissão

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de ética para a saúde que funcione no centro do estudo clínico, designada e certificada pela CEIC.

A Portaria nº135-A/2014 de 1 de julho vem aprovar a composição, financiamento, regras de

funcionamento e articulação entre a CEIC e as comissões de ética para a saúde. Tanto a Lei nº

21/2014 de 16 de abril como a Portaria nº135-A/2014 de 1 de julho prevêem ainda a criação de

uma rede nacional das comissões de ética para a saúde (RNCES) e um Registo Nacional de Estudos

Clínicos (RNEC), visando no primeiro caso agilizar a coordenação entre comissões e, no segundo

caso, promover a transparência e informação relativa aos estudos clínicos realizados em Portugal16.

O RNEC deverá funcionar como uma plataforma electrónica de acesso público, servindo não só

para o registo dos estudos clínicos, mas também dos centros de ensaio, dos investigadores, das

CRO, promotores e pareceres obrigatórios. A disponibilização dos pré-requisitos e elementos de

suporte aos estudos, assim como a promoção de ações de formação, colaboração entre

intervenientes e divulgação internacional da IC portuguesa, são outros dos objectivos do RNEC.

Apesar de, até à data, o RNCES e o RNEC se encontrarem ainda por concretizar, foram publicadas a

5 de março de 2015 as Portarias nº64/2015 e nº65/2015 que estabelecem as regras de

funcionamento de cada um dos registos, respetivamente17, 18. A confidencialidade e proteção das

informações pessoais de cada um dos participantes no estudo deverá igualmente ser assegurada

através do pedido de um parecer para tratamento de dados à Comissão Nacional de Proteção de

Dados (CNPD).

Tendo a IC como finalidade derradeira a melhoria da saúde da população, o ser humano é

naturalmente colocado como objecto central do estudo. Excepto nos ensaios clínicos de fase 1, em

que a intervenção é avaliada em voluntários saudáveis, nos restantes estudos com intervenção o

participante deverá padecer da patologia de interesse para a qual se destina a intervenção. Se

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preencher os critérios de inclusão e assinar o consentimento informado, poderá ser incluído no

estudo.

Os estudos observacionais, desprovidos de intervenção, requerem uma metodologia menos

complexa que os estudos interventivos mas que deve ser igualmente rigorosa. A epidemiologia,

pilar dos estudos observacionais, permite a investigação etiológica, a caracterização da história

natural, da incidência, prevalência e prognóstico de diferentes patologias. O tipo e a dimensão do

estudo observacional variam de acordo com o que se pretende testar. Tal como acontece com os

estudos intervencionais, é necessária a preparação de um protocolo que contenha a hipótese, o

desenho, a amostra da população, a eventual colheita de produtos ou medições, a análise

estatística e os requisitos éticos. Dependendo das dimensões e propósito do estudo, poderá ser

necessária a angariação de fundos, colocando-se aqui os mesmos problemas de financiamento

referidos a propósito da IC com intervenção. Por motivos óbvios, a investigação epidemiológica

insere-se mais frequentemente em centros académicos do que em instituições privadas com fins

comerciais. Nestes centros, a existência de uma infraestrutura de apoio, muitas vezes sob a forma

de CRO académica, é fundamental no planeamento, execução e análise do estudo. Nos últimos

anos, verificou-se a nível mundial uma utilização crescente das bases de dados em contexto de

prática clínica diária. Estes programas informáticos permitem o registo de doentes e a introdução

de variáveis relativas à demografia, doença, investigação complementar e terapêutica. Para além

de agilizarem as consultas, facilitarem a monitorização da doença e da eficácia/segurança das

terapêuticas, as bases de dados têm-se revelado um inestimável instrumento nos estudos

epidemiológicos pela quantidade e diversidade de dados contidos. Estas bases de dados, também

conhecidas como registos, possibilitam a inclusão de um elevado número de doentes em estudos

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de coorte retrospetivos ou prospetivos, assim como estudos transversais ou caso-controlo5.

Algumas áreas da medicina que, pela especificidade das suas patologias e terapêuticas, têm

apresentado maior interesse e implementação dos registos incluem as doenças de depósito de

metabolitos, as doenças oncológicas, as doenças cardio e cerebrovasculares, a diabetes e as

doenças reumáticas. Com mais de 12300 doentes e mais de 82000 consultas inseridas (em

31/01/2015), o Registo Nacional de Doentes Reumáticos, Reuma.pt (posse da Sociedade

Portuguesa de Reumatologia e disponível em www.reuma.pt), é o registo que maior evolução tem

verificado nos últimos anos em Portugal, com protocolos de seguimento de doentes com artrite

reumatóide, espondilartrites, artrite psoriásica, lúpus eritematoso sistémico, artrites idiopáticas

juvenis, vasculites, osteoartrose e síndromes auto-inflamatórios, mas com outros protocolos em

desenvolvimento.

4. Perspetiva da Investigação Clínica em Portugal

Nos últimos anos, a aposta na investigação básica em Portugal tem sido consistente. Para além da

criação, desenvolvimento e reconhecimento nacional e internacional de várias unidades

vocacionadas para a ciência básica, o apoio aos investigadores tem sido igualmente uma

prioridade: por exemplo, a grande maioria das bolsas atribuídas pela Fundação para a Ciência e

Tecnologia nos últimos anos visava projetos de investigação básica. Este investimento traduziu-se

numa notável melhoria da qualidade da produção científica a cargo de equipas de investigação

sediadas em Portugal, e tornou-se evidente no estudo da Direcção-Geral de Estatísticas da

Educação e Ciência, "Produção Científica em Portugal - Impacto". Neste estudo é avaliado o

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impacto médio por publicação indexada na rede Web of Science (Thomson Reuteurs), dado através

do quociente entre o número total de citações e o número total de publicações, constatando-se

um crescimento sustentado do impacto por publicações portuguesas entre 1990 e 2012 nas áreas

da biologia, bioquímica e imunologia. Nesta última constatou-se, inclusivamente, a subida do

impacto por publicação acima da média da União Europeia a 15 e a 27 países entre o quinquénio

2001-2005 e o quinquénio 2003-2007, assim como entre o quinquénio 2007-2011 e o quinquénio

2008-2012, sendo o 5º país europeu com maior número de citações neste último período19.

Contudo, ao investimento na investigação básica não tem correspondido o investimento na IC.

Tomando como exemplo o estudo previamente referido, o impacto médio por publicação

portuguesa na área da medicina clínica, que se encontrava a crescer acima da média europeia até

ao quinquénio 2004-2008, tem registado um decréscimo significativo e encontra-se abaixo da

média europeia desde então19. Um interessante estudo de Pereira-da-Silva L et al. publicado em

2004 veio testemunhar o défice não só quantitativo mas também qualitativo da IC portuguesa.

Neste artigo, é feita uma análise retrospectiva da atividade científica registada no Anuário do

Hospital de Dona Estefânia, tendo-se verificado no ano de 2002 uma média de 0.29 trabalhos de

investigação e 0.13 publicações por cada médico daquele hospital. A situação é ainda mais

preocupante se tivermos em consideração que quase 62% desses trabalhos de investigação eram

estudos retrospectivos meramente descritivos, ou seja, casuísticas, casos clínicos ou séries de

casos que correspondem a um muito baixo nível de evidência científica de acordo com o Oxford

Centre for Evidence-Based Medicine20, 21. Não obstante estes dados se referirem a um único

hospital, é muito provável que esta seja uma realidade partilhada pela maioria das instituições de

saúde portuguesas já que a ausência de infraestruturas, recursos financeiros limitados,

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desvalorização curricular da IC e sobrecarga horária com atividade assistencial, nomeadamente

nos serviços de urgência, são obstáculos comuns a quase todos os hospitais e unidades de saúde

primárias.

Embora seja globalmente reconhecido que o volume da IC praticada em Portugal se encontra

aquém do desejável, são escassos e dispersos os estudos que o documentam. Em sentido

contrário, em 2013, a PricewaterhouseCoopers Portugal, por solicitação da Associação Portuguesa

da Indústria Farmacêutica, APIFARMA, apresentou o estudo "Ensaios Clínicos em Portugal" onde

ficou patente o desinvestimento da indústria na IC e algumas das suas consequências. Tal como

esperado, os ensaios clínicos da iniciativa da indústria farmacêutica predominam no panorama

português (94% dos ensaios clínicos em 2010) e mais de 97% são de origem internacional. A

maioria dos ensaios é de fase 3, sendo a representatividade dos ensaios de fase 1 quase

desprezável. Contudo, os dados mais inquietantes mostram, entre 2006 e 2012, uma redução no

número de ensaios clínicos submetidos de 26% (de 160 para 118) e uma redução no número de

ensaios clínicos autorizados de 33% (de 147 para 99). Consequentemente, o número de

participantes nos ensaios sofreu também um decréscimo entre 2009 e 2012 de 1354 para 936

(menos 31%), com menor capacidade de recrutamento de participantes por cada ensaio clínico.

Noutra análise realizada neste estudo, a avaliação do valor da atividade de investigação veio

demonstrar que o prejuízo do desinvestimento nos ensaios clínicos é, para além de humano e

científico, também económico. Estima-se que, em 2012, o valor acrescentado bruto global

resultante dos ensaios clínicos tenha representado 72 milhões de euros, o valor de receitas fiscais

7.5 milhões de euros e que tenha existido uma poupança para o Estado Português de 3.5 milhões

de euros em exames complementares e terapêuticas. Os autores estimam, ainda, que por cada

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euro gasto exista um retorno de 1.98 euros, tornando os ensaios clínicos um dos sectores com

maior impacto potencial para a economia nacional13.

Pelas inúmeras vantagens que desde há vários anos lhe são reconhecidas, é de difícil compreensão

que sucessivas entidades governamentais e administrações de serviços de saúde tenham

negligenciado a aposta na IC. Será ainda mais incompreensível que, à luz do conhecimento atual e

conhecendo a sua implicação económica, não decorra no futuro uma consistente e estruturada

dinamização da IC em Portugal.

Neste sentido, e contrariando a tendência de desinvestimento na IC, foi aprovada em Conselho de

Ministros e publicada a 7 de Abril de 2015 a Resolução nº18/2015 relativa ao Programa Integrado

de Promoção da Excelência em Investigação Médica. Neste documento são reconhecidas as

limitações na produção científica de natureza clínica e as deficiências formativas que lhe estão na

génese e são apresentados os componentes do programa que visa a preparação de médicos para a

IC nas várias fases do seu percurso profissional. A qualificação de recursos humanos, a distinção e

apoio a projetos de IC meritórios e o financiamento de infraestruturas críticas de apoio à IC são

algumas das estratégias de compromisso da tutela para o surgimento de uma nova geração de

médicos investigadores. Esta Resolução poderá revelar-se um importante instrumento de

impulsão da IC em Portugal uma vez estabelecidos o seu suporte regulador e financeiro22.

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5. Investigação clínica: como preparar Portugal?

À luz do que foi anteriormente discutido e considerando a realidade portuguesa, apresentam-se

de seguida algumas propostas que visam incrementar e dinamizar a prática da IC em Portugal.

i) Manutenção do investimento na investigação básica. A evolução do atual modelo de

investigação em direção ao modelo translacional vai aproximar a investigação básica da IC, pelo

que é necessária uma continuidade de investimento na área básica e o seu incremento na

vertente clínica. Isto é o desenvolvimento de uma não deve sacrificar a outra.

ii) Investimento na educação e formação de investigadores. A educação para a IC é

manifestamente insuficiente e este é um problema comum tanto no percurso académico, como

na formação pós-universitária. Não existe, ainda, uma cultura de investigação no currículo das

licenciaturas e mestrados dos cursos na área da saúde, o que dificulta o recrutamento de jovens

com potencial. Da mesma forma, existem cursos de formação pós-graduada de IC que são

lecionados em instituições públicas e privadas mas que são eminentemente teóricos, não havendo

de seguida infraestruturas que deem continuidade aos conhecimentos adquiridos. O treino de

investigadores e a aquisição de competências na IC deverá iniciar-se na faculdade e, no caso dos

jovens médicos, prolongar-se durante e após o internato de forma estruturada e contemplada nos

programas de formação. A qualidade e acreditação destes programas deve ser garantida pelas

universidades, entidades reguladoras e interpares.

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iii) Investimento em infraestruturas de IC. Para dar continuidade ao investimento nos recursos

humanos, e com vista à promoção da IC com fins não-comerciais, o investimento nas

infraestruturas deverá dotar os centros académicos e os centros de ensaio hospitalares de espaços

físicos adequados, equipados com material informático e software estatístico, mas também com

camas, cadeirões, bombas infusoras, material para colheita e processamento de amostras

biológicas, ou qualquer outro material necessário à execução das várias fases do estudo.

iv) Contemplação da IC no horário de trabalho semanal do médico. A realidade do quotidiano

clínico é dominada quase exclusivamente pela atividade assistencial, agravando-se esta

sobrecarga no contexto da atual restrição orçamental. Os médicos, em particular os mais jovens,

com mais disposição e potencial para investir na IC, veem o seu horário de trabalho semanal

preenchido com consultas, internamento, cirurgias, técnicas, hospital de dia e, sobretudo,

urgências internas e externas. É fundamental que as administrações das unidades de saúde

compreendam que, tal como a atividade assistencial, também a IC é geradora de benefícios para o

doente e para a instituição, devendo ser contemplada no horário de trabalho semanal e não vista

como uma regalia a ser realizada à custa do tempo livre do clínico. Do mesmo modo, a atribuição

de maior peso à IC aquando da avaliação para progressão na carreira médica poderia representar

um estímulo e dinamizar a sua prática entre clínicos com mais experiência.

v) Sensibilização das autoridades governamentais para a importância social e económica da

IC. A IC traduz-se num ganho de conhecimento que traz benefício para o doente e para a

comunidade, quer os resultados sejam positivos (se uma intervenção se revelar eficaz e segura),

quer sejam negativos (se uma intervenção se revelar inútil e/ou perigosa). Ademais, existe um

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significativo retorno do investimento financeiro para além de ganhos indiretos, por exemplo com

a criação de emprego. É necessário, contudo, que exista por parte das autoridades governativas a

noção de que o investimento na IC é um investimento a longo prazo e que este retorno pode ser

moroso. Esta sensibilização é tão mais importante quanto mais restritivas as políticas orçamentais

que, regra geral, sacrificam as áreas que não se associam a receita rápida e direta, onde se inclui a

ciência.

vi) Maior celeridade no processo de aprovação dos estudos de IC. A aprovação de um estudo

de IC, mesmo não intervencional, depende do parecer positivo de várias entidades incluindo o

INFARMED I.P., a comissão de ética competente, a CNPD e a administração da instituição onde

decorre o estudo. Esta deliberação pode demorar vários meses e facilmente ultrapassar os prazos

legais estabelecidos. Para que Portugal se mantenha um país competitivo na área da IC é

indispensável uma maior celeridade e simplificação do processo de aprovação, sem que isso

represente um comprometimento dos direitos fundamentais dos doentes.

vii) Aumento do financiamento público para a IC. Esta é uma medida de difícil concretização no

presente contexto socioeconómico, contudo, é por demais evidente que as verbas disponibilizadas

para a IC são escassas. Sendo a IC um meio de desenvolvimento científico, social e económico,

deverá ser o Estado o principal responsável pelo seu financiamento, em particular da investigação

da iniciativa do investigador, promovendo assim a investigação que não se rege pelo interesse

comercial da indústria. A atribuição de verbas para IC deveria, contudo, acontecer de forma

articulada entre os dois Ministérios implicados, o da Saúde e o da Educação e Ciência, o que não

se tem verificado. No próprio financiamento deveriam estar contempladas verbas suplementares

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para as unidades de saúde que dispusessem de infraestruturas e profissionais dedicados à IC.

Outras formas de financiamento poderiam surgir através da atribuição de bolsas, da promoção de

ações de formação avançada em IC, do patrocínio de intercâmbios em redes internacionais de

investigação e da criação ou melhoria de centros de investigação académicos sem fins lucrativos.

viii) Convergência e criação de centros de excelência em IC. Num país de pequenas dimensões,

em que a IC da iniciativa da indústria representa um mercado subaproveitado e a IC da iniciativa

do investigador se faz de forma desorganizada e pontual, devem ser enveredados esforços de

convergência dos recursos disponíveis num número limitado de centros de excelência. Não

necessitariam de ser criados de raiz, podendo ser aproveitadas e otimizadas infraestruturas já em

funcionamento. Os centros académicos surgiriam, então, como os centros integradores e

articuladores entre as universidades e as unidades clínicas, fazendo a gestão dos recursos

materiais e humanos. A existência destes centros permitiria evitar a dispersão de perícia e

conhecimento e concentrar investigadores, enfermeiros e técnicos de saúde vocacionados para a

investigação, ter disponíveis gabinetes de bioestatística e comissões de ética autorizadas, sistemas

de informação, CRO académicas e farmácias capacitadas no manuseamento de medicação

experimental. Esta medida seria benéfica não só para o investigador independente, colocando à

sua disposição uma estrutura já montada, mas também para o Estado já que atrairia investimento

privado através dos grandes ensaios clínicos internacionais. Do ponto de vista formativo, estes

centros estariam também encarregues do ensino de toda a metodologia relacionada com IC a

estudantes e profissionais de saúde interessados.

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ix) Sensibilização da população para a participação em estudos de IC. Com o objetivo de

aumentar o recrutamento de participantes nos estudos com intervenção, é necessária uma

desmistificação da IC e um incentivo à participação. É importante que a população saiba que os

muitos milhares de fármacos e dispositivos médicos utilizados na atualidade foram aprovados com

base em investigação realizada em milhões de participantes, e que a entrada em estudos de IC

deve ser encarada como um ato de altruísmo sócio-comunitário. A metodologia adotada nos

estudos é rigorosa, tem de ser aprovada por várias entidades reguladoras independentes e tem

como prioridade a salvaguarda da saúde dos participantes. É necessária a explicação de que os

participantes não são “cobaias”, pelo contrário, ao participarem nos ensaios estão sujeitos a uma

estreita vigilância e monitorização de parâmetros relacionados com a doença, a eficácia e a

segurança do tratamento testado. Por outro lado, num contexto de medicina cada vez mais

participativa, a colaboração de indivíduos educados para a sua saúde e com um papel ativo na sua

gestão é crucial para a qualidade dos estudos, já que muitos dos resultados/outcomes de interesse

são baseados nas percepções dos doentes relativamente ao impacto da intervenção no seu estado

de saúde - os chamados patient-reported outcomes. A entrada em ensaios clínicos não ocorre

apenas em doenças graves quando não existem outros tratamentos disponíveis, mas quando

assim é, a participação garante o acesso dos doentes a terapêuticas inovadoras. A criação de uma

associação formada por cidadãos com experiência em estudos de IC e ações de formação

organizadas pelas universidades poderiam ser úteis no esclarecimento da população a propósito

das vantagens e desvantagens dos ensaios clínicos e assim informar os futuros candidatos sobre o

que esperar da sua participação.

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6. Agradecimentos

Os autores muito agradecem a cuidada revisão crítica realizada e as criteriosas sugestões

propostas pelas Sras. Professoras Doutoras Maria Emília Monteiro e Helena Canhão a quem

reconhecem uma particular e superior competência nesta matéria.

7. Conflitos de interesse

Os autores não têm conflitos de interesse a declarar.

8. Referências

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Health and Human Services; 2012; [Consultado 5 Julho 2014]. Disponível em:

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7. Fernandes SM, Carneiro AV. Tipos de estudos clínicos. II. Estudos de coorte. Rev Port Cardiol.

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9. Carneiro AV. Tipos de estudos clínicos. I. Estudos Caso-Controlo. Rev Port Cardiol.

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República 1.ª série — N.º 131 — 10 de julho de 2014, p. 3794-6.

16. Assembleia da República Portuguesa. Portaria nº135-A - Aprova a composição, o

financiamento e as regras de funcionamento, bem como a articulação entre a Comissão de

Ética para a Investigação Clínica e as Comissões de ética para a saúde. Diário da República 1.ª

série — N.º 124 — 1 de julho de 2014, p. 3588(2)-3588(4).

17. Assembleia da República Portuguesa. Portaria nº64/2015. Diário da República 1.ª série — N.º

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18. Assembleia da República Portuguesa. Portaria nº65/2015. Diário da República 1.ª série — N.º

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http://www.dgeec.mec.pt/np4/%7B$clientServletPath%7D/?newsId=380&fileName=Impacto_

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central - Análise retrospectiva de dez anos. Act Med Port. 2004;17:309-16.

21. Oxford Centre for Evidence-based Medicine - Levels of Evidence (March 2009). Oxford: Oxford

Centre for Evidence-based Medicine; 2009; [Consultado 1 Setembro 2014]. Disponível em:

http://www.cebm.net/oxford-centreevidence-based-medicine-levels-evidence-march-2009/

22. Presidência do Conselho de Ministros. Resolução do Conselho de Ministros nº 18/2015. Diário

da República 1.ª série — N.º 67 — 7 de abril de 2015, p. 1756-60.