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Investigações Filosóficas SOBRE A ESSÊNCIA DA LIBERDADE HUMANA SCHELLING Pôr o leitor directamente em contacto com textos marcantes da história da filosofia -- através de traduções feitas a partir dos respectivos originais, por tradutores responsáveis, acompanhadas de introduções e notas explicativas - foi o ponto de partida para esta colecção. 0 seu âmbito estender-se-á a todas as épocas e a todos os tipos e estilos de filosofia, procurando incluir os textos mais significativos do pensamento filosófico na sua multiplicidade e riqueza. Será assim um reflexo da vibratilidade do espírito filosófico perante o seu tempo: perante a ciência e o problema do homem e do mundo.

Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

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Page 1: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

Investigações Filosóficas SOBRE A ESSÊNCIA DA LIBERDADE HUMANASCHELLING

Pôr o leitor directamente em contacto com textos marcantes da história da filosofia

-- através de traduções feitas a partir dos respectivos originais,

por tradutores responsáveis, acompanhadas de introduções e

notas explicativas- foi o ponto de partida para esta colecção.

0 seu âmbito estender-se-á a todas as épocas e a todos os tipos

e estilos de filosofia, procurando incluir os textos mais significativos do pensamento filosófico

na sua multiplicidade e riqueza. Será assim um reflexo da vibratilidade do espírito filosófico perante o seu tempo:

perante a ciência

e o problema do homem

e do mundo.

Page 2: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

Textos filosóficos

Director da Colecção:

ARTUR MORÃO Professor no Deparamento de Filosofia da Faculdade de Ciências

Humanas da Universidade Católica Portuguesa

1. Crítica da Razão Prática

Intanannei Karit2. Investigação sobre o Entendimento Humano

David Hurne,3. Crepúsculo dos ídolos

Friedrich Niet-he4. Discurso de Metafisica Gottfried Whilheim Leibruz5. Os Progressos da Metafisica

Inimanuel Karit6. Regras para . Direcção do Espírito

Rene’ Descartes7. Fundamentação da Metafisica, dos Costumes

Inomanuel Karit8. A Ideia da Fenomenologia

Edinund Husserl9. Di- urso do Método

Rene Descartes10. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor

Sõren Kierkegitard11. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos

Friedrich Ni.uche12. C-1a sobre Tolerância

John Lock13. Prolegómenos a Toda a Metafi'sica Pura

1.anuel Katit14. Tratado da Re/arma do Entendimento

Page 3: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

Bento de Espinosa15. Simbolismo: Seu Significado e Efeito

Alfred North Whitchead16. Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência

Herni Bergson17. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome (vol. 1)

Geong Wilhelin Friedrich Hegel18. A Paz Perpétua e Outros OpúsculosIssana`niel Karn19. Diálogo sobre a Felicidade

Sasito Agostinho20. Princípios da Filosofia do Futuro e Outros Escritos

Ludwig Feuerbach21. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epitome (vol. 11)

Georg Wilhelir, Friedrich Hegel22. Manuscritos Económico-Filosóficos

Kari Marx23. Propedêutica Filosófica Georg Wilhetra Friedrich Hegel

24. 0 Anticristo Friedrich Nieuche25. Discursa sobre a Dignidade do Homem

Gi.vann! Pico delia Mirandola

26. Ecce Homo Friedrich Nietzche27. 0 Materialismo Racional

Gaston Bachelard28. Princípios Metafísicos da Ciência da Nature2a

Inornaratel Karit29. Diálogo de um Filósofo Cristão e de um Filósofo Chinês

Nicolas Malebranche,30. 0 Sistema da Vida Etica Georg Wilhelin Friedrich Hegel31. Introdução à História da Filosofia

Georg Wilheito Friedrich Hegel32. As Conferências de Paris

Page 4: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

Edinund Husserl33, Teoria das Concepções do Mundo

Wi1h@hn Dildicy34. A Religião nos Limites da Simples Raão

hornanuei Karit35. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome (vol. III)

Georg WilheIra Friedrich Hegel

Page 5: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

Investigações Filosóficas SOBRE A ESSÊNCIA DALIBERDADE HUMANA

Page 6: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

Título original: Philosophische Untersuchungen über das Wesen der Menschlichen Freiheit und die Zusammenhangenden Gegenstande

(0 desta tradução, Edições 70 e Carlos Morujão

Tradução e Prefácio de Carlos Morujão

Capa de Edições 70

Revisão tipográfica dos serviços de Edições 70

Depósito legal n.’ 62 906/93

ISBN 972-44-0880-9

Todos os direitos reservados para língua portuguesa

por Edições 70, Lda., Lisboa - PORTUGAL

EDIÇõES 70, BRASIL, LDA. - Av. da Liberdade, 258, 3.’ - 1200 LISBOA

Telefs.: 315 87 52 / 315 87 53 / 315 87 55 / 315 87 65

Fax: 315 84 29

BRASIL: EDIÇõES 70, BRASIL, LTDA. - Rua São Francisco Xavier, 224-A, Loja 2 (TIJUCA)

CEP 20550 RIO DE JANEIRO, RI Telef. e Fax: 2842942 / Telex: 40385 AMI-J B

Esta obra está protegida pela Lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à Lei dos Direitos de Autor será

passível de procedimento judicial.

Page 7: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

F.WJ. SCHELLING

Investigações Filosóficas SOBRE A ESSENCIA DA

LIBERDADE HUMANA

e os Assuntos com ela Relacionados

edições 70

Page 8: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

PREFACIO DO TRADUTOR

A obra que o leitor tem nas suas mãos, intitulada no original Philosophische Untersuchungen über das Wesen der menschlichen Freiheit und die zusammenhãngenden Gegenstãnde, conhecida abreviadamente por Freiheitsschrift, foi escrita por Schelling em 1809 e destinada ao primeiro volume dos seus Escritos Filosóficos, a cuja publicaçdo completa acabardpor renunciar. Serdpreciso esperarpela morte do autor, em 1854, para que, uma edição completa das suas obras veja a luz do dia.

A tradução que aqui apresentamos julgamos ser a primeira, em Portugal, de um texto de Schelling. As dificuldades da tarefa eram imensas. 0 alemão de Schelling (de grande beleza formal e com um ritmo muito próprio, que esperamos não ter traído em demasia) pode ser de uma clareza e simplicidade desarmantes, ou de uma obscuridade quase impenetrdvel. Não estando, além disso, fixados em português, por uma investigação séria e por uma tradição de trabalho de tradução filosófica, os equivalentes para os principais termos deste tratado (Grund, Wesen, Basis, Dasein, etc), pouco tinhamos onde nos apoiar.

Page 9: Investigações Filosóficas Sobre a Essência Da Liberdade Humana - SCHELLING

Sentimos, além disso, a necessidade de situar esta obra no contexto da produção do autor e das polémicas filosóficas da época, cuja grandeza e importância hoje a custo pressentimos. Foi desta necessidade que nasceu o texto que se segue. Não pretende ser uma explicação da obra, nem sequer dos seus aspectos principais, mas, tão só, uma introduçdô à sua leitura, colocando-a no contexto do movimento de ideias que a viu nascer e de que Schelling foi, sem dúvida, um dos principais protagonistas.

E vastissíma a bibliografia sobre Schelling e também sobre esta obra. Refira-se somente, a titulo de curiosidade, que, só em França, o Freiheitsschrlft conheceu jd quatro traduções (de valor bastante desigual), acompanhadas, por vezes, de comentdrios e notas que excedem, em muito, o tamanho do texto que se propõem comentar. Ainda assim, arriscamos, no final, a apresentação de uma bibliografia selecta que permita ao leitor interessado aprofundar os seus conhecimentos sobre este autor, ainda tcTo mal conhecido entre nós.

Para esta tradução servimo-nos do texto publicado nas Schellings Werke, editadas por Manfred Schrõter, München, Verlag C.H. Beck, 1927. Trata-se de uma edição que procede a uma nova arrumaç6o das obras do filósofo, tendo por base o texto publicado nas Sãmtfiche Werke de Schelling, editadas por seu filho, Stuttgart-Augsburg, Cotta Verlag, 1856-61 (onde Das Wesen der menschlichen Freiheit aparece no volume VII), mas cujos critérios nem sempre se percebem e são, por vezes, completamente arbitrdrios. Conserva, felizmente, a referência à paginação daquela edição, que é a normalmente referida pelos comentadores de Schelling e figura, habitualmente, em margem das várías traduções. É esta paginação que decidimos igualmente conservar em margem, para facilitar ao leitor interessado, quer o confronto com

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o texto original, quer com outras traduções que tenha

ao seu dispôr.

A explicação detalhada de cada uma das nossa opções de tradução obrigaria a longas notas que sobrecarregariam um texto já de si bastante denso e dif@cil. E, por fim, boa parte delas talvez se revelasse inútil.- o leitor que desconhece a Ungua alemã quase que pode prescindir delas e quem acompanha a leitura da nossa traduçffo com o texto original saberá, certamente, refazer o nosso percurso e, desejamo-lo, corrigir-nos sempre que tal se revelar necessário. Esperamos sinceramente que as ocasiões em que isso venha a acontecer não acabem por se tornar demasiado numerosas. Esta decisão, no entanto, não nos impediu de proceder, neste prefdcio, a uma ou outra explicaçdo mais pormenorizada de termos particularmente difíceis ou controversos.

Uma última observação: Schelling não dividiu este seu texto em capítulos, embora ele comporte, como é evidente, várias partes e se desenvolva segundo uma articulação extremamente rigorosa. Por este motivo, resolvemos mantê-lo tal como o autor o quis apresentar, na medida em que qualquer intervençdo relevaria, em nosso entender, do trabalho de interpretação e não do de traduç6b. Todavia, não queremos deixar de remeter o leitor para a obra de Martin Heidegger, Schellings AbhandIung über das Wesen der menschlichen Freiheit, Tübingen, Verlag Max Niemeyer,1971, onde poderá encontrar uma análise bem fundamentada das várias partes em que este texto se divide.

Esta obra, que marca praticamente o fim da actividade pública de Schelling como escritor (publicará somente, até à data da sua morte, mais três curtos

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textos), embora não o fim da sua actividade filosófica (ensinard, em diversos locais, por mais trinta e oito anos), nem da sua influência no meio filosófico alemão - e mesmo francês -, esta obra, diziamos, é em

grande medida um ponto de viragem. Schelling esforçar-se-d por ligd-1a à sua produção filosófica anterior, a chamada filosofia da identidade - que, segundo a nova perspectiva, constituiria apenas o desenvolvimento, forçosamente unilateral, de uma das partes do seu sistema total de filosofia -, afirmando que a filosofia da liberdade é a conclusdo necessdria que tal sistema exigia (a sua parte ideal que, até ao momento, n6o fora ainda plenamente desenvolvida) e que só agora a sua filosofia deverd ser julgada no seu todo.

Simultaneamente, com este escrito, Schelling leva ao seu ponto culminante um debate filosófico mais vasto, que atravessa todo o século XVIII na Alemanha e que se mantém ainda bem vivo no início do século XIX; o que nele estd em litígio é saber quem tem razão, Espinosa ou Leibniz. Trata-se da querela em torno do panteismo, do necessitarismo e do ateísmo (os três associados, por muita gente, ao nome de Espinosa), na qual tomaram parte, entre muitos outros antes de Schelling, Kant, Jacobi e Fichte.

Do ponto de vista em que se coloca neste tratado, é essencial para Schelling o debate com a filosofia de Espinosa e o esclarecimento das suas relações com o panteismo. 0 leitor notard que Schelling, embora marcando as suas distâncias, não critica neste último a afirmação da presença de todas as coisas em Deus, ou de Deus em todas as coisas; pelo contrdrio, não se cansard de afirmar o acordo entre esta tese e aquilo que a filosofia procura explicar, a religião defende e

os místicos experimentam. Notar-se-d ainda a sua preocupação em denunciar as interpretações grosseiras da filosofia de Espinosa, como, por exemplo, a afirmação, contraditória em si mesma, de que cada

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coisa é um Deus derivado ou modificado. Não é, tam~ bém, a afirmação central desta filosofia, ordo et connexio idearum ídem est ac ordo et connexio rerum W. Etica, II, Prop. 7), que estd em causa, mas o modo como Espinosa entendeu a connexio rerum, modo mecânico e morto e não dinâmico e vivo, que transformou tal filosofia num necessitarismo onde a liberdade ndo pode ter lugar.

Sigamos, entdo, a análise schellinguiana da proposiçdo «Deus é todas as coisas» e procuremos ver o que, na sua perspectiva, ela contém de verdadeiro. Schelling interroga-se pelo sentido da cópula, do é. Substituamos a referida proposição pela expressão A = B, que formalmente lhe é idêntica. Em que condições é possível fazer-se tal afirmação? Se houver, em A e em B, um x onde se exprima a unidade origindria dos dois e também a possibilidade da sua origindria cisão. Assim, naquela igualdade exprime-se, simultaneamente, uma identidade e uma diferença’. Para Schelling é esta a única interpretação possível do princípio de identidade, que ultrapassa o seu alcance meramente lógico e se eleva à dimensão especulativa onde se manifesta a verdade da coisa mesma. Aquela proposição «Deus é todas as coisas», que representa o núcleo racional e verdadeiro do panteismo, é expressão do devir de todas as coisas em Deus e de Deus como princípio activo de produção. Especulativamente interpretada, a cópula torna-se o ponto em que a questão teológica e a questão ontológica inevitavelmente se interligam. (Que Schelling, no entanto, não se limite a repetir o projecto metaf(sico de uma onto-teologia, no sentido que Martin Heidegger atribui a

esta expressão, é o que procuraremos mostrar mais adiante.)

1 É nisto que a proposição A = B se distingue da proposição A = A, que exprime a mera identidade consigo mesma da substância absoluta.

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Na questdo que Schelling coloca no início deste tratado - como é possível um sistema completo de filosofia? (e após Kant toda a filosofia aspira a ser sistemdtica, ou seja, a fazer derivar todos os conhecimentos da razão e, portanto, toda a realidade, de um único princípio) - encontramos não apenas um reflexo, mas, talvez, a expressdo mais aguda de todas aquelas questões que a expressdo «debate em torno do panteismo» (Pantheismusstreit) condensa. Com Kant, mas, sobretudo, após Kant, com o chamado idealismo alemão, o problema do sistema tornara-se um problema central dá filosofia. Jd na Crítica da Razão Pura o filósofo de Kõnigsberg -distinguira entre três possíveis sentidos do termo: unidade orgânica, rapsódia e unidade técnica. Ora, um sistema de filosofia não pode ser uma estrutura exterior à coisa ordenada, mas expressão da ordem da própria coisa que, desta forma, é elevada ao nível superior do saber’. Num sistema (ou, como Kant diz, numa arquitectónica) o saber das coisas e as coisas sabidas identificam-se, embora uma tal unidade, em Kant, ndo se torne nunca plenamente efectiva, dado que aquilo a que chama ideias da razão, expressão das aspirações da razdo à unidade sistemdtica, não têm, para ele, carácter ostensivo. Quer dizer, para Kant as ideias não fornecem nenhum fundamento para aquilo que representam, mas permanecem com tarefas que a razão, no decurso do seu exercicio, coloca a si mesma, sem nunca as conseguir resolver plenamente. É no quadro destas preocupações que devemos entender a pergunta de Schellíng.

Se respondermos que um tal sistema é possível, a ligação necessdria entre as suas partes, na qual se

‘ Elevação (Erhebung), elevar (erheben), são termos que aparecerão repetidas vezes nas páginas deste tratado. 0 leitor notará a sua frequência e a sua importância em função do contexto, que aqui não podemos mais do que assinalar.

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exprimirá a ligação necessária entre todos os elementos do real, será a prova da impossibilidade da liberdade. E se a liberdade existe, como o parecem demonstrar todos aqueles que possuem o mais vivo sentimento dela ,parece que com ela se arruina a própria possibilidade do sistema. Mas estará a razão prisioneira desta alternativa?

li

0 modo como Kant aborda o problema da liberda~ de na Crítica da Razão Pura é determinante para a evoluç do posterior do problema. Resumidamente, poder-se-ia expor a tese de Kant da seguinte forma: de um ponto de vista cosmológico, a liberdade é incompatível com a existência de uma causalidade na natureza; mesmo a liberdade psicológica, quer dizer, o sentimento que cada um de nós possui de ser o autor de uma acção, deverá ser negada - e, neste ponto, Kant utiliza uma argumentação muito semelhante a que já fora usada por Espinosa -, pois pode ser uma ilusão resultante do desconhecimento de uma causalidade escondida, quer devido à nossa propria ignorância, quer devido à complexidade das causas. Kant, no entanto, introduzirá uma distinção entre a causalídade empírica, submetida ao tempo, e uma outra causalidade que releva do domínio prático e que, embora faça sentir os seus efeitos no tempo, não é um fenômeno da natureza, mas uma livre e insondável causalidade da vontade, que Schelling tenta distinguir da indiferença do livre-arbítrio. Para salvar a

‘ Para Schelling, tal como para Kant, há um facto da liberdade que não é totalmente possível de explicar, na medida em que já está pressuposto em todas as explicações que dele se tentam. Kant, na Fundamentaçdo da Metafisica dos Costumes chamara à liberdade a «maravilha no mundo dos fenômenos». É a possibilidade desta maravilha que Schelling tenta compreender.

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liberdade Kant ndo tem outra solução sendo a de admitir uma causa que não foi causada, o que Schopenhauer, mais tarde, classificará como contradictio in adj ecto e último recurso do kantismo para salvar o deus da metafisica tradicional. Kant, portanto, reintroduz o dualismo. Por isso, a sua filosofia comporta duas partes distintas: uma metafísica da natureza e

uma metafflica dos costumes e a tarefa de um sistema da razão consiste, para ele, na unificação das duas.

Mas esta não será a última palavra de Kant sobre o

assunto. No § 76 da Crítica da Faculdade de Julgar, Kant falará da natureza em termos completamente diferentes, já não como encadeamento de fenômenos, mas como mecanismo de produçdô de fenômenos, como fundo inesgotável de que depende a legalidade da natureza, tal como a representava a física-matemática do seu tempo, mas que a ela ndo se poderia reduzir. É aqui que Kant se aproxima decisivamente da noção shellinguiana de um sistema da liberdade, tanto mais quanto é também aqui que Kant procurará resolver a

oposição entre necessidade e liberdade, considerada expressamente por Schelling como o problema central com que se defronta qualquer verdadeira filosofia. É esta passagem do ponto de vista mecânico para o ponto de vista dinâmico (que a filosofia kantiana procura, mas que nunca saberá encontrar) que permitirá ultrapassar a oposição tradicional entre o racional e o que se considera privado de razão e restituir à natureza toda a sua dimensão espiritual.

Schelling, no entanto, abordará o problema da construção de um sistema de filosofia de forma completamente diferente. Não esqueçamos que as ideias que Kant desenvolve no referido § 76 não têm um carácter determinante, quer dizer, não podem ser consideradas como constitutivas do objecto enquanto objecto de conhecimento para uma razão humana finita, mas est(To condenadas a permanecer meros conceitos

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de reflexão. Da@ que a origem da diferença se situe na possibilidade, que Schelling admite, de conferir a tais ideias uma realidade objectiva que em Kant não poderiam ter. Por outras palavras, Schelling admite a possibilidade de uma intuiçdo intelectual, ou seja, a faculdade de poder ver, de ter presente - sem ser por intermédio da intuição sensivel, o único tipo de intuição admitido por Kant - a unidade do universal e do particular, do infinito e do finito, da identidade e da diferença, ou seja, aquilo que, na filosofia pós-kantiana, é designado por absoluto.

Explicar o que é e como é possível a intuição intelectual (sem voltar a cair no dogmatismo) será uma das preocupações de Schelling a partir de 1800, embora já em 1795 as Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo a ela façam referência. Ainda em 1804 dedicará a este assunto a parte inicial de um escrito polémico intitulado Philosophie und Religion. Fichte fora o primeiro, após Kant, a falar dele, mostrando como o saber não é somente um saber de coisas, mas, por meio de um retorno reflexivo sobre si mesmo, saber do saber, saber do que é sabido no saber das coisas e, por isso mesmo, produção das próprias coisas como coisas sabidas1. Schelling, entretanto, não se limita a retomar esta problemática fichteana, mas dard à intuição intelectual, como intuíçdo do absoluto na sua simplicidade e identidade perfeitas, como acto de liberdade de um sujeito que se liberta do poder constrangedor dos objectos, um sentido que ela não podia comportar para Fichte e que estará, como veremos, na origem da ruptura entre os dois filósofos.

No entanto, nos começos da sua actividade filosófica, Schelling n6o se encontrava muito afastado da

1 Em que medida esta posição se poderia apoiar na autoridade de Kant e numa certa leitura do § 16 da 24 edição da Crítica da Razão Pura, é questão que não podemos abordar nestas páginas.

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posiç,ffo fichteana relativamente d intuíçdo intelectual. Nas já citadas Cartas filosóficas sobre o doginatisino e o criticismo afirmava que ela acontece sempre que deixamos de ser objecto para nós mesmos e quando, ao regressar a si mesma, a ipseidade que intui é idêntica ao objecto intuído. Com mais força ainda, dizia que não se deve considerar a intuição de si mesmo como intuição de um mundo supra~sensível que transcenda o Eu. Devemos registar, portanto, uma primeira evoluçc7o de Schelling no que respeita a este assunto.

Mas note-se que o absoluto que Schelling considera como possível de ser intuído (e que é agora entendido numa acepção mais próxima do sentido originário da palavra, do latim absolutus, entendido como unidade onde se dissolvem as particularidades do que está cindido), ndo é, ainda assim, um absoluto exterior ao saber - se o fosse Schelling teria caído no dogmatísmo pré-kantiano - pois trata-se de um saber do absoluto que é, ao mesmo tempo, um saber no absoluto, porque este, sendo de facto aquilo que é de acordo com o seu conceito, ndo pode ficar fora do saber. A intuiçffo intelectual não é, por isso, uma visão estranha a que uma natureza mediativa se sentisse particularmente inclinada, para empregarmos uma expressão de Jacobi, nas suas Cartas sobre a doutrina de Espinosa. Pelo contrário, ela aparece-nos mais como o oposto da disseminação no mundo de objectos, ela sim verdadeiramente dispersiva e aniquiladora da identidade do Eu, idêntica àquela uneigentllchkeit que Martin Heidegger tematizard nas páginas célebres de Sein und Zeit.

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Vários anos após ter rompido as suas relações com Fichte, Schelling dirá: «Es war die Zeit, ivo ich etwas

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Hõheres und Tieferes in seiner Lehre suchte, aIs ich doch in der That finden Konnte.» (S.W., VII, p. 23). Em 1809 não era mais o tempo de procurar em Fichte esse algo de mais elevado e mais profundo que Schelling, um dia, pensara ld poder encontrar, mas os reflexos dessa polémica são ainda visíveis neste escrito, embora talvez não sejam totalmente perceptíveis para um leitor desprevenido. Curiosamente, ela rebentou num momento em que a filosofia fichteana sofria uma inflex6o decisiva, mas que Schelling n,«o chegard a conhecer, uma vez que Fichte ndo tornard plíblicas as reelaborações a que ird submetendo a sua Doutrina da Ciência, contentando-se em expô-las diante de alunos ou de círculos restritos de amigos. E por isso do maior interesse o estudo da sua correspondência com Schelling, dos anos 1800-1801, onde assistimos ao progressivo afastamento entre os dois. É provável que a distância tenha igualmente contribuído para acentuar os equívocos e favorecer os mal-entendidos: Fichte enew-!,'rava-se por esta altura em Berlim, onde se refugiara após ter sido acusado de ateísmo, e Schelling era professor na universidade de Jena, onde se manterá até 1803.

Ressalta da leitura destes textos as reservas de Fichte diante do desenvolvimento, por Schelling, de uma filosofia da natureza que, ao parecer admitir (na perspectiva fichteana) um ser independente do saber, punha em causa as aquisições da perspectiva transcendental inaugurada por Kant. Fichte, em carta de27 de Novembro de 1800, tenta resumir as diferenças entretanto surgidas e, ao mesmo tempo, encontrar uma plataforma de entendimento: a natureza, argumenta ele, considerada como real-ideal (expressão que

‘ 0 termo é empregue, obviamente, no sentido da natura naturans de Espinosa, identificada com Deus entendido como «quod in se est et per se concipitur».

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é do agrado de Schelling) pode ser totalmente deduzida do Eu, não, bem entendido, se a considerarmos como fenômeno ou conjunto de fenômenos, mas do ponto de vista do que nela há de inteligível. A posiçdo schellinguiana que motiva esta resposta de Fichte (mas que irá evoluir e o Tratado de 1809 é um dos momentos c@is dessa evoluçdo) poderá resumir-se nos ~t, s, ermos: sendo auto-produção e

auto-d a natureza é a verdadeira identidad ito-objec <@h, a sua manifestaçdo na consciêne @ICD41I_e__c ciência é apenas um grau s@tperíÍ ssa tividade-objectividade natural. Epor iss w_;21 virmos como consciencia, aquela identidade sujeito-objecto aparece-nos elevada à sua potência’ superior (ou seja, torna-se uma subjectividade-objectividade subjectiva), pressupondo, no entanto, aquela identidade objectiva como sua condiçffo de possibilidade, ou potência inferior, quer dizer, como passado transcendental a que o presente da consciência devolve toda a riqueza e profundidade espirituais. Por outras palavras: a consciência só é uma potência da natureza porque existe nela como potencial.

Porém, como aquela unidade não está imediatamente dada e como o entendimento não a reconhece

1 Potência (Potenz) é um termo schellinguiano difícil de explicar em poucas palavras. Significa, aproximadamente, a acção pela qual algo se põ e a si mesmo e, nesse pôr, se manifesta como unificação e concreção dos seus elementos constituintes previamente dispersos. Trata-se, portanto, de um nível de realidade em que se reproduzem, num plano superior, os momentos anteriores. Nos anos em que procede à elaboração da filosofia da identidade (altura em que se situa a polémica com Fichte, que vimos referindo), Schelling utiliza preferencialmente o termo potência para designar os modos de exteriorização da identidade absoluta, que se manifesta como diferença quantitativa entre subjectividade e objectividade. Não sendo objecto de uma tematização explícita no Tratado de 1809, ainda assim o leitor poderá encontrar aí sinais evidentes da reelaboração a que Schelling submeterá esta noção, vindo a consagrá-la, nos seus últimos trabalhos filosóficos, como designação dos momentos em que se cinde interiormente a vida divina, no seu processo de auto-manifestação.

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como tal, a tarefa da filosofia (que constitui, ao mesmo tempo, a sua profunda necessidade) consiste em proceder ao seu restabelecimento e, dessa forma, em ultrapassar o ponto de vista da reflexão que, ao negâ- lã, revela o seu verdadeiro carácter de doença do espírito humano. É esta posição que Fichte procura integrar na sua, dando-lhe uma formulação mais adequada aos princípios da Doutrina da Ciência: a noção schellinguiana do Eu como potência superior poderá ser conservada, sob a condiç6o de distinguirmos entre o que é fenômeno e o que é inteligível na natureza e de considerarmos o indivíduo em geral como potência inferior desse inteligível.

Na verdade, ao longo de toda esta polémica, cada um dos dois filósofos parece servir-se dos termos do outro para expor ideias bem diversas e daí a sensação de equivoco que resulta de uma leitura atenta de todos estes textos. Assim, em carta de 31 de Maio de 1801 (mas enviada somente a sete de Agosto,), as diferenças parecem agudizar-se, embora Fichte comece por manifestar a alegria e a esperança que lhe despertou a recepção da última carta de Schelling, ao mostrar-lhe que este se mantinha no caminho da ciência (leia-se: continuava a seguir o caminho aberto por

1 Esta carta é fundamental para a compreensão da relação entre os dois filósofos e recomendamos vivamente a sua leitura. Pode encontrar-se na Gesamtausgabe de Fichte (org. de Reinhard Lauth), Stuttgart/Bad-Cannstadt, Verlag Friedrich Frommann, vol. 111, 5, pp. 43-53. Esta troca de correspondência azedou a relação entre os dois filósofos, que interromperam a partir de então qualquer contacto pessoal, não mais se voltando a ver até à morte de Fichte em 1814. Em vida, Fichte referir-se-á sempre depreciativamente ao rumo seguido por Schelling após a separação entre ambos; o mesmo acontecerá com Schelling em relação a Fíchte. Em 1806, numa obra intitulada Exposição da verdadeira relaç6o entre a filosofia da natureza e a doutrina de Fichte melhorada, popularmente conhecida como o Anti-Fichte), Schelling retomará as suas críticas anteriores, acusando Fichte de ver a natureza como simples meio de que o Eu se serve para se realizar como ser moral.

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Fichte com a sua Wissenschaftslehre de 1794, cujos princípios fundamentais mais uma vez reafirma). Mas o conteúdo desta carta parece confirmar a acusação que Schelling lhe lanç ara de ser incapaz de reconhecer a identidade sujeito-objecto sem ser pelo lado da consciência, opinido que, como se sabe, serd também a de Hegel no Differenzschrift de 1801. Fichte reduz a natureza a uma pequena região da consciência: na intersecção entre a consciência universal (ou seja, a totalidade da vida espiritual) e a consciência individual determinada (o X impenetrdvel à ciência, mas atravessado pela vida do espírito), aí onde o indivíduo aparece como ponto de vista sobre a totalidade do sistema, é que a razão finita pode proceder a uma dedução da natureza. Fichte quer manter-se no campo do idealismo e acusa Schelling de cair no realismo. Para ele, a filosofia não pode partir de um ser, mas de um ver (dado que o primeiro só existe uma vez referido ao segundo), ou seja, da evidência simultânea de si mesmo e do saber que penetra todas as coisas, evitando, igualmente, quer uma perspectiva ‘ ica sobre elas, quer o ponto de vista do Eu sinempir gular. Só o puro ver tem as características de perma~ nência, solidez e imutabilidade que a filosofia dogmática atribui ao ser. 0 dogmdtico é aquele que põe o ser antes das coisas, quer dizer, antes da vida, hipostasiando-o como causa. No fundo, para Fíchte -

que afirma seguir o caminho delineado por Kant - a intuiçdo intelectual não é intuição de um ser (seja ele o absoluto, como em Schelling), mas somente de um agir, a saber, o agir da consciência que se põe a si mesma, a exemplo do que acontecia em Kant à consciência do imperativo categórico. Na jd referida carta, Fichte afirma ainda que a vida espiritual, para a qual a natureza mais não é do que o mundo da experiência, que se opõe ao Eu e sobre o qual ele exerce a sua actividade, é o quadrado racional de uma raiz

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irracional, ou seja, da luz imanente ou Deus, de que a natureza é apenas uma manifestação.

Desta polémica, as duas primeiras dezenas de pcí~ ginas do Tratado de 1809 são ainda um claro reflexo. Por isso, convirá ao leitor conhecer, ainda que sucintamente, a resposta de Schelling. Ela consistirá em acusar Fichte de retirar à ideia de natureza todo o seu carácter especulativo: a natureza cai fora do absoluto, torna-se num nada que só será possivel recuperar de um ponto de vista prático, considerando-a como campo da acçdo moral do homem. A natureza fichteana, concluí Schelling, tem um significado meramente teleológico, é despida da sua vida própria e não é mais um reflexo da eternidade. Inconsequentemente (do ponto de vista de Schelling), Fichte afirma que a natureza tem o seu fundamento em Deus, mas, uma vez que se recusa a compreender a sua profundidade religiosa, enquanto auto-manifestação do absoluto, só a pode considerar do seu próprio ponto de vista moralista, que reintroduz o dualismo.

IV

Sublinhámos, de início, o carácter de transiçffo deste escrito. Ele torna-se evidente se notarmos que quase todos os temas que marcam o anterior percurso filosófico de Schelling, embora de forma alguma tenham sido abandonados, se encontram particularmente atenuados. Desapareceram as referências explicitas à intuição intelectual, embora a afirmação da existência de um sistema, «pelo menos na mente divina», associada à afirmação de que «o semelhante pode conhecer o semelhante» (isto é, o divino pode ser conhecido através do que há de divino no homem), continuem a apontar nesse sentido. A posição que sobrevaloriza a unidade, a identidade e a indiferença

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não é totalmente abandonada, mas o finito, a cisão, a separação e o Mal, readquirem, com a nova perspectiva, o seu papel positivo. Este é, sem dúvida, um dos temas mais fortes do Tratado de 1809, que o liga indissoluvelmente à situação espiritual do seu tempo e à conjuntura política e social da Alemanha, derrotada pelos exércitos napoleónicos; mas Schelling não tem a

intenç,@Fo de introduzir aquilo que o idealismo ale~ (em polémica com Kant, cuja sombra, porém, paira sobre cada uma destas páginas) designava como perspectiva do entendimento, que cinde, calcula e separa, mas quer mostrar que a razão deve levar a sério o carácter finito das coisas singulares e os conflitos que as despedaçam do seu próprio interior, fazendo-o embora na perspectiva da inserç6o da sua vida finita na vida infinita do todo. Trata-se daquilo que Hegel designará como «idealidade do finito», a sua não fixação em cada um dos momentos singulares em que o entendimento o descobre (forçosamente em oposição uns com os outros) e que constitui um dos temas centrais do idealismo atemdo. Em Schelling, todavia, estas questões revestem, ao mesmo tempo, um carácter acentuadamente ético; para ele, o finito não é apenas derivado, não é um «menos» em comparaçdo com um «mais», mas pode tornar-se mau. Por isso, Schelling define a liberdade como uma faculdade do Bem e do Mal, quer dizer, como poder, ou de unir o que está cindido, ou de consumar a cisão e a separação. 0 homem é capaz de ambas as coisas, ou melhor, é o único ser capaz de ambas as coisas e épor isso que, sendo diferente de Deus (embora de origem e destinação divinas), hd@nele um abismo que o separa da mera animalidade. E àquele poder que se refere o e da expressão «Bem e Mab>.

0 leitor notará, certamente, que, no que diz respeito a este problema, o interlecutor privilegiado de Schelling já não é Espinosa, mas Leibniz e a sua tentativa

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de teodiceia. A seu modo, Schelling retoma as pretensões sistemáticas de Leibniz em conciliar a liberdade humana com a ordem da natureza, tentando embora conservar o carácter positivo dessa liberdade, cujos efeitos já não podem simplesmente inscrever-se numa ordem superior que os «totaliza» e, finalmente, os nega na sua singularidade irredutível.

0 presente tratado procura esclarecer a essência da liberdade humana. Não nos esqueçamos que Schelling utiliza o termo essência com um sentido fortemente activo, mais como verbo do que como substantivo: a essência não é o universal comum a um conjunto de singulares, mas o que torna possível que esses singulares se manifestam como aquilo que são 1. É por este motivo que o título do tratado inclui uma referência aos «assuntos com ela relacionados», aos quaís será dedicada, aliás, a maior parte das suas páginas. Não épor acaso que, na economia desta obra, assim deveria acontecer. Aquilo que torna possível a liberdade humana não deve ser procurado do lado da decisão individual. Tentando esboçar uma figura não antropológica da liberdade, Schelling insiste no facto de que ela não é uma propriedade do homem, nem sequer a mais importante, pese embora o sentimento de ser livre, que cada um pode experimentar, e o facto de que ao homem, como criatura racional finita, pode ser imputada cada uma das suas acções. Pelo contrário, é o homem que dever ser considerado uma propriedade da liberdade . Esta expressão significa: a liberdade é a ordem mesma do Ser e existe no homem porque ele lhe pertence e a manifesta de determinada forma.

1 Não é, obviamente, o único sentido que o termo possui nesta obra e daí algumas dificuldades de tradução com que nos defrontámos. Frequentemente, Wesen é empregue como equivalente de Seiend, que foi normalmente traduzido por «ente» ou, em alguns casos, por «ser» (sempre com minúscula inicial).

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Na medida em que se trata da liberdade humana, pode ver-se como o tratado de 1809 se afasta decisivamente das posições que Schelling defendera no inicio da sua actividade filosó fica, marcado pela influência de Fichte. Em 1794-5 Schelling afirma o Eu como auto-posiçã o e como posição da realidade; o Eu éprincípio de liberdade e a consciência empírica, para a qual essa liberdade é entravada pela presença de uma realidade que se lhe opõe, é negaçã o do mundo dos objectos e esforços da coincidência com o absoluto. Pondo-se a si mesma, a ipseidade deve negar-se para coincidir com o todo, procurando preservar, no fluxo de alterações que a vida no mundo de objectos lhe acarreta, aquela identidade, imutabilidade e permanência que sdo apenas atributos do absoluto. Vê-se, assim, como o jovem Schelling se debate com duas posições que não sdo absolutamente coincidentes: prímado do Eu que se afirma a si mesmo e põe o mundo e

auto-dissolução do Eu na vida infinita do todo. Fichte, que só podia interpretar este todo como mundo de objectos que o Eu deve negar para se afirmar a si mesmo (é o que estd implicito na célebre frase: «a filosofia que se escolhe depende do tipo de homem que se é») só poderia interpretar esta posiç6o como recaída no dogmatismo. Mas agora, para Schelling, jd não se trata de negar a ipseidade para afirmar o todo, mas de afirmar que a vida fora do todo, ou seja, fora de Deus, corresponde à manifestação, no homem, de um princípio existente em Deus. Schelling denomina-o a natureza de Deus e contrapõe-no à sua existência, estando embora indissoluvelmente ligado a ela. A unidade destes dois princípios constitui a vida divina. Aquela natureza, como fundo obscuroi ou abismo

1 Este Grund que é, igualmente, um Abgrund, foi traduzido por «fundo» e não por «fundamento», para não ser entendido como sinónimo de causa ou motivo, na dependência, portanto, do princípio de

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insondcível, existe também no homem, embora - dado que o homem é criatura - se possa dissociar do princzpio luminoso (o entendimento) e, submetendo-o, es-

tar na origem do Mal. Pelo contrário, quando se

verifica a unidade entre aqueles dois princípios, o

homem torna-se espírito e participante da vida divina. Deste modo, Schelling pode afirmar simultanemente que o mal tem, no homem, uma raiz independente de Deus e que, no entanto, nada pode existir fora de Deus. Assim, se a teodiceia significa a dissoluçjo da positividade do mal, fazendo-o resultar da inacapacidade do nosso entendimento em totalizar os efeitos da criaçdo e integrd-1os na perspectiva que os explica, o sistema da liberdade recupera essa positividade, sem o iludir, colocando-o no ente no seu todo e ligando-o ao que, em Deus, ainda não é Deus.

0 leitor familiarizado com a mística alemão do final da Idade Média e do Renascimento, ou com alguns dos temas favoritos da Cabala e da Teosofia, poderd encontrar nas pdginas que se seguem algo mais do que uma mera coincidência de termos e de expressões. Termos como Base, Centro, Periferia, Temperamento, etc, revelam em Schelling o leitor atento de Jacob Bõhme, autor que se tornara bastante popular nos meios românticos de Jena, no final do século XVIII, que Schelling frequentava. É natural que na época da elaboração do Frelheitsschrift o contacto com Franz Baader (autor que Schelling refere

razão suficiente, que é precisamente aquilo que Schelling pretende aqui pôr em causa. 0 Grund não é razão, mas o «sem-razão» ou «irracional» com que toda a existência se confronta.

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por diversas vezes e cujos trabalhos então apreciava) tenha reavivado o interesse por aquelas leituras. Como o que mais nos importa é o movimento vivo das ideias e não a história das influências, não abordaremos aqui este problema. Interessa muito mais mostrar o modo como Schelling atribui o mais alto valor especulativo à noção cristd de Deus como «Deus de vivos e não de mortos» e como a utiliza para fundamentar ontologicamente a possibilidade do Mal e o seu aparecimento ôntico através da liberdade humana. Gostariamos ainda de fazer notar que a obra de Schelling, neste momento decisivo em que se anuncia uma viragem em face das suas preocupações iniciais, procura responder antecipadamente a um dos desafios que, segundo Martin Heidegger, se coloca nos nossos dias ao pensamento: a ultrapassagem da estrutura onto-teológica da metafisica. Sabe-se que o que este autor designa com o auxílio da referida expressdo não é a intromissdo indevida de uma determinada teologia no pensamento filosófico, contaminando-lhe os temas e a sua marcha independente, mas a necessidade de toda a metafísica se apoiar num ser subsistente por si mesmo («Deus»), para garantir conceptualmente a subsistência do real. Ora o Deus de Schelling ndo é mais o ipsum esse subsistens dos medievais e, por isso, embora o tratado de 1809 pertença de pleno direito à tradição metafisica ocidental, a que nunca quis deixar de pertencer, parece-nos ser também um dos momentos mais significativos em que se esboça uma ruptura com ela.

CARLOS MORUJÃO

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INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

1) Obras gerais

M. Franck, Der unendliche Mangel an Sein, Frank-

furt-am-Main, 1975. W. SchuIz, Die Vollendung des deutschen Idealismus

in der Sãtphilosophie Schellings, Stuttgart, 1953. X. Tilliète, Schelling. Une philosophie en devenir,

Paris, 1970, 2 vol.

2) Obras sobre o sistema da liberdade

M. Heidegger, Schellings Abhandlung über das We-

sen der menschlichen Freiheit, Tübingen, 1971. M. Richer, Schelling et l'utopie métaphysique (edita-

do como comentário à sua tradução do Freiheitsschrift, Recherches Philosophiques sur

l'essence de la liberté humaine), Paris, 1977. W. Marx. Schelling: Geschichte, System, Freiheit,

Freiburg-München, 1977. W. Schulz, «Oetinger Beitrag zur schellingschen

Freiheitslehre», in Zeitschrift für Theologie und Kirsche, 1 (1957) 213-225.

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NOTA PRÉVIA’

Acerca do tratado que se segue, o autor tempOU- 333 co a dizer.

Pelo facto de se atribuir ao ser da natureza espiritual, em primeiro lugar, a razão, o pensar e o conhecer, a oposição entre natureza e espírito foi, desde logo, considerada de acordo com esta perspectiva. A simples crença numa razão simplesmente humana, a convicção da total subjectividade de todo o conhecer e de todo o pensar e da total ausência de razão e de pensamento na natureza, juntamente com o modo mecanicista de representar, dominante em toda a parte (na medida em que também a dinâmica, ressuscitada por Kant, se transformou, unicamente, numa mecânica de nivel superior, sem ser de forma alguma reconhecida a sua identidade com o espiritual), justificam o curso seguido pelo modo de considerar esta questão. Mas aquela raiz da oposição foi agora arrancada e a posse de um ponto de vista

1 Originalmente, esta nota constituia uma parte do prefácio ao 333 primeiro volume das Obras filosóficas de Schelling, Landshut, 1809, onde este tratado foi pela primeira vez publicado.

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mais rigoroso pode tranquilamente ser confiada ao progresso geral em direcção a um melhor conhecimento.

É tempo de se pôr em evidência a mais alta, ou melhor, a autêntica oposição, a oposição entre necessidade e liberdade, com a qual, somente, se pode tomar em consideração o ponto central mais íntimo da filosofia.

Uma vez que o autor, após a primeira exposição geral do seu sistema (Zeitschrift ffir Spekulative Physik), cujo progresso, infelizmente, foi interrompido por circunstâncias exteriores, se limitou, unica-334 mente, a investigações de filosofia natural, e uma

vez que o ponto de partida, no escrito Philosophie und Religion, permaneceu obscuro, certamente por culpa da própria exposição, o presente tratado é o primeiro no qual o autor apresenta, com uma determinação completa, o seu conceito da parte ideal da filosofia; por isso, na medida em que aquela primeira exposição pode ter tido alguma importância, deve o autor completá-la, desde logo, com este tratado, que, de acordo com a natureza do seu objecto, deve conter esclarecimentos mais profundos sobre a totalidade do sistema, do que todas as exposições mais parciais.

Embora o autor não se tenha até aqui explicado, em parte alguma, acerca dos pontos principais que se exprimem neste tratado, a liberdade da vontade, o Bem e o Mal, a personalidade, ete (com a única excepção do escrito Philosophie und Religion), isto não impediu que lhe atribuissem opiniões totalmente despropositadas acerca destes assuntos, segundo a fantasia de cada um, apesar do conteúdo daquele escrito - ao qual, segundo parece, quase se não prestou atenção. Assim, pretensos discípulos, sem qualquer autoridade, puderam aduzir uma grande quantidade de disparates a partir de supostos prin-

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cípios do autor, tanto sobre estes assuntos, como sobre outros.

Na verdade, um seguidor em sentido estrito deveria, segundo parece, poder estar na posse de um sistema fixo e fechado. 0 autor, até hoje, ainda não estabeleceu um tal sistema, mas indicou, somente, algumas partes dele (e mesmo isto, muitas vezes, numa perspectiva particular, por exemplo, polémica); por isso, declara que os seus escritos são elementos de um todo e que, para vislumbrar a conexão entre esses elementos, seria necessário um mais subtil dom de percepção do que o dos seguidores impertinentes e uma boa vontade superior à que se pode encontrar entre os adversários. A única exposição científica do seu sistema, porque ele não estava ainda completo, não foi sequer entendida por ninguém, de acordo com a sua tendência própria. Após a publicação deste fragmento começou, por um lado, a calúnia e a falsificação e, por outro, o comentário, a adaptação e a tradução, em que a utilização de uma linguagem pretensamente mais genial (porque, num tempo como aquele, um delirio poético imparável apoderou-se das mentes) foi do pior género. Agora, parece que um tempo mais saudável quer, 335 de novo, surgir. A fidelidade, a aplicação, a intimidade são, de novo, procuradas. Começa-se a conhecer, em geral, por aquilo que vale, a vacuidade daqueles que se pavoneiam com as fórmulas da nova filosofia, como heróis de dramas franceses, ou tomando atitudes de saltimbancos; ao mesmo tempo, os outros, os que anunciam o novo em todos os mercados, como tocadores de realejo, suscitam, finalmente, uma tão grande repugnância que, em breve, não conseguirão encontrar público; sobretudo se, a propósito de cada rapsódia insensata,onde se encontram algumas expressões de um qualquer conhecido escritor, se deixa de ouvir dizer ajuízes, de

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resto sem má intenção, que tais rapsódias foram feitas a partir de princípios do autor. Tomem, antes, cada um desses autores como um autor original, o que cada um deles quer ser e o que, no fundo, muitos deles sem dú vida são.

Possa então este tratado servir, por um lado, para destruir muitos preconceitos e, por outro, muito palavreado inútil e fútil.

Finalmente, quereriamos que aqueles que atacaram o autor destas páginas, aberta ou veladamente, pudessem expôr agora, também, o seu pensamento, tal como o fazemos aqui. Se o perfeito domínio do objecto torna possível a sua livre e fecunda elaboração, então as piruetas artísticas da polémica não poderão ser a forma da filosofia. Por isso, mais ainda desejamos que se estabeleça o espírito do esforço conjunto e que o espírito de seita, que tantas vezes dominou os alemães, não iniba a aquisição de um

conhecimento e de uma perspectiva cuja completa elaboração desde sempre parece estar destinada aos alemães e que deles talvez nunca como agora tenha estado tão perto.

Munique, 31 de Março de 1809

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Investigações filosóficas sobre a essência da 336 liberdade humana podem, em parte, dizer respeito ao conceito verdadeiro de liberdade, na medida em que o facto da liberdade (por muito imediatamente que o sentimento dela esteja entranhado em cada um de nós) de forma alguma é tão superficial que, também para o exprimir somente por palavras, não se exija mais do que a pureza e a profundidade habituais dos sentidos; de outra parte, podem também tais investigações dizer respeito à conexão entre este conceito e a totalidade de uma visão científica do mundo. Todavia, dado que nenhum conceito pode ser determinado isoladamente e dado que somente a demonstração da sua conexão com o todo lhe dá a derradeira perfeição científica (o que deve ser o caso, especialmente, do conceito de liberdade, o qual, se tem, em geral, realidade, não pode ser um conceito subordinado ou acessório, mas um dos pontos centrais e dominantes do sistema), assim, ambas as partes da investigação coincidem aqui, como em qualquer outro caso, numa só. De acordo com uma opinião antiga, mas de forma alguma desaparecida, o conceito de liberdade deve, de facto, ser incompatível com o de sistema e qualquer filosofia que reivindique a

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unidade e a totalidade deve ser a negação da liberdade. Contra afirmações universais deste género não é fácil combater; porque sabe-se que tipo de representações limitadoras se ligaram já à palavra sistema, de modo que a afirmação diz, de facto, qualquer coisa de muito verdadeiro, mas também de muito trivial. Se se quer dizer que o conceito de liberdade se opõe ao conceito de sistema, tornado em geral e em si mesmo, então é estranho que, dado337 que a liberdade individual se relaciona, de uma

forma qualquer, coni a totalidade do mundo (seja ela pensada de modo realista ou idealista), possa existir um qualquer sistema, pelo menos no entendimento divino, con, o qual a liberdade se possa conciliar. A afirmação geral segundo a qual este sistema nem sequer pode ser atingido pelo entendimento humano significa, uma vez mais, nada dizer; uma vez que esta afirmação pode ser verdadeira ou falsa, de acordo cori o modo como for entendida. Tudo depende da definição do principio com o qual o homem, em geral, conhece; e seria aplicável à aceitação da hipótese de um tal conhecimento o que Sexto Empírico diz a propósito de Empêdocles: o gramático e o ignorante podem pensar que resulta do orgulho e da pretensão de se elevar acima dos outros homens, sentimentos a que devem ser alheios aqueles que têm nem que seja um só pequeno treino de filosofia; mas quem parte da teoria física e sabe que há uma doutrina muito antiga, de acordo com a qual o semelhante é conhecido pelo semelhante (o que, segundo parece, tem a sua origem em Pitágoras, mas que se encontra em Platão, tendo já sido expressa antes dele por Empédocles) compreenderá que o filósofo afirma a existência de um tal conhecimento (divíno), porque só ele, mantendo puro o entendimento e não obscurecido pela maldade, concebe, com o

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Deus que tem em si, o Deus que se encOuntra fora de si.

Simplesmente aqueles que estão pouco iiriclinados para a ciência pensam habitualmente que este é um

conhecimento que, tal como a geometria vulgar, é totalmente abstracto e sem vida. Seria m--@tis rápido ou mais decisivo negar a existência do sltstema na vontade ou no entendimento do Ser ori@ginário e dizer que, em geral, há apenas vontades ]particulares, cada uma das quais constitui para Si P1@rópria um

ponto central, ou então que, segundo a exP@kressão de Fichte, o eu de cada um é a substâ ncia alzi@soluta. A razão, todavia, que tende para a unidade, t ‘ai como o sentimento que assenta na liberdade e na Ipersonalidade, apenas podem ser repelidos por um-a decisão, que se mantém por um momento para, fbtialmente, desaparecer. Mesmo assim, a doutrina fichteana de- 338 via testemunhar o seu reconhecimento &@t unidade (mesmo que na figura mesquinha de unia C)rdem moral do mundo), pelo qual imediatamente, se emara-

nhou em contradições e posições insustent;áveis. Por isso, parece que, também, independente@tnente do que se possa alegar de um ponto de vista Meramente histórico, ou seja, a partir dos sistemas Passados -

pois não encontramos em parte alguma cIlkie o fosse com argumentos tirados da essência da ra-zão ou do fundamento do próprio conhecimento - -@ conexão entre o conceito de liberdade e a totalida«lle da visão do mundo permanece uma tarefa necessária, sem

cuja solução vacilaria o próprio conceito cle liberdade e a filosofia ficaria completamente sem valor. Porque é unicamente esta grande taref-,@, que é o motor inconsciente e imperceptível de toclo o esforço do conhecimento, desde o menos llnPQrtante ao

‘ Sextus Empiricius, Adv. Grammaticos, L. I, c. 13, edição Fabrie, p. 283.

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mais elevado; sem a contradição entre necessidade e liberdade sucumbiria não somente a filosofia, mas também todo o mais alto querer do espírito, o que acontece nas ciências, em que esta contradição não tem lugar. Encontrar uma solução através da renúncia à razão parece mais uma fuga do que uma vitória. Com o mesmo direito, outro poderia voltar as costas à liberdade, para se lançar nos braços da razão e da necessidade, sem se encontrar, nem de um lado, nem do outro, uma razão para se cantar vitória.

A mesma opinião poderia ser expressa, de um

modo mais determinado, através da seguinte aproximação: o único sistema possível da razão é o panteísmo, mas este é, inevitavelmente, um fatalismo’. É incontestável que se trata de uma admirável descoberta ter encontrado tais nomes gerais, com os quais se podem designar, de uma só vez, a totalidade de um ponto de vista. Se alguma vez se tivesse encontrado o nome correcto para um sistema, tudo o resto viria por si mesmo e libertar-nos-iamos do trabalho de procurar com mais exactidão as suas peculiaridades. Mesmo os ignorantes podem emitir juízos acerca dos pensamentos mais profundos com a ajuda de339 tais nomes, desde que eles lhes sejam indicados. No

entanto, no que respeita a uma afirmação tão extraordinária, tudo depende de uma mais rigorosa determinação do conceito. Porque não se deve negar que,

se o panteísmo mais não significasse do que a imanência das coisas em Deus, qualquer perspectiva racional deveria, num certo sentido, ter em conta

338 1 São conhecidas as mais antigas afirmações deste tipo. Se a afir-

mação de Fr. Schlegel, na sua obra Uber dis Spache und Weisheit des Indies (Sobre a linguagem e a sabedoria dos indianos) p. 141, «o panteísmo é o sistema da razão pura», pode ter outro sentido, deixemo-lo em suspenso.

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esta teoria. Mas é, precisamente, o sentido que marca aqui toda a diferença. É inegável que o sentido fatalista deixa-se ligar a esta perspectiva; que não deve estar essencialmente ligado a ela é o que se deduz do facto de tanta gente se encontrar ligada a esta perspectiva através do mais vivo sentimento da liberdade. A maioria, se fossem sinceros, confessariam que, do modo como as suas representações estão constituídas, a liberdade individual parece-lhes estar em contradição com todas as propriedades de um Ser Supremo, como por exemplo, ele ser todo-poderoso. Com a liberdade é afirmado um poder incondionado, de acordo com o seu princípio, fora e ao lado do divino, o que, de acordo com os conceitos referidos, é impensável. Tal como o Sol ultrapassa toda a luz existente no firmamento, também o poder infinito ultrapassa o finito, muito mais ainda do que * Sol. A causalidade absoluta num único ser permite * todos os outros, somente, uma passividade incondicionada. A isto, soma-se a dependência de todos os seres mundanos em relação a Deus e o facto de a própria duração desses seres ser, somente, uma criação continuamente renovada, na qual o ser finito é produzido, não como um universal indeterminado, mas como este singular determinado, com tais e tais pensamentos, esforços e acções, e não outros. Dizer que Deus retém o seu poder para que o homem possa agir, ou dizer que ele consente a liberdade, não esclarece nada; se Deus retirasse o seu poder por um instante, o homem deixaria imediatamente de existir. Haverá outra salda para esta argumentação senão salvar o homem, com a sua própria liberdade, no interior da própria essência divina (dado que essa liberdade é impensável em oposição ao todo-poderoso), sustentando que o homem não está fora de Deus e que a sua própria actividade pertence à vida divina? Foi precisamente a partir deste ponto que místi-

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cos e religiosos de todo os tempos chegaram à crença na unidade do homem com Deus, que parece responder ao sentimento mais íntimo, tanto, ou mais340 ainda, quanto responder à razão e à especulação.

De facto, é precisamente na consciência da liberdade que as próprias Escrituras encontram a marca e a garantia de que nós vivemos e somos em Deus. Mas como pode, então, entrar necessariamente em conflito com a liberdade, a teoria que tantos defendem em relação ao homem, justamente para salvaguardar a liberdade?

Uma outra explicação do panteísmo que, habitualmente, se pensa ser mais pertinente, é, certamente, aquela que consiste numa total identíficação de Deus com as coisas, numa mistura da criatura com o criador, a partir da qual derivaram uma quantidade de outras posições, mais grosseiras e insustentáveis. Simplesmente, dificilmente se pode pensar numa distinção mais completa entre as coisas e Deus do que a que se encontra em Espinosa, que é considerado o representante clássico da teoria. Deus é aquilo que existe em si mesmo e que somente se pode pensar a partir de si mesmo; mas o finito é aquilo que, necessariamente, existe num outro e só a partir desse outro pode ser concebido. Certamente que as coisas, de acordo com esta distinção, não são distintas de Deus simplesmente segundo uma diferença de grau, ou em função das suas limitações, como poderia deduzir-se de uma análise superficial da doutrina dos modos, mas toto genere. Qualquer que possa ser, de resto, a relação das coisas com Deus, elas estão absolutamente separadas dele, na medida em que somente podem ser em e a partir de um outro (a saber, Deus), de modo que o seu conceito é apenas um conceito derivado que, sem o conceito de Deus, não seria sequer possível; porque, ao contrário destas, Deus é o único que é

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autónomo e originário, o único que se afirma por si mesmo e em relação ao qual tudo o resto só se pode comportar como tendo sido afirmado, como simples consequência diante do fundamento. Somente na base destes pressupostos têm valor todas as outras propriedades das coisas, como por exemplo, a sua eternidade. De acordo com a sua natureza, Deus é eterno; as coisas somente o são graças a ele

e em consequência da sua existência, quer dizer, de um modo derivado. Precisamente por causa desta distinção, todas as coisas isoladas, tomadas em conjunto, não podem, como habitualmente se pretende, constituir Deus, na medida em que aquilo que, de acordo com a sua natureza, é derivado, não se poderá transformar naquilo que, por natureza, é originário, seja qual for o seu modo de reunião, tal corno os pontos isolados de um círculo não podem constituí-lo se forem tomados em conjunto, dado que este, de 341 acordo com o seu conceito, precede-os necessariamente como um todo. Ainda mais banal é concluir que, segundo Espinosa, até mesmo uma coisa isolada deveria ser igual a Deus. Porque, mesmo que se encontrasse em Espinosa a expressão vigorosa de que cada coisa é um Deus modificado ‘os elementos do conceito são tão contraditórios que ele se desagregaria imediatamente após ter sido formado. Um Deus modificado, quer dizer, derivado, não é um Deus no sentido autêntico e eminente da palavra; em virtude deste único aditamento, a coisa regressa à posição que é a sua e pela qual se encontra eternamente separada de Deus. 0 fundamento de tais interpretações incorrectas, de que foram também vítimas, em larga medida, outros sistemas, reside na universal má compreensão do princípio de identidade ou do sentido da cópula no juízo. E ainda que se possa fazer compreender a uma criança que em nenhuma proposição possível que, em consequência

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da referida explicação, exprima a identidade do sujeito e do predicado, se exprime uma unidade ou, sequer, uma conexão não mediatizada entre ambos- na medida em que, por exemplo, a proposição «este corpo é azul», não significa que o corpo seja também azul naquilo em que e por meio de que ele é corpo, mas apenas que o mesmo que é este corpo também é, embora não do mesmo ponto de vista, azul - todavia, este pressuposto, que mostra uma completa ignorância acerca da essência da cópula, continua em vigor nos nossos dias, tratando-se do mais alto emprego do principio de identidade. Seja, por exemplo, esta proposição: «o perfeito e o imperfeito»; o seu sentido é o seguinte: o imperfeito não existe por causa daquilo pelo que ou naquilo em que é imperfeito, mas através do perfeito que nele existe. Mas, nos nossos dias, esta proposição tem o seguinte sentido: o perfeito e o imperfeito são um só, tudo é idêntico, o pior e o melhor, a loucura e a sabedoria. Ou então, a proposição: «o Bem é o Mal», que quer apenas dizer que o mal não tem o poder de existir por si mesmo e que o que há nele de existente é o bem (considerado em e por si mesmo), é interpretada de modo a que a eterna distinção entre o que está bem e o que está mal, entre o valor e o vício, é ignorada, como se ambos fossem logicamente o mesmo. Ou quando se diz, num342 outro contexto, que o necessário e o livre são um só

- o que significa: o mesmo que (em última instância) é a essência do mundo moral e também a essência da natureza -, esta afirmação é interpretada do seguinte modo: o livre não é senão força da natureza que, como todas as outras forças, está sujeita ao mecanismo. 0 mesmo acontece com a proposição segundo a qual a alma está unida ao corpo, que é interpretada do seguinte modo: a alma é matéria, ar, éter, composta por nervos, etc; e o inverso é deliberadamente posto de lado, a saber, a afirmação de que o corpo é

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alma ou, como na proposição anterior, o aparentemente necessário é em si mesmo livre - conclusão que deve ser também retirada. Com tais incompreensões que, mesmo quando não são intencionais, pressupõem um grau de menoridade dialéctica que a filosofia grega, nos seus primeiros passos, tinha já ultrapassado, torna-se um dever recomendar um estudo fundamentado de lógica. A antiga lógica, que tinha atingido um elevado grau de profundidade, distinguira já sujeito e predicado como antecedente e consequente (antecedens e consequens) e, com isso, exprimiu o sentido real do princípio de identidade. Mesmo na proposição tautológica (se ela não deve ser qualquer coisa desprovida de sentido) esta relação permanece. Quem afirma que um corpo é um corpo pensa, seguramente, com o sujeito da proposição, algo de diferente do que com o predicado; ou seja, através daquele pensa a unidade, com este, as propriedades individuais que o conceito de corpo contém, relacionando-se os dois entre si como o antecedens com o consequens. É precisamente este * sentido de uma outra explicação antiga, segundo * qual o sujeito e o predicado se opõem como o que está recolhido e o que está desdobrado (implicitum et explicitum)’.

‘ Também o Sr. Reinhold, que gostaria de reformar toda a filosofia 342 através da lógica, mas que parece não conhecer o que já Leilmiz (cuj os passos pensa seguir) tinha dito sobre o sentido da cópula, por ocasião das objecções de Wissowatius (Op., T. 1, ed. Dudens, p. 11), continua a insistir neste erro, segundo o qual a identidade é equivalente à igualdade. Numa publicação que temos diante de nós, encontra-se a seguinte passagem escrita por ele: «De acordo com a exigência de Platão e de Leibniz, a tarefa da filosofia consiste na demonstração da subordinação do finito em relação ao infinito; de acordo com a exigência de Xenófanes, Bruno, Espinosa e Schelling, na demonstração da unidade 343 incondicionada de ambos.» Na medida em que, aqui, unidade deve claramerite indicar, em consequência da oposição, o mesmo que igualdade, asseguro ao Sr. Reinhold que, pelo menos no que diz respeito aos dois últimos, está enganado. Em relação à subordinação do finito ao

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343 Simplesmente, dirão agora os defensores da supracitada afirmação, em relação ao panteísmo não se trata, em geral, de afirmar que Deus é tudo (o que, de acordo com a representação geral das suas propriedades, não é fácil de evitar), mas de afirmar que as coisas não são nada e que este sistema suprime toda a individualidade. Na verdade, esta nova definição parece estar em contradição com a anterior; porque, quando as coisas não são nada, como é que é344 possível misturar Deus com elas? Não há então, em

geral, senão uma divindade pura. Ou, se fora de Deus (não apenas extra, mas também praeter

infinito, onde se pode encontrar uma expressão mais vigorosa do que a referida posição de Espinosa? Os vivos devem defender de difamação aqueles que já não vivem, tal como esperamos que, em casos idênticos, os que viverem depois de nós estejam atentos ao que nós fizemos. Falo apenas de Espinosa e pergunto como se pode nomear este procedimento que consiste em dizer isto e aquilo acerca de um sistema sem o conhecer profundamente, em afirmar claramente aquilo que nos parece bem dizer, como se fosse, precisamente, uma coisa sem importância? Na sociedade ética corrente isso seria considerado uma falta de consistência. De acordo com uma outra passagem do mesmo periódico, toda a filosofia moderna, tal como a antiga, repousa, para o Sr. Reinhold, na indiferenciação (confusão, equívoco) da unidade (identidade) e da conexão (nexus), tal como na indiferenciação da distinção (diversidade) e da diferença. Não é o primeiro exemplo do facto de o Sr. Reinhold descobrir nos seus adversários o erro que lá colocou. Este parece ser o modo como utiliza para si mesmo a Medicina mentis de que tem necessidade; tal como acontece a pessoas com a imaginação muito excitável serem curadas por medicamentos que fizeram tomar aos outros. Então, quem, mais decididamente do que o próprio Sr. Reinhold, comete este erro de confundir aquilo que chama unidade (mas que é igualdade) com conexão, em relação à filosofia moderna e antiga, ele que interpreta como sendo igualdade o facto de, segundo Espinosa, as coisas serem concebidas em Deus e toma de modo geral a não-diferenciação (de acordo com a substância ou a essência) por uma não-distinção (de acordo com a forma ou o conceito lógico)? Se devessemos realmente compreender Espinosa tal como o Sr. Reinhold o interpreta, então, a conhecida proposição segundo a qual a coisa e o conceito da coisa são idênticos deveria ser compreendida como se pudessemos derrotar os inimigos com o conceito de um exército, em vez de ser com um exército verdadeiro, etc. Consequências de que uma pessoa séria e conscienciosa se sabe, certamente, desembaraçar.

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Deum) nada existe, como pode ele ser tudo senão de modo puramente verbal, de forma que a totalidade do conceito de panteísmo parece desfazer-se e dissipar-se no nada? Mesmo assim, pode perguntar-se se se ganhou alguma coisa com o ressuscistar de tal designação geral, que pode, na verdade, merecer o respeito da história das heresias, mas, nas produções do espírito (tal como acontece nos mais delicados fenômenos da natureza), onde insignificantes determinações ocasionam modificações essenciais, parece ser de manuseamento grosseiro. Pode-se duvidar se, mesmo em relação a Espinosa, se pode utilizar a definição dada em último lugar. Porque se fora (praeter) da substância ele nada reconhece senão as meras afecções dela, pelas quais explica as coisas, este conceito torna-se, então, um puro conceito negativo, que não exprime nada de essencial ou de positivo. Em primeiro lugar, ele serve também, simplesmente, para explicar as relações das coisas com Deus, mas não aquilo que elas podem ser se forem consideradas por si mesmas. Mas não se pode concluir, da insuficiência desta determinação, que as coisas não contêm em geral nada de positivo (mesmo que seja sempre de uma forma derivada). Certamente que a expressão mais grosseira de Espinosa é a de que o ser singular é a própria substância, considerada numa das suas modificações, quer dizer, consequências. Punhamos agora a substância infinita = A e a mesma substância, considerada numa das suas consequências A então, o positivo em A é, certamente, A; mas dai não resulta que, por isso, A = A, quer dizer, que a substância infinita, cona siderada nas suas consequências, seja idêntica à substância infinita considerada em si mesma; ou, por outras palavras, não se segue que A não seja urna substância particular (mesmo continuando a ser consequência de A.) Certamente que isto não

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se encontra em Espinosa; simplesmente, trata-se aqui, em primeiro lugar, do panteísmo em geral; em seguida, pergunta-se, simplesmente, se a perspectiva que foi dada é incompatível com o espinosismo. Dificilmente se afirmará tal coisa, porque se se admitir que as mónadas de Lelbniz correspondem a tudo o que se encontra na expressão supracitada345 A, elas não são nenhum meio decisivo contra o és-

pinosismo. Multas das afirmações de Espinosa permanecem enigmáticas na ausência de um complemento deste gênero, como, por exemplo, a afirmação de que a essência da alma humana é um conceito vivo de Deus, declarado como eterno e não como transitório. Também, por consequencia, se a substância permanecesse apenas transitoramente

nas suas consequências A A etc, deveria permanecer eternamente naquela consequência que consiste em afirmar a alma humana = a e que, por isso, enquanto A, está de um modo eterno e contínuo

a separada de si mesma enquanto A.

Se quisermos esclarecer agora mais pormenorizadamente a negação da liberdade (não da individualidade), como característica autêntica do panteísmo, deveriam, então, caber neste conceito uma grande variedade de sistemas que, todavia, são essencialmente diferentes dele. Porque, até à descoberta do idealismo, o autêntico conceito de liberdade faltou em todos os sistemas, tanto no leibniziano, como no espinosísta; e uma liberdade tal como muitos de nós (que se gabavam ainda de ter o sentimento vivo dela) a pensaram, que consistiria no mero dominio do princípio inteligente sobre o principio sensível e o desejo, uma tal liberdade pode também deduzir-se do sistema de Espinosa, não necessariamente, mas com muita facilidade e mesmo de uma forma muito determinada. Assim, parece que a afirmação ou a negação da liberdade em geral repousa em algo de completa-

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mente diferente da aceitação ou da não aceitação do panteísmo (da imanência das coisas em Deus). Por isso, quando parece certo, à primeira vista, que a liberdade, que não se pode manter em oposição a Deus, desaparece aqui sob a identidade, pode-se todavia dizer que esta aparência é a consequência de uma representação incompleta do princípio de identidade. Este princípio não exprime nenhuma unidade que, movendo-se no circulo da mesmidade (einerleffieit) não fosse progressiva e, por isso mesmo, fosse, ela própria, insensível e sem vida. A unidade deste principio é uma unidade mediatamente criadora. Já na relação do sujeito com o predicado 346 indicámos a relação do fundamento com a consequência e, por isso, o principio de razão (do fundamento) é tão originário como o princípio de identidade. 0 eterno deve, por isso, ser também fundamento, imediatamente e tal como é em si mesmo. Aquilo de que ele, através da sua essência, é fundamento, é algo de dependente e, de acordo com o conceito de imanência, também algo concebido nele. Mas a dependência não suprime a autonomia, nem suprime a própria liberdade. Ela não determina a essência e diz apenas que o dependente, seja ele aquilo que for, só pode ser consequência daquilo de que depende; não diz o que ele é, nem o que ele não é. Cada indivíduo orgânico, enquanto algo em devir só o é através de outro e, nesta medida, depende dele segundo o devir, mas de forma alguma segundo o seu ser. Não é um absurdo, diz Leibniz, que aquilo que Deus é pudesse ser igualmente engendrado, ou, ao invés, muito menos é uma contradição que aquele que é filho de um homem seja também um homem. Pelo contrário, se o dependente ou consequente não fosse autónomo, isto é que seria contraditório. Haveria uma dependência sem dependente, uma consequência sem consequente (conquentia absque

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consequente) e, por isso, não haveria uma consequência efectiva, quer dizer, todo o conceito de consequência se teria suprimido a si mesmo. 0 mesmo vale para o ser-concebido num outro. Uma estrutura isolada, como o olho, só é possível na totalidade de um organismo, mas não deixa, por isso mesmo, de ter uma vida para si própria, uma forma de liberdade que manifesta claramente pela doença de que é capaz. Se ele próprio nã o estivesse vivo noutra coisa, haveria uma compreensão sem coisa concebida, quer dizer, nada seria concebido. Um ponto de vista muito mais elevado é-nos dado pela consideração do próprio ser divino, cujo conceito seria contraditório

se uma consequência não fosse engendramento, quer dizer, se não fosse posição de qualquer coisa de autónomo. Deus não é um Deus dos mortos, mas de vivos. Isto não é para ser compreendido como se o ser mais perfeito de todos se comprazasse funcionando como a máquina mais perfeita possível. Seja qual for a forma como se pense o modo de criação de um ser a partir de Deus, nunca esse modo pode ser mecâni-347 co, um mero realizar ou efectuar, no qual o efeito

produzido não existe por si mesmo; nem, muito menos, uma emanação, na qual aquilo que emana permanece o mesmo que aquilo que o expeliu e, portanto, não possui nada de próprio ou de autónomo. A saída das coisas a partir de Deus é uma auto-manifestação de Deus. Mas Deus só se pode manifestar naquilo que lhe é idêntico, em seres livres que agem fora dele mesmo, para cujo ser não há nenhum outro fundamento senão Deus, mas que são tal como Deus é. Ele fala e eles existem. Se todos os seres mundanos fossem apenas, também, pensamentos da mente divina, deveriam ser, por isso mesmo, já vivos. Do mesmo modo, é certo que os pensamentos são produzidos pela alma, mas o pensamento é uma força independente, que continua a

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agir por si mesmo, mas tão arreigado na alma humana que domina a sua própria mãe e a submete. Simplesmente, a imaginação divina, que é a causa da especificação dos seres mundanos, não é como a humana, pois esta atribui às coisas uma efectividade meramente ideal. As representações da divindade só podem ser seres autónomos; porque o que é que vem limitar as nossas representações senão, precisamente, o facto de não sermos autónomos? Deus intui as coisas em si mesmas. Só o eterno, o que repousa em si mesmo - vontade e liberdade - existe em si mesmo. 0 conceito de uma absolutidade derivada, ou de uma divindade derivada, é tanto menos contraditório quanto constitui o conceito central da totalidade da filosofia. Uma tal divindade deve ser atribuída à natureza. Tanto menos se contradizem a imanência em Deus e a liberdade, quanto mais só propriamente o livre, na medida em que é livre, existe em Deus; e o não-livre, na medida em que é não-livre, existe necessariamente fora de Deus.

Por insuficiente que seja, em si mesma, para aquele que vê em profundidade, uma dedução tão geral, dela resulta, todavia, que a negação da liberdade formal não está necessariamente ligada ao panteísmo. Não esperamos que nos queiram opôr o espinosismo. É necessária uma certa coragem para afirmar que o sistema, tal como se estrutura na cabeça de um homem, é o sistema da razão KaT’ É@OX v, eternamente imutável. 0 que é que se entende, então, por espinosismo? Porventura toda a doutrina, tal como se apresenta nos escritos de Espinosa, portanto também, por exemplo, uma física mecanicista? 348 Senão, a partir de que princípio dividiremos e separaremos, aqui onde tudo deve ter a tão extraor-dinária aparência de uma consequencia unicQ? Permanecerá sempre, na história do desenvolvimento do espirito alemão, como um fenômeno aliciante,

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o facto de, em certa época, se poder ter feito a seguinte afirmação: o sistema que mistura Deus com as coisas, a criatura com o criador (pois é este o modo como foi entendido) e tudo submete a uma necessidade cega e privada do pensamento, constitui o único sistema possivel da razão, o único a poder ser desenvolvido a partir da razão pura. Para compreender isto, deveremos ter presente o espiríto dominante numa época já passada. Nessa altura, o

modo mecânico de pensar, que alcançou a sua máxima perversidade com o ateísmo francês, tínha-se apoderado praticamente de todas as cabeças; também na Alemanha se começou a tomar este modo de ver e de compreender pela autêntica e única filosofia. Porque, todavia, o orginário espirito alemão não podia aliar a si próprio as consequências deste modo de pensar, resultou daí, em primeiro lugar, a cisão, característica da literatura filosófica dos nossos tempos, entre a cabeça e o coração; detestavam-se as consequências sem se ser capaz de se libertar do próprio fundamento desse modo de pensar, ou

sem se poder erguer a um melhor. Queria-se exprimir as suas consequencias e corno o espírito alemão só podia conceber a filosofia mecanicísta pela sua expressão (supostamente) mais elevada, exprimiu-se do seguinte modo esta terrível verdade: toda a

filosofia, absolutamente toda, desde que seja puramente racional, é ou tornar-se-á espinosismo! Todos se encontravam prevenidos do perigo do abismo, ele estava claramente exposto diante de todo os olhares; o único ainda possível meio aparente foi agarrado; aquela palavra ousada podia provocar a crise e fazer recuar os alemães diante de uma filosofia perniciosa e reconduzi-los ao coração, ao sentimento interior e à fé. Hoje, que aquele modo de pensar passou há muito tempo e que a luz mais alta do idealismo nos ilumina, a referida afirmação não poderia ser com-

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preendida no mesmo grau, nem sequer prometer idênticas consequências’.

Eis aqui, então, de uma vez por todas, a nossa 348 opinião precisa acerca do espinosismo! Este sistema nã o é nenhum fatalismo pelo facto de deixar que as coisas sejam concebidas em Deus; porque, tal como indicámos já, o panteísmo não torna impossivel pelo menos a liberdade formal; portanto, Espinosa só pode ser fatalista por uma razão totalmente diferente e independente do panteismo. 0 erro do seu sistema não reside, de forma alguma, no facto de ele colocar as coisas em Deus, mas no facto de elas serem coisas; reside no conceito abstracto de seres mundanos (Weltwesen), já que a própria substância infinita é, para ele, também uma coisa. Por isso, os seus argumentos contra a liberdade são totalmente deterministas, mas de forma alguma panteístas. Espinosa trata também a vontade como se fosse uma coisa e prova então, muito naturalmente, que ela, em cada situação do agir, deve el--ir determinada por outra coisa, que, por seu lado, está determinada por uma terceira, e assim sucessivamente até ao infinito. Por isso a inanidade do seu sistema, a frieza da forma, a pobreza dos conceitos e das expressões, a rudeza exagerada das definições, que se coadunam perfeita-

‘ 0 conselho que o Sr. Selilegel, numa recensão do novo escrito de 348 Fichte, no Heidelbergischen Jahrbuch der Literatur (Ano I, fase. 6, p. 139), 349 dá a este último, de se fixar exclusivamente em Espinosa nos seus empreendimentos polémicos, porque somente nele se encontra, do ponto de vista da forma e das consequências, o sistema totalmente completo do panteísmo (o qual, segundo a expressão mencionada mais acima, seria simultaneamente o sistema da razão pura) tal conselho pode, na verdade, fornecer certas vantagens, mas cai numa situação estranha pelo facto de Fichte ser, sem dúvida, da opinião que o espinosismo (enquanto espinosismo) foi totalmente refutado pela doutrina da ciência, no que tem, também, toda a razão. Ou será, talvez, que o idealismo não é uma obra da razão e a honra presumivelmente bem triste de ser um sistema da razão cabe, efectivamente, apenas ao panteísmo e ao espinosismo?

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mente com o modo abstracto de afirmar; de onde resulta, em consequência, o seu ponto de vista me-

canicista da natureza. Ou será que se duvida que, através da representação dinâmica da natureza, as

perspectivas fundamentais do espinosismo devem ser essencialmente modificadas? Se a doutrina do ser-concebido de todas as coisas em Deus é o fundamento da totalidade do sistema, ela deve, pelo me-

nos, ser, primeiro, activada e liberta da abstracção, antes de se poder tornar num princípio do sistema da razão. Quanta generalidade nas expressões segundo as quais os seres finitos são modificações ou350 consequências de Deus; que abismo deve ser aqui

preenchido, quantas questões deverão ser respondidas! Poder-se-ía ver o espinosismo, na sua rigidez, como a estátua de Pígmalião, que deveria adquirir vida através de uni quente sopro amoroso; mas esta comparação é imperfeita, porque o compara apenas a uma obra projectada nos seus contornos mais exteriores, na qual, uma vez animada, se notariam so-

mente os muitos traços que faltam ou que estão incompletos. Mais propriamente, tal sistema deveria ser comparado às mais antigas imagens da divindade que, quanto menos traços individuais e vivos lhes são atribuídos, tanto mais cheias de mistério parecem. Numa palavra, o espinosismo é um sistema realista e unilateral, epíteto que é menos condenatório, na verdade, que o panteísmo, mas que, todavia, indica mais correctamente a sua peculíaridade e também não se aplica agora pela primeira vez em relação a ele. Seria aborrecido ter de repetir os

muitos esclarecimentos que, acerca deste ponto, se encontram nos primeiros escritos do autor. A interpenetração do realismo e do idealismo foi o pro-pósito expresso dos seus esforços. 0 conceito fundamental do espinosismo, espiritualizado pelo princípio do idealismo (e modificado num ponto es-

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sencial) adquiriu uma base viva num modo mais elevado de consideração da natureza e na unidade reconhecida do dinâmico com o mental e o espiritual, de que resultou a filosofia da natureza que, como mera física, podia, de facto, bastar-se a si mesma, mas que, em relaçã o à totalidade da filosofia, foi sempre considerada apenas como uma parte, a saber, a parte real, que somente através da ligação com a ideal, onde domina a liberdade, seria capaz de se elevar ao autêntico sistema da razão. Afirmou-se que naquela (na liberdade) se encontrava o último acto potenciador pelo qual a totalidade da natureza se transfigura em sensação, em inteligência e, finalmente, em vontade. Em última e na mais alta instância não há outro ser senão a vontade. A vontade é o ser originário e unicamente a ela convêm os predícados deste: ausência de fundamento, eternidade, independência em relação ao tempo, auto-afirmação, A totalidade da filosofia esforça-se apenas por encontrar esta suprema expressão.

A filosofia do nosso tempo elevou-se a este ponto graças ao idealismo e só através deste podemos en- 3si

cetar a investigação do nosso assunto, uma vez que o nosso propósito não poderia ser, de modo algum, tomar em consideração todas aquelas dificuldades que se levantam ( e que, aliás, já há muito se levantaram) contra o conceito de liberdade a partir de um sistema realista, unilateral ou dogmático. Simplesmente, o idealismo (seja qual for a superioridade que adquirimos, através dele, quanto a este assunto e tão certo é que a ele devemos o primeiro conceito completo de liberdade formal) não é em si mesmo o sistema completo e deixa-nos, por isso, perplexos logo que queremos uma maior precisão e determinação. Quanto ao primeiro aspecto, notamos que no idealismo transformado em sistema não é suficiente afirmar que somente a «actividade, a vida e a liber-

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dade são o verdadeiramente efectivo», com o que se pode contentar também o idealismo subjectivo, como o de Fichte, que se equivocou sobre si mesmo; exige-se que se mostre, pelo contrário, que todo o efectivo (a natureza, o mundo das coisas) tem por fundamento a actividade, a vida e a liberdade, ou que, na expressão de Fichte, não é somente a ipseidade que é tudo, mas que, pelo contrário, tudo é ipseidade. 0 pensamento de fazer, por sua vez, da liberdade o Uno e o Todo da filosofia, introduziu a liberdade no espírito humano em geral e não somente na relação consigo mesmo, e deu à ciência, em todas as suas partes, uma mudança mais poderosa do que todas as suas anteriores revoluções. 0 conceito idealista é a verdadeira iniciação à mais alta filosofia do nosso tempo e, em particular, ao seu mais alto realismo. Todavia, aqueles que criticam este realismo ou aqueles que o fazem seu, deveriam pensar que a liberdade é o seu mais íntimo pressuposto; a que luz totalmente diferente o considerariam e conceberiam! Só quem saboreou a liberdade pode sentir a ânsia de tornar tudo semelhante a ela e alargá-la à totalidade do universo. Quem não chega à filosofia por este caminho segue e faz, simplesmente, o que outros fizeram, insensível aos motivos por que eles o fazem. Mas permanecerá digno de admiração o facto de Kant (depois de, em primeiro lugar, ter distinguido a coisa-em-si e o fenômeno de manei-352 ra puramente negativa através da independência em

relação ao tempo; e depois de, nas discussões metafísicas da sua Crítica da razão pura, tratar efectivamente da independência em relação ao tempo e da liberdade como conceitos correlacionados) não ter tido a ideia de transferir também para as coisas este único conceito positivo possível do «em-si», pelo que se teria elevado imediatamente a um ponto mais alto de consideração, ultrapassando a negatividade que

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é a característica da sua filosofia teórica. Mas, por outro lado, se a liberdade é o conceito positivo do em-si em geral, a investigação sobre a essência da liberdade humana será, de novo, repelida para o universal, na medida em que o intelígivel (no qual, somente, poderá ser fundada) é também agora a

essência das coisas em si. Portanto, para mostrar a

diferença específica da liberdade humana, quer dizer, aquilo que, precisamente, a define, o mero idealismo não é suficiente. Por isso, seria um erro pensar que o panteísmo é suprimido e negado pelo idealismo, opinião que só poderia resultar de uma confusão do panteismo com um realismo unilateral. Porque saber se há coisas singulares concebidas no interior de uma substância absoluta, ou se há muitas vontades singulares no interior de uma vontade originária é, para o panteismo enquanto tal, totalmente indiferente. No primeiro caso ele é realista, no segundo é idealista, mas o conceito fundamental permanece o mesmo. A partir daqui, poderá já deduzir-se que as mais profundas dificuldades que se encontrain no conceito de liberdade não poderão ser assumidas ou, menos ainda, resolvidas pelo idealismo, tal como por qualquer outro sistema parcial. Por um lado, o idealismo fornece apenas o conceito mais universal de liberdade, por outro, o mero conceito formal. Mas o conceito real e

vivo é ela ser uma faculdade do Bem e do Mal.

Este é o ponto onde reside a inais profunda dificuldade no conjunto da doutrina da liberdade, que desde sempre foi sentida e que não diz respeito a este ou àquele sistema, mas, em maior ou menor grau, a todos’: acima de tudo, certamente, diz respeito ao a53

10 Sr. Fr. SchIegel tem o mérito de fazer notar estas dificuldades, em particular contra o panteísmo, no seu livro sobre os Indús e em muitos 353 outros textos; pelo que é simplesmente de lamentar que este sábio consciencioso não tenha achado por bem comunicar o seu próprio ponto de vista acerca da origem do Mal e da sua relação com o Bem.

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conceito de imanência. Porque, ou se admite um Mal efectivo e é então inevitável introduzir o Mal na substância infinita, ou na própria vontade originária, pelo que se destrói o conceito de um ser absolutamente perfeito; ou então, deve-se negar, de qualquer forma, a realidade do Mal, com o que, ao mesmo tempo, desaparece o conceito real de liberdade. Todavia, a dificuldade não é menor se se aceitar uma mais ténue conexão entre Deus e os seres mundanos; porque então, se se limitar a conexão ao simples concursus, ou àquela necessária colaboração (mitwirkung) de Deus com a acção da criatura (que deve ser aceite por causa da essencial dependência da criatura em relação a Deus, mesmo se, por outro lado, se lhe atribui a liberdade), então Deus aparece, inegavelmente, como co-autor do Mal, porque admiti-lo a um ser totalmente dependente não é muito melhor do que causá-lo em conjunto com ele; ou então deve, igualmente, de um ou de outro modo, negar-se a realidade do Mal. A tese segundo a qual tudo o que é positivo na criatura vem de Deus deve ser também afirmada neste sistema. Se se aceitar que há no Mal algo de positivo, então este positivo virá também de Deus. Contra esta posição poderá objectar-se que o positivo do Mal, na medida em que é positivo, é bom. Mas com isto o Mal não desaparece, continuando igualmente a não ser explicado. Porque se o existente (das Seiende) no Mal é bom, de onde vem aquilo em que este existente é, a Base, que é o que, propriamente, constitui o Mal? Totalmente diferente desta posição - se bem que, mesmo nos nossos dias, confundida com ela - é aquela segundo a qual no Mal em geral não há nada de positivo, ou, dito de outro modo, ele não existe (nem sequer com e em outra coisa positiva), mas que todas as acções são mais ou menos positivas e a diferença entre elas é a que existe entre um Plus e um Minus

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da perfeição; deste modo, não se estabelece nenhuma oposição e o Mal, portanto, desaparece totalmente. Esta seria a segunda hipótese possível em 354 relação à tese segundo a qual tudo o que é positivo provém de Deus. Então, a força que se mostra no Mal seria, de facto, comparativamente, menos perfeita do que a que se mostra no Bem, mas considerada em si mesma, ou fora de qualquer comparação, seria ela própria, todavia, uma perfeição que, como qualquer outra, deveria derivar-se de Deus. Aquilo a que nela chamamos o Mal é somente o grau mais baixo de perfeição que apenas por comparação pare-

ce ser uma falta, mas que não é, segundo a natureza. Não se pode negar que esta é a verdadeira opinião de Espinosa. Poder-se-ia querer escapar a este dilema através da seguinte resposta: o positivo, que vem de Deus, é a liberdade, que é em si mesma indiferente ao Bem e ao Mal. Simplesmente, se não se pensar esta indiferença de forma puramente negativa, mas como uma faculdade viva e positiva do Bem e do Mal, não se vê como é que poderia resultar de Deus (considerando como o Bem mais puro) uma faculdade do Mal. Resulta daqui, diga-se de passagem, se é que a igualdade é efectivamente o que deve ser, de acordo com o seu conceito (e ela é-o infalivelmente), que não é correcta a tentativa de deduzir a liberdade de Deus; porque se a liberdade é uma faculdade do Mal, deve ter uma raiz independente de Deus. Levados a esta ponto, poderiamos ser tentados a abraçar o dualismo. Simplesmente, este sistema, se é pensado como teoria de dois absolutos separados e independentes um do outro, é apenas um sistema de auto-dilaceração e de desespero da razão. Mas se o ser fundamentalmente mau for pensado, de uma forma qualquer, como dependente do Bem, então toda a dificuldade da proveniência do Mal a partir do Bem é, de facto, concentrada num ser, mas, dessa forma, é

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agravada em vez de ser diminuída. Mesmo se se aceitar que este segundo ser foi originariamente concebido como bom e decaiu, por culpa própria, do ser originário, continua a permanecer não esclarecido, em todos os sistemas existentes até agora, o

primeiro poder de realizar um acto oposto a Deus. Por isso, mesmo que, finalmente, se suprima não355 somente a identidade, mas qualquer tipo de cone-

xão dos seres mundanos com Deus, mesmo que se queira ver a totalidade da sua existência presente e, com isso, a do mundo, como um afastamento em relação a Deus, a dificuldade seria apenas ligeiramente deslocada, mas não seria suprimida. Porque, para poderem sair de Deus seria preciso que as coisas ia existissem de uma certa maneira e, por isso, a

teoria da emanação pode tanto menos opor-se ao panteísmo quanto pressupõe uma existência originária das coisas em Deus e assim pressupõe claramente esse mesmo panteismo. Mas, para esclarecer aquele afastamento, poder-se-ia aceitar a hipótese seguinte: ou essa saída é involuntária da parte das coisas, mas

não da parte de Deus, e elas são, então, repelidas por Deus para o estado de infelicidade e de maldade e Deus, portanto, é o causador desse estado; ou ela é

involuntária de ambos os lados, causada, de facto’ pela superabundância do ser, como alguns o afirmam, tratando-se de uma representação totalmente inaceitável; ou ela é voluntária da parte das coisas, é um arrancar-se a Deus, a consequência de um pecado, portanto, a que se segue uma queda cada vez mais profunda; então, este primeiro pecado é, ele próprio, já o Mal e assim não se fornece nenhum esclarecimento sobre a sua origem. Mas sem este expediente que, se esclarece a presença do Mal no mundo, pelo contrário apaga totalmente o Bem e, em vez de conduzir ao penteísmo, conduz ao pandemonismo, desaparece por completo, no sistema da

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emanação, aquela autêntica oposição entre o Bem e Mal; o primeiro desaparece no meio de infinitos estádios intermédios, através de sucessivos abrandamentos, naquilo que já não tem nenhuma aparencia de Bem, aproximadamente como Plotinol descreve, subtilmente, mas de forma insuficiente, a passagem do Bem originário para a matéria e para o Mal: através de uma continua subordinação e afastamento surge um último estádio para além do qual nada mais pode acontecer e é precisamente este (o que é incapaz de produção ulterior) que é o Mal. Ou então, se há qualquer coisa depois do primeiro, deve também haver no último, que já não tem em si mesmo mais nada do primeiro: é isto a matéria e a necessidade do Mal.

Em consequência destas considerações não pare- 356 ce ser razoável atribuir todo o peso destas dificuldades unicamente a um sistema, em particular quando aquele pretensamente mais elevado, que lhe é oposto, é tão insuficiente. As generalidade do idealismo também não podem oferecer aqui qualquer tipo de ajuda. Com tais conceitos abstractos de Deus, como

o de actus purissimus, tal como a antiga filosofia estabelecera, ou como aqueles que a nova filosofia continuamente produz a partir da preocupação de afastar Deus, correctamente, de toda a natureza, não se consegue, de um modo geral, chegar a nada. Deus é qualquer coisa de muito mais real do que uma mera ordem moral do mundo e tem em si mesmo forças de transformação totalmente diferentes e muito mais vivas do que aquelas que lhe são atribuidas pelas subtilezas mesquinhas dos idealistas abstractos. 0 horror diante de todo o real, que procura manter puro o espiritual impedindo qualquer con-

1 Ennéadas, 1, VRI, e. 8.

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tacto com ele, deve naturalmente tornar-nos cegos para a visão da origem do Mal. 0 idealismo, quando não conserva na base um realismo vivo, torna-se um sistema vazio a abstracto, tal como o leibniziano, o espinosista, ou qualquer outro sistema dogmático. Toda a filosofia europeia moderna, desde o se ‘u início (com Descartes), tem esta falta generalizada que consiste no facto de que, para ela, a natureza não está presente e escapa-lhe um fundamento vivo. 0 realismo de Espinosa é tão abstracto como o idealismo de Lelbniz. 0 idealismo é a alma da filosofia; o realismo é o corpo; só os dois reunidos constituem uma totalidade viva. Este último não pode produzir o princípio, mas deve ser o fundamento e o meio no qual aquele se efectiva, toma carne e sangue. Falta uma filosofia daquele fundamento vivo (o que é habitualmente uma indicação de que, também nela, o princípio ideal era apenas debilmente efectivo) e ela perde-se naqueles sistemas cujos conceitos abstractos de aseidade, modificação, etc., se encontram na mais manifesta contradição com a força da vida e a plenitude da efectividade. Mas onde o princípio ideal age efectivamente no mais alto grau, sem poder encontrar a base conciliante e mediadora, produz-se um entusiasmo turvo e selvagem, que irrompe sob a forma de auto-dilaceração, ou em auto-emas-357 culação (como nos sacerdotes da deusa frígia), entu-

siasmo esse que, em filosofia, se consuma em abandono da razão e da ciência.

Parece-nos necessário começar este tratado com a retificação de conceitos essenciais que, desde há muito, mas, em particular, nos tempos mais recentes, foram confundidos. As observações feitas até agora devem, por isso, ser consideradas como mera introdução à nossa verdadeira investigação. Já esclarecemos que somente a partir dos princípios de uma verdadeira filosofia da natureza se pode

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desenvolver uma perspectiva que possa satisfazer completamente a tarefa que é aqui empreendida. Não negamos, com isto, o facto de esta perspectiva correcta se encontrar, já há muito tempo, em

espíritos isolados. Mas, precisamente, estes foram também aqueles que, procuraram o fundamento vivo da natureza, sem recear aquelas invectivas (corno materialismo, panteísmo, etc.) que foram empregues, desde há muito tempo, contra toda a filosofia real e que, ao contrário dos dogmáticos e dos idealistas abstractos, que os rejeitavam como místicos, foram filósofos da natureza (em ambos os sentidos).

A filosofia da natureza do nosso tempo expôs, pela primeira vez na ciência, a diferença entre 0

ser, na medida em que existe, e esse mesmo ser, na medida em que é fundamento da existência. Esta diferenç a é tão antiga como a sua primeira exposição científica 1. Embora seja este o ponto no qual ela se afasta, de forma mais determinada, do caminho seguido por Espinosa, pôde-se, todavia, defender na Alemanha, até esta altura, que os seus princípios metafisicos eram idênticos aos de Espinosa; e apesar de aquela distinção ser a que nos fornece, ao mesrrIO tempo, a mais clara distinção entre a natureza e Deus, isso não impediu que fosse acusada de misturar Deus com a natureza. Dado que é nesta distinção que ela primeiramente se fundamenta, deve dizer-se ainda mais qualquer coisa para o seu esclarecimento.

Porque nada existe diante ou fora de Deus, ele deve ter em si mesmo o fundamento da sua própria existência. E o que dizem todas as filosofias; mas

1 Ver, sobre este assunto, Zeitsch. für specul. Physik, Bd. II, fasc. 2, § 54, nota (IV, p. 146); e, mais adiante, nota 1 ao § 93 e os esclarecimentos p. 114 (p. 203)

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falam deste fundamento como de um puro conceito, sem o tornar qualquer coisa de real ou de efectivo. Este fundamento da sua existência, que Deus tem em si mesmo, não é Deus considerado absolutamente, quer dizer, na medida em que existe; porque se trata somente do fundamento da sua existência, esse fundamento é a natureza em Deus; um ser que dele é inseparável, mas que é, todavia, diferente. Esta relação pode ser esclarecida analogicamente, pela relação que existe na natureza entre a gravidade e a luz. A gravidade precede a luz como seu fundamento eterno e obscuro, que não é, ele próprio, actu, e que se perde na noite à medida que a luz (aquilo que existe) se propaga. A própria luz não se desembaraça completamente daquilo que a encerra’. Precisamente por isso, a gravidade não é nem a pura essência nem o ser actual da identidade absoluta, mas apenas uma consequência da sua natureza 2; ou então é-o, mas considerada numa potência determinada; isto porque, por outro lado, o que, em relação à gravidade, aparece como existente, pertence em si mesmo ao fundamento, de modo que a natureza em geral é, portanto, tudo aquilo que se encontra

3 para além do ser absoluto da identidade absoluta . No que, acima de tudo, diz respeito à procedência, não se deve pensar nela nem como procedência segundo o tempo, nem como prioridade da essência. No círculo a partir do qual tudo devém, não há nenhuma contradição em que aquilo pelo que uma coisa é produzida seja, ele próprio, engendrado por ela. Aqui, não há, nem um primeiro, nem um último, porque tudo se pressupõe reciprocamente, um não é idêntico ao outro e, todavia, nenhum pode ser

358 1 Ibidem, pp. 59, 60 (p. 163).

2Ibidem p. 41 (p. 146). ‘3 Ibidem, p. 114 (p. 203).

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sem o outro. Deus tem, em si mesmo, o fundamento interno da sua existência, que o precede na medida em que existe; mas, da mesma forma, Deus é, de novo, o Prius do fundamento, na medida em que este, enquanto tal, não poderia ser se Deus não existisse actu.

A perspectiva que parte das coisas conduz à mesma distinção. Para começar, deve ser completamente posto de lado o conceito de imanência, na medida em que, através dele, se exprime um ser-concebidO 359 morto das coisas em Deus. Reconhecemos, antes, que o conceito de devir é o único apropriado à natureza das coisas. Mas elas não podem devir em

Deus considerado de modo absoluto, na medida em que são toto genere ou, dito mais exactamente, infinitamente diferentes dele. Para existirem separadas de Deus devem estar em devir num fundamento diferente dele. Mas porque, no entanto, nada pode existir fora de Deus, esta contradição só pode ser

resolvida se as coisas tiverem o seu fundamento naquilo que, em Deus, não é Ele Mesmo’, quer dizer, naquilo que é o fundamento da sua existência. Se quisermos aproximar do homem esta essência, podemos dizer que ela é a nostalgia que sente o Uno eterno de se produzir a si mesmo. Ela não é o Uno eterno, mas é eternamente idêntica a ele. Quer produzir Deus, quer dizer, a unidade infundável, mas, nessa medida, não é ainda em si mesma a unidade. Por isso, considerada por si mesma, é também von-

‘ Este é o único dualismo legítimo, a saber, aquele que, ao mesmo 359 tempo, admite uma unidade. Em cima, falou-se de dualismo modificado, de acordo com o qual o princípio do Mal não é equivalente (beigeordnet), mas está subordinado a ele. Não se deve recear que alguém equipare a relação aqui exposta àquele dualismo, no qual o que está subordinado é sempre um princípio essencialmente mau e, precisamente por isso, permanece absolutamente incompreendido na sua proveniência divina.

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tade; mas uma vontade na qual não há nenhum entendimento, e que, por isso, não é uma vontade autónoma e perfeita, na medida em que o entendimento é, autenticamente, a vontade na vontade. Todavia, é uma vontade de entendimento, a saber, nostalgia e desejo de entendimento; uma vontade não consciente, mas que pressente e cujo pressentimento é o entendimento. Falamos da essência da nostalgia considerada em si mesma; é ela que deve ser perfeitamente concebida, embora tenha sido expulsa, há muito tempo, por uma instância superior que se eleva acima dela e não a possamos conceber de modo sensível, mas apenas com o espirito e o pensamento. Após o facto eterno da auto-manifestação, o mundo encontra-se tal como agora o vemos: tudo é regra, ordem e forma; mas permanece sempre no fundo aquilo que não tem regra, como se pudesse uma vez mais irromper; e em parte alguma se vê que a ordem e a forma fossem o originário, mas, pelo contrário, que um originário sem regra é que foi trazido à ordem. Este originário é, nas coisas, a base incom-360 preensível da realidade, o resto que nunca se conso-

me, o que não pode ser reconduzido ao entendimento nem com o maior dos esforços, mas permanece eternamente no fundo. 0 entendimento, em sentido próprio, nasceu daquilo que está privado de entendimento. Sem esta obscuridade prévia não há qualquer realidade da criatura; as trevas são a parte que necessariamente lhe cabe. Só Deus - o próprio existente - habita na pura luz, porque somente Ele existe por si mesmo. A presunção própria do homem opoe-se a esta origem a partir do fundo e procura até opor-se-lhe por razões de ordem moral. Todavia, não conhecemos nada que melhor pudesse impelir o ho-

mem a dirigir-se para a luz, com toda as suas forças, do que a consciência da noite profunda a partir da qual se eleva à existência. Os lamentos piegas que se

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fazem ouvir porque, deste modo, aquilo que não tem entendimento é transformado em raiz do entendimento e a noite é transformada em começo da luz, residem em parte, na verdade, numa incompreensão do que está em causa (na medida em que não se compreende de que modo, com esta perspectiva, a prioridade do entendimento e da essência pode, todavia, ser conceptualmente mantida); mas tais lamentos exprimem o verdadeiro sistema dos filósofos contemporâneos que querem fazer, de bom grado, fumum ex fulgore, facto para o qual não é suficiente a mais violenta precipitação ficheteana. Todo o nascimento é nascimento da escuridã o para a luz; o grão deve desaparecer na terra e morrer na escuridão para que uma mais bela figura luminosa se erga e se manifeste à luz do Sol. 0 homem é formado no útero materno; e é somente da escuridão daquilo que não tem entendimento (do sentimento, da nostalgia, essa matriz soberana do conhecimento) que desperta o pensamento luminoso. Por isso, é assim que nos devemos representar a nostalgia originária, tal como, de facto, ela se dirige para o entendimento que ainda não conhece (da mesma forma que nós, na saudade, ansiamos por um bem desconhecido e sem nome) e se agita num pressentimento, tal como um mar poderoso e ondulante, semelhante à matéria de Platão, que procura uma lei obscura e inconsciente, incapaz de construir por si própria qualquer coisa de duradouro. Mas, correspondendo à nostalgia que, como fundo ainda obscuro, é a primeira emoção da existência divina, produz-se no próprio Deus uma representação interna reflexiva, pela qual (dado que ela não pode ter outro objecto que não Deus) Deus se percebe a si mesmo numa 361 imagem. Esta representação é a primeira em que Deus, considerado de modo absoluto, se realiza efectivamente, independentemente do facto de o fazer

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apenas em si mesmo; ela está em Deus desde o início e é o próprio Deus engendrado em Deus. Esta representação é, ao mesmo tempo, entendimento: o Verbo pronunciado por aquela nostalgia’. E o espírito eterno que sente em si mesmo o Verbo e, simultaneamente, a nostalgia infinita, movido pelo amor que ele próprio é, profere o Verbo, de modo que agora o entendimento, em conjunto com a nostalgia, se torna uma vontade livremente criadora e poderosa e dá forma, na natureza originária e sem regra (como se

ela fosse o seu elemento), aos instrumentos da sua revelação. 0 primeiro efeito do entendimento na natureza é a diferenciação das forças, na medida em que somente dessa forma consegue desenvolver a unidade que nela está inconscientemente contida, como numa semente, mas, no entanto, de modo ne-

cessário; tal como, no homem, a luz somente penetra na obscura nostalgia de criar qualquer coisa se, na

caótica multiplicidade dos pensamentos, que se encadeiam uns nos outros, mas em que cada um impede que o outro se evidencie, os pensamentos se diferenciam e a unidade que se encontra escondida no fundo se ergue e os domina agora a todos; ou, tal como acontece nas plantas, é apenas em relação com o desdobramento e a propagação das forças que se

dissolve a ligação obscura da gravidade e se desenvolve a unidade escondida na matéria dilacerada. Porque, de facto, este ser (a natureza originária) mais não é do que o fundo eterno da existência divina, deve conter em si mesmo, ainda que oculta, a

essência divina, como uma luz viva iluminando a

escuridão das profundezas. Mas a nostalgia, despertada pelo entendimento, esforça-se agora por reter a

luz viva que está contida em si mesma e por se

361 1 No sentido em que se diz: a palavra do enigma.

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fechar em si mesma para que, dessa forma, um fundo permaneça sempre. Portanto, enquanto o entendimento, ou a luz posta na natureza originária, excita a nostalgia que ambiciona regressar a si mesma, forçando-a a produzir uma separação das forças (a abandonar a obscuridade) e enquanto precisamente nesta separação se manifesta a unidade secreta do que está cindido - o raio de luz escondido -, nesta medida, portanto, nasce, pela primeira vez, qualquer coisa de concebível e de singular; e isto, na verdade, não através de uma representação exterior, mas através de uma verdadeira in-formação, na medida 362

em que aquilo que nasce é informado na natureza, ou, com mais exactidão, através de um despertar, na

medida em que o entendimento salienta a unidade ou ideia oculta no fundo cindido. As forças que são separadas nesta cisão (mas que não são totalmente postas em confronto) são a matéria a partir da qual, de seguida, o corpo será configurado; mas o laço vivo nesta cisão, resultante da profundidade do fundo natural, como ponto central das forças, é a Alma. Porque o entendimento originário produz a Alma (como algo de interior) a partir de um fundo independente dele, ela permanece, por esse motivo, independente dele, como um ser particular que existe por si mesmo.

É fácil de perceber que, com a resistência da nos-

talgia, necessária para a perfeição do nasciwento, o

elemento mais íntimo das forças só se pode dissolver num desdobramento gradual e que, em cada grau da diferenciação das forças, surge da natureza um novo

ser, cuja Alma pode ser tanto mais perfeita quanto mais esse ser contém diferenciado aquilo que noutros ainda o não está. Mostrar como cada processo sucessivo se aproxima da essência da natureza, até ao ponto em que, na mais extrema diferenciação das forças, se abre o centro mais íntimo de toclos, é a

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tarefa de uma filosofia completa da natureza. Para o nosso propósito presente, somente o que se segue é essencial: cada ser nascido na natureza do modo que foi indicado tem em si um duplo princípio, princípio esse que, todavia, é, no fundo, um só, considerado de dois pontos de vista possíveis. 0 primeiro, é aquele pelo qual esses seres são separados de Deus, ou pelo qual se encontram simplesmente no fundo; mas, na medida em que entre aquilo que se encontra pré-formado no fundo e aquilo que se encontra pró-formado no entendimento há, todavia, uma unidade originária, e uma vez que o processo da criação diz somente respeito à transmutação interna ou transfiguração de um obscuro principio originário em luz (porque o entendimento, ou a luz posta na natureza, procura no fundo, de facto, a luz que se lhe assemelha e que está voltada para ele), por tudo isso, o princípio que, segundo a sua natureza, é obscuro é precisamente aquele que se transforma em luz e ambos são, embora apenas em graus diferenciados, um só, em cada ser natural. 0 principio, na medida em363 que deriva do fundo e é obscuro, é a vontade própria

da criatura; mas, na medida em que ainda não se elevou à unidade perfeita com a luz (como princípio do entendimento), ou seja, na medida em que ainda não a concebe, é mera procura ou desejo, quer dizer, vontade cega. Esta vontade própria da criatura opõe-se ao entendimento, como vontade universal, que a utiliza e a subordina a si, como um simples instrumento. Mas quando, finalmente, através de uma transformação e diferenciação progressiva de todas as forças, o ponto mais íntimo e profundo da obscuridade originária é totalmente transformado em luz num ser, a vontade desse mesmo ser continua, da mesma forma, vontade particular (na medida em que esse ser é um ser individual), mas em si, ou como centro de todas as outras vontades particu-

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lares, está unida à vontade originária ou ao entendimento, de modo que agora formam ambas um todo único. Esta transformação em luz do centro mais profundo não acontece em nenhuma das criaturas que conhecemos, senão no homam. Encontra-se no homem todo o poder do princípio mais obscuro e também, ao mesmo tempo, toda a força da luz. Nele, encontra-se o abismo mais profundo e o céu mais elevado, ou seja, ambos os centros. A vontade do homem é o gérmen escondido na nostalgia eterna do Deus que ainda está somente presente no fundo; o raio de vida divina fechado nas profundezas, que Deus contemplou quando concebeu a vontade que quer a natureza. Foi no homem, somente, que Deus amou o mundo; e, precisamente, foi esta imagem de Deus que a nostalgia capturou no centro, quando se opunha à luz. Pelo facto de o homem ter tido a sua origem no fundo (por ser criatura), tem em si mesmo um princípio relativamente independente de Deus; mas precisamente pelo 4<icto de este princípio se transformar em luz - sem que, por isso, tenha no fundo deixado de ser obscuro - abre-se nele, ao mesmo tempo, algo de mais elevado, o espírito. Porque o espírito eterno profere, na natureza, a unidade ou o Verbo. 0 Verbo proferido (real) existe apenas na

unidade da luz e da obscuridade (da vogal e da consoante). Agora, ambos os princípios estã o, na verdade, em todas as coisas, mas sem uma consonância perfeita, devido à imperfeição do que surgiu do fundo. Somente no homem, portanto, se exprime com-

pletamente aquilo que em todas as outras coisas é apenas Verbo retido e imperfeito. Mas o espírito, quer dizer, Deus como existente actu, manifesta-se no Verbo proferido. Na medida em que a Alma é a identidade viva de ambos os princípios, é espírito; e o espírito existe em Deus. Se no espírito do homem a identidade de ambos os princípios fosse tão indisso-

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lúvel como é em Deus, não existiria qualquer diferença, quer dizer, Deus não se manifestaria com espírito. Aquela unidade, que é inseparável em Deus, deve poder separar-se no homem - e é esta a possibilidade do Bem e do Mal.

Dizemos expressamente: a possibilidade do mal; e procuramos, antes de mais nada, tornar igualmente concebível a separabilidade dos princípios. A efectividade do Mal é objecto de uma investigação completamente diferente. 0 princípio que se ergue do fundo da natureza e pelo qual o homem se separa de Deus é a ipseidade que nele existe, mas que se torna espírito pela sua unidade com o princípio ideal. A ipseidade enquanto tal é espírito ou, dito de outra forma, o homem é espírito como um ser centrado em si mesmo (SelbstUches), particular (distinto de Deus), cuja unificação constitui, precisamente, a personalidade. Pelo facto de a ipseidade ser espírito, eleva-se, simultaneamente,. do que é criatura para o que ultrapassa a criatura, é vontade que se vê a si mesma na liberdade total, não mais como instrumento da vontade universal operante na natureza, mas existindo acima e fora de toda a natureza. 0 espírito está acima da luz, tal como se eleva, na natureza, acima da unidade da luz com o princípio obscuro. Porque é espírito, a ipseidade é livre em relação a ambos os princípios. Mas agora esta ipseidade, ou vontade própria, somente é espírito e, por conseguinte, livre, ou acima da natureza, porque se transformou em vontade originária (na luz), de modo que, na verdade (como vontade particular), ainda permanece no fundo (porque deve sempre haver um fundo) - tal como nos corpos transparentes a matéria, elevada à identidade com a luz, não deixa, por esse facto, de ser matéria (princípio obscuro) -, mas é meramente suporte e, ao mesmo tempo, recipiente do princípio superior da

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luz. Mas, na medida em que possui espírito (porque este domina a luz e a obscuridade) - pelo menos quando não é o espírito do amor eterno - a ipseida- 365

de pode separar-se da luz, ou a vontade própria pode aspirar a ser, como vontade particular, aquilo que é somente na identidade com a vontade universal; ou também a ser, na periferia ou como criatura (porque a vontade da criatura está seguramente fora do fundo; mas entã o é também uma mera vontade particular, não livre, mas ligada), aquilo que é somente. na medida em que permanece no centro (tal como a vontade em repouso no fundo tranquilo da natureza é vontade universal porque permanece no fundo). Por isso, nasce na vontade do homem, entre a ipseidade tornada espiritual (porque o espírito encontra-se por cima da luz) e a luz, uma separação daqueles princípios que em Deus são inseparáveis. Quando, pelo contrário, a vontade própria do homem permanece no fundo como vontade central, de modo que subsiste a relação divina entre os princípios - tal como a vontade que se encontra no centro da natureza nunca se eleva acima da luz, mas permanece sob ela, no fundo, como base - e quando domina nela, em vez do espírito de discórdia, que quer separar o princípio particular do espírito universal, o espírito do amor, neste caso, a vontade existe ordenada de modo divino. 0 facto de o mal ser, justamente, aquele destacar da vontade particular, deduz-se do que se segue: a vontade, que sai da sua supra-naturalidade para se tornar, ao mesmo tempo, particular e criada, aspira a inverter a relação entre os princípios, a elevar o fundo acima da causa, a utili-

zar o espírito (que ela recebeu apenas a favor do centro) fora de si mesmo e contra a criatura, de onde resulta uma desorganização em si mesma e fora de si mesma. A vontade do homem deve ser vista como um elemento de unificação das forças

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vivas; lia medida em que ele próprio permanece agora na sua unidade com a vontade universal, aquelas forças permanecem também em medida e equilíbrio divino. Mas, mal a própria vontade particular se retirou do centro, que é o seu lugar, retirou-se também o elemento unificador das forças; em seu lugar domina uma mera vontade particular, que não é inais capaz de subordinar as forças (como a vontade originária) e que deve, por isso, aspirar a formar ou a compor uma vida própria e particular a partir das forças separadas umas das outras, a partir do oceano revolto dos desejos e dos apetites (na medida em366 que cada força particular é também procura e ape-

tite), o que só é possível na medida em que subsiste, no próprio Mal, o primeiro elemento unificador das forças, ou seja, o fundo da natureza. Todavia, porque não pode haver ai uma vida verdadeira, que só Poderia subsistir na relação originária, surge, de facto, uma vida própria, embora falsa, uma vida de inen tira, um despertar da intranquilidade e da perversão. A este respeito, a semelhança mais adequada é-nos Oferecida pela doença, que é a verdadeira contra-imagem do Mal ou do pecado, sob a forma de uma desordem introduzida na natureza através do niali uso da liberdade. Nunca há doença universal sem que tenha despertado o poder escondido do fundo; ele surge quando o principio irritável, que domina na tranquilidade das profundezas como elemento niais íntimo das forças, se põe a si mesmo em moviniento, ou quando Arqueu excitado abandona a sua tranquila morada no centro e penetra na circunferência. Tal como, pelo contrário, toda a salvação originária reside no estabelecimento da relação da Periferia com o centro, assim a passagem da doença à saúde apenas pode acontecer por um movimento Oposto, a saber, pelo regresso da vida separada e singulair ao íntimo raio de luz da essencia, a seguir

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ao qual a separação (a crise) se volta a produzir. Também a doença particular só surge porque aquilo que recebeu a liberdade ou a vida para poder permanecer no centro, luta para existir por si mesmo. Pelo facto de a doença nada ser de essencial e ser, propriamente, uma mera aparência de vida e um simples fenômeno meteórico - uma hesitação entre ser e não-ser -, nem por isso deixa de se manifestar um sentimento muito real dela; o mesmo acontece com o Mal.

Este único conceito correcto do Mal, de acordo

com o qual ele consiste numa perversão positiva e numa inversão dos princípios, foi de novo salientado nos nossos dias, principalmente por Franz Baader e explicado através de profundas analogias físicas, nomeadamente com a doença’. Todos os outros 367

1 No tratado Über die Behauptung, dass Kein übler Gebrauch der 366 Vernunft sein kann (Morgenblatt, 1807, nQ 197) e «Über Starres und Fliessendes», in Jahrbücher der Medicin als Wissenschaft (Bd. 111, Fase. 29). Para comparação e esclarecimento complementar apresento 367 aqui a nota relativa a este assunto, no final deste tratado, p. 203: «Um ensinamento instrutivo é-nos dado aqui pelo fogo vulgar (como ardor selvagem, consumptivo e desagradável), em contraste com o chamado ardor orgânico e agradável da vida, na medida em que o fogo e a água se reú nem num único (crescente) fundamento, ou entram em conjunção, enquanto ld se opõem numa discórdia. Ora, nem o fogo nem a água enquanto tais existiam como esferas separadas num processo orgânico, mas aquele existia como centro (mistério), esta como o aberto ou a periferia dele e, precisamente, a dissolução, a elevação e a inflamação do primeiro, ao mesmo tempo que o desaparecimento da segunda, resultaram em doença e morte. Assim, a ipseidade e a individualidade são, certamente, a base, o fundamento, ou o centro natural de cada vida de criatura; mas desde que o centro deixa de ser o centro em serviço e avança dominadoramente para a periferia conso-

me-se no suplício de Tântalo da procura de si mesmo e do egoísmo (da ipseidade inflamada) nela. De (D resulta um 0, quer dizer: aquele obscuro centro da natureza está encerrado (latente) num único lugar do sistema planetário e, precisamente por isso, serve, como suporte da luz, para a entrada no mais alto sistema (penetração do raio luminoso ou manifestação do ideal). Precisamente por isto, este lugar é, portanto, o ponto de abertura (Sol, coração, vista) no sistema; e se se elevasse ou manifestasse também aí o mais obscuro centro da natureza, apagar-se-ia eo ipso o ponto luminoso, a luz transformar-se-ia em obscuridade no sistema, ou o Sol apagar-se-ia!»

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esclarecimentos acerca do Mal deixam o entendimento e a consciência moral insatisfeitos. No fundo, todos eles assentam na negação do Mal como antagonismo positivo e na sua redução ao chamado malum metaphysicum, ou ao conceito negativo de imperfeição da criatura. Leibniz disse que era impossível que Deus compartilhasse todas as perfeições com o homem, sem o fazer Deus. 0 mesmo se aplica, em geral, aos seres criados; desse modo, eles devem encontrar-se em graus diferentes de perfeição e em todos os modos de limitação da perfeição. Se se

perguntar de onde vem o Mal, a resposta é a seguinte: da natureza ideal da criatura, na medida em que depende das verdades eternas contidas no entendimento divino, mas não da vontade de Deus. A região das verdades eternas é a causa ideal do Mal e do Bem e deve ser posta no lugar em que os antigos368 colocavam a matéria’. Diz Leibniz noutro lugar

que há somente dois princípios, que são o entendimento e a vontade, mas ambos subsistem em Deus. 0 entendimento fornece o princípio do Mal sem ser ele próprio totalmente mau, porque representa as coisas naturais tal como são de acordo com as verdades eternas; o entendimento contém em si mesmo o princípio que permite o Mal, mas a vontade somente se abre ao Bem 2. Deus não é o criador desta única possibilidade do Mal porque o entendimento não é

3 causa de si próprio . Se é certo que esta distinção do entendimento e da vontade, como dois principios existentes em Deus (pela qual a primeira possibilidade do Mal se torna independente da vontade divina), está de acordo com o modo engenhoso de pensar deste autor e se, também, a representação do enten-

368 1 Tentam. Theod., Opp, T. 1, p. 136.

2Ibidem, p. 240.3 Ibidem, p. 387.

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dimento (da sabedoria divina) como qualquer coisa em relação à qual o próprio Deus se comporta mais como paciente do que como agente, indica algo de mais profundo, então o Mal, susceptível de derivar daquele princípio puramente ideal, acaba por ser, mais uma vez, qualquer coisa de puramente passivo, uma limitação, uma falta, uma privação, o que contraria totalmente a sua autêntica natureza. Porque já a simples convicção de que o homem, a mais perfeita de todas as criaturas visíveis, é a única capaz de o partilhar, indica que o fundamento do Mal de forma alguma pode consistir numa falta ou numa privação. De acordo com o ponto de vista cristão, o diabo não era a mais limitada de todas as criaturas, mas, pelo contrário, a mais ilimitada’. Imperfeição, no sentido metafisico universal do ter- 369

mo, não é o carácter habitual do Mal, pois mostra-se muitas vezes unido a uma excelência das forças isoladas que acompanha muito menos vezes o Bem. 0 fundamento do Mal deve, portanto, residir não em qualquer coisa de positivo em geral, mas, antes, no

positivo mais elevado que a natureza contém - como

afirma o nosso ponto de vista -, dado que se encontra no centro ou na vontade originária do primeiro fundamento, claramente manifesto. Daquela manei-

ra, Leibniz procurou tornar compreensível como é

1 Em relação a esta questão é notório que não somente nos esco- 368 lásticos, mas já entre muitos dos primeiros padres. da igreja, em particular em Santo Agostinho, o Mal seja posto como uma mera privação. Assinalável é, em particular, esta passagem de Contra UL, LI, C. IH: «Quaerunt ex nobis, unde sit malum? Respondemus ex bono, sed non sunimo, ex bonis igitur orta sunt mala. Mala enim omnia participant ex bono, merum enim et ex omni parte tali dare repugnant - Haud vero difficulter omnia expediet, qui conceptum mali semel recte formaverit, ~que semper defectum aliquem involvere attenderit, perfectionem autem omnimodam. incommunicabiliter possidere Deum; neque magis possibile esse, creaturam illimitatam adeoque independentem 369 creari, quam creari alium Deum.»

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que o Mal se poderia desenvolver a partir de uma

privação natural. A vontade, dizia, luta pelo Bem em geral e aspira à perfeição, cuja mais alta medida é Deus; mas quando permanece dissimulada pela voluptuosidade dos sentidos e perde os valores mais elevados, então, esta falta de perseverança é, precisamente, a privação em que consiste o Mal.

Assim, em sua opinião, o Mal não necessitava de nenhum princípio particular, tal como o frio ou a escuridão. Aquilo que no Mal é afirmativo aparece apenas acidentalmente, tal como no frio a força ou a possibilidade de produzir um efeito; a água gelada quebra o

vaso mais resistente que a contenha e, no entanto, o frio consiste numa diminuição do movimento’ . Mas porque, por si mesma, a privação nada é e, para se

tornar ela própria notada, necessita de algo de positivo em que se manifeste, nasce então a dificuldade em esclarecer o positivo, o qual, todavia, deve ser admitido no Mal. Porque Leibniz apenas o pode derivar de Deus, vê como necessário fazer de Deus a causa da materialidade do pecado e atribuir apenas à limitação originária da criatura o seu aspecto formal. Procura então esclarecer esta relação através do conceito de força de inércia da matéria, estabelecido por Képler. Diz ser tal conceito a imagem perfeita de uma limitação originária (anterior a todo o agir) da criatura. Quando, através de um impulso,370 dois corpos distintos, com massa diferente, se põem

em movimento a velocidades diferentes, o fundamento da lentidão do movimento de um deles não reside no impulso, mas na tendência natural e peculiar da matéria para a inércia, quer dizer, na limita-

2 ção interna ou na imperfeição da matéria . Mas deve aqui notar-se que a própria inércia não pode

1 Tentarn. Theod., P. 242.370 2Ibidem, Parte I § 30.

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ser pensada como se fosse uma mera privação, mas é, acima de tudo, algo de positivo, a saber, expressão da ipseidade interna do corpo, da força pela qual ele procura afirmar-se na sua autonomia. Não ignoramos que a finitude metafísica pode ser concebida desta forma, mas negamos que a finitude seja, por si mesma, o Mal’.

Este modo de explicação resulta, em geral, de um conceito sem-vida do positivo, de acordo com o qual so a privação se lhe pode opor. Simplesmente, há ainda um conceito intermédio, que forma um oposto real dele e que se afasta consideravelmente da mera negação. Este conceito resulta de uma relação do todo com o singular, da unidade com a multiplicidade, ou como se queira dizer. 0 positivo é sempre o todo ou a unidade; o que se lhe opõe é a dilaceraçao do todo, desarmonia, ataxia das forças. No todo dilacerado encontram-se os mesmos elementos que estavam no todo unificado; o elemento material nos dois é o mesmo (por este lado, o Mal não é mais limitado nem pior do que o Bem), mas o elemento formal nos dois é completamente diferente; mas este elemento formal provém, justamente, da essência, ou do próprio positivo. Por isso, deve existir necessariamente uma essência, tanto no Mal como no Bem, mas que no Mal se opõe ao Bem e transforma o temperamente nele contido em não-temperamento. A filosofia dogmática não é suficiente para reconhecer esta essência, pois não possui qualquer conceito de personalidade, quer dizer, da ipseidade elevada à espiritualidade, mas apenas os conceitos vazios de 371

finito e de infinito. Se alguém quisesse responder

1 Pelos mesmos motivos, deve considerar-se insuficiente qualquer outra explicação da finitude, por exemplo, a partir do conceito de relação, para a explicação do Mal. 0 Mal não resulta da finitude em si mesma, mas da finitude elevada ao ser-si-mesmo.

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que a desarmonia já é uma privação, nomeadamente uma privação da unidade, o conceito em si mesmo seria todavia insuficiente, mesmo que no conceito geral de privação estivesse contido o de superação ou de dissolução da unidade. Porque a desarmonia não é a dissolução das forças em si mesma, mas a sua falsa unidade, que só se pode chamar dissolução por comparação com a verdadeira unidade. Se a unidade for totalmente suprimida, então será também suprimida a

oposição. A doença é suprimida pela morte e nenhum som isolado constitui por si mesmo uma desarmonia. Mas mesmo para esclarecer aquela falsa unidade é necessário algo de positivo, que, por conseguinte, deve ser admitido no Mal, mas que permanecerá por esclarecer enquanto não for reconhecida uma raiz da liberdade no fundo independente da natureza.

Quanto ao ponto de vista platónico, na medida em que podemos avaliá-lo, será melhor falar dele a

propósito da efectividade do Mal. As nossas representações modernas acerca desta questão, totalmente inconsistentes e que impelem o filantropismo a

negar a existência do Mal, não têm a mais pequena relação com tais ideias: é na sensibilidade, ou na animalidade, ou no princípio terrestre, que reside o único fundamento do Mal, dado que não opõem ao céu tal como se. deve fazer, o inferno, mas a terra. Esta representação é uma consequencia natural da teoria segundo a qual a liberdade consiste no puro domínio do princípio inteligente sobre os desejos e aspirações sensíveis e o Bem tem origem na pura razão; de onde se conclui, do ponto de vista conceptual, que não há nenhuma liberdade para o Mal (na medida em que aqui dominam as inclinações sensíveis); mas, para falar ainda mais correctainente, o Bem é completamente suprimido. Porque a fraqueza ou a efectividade do princípio do entendimento pode ser o motivo da falta de um agir bom e

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virtuoso, mas não o fundamento de um agir positivamente maléfico e contrário aos valores. Mas, admitindo que a sensibilidade ou o comportamento passivo em face das pressões exteriores produzisse acções más de um modo necessário, o próprio ho- 372 mem seria nestas apenas passivo, quer dizer, o Mal visto na sua perspectiva, logo, subjectivamente, não teria nenhum sentido, não poderia ser objectivamente mau, nem teria nenhum significado. Mas dizer-se que o princípio racional é inactivo no Mal também não e ,em si mesmo, fornecer qualquer fundamento. Por que motivo então esse princípio não exerce aqui* seu poder? Se ele quer permanecer inactivo, então,* fundamento do Mal consiste neste querer e não na sensibilidade. Ou então não pode, de forma alguma, ultrapassar o poder de resistência desta última e há aqui, simplesmente, fraqueza ou falta, mas de modo algum o Mal. Por conseguinte, de acordo com esta explicação há apenas uma única vontade (se é que assim pode ser chamada) e não uma dupla vontade e, nesta perspectiva, poder-se-ia aplicar aos seus defen-

sores a designação de monoteletas, pedida de empréstimo à história da igreja, mas tomada, todavia, num outro sentido (depois de o nome de «arianos», entre outros, já ter sido aplicado, com alguma felicidade, na critica filosófica). Mas como não é, de forma alguma, o principio inteligente, ou o princípio da luz, que age no Bem, mas o princípio que está ligado à ipseidade, ou seja, que ascendeu ao espírito, do mesmo modo o Mal não resulta do princípio da finitude em si mesmo, mas do princípio obscuro ou egoísta (selbstichen), trazido à intimidade com o centro; e tal como há um entusiasmo pelo Bem, há também um arrebatamento pelo Mal. Nos animais, como em todos os outros seres naturais, aquele obscuro princípio é também efectivo, mas neles este princípio ainda não atingiu a luz, tal como no homem, ou

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seja, não e espi'rito e entendimento, mas procura cega e desejo. Em resumo: onde ainda não há unidade absoluta ou pessoal não é possível nenhuma queda, ou separação dos princípios. Inconsciência e consciência estão unidas no instinto animal de um modo tão cego e determinado que, por esse mesmo facto, é inalterável. É precisamente por isso, por serem uma expressão relativa da unidade, que lhe estão submetidos e que a força que actua no fundo mantém sempre na mesma relação a unidade dos princípios que lhes é própria. 0 animal nunca pode sair da unidade,373 ao passo que o homem pode dilacerar livremente a

ligação eterna das forças. Por isso Fr. Baader diz correctamente que seria de desejar que a perversidade do homem se pudesse transformar somente em animalidade; mas que, infelizmente, o homem só pode estar por baixo, ou acima, dos animais’.

Procuramos deduzir dos primeiros princípios o conceito e a possibilidade do Mal e desvendar o fundamento universal desta doutrina, que consiste em distinguir 2entre o existente e o que é fundamento da existência .Mas a possibilidade não inclui ainda a efectividade e esta é que é, verdadeiramente, o nosso maior problema.

De facto, aquilo que deve realmente ser explicado não é a forma corno o Mal se torna efectivo nos indivíduos singulares, mas a sua actividade uníversal, ou a forma como pode irromper na criação

1 No tratado acima citado, Morgenblatt, 1807, p. 786.373 2 Santo Agostinho afirma, contra a doutrina da emanação, que

nada pode resultar da substância divina senão Deus; por isso, a criatura foi criada a partir do nada, de onde resulta a sua corruptibilidade e imperfeição (De libero arb., L. 1, C.2). Aquele nada é, desde há muito, uma cruz para o entendimento. Uma solução é dada pela expressão das Escrituras: o homem é criado èK T@OV g@ Ó'To)v, a partir daquilo que não é; tal como pelo célebre @t@ o1v dos antigos que, tal como a criação a partir do nada, recebeu da distinção referida, pela primeira vez, um sentido positivo.

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conio princípio universalmente evidente que, por toda a parte, está em luta com o Bem. Porque ele é índesmentivelmente efectivo, pelo menos como opositor universal, não pode subsistir qualquer dúvida que foi necessário para a manifestação de Deus; também isto resulta do que foi dito anteriormente. Porque se Deus, como espírito, é a unidade indissolúvel de ambos os princípios e se essa mesma unidade só se torna efectiva no espírito do homem, então, se neste último eles fossem tão indissociáveis como

são em Deus, o homern não seria distinguivel de Deus; o homem desapareceria em Deus e não haveria revelação nem mobilidade do amor. Pois cada ser

só se pode manifestar no seu contrário: o amor atra-

vés do ódio, a unidade através do conflito. Se não existisse nenhuma separação dos princípiOs a unidade não poderia demonstrar todo o seu Poder; não 374

havendo discórdia, o amor não se tornaria efectivo. 0 homem está posto num tal ponto culminante que tem em si mesmo, em iguais condições, a origem do auto-movimento para o Bem e para o Mal; nele, a

unidade dos princípios não é uma união necessária, mas livre. Ele está no ponto de separação: o que escolhe torna-se uma acção sua, mas não pode permanecer na indecisão, porque Deus deve necessariamente revelar-se e porque na criação em geral não pode permanecer nada de ambíguo. Por isso, vê-se que ele também não poderia sair da sua indecisão, precisamente porque é indecisão. Por este motivo, deve haver um fundamento universal para a solicitação e a tentação pelo Mal, nem que seja apenas para tornar vivos nele os dois princípios, quer dizer, para o tornar consciente deles. Ora a solicitação para o próprio Mal parece apenas poder provir de um fundo-essencial mau e a aceitação de um tal fundo parece ser, todavia, inevitável e corresponder, de forma totalmente correcta, àquela interpre-

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tação platónica da matéria segundo a qual ela é algo que se opõe originariamente a Deus e é, por isso, em

si mesma uma substância má. Enquanto esta parte da doutrina platónica permanecer na escuridão em que se encontra até ao momentol, torna-se de facto, impossível emitir um juízo definitivo sobre a referida questão. Todavia, é evidente a partir das considerações anteriores em que medida é que se pode dizer do principio racional que ele contraria o entendimento ou a unidade e a ordem, sem o tornar, por isso mesmo, um fundo-essencial mau.

Assim, pode-se perfeitamente perceber a expressão platónica segundo a qual o Mal provém da antiga natureza; porque todo o Mal deseja regressar ao Caos, quer dizer, àquela situação (Zustand) em que o centro originário não estava ainda subordinado à luz; é um borbulhar do centro da nostalgia, privada ainda de entendimento. Simplesmente, demonstramos de uma vez por todas que o Mal, enquanto Mal, só pode ter origem na criatura, na medida em375 qu e só nesta a luz e a obscuridade, ou seja, ambos os

princípios, podem ser unificados. 0 fundo-essencial originário não pode nunca ser em si mesmo mau, pois não há nele nenhuma dualidade dos princípios. Mas também não podemos pressupor um espírito criado que, tendo ele próprio decaído, solicitasse o homem para a queda, porque a questão aqui é a de se saber como é que o Mal apareceu, pela primeira vez, numa criatura. Por isso, para se esclarecer o que é Mal nada mais nos é dado, também, para além dos dois princípios em Deus. Deus como espírito ( a eterna união dos dois) é o amor mais

374 1 Possa um dia esclarecer-nos sobre este ponto o excelente comen-

tador de Platão que é Bockh, que já nos deu as maiores esperanças com as suas notas sobre a harmonia platónica, por si exposta, e com o anúncio da sua edição do Timeu.

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puro, mas no amor não pode existir uma vontade para o Mal; muito menos, também, no princípio ideal. Mas o próprio Deus, para poder ser, necessita de um fundamento, simplesmente tal fundamento não se encontra no seu exterior, mas nele, e tem em si uma natureza que, embora pertencendo-lhe, é diferente dele. A vontade do amor e a vontade do fundo são duas vontades distintas, que existem cada uma para si mesma; mas a vontade do amor não pode resistir à vontade do fundo, nem superá-la, porque senão teria de se opor a si mesma. Ora o fundo deve agir para o amor poder existir, mas deve agir independentemente dele para que o amor exista realmente. Se agora o amor quisesse quebrar a vontade do fundo, deveria lutar consigo mesmo, não estar unido a si mesmo e então já não seria o amor. Este deixar agir o fundo é o único conceito pensável de autorização que, referido habitualmente ao homem, é totalmente inadmissivel. Assim, a vontade do fundo não i- -le, certamente, destruir o amor, nem sequer o pretende fazer, embora muitas vezes o pareça; porque, afastando-se do amor, deve tornar-se vontade própria e particular, para que o amor, mesmo se a atravessa do mesmo modo que a luz atravessa a obscuridade, apareça em todo o seu poder. 0 fundo é apenas uma vontade de manifestação, mas, precisamente para o ser, deve procurar a particularidade e a oposição. A vontade do amor e a do fundo fundem-se numa só justamente porque es-

tão separadas e porque, desde o começo, cada uma age por si própria. Por esse motivo, a vontade do fundo agita-se igualmente na primeira criação da vontade própria da criatura, para que o espírito, ao surgir agora como vontade do amor, encontre 376 um opositor onde se possa tornar efectivo.

A visão da totalidade da natureza convence-nos do anteceder desta agitação, pela qual, somente,

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qualquer vida atinge o último grau de acuidade e de determinidade. 0 irracional e o ocasional, que se mostram ligados ao necessário na formação do ser, em particular do ser organico, são a comprovaçao que não é unicamente uma necessidade geométrica que entrou aqui em acção, mas que estiverem em jogo, conjuntamente, a liberdade, o espírito e a vontade própria. De facto, por todo o lado onde se encontra prazer e desejo, existe já, em si mesma, uma forma de liberdade e ninguém acreditará que os desejos, que constituem o fundamento de cada vida natural particular, tal como o instinto de conservação, não apenas em geral, mas em cada existência determinada, tenham sido somente introduzidos na criatura já criada; pelo contrário, eles mesmo são o próprio elemento criador. Também o conceito de base, encontrado empiricamente e que virá a assumir um papel significativo na totalidade das ciências da natureza, deve, se for suficientemente apreciado, conduzir ao conceito de ipseidade e de egoidade. Mas há na natureza determinações ocasionais que só se podem esclarecer se admitirmos uma agitação do princípio irracional ou obscuro, que acontece imediatamente na primeira criaçáo de uma ipseidade posta em acção (aktivierter). Daí existirem na natureza, ao lado dos comportamentos éticos pré-formados, inegáveis sinais precursores do Mal, mesmo se o poder do Mal somente entra em acção através do homem; daí, também, fenómenos que, mesmo sem ter em conta o perigo que representam para o homem, provocam um horror377 natural universal’. 0 facto de todos os seres orgâni-

376 1 Por isso, a associação que a imaginação de todos os povos, em

particular as fábulas e as religiões do oriente, fez entre a serpente e o Mal não é, de forma alguma, gratuita. A perfeita formação dos órgãos auxiliares que culmina no homem indica já a independência da von-

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cos se oporem à dissolução não pode aparecer como uma necessidade inteiramente originária; a ligação que constitui a vida poderia, de acordo com a sua natureza, ser indissociável e se qualquer coisa está destinada a ser perpetuum mobile só pode ser uma criatura, que produza, pelas suas próprias forças, aquilo que lhe vem a faltar. Entretanto, o Mal só se manifesta na natureza através da sua própria acção; ele próprio, na sua manifestação imediata, só pode irromper quando a natureza atinge o seu objectivo. Na mesma medida em que, na criação orginária (que não é outra coisa senão o nascimento da luz) o princípio obscuro se devia encontrar como fundamento, para que a luz pudesse sair para o exterior - como de mera potência a actus -, deve também haver um outro fundamento para o nascimento do espírito e, portanto, um segundo principio da obscuridade, que deve ser tanto mais elevado quanto o espírito é elevado em relação à luz. Este princípio é, justamente, o princípio do Mal, desperto da criação pela agitação do fundo obscuro da natureza, quer dizer, é a cisão da luz e da obscuridade, em

relação à qual o espírito do amor opõe agora um ideal mais elevado, tal como opunha anteriormente a luz ao movimento desordenado da natureza. Porque, tal como a ipseidade no Mal se apropriou da luz ou do Verbo e, por isso, aparece como fundamento da obscuridade, do mesmo modo deverá o Verbo pronunciado no mundo (em oposição ao Mal) tomar a forma de humanidade ou ipseidade e tornar-se ele

tade em relação ao desejo, ou urna relação do centro com a periferia que é a única verdadeiramente sã, na qual o primeiro se retirou na sua liberdade e circunspecção e se separou do carácter meramente instrumental (periférico). Onde, pelo contrário, os órgãos auxiliares não 377 estão formados ou faltam completamente, o centro desloca-se para a periferia, ou é o círculo sem ponto central, como diz Fr. Baader na obra citada mais acima (em nota).

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próprio pessoa. Isto somente acontece através da revelação, no sentido mais rigoroso da palavra, que deve ter os mesmos graus que a primeira manifestação na natureza, de modo que, também aqui, o ponto culminante da revelação seja o homem, mas o homem numa figura paradigmática e divina, que no

início estava em Deus, no qual todas as coisas (e o próprio homem) foram criadas. 0 nascimento do espírito é o reino da história, tal como o nascimento da luz é o reino da natureza. Os mesmo períodos da378 criação que se encontram nesta, encontram-se igual-

mente naquela e uma é a imagem e a explicação da outra. 0 mesmo princípio que estava presente na

primeira criação, como fundo, está também aqui (simplesmente numa figura mais elevada) como gérmen e semente a partir dos quais se desenvolverá um mundo superior. Ora o Mal mais não é do que o fundo originário da existência e, na medida em que luta por se actualizar num ser engendrado, não e senão, mas num grau mais elavado, a potência do fundo que está em acção na natureza. Mas como elè é, apenas, eternamente um fundo, sem nunca ser um si-mesmo, o Mal não se pode efectivar, servindo meramente de fundo para que o Bem, configurando-se a partir dele com as sua próprias forças, seja, graças ao seu fundo, algo de independente e de separado de Deus (onde Deus se possui e se conhece a si mesmo) e para que Deus esteja nele como algo de independente. Mas como o poder indiviso do fundo originário somente se torna conhecido no homem como intimidade (base ou centro) de um indivíduo singular, da mesma forma, na história, o Mal permanece escondido no início e uma época de inocencia e de ausência de consciência do pecado precede uma época de culpa e de pecado. Exactamente do mesmo modo como o fundo originário da natureza agia talvez há já muito tempo e, com o

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auxílio das forças divinas nele contidas, procurava por si mesmo uma criação que constantemente (porque faltava o elemento do amor) voltava a cair no caos (o que as séries de raças desaparecidas, num

tempo anterior à criação presente, e que nunca voltaram a surgir, nos dão possivelmente a entender), até que surgiu o Verbo do amor e com ele teve início a criação verdadeira, assim também, na história, o espírito do amor não se revelou imediatamente; mas, como Deus sentiu a vontade do fundo como vontade da sua própria revelação e reconheceu, pela sua providência, que deveria existir independente de si

mesmo como espírito um fundo para a sua própria existência, deixou que o fundo agisse na sua independência ou, para dizê-lo de outro modo, que ele próprio se movesse de acordo com a sua natureza e não de acordo com o seu coração ou com o amor. Na medida em que o fundo contém igualmente em si a 379 totalidade do ser divino, mas não como unidade, só poderiam ser seres divinos singulares a dominar neste agir-para-si mesmo do fundo. Por isso, este tempo primordial começou com a Idade de Ouro, da qual para a espécie humana dos nossos dias apenas resta uma débil recordação nas lendas; era um tempo de uma feliz indecisão, onde não havia nem Bem nem

Mal. Seguiu-se, depois, o tempo dos deuses dominadores e dos heróis, ou do poder universal da natureza, em que o fundo mostrava aquilo que podia fazer por si mesmo e o entendimento ou a sabedoria somente vinha até ao homem das profundezas: o poder dos oráculos saídos da terra dirigia e formava a vida; todos os poderes divinos do fundo dominavam a terra e tinham assento em tronos firmes, como príncipes poderosos. Apareceu o tempo da mais elevada glorificação da natureza na beleza visível dos deuses e em todo o esplendor da arte e de uma ciência plena de sentido, até que, por fim, o principio

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actuante no fundo se revelou como princípio conquistador do mundo, para tudo submeter a si e fundar um domínio do mundo firme e duradouro. Mas como a essência do fundo não pode produzir por si mesma a verdadeira e perfeita unidade, vem o tempo em que se dissolve todo este poderio e como que através de uma terrível doença se desmorona o belo corpo do mundo até então existente e o Caos, finalmente, aparece de novo. Já antes, primeiro que a dissolução total tivesse chegado, as potências ~chte) que dominam aquele todo adoptaram a natureza de espíritos maus, tal como as mencionadas forças (que eram, na época da saúde, espíritos benéficos e protectores da vida) adquirem, quando a dissolução se aproxima, uma natureza maléfica e venenosa: a fé nos deuses esmorece e uma falsa magia procura fazer regressar os espíritos fugitivos com o auxílio de súplicas e de fórmulas teúrgicas, para apaziguar os espíritos maus. A atracção pelo fundo mostra-se cada vez mais determinada e, sentindo antecipadamente a luz, retira todas as forças de indecisão, para a enfrentar em pleno antagonismo. Tal como a tempestade é estimulada mediatamente pelo Sol e imediatamente através de uma força terrestre agindo em sentido contrário, assim também o espírito do Mal (cuja natureza meteórica já explicámos anteriormente) é estimulado pela aproximação do Bem, não por meio de uma comuni-380 cação, mas por uma distribuição das forças. Por isso,

só com o aparecimento decisivo do Bem o Mal se decide também a aparecer como tal (não como se só agora aparecesse, mas porque só agora é dado o oposto no qual, somente, ele se pode manifestar completamente e enquanto tal); assim como, por outro lado, é precisamente o momento em que, pela segunda vez, a terra se torna deserta e vazia, que é o momento do nascimento da luz superior do espíri-

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to, luz que desde o início estava presente no mundo, mas não compreendida pela obscuridade que agia por si mesma e restringida a uma revelação restrita e limitada; e, de facto, ela aparece para se opor ao Mal pessoal e espiritual, tomando igualmente uma

figura pessoal e humana como mediadora, para produzir novamente a relação da criação com Deus, num nível superior. Porque só o que é pessoal pode salvar o que é pessoal e Deus deve tornar-se homem para que o homem possa regressar de novo a Deus. É somente por meio do restabelecimento da relação do fundo com Deus que é restituída a possibilidade da cura (da salvação). 0 seu começo é um estado de clarividência (hellsehens), que acontece a alguns homens (como instrumentos escolhidos para essa finalidade) por uma eleiçã o divina; é uma época de sinais e de milagres, na qual as forças divinas se opõem às demoníacas que se evidenciam por todo o lado e em que a unidade apaziguadora se opõe à repartição das forças. Finalmente, sucede a crise na turba gentium, que submerge o fundo do mundo antigo - tal como outrora as águas do início recobri-

ram as criações do tempo originário - para assim tornar possível uma segunda criação: uma nova separação dos povos e das línguas, um novo império, no qual o Verbo vivo intervém como um centro fixo e permanente na luta contra o caos e começa uma luta declarada entre o Bem e o Mal, até ao final dos tempos presentes, no qual Deus se manifesta efectivamente como espírito, quer dizer, como actul.

Há aqui um mal universal desperto, senão originariamente, pelo menos desde o começo da revelação de Deus, por reacção do fundo, mal esse que, de

1 Compare-se todo este parágrafo com as lições do autor acerca do Método dos estudos académicos, Lição VII, «Sobre a construção histórica do cristianismo».

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facto, nunca chega à efectivação, mas luta permanentemente por isso. Somente pelo conhecimento do Mal universal é possível compreender também o Bem e o Mal no homem. Se o Mal foi já excitado na primeira criaçã o e se desenvolveu, por fim, como principio universal, graças ao agir-para-si-mesmo do fundo, então parece ser totalmente compreensível uma inclinação natural do homem para o Mal, porque a desordem das forças que se iniciou pela primeira vez pelo despertar da vontade própria da criatura, acompanhava-o já desde o nascimento. Simplesmente, o fundo continua a agir ininterruptamente em cada indivíduo e excita o ser-próprio e a

vontade particular, para que assim, em oposição a

ele, possa surgir a vontade do amor. A vontade de Deus é tudo universalizar, tudo elevar à unidade

com a luz, ou tudo aí conservar; mas a vontade do fundo consiste em tudo particularizar ou tornar criatura. Ele só quer a desigualdade para que a igualdade se torne sensível e a sinta. Por isso, reage necessariamente à liberdade como algo de supra-criatural e desperta a paixão que é própria de uma

criatura, tal como quem, tomado de vertigens num cume elevado e íngreme, parece ouvir, ao mesmo tempo, um apelo misterioso para se precipitar ou, tal como, segundo as antigas fábulas, um canto irresistível de sereias soava das profundezas, para que os navegantes fossem atraídos para o redemoinho. Em si mesma, a ligação da vontade universal com uma vontade particular no homem parece j a ser uma contradição, cula união parece ser difícil, senão mesmo impossível. A própria angústia da existência afasta o homem do centro onde foi concebido; porque o centro, como essência mais pura da vontade, é, para cada vontade particular, um fogo abrasador. Para nele poder viver, o homem deve eliminar todo o ser-próprio (Eigenheit), pelo que é uma tentação

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quase necessária afastar-se dele em direcção à periferia, para aí procurar um repouso para a sua ipseidade. Dai a universal necessidade do pecado e da morte com eliminação efectiva do ser-próprio, pela qual toda a vontade humana deve passar, como por um fogo, para ser purificada. Apesar desta necessidade universal, o Mal permanece sempre uma esCO- 382

lha própria do homem; o fundo enquanto tal não pode praticar o Mal e cada criatura cal por sua

própria culpa. Mas qual o modo, precisamente, como agora, nos indivíduos singulares, se processa a decisão pelo Mal, eis o que permanece ainda totalmente obscuro e parece exigir uma investigação particular.

Até ao momento, tivemos menos em atenção, em geral, a essência formal da liberdade, embora uma

perspectiva sobre ela não pareça conter menos dificuldade do que a explicação do seu conceito real.

0 conceito habitual de liberdade, segundo o qual ela é posta como uma faculdade totalmente indeterminada de escolher entre dois objectos contraditórios, sem um fundamento determinado para se querer um ou outro, senão simplesmente, o facto de ele ser querido, pode invocar, sem dúvida, a indecisão originária do ser humano na sua ideia, mas conduz, aplicado a acções isoladas, aos maiores disparates. Poder decidir, sem qualquer fundamento determinante, por A ou por não-A, seria, para dizer a verdade, um agir completamente irracional e equivaleria a não distinguir entre o homem e o conhecido animal de Buridan que, segundo as opiniões dos partidários deste conceito de livre-arbítrio, estaria condenado a morrer de fome diante de dois montes de palha situados à mesma distância, do mesmo tamanho e com as mesmas características, por não possuir aquele princípio do livre-arbítrio. A única demonstração deste conceito reside no apelo ao fac-

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to de, por exemplo, cada um ter em seu poder a possibilidade de contrair ou estender o seu braço, sem qualquer outro motivo. Pois se alguém disser que o estende somente para provar a sua liberdade, responde-se que também o poderia fazer contraindo-o; o interesse em demonstrá-lo apenas o pode determinar a fazer uma ou outra coisa, portanto o equilíbrio é aqui evidente, etc. Trata-se de um tipo de demonstração totalmente inadequado, porque conclui, da ignorância do fundamento determinante, a inexistência de fundamento, demonstração que

383 se poderia aplicar aqui em sentido contrário: pois é

justamente onde entra a ignorância que se encontra de modo mais certo a determinação. 0 aspecto principal é que este conceito leva a admitir o carácter totalmente ocasional das acções isoladas e, nesta perspectiva, tornou-se possível compará-lo com as variações ocasionais dos átomos, que Epicuro imaginou na sua Física, com a mesma intenção de fugir ao fatum. Mas o acaso é impossivel, porque se opõe à razão e à necessária unidade do todo; e se a liberdade não se pode salvaguardar senão como contingência da acção no meio do todo, então não vale a pena salvaguardá-la. A este sistema do equilíbrio do livre-arbítrio opõe-se, com inteira razão, o determinismo (ou segundo Kant, o pró-determinismo), na medida em que afirma a necessidade empírica de todas as acções, porque cada uma delas é determinada por representações’ ou por outras causas, que perten-

cem ao passado e que, no momento da própria acção, já não se encontram em nosso poder. Ambos os sistemas reflectem o mesmo ponto de vista; só que, se não houvesse um ponto de vista superior, o segundo mereceria inegavelmente a preferência. Aquela necessidade superior, que está por igual afastada do acaso e da coacção (ou do ser determinado por algo de exterior), que é antes uma necessidade inter-

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na que se origina na essência do próprio agente, é ignorada tanto por um como pelo outro. Mas todo o

tipo de melhoramento que se queira fazer ao determinismo, por exemplo, o leibnlzlano, segundo o qual as causas que movem a vontade apenas inclinam, mas não determinam, não são nenhum auxílio para o problema.

Em geral somente o idealismo elevou a doutrina da liberdade àquela única região em que ela pode ser compreensível. A essência inteligível de cada coisa e, principalmente, do homem, é, segundo ele, exterior a qualquer conexão causal, encontrando-se fora e para além do tempo; por isso, não pode ser

nunca determinada por qualquer coisa que a preceda, na medida em que é ela, pelo contrário, que precede qualquer outra coisa que esteja ou aconteça nela; e fá-lo, não tanto temporalmente, como conceptualmente, como unidade absoluta, que já lá se deve encontrar inteira e perfeita, para que uma acção ou determinação isolada seja possível nela. Exprimimos o conceito kantiano, não exactamente com as suas próprias palavras, mas do modo como ele, em nossa opinião, deveria ser expresso para se tornar compreensível. Mas, se aceitarmos este conceito, então parece poder concluir-se correctamente o seguinte: a acção livre segue-se imediatamente do inteligível no homem. Mas ela é necessariamente uma acção determinada, por exemplo, boa ou má. Mas do absolutamente indeterminado para o determinado não há nenhuma transição. Porque, se se devesse determinar o ser inteligível a partir da indeterminidade mais pura, sem qualquer outro tipo de fundamento, tal posição reconduzir-nos-ia ao sistema referido mais acima da indiferença do livre-arbítrio. Para se poder determinar a si mesmo, tal ser

deveria já estar em si mesmo determinado, não, cer-

tamente, do exterior, o que é contrário à sua natu-

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reza, nem do interior, por meio de uma necessidade contingente ou empírica, na medida em que tudo isso (quer dizer, tanto o psicológico, como o físico) lhe está subordinado; mas é ele mesmo, a sua essência, ou seja, a sua natureza própria, que deve ser uma determinação para si mesmo. Não se trata, certamente, de um universal indeterminado, mas do que determina a essência inteligível de cada índividuo; em relação a uma tal determinidade, a afirmação Determinatio est negatio não tem qualquer valor, na medida em que se identifica (eins ... ist) com a posição e o conceito de essência e é, portanto, no fundo, a essência da essência. Por isso, o ser inteligível, agindo certamente de modo totalmente livre e absoluto, age também de acordo com a sua natureza interna; ou ainda, a acção só pode resultar do seu íntimo acordo com o princípio de identidade e segundo uma necessidade absoluta que é, também absoluta liberdade: porque só é livre aquilo que age segundo as leis da sua própria essência e não é determinado por mais nada, nem nele, nem fora dele.

Com este modo de representar a questão ganhou-se pelo menos uma coisa: afastou-se a posição absurda que introduz o acaso nas acções particulares. Uma coisa deve permanecer, mesmo em qualquer ponto de vista mais elevado, a saber, a acção particular resulta de uma necessidade interna do ser fivre e, por conseguinte, realiza-se necessariamente; simplesmente, tal necessidade não deve ser confundida, como multas vezes acontece, com a empírica,385 que consiste numa obrigação (mas que mais não é do

que uma contingência disfarçada). Mas qual é então aquela necessidade interna da própria essência? É neste pondo que necessidade e liberdade se devem reunir, se é que são, em geral, unificáveis. Se aquela essencia fosse um ser morto e, em relação ao homem, algo que lhe tivesse sido meramente dado, acontece-

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ria que a acção exterior só poderia resultar dela necessariamente e seria suprimida a responsabilidade e toda a liberdade. Mas, justamente, aquela necessidade interna é, ela própria, a liberdade; a essência do homem é essencialmente o seu próprio agir; necessidade e liberdade interpenetram-se como um ser único que, somente se for considerado em perspectivas diferentes, pode aparecer como uma coisa ou a outra, mas que é em si mesmo liberdade, embora, formalmente considerado, seja necessidade.0 Eu diz Fichte, é o seu próprio agir; a consciência é posição de si mesma, mas o Eu não se distingue dela, mas é justamente o próprio pôr-se a si mesmo. Mas esta consciência, na medida em que é pensada com mera auto-compreensão ou conhecimento do Eu, não é primeira, mas pressupõe já, como qualquer conhecimento, o seu autêntico. Mas este ser, que se presume ser anterior ao conhecimento, não é ne-

nhum ser, nem igualmente, nenhum conhecer: é uma auto-posição real, é uma vontade originária e fundante, que se faz a si mesma e é fundo e base de toda a essencialidade.

Mas aquelas verdades, relacionadas imediatamente com o homem, adquirem um sentido muito mais determinado do que este sentido geral. Tal co-

mo se irtostrou, o homem, na criação originária, é

um ser indeciso (o que pode ser exposto, de forma mítica,,--omo um estado de inocência e de felicidade inicial que precede esta vida) e só ele próprio se pode decidir. Mas esta decisão não pode acontecer no tempo; ela surge fora de qualquer tempo e é, portanto, contemporânea da primeira criação, em-

bora não seja um acto'distinto dela. 0 homem, mesmo tendo nascido no tempo, foi, todavia, concebido no início da criação (no centro). 0 acto pelo qual a

sua vida é determinada no tempo não pertence, ele próprio, ao tempo, mas à eternidade: também não é

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segundo o tempo que é anterior à vida, mas precede-a através do tempo, sem ser aprisionado por ele,386 como um acto que, segundo a natureza, fosse eter-

no. Através dele, a vida do homem estende-se até ao começo da criação; portanto, através dele, o homem é também um livre e eterno começo de si mesmo, elevando-se acima do que foi criado. Tão difícil de entender quanto esta ideia possa ser para o modo habitual de pensar, há, em cada homem, um sentimento que concorda com ela, segundo o qual é de toda a eternidade que ele é (como é de facto) aquilo que é e de não ter sido no tempo que se tornou assim. Daí, independentemente da inegável necessidade de todo o agir e embora cada indivíduo, quando presta atenção a si mesmo, dever confessar que de forma alguma é bom ou mau ocasionalmente ou por livre vontade (willkürlich), o facto de o indivíduo não aparecer a si mesmo como coagido (porque a coacção só se pode encontrar no devir e não no ser), mas executar as suas acções voluntariamente e não contra a sua vontade. Que Judas tenha traído Cristo, eis o que não poderia ser alterado, nem por ele próprio, nem por nenhuma criatura e, no entanto, não traiu Cristo coagido, mas voluntariamente e em plena liberdade’. 0 mesmo se passa com o indivíduo bom, ou seja, não é bom ocasional ou voluntariamente e, no entanto, é tão pouco coagido que nenhuma coacção, nem mesmo as portas do inferno, estão em condições de se opôr à sua resolução. Na consciência, na medida em que é mera auto-apreensão e apenas de forma ideal, aquele livre agir que se transforma em necessidade não pode certamente aparecer, pois precede-a, tal como precede a essência e

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1 É o que Lutero afirma correctamente no tratado De servo arbitrio, mesmo se não concebe adequadamente a união entre uma tal necessidade infalível e a liberdade da acção.

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constitui-a: todavia, não se trata de um agir de que não permanecesse no homem nenhuma consciência, pois aquele que se desculpa de uma acção incorrecta e diz: «então, é assim que eu sou», tem perfeita consciência de ser assim por sua própria culpa, embora tenha também razão em dizer que não lhe seria possível agir de outra maneira.

É assim que muitas vezes acontece que um homem, desde a infância, altura em que, considerado empiricamente, quase não podemos esperar dele liberdade e reflexão, mostre uma propensão paraO 387

Mal que se pode prever que não cederá a nenhuma educação ou ensinamento e que, no seguimento, amadureça os frutos malignos que tínhamos previsto na semente; e certamente ninguém duvida da sua responsabilidade e todos estão convencidos da culpa deste homem, como se tivesse em seu poder cada uma das suas acções isoladas. Esta convicção universal da existência de um impulso para o Mal, totalmente inconsciente desde o início e, portanto, irresistível enquanto actus da liberdade, indica uma acção e, consequentemente, uma vida anterior a esta vida; simplesmente, tal vida não deve ser pensada como anterior na ordem do tempo, na medida em que o inteligível é exterior ao tempo. Dado que na criação existe a suprema consonância e nada está tão separado e sucessivo como somos obrigados a representá-lo, mas no anterior o que virá depois já se encontra em acção e tudo acontece simultaneamente como que por um golpe de magia, também o

homem, que se encontra aqui decidido e determinado, se concebeu a si mesmo na primeira criação numa figura determinada e nasce como aquilo que é desde a eternidade, na medida em que, através daquela acção, são determinados até mesmo o modo e a natureza da sua corporização. Desde sempre, a relação entre a pretensa contígência do agir humano e a

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unidade da totalidade do mundo, projectada antecipadamente no entendimento divino, foi o maior escolho da doutrina da liberdade. Uma vez que nem a presciência divina, nem a autêntica providência, podiam ser postas de lado, adoptou-se a teoria da predestinação. Os criadores dessa teoria sentiam que as acções do homem deveriam estar determinadas desde a eternidade, mas não procuraram essa determinação no agir eterno, contemporâneo da criação, que constitui a essência do próprio homem, mas num decreto absoluto (quer dizer, destituido de fundamento) de Deus, pelo qual alguns eram pré-determinados a ser condenados, outros a ser salvos; mas, assim, suprimiram a raiz da liberda- de. Também nós afirmamos a existência de uma predestinação, mas num sentido completamente diferente: tal como o homem age aqui, assim também agiu de toda a eternidade e, desde logo, no começo da criação. 0 seu agir não se modifica, tal388 como ele, enquanto ser moral, não se modifica,

mas é eterno por natureza. Por isso, também não é necessário colocar aquela questão desagradável, muitas vezes ouvida: por que é que certo indivíduo é determinado a agir como mau e perverso e outro, pelo contrário, como piedoso e justo? Pois tal questão pressupõe que o homem, originariamente, não é acção e actividade (Handlung und That) e que, como ser espiritual, possui um ser anterior e independente da sua vontade, o que, como se mostrou, é impossivel.

Desde que na criação, por uma acção do fundo sobre a revelação, o Mal foi universalmente posto em acção, o homem apreendeu-se a si mesmo, desde toda a eternidade, no ser-próprio e no egoismo e todos os que nasceram nasceram prisioneiros do princípio obscuro do Mal, mesmo se este Mal somente acedeu à consciência-de-si pela intervenção de

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uma oposição. Tal como o homem é agora, é unicamente a partir deste princípio obscuro que o Bem, por meio de uma transmutação divina, se pode transfigurar em luz. Este mal originário no homem, cuja existência somente poderão negar aqueles que conhecem superficialmente o homem que têm em si e o que existe fora de si, é, porém, na sua origem, um agir próprio (embora totalmente independente da liberdade, em relação à vida empirica actual) e, por isso mesmo, um pecado original, o que não se pode dizer daquela desordem das forças inegável, sem dúvida - que se desenvolveu por contágio, depois da desordem se ter iniciado. Não são as paixões em si mesmas que são o Mal, nem temos somente de lutar com a carne e o sangue, mas com um Mal que existe em nós e fora de nós, que é espírito. Só aquele Mal resultante de uma acção própria, mas contraído desde o nascimento, pode ser chamado Mal radical e é digno de nota o modo como Kant (que não se conseguiu elevar, de um ponto de vista teórico, à consideração de um agir transcendental determinante de todo o ser do homem), através da mera observação minuciosa do fenômeno do juizo moral, foi conduzido, nas suas últimas investigações, ao reconhecimento de um fundamento do agir humano anterior a qualquer acção relativa aos sentidos - embora, como ele próprio diz, de carácter subjectivo- e que, por conseguinte, só pode ser considerado um acto de liberdade; enquanto Fichte, que concebeu especulativamente o conceito de uma tal acção, se fechou, na sua teoria moral, no filantropismo dominante e apenas quis encontrar aquele Mal que precede todo o agir empírico, na preguiça da natureza humana.

Parece agora haver um único motivo que pode ser avançado contra esta perspectiva, a saber, o facto de ela impedir, pelo menos nesta vida, qualquer conver-

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são do Mal para o Bem, ou do Bem para o Mal. Simplesmente, se houver uma ajuda humana ou divina (e o homem necessita sempre de uma ajuda) que determine a sua conversão ao Bem, o facto de se permitir ao espírito bom aquela operação, o facto de não se fechar positivamente a ele, é já igualmente resultado daquele agir originário, pelo qual o homem é uma certa coisa e não outra completamente diferente. Por isso, num indivíduo em que aquela transmutação ainda não aconteceu, mas no qual o principio bom ainda não se extinguiu completamente, a voz mais íntima da sua essência própria (ou mais perfeita, se o compararmos com aquilo que ele agora é), nunca deixa de lhe exigir isso, tal como ele só através de uma viragem efectiva e decisiva encontra a paz no seu próprio íntimo e - como se só agora estivesse à altura da sua idea originária -

se reconcilia com o seu espírito protector. É verdade que, no sentido mais rigoroso, de acordo com o modo como o homem está concebido, não é ele que age, mas o espírito bom ou o espírito mau que nele existe; e no entanto, isto não causa qualquer obstáculo à liberdade. Porque o deixar-agir-em-si-mesmo o bom

ou o mau principio é, precisamente, a consequência daquela actividade inteligível que determina a sua essência e a sua vida.

Depois de termos mostrado a origem e o desenvolvimento do Mal, até se tornar efectivo num individuo singular, não parece faltar senão descrever a sua manifestação no homem.

Como se mostrou, a possibilidade universal do Mal reside no facto de o homem, em vez de utilizar* sua ipseidade como base ou instrumento, a elevar* posição dominante e a vontade geral e transformar em meio o espiritual que existe em si mesmo. Se no homem o princípio obscuro da ipseidade e a vontade própria forem totalmente penetradas pela luz e fize-

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rem unidade com ela, então é Deus como amor eterno, ou como existente efectivo, que é nele a unidade das forças. Mas se ambos os princípios se encontram 390 em conflito, então lança-se um outro espírito no lugar que deveria ser o de Deus, a saber, o espírito invertido: aquele ser que é suscitado a actualizar-se pela revelação de Deus e nunca pode chegar a acto, a partir da potência; na verdade, ele nunca é, mas quer sempre ser; por isso, tal como a matéria dos antigos, não pode ser concebido (actualizado) como efectivo pelo perfeito entendimento, mas somente através da falsa imaginação (koyiçgcõ Vóâ(01), que é o pecado; é por isso que, adquirindo e`ssa ap'arência do ser verdadeiro (ele que não existe), procura através de representações especulares (Spiegelhafte)- da mesma forma que uma serpente vai buscar as cores à luz - conduzir o homem para a insensatez, pois só pela insensatez pode ser apreendido e concebido por ele. Por isso, esse ser é representado, com razão, não somente como um inimigo de todas as

criaturas (dado que estas só permanecem por meio

da união do amor) e, principalmente do homem, mas também como sedutor deste último, atraindo-o a falsos prazeres e a captar pela imaginação o que não existe; nisto, esse ser é apoiado pela própria tendência má que existe no homem, cujos olhos, incapazes de se deter a fixar o brilho do divino e da verdade, se

voltam sempre para a contemplação do que não existe. Porque o inicio do pecado é de tal ordem que o homem transita do ser autêntico para o não-ser, da verdade para a mentira, da luz para a escu-

ridão, para se tornar ele próprio um fundo criador e para, com o poder do centro que tem em si próprio,

1 Como Platão se exprime no Timeu, Zwebr, Ausg., vol. IX, p. 349, e 390 anteriormente em Tim. Loc. de an. mundi, Ibidem, p. 5.

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dominar todas as coisas. Por isso, para aquele que se retira do centro, permanece continuamente a sensação de ser todas as coisas, em Deus e com Deus; por esse motivo, ambiciona constantemente voltar a esse estado, mas por si mesmo e não onde poderia sê-lo, ou seja, em Deus. Daqui resulta o apetite do egoísmo, que se torna cada vez mais mesquinho e empobrecido, mas, por isso mesmo, mais desejoso, faminto e envenenado à medida que se afasta do todo e da unidade. No Mal existe uma contradição391 que se consome e se nega a si mesma constantemen-

te, na medida em que aspira a ser criatura enquanto nega a união que é própria do ser-criatura e em que, na arrogância de ser tudo, cai no não-ser. Acima de tudo, o pecado manifesto não nos enche de pena,

como a fraqueza ou a incapacidade, mas de susto e de horror, um sentimento que só se explica pelo facto de ambicionar despedaçar o Verbo, atentar contra o fundo da criação e profanar o mistério. Simplesmente, também isto se devia tornar manifesto, porque é somente no contrário do pecado que se manifesta aquela mais íntima ligação de dependência das coisas com a essência de Deus, que é como que anterior à existência (ainda não suavizada por ela) e, por isso, terrível. Porque o próprio Defarça este principio na criatura e reveste-o com o amor, na medida em que faz dele um fundamento e uma espécie de suporte da essência. Para aquele que o provoca, por uso deficiente da vontade própria, erigida em ser-próprio, para ele e contra ele esse princípio torna-se actual. Todavia, na medida em que Deus, na sua existência, não pode ser perturbado, nem, muito menos, suprimido, assim, de acordo com a necessária correspondência que existe entre Deus e a sua base, aquele raio luminoso de vida que se encontra na profundeza da escuridão e também em cada indivíduo isolado, inflama-se e torna-se pá-

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ra o pecador um fogo destruidor, tal como no organismo vivo o membro isolado ou o sistema, na medida em que se desprende do todo, sente como fogo (=febre) a unidade e a propria conjugaçao a que se opôs e inflama-se de um ardor interior.

Vimos como, através de uma falsa imaginação e de um conhecimento dirigido ao não-existente, o espírito do homem se abre ao espírito da mentira e da falsidade e, depressa fascinado por ele, é abandonado pela liberdade inicial. Daqui resulta que, em oposição a isto, o verdadeiro Bem só pode ser posto em acção através de uma magia divina, ou seja, através do presente imediato do existente na consciência e no conhecimento. Um Bem arbitrário é tão impossível como um Mal arbitrário. A verdadeira liberdade está em consonância com uma liberdade sagrada, semelhante à que encontramos no conhecimento essencial, quando o espírito e o coração, unidos de acordo somente com a sua própria lei, 392

afirmam de livre vontade aquilo que é necessário. Se o Mal consiste na discórdia entre ambos os princípios, o Bem só pode consistir na perfeita concórdia entre eles e o elemento que os une deve ser um elemento divino, na medida em que não são condicionalmente um só, mas são-no de uma forma perfeita e incondicionada. A relação entre ambos não se pode, por isso, representar como uma moralidade resultante da vontade, ou como uma moralidade produzida por auto- determinação. Este último conceito, pressupõe que, em si mesmos, estes dois princípios não são um só; mas como podem vir a ser um se já não o forem? Além disso, faz-nos regressar ao absurdo sistema da indiferença da vontade. A relação entre ambos os princípios é a única possibilidade de ligação do principio obscuro (da ipseidade) com a luz. Seja-nos permitido exprimir isto pelo termo religiosidade, de acordo com o significado originá-

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rio da palavra. Não entendemos por isto aquilo que é assim chamado por uma época doentia: uma meditação ociosa, um pressentimento devoto, ou de uma vontade de sentir o divino. Porque Deus é em nós o claro conhecimento ou a própria luz espiritual, na qual, somente, tudo o resto se torna claro; o que está muito afastado da opinião segundo a qual se trata de um conhecimento pouco claro; este tipo de conhecimento não deixa que aquele em que se encontra seja preguiçoso ou esteja descansado. Onde se encontra é algo de muito mais substancial do que aquilo que pensam os nossos filósofos do sentimento. Entendemos o termo religiosidade no seu sentido originário e prático. Ele é a consciência escrupulosa, quer dizer, significa que se age como se sabe e que não se contradiz, na acção, a luz do conhecimento. Chama-se religioso, ou consciencioso no mais alto sentido da palavra, a um homem para quem fazer isto não é impossível, não de um modo humano, físico ou psicológico, mas de um modo divino. Não é consciencioso aquele que, nas ocasiões que se lhe deparam, ainda se deve interrogar sobre a regra do dever (das Pflichtgebot vorhalten muss), p@ra, por respeito por ela, poder agir correctamente. E já de acordo com o significado da palavra que o termo religiosidade não permite nenhuma escolha entre opostos, nenhum aequilíbrium arbítrii (o flagelo de toda a moral), mas só a mais elevada decisão pelo que é justo, sem qualquer escolha. A consciência escrupulosa não aparece, por isso mesmo, necessariamente e sempre, com o entusiasmo e exaltação fora do vulgar acima de si mesmo, pelos quais a poderia fazer393 passar, uma vez abatida a moralidade voluntária e

petulante, uma outra forma muito mais perniciosa do espírito de orgulho. Essa consciência pode aparecer, de modo puramente formal, como rigoroso cumprimento do dever, em que até mesmo se mistu-

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ra um carácter de dureza e aspereza, como na alma de Catão, à qual uni antigo atribuia aquela necessidade de agir interior e quase divina, ao dizer dele que se tinha tornado o mais parecido possível com a virtude, pois não agia correctamente para agir correctamente (por respeito para com o mandamento), mas porque não podia agir de outra forma. Este rigor do carácter, tal como o rigor da vida na natureza, é a única semente a partir da qual aparece, como flor, a verdadeira graciosidade e divindade; mas aquela supostamente distinta moralidade, que acredita poder desenvolver esta semente, é igual a uma flor estéril que não produz qualquer fruto’. 0 mais elevado, precisamente por ser o mais elevado, nem sempre é universalmente válido; e quem conhe-

ce a espécie dos libertinos espirituais, para os quais o que há de mais elevado na ciência, bem como no

sentimento, serve perfeitamente para o divertimento espiritual e para o elevar-se acima da chamada conformidade vulgar com o dever, deverá tornar-se consciente que é desse modo que aquele mais elevado deve ser expresso. Pode-se já prever que, no caminho em que cada um prefere ser uma bela alma a ser uma alma racional e prefere que lhe chamem nobre a que lhe chamem justo, a doutrina moral haverá ainda de reduzir-se ao conceito geral de gosto, segundo o qual o vício consistirá apenas num mau gosto ou num gosto despravado2. Quando, na cons-

‘ A já várias vezes referida recensão de Fr. Sclilegel, nos Heidelb. 393 Jahrbachern, p. 154, contem observações muito justas acerca deste espírito moral (moralische Genialitãt) do nosso tempo.

2 Um jovem que, presumivelmente, como agora muitos outros, é 393 demasiado altivo para modificar o honrado caminho de Kant e, sendo incapaz de qualquer coisa de realmente melhor, exprime desvarios estéticos, afirmou ter pronta uma tal fundamentação da moral pela estética. Com tais progressos, poderá vir a tomar-se ainda a sério a brincadeira de Kant, segundo a qual Euclides é uma introdução um pouco pesada à arte do desenho.

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ciência moral honesta, transparece o princípio divi-

394 no dela, a virtude aparece como um entusiasmo;

como heroísmo (em luta com o Mal), como a bela e livre coragem do homem para agir tal como Deus lhe ensina e não se desviar, ao agir, do que reconhece no saber; ou como fé, não no sentido de uma crença considerada como qualquer coisa de meritório, mas a que falta algo para ser uma certeza - no sentido que esta palavra adquiriu ao ser utilizada por coisas vulgares -, mas no seu sentido originário de confiança, esperança no divino, que exclui qualquer esco-

lha. Quando, finalmente, na mais inviolável seriedade da consciência, que, no entanto, está sem-

pre pressuposta, penetra um raio do amor divino, resulta a mais elevada transfiguração da vida moral, em graça e beleza divinas.

Procurámos investigar, tanto quanto foi possível, o desenvolvimento da oposição entre o Bem e o Mal e o modo como ambos agem um através do outro na criação, mas ficou para trás a suprema questão de toda esta investigação. Até ao momento, Deus foi simplesmente considerado como um ser que se manifesta a si mesmo. Mas como é que ele se relaciona com esta revelação, enquanto ser moral? Trata-se de uma acção que se efectiva com uma necessidade cega e inconsciente, ou é uma actividade livre e consciente? E se for isso, como é que Deus se comporta (como ser moral) relativamente ao Mal, cuja possibilidade e efectividade dependem da auto-revelação? Quando se quis revelar, Deus terá também querido o Mal? E como é que se pode conciliar esta vontade com a santidade e a elevada perfeição que nele existe, ou, numa expressão mais vulgar, como é que Deus pode ser justificado diante do Mal?

A questão provisória sobre a liberdade de Deus na auto-revelação parece estar, de facto, decidida com o que foi dito. Se Deus fosse para nós uma mera

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abstracção lógica, tudo deveria resultar dele com uma necessidade igualmente lógica; ele próprio seria como que a lei suprema da qual tudo emana, mas sem personalidade nem consciência disso. Simplesmente, explicámos Deus como unidade viva das forças; e se, de acordo com a nossa explicação anterior, a personalidade consiste na ligação entre algo que subsiste por si mesmo e uma base independente dele, de tal modo que ambos se interpenetram totalmente e são apenas um único ser, então Deus é a persona- 395 lidade suprema, por meio da ligação do princípio ideal que nele existe com o fundo independente (relativo àquele princípio), dado que a base e o existente que há nele se unem necessariamente numa existência única absoluta; assim também, se a unidade viva dos dois é espírito, então Deus, como união absoluta de ambos, é espírito num sentido eminente e absoluto. É tão certo ser somente através da união de Deus com a natureza que se fundamenta a personalidade que nele existe, que, pelo contrário, o Deus do puro idealismo, tal como o do puro realismo, é necessariamente um ser impessoal, o que o conceito fichteano e espinosista comprovam da forma mais clara. Simplesmente, porque em Deus há um fundo independente da realidade e, por isso, dois começos igualmente eternos de auto-revelação, Deus deve ser considerado em relação aos dois, de acordo com a sua liberdade. 0 primeiro começo da criaçã o é a nostalgia do Uno de se dar à luz a si mesmo, pela qual o Verbo é pronunciado na nature-

za e pela qual, somente, Deus se constitui a si mesmo como pessoa. Por isso, a vontade do fundo não pode ser livre, no sentido em que a vontade do amor é livre. Ela não é uma vontade consciente ou ligada à reflexão, embora também não seja totalmente inconsciente, movendo-se a si mesma por necessidade cega e mecânica, mas é natureza intermédia - como

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o desejo ou o prazer - e comparável, com mais facilidade, ao belo impulso de uma natureza em devir, que luta por se desenvolver e cuj os movimentos mais íntimos não são voluntários (quer dizer, não podem deixar de ser feitos), sem que, todavia, ela se sinta forçada a eles. Muito mais livre e consciente é a vontade do amor, precisamente por ser do amor; a revelação que dele sai é acção e actividade. Toda a natureza nos diz que não é, de modo nenhum, graças a uma necessidade meramente geométrica; nela não existe uma razão pura e sem mistura, mas personalidade e espírito (tal como diferenciamos um autor racional de outro cheio de espírito); senão, o entendimento geométrico, que durante tanto tempo dominou, tê-la-ia há muito penetrado e o seu ídolo - as leis da natureza, universais e eternas - teria recebi-396 do melhor comprovação do que a teve até ao momen-

to, dado que, pelo contrário, deve cada vez mais reconhecer a relação irracional da natureza consigo. A criação não é um dado, mas uma actividade. Não há acontecimentos que resultem de leis universais, mas Deus, quer dizer, a pessoa divina, é a lei universal e tudo o que acontece, acontece graças à personalidade de Deus e não segundo uma necessidade abstracta, que não poderiamos admitir numa acção, muito menos em Deus. Na filosofia leibniziana, dominada demasiadas vezes pelo espírito da abstracção, um dos aspectos mais admiráveis é o reconhecimento das leis da natureza como leis que dependem de uma necessidade moral e não geométrica e, menos ainda, da arbitrariedade. «Estabeleci» diz Leibniz, «que as leis que se podem efectivamente demonstrar na natureza, não são absolutamente demonstráveis, o que também não é necessário. De facto, elas podem ser provadas de diversos modos: mas deve sempre pressupor-se qualquer coisa que é necessário de um modo que não é, em absoluto, geo-

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métrico. Por isso, estas leis são a prova da existência de um ser superior, inteligente e livre, contra o sistema da necessidade absoluta. Elas não são, nem totalmente necessárias (em sentido abstracto), nem totalmente arbitrárias, mas encontram-se numa posição intermédia, como leis que derivam de uma sabedoria perfeita e superior a qualquer outra coisa.» 1

0 esforço supremo do modo dinâmico de explicação não é senão esta redução das leis da natureza à alma (Gemuth), ao espirito e à vontade.

Todavia para determinar a relação de Deus, como ser moral, com o mundo, não é suficiente um conhecimento geral da liberdade na criação; pergunta-se ainda, acima de tudo, se a actividade de auto-revelação foi livre no sentido de que todas as suas consequências foram previstas por Deus. Ora, também isto se deve necessariamente afirmar; porque a própria vontade de revelação não seria uma vontade livre se uma outra vontade, que remonta ao íntimo da essência, não se lhe e - isesse. Mas deste deter-se-em-si-mesmo resulta uma imagem reflexiva de tudo aquilo que está contido implicite na essência, na

qual Deus se efectiva idealmente ou, o que é o mes-

mo, se reconhece a si mesmo, pela primeira vez, no seu devir efectivo. Portanto, porque existe em Deus 397 uma tendência que age em sentido contrário ao da vontade de revelação, o amor, ou a bondade, ou o

communicativum sui, devem preponderar, para poder haver uma revelação; e esta preponderância -

a decisão - realiza somente o conceito de revelação como actividade consciente e moralmente livre.

Apesar deste conceito e se bem que a acção da revelação de Deus seja apenas necessária de um

ponto de vista moral, ou em relação ao Bem e ao

Tentam. Theod., Opp. TA, pp. 365-366. 396

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amor, a representação de uma deliberação de Deus consigo mesmo, ou de uma escolha entre vários mundos possíveis, continua sendo uma representação infundada e insustentável. Pelo contrário, logo que é acrescentada a determinação mais precisa de uma necessidade moral, a proposição seguinte é totalmente incontestável: da natureza divina tudo resulta de acordo com uma necessidade absoluta; o que não é efectivo deve ser moralmente impossivel. Não é de forma alguma por ter admitido a existência, em Deus, de uma necessidade inviolável, que o espinosismo falha, mas porque toma tal necessidade de um modo morto e impessoal. Porque este sistema apenas concebe, em geral, uma parte do absoluto - a

saber, a sua parte real, na medida em que Deus apenas age no fundo -, aquelas proposições conduzem somente a uma necessidade cega e privada de entendimento. Mas se Deus é essencialmente amor e bondade, então aquilo que nele é moralmente necessário segue-se também de uma verdadeira necessidade metafisica. Se para a perfeição da liberdade divina se exigisse a capacidade de escolha no sentido verdadeiro do termo, dever-se-ia, nesse caso, ir ainda mais longe. Porque uma perfeita liberdade de escolha somente poderia estar presente se Deus também tivesse podido criar um mundo menos perfeito do que o que era possível, de acordo com todas as condições. Uma vez que não há nada de tão disparatado que não possa alguma vez ter sido apresentado, esta opinião foi, de facto, apresentada por alguns com toda a seriedade e não apenas no sentido do rei Afonso de Castela, cuja conhecida expressão se referia ao sistema ptolomaico, então dominante, ao afirmar que Deus, se quisesse, teria podido criar um mundo melhor do que este. As razões que são apresentadas contra a unidade da possibilidade e da efectividade em Deus são, assim, tiradas de um conceito de pos-

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sibilidade totalmente formal, segundo o qua é POS- 398 sível tudo aquilo que não se contradiz; como, por exemplo, na conhecida objecção segundo a qual todos os romances racionalmente inventados deveriam ser dados reais. 0 próprio Espinosa não possui um tal conceito puramente formal; para ele, qualquer possibilidade apenas fazia sentido por re-

ferência à perfeição divina e Leibniz limitou-se a aproveitar este conceito para afirmar a existência de uma escolha em Deus e, assim, afastar-se o mais possível de Espinosa. «Deus» diz ele, «escolhe entre possibilidades e, por isso, escolhe livremente, sem

necessidade; pois não haveria escolha nem liberdade se uma única coisa fosse possível.» Se é apenas uma tal possibilidade vazia que faz falta para haver liberdade, então poder-se-ia admitir que, de uin ponto de vista formal e sem se considerar a substancialidade (Wesenheit) divina, o infinito foi possível e ainda o é; simplesmente, isto significa querer limitar a liberdade divina por meio de um conceito que é,em si mesmo, falso e que é somente possível no

nosso entendimento, mas não em Deus, que não podemos pensar que se abstrai da sua essência ou das suas perfeições. No que diz respeito à pluralidade de mundos possíveis, parece que, em si mesmo, o que não tem regra (semelhante ao que, segundo a nossa explicação, é o movimento originário do fundo) e a

matéria que não está ainda formada e pode receber todas as formas possíveis, oferecem uma infinidade de possibilidades; mas se, de facto, fosse nisso que devessemos fundamentar a possibilidade de outros mundos, dever-se-ia apenas notar que uma tal POSSibilidade não pode resultar de Deus, uma vez que o fundo não deve ser chamado Deus e Deus, de acordo

com a sua perfeição, apenas pode querer uma única coisa. Simplesmente, aquela ausência de regra também não deve, de forma alguma, ser pensada como se

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no fundo não estivesse contido o arquétipo do único

mundo possivel segundo a essência de Deus, mundo esse que só se elevou de potência a acto na criação efectiva, por meio da separação e da regulação das forças e por exclusão do que não tem regra, que o

inibe e obscurece. Mas no próprio entendimento divino, como sabedoria originária, onde Deus se efectiva idealmente ou sob a forma da imagem originária, há um único mundo possível, tal como

só há um único Deus.399 Há um sistema no entendimento divino, mas Deus

não é nenhum sistema, mas vida, e é aqui que se

encontra a resposta à pergunta em função da qual se avançou tudo isto, relativamente à possibilidade do Mal em relação a Deus. Qualquer existência exige uma condição para se tornar existência efectiva, ou seja, pessoal. Também a existência de Deus não poderia ser pessoal sem uma tal condição, só que Deus tem esta condição em si mesmo e não fora de si mesmo. Deus não pode suprimir a condição, senão teria de se suprimir a si mesmo; pode apenas dominá-la pelo amor e subordiná-la para sua glorificação. Existiria também em Deus um fundo de obscuridade se ele não fizesse sua a condição, se não se unisse a

ela como uma só coisa, para ser uma personalidade absoluta. Em relação ao homem a condição não se

encontra em seu poder, embora seja isso que procura no Mal; ela é qualquer coisa que lhe é apenas concedida, mas que é independente dele; por isso, a sua personalidade e ipseidade nunca se podem elevar a

acto perfeito. Esta é a tristeza inerente a toda a vida finita e se também em Deus existe uma condição independente, pelo menos relativamente, há então nele uma origem da tristeza, que nunca se efectiva, mas que serve apenas a eterna alegria da superação. Daí, o véu de melancolia que se estende por cima de toda a natureza, a profunda e indestrutível melan-

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colia de toda a vida. A alegria deve ter dor, a dor deve ser iluminada pela alegria. Por isso, aquilo que provém da mera condição, ou do fundo, não vem de Deus, embora seja necessário para a sua existência. Mas também não se pode dizer que o Mal vem do fundo, ou que a vontade do fundo seja o seu criador. Porque o Mal só pode continuamente desenvolver-se na vontade mais intima do próprio coração e nunca se realiza sem uma actividade própria. A solicitação do fundo, ou a reacção contra o que supera o estado de criatura, desperta apenas a paixão do que é criatura, ou a vontade própria, mas somente a desperta para que aí apareça um fundo independente do Bem e para ser dominada e penetrada pelo Bem. Porque não é a ipseidade excitada que é emSi 400

mesma o Mal, mas somente o é quando se desprendeu totalmente do seu oposto, a luz ou a vontade universal. Mas é precisamente esta renúncia ao Bem que é, em primeiro lugar, o Mal. A ipseidade activada é necessária ao rigor da vida; sem ela, a morte seria completa, haveria um adormecimento do Bem, pois onde não há luta não há vida. 0 despertar da vida , portanto, é simplesmente a vontade do fundo e não, imediatamente e em si mesmo, o Mal. Se a vontade do homem englobar no amor a ipseidade excitada e a subordinar à luz como vontade universal, resulta daí, somente, o Bem actual, que se tornou sensível, somente, pelo rigor que nele se

encontra. No Bem, portanto, a reacção do fundo é uma acção que se dirige ao Bem, no Mal, uma acção que se dirige ao Mal, tal como dizem as Escrituras: com os piedosos és piedoso, com os impios és impio. Um Bem sem ipseidade efectiva é, ele próprio, um Bem sem efectividade. 0 que, por meio da vontade da criatura, se torna Mal (ao arrancar-se totalmente para ser por si mesmo) é, em si mesmo, o Bem, enquanto for absorvido pelo Bem e nele permanecer.

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Só a ipseidade suprimida, que retrocedeu da actividade à potencialidade, é o Bem, e mantém-se sempre aí, segundo a sua potência, como dominada por ele. Se não existisse nos corpos uma raiz do frio, o calor não se poderia sentir. Pensar uma força atractiva e uma força repulsiva independentes uma da outra, é impossível, pois através de que é que o repulsivo deve agir se o que atraí não constituir um objecto para ele? E através de que é que o atractivo age se não tiver em si mesmo o que repele? Por isso, é de forma absolutamente correcta que se diz que o Bem o e Mal são o mesmo, vistos unicamente de lados diferentes, ou então, que o Mal é, em si mesmo, o Bem, quer dizer, considerado na raiz da sua identidade, tal como o Bem, considerado na sua divisão ou na sua não-identidade, é o Mal. Por este motivo é também totalmente correcta aquela afirmaçã o segundo a qual quem não tem em si mesmo, nem estofo, nem forças, para o Mal, é também incapaz do Bem, do que observamos, nos nossos dias, exemplos401 em número suficiente. As paixões que a nossa moral

negativa combate são forçadas e cada uma delas tem em si uma raiz que é comum à virtude que lhe corresponde. A alma de todo o ódio é amor e na cólera mais violenta mostra-se apenas a tranquilidade atacada e provocada no centro mais intimo. Na medida em que lhes é própria e em equilíbrio orgânico, essas forças são o vigor da própria virtude e o seu instrumento imediato. «Se as paixões são um elemento da desonra» - diz o excelente J. G. Hamann - «deixam, por isso mesmo, de ser as armas da virilidade? Será que percebem com mais inteligência a letra da razão do que aquele tesoureiro alegórico da igreja de Alexandria, que se castrou para merecer o reino dos céus, compreendeu a letra das Escrituras? - 0 príncipe deste Aeon escolheu os seus favoritos entre os que eram piores para si mesmos. - Os seus (do diabo)

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bobos são os mais encarniçados inimigos da bela natureza, que tem certamente Coribantes e gauleses como sacerdotes, mas tem espíritos fortes como verdadeiros adoradores»’. Possam então aqueles cuja filosofia é feita mais para o gineceu do que para a Academia ou para a palestra do Liceu abster-se de apresentar aquelas proposições dialécticas diante de um público que, não as compreendendo, tal como

não se compreende a si próprio, vê nelas uma supressão de toda a diferença entre o certo e o errado, o Bem e o Mal e para o qual elas são tão pouco feitas como, de facto, as proposições dos antigos dialécticos (de Zenão e dos outros eleatas) o são para os belos espíritos superficiais.

A excitação da vontade própria acontece somente para que no homem o amor encontre urna matéria ou uma oposição, para que se possa aí efectivar. Na medida em que a ipseidade é , na sua separação, o princípio do Mal, o fundo excita, sem dúvida, o princípio possível do Mal, mas não o próprio Mal, nem em direcção a ele. Mas esta excitação também não acontece segundo a livre vontade de Deus que, no fundo, não se movimenta de acordo com ela ou com o seu coração, mas apenas segundo as suas propriedades.

Por isso, quem afirmasse que o próprio Deus teria querido o Mal, deveria procurar a razão desta afirmação na actividade da auto-revelação como criação, tal como outrora muitas vezes pensaram 402

aqueles que afirmaram que aquele que quis o mundo também deve ter querido o Mal. Simplesmente, porque Deus deu ordem à desordem originária do caos e exprimiu na natureza a sua unidade eterna, agiu, antes, em sentido contrário à obscuridade e opôs

Kleeblatt hellenístischer Briefe, II, p. 196. 401

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ao movimento sem regra do princípio privado de entendimento, o Verbo, como centro permanente e

eterna luz. Portanto, a vontade de criação era apenas, imediatamente, uma vontade de fazer nascer a luz e, com ela, o Bem; mas, nesta vontade, o Mal não entra em consideração, nem como meio, nem sequer,403 como Leibniz afirma, como conditio sine qua non da

mais alta perfeição possível do mundo. Ele não foi, nem objecto de um decreto divino, nem, muito menos, de um consentimento. Mas a questão de saber por que motivo Deus, dado que necessariamente prevê que o Mal se seguiria da auto-revelação (pelo menos sob a forma de acompanhante), não preferiu em geral não se revelar, não necessita sequer de resposta. Pois isto seria o mesmo que dizer que, para não haver um oposto do amor, o amor não deveria existir, quer dizer, o absolutamente positivo deve sacrificar-se àquilo que só tem uma existência como oposto, e o eterno, ao meramente temporal. Já explicámos qual o motivo porque a auto-revelação em Deus deve ser considerada, não como incondicionalmente arbitrária, mas como uma actividade moralmente necessária, na qual o amor e a bondade ultrapassam (überwunden) a absoluta interioridade. Portanto, se Deus, por causa do Mal, não se revelasse, o Mal teria triunfado sobre o Bem e sobre o amor. 0 conceito leibniziano de Mal como conditio Sine qua non pode apenas ser empregue em relação ao fundo, na medida em que este excita a vontade de criatura - o princípio possível do Mal - como condição sob a qual, somente, a vontade do amor pode ser activada. Do mesmo modo, já indicámos por que motivo Deus nã o combate ou não suprime a vontade do fundo. Isto seria como se Deus suprimisse as condições da sua existência, quer dizer, a sua própria personalidade. Portanto, para que o Mal não existisse, Deus deveria não existir.

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Uma outra objecção, que não diz simplesmente respeito a esta perspectiva, mas a qualquer metafisica, é a seguinte: mesmo que Deus não tenha querido o Mal, continuou, no entanto, a agir no pecador e deu-lhe força para realizar o mal. Isto pode ser totalmente admitido, com as distinções necessárias. 0 fundo originário da existência também con-

tinua a agir no Mal, tal corno na doença a saúde ainda se encontra em acção e também a vida mais desorganizada e falseada ainda permanece e se move em Deus, na medida em que Deus é o fundo da existência. Mas ela sente o Mal como ira destruidora e é posta, pela atracção do próprio fundo, em oposição cada vez maior com a unidade, até à auto-negação e

à crise final.

Depois de tudo isto permanece ainda a questão de saber se o Mal acaba e como acaba. Terá a criação, em geral, uma finalidade? E se tem, porque é que ela não é imediatamente acessível e porque é que o perfeito não existe logo desde o início? Para isto, não há nenhuma resposta senão a que já foi dada: porque Deus é uma vida e não meramente um ser. Mas toda a vida tem uni destino e está submetida ao sofrimento e ao devir. Portanto, Deus também está certamente sujeito a isto, dado que, para se tornar pessoa, cindiu o mundo da luz e o mundo das trevas.0 Ser só se torna sensível a si mesmo no devir. Sem dúvida que no Ser não há nenhum devir; mas neste, pelo contrário, ele próprio é posto de novo como eternidade. Ora, na efectivação através de um oposto há necessariamente um devir. Sem o conceito de um Deus humano e sofredor, que é comum a todos os mistérios e religiões espirituais da antiguidade, toda a história permanece incompreensível; as Escrituras 404 também distinguem períodos da revelação e colocam num futuro longíquo o tempo em que Deus será tudo em todos, quer dizer, em que ele se efectivará plena~

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mente. 0 primeiro periodo da criação, como já foi indicado, é o nascimento da luz. A luz, ou princípio ideal, é (como eterno contrário do princípio obscuro) o Verbo criador, que liberta do não-ser a vida oculta no fundo e eleva-a de potência a acto. Acima do Verbo abre-se o espírito e o espirito é a primeira essência que une o mundo das trevas e o mundo da luz e subordina ambos os princípios para se efectivar e tornar pessoa. Todavia, o fundo reage a esta unidade e afirma a dualidade originária, mas apenas para a intensificar cada vez mais e para a separação final do Bem e do Mal. A vontade do fundo deve permanecer livre, até que tudo esteja realizado e

se tenha tornado efectivo. Se ela se tivesse submetido mais cedo, o Bem teria permanecido escondido nela, juntamente com o Mal. Mas o Bem deve ser elevado à actualidade a partir da obscuridade, para viver eternamente com Deus; mas o Mal deve ser separado do Bem, para ser eternamente repudiado no não-ser. Porque o objectivo final da criação é que aquilo que não pode ser por si mesmo, na medida em que é elevado à existência, venha a ser por si mesmo, a partir da obscuridade, como de um fundo independente de Deus. Deus abandona as ideias, que nele se encontram sem uma vida autónoma, à ipseidade e ao não-ser, para que, chamadas à vida a partir deste útlimo, a ele regressem como existentes independentes’. 0 fundo produz a cisão e a decisão (Kpt'atç) em inteira liberdade e, precisamente desse modo, a perfeita actualização de Deus. Por isso o Mal, quando está totalmente separado do Bem, também já não existe mais como Mal. Ele só pode agir através do Bem (mal utilizado), que se encontrava nele inconsciente para si mesmo, Na vida, gozava

404 1 Philosophie und Religion, Tübingen, 1804, p. 73. Werke, Bd. IV,

p. 63.

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ainda das forças da natureza exterior, com as quais procurava criar, e participava ainda, indirectamen~ te, da bondade divina. Mas na morte separou-se de todo o Bem e subsiste, de facto, como desejo, como fome eterna e aspiração à efectividade, mas sem poder sair do estado de potência. 0 seu estado é, por isso, um estado de não-ser, um estado de permanente definhamento da actividade, ou daquilo que nele luta por ser activo. Por isso, também não é de modo algum necessário, para a realização da ideia de uma perfeição finita universal, um restabelecimento do Mal em Bem (a restituição de todas as coisas); pois o Mal somente é mau na medida em que excede a potencialidade, mas, reduzido ao não-ser, ao estado de potência, é aquilo que sempre deveria ser: base, sujeição e, enquanto tal, não mais se encontrando em contradição com a santidade e com o amor de Deus. Assim, a finalidade da revelação é expulsar o Mal do Bem e explicá-lo como total irrealidade. Em compensação, o Bem que se eleva acima do fundamento liga-se ao Bem originário, tendo em vista a unidade eterna; os que nasceram da obscuridade para a luz ligam-se ao princípio ideal como membros do seu corpo, no qual cada um se actualiza completamente e é agora uma essencia totalmente pessoal. Enquanto durava a dualidade originária, o Verbo criador exercia o seu poder no fundo e este período da criação atravessa todos os outros períodos até ao fim. Mas quando a dualidade é aniquilada pela cisão, o Verbo, ou principio ideal, subordina-se ao espírito e subordina-lhe, ao mesmo tempo, o real que se tornou um consigo e este, como consciência divina, vive da mesma forma nos dois principios. Como as Escrituras dizem de Cristo: deve dominar até que tenha todos os seus inimigos sob os seus pés.0 último inimigo que deve ser suprimido é a morte (porque a morte somente era necessária para a ci-

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são; o Bem deve morrer para se separar do Mal e o Mal para se separar do Bem). Mas quando tudo lhe estiver subordinado, então também o Filho estará subordinado àquele que tudo lhe subordinou, para que Deus seja tudo em todos. Porque o espírito ainda não é, também, o mais elevado; é somente espírito, ou seja, sopro do amor. Mas o mais elevado é o406 amor. Ele é o que já existia antes do fundo e antes do

existente (como separados) existirem, mas não existia ainda como amor, mas como... Como é que o deveremos chamar?

Encontramos aqui o ponto mais elevado de toda a investigação. Desde há muito que ouviamos a seguinte questão: para que deve então servir aquela primeira distinção entre a essência enquanto fundo e a essencia enquanto existente? Porque, ou não há para ambos nenhum centro que seja comum e então devemos declarar-nos a favor do dualismo absoluto; ou então há e, deste último ponto de vista, voltam ambos a identificar-se. Temos, assim, uma única essencia para todos os opostos, uma identidade absoluta de luz e obscuridade, Bem e Mal e todas as consequências disparatadas em que deve cair qualquer sistema da razão e que também já foram, desde já muito, apresentadas pelo nosso.

Já explicámos aquilo que aceitamos no primeiro termo da alternativa: deve haver uma essência antes de qualquer fundo e antes de qualquer existente, portanto, em geral, antes de qualquer dualidade; como poderemos designá-la, senão como fundo originário, ou melhor, como não-fundo (Ungrund)? Pelo facto de preceder todos os contrários, estes não se podem distinguir dela, nem estar presentes seja de que forma for. Não pode ser indicada como identidade, mas apenas como absoluta indiferença. A maioria das pessoas, quando chegam ao momento em que devem reconhecer um desaparecimento dos

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opostos, esquecem que eles, agora, desapareceram realmente e predicam-nos novamente, enquanto tais, da indiferença que, todavia, lhes aparecera Justamente através da total supressão deles. A indiferença não é um produto dos opostos, nem eles estão contidos nela implicite, mas é uma essência própria distinta de todos os opostos, na qual todos eles se quebram; ela não é senão, precisamente, o não-ser deles, e, por isso, não tem nenhum predicado senão a impredicabilidade, sem ser, devido a isso, um nada ou uma não-coisa (Unding). Portanto, ou colocam a indiferença, efectivamente, no não-fundo que precede todo o fundo e então ela nã o é boa nem má - o facto de ser, em geral, inadmissível, elevar a oposição entre Bem e Mal até este ponto de vista, deixa- 407

mo-lo, por enquanto, em suspenso - e não podem predicar dela, nem uma coisa, nem a outra, nem ambas ao mesmo tempo; ou então, põem o Bem e o Mal e, desta forma, põem ao mesmo tempo a dualidade e já não o não-fundo ou a indiferença. Para explicar esta última afirmação, diga-se o seguinte: o real ou o ideal, a obscuridade ou a luz, ou como queiramos designar ambos os princípios, nunca podem, enquanto opostos, ser atribuídos, como predicados, ao não-fundo. Mas nada impede que sejam predicados dele como não-opostos, quer dizer, em disjunção e cada um por si mesmo, com o que, justamente, é posta a dualidade (a duplicidade efectiva dos princípios). No próprio não-fundo não há nada que impeça isto. Porque, na medida em que se relaciona com os dois como total indiferença, é indiferente em relação aos dois. Se fosse a identidade absoluta de ambos, só poderia ser os dois ao mesmo tempo, quer dizer, ambos deveriam ser-lhe atribuídos como opostos e, assim, voltariam a ser, eles próprios, de novo, um só. Do «nem... nem ... » ou da indiferença irrompe imediatamente a dualidade

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(que é uma coisa totalmente diferente da oposição, mesmo se, até ao momento, tivemos de utilizar ambos os termos como se tivessem o mesmo significado, dado que ainda não tínhamos chegado a este ponto da investigação) e sem indiferença, quer dizer, sem um não-fundo, não haveria nenhuma dualidade dos princípios. Portanto, em vez de isto voltar a suprimír a diferenciação, como se pensou, põe-na e afirma-a. A distinção entre o fundo e o existente, longe de ser puramente lógica, ou de ser invocada simplesmente como auxiliar para, no fim, ser reconhecida como imprópria, mostra-se, pelo contrário, como uma distinção muito real, que somente a partir do ponto de vista mais elevado pode ser correctamente comprovada e plenamente compreendida.

Depois desta discussão dialéctica, podemos explicar-nos, de modo totalmente determinado, da maneira seguinte: a essência do fundo, tal como a do existente, só pode ser aquilo que precede qualquer408 fundo, portanto, o Absoluto puramente considerado,

o não-fundo. Este, como já foi demonstrado não poder ser senão na medida em que se separa em dois começ os eternos idênticos; não que ele seja os dois simultaneamente, mas na medida em que está, em cada um deles, da mesma forma, como todo ou essência própria. Mas o não-fundo só se cinde em dois começos igualmente eternos para que os dois (que nele, como não-fundo, não podem existir simultaneamente ou como um só) se tornem num só através do amor, quer dizer, cinde-se somente para que a vida e o amor sejam e surjam como existência pessoal. Porque o amor não existe nem na Indiferença nem onde os opostos, porque necessitam de unificação para ser, estão unidos, mas - para repetir uma expressão que já foi utilizada - e é este o mistério do amor, ele une aquele que poderia existir por si mesmo e que todavia não existe, nem pode existir, sem o

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outro’. Daí que, logo que a dualidade tenha aparecido no não-fundo, apareça também o amor, que liga o existente (ideal) com o fundo da existência. Mas o fundo permanece livre e independente do Verbo, até à cisão final e total. Em seguida desfaz-se, tal como no homem (quando transita para a claridade e se funda a si próprio como essência permanente) se dissolve a nostalgia originária, enquanto todo o verdadeiro e o bom que nela existe é elevado à consciência luminosa; mas tudo o resto, a saber, o falso

e o impuro, é encerrado eternamente na obscuridade, para que, como fundo eternamente obscuro da ipseidade, retroceda como caput mort~ de um processo vital e como potência que nunca pode passar a acto. Entã o, tudo será submetido ao espírito. No espírito, o existente e o fundo da existência são um só; nele, os dois existem efectivamente ao mesmo tempo, ele é a identidade absoluta de ambos. Mas acima do espírito está o não-fundo originário, que já não é mais indifèrenç@,@ e, todavia, não é identidade absoluta dos dois princípios, mas unidade universal, idêntica a tudo e, no entanto, não concebida por nada, quer dizer, um bem-fazer que é livre em relação a tudo e que, portanto, tudo atravessa pelo seu agir: numa palavra, o amor, que é tudo em todos.

Portanto, quem, como há pouco, quisesse dizer: 409 neste sistema há um princípio para tudo, é uma e a mesma essência que domina no fundo obscuro da natureza e na eterna claridade; é uma e a mesma essência que efectua a dureza e a segmentação das coisas, bem como a unidade e a doçura; é o mesmo que, no Bem, domina com a vontade do amor e no Mal com a vontade da cólera; quem quisesse dizer

‘ Aphorismen liber die Naturphilosophie, in Jahrbachern der Me- 408 dicin als Wissenschaft, Vol. IQ, Fasc. 1% Aforismo, 162 e 163.

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isto e mesmo que dissesse tudo o resto correctamente, teria de não esquecer o seguinte: que essa essência ú nica, nos seus modos de agir, cinde-se a si mesma, efectivamente, em duas essências, na medida em que numa só é mero fundo da existência, na outra é mera essencia (e, por isso, é somente ideal); além disso, não deveria esquecer que apenas Deus como espírito é a identidade absoluta dos dois princípios, mas só o é porque, enquanto e na medida em que ambos se encontram subordinados à sua personalidade. Mas quem encontrasse uma absoluta identidade do Bem e do Mal no ponto de vista superior que constitui esta perspectiva, demonstraria a sua total ignorância, na medida em que o Mal e o Bem de modo nenhum configuram uma oposiçã o originária e muito menos uma dualidade. Há dualidade onde duas essencias se opõem efectivamente. 0 Mal, porem, não e uma essencia, mas uma nao-essencia, que só em oposição se torna uma realidade, não em

si mesmo. Também, justamente, a identidade absoluta, o espírito do amor, é anterior ao Mal, pois este somente em oposição a ele se pode manifestar. Por isso, também não pode ser concebido a partir da identidade absoluta, mas está, de toda a eternidade, fechado a ela e excluído dela’.

Por isso, quem, finalmente, queira chamar panteísmo a este sistema, porque, por referência com o absoluto puramente considerado, todas as oposições se desvanecem, que tal lhe seja igualmente410 permitido 2. Deixamos a cada um, de boa vontade, o

409 1 Resulta daqui que é espantoso que se exija que a oposição do Bem

e do Mal seja também explicada a partir dos primeiros princípios. Só pode falar assim, certamente, quem tem o Bem e o Mal por uma dualidade efectiva e o dualismo por um sistema perfeito.

2 Ninguém mais do que o autor pode juntar a sua voz ao desejo, expresso pelo Sr. Fr. SchIegel, no Heidelb. Jahrb., Fasc. 29, p. 242, de que possa acabar, na Alemanha, a efeminada vertigem panteísta,

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modo de compreender o tempo e o que está nele. 0 nome nada faz, porque não diz respeito à própria coisa. A vaidade de uma polémica travada com conceitos gerais de um sistema filosófico, contra um sistema determinado que pode perfeitamente ter com ele muitos pontos de contacto e que, por isso, já foi confundido também com todos eles, mas que tem as suas determinações peculiares em cada ponto singular, uma tal vaidade já a encontramos na íntrodução a este tratado. Poderia, por isso, dizer-se apressadamente que um sistema ensina a imanência das coisas em Deus e todavia, com isso, nada se teria dito, por exemplo, em relação a nós, mesmo que isso não se possa considerar totalmente falso. Pois mostrámos suficientemente que todos os seres naturais

tanto mais que o Sr. Sclilegel lhe acrescentou o devaneio estético e a 410 imaginação, e na medida em que, ao mesmo tempo, devemos atribuir àquela moda a opinião da racionalidade exclusiva do espinosismo. Na Alemanha, onde um sistema filosófico se torna objecto da indústria literária e onde muitos, para os quais a própria natureza negou a compreensão dos assuntos quotidianos, acreditam ter sido chamados a ocupar-se de filosofia, é muito fácil excitar uma falsa opinião, ou até mesmo uma extravagância. Pelo menos, pode tranquilizar-nos a consciência o facto de nunca a termos pessoalmente favorecido ou despertado por meio de uma ajuda própria e de poder dizer com Erasmo (por pouco que, por outro lado, se possa ter em comum com ele): semper solus esse volui nihilque pejus odi quam juratos et factiosos. 0 autor nunca quis retirar a ninguém e muito menos a si mesmo, com a fundação de uma seita, a liberdade de investigação, na qual sempre se explicou e sempre se continuará a explicar. Ele quer permanecer, de futuro, no movimento que seguiu no presente tratado, onde, apesar de faltar a forma exterior do diálogo, tudo se desenvolve como se fosse dessa forma. Muitos assuntos poderiam ser definidos aqui com mais rigor e tomados com menor negligência, ou muito mais expressamente preservados de má interpretação. 0 autor deixou-os, em parte intencionalmente, ficar assim. Quem assim dele os não quiser ou puder tomar, que nada tome dele e procure outras fontes. Mas, talvez, por parte dos seguidores sem autoridade e dos opositores, seja dada a

mesma atenção que deram ao escrito anterior e aparentado, Filosofia e Religião, ao ignorá-lo completamente, para o que os primeiros foram movidos menos, certamente, pelas palavras de ameaça do prefácio, ou pelo modo de exposição, do que pelo conteúdo.

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possuem um mero ser no fundo ou na nostalgia originária, que ainda não atingiu a unidade com o entendimento, de modo que, em relação a Deus, são411 meras essências periféricas. Só o homem está em

Deus e é justamente através deste estar-em Deus que é capaz de liberdade. Somente ele é uma essência central e, por isso, deve também permanecer no centro. Nele, todas as coisas são concebidas, tal como também é somente através do homem que Deus recebe a natureza e se liga a si mesmo. A natureza é o primeiro ou antigo testamento, porque as coisas estão ainda fora do centro e, por isso, submetidas à lei. 0 homem é o começo da nova aliança e é por seu intermédio, como mediador - dado que ele próprio está unido a Deus - que também Deus (após a última cisão) toma a natureza e se apropria dela. 0 homem é, portanto, o redentor da natureza e para ele apontam todas as suas pré-figurações. 0 Verbo que se realiza no homem está na natureza como Verbo obscuro e profético (ainda não totalmente expresso). Daí os presságios que, nela mesma, não recebem qualquer explicação e que são explicados unicamente através do homem. Daí a finalidade universal das causas, que somente deste ponto de vista se torna compreensível. Agora, quem omitir ou deixar escapar estas determinações mediadoras, facilmente nos poderá refutar. Isto é, de facto, uma questão muito cómoda para uma mera critica histórica. Não é preciso acrescentar a isso nada que venha do nosso próprio poder e podemos observar perfeitamente o Caute, per Deos! incede, latet ignis sub cinere doloso. Mas aí, são inevitáveis pressupostos arbitrários e não provados. Assim, para demonstrar que há apenas dois modos de demonstrar o Mal- o dualista, de acordo com o qual se aceita um fundo-essencial mau, não importa com que modificações, sob ou ao lado da essência boa, e o cabalista,

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segundo o qual o Mal se explica por emanação e afastamento - e que, por esse motivo, qualquer sistema deveria suprimir a distinção entre o Bem e o Mal, para o demonstrar, diziamos, seria necessário nada menos que todo o poder de uma filosofia profundamente meditada e fundamentadamente constituida. No sistema, cada conceito tem um determinado lugar, no qual, somente, tem validade e que determina tanto o seu sentido como o seu limite. Mas quem não penetra até ao intimo e extrai do conjunto apenas os conceitos gerais, como poderá avaliar correctamente o todo? Por isso, mostrámos aquele ponto determinado do sistema onde o concei- 412

to de indiferença é, sem dúvida, o único conceito possível do absoluto. Se agora for tomado universalmente, o todo ficará desfigurado e daqui resultará que este sistema também suprime a personalidade (Personalitãt) do ser supremo. Até agora calámo-nos acerca desta censura, muitas vezes escutada, tal como acerca de muitas outras, mas pensamos ter exposto, neste tratado, o primeiro conceito compreensível desta personalidade. Sem dúvida que no não-fundo ou indiferença não há nenhuma personalidade (Persdnlichkeit); mas será que então o ponto de partida é o todo? Agora, exigimos que aqueles que fizeram esta censura com tanta ligeireza nos forneçam, em contrapartida, de acordo com a sua perspectiva, a mais pequena coisa que seja compreensível acerca deste conceito. Acima de tudo, pensamos que tomam a personalidade de Deus por qualquer coisa de inconcebível e de forma alguma possível de se compreender, no que procedem correc-

tamente, na medida em que consideram que aqueles sistemas abstractos, em que a personalidade é, em geral, impossivel, são os únicos que estão de acordo com a razão, sendo este presumivelmente o motivo porque atribuem a mesma racionalidade aos que

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desprezam a ciência e a razão. Nós, pelo contrário, somos de opinião que deve ser possível uma clara perspectiva racional acerca dos conceitos mais elevados, na medida em que só assim eles podem efectivamente ser nossos, ser aceites por nós e ser eternamente fundamentados. De facto, vamos ainda mais longe e consideramos, com Lessing, ser absolutamente necessária a elaboração das verdades sob a

forma de verdades racionais, se isso for de algum auxílio para a espécie humana’. Estamos igualmente convencidos que para verificar cada possível erro (em assuntos propriamente espirituais) a razão é perfeitamente suficiente e que para avaliar os sistemas filosóficos são totalmente de afastar os semblantes inquisitoriais’. Transportado para a história, um dualismo absoluto entre o Bem e o Mal, de acordo com o qual em todos os fenômenos e obras, ou um ou o outro princípio domina o espirito humano e segundo o qual há apenas dois siste-413 mas ou duas religiões, uma absolutamente boa e

outra absolutamente má; e mais ainda, a opinião de que tudo começou pelo puro e sem mácula e todos os desenvolvimentos posteriores (que foram, de facto, necessários para revelar perfeitamente os aspectos parciais contidos na primeira unidade e, através deles, a própria unidade) foram corrupção e falsificação; toda esta perspectiva serve, de facto, na crítica, como uma poderosa espada de Alexandre para, acima de tudo, cortar sem fadiga o nó górdio, mas introduz na história um ponto de vista totalmente não liberal e altamente limitador. Houve um tempo que precedeu aquela separação e uma

412 1 Erziehung des Menschengesclechtes, § 76.

2 Em particular quando, no outro lado, se quer falar somente de perspectivas, onde se deveria falar das únicas verdade que trazem a salvação (allenseligmachenden).

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visão do mundo e uma religião que, embora se opusessem à visão do mundo e à religião absolutas, re-

sultaram todavia de um fundamento próprio e não de um falsificação delas. 0 domínio do sagrado, de um ponto de vista histórico, é tão originário como o cristianismo e, contudo, embora seja somente o fundo e a base de algo mais elevado, não deriva de nenhuma outra coisa.

Estas considerações reconduzem-nos ao nosso ponto de partida. Um sistema que contradiz o sentimento do divino, a alma (gemüth) e a consciência moral, não pode, pelo menos a este título, ser chamado um sistema da razão, mas da não-razão. Pelo contrário, um sistema em que a razão se conhecesse efectivamente a si mesma, deveria unificar as exigências do espírito e do coração, do sentimento moral e do entendimento mais rigoroso. A polémica contra a razão e a ciência permite, de facto, uma

certa generalidade superior, que contorna os conceitos rigorosos, de tal modo que podemos descobrir mais facilmente a sua intenção do que o seu sentido determinado. Entretanto, receamos não deparar com nada de extraordinário, mesmo se também lhe encontramos um fundamento. Porque, por mais alto que coloquem a razão, não acreditamos que alguém, por exemplo, possa ser virtuoso, ou herói, ou em geral um grande homem, devido à pura razão; e

nem sequer que, segundo a expressão corrente, o gênero humano se perpetue através dela. Mas é somente o entendimento que dá forma ao que está 414

oculto neste fundo e nele contido como mera potencialidade, e o eleva a acto. Isto só pode acontecer por meio de uma cisão, portanto, através da ciência e da dialéctica, acerca das quais estamos persuadidos que serã o somente as únicas a fixar e trazer ao conhecimento, do ponto de vista da eternidade, aquele sistema que já esteve diante de nós mais ve-

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zes do que se pensa, mas que sempre nos escapou, e que já foi por todos pensado, mas não foi ainda concebido por ninguém. Tal como na vida só confiamos verdadeiramente num entendimento poderoso e, sobretudo naqueles que expõem sempre o seu sentimento, sentimos a falta de verdadeira delicadeza, também, onde se trata da verdade e do conhecimento, a ipseidade que não ultrapassa o sentimento não nos merece nenhuma confiança. 0 sentimento é poderoso quando permanece no fundo, mas não quando aparece à luz do dia, se transforma num ser e quer dominar. Mesmo que, de acordo com a excelente observação de Franz Baader, a pulsão do conhecimento tenha a maior analogia com o instinto de reprodução’, há também no conhecimento qualquer coisa de análogo à decência e ao pudor e também, em oposição a isso, à falta de decência e de pudor, uma espécie de prazer fáunico, que nos impele para tudo sem a seriedade ou o desejo de construir ou configurar qualquer coisa. 0 vínculo que unífica a nossa personalidade é o amor e se somente a ligação produtiva de ambos os principios pode ser criadora e produtora, então, é o entusiasmo no sentido próprio do termo que é o principio activo daquela arte ou ciência que cria e produz. Cada entusiasmo exterioriza-se de uma determinada forma; e assim, há um entusiasmo propriamente cientifico. Por isso, há também, uma filosofia dialéctíca que, como ciência, está separada, por exemplo, da poesia e da religião e, sendo por si mesma algo de totalmente consistente, não é idêntica a todas as outras possíveis na série, como o afirmam aqueles que, nos nossos dias, se esforçam, em tantos escritos, em

414 ‘ Ver o estudo supra-citado, in Jahrbuchern fúr Medicin, Bd. IIII,

Fase. V1, p. 113.

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misturar tudo com tudo. Diz-se que a reflexão é inimiga da ideia; mas é sem dúvida o supremo triunfo da verdade o facto de ela se apresentar, todavia, plenamente vitoriosa a partir da mais elevada cisão e separação. A razão é, no homem, aquilo que, se- 415 gundo os místicos, é o Primum, passivum em Deus, ou sabedoria originária, na qual todas as coisas estão unidas e, no entanto, separadas, são uma só e, todavia, cada uma delas é a seu modo livre. Ela não é actividade, como o espírito, não é identidade absoluta de ambos os principlos do conhecimento, mas indiferença; é a medida e, ao mesmo tempo, o lugar universal da verdade, o lugar tranquilo onde a sabedoria originária é concebida, de acordo com a qual o entendimento, considerando-a como modelo, deve construir. A filosofia, por um lado, recebe o seu nome do amor, corno princípio universal do entusiasmo, por outro, desta sabedoria, que é nela o fim autêntico.

Quando é retirado à filosofia o princípio dialéctico, quer dizer, o entendimento que cinde, mas que, por isso, ordena e configura organicamente e, ao

mesmo tempo, o modelo a que esse entendimento se dirige, de tal forma que, em si mesma, não tem medida nem regra, então não lhe resta outra coisa senão procurar orientar-se historicamente e tomar como origem e exemplo a tradição, para a qual já fora anteriormente remetida com um resultado idêntico. Veio o tempo de procurar para a filosofia uma norma e uma base históricas, tal como, entre nós, se procurou fundamentar a poesia através do conhecimento dos poetas das outras nações. Temos o maior respeito pelo sentido profundo da investigação histórica e pensamos ter mostrado que não compartilhamos a opinião quase universalmente aceite de que o homem só gradualmente se distanciou da apatia dos instintos animais em direcção à razão. Pen-

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samos, no entanto, que é de nós que a verdade está mais perto e que, em relação aos problemas que se colocam no nosso tempo, deve-se procurar a solução, em primeiro lugar, em nós próprios e a partir do nosso próprio solo, antes de caminharmos à procura de fontes tão afastadas. Passou o tempo de uma fé meramente histó rica, quando é dada a possibilidade de um conhecimento imediato. Possulmos uma revelação mais antiga do que a revelação escrita, a saber, a natureza. Esta contém modelos que ainda nenhum homem interpretou, enquanto os da revelaçao escrita há muito tiveram a sua explicação e interpretação. 0 único e verdadeiro sistema de reli-416 gião e de ciência, se estivesse aberta a compreensão

daquela revelação não escrita, apareceria não no estado indiferente de reunião de alguns conceitos filosóficos e críticos, mas, ao mesmo tempo, no pleno esplendor da verdade e da natureza. Não é a altura de despertar novamente antigas oposições, mas de procurar o que repousa (das Liegende) fora e acima de todas as oposições.

0 presente tratado será seguido por uma série de outros, nos quais a totalidade da parte ideal da filosofia será exposta progressivamente.

FIM

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ÍNDICE

Prefcício do Tradutor .......................................... .. .............9

Indicaçdô Bibliogrdfica ..................................................... 29

Nota Prévia.

Investigação Filosófica sobre a Essência

da Liberdade Humana .........................

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Impresso por FLO - MAFRA

para Edições 70, LDA.

Janeiro 1993