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As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro Osório Sergei Soares Mário Theodoro (org.)

IPEA_As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição

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  • As polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anosaps a abolio

    As polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil

    120 anos aps a abolio

    Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro Osrio Sergei Soares

    Mrio Theodoro (org.)

    Supernova DesignCliente: UnifemPea: CAPA livro Desigualdades raciais, racismo e polticas pblicas 120 anos aps a abolio

    lombada12 mm

    lombada12 mm

    Podemos apenas entender o presente se constantemente nos referimos e estudamos o passado.(Du Bois)

    muito bem-vindo o conjunto de textos trazido ao lume pelo Ipea, cuja contribuio no campo de estudo das relaes raciais no Brasil inconteste, como teremos a oportunidade de avaliar.

    Esta coletnea de artigos nos permite avanar nos meandros multifacetados das relaes raciais no Brasil. No bojo das aluses aos 120 anos ps-abolio da escravatura, os textos aqui presentes tratam das desigualdades raciais, do racismo e da implementao de polticas pblicas de promoo da igualdade racial, oferecendo uma compreenso do tema a partir de uma perspectiva dialtica da histria. Desvelam a relao entre a questo racial, a transio do escravismo para o trabalho livre, e o mercado atual de trabalho, a precariedade, a informalidade, o subemprego.

    Nessa trajetria, ao analisar as distintas abordagens a que o tema esteve afeito ao longo da formao da sociedade brasileira, os autores discutem as bases e pressupostos do pensamento racista, a partir de uma leitura analtica de diferentes correntes, agrupando-as em aproximaes pautadas na nfase explicativa dada, seja por se considerar o branqueamento na explicao da

    mobilidade social; a relevncia do preconceito na anlise das relaes sociais; ou o entendimento da questo racial baseado nas evidncias empricas.

    A coletnea nos permite, ainda, alar vos outros, quando aborda a trajetria da desigualdade racial ao analisar os dados produzidos pela srie PNAD/IBGE, bem como quando apresenta concluses importantes sobre a evoluo e crescimento da populao negra. Assim, impele-nos a refletir sobre o papel desempenhado pelo Movimento Negro, nesse contexto, atuando por meio de estratgias vrias, como a implementada em 1990 na campanha No deixe sua cor passar em branco.

    O interesse na leitura no se limita ao decorrido, extrapola-o, como pode ser reconhecido pelo esforo analtico empenhado ao tratar dos desafios para o estabelecimento de polticas pblicas de promoo da igualdade racial. Sem se restringir esfera governamental, mas reconhecendo a primazia do Estado e seu papel, ainda incipiente no enfrentamento das desigualdades raciais.

    Trata-se de um convite para que nos debrucemos sobre as entranhas do Brasil, pois conforme nos ensina Graciliano Ramos, quando assumimos voluntariamente o que nos condiciona, transformamos estreiteza em profundidade.

    Maria Ins da Silva BarbosaCoordenadora Executiva de ProgramaUnifem Brasil e Cone Sul

  • Podemos apenas entender o presente se constantemente nos referimos e estudamos o passado.(Du Bois)

    muito bem-vindo o conjunto de textos trazido ao lume pelo Ipea, cuja contribuio no campo de estudo das relaes raciais no Brasil inconteste, como teremos a oportunidade de avaliar.

    Esta coletnea de artigos nos permite avanar nos meandros multifacetados das relaes raciais no Brasil. No bojo das aluses aos 120 anos ps-abolio da escravatura, os textos aqui presentes tratam das desigualdades raciais, do racismo e da implementao de polticas pblicas de promoo da igualdade racial, oferecendo uma compreenso do tema a partir de uma perspectiva dialtica da histria. Desvelam a relao entre a questo racial, a transio do escravismo para o trabalho livre, e o mercado atual de trabalho, a precariedade, a informalidade, o subemprego.

    Nessa trajetria, ao analisar as distintas abordagens a que o tema esteve afeito ao longo da formao da sociedade brasileira, os autores discutem as bases e pressupostos do pensamento racista, a partir de uma leitura analtica de diferentes correntes, agrupando-as em aproximaes pautadas na nfase explicativa dada, seja por se considerar o branqueamento na explicao da

    mobilidade social; a relevncia do preconceito na anlise das relaes sociais; ou o entendimento da questo racial baseado nas evidncias empricas.

    A coletnea nos permite, ainda, alar vos outros, quando aborda a trajetria da desigualdade racial ao analisar os dados produzidos pela srie PNAD/IBGE, bem como quando apresenta concluses importantes sobre a evoluo e crescimento da populao negra. Assim, impele-nos a refletir sobre o papel desempenhado pelo Movimento Negro, nesse contexto, atuando por meio de estratgias vrias, como a implementada em 1990 na campanha No deixe sua cor passar em branco.

    O interesse na leitura no se limita ao decorrido, extrapola-o, como pode ser reconhecido pelo esforo analtico empenhado ao tratar dos desafios para o estabelecimento de polticas pblicas de promoo da igualdade racial. Sem se restringir esfera governamental, mas reconhecendo a primazia do Estado e seu papel, ainda incipiente no enfrentamento das desigualdades raciais.

    Trata-se de um convite para que nos debrucemos sobre as entranhas do Brasil, pois conforme nos ensina Graciliano Ramos, quando assumimos voluntariamente o que nos condiciona, transformamos estreiteza em profundidade.

    Maria Ins da Silva BarbosaCoordenadora Executiva de ProgramaUnifem Brasil e Cone Sul

  • 1a edio

    Novembro de 2008

    As polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anosaps a abolio

    Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro Osrio Sergei Soares

    Mrio Theodoro (org.)

  • Governo Federal

    Ministro de Estado Extraordinriode Assuntos Estratgicos Roberto Mangabeira Unger

    Secretaria de Assuntos Estratgicos

    Fundao pblica vinculada Secretaria de Assuntos Estratgicos, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e de programas de desenvolvimento brasileiro e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteMarcio Pochmann

    DiretoriaFernando FerreiraJoo SicsJorge Abraho de CastroLiana Maria de Frota CarleialMrcio Wohlers de AlmeidaMrio Lisboa Theodoro

    Chefe de GabinetePersio Marco Antonio Davison

    Assessor-Chefe de ComunicaoEstanislau Maria de Freitas Jnior

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    URL: http://www.ipea.gov.br

  • 1a edio

    Novembro de 2008

    As polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anosaps a abolio

    Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro Osrio Sergei Soares

    Mrio Theodoro (org.)

  • As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e de inteira responsabili-dade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos.

    A produo editorial desta publicao contou com o apoio fi nanceiro do Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher (Unifem).

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que seja citada a fonte. Reprodues para fi ns comerciais so proibidas.

    As polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil : 120 anos aps a abolio / Mrio Theodoro (org.), Luciana Jaccoud, Rafael Osrio, Sergei Soares . Braslia : Ipea, 2008. 176 p. : grfs., tabs.

    Inclui bibliografi a. ISBN

    l. Polticas Pblicas. 2. Discriminao Racial. 3. Anlise Histrica. 4. Brasil. I. Theodoro, Mrio Lisboa.II. Jaccoud, Luciana de Barros. III. Osrio, Rafael Guerreiro. IV. Soares, Sergei Suarez Dillon. V. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada. CDD 305.800981

  • SUMRIO

    PREFCIO .............................................................................................................. 09

    INTRODUO ......................................................................................................... 11

    Captulo 1 A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTO RACIAL NO BRASILMRIO THEODORO ................................................................................................15

    Captulo 2 RACISMO E REPBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAO RACIAL NO BRASILLUCIANA JACCOUD ................................................................................................ 45

    Captulo 3 DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UM BALANO DAS TEORIASRAFAEL GUERREIRO OSORIO ................................................................................ 65

    Captulo 4 A DEMOGRAFIA DA COR: A COMPOSIO DA POPULAO BRASILEIRA DE 1890 A 2007SERGEI SOARES .................................................................................................... 97

    Captulo 5 A TRAJETRIA DA DESIGUALDADE: A EVOLUO DA RENDA RELATIVA DOS NEGROS NO BRASILSERGEI SOARES ................................................................................................... 119

    Captulo 6 O COMBATE AO RACISMO E DESIGUALDADE: O DESAFIO DAS POLTICAS PBLICAS DE PROMOO DA IGUALDADE RACIALLUCIANA JACCOUD ............................................................................................... 131

    Captulo 7 GUISA DE CONCLUSO: O DIFCIL DEBATE DA QUESTO RACIAL E DAS POLTICAS PBLICAS DE COMBATE DESIGUALDADE E DISCRIMINAO RACIAL NO BRASILMRIO THEODORO ..............................................................................................167

    SUMRIO 7

  • NOTAS SOBRE OS AUTORES

    Mrio Theodoro economista e diretor de cooperao e desenvolvimento do Ipea. E-mail: [email protected]

    Luciana Jaccoud sociloga e tcnica de planejamento e pesquisa do Ipea. E-mail: [email protected] Rafael Guerreiro Osrio socilogo e pesquisador do IPC (International Poverty Centre).E-mail: [email protected]

    Sergei Soares economista e tcnico de planejamento e pesquisa do Ipea. E-mail: [email protected]

  • PREFCIO

    No momento em que se comemoram os 120 anos da abolio da escra-vido, o Ipea vem oferecer mais uma contribuio ao debate sobre o tema das desigualdades raciais no Brasil. Nos ltimos anos, nossa ins-tituio tem realizado um esforo efetivo para contribuir com a reflexo sobre a questo racial, visando proporcionar aos gestores e formuladores de polticas pblicas, assim como aos interessados pelo assunto, um conjunto de trabalhos que aprimorem o conhecimento da problemtica da desigualdade racial e ajudem no desafio de seu enfrentamento.

    A publicao do livro As polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos aps a abolio d seqncia a esse esforo. papel do Ipea refletir sobre os principais problemas nacionais, visando o aperfeioamento das polticas pblicas em seus diversos campos. Para realizar essa tarefa, torna-se necessrio no apenas aprimorar diagnsticos sobre a situao presente, mas, tambm, re-cuperar o passado e resgatar as influncias e fatores que explicam a configurao desse presente. o que esse trabalho se prope a realizar, debruando-se sobre o tema das inaceitveis distncias que ainda hoje separam brancos e negros nos mais diferentes campos da vida social.

    Nos captulos que compem este livro, o leitor ter a oportunidade de se con-frontar com a temtica racial sob diferentes ngulos. Em um primeiro momento, sero apresentadas anlises sobre os condicionantes histricos que informam a

    PREFCIO 9

  • atual conformao do mercado de trabalho no pas, assim como de nossa difcil trajetria no sentido do reconhecimento da discriminao racial como meca-nismo que efetivamente opera na distribuio de posies e oportunidades na sociedade brasileira. Nesse sentido, tambm ser apresentada a evoluo das abordagens da questo racial em voga na academia brasileira a partir da segun-da metade do sculo passado. O trabalho evolui para a apresentao de alguns dados recentes da PNAD, que permitem identificar alteraes na situao da desigualdade racial no Brasil e passa, finalmente, para uma avaliao das polticas pblicas desenvolvidas a partir dos anos 90.

    O lanamento deste livro, naquele que ficou consagrado como o Dia da Conscincia Negra e que comemora, em 2008, os 313 anos da morte de Zumbi dos Palmares, permite ainda realizar uma homenagem e um alerta. Homenagem aos homens e mulheres, negros e brancos, que tm se empenhado na efetiva construo da igualdade racial no pas, assim como no fim do racismo, do pre-conceito e da discriminao. E um alerta aos gestores de polticas pblicas e sociedade em geral acerca da necessidade de se enfrentar a questo racial me-diante o esforo de engendrar o debate franco e aberto sobre o tema, bem como a adoo de polticas pblicas eficazes e abrangentes que afrontem o racismo e seus desdobramentos.

    Cabe aqui destacar o apoio recebido das Naes Unidas, por meio do Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher (Unifem), que abraou o projeto de publicao desse livro.

    MRCIO POCHMANN

  • INTRODUO

    O estudo das questes ligadas s desigualdades raciais um desafio que o Ipea tem se proposto a enfrentar nos ltimos anos. Em que pese o fato da temtica racial, no Brasil, ser um objeto de estudo de alcance e interesse ainda limitado, o debate sobre o tema tem ganhado progressivo relevo. Nesse processo, pode-se identificar inclusive que, ao longo dos ltimos 20 anos, o prprio tratamento dado questo das desigualdades raciais alterou-se signifi-cativamente no pas.

    As dcadas de 1980 e 1990 foram marcadas por um contexto onde o debate era mobilizado pela questo da existncia ou no da discriminao racial no pas. A democracia racial ainda se colocava como um paradigma a ser questionado, e o reconhecimento das desigualdades raciais e a reflexo sobre suas causas pre-cisava se consolidar. A partir de meados dos anos 90, entretanto, os termos do debate se transformaram. Reconhecida a injustificvel desigualdade racial que, ao longo do sculo, marca a trajetria dos grupos negros e brancos, assim como sua estabilidade ao correr do tempo, a discusso passa progressivamente a se concentrar nas iniciativas necessrias, em termos da ao pblica, para o seu enfrentamento.

    Nesse sentido, o avano expressivo. Ele se explica, em parte, pelo avano observado nos diagnsticos, pesquisas e anlises sobre a temtica no pas, her-deiras dos estudos pioneiros sobre as desigualdades raciais no final da dcada

    INTRODUO 11

  • 12 AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO

    1970. Mas , sobretudo, pela progressiva mobilizao e atuao do Movimento Negro e de sua crescente presena no espao pblico, apresentando demandas e debatendo a necessidade de formulao de polticas pblicas especficas e seto-riais, que se deve a mudana observada.

    Nesse novo contexto do debate, o Ipea vem se dedicando a refletir sobre as polticas pblicas voltadas ao desafio da reduo das desigualdades raciais. Ressaltando a relevncia das heranas passadas, seja em termos da consolidao de uma estratificao e mobilidade social que mantm a populao negra em espaos desprivilegiados da vida social, seja em termos do pensamento social e poltico que interpreta essas desigualdades, este volume se prope a realizar um dilogo entre esse movimento e a abordagem atual das demandas pela ao pblica. Alm disso, seguindo a tradio de trabalho desse instituto de pesquisa, destaca-se a importncia, para os estudos que visam a apoiar a formulao de polticas pblicas, do esforo contnuo no acompanhamento dos movimentos e mudanas sociais recentes. Nesse sentido, a anlise dos dados sobre as de-sigualdades raciais, sua interpretao e contextualizao, apresentam-se como patamares necessrios reflexo sobre a questo racial e busca de solues para seu enfrentamento.

    A coletnea de trabalhos que compe esta publicao apresenta um conjunto de reflexes sobre as desigualdades raciais no Brasil em um conjunto diverso, mas integrado, de domnios. Na esteira de uma j consagrada atuao do Ipea em estudos sobre a temtica racial, o presente volume inova, na medida em que busca integrar a anlise histrica a um esforo de anlise da conjuntura, seja via interpretao dos dados recentes da PNAD, seja via o acompanhamento e avalia-o das polticas pblicas voltadas promoo da igualdade racial. Nesse sentido, os trabalhos aqui apresentados visam proporcionar uma panormica do tema em diversos aspectos.

    O captulo 1, de autoria de Mrio Theodoro, traz um apanhado histrico sobre a questo racial e sua influncia na formao do mercado de trabalho bra-sileiro, mostrando que a existncia da precariedade, da informalidade, do su-bemprego atual tem razes na forma em que se moldou o mercado de trabalho no perodo de transio do escravismo para o trabalho livre. Nessa perspectiva, os acontecimentos do sculo XIX ganham relevo. A elevao do pas condio de sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o resultante processo de

  • INTRODUO 13

    crescimento urbano, a evoluo da atividade econmica e da ocupao na rea rural, a transio para o trabalho livre, a imigrao, destacam-se entre os fatores que contriburam de forma definitiva para e conformao da sociedade brasileira em sua heterogeneidade e complexidade.

    O captulo 2 discute as bases e pressupostos do pensamento racista que se es-trutura aps a abolio, assim como os esforos para sua desconstruo realizados nas ltimas dcadas do sculo XX. Efetivamente, como destaca a autora, Luciana Jaccoud, a valorizao do elemento branco como esteretipo de referncia e, em conseqncia, o ideal de branqueamento, impuseram-se como norteadores de um projeto nacional e como pressupostos para o desenvolvimento, dominando a cena poltica at os anos 1930. J na era Vargas, ganha fora e predominncia a ideologia da democracia racial, vigente at meados dos anos 80 do sculo passado. A partir da, o resgate do debate sobre a questo racial volta tona, sobretudo com a interlocuo do Movimento Negro, que ressurge no perodo da redemo-cratizao. Finalmente, o captulo expe as bases atuais do debate, seus pontos mais importantes, luz do atual contexto poltico e institucional.

    J o captulo 3, de autoria de Rafael Guerreiro Osrio, discute a trajetria da viso acadmica, a partir de uma leitura interpretativa das diferentes correntes de pensamento sobre a questo racial brasileira, tomando por base uma releitura dos principais estudiosos do tema agrupados em trs geraes de pensamento. A primeira gerao, que privilegiava a importncia do fenmeno do branquea-mento na explicao da mobilidade social dos diferenciais socioeconmicos entre negros e brancos. A segunda gerao, que reafirma a importncia do preconceito racial como importante elemento presente nas relaes sociais no Brasil. Por seu turno, a terceira gerao vem ressaltar a questo racial com base em evidncias empricas, utilizando informaes diversas sobre a situao educacional, de ren-da, ocupacional, entre outras, para destacar o contexto de desigualdades sociais e seus determinantes, associados ao fenmeno da discriminao, enriquecendo significativamente o estudo da questo racial e seus desdobramentos no Brasil.

    Os captulos 4 e 5, ambos elaborados por Sergei Soares, apresentam uma panormica sobre a situao atual da populao negra no Brasil, tomando por base os dados da srie PNAD/IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domi-clio). A partir do tratamento estatstico acurado dos microdados da referida pesquisa, o captulo 4 apresenta as tendncias recentes acerca da evoluo e

  • 14 AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO

    crescimento da populao negra, apontando para o crescimento do processo pelo qual a populao brasileira tende a, cada vez mais, identificar-se como ne-gra. A trajetria da desigualdade de renda enfocada no captulo 5, explicitando as ainda relevantes distines entre negros e brancos, mas apontando para o aparecimento de um movimento inovador de reduo, observado na dcada atual. As evidncias empricas apresentadas nesses dois captulos, assim como o debate sobre suas causas, alm de contriburem para alimentar novos estudos e pesquisas, permitem uma reflexo mais apurada sobre os programas e aes de enfrentamento do problema, incluindo a relevncia das polticas universais na reduo das desigualdades raciais no pas.

    Na esteira da discusso sobre o enfrentamento da desigualdade racial no Brasil, o captulo 6, tambm assinado por Luciana Jaccoud, traz uma panormica sobre as aes e programas existentes atualmente. So ali apresentadas aes de cunho valorizativo, afirmativo caso dos diferentes programas de acesso s instituies de ensino universitrio assim como outras iniciativas inovadoras levadas a cabo por organismos pblicos como o Ministrio Pblico do Trabalho. A percepo de que as aes em andamento so diversificadas e que efetivamente constituem um rico mosaico de possibilidades face aos problemas da desigualda-de e da discriminao no as eximem, entretanto, de problemas. Com efeito, o Estado brasileiro parece ainda bastante tmido no enfrentamento da desigualdade racial e esse o ponto nevrlgico levantado e discutido no captulo.

    Finalmente, o captulo 7, de autoria de Mrio Theodoro, encerra o livro com um apanhado geral sobre os temas debatidos. Nessa perspectiva, guisa de con-cluso, apresentado um conjunto de elementos de discusso sobre a temtica racial brasileira em seu perfil atual. Mas, antes de ser um aparato conclusivo, os pontos arrolados pretendem contribuir para a abertura do debate e, sobretudo, para a configurao de uma agenda de pesquisa que visa colocar a temtica racial no patamar de Poltica Pblica, para a qual uma ampla ao governamental, assim como dos demais Poderes, parece no apenas desejvel, mas imprescindvel.

  • AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO 15

    INTRODUO

    O presente captulo tem por objetivo discutir a formao do mercado de tra-balho no Brasil, tomando como referncia a questo racial. Partindo de uma anlise histrica, cuja demarcao privilegia os desdobramentos ocorridos no sculo XIX, intenta-se apresentar argumentos que recoloquem a questo racial como elemento central na formatao atual do mercado de trabalho brasileiro.

    O trabalho escravo, ncleo do sistema produtivo do Brasil Colnia, vai sendo gradativamente substitudo pelo trabalho livre no decorrer dos anos 1800. Essa substituio, no entanto, d-se de uma forma particularmente excludente. Meca-nismos legais, como a Lei de Terras, de 1850, a Lei da Abolio, de 1888, e mes-mo o processo de estmulo imigrao, forjaram um cenrio no qual a mo-de-obra negra passa a uma condio de fora de trabalho excedente, sobrevivendo, em sua maioria, dos pequenos servios ou da agricultura de subsistncia.

    Nesse contexto, a consolidao da viso, de cunho racista, de que o progres-so do pas s se daria com o branqueamento, suscitou a adoo de medidas e aes governamentais que findaram por desenhar a excluso, a desigualdade e a pobreza que se reproduzem no pas at os dias atuais.

    A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTO RACIAL NO BRASIL

    MRIO THEODORO CAP

    TULO

  • 16 AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO

    Este captulo est dividido em cinco sees, alm desta introduo. Na pri-meira, apresenta-se um quadro geral da evoluo do perfil da fora de trabalho no Brasil, demonstrando como se deu a passagem gradativa do trabalho cativo ao trabalho livre, tanto nas reas urbanas como no meio rural.

    A segunda seo apresenta algumas das principais interpretaes vigentes sobre o processo de transio do trabalho escravo para o trabalho livre. A conflu-ncia de idias que privilegiam um enfoque de valorizao do elemento branco, em detrimento do negro, vem caracterizar e servir como base para os discursos a favor do desenvolvimento nacional.

    A terceira seo discute uma das mais significativas conseqncias da forma como se deu a abolio no Brasil, qual seja, a marginalizao do trabalho negro e seus desdobramentos.

    Na quarta seo, aprofundam-se as questes ligadas a essa marginalizao, a esse no-lugar do negro, sob a tica da ao do Estado e das polticas que amplia-ram a desigualdade: a Lei de Terras e o estmulo imigrao.

    Finalmente, na ltima parte, so apresentadas as concluses.

    1.1 TRABALHO ESCRAVO E TRABALHO LIVRE: AS MLTIPLAS FACES DO TRABALHO NEGRO NO BRASIL DO SCULO XIX

    O sculo XIX foi responsvel por significativas transformaes polticas e econmicas, at ento jamais vivenciadas pelo Brasil. O Brasil, j em 1808, pas-sa de colnia a reino integrado ao Reino Unido de Portugal e Algarves. A fuga estratgica da Famlia Real e sua Corte para o pas, deixando Portugal s tropas napolenicas, marcou definitivamente nossa histria. Detendo a nova capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que se transferira de Lisboa para a cidade do Rio de Janeiro, o Brasil vai trilhar um novo perodo em sua histria, consolidando-se como o pas de mais vasta extenso territorial das Amricas, por merc da presena de um governo central forte que soube garantir e preservar as alianas com as elites locais estabelecidas.1

    1 Sobre o assunto ver Faoro (1977) e Hollanda (1963).

  • CAPTULO 1 A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTO RACIAL NO BRASIL 17

    Em termos geogrficos, a atividade econmica em terras brasileiras, no incio do sculo XIX, consistia em nichos isolados. De um modo geral, o Brasil, po-ca, compreendia uma imensido territorial sobre a qual se reproduziam diversas formas de atividade laboral produo de subsistncia, extrativismo, agricultura de exportao (sobretudo cana-de-acar e algodo). Isso, tendo em vista o his-trico no apenas dos ciclos, como os do acar, no Nordeste, e do ouro, em Minas Gerais, mas tambm o desenvolvimento da cultura de subsistncia (Ver DELGADO, 2005). Ao longo do litoral, pontilhavam alguns nichos de concentra-o urbana especializados em servios, no comrcio e na atividade manufaturei-ra. Entre as reas urbanas, destacavam-se Recife, Salvador e Rio de Janeiro.2

    O Rio de Janeiro tornara-se a metrpole, abrigando a Corte e o governo monrquico. A cidade, que desde 1763 j era a sede do governo geral da Am-rica Portuguesa, ganha, assim, um novo impulso. Ao desembarcarem no porto do Rio de Janeiro, os nobres portugueses e asseclas encontram uma cidade ainda acanhada, apequenada, interiorana.

    [...] a chegada da Famlia Real portuguesa modificou completamente a vida da ento montona cidade colonial e de seus pacatos habitantes. A presena da Corte no Rio de Janeiro no s transformou a cidade em capital do Imprio Portugus, como tam-bm estimulou o desenvolvimento de uma srie de atividades econmicas urbanas (comrcio, artesanato, algumas manufaturas, etc.) e a melhoria das condies de vida de seus habitantes, principalmente dos setores mais abastados (SOARES, 2007, p. 25-26).

    J nos primeiros anos de corte, a cidade encontrava-se em franca acelerao no que tange ao processo de urbanizao. A construo civil ganha grande mpeto, desenvolvem-se os servios urbanos e a instalao dos servios pblicos inerentes funo de capital do imprio, e h, conseqentemente, um crescimento das ati-vidades comerciais, manufatureiras. A populao atinge o patamar de 116 mil habi-tantes em 1821, de acordo com recenseamento realizado poca (ibid., p. 26).

    2 Segundo Emlia Viotti da Costa, as cinco maiores cidades brasileiras no incio do sculo XIX eram, pela ordem, Rio de Janeiro, com 50 mil habitantes, Bahia (Salvador), com 45,5 mil, Recife, com 30 mil, So Lus do Maranho, com 22 mil e So Paulo, com 15,5 mil habitantes. Segundo a autora As cinco cidades representavam 5,7% da populao do pas, calculada em 2.850.000 habitantes. (COSTA, 1985, p. 234).

  • 18 AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO

    Durante a primeira metade do sculo XIX, a fora de trabalho nos ncleos urbanos consistia, em sua maioria, de trabalhadores escravos. Entretanto, havia os trabalhadores chamados livres e/ou libertos, geralmente negros e mulatos que exerciam servios de toda natureza, notadamente aqueles de alguma especializa-o. Esse segundo grupo vai ganhar corpo, gradativamente, no decorrer daquele sculo. Um terceiro agrupamento importante era o dos migrantes, que, no caso do Rio de Janeiro, eram, sobretudo, de nacionalidade portuguesa. Apenas entre 1808 e 1817, a populao portuguesa na cidade aumentou em 24 mil pessoas.

    De todo modo, a maior parcela da mo-de-obra na cidade, na primeira meta-de do sculo XIX, composta de cativos que, alm das tarefas domsticas, apre-sentavam-se no mercado para venda de servios sob formas diversas. A figura dos negros de ganho escravos pertencentes a famlias em geral da classe mdia, os quais, durante o dia, vendiam seus servios nas ruas e praas proliferara com o crescimento da cidade. Negros e negras de diferentes profisses artesos, cozi-nheiras, carregadores, vendedores, prostitutas e at mesmo pedintes garantiam a renda e o sustento de grande parte das famlias cariocas. Havia tambm, como j enfatizado, os negros que atuavam mais diretamente no servio domstico. Estes, em geral, no participavam das atividades de ganho nas ruas. Eram responsveis pela manuteno da casa: cozinheiras, aias, damas-de-leite, lavadeiras, cocheiros, entre outros.3

    Mas havia ainda um segmento de mo-de-obra escrava mais qualificada. Eram artesos, prestadores de servios de reparaes e mesmo trabalhadores adapta-dos aos servios industriais. Note-se que, ainda no decorrer da primeira metade do sculo XIX, o Rio de Janeiro vivencia um incipiente, mas efetivo, processo de crescimento da atividade industrial, com a proliferao de oficinas artesanais e manufaturas de maior porte. Segundo dados da Junta do Comrcio, Agricultura, Fbricas e Navegao do Rio de Janeiro, citados por Soares em seu trabalho (2007), ao final da dcada de 1850, a cidade contava com 95 manufaturas nos mais diferentes ramos industriais, com destaque para a produo de sabo e velas, chapus, fundio e mquinas; metalurgia de ouro, prata e rap; alm de cordoaria e calados; mveis; produtos qumicos e papel.

    3 Soares ressalta ainda o papel dos escravos como responsveis pelos servios de limpeza urbana, ilumi-nao de vias pblicas, transporte de cargas e passageiros, entre outros (Ver SOARES, 2007, p. 160-175).

  • CAPTULO 1 A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTO RACIAL NO BRASIL 19

    A participao da mo-de-obra escrava nos empreendimentos industriais, assim como nos servios urbanos, fora majoritria, pelo menos at 1850. J na segunda metade do sculo, a mo-de-obra de origem estrangeira, sobretudo portuguesa, ganha importncia. Com efeito, o ano de 1850 marca o fim do tr-fico de escravos, ao menos legalmente, o que fez com que o preo do cativo aumentasse substancialmente. Alm disso, os setores mais dinmicos ligados produo do caf sobretudo na regio do Vale do Paraba passam, com o fim do trfico, a absorver os escravos de outras regies do pas.

    As outras duas maiores cidades, Recife e Salvador, tambm se consolidaram como plos importantes de comrcio e servios. Historicamente, Recife foi o principal escoadouro da economia aucareira da regio Nordeste, que ganha novo impulso no sculo XIX. O crescimento da produo de acar, a moder-nizao do processo de produo e o advento das grandes usinas repercutiram na urbanizao recifense. No entanto, como destaca Andrade (1979), trata-se de uma metrpole cuja rea de influncia uma regio j ento historicamente es-tagnada, a despeito dos surtos de modernizao. O resultado foi a concentrao, naquela rea urbana, a partir da segunda metade do sculo XIX, de uma popu-lao pauperizada e vivendo de atividades marginais e informais, situao que se perpetua at os dias atuais (THEODORO, 1991).

    Salvador destacava-se pelos servios em geral. Herdeira da condio de primeira capital at 1763, a cidade manteve algumas peculiaridades importantes. Em primei-ro lugar, a concentrao de populao negra ali bastante elevada, o que confere capital dos baianos uma cultura bastante singular e grandemente atrelada s razes africanas (Ver MATTOSO, 1978). Salvador vai, por sua vez, concentrar uma grande populao pobre, que habitar reas de favelas e palafitas. Esse processo, comum s cidades dos pases perifricos, foi detectado por Santos (1965), naquilo que o autor identificou como concentrao de pobreza e misria em reas urbanas.

    De um modo geral, at a metade do sculo XIX, as cidades se caracterizavam por uma grande concentrao de negros. Isso foi particularmente mais intenso nos casos das reas urbanas da regio Nordeste (Recife, Salvador e So Lus), que no receberam o afluxo significativo de imigrantes europeus.

    Em sntese, nas cidades brasileiras daquela poca, havia dois tipos de pres-tadores de servios (alm, logicamente, dos escravos domsticos): de um lado, os trabalhadores livres (brancos, mulatos e negros) e, de outro, os escravos, seja

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    como negros de ganho, que deveriam entregar ao seu senhor a totalidade ou, por vezes, uma parte do que ganhavam vendendo seus servios,4 seja no trabalho em manufaturas e empreendimentos industriais.5

    Portanto, as grandes reas urbanas brasileiras, no incio do sculo XIX, apre-sentavam como base laboral o trabalho escravo e, em menor escala, o trabalho de livres e libertos, assim como o dos migrantes. Os cativos, ao menos at a primeira metade do sculo, constituam a base da atividade econmica, produ-zindo bens e servios, trabalhando na limpeza e conservao das vias pblicas, no transporte, entre outros. A situao ganha novos contornos, sobretudo a partir de segunda metade dos anos 1800: o aumento gradativo da populao mestia livre e liberta e, no caso das cidades do Sudeste e do Sul, a entrada em cena da imigrao europia vm configurar um novo panorama urbano para o pas.

    No que tange rea rural, consolidam-se situaes bastante distintas em fun-o das caractersticas regionais. O Nordeste, no sculo XIX, era ainda a regio produtora de acar. Impulsionada pela crise da produo antilhana, decorrente das lutas intestinas de libertao, as exportaes nordestinas ganham novo alento nas primeiras dcadas dos anos 1800. Esse surto dinamizador no se sustentou por um longo perodo, mas foi responsvel pela modernizao da produo na regio, notadamente com a instalao de unidades industriais em substituio aos antiquados engenhos (EISEMBERG, 1977).

    Outro fator decisivo para a regio foi a quebra da produo norte-americana de algodo, em decorrncia da Guerra da Secesso (1861 a 1865). Durante qua-se uma dcada, as exportaes nordestinas de algodo para a Europa obtiveram um forte impulso. Entretanto, tal como no exemplo aucareiro, a retomada da produo americana proporcionou a quebra do setor algodoeiro nordestino, le-vando o segmento produtivo estagnao.

    4 As cidades brasileiras impressionavam o europeu recm-chegado pela multido de negros, que enchia as ruas. Eram eles os encarregados de todos os servios urbanos, sobretudo do transporte de mercadoria e pas-sageiros. Constituam a categoria especial dos negros de ganho [...]. Passavam o dia na rua alugando seus servios com a obrigao de entregar ao senhor uma renda diria ou semanal previamente fixada, pertencendo-lhes o excedente. Comumente, moravam na casa do senhor, mas faziam fora suas refeies. s vezes, tinham licena para morar em domiclio por conta prpria (GORENDER, 1978, p. 455).

    5 Mattoso (1978), estudando o mercado de trabalho em Salvador no sculo XIX, descreve-o tendo como caracterstica principal o que chamou de dupla estrutura do trabalho urbano: [...] havia na cidade dois mercados de trabalho: um para brancos, mulatos e negros livres, e outro exclusivo para escravos (MATTOSO, op.cit., p. 531).

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    A regio Centro-Sul, no incio do sculo XIX, mantinha-se atrelada em gran-de medida atividade de minerao. O ouro de Minas Gerais havia sido a ponta-de-lana de uma atividade econmica cuja pujana foi responsvel pelo desen-volvimento de um complexo sistema de transporte, assim como da pecuria. Mas aquele sculo assistiria ao nascimento e consolidao do ciclo do caf, cuja produo se espraiar do Rio de Janeiro pelo Vale do Paraba, indo alcanar as terras do Oeste paulista. Ali se concentrar, sobretudo a partir da segunda meta-de dos anos 1800, o filo mais dinmico da economia cafeeira que, durante quase um sculo, ser o motor de nossa economia.

    At meados da dcada de 1860, a expanso cafeeira vai se basear quase que exclusivamente no brao escravo. E, com o fim do trfico, em 1850, a demanda do setor suprida pelo deslocamento dos escravos de outras regies do pas, notadamente Nordeste, concentrando-se, assim, um significativo contingente de cativos na regio Sudeste.

    A populao do Brasil, na primeira dcada do sculo XIX, era de cerca de trs milhes de habitantes, sendo que, destes, 1,6 milhes eram escravos. Havia ainda cerca de 400 mil negros e mulatos libertos e um milho de brancos.6 Essa populao vai alcanar um total de dez milhes, em 1872, chegando a 17,3 mi-lhes na virada do sculo XX.7

    No total, os negros e mulatos, ditos livres e libertos, constituiro o subgru-po populacional que mais crescer no decorrer do sculo XIX. Nas reas rurais, exercero atividades ligadas principalmente agricultura/pecuria de subsistn-cia. Nas cidades e vilas, desenvolver-se-o nos ramos de servios em geral, na produo artesanal e ainda em atividades manufatureiras. Muitos, entretanto, no encontravam outras atividades alm do trabalho ocasional em atividades de pequenos servios, quando no se encontravam em situao de privao de tra-balho. Tambm se faro cada vez mais presentes os trabalhadores imigrantes. Nas primeiras dcadas do sculo XIX, levas de trabalhadores de origem portu-guesa vieram a se engajar na fora de trabalho. J na segunda metade do sculo, imigrantes de outras nacionalidades, sobretudo italianos, vm engrossar ainda mais o fluxo de trabalhadores estrangeiros.

    6 Estimativas de Malheiros, em 1866 (cf. KOWARIC, 1994, p.33).

    7 Dados do Recenseamento do Brasil (cf. COSTA, 1985).

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    Explorao do tipo compulsrio, de um lado, e massa marginalizada de outro, consti-tuem amplo processo decorrente do empreendimento colonial-escravocrata, que iria se reproduzir at pocas tardias do sculo XIX. Sistema duplamente excludente, pois a um s tempo cria a senzala e gera um crescente nmero de livres e libertos, que se transformam nos desclassificados da sociedade (KOWARICK, 1994, p. 58).

    No incio do sculo XIX, os escravos representavam mais de 50% da po-pulao nacional. No que se refere ao contingente de homens livres e libertos, observa-se um crescimento significativo no decorrer dos anos 1800. poca da abolio da escravido, os livres e libertos representavam um contingente de cerca de dez milhes de indivduos, enquanto mantinham-se to somente 720 mil indivduos na condio de escravos, de acordo com as estimativas de Conrad, apresentadas por Kowarick (ibid.).

    1.2 A SUBSTITUIO DA MO-DE-OBRA ESCRAVA: UM DEBATE EM ABERTO

    Em geral, a maior parte da populao livre e liberta estava na rea rural, in-serida no que Furtado chamou de setor de subsistncia. Essa situao explica, de acordo com o referido autor, por que a substituio da mo-de-obra escrava no se realizou internamente com a fora de trabalho nacional disponvel, ou seja, por que se utilizou o artifcio da imigrao para ocupar os postos de trabalho que tinham sido liberados pelos escravos. Com efeito, de acordo com Furtado, a par-cela da populao que vivia da economia de subsistncia no seria bem adaptada ao trabalho assalariado regular; alm disso, ainda de acordo com o autor, tratava-se de uma populao difcil de ser recrutada, devido sua disperso em vastas reas territoriais (FURTADO, 1970, p. 153-154).

    O marco inicial da transio para o trabalho livre foi dado pela abolio do trfico de escravos em 1850.8 O fim do fluxo de novos escravos teve como desdobramento, nos anos subseqentes, o enfraquecimento do sistema escra-vocrata, devido, principalmente, s ms condies de reproduo da fora de

    8 De fato, no obstante a abolio do trfico formal ter ocorrido em 1826 e, cinco anos aps, serem declarados livres os negros que aportassem em terras brasileiras, a importao de africanos s terminaria efetiva-mente em 1850. (KOWARIC, 1994, p. 44).

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    trabalho cativa nacional. Para se ter uma idia das pssimas condies de vida dos escravos no Brasil, observe-se a comparao realizada por Kowarick sobre as trajetrias brasileiras e americanas em termos de evoluo do contingente de escravos no sculo XIX.

    Ambos os pases, no incio do sculo XIX, tinham, aproximadamente, 1 milho de trabalhadores cativos. Nos cinqenta anos subseqentes, o Brasil importa cerca de 1 milho e 600 mil, contingente trs vezes maior que aquele que foi levado para os Estados Unidos. As condies de reproduo em ambos os pases assumem sua fei-o real quando se sabe que, entre 1860 e 1870, a populao escrava americana era de 4 milhes, enquanto que a brasileira atingia, apenas, cerca de 1 milho e 500 mil (KOWARICK, 1994, p. 59).

    Nesse contexto, onde as condies de vida a que estavam submetidos os es-cravos eram particularmente ruins, a importao de escravos novos constitua uma etapa necessria manuteno do sistema escravista brasileiro. O fim do trfico, resultado, sobretudo, das presses exercidas pela Inglaterra (cf. FAUSTO, 1995, p. 186-208), significou, assim, um duro golpe continuidade desse sistema.

    Outro momento importante foi representado pela Lei do Ventre Livre, de 1871, resultado de um intenso debate sobre o fim da escravido e sobre o futuro da economia baseado no trabalho livre (cf. LAMOUNIER, 1988). Em defesa da abo-lio, destacou-se a atuao da vertente progressista do movimento republicano emergente nas grandes cidades, notadamente no Rio de Janeiro, a partir de 1870. Ativos defensores dos valores representados pela divisa Liberdade, Igualdade, Fraternidade, os republicanos urbanos vo lograr, ao menos em um primeiro mo-mento, introduzir a questo da abolio dentro de uma perspectiva de transio, cuja idia principal era a do desaparecimento gradual da escravido, acompanhada da garantia ao trabalho para aqueles que viessem a ser liberados (LAMOUNIER, op. cit., p. 147; PRADO JNIOR, 1945, p. 195-206; FAUSTO, 1995, p. 221-231).

    Entretanto, outra vertente republicana, composta por representantes dos esta-dos poltica e economicamente mais influentes, sustentava posies diferentes em relao utilizao e ao destino da mo-de-obra dos escravos que viessem a ser libertados. So especialmente os grandes fazendeiros do Oeste Paulista poca, a regio mais dinmica da produo do caf que, inseguros quanto possibilidade de

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    dependerem do trabalho dos ex-escravos e desconfiando da possibilidade de se con-tar com os trabalhadores livres e libertos, tidos como avessos s atividades laborais, apresentaro a proposta de imigrao subvencionada, o que permitir a chegada em massa de trabalhadores europeus, financiada em grande parte pelo governo.9

    Efetivamente, o racismo, que nasce no Brasil associado escravido, consoli-da-se aps a abolio, com base nas teses de inferioridade biolgica dos negros, e difunde-se no pas como matriz para a interpretao do desenvolvimento na-cional. As interpretaes racistas, largamente adotadas pela sociedade nacional, vigoraram at os anos 30 do sculo XX e estiveram presentes na base da formu-lao de polticas pblicas que contriburam efetivamente para o aprofundamen-to das desigualdades no pas.

    1.3 A TRANSIO PARA O TRABALHO LIVRE E A MARGINALIZAO DO TRABALHO NEGRO

    A substituio da mo-de-obra escrava pela dos imigrantes comeou, assim, mais de 30 anos antes da abolio. De acordo com os dados disponveis, entre 1864 e 1887, o nmero de escravos no pas diminuiu de 1,7 milhes para 720 mil, enquanto entre 1872 e 1881, 218 mil imigrantes entraram no Brasil (cf. KOWARIK, 1994, p. 46-47, p. 71). A porcentagem de escravos no total da populao, que era de mais de 50% no incio do sculo XIX, foi, dessa forma, reduzida at 16%, em 1874, alguns anos antes do fim da escravido.

    O perfil de ocupao da fora de trabalho assumir, ento, nova conformao. Enquanto a mo-de-obra imigrante chega e ocupa-se cada vez mais da produo de caf, uma parte crescente da populao de escravos ento liberados, vai se juntar ao contingente de homens livres e libertos, a maioria dos quais se dedicava seja economia de subsistncia, seja a alguns ramos ligados aos pequenos servios urbanos. No houve a valorizao dos antigos escravos ou mesmo dos livres e li-bertos com alguma qualificao. O nascimento do mercado de trabalho ou, dito de

    9 A maioria dos imigrantes, por essa poca, era de origem italiana. Por conta da crise que assolava a Itlia naquele momento Principalmente na regio do Veneto, grande contingente de pequenos proprietrios e meeiros foi forado a se proletarizar, sem que a economia italiana tivesse condies de incorporar essa massa de disponveis em outras atividades econmicas. (KOWARIC, 1994, p. 91).

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    outra forma, a ascenso do trabalho livre como base da economia foi acompanhada pela entrada crescente de uma populao trabalhadora no setor de subsistncia e em atividades mal remuneradas.10 Esse processo vai dar origem ao que, algumas dcadas mais tarde, viria a ser denominado setor informal, no Brasil.

    Mas a transio para o trabalho livre merece uma anlise um pouco mais acurada. De fato, esse fenmeno no se desenvolveu de forma homognea em todo o pas, j ento marcado por diferenas regionais significativas. O maior dinamismo econmi-co baseado na produo de caf assim como na indstria nascente, concentrava-se na regio Centro-Sul, especialmente no estado do Rio de Janeiro, de So Paulo e Minas Gerais (na regio da Zona da Mata). A partir de 1830, as necessidades cres-centes de mo-de-obra, sobretudo na economia do caf, vo levar a uma gradativa concentrao do contingente de escravos naquelas regies. Assim, a porcentagem de escravos brasileiros vivendo no Rio de Janeiro, em So Paulo e Minas Gerais, em relao ao conjunto da populao escrava, passou de 36,7% a 51,1% entre 1864 e 1874 (cf. KOWARIC, 1994, p. 46-47, p. 60-61). S entre 1850 e 1885, as reas produtoras de caf desses trs estados compraram cerca de 350.000 escravos, em sua maioria, oriundos de outras regies do pas (cf. GORENDER, 1978, p. 325.).

    Como ressalta Hasenbalg acerca da poltica de imigrao adotada no Brasil:

    Impregnada como estava de matizes racistas, essa poltica resultou no apenas na mar-ginalizao de negros e mulatos no Sudeste, mas tambm reforou o padro de distri-buio regional de brancos e no-brancos que se desenvolvera durante o regime es-cravista. Como conseqncia, uma maioria de populao no-branca permaneceu fora do Sudeste, na regio economicamente mais atrasada do pas, onde as oportunidades educacionais e ocupacionais eram muito limitadas (HASENBALG, 1979, p. 167).

    Na segunda metade do sculo XIX, a mo-de-obra imigrante comea a subs-tituir a dos escravos, principalmente nos centros mais dinmicos da economia. No incio, so as novas regies produtoras de caf, com destaque para o Oeste Paulista, que vo receber os migrantes europeus. Especialmente aps 1874, a substituio do trabalho escravo acelerou-se.

    10 Se bem no existam estudos especficos sobre a matria, seria difcil admitir que as condies materiais de vida dos antigos escravos se hajam modificado sensivelmente, aps a abolio, sendo pouco provvel que esta ltima haja provocado uma redistribuio de renda de real significao. (FURTADO, 1970, p. 138.

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    Nas vsperas da abolio, enquanto os escravos dos cafezais fugiam das fazendas, muitos dos quais desciam a serra do Mar amontoando-se nas favelas de Santos, imi-grantes italianos faziam o percurso inverso, dirigindo-se para as plantaes (KOWA-RICK, 1994, p. 86).

    Na Regio Nordeste, contudo, constata-se uma situao diferente. Como rea originalmente fornecedora de mo-de-obra escrava para a regio do caf, o Nordeste j havia se iniciado na substituio do regime de trabalho escravo a partir de 1850. Os trabalhadores nacionais livres ou libertos foram progres-sivamente incorporados para preencher o espao deixado pelos escravos le-vados para o Centro-Sul. No Nordeste, pelo menos duas barreiras impediram a disperso dos livres e libertos: de um lado, a grande distncia das regies de fronteira da economia de subsistncia e, de outro, as regies urbanas, que j apresentavam problemas em decorrncia dos excedentes de populao. De certa forma, para os antigos escravos, assim como para os trabalhadores livres, no havia alternativas ao antigo trabalho. Apesar da existncia de um fluxo con-sidervel de ex-escravos para as maiores cidades como Recife, uma grande par-te da fora de trabalho liberada continuar nas propriedades rurais, sob regime de baixssima remunerao, seja como assalariados, meeiros, parceiros, entre outros. De acordo com Furtado, no Nordeste, essa forma de organizao da economia, aps a abolio da escravido, restringiu o fluxo de renda monetria e, em decorrncia, impediu a formao efetiva de um mercado interno. Dife-rentemente, no caso do Centro-Sul, o fim da escravido significou o crescimen-to do fluxo interno de renda monetria e a consolidao do mercado interno, apesar da existncia da economia de subsistncia em reas de fronteiras agrco-las (FURTADO, 1985, p. 210-211).

    Em resumo, existiram particularidades no que concerne passagem da eco-nomia de base escravocrata economia baseada no trabalho livre. Observa-se, de um lado, um processo de reagrupamento da mo-de-obra escrava nas regi-es mais dinmicas, sobretudo em So Paulo (KOWARIC, 1994, p. 46-47), para onde se dirigiu, numa etapa posterior, a maior parte dos imigrantes.11 No houve,

    11 Alm dos estados do Centro-Sul (So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), tambm houve uma signi-ficativa imigrao europia para os estados do Sul do pas Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul , onde a perspectiva estava ligada, sobretudo, idia de colonizao (cf. COSTA, 1983, p. 417).

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    como nos Estados Unidos, regies em que se concentravam os trabalhadores escravos (os estados do Sul) enquanto em outras se concentravam os trabalha-dores livres (os estados do Norte).12 No Brasil, a abolio significar a excluso dos ex-escravos das regies e setores dinmicos da economia. Em sua grande maioria, eles no sero ocupados em atividades assalariadas. Com a imigrao massiva, os ex-escravos vo se juntar aos contingentes de trabalhadores nacio-nais livres que no tm oportunidades de trabalho seno nas regies economi-camente menos dinmicas, na economia de subsistncia das reas rurais ou em atividades temporrias, fortuitas, nas cidades.

    preciso, nesse sentido, frisar que o assim chamado elemento nacional, aps a abo-lio, tendeu a ser absorvido pelo processo produtivo s em reas de economia estagnada, onde a imigrao internacional foi pouco numerosa ou, at mesmo, nula. De fato, sua utilizao ocorreu mais acentuadamente nas regies decadentes do Vale do Paraba e nas que apresentavam pouco dinamismo, como nas do Velho Oeste, em contraposio ao Novo Oeste: nelas, o imigrante deixou poucas oportunidades para os nacionais, que passaram a realizar tarefas mais rduas e de menor remunerao, como o desbravamento e preparo da terra, e, praticamente, extinguiu as possibilida-des de emprego para o ex-escravo (KOWARICK, 1994).

    Em funo da abolio e da imigrao europia para certas regies do pas, o ltimo quarto do sculo XIX vai consolidar um novo cenrio para o mercado de trabalho no Brasil, no qual as especificidades regionais vm aflorar de forma significativa. Na cidade de So Paulo, o crescimento urbano esteve diretamente ligado ao processo de industrializao, que comeou nos ltimos anos do sculo XIX, e que empregar quase que unicamente mo-de-obra de origem europia, seja aquela sada das fazendas, seja a que chegava para trabalhar diretamente no espao urbano. De acordo com os dados disponveis, no comeo do sculo XX, 92% dos trabalhadores industriais na cidade de So Paulo eram estrangeiros, so-bretudo de origem italiana (KOWARIC, op. cit., p. 92). No Rio de Janeiro, ento capital do pas e a cidade de maior importncia econmica, a participao de es-trangeiros na indstria representava quase a metade da mo-de-obra ali ocupada.

    12 Ver Costa, 1985, p. 228-265.

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    Contudo, diferentemente do que se passou em So Paulo, eram principalmente os portugueses (destacando-se os aorianos) e os espanhis que compunham a maioria da mo-de-obra migrante no Rio (PRADO JNIOR, 1945). As duas cida-des (sobretudo So Paulo) sofrero importantes mudanas com industrializao nascente e a chegada em massa de um contingente de mo-de-obra de origem europia atrada pela prpria atividade industrial. Observa-se, com o desenvolvi-mento do comrcio e da indstria, o nascimento de um proletariado e tambm de uma classe mdia urbana (COSTA, 1983, p. 424-429; GORENDER, 1978, p. 451-465). Mas os trabalhadores negros no tiveram oportunidade de engrossar as fileiras daqueles grupos.

    A situao diferente quando olhamos a caso das regies menos ricas. No que se refere cidade de Recife, por exemplo, a imigrao teve um carter residual.13 O que se observou aps a abolio foi o crescimento da populao urbana, em decorrncia da chegada de contingentes significativos de ex-escravos vindos do interior da prpria regio, sobretudo a Zona da Mata, circunvizinha capital. De fato, o novo sculo vai encontrar a Regio Nordeste em um perodo de crise econmica sem precedentes. A economia nordestina mantinha-se estag-nada em funo da queda da produo e venda do acar e do algodo, seus prin-cipais produtos. De outro lado, h alguns anos, uma modernizao da produo se realizava na regio, o que contribuiu para o aumento da mo-de-obra liberada que se dirigiu s cidades (EISEMBERG, 1977; FURTADO, 1985).

    Andrade analisou a trajetria da urbanizao de Recife no fim do sculo XIX, mostrando que ento j havia uma situao tpica de subemprego de uma parte significativa da mo-de-obra.14 A ausncia de oportunidades de trabalho para a populao ativa liberada pela abolio foi uma das caractersticas mais importan-tes do processo de urbanizao da cidade no incio do sculo XX.

    O crescimento da cidade intensificou-se aps a abolio da escravatura (1888), quan-do grande parte da populao liberada abandonou as propriedades a procura de novas oportunidades de vida e de trabalho, e a facilidade de transportes intensificou

    13 Em 1900, no estado de Pernambuco, havia somente 11.000 imigrantes, que representavam 1% da populao daquele estado (cf. KOWARIC, 1994, p. 106).

    14 Sobre o assunto, ver tambm Theodoro (1991).

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    a migrao para o Recife. Da o aumento considervel da construo de palafitas os chamados mocambos suspensas sobre os manguezais da cidade (ANDRADE, 1979, p. 93).

    De fato, a questo da urbanizao, ou seja, os problemas concernentes excessiva concentrao de populao em certas cidades mostram-se de ma-neira mais complexa a partir de 1930. Contudo, pode-se observar, j no final do sculo XIX, o incio de um processo de aglomerao da pobreza e da ex-cluso15 nas cidades, resultante da chegada em profuso de contingentes de ex-escravos. Em resumo, nessa poca, j proliferavam, nas maiores cidades, as favelas, verdadeiros guetos onde se encontravam os pobres. No que concerne aos primeiros anos de trabalho livre, pode-se constatar que, em 1900, a po-pulao total do Brasil era de 16,5 milhes de habitantes, dos quais 1,1 milho eram imigrantes, os quais se concentravam nos setores de atividade mais din-micos da economia. Nos anos seguintes, at 1920, assiste-se intensificao da industrializao e do crescimento urbano, sem maiores alteraes no perfil da mo-de-obra absorvida.

    Em 1920, enquanto no pas como um todo os estrangeiros (mais de um milho e meio) representavam pouco mais de 5% da populao total, nos dois principais centros industriais, Rio e So Paulo, representavam respectivamente 20% e 35%. As parcelas de migrantes estrangeiros na fora de trabalho dos estabelecimentos industriais, nesse mesmo ano, ainda so impressionantes: 17% para o conjunto do pas, e [...] 51% da fora de trabalho industrial na cidade de So Paulo (HOFF-MANN, 1980, p. 26.).16

    15 Utiliza-se aqui a expresso excluso sempre em relao ao mercado de trabalho e no seu sentido mais simples, qual seja, o que serviu para designar os esquecidos pelo crescimento econmico (DONZELOT; ROMAN, 1991, p. 5). Assim, est-se considerando como excludos aqueles que no tm emprego regular, ou seja, que no esto dentro do setor formal, e tambm, no que se refere ao perodo da escravido, queles que estavam fora do binmio senhor-escravo.

    16 Deve-se lembrar que, no caso de So Paulo, de acordo com os dados apresentados por Lowirie, o grupo de mo-de-obra industrial que no era estrangeiro, em sua maioria, era composto por filhos de imigrantes. (In: KOWARICK, 1994, p. 93).

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    1.4 O NO-LUGAR DO TRABALHO NEGRO

    necessrio, entretanto, examinar mais detidamente alguns aspectos ligados opo realizada, nas regies mais dinmicas, de promoo de uma poltica de imi-grao de mo-de-obra de origem europia. Ou seja, deve-se perguntar por que, nessas reas, apesar da existncia de um significativo contingente de mo-de-obra constituda de homens livres e libertos, assim como de escravos, decidiu-se pela uti-lizao do trabalho de imigrantes. A resposta a essa questo parece algo complexa.

    Em princpio, haveria trs possibilidades de enfrentamento da questo do tra-balho com o fim da abolio, possibilidades essas no excludentes entre si. De um lado, havia a perspectiva de que os antigos escravos pudessem, eles mesmos, continuar a trabalhar nas fazendas adotando um novo status de homens livres, o que, aparentemente, no colocaria problemas tcnicos de grande monta. Com efeito, os escravos dominavam o processo de trabalho, assim como as evolues tcnicas mais importantes poca nas atividades que realizavam. Essa havia sido a opo em algumas ilhas das Antilhas inglesas, onde a abolio teve um carter puramente formal: o escravo passou a receber um salrio monetrio, fixado ao nvel mnimo de subsistncia (FURTADO, 1970, p. 137-138). Uma segunda op-o seria a da utilizao, total ou parcial, do contingente dos homens livres e libertos no lugar dos antigos escravos. Esse grupo remontava, em 1872, quase oito milhes de indivduos, ultrapassando em muito o nmero de escravos, que totalizava cerca de 1,5 milhes (cf. KOWARIC, 1994, p. 37). Finalmente, havia a alternativa da imigrao, que, como visto, foi largamente adotada pelas regies economicamente mais dinmicas.

    No h, na literatura, uma resposta consensual questo. As interpretaes sobre a passagem do regime escravista para aquele baseado no trabalho livre no privilegiam os mesmos aspectos. Furtado, em seu trabalho clssico, A for-mao econmica do Brasil, destaca a racionalidade econmica dos empresrios do caf para explicar o recurso imigrao. Essa teria sido uma escolha lgica em funo das caractersticas apresentadas pelos diferentes grupos de traba-lhadores. Os homens livres e libertos, alm de no adaptados ao trabalho regular assalariado, estariam muito dispersos no setor de subsistncia, que se estendia do Norte ao extremo Sul do pas, tornando difcil e extremamente custoso seu re-crutamento. Ou seja, de acordo com esse autor, a perenidade desse contingente

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    de trabalhadores foi o resultado de uma configurao social e poltica especfica, que conformou especialmente a histria do serto brasileiro, onde o poder dos coronis (os grandes proprietrios de terra e chefes polticos) era a base. A fraca importncia econmica do setor de subsistncia contrastava com a sua grande importncia poltica poca, sobretudo na regio nordestina: a manuteno de uma significativa parcela da populao disponvel nos domnios dos grandes proprietrios de terra era, para estes, a garantia de poder poltico (FURTADO, 1970, p. 146-147).

    No que diz respeito aos escravos, Furtado ressalta o despreparo para o assa-lariamento que os caracterizaria.

    O homem formado dentro desse sistema social [a escravido] est totalmente desa-parelhado para responder aos estmulos econmicos. Quase no possuindo hbitos de vida familiar, a idia de acumulao de riqueza praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas necessidades, cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformaes econmicas do pas (FURTADO, op. cit., p. 140-141).

    Dessa forma, havia uma confluncia de fatores que tornava possvel e desej-vel a utilizao da mo-de-obra de origem europia nas terras brasileiras. Entre esses fatores, Furtado registra o caso da existncia de excedentes populacionais na Europa, poca, especialmente na Itlia, assim como, de outra parte, o fato de o governo brasileiro ter decidido assumir, a partir de 1870, o financiamento do transporte dos imigrantes, reduzindo o custo dessa mo-de-obra.

    Outra interpretao, mais recente, destaca aspectos estruturais numa perspectiva histrica do desenvolvimento das foras produtivas. O processo de abolio e de substituio do trabalho escravo pelo do imigrante perce-bido, desse ponto de vista, como inexorvel, pois a escravido representaria, no final do sculo XIX, um obstculo acumulao do capital. Esta, para se efetivar, necessitaria de um contingente de fora de trabalho adaptado a re-laes laborais mais modernas, sobretudo ao assalariamento. Isso justificaria a opo pela mo-de-obra imigrante, na medida em que esses trabalhadores j estariam habituados ao regime assalariado. Naquele momento, de acordo com Cardoso de Mello, a continuidade do regime escravista representava um

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    entrave acumulao: [...] no preciso que o escravismo se desintegre, porque no oferea nenhuma rentabilidade s empresas existentes; para ser colocado em xeque, basta que obste a acumulao (CARDOSO DE MELLO, 1990, p. 83 v.).

    Partilhando o mesmo enfoque, Kowarick vai resumir esse ponto de vista da seguinte maneira:

    [...] aps 1880, processos tanto internos como internacionais fariam com que a po-tencialidade do regime de trabalho escravo se mostrasse demasiadamente estreita para realizar uma acumulao que, cada vez mais, necessitava de um mercado de trabalho volumoso e fluido (KOWARICK, 1994, p. 74).

    Mais do que uma deciso racional do empresrio capitalista, a passagem da escravido ao trabalho livre parece ser parte de um processo mais amplo de reestruturao econmica e social, mas tambm de um aprofundamento da in-sero da economia brasileira no contexto mundial (cf. SINGER, 1975, p. 353). Contudo, outros fatores importantes, j citados anteriormente, influram nesse processo: o nascimento e consolidao de uma viso eurocntrica e modernizan-te, na qual, para o negro, no havia, ou havia pouco espao de existncia.

    De fato, durante os ltimos anos da escravido, ganhavam fora no pas as idias que privilegiavam a mo-de-obra de origem europia em detrimento dos trabalhadores nacionais. De um lado, os nativos livres e libertos eram considera-dos como inaptos ao trabalho regular. De outro lado, no que tange aos antigos escravos, as fugas organizadas nas fazendas eram cada vez mais freqentes, o que contribuiu tanto para promover a idia de que a mo-de-obra negra era indolente e inapta para a relao assalariada, bem como para reforar a ideologia do embranquecimento.17 Nessa perspectiva, relevante, para a compreenso do perodo, analisar o papel das idias racistas, sua difuso e sua influncia na

    17 importante destacar o papel dos abolicionistas que, sobretudo em So Paulo, lutaram ativamente para a liberao dos escravos no perodo imediatamente anterior abolio. o caso de Luis Gama, eminente advogado de origem negra, lder de uma vigorosa campanha pela libertao dos escravos paulistas, assim como de seu sucessor, Antnio Bento, cuja ao foi mais direta. Bento vai organizar os caifazes, grupos de antigos escravos especializados em organizao de fugas das fazendas. A abolio no foi feita em So Paulo pelos fazendeiros, porm por Antnio Bento e seus caifazes, cabendo aos prprios escravos a tarefa de provocar o abalo decisivo no regime servil em apodrecimento (GORENDER, 1978, p. 571). Ver tambm Santos (1980).

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    implementao de uma poltica deliberada de incremento da populao branca.18 A porcentagem de negros e mulatos reduziu-se significativamente durante o s-culo XIX: na cidade de So Paulo, 63% do total da populao, em 1890, era de brancos, enquanto negros e mulatos no representavam mais que 28,6% (FER-NANDES, 1969, p. 9).

    A abolio da escravido colocou a populao negra em uma situao de igualdade poltica e civil em relao aos demais cidados. Contudo, como a lite-ratura tem constantemente reafirmado, as possibilidades de incluso socioeco-nmica dessa populao eram extremamente limitadas. Como ser visto a seguir, medidas anteriores ao fim da escravido haviam colocado a populao livre e pobre em uma situao de completa excluso em termos de acesso terra. Por sua vez, o acesso instruo tambm no fora garantido por polticas pblicas, no sendo sequer acolhido como objetivo ou garantia de direitos na Constituio Republicana de 1891. No mercado de trabalho, a entrada massiva de imigrantes europeus deslocava a populao negra livre para colocaes subalternas.

    Esse processo foi marcado tanto por uma ausncia de polticas pblicas em favor dos ex-escravos e populao negra livre, como pela implementao de iniciativas que contriburam para que o horizonte de integrao dos ex-escravos ficasse restrito s posies subalternas da sociedade. Cabe lembrar que tal pro-cesso encontrava-se largamente amparado, como j indicado anteriormente, pela leitura predominante da questo racial no Brasil, segundo a qual, a questo do negro se referia no apenas sua substituio como mo-de-obra nos setores dinmicos da economia, mas sua prpria diluio como grupo racial no contex-to do nacional.

    a) A Lei de Terras de 1850

    Entre os fatores que impediram a emergncia de um sistema econmico capaz de absorver a mo-de-obra livre est a promulgao da Lei no 601/1850, a cha-mada Lei de Terras. Operando uma regulao conservadora da estrutura fundiria no Brasil, a Lei de Terras foi promulgada no mesmo ano em que se determinou a

    18 Havia, nessa poca, na Europa, uma profuso de teorias etnocntricas que defendiam a idia da supe-rioridade dos brancos, o que inspirou a poltica de imigrao realizada pelo governo. Ver Hasenbalg (1979).

  • 34 AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO

    proibio do trfico de escravos (Lei Euzbio de Queiroz), marco da transio para o trabalho livre. nesse contexto que a nova medida legal comea a vigorar, restringindo drasticamente as possibilidades de acesso terra na transio do regime escravista para o de trabalho livre.

    Ao definir a compra como nica forma de aquisio, a Lei de Terras ps fim ao reconhecimento da posse, que havia sido realizado em 1822, pela resoluo de 17 de julho.19 Como destaca Delgado (2005), o regime de posse teve vigncia breve e transitria, com a instituio da Lei de Terras significando a recomposi-o do setor de subsistncia sob a gide da grande propriedade. A nova legislao reconheceu as posses estabelecidas aps 1822 somente se tivessem registros em cartrios ou parquias dos municpios. A partir da, ficou proibido o regime das ocupaes, substitudo pelos mecanismos de herana ou compra e venda, nicos instrumentos admitidos como legtimos no acesso terra, inclusive no caso das terras devolutas. Alm de alterar e regular a forma de aceder propriedade da terra (inclusive das terras pblicas) instituda nas duas dcadas anteriores, a Lei de Terras procurou ainda definir os meios para operar a colonizao, principalmente por incentivos imigrao de trabalhadores europeus pobres para trabalhar nas lavouras brasileiras (SILVA, 2006).

    Assim, impedindo o acesso terra para os trabalhadores pobres, os ex-escra-vos e seus descendentes, a lei de 1850

    [...] liquida o sistema de posses fundirias que se estabelecera em 1822 e que poderia transformar o setor de subsistncia em regime de propriedade familiar; ademais, aca-ba com a possibilidade futura de transformao da mo-de-obra escrava liberta em novo contingente de posseiros fundirios, o que inclui ainda a possibilidade de criao de quilombos legais ou de estabelecimentos familiares legalizados (DELGADO, 2005, p. 29; ROSA, 2008).

    Conforme indica Emlia Viotti da Costa, a Lei de Terras baseava-se na idia de que a nica maneira de garantir o trabalho livre nas fazendas era dificultar o acesso terra, o que faria com que o trabalhador livre no tivesse outra alternativa seno

    19 A legislao de 1822 buscava incentivar o acesso propriedade da terra ao lavrador no-proprietrio, combatendo o bloqueio exercido pelo latifndio (FAORO, 1977, p. 407-408).

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    permanecer nas fazendas.20 Para os ex-escravos, dedicados em sua grande maioria s atividades rurais, a passagem ao trabalho livre no significou sequer a sua incluso em um regime assalariado. Quando permaneciam nas fazendas, sua passagem condio de dependente ampliou a massa de trabalhadores livres submetidos grande proprie-dade e afastados do processo de participao nos setores dinmicos da economia.

    b) A poltica de imigrao

    A concentrao da populao no-branca em regies pouco dinmicas tam-bm contribuiu para o quadro atual das desigualdades raciais. Como produto de uma histria de mais de trs sculos de escravido, poca da abolio a grande maioria da populao afro-brasileira permanecia fora da regio onde uma socieda-de urbana e industrial estava em formao. As polticas pblicas voltadas promo-o da imigrao vieram a acentuar esse quadro de desigualdades regionais.

    No custoso reforar que a promoo da imigrao era claramente assenta-da na ideologia do branqueamento. Em 1884, a Lei no 28, aprovada pelo legislativo paulista, garantindo recursos para que o governo estadual financiasse a imigrao, afirmava que os beneficirios seriam trabalhadores europeus e suas famlias (AZE-VEDO, 1987, p. 167). Ainda em 1890, o governo republicano recm-institudo pu-blica o Decreto no 528, de 20 de junho, onde se institui a livre entrada de migrantes nos portos brasileiros, excetuados os indgenas da sia ou da frica, que somente mediante autorizao do Congresso Nacional podero ser admitidos, de acordo com as condies estipuladas. Esse mesmo decreto garante incentivos a todos os fazendeiros que quisessem instalar imigrantes europeus em terras.21

    O perodo mais intenso do processo de imigrao foi o que ocorreu nos anos que se seguiram abolio, 1888 a 1900, quando se observa a entrada de 1,5 milho de imigrantes, em sua maior parte italianos, que se dirigiram ao estado de So Paulo e, os demais, ao ento Distrito Federal. O governo subvencionou quase 60% do total dos imigrantes que chegaram entre 1888 e 1915, sendo que, no perodo entre 1891 e 1900, essa taxa teria sido de 80%.22

    20 Costa, 1999, p. 176-177. Sobre o debate em torno do projeto de lei, ver pginas seguintes.

    21 Citado por Skidmore (1976, p. 155). Esse programa de imigrao subsidiada durou at 1928.

    22 Ver a respeito em Theodoro (2005).

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    O des locamento pelos imigrantes afetou no apenas os quase 300.000 escravos liberados entre 1887 e maio de 1888, mas tambm o grupo de mulatos e negros livres que na poca se aproximava de 1.500.000 no Sudeste (HASENBALG, 1979, p. 155).

    Como resultado do fluxo oficialmente promovido de imigrantes europeus, at a dcada de 1920, fechou-se um espao scio-econmico que de outra ma-neira teria estado disponvel para os no-brancos e o resto da fora de trabalho nacional concentrada fora e dentro do Sudeste (ibid., p. 161).

    c) O acesso a novas oportunidades no mercado de trabalho

    O perodo que se seguiu abolio foi caracterizado pela acelerao do desen-volvimento econmico e pela abertura de novas oportunidades de ascenso social.

    O incipiente processo de urbanizao e as tentativas de desenvolver a indstria, a construo de ferrovias, a organizao de instituies de crdito, e incremento do comrcio criavam novas perspectivas. Ao mesmo tempo, a expanso cafeeira e o deslocamento da fronteira econmica para Oeste favoreciam a mobilidade social (COSTA, 1999, p. 341).

    Essas oportunidades, contudo, no foram aproveitadas pelos ex-escravos ou mesmo pela populao negra livre. A crescente imigrao europia, realizada com o aporte de importantes fundos pblicos, alterou o perfil da mo-de-obra tanto rural como urbana. Para explicar o processo de marginalizao da mo-de-obra negra na nova dinmica econmica, um dos fatores mais apontados tem sido o de sua falta de qualificao. Hasenbalg (1979), entretanto, sustenta que os imigrantes, salvo excees, tampouco dispunham de qualificao profissional especializada. Paralelamente, como j enfatizado, os estudos sobre ocupaes de escravos e homens livres de cor no sculo XIX apontam para a ocupao de profisses especializadas de diferentes naturezas.

    Efetivamente, os preconceitos vigentes difundiam a crena da menor capa-cidade do trabalhador negro face ao branco, ampliando expectativa favorvel que cercava a entrada de trabalhadores europeus. Este era apontado como o trabalhador por excelncia: disciplinado, responsvel, enrgico, inteligente,

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    enfim, racional (AZEVEDO, 1987, p. 154). Paralelamente, as prprias dificul-dades de insero no mercado de trabalho do ex-escravo foram interpretadas como prova de sua incapacidade e de sua inferioridade racial (COSTA, 1999, p. 341).

    A participao dos negros no mercado de trabalho tambm havia sido ob-jeto de legislao que visava regular e restringir o trabalho de africanos cativos nos centros urbanos, com impacto na configurao das desigualdades nas re-laes de trabalho no perodo ps-abolio, em especial no que diz respeito substituio da mo-de-obra negra pela do imigrante. Em 1884, foi aprovada, no estado de So Paulo, lei que institua taxas sobre a posse de negros na condi-o de escravos ao ganho ou de aluguel em atividades nas reas urbanas. Tam-bm visando encarecer o custo do trabalho escravo, a mesma lei determina a elevao dos impostos fixados trs anos antes para a importao de escravos de outras provncias.23 No mesmo ano de 1884, as Leis provinciais nos 25 e 26 direcionavam os impostos sobre importao de escravos para custear os gastos com imigrao.

    interessante acompanhar a anlise de Azevedo (1987) sobre os debates par-lamentares na Assemblia Legislativa paulista entre as dcadas de 1870 e 1880. As propostas de aproveitamento dos trabalhadores nacionais eram debatidas nos anos 1870 como uma alternativa factvel no processo de substituio do trabalho escravo. Partindo do reconhecimento da existncia de ampla disponibilidade de braos livres, vrios projetos de lei foram apresentados, incluindo a adoo de estmulos e vantagens, assim como aspectos disciplinares para a mo-de-obra negra, considerada indolente. As propostas imigrantistas diferiam dessas pelo seu carter abertamente racista.24

    Observa-se, assim, que a transio do trabalho escravo para o trabalho livre foi feita via interveno direta e decisiva do Estado e sob inspirao da ideologia racista que ento se consolidava. Usando dados de 1890, Hasenbalg mostra como os imi-grantes recm-chegados passaram por um rpido processo de mobilidade econmica

    23 Martinho Prado, um dos mais importantes representantes dos proprietrios paulistas, justificava a neces-sidade de encarecer o trabalho escravo, pois esse era mais remunerador que o trabalho livre. Tais impostos no apenas estimulariam a imigrao pelo encarecimento do escravo, como a subsidiariam (AZEVEDO, 1987, p. 165).

    24 Azevedo reconhece que os defensores do aproveitamento do trabalhador nacional no negavam sua inferioridade, mas a interpretavam em termos culturais (ibid., p. 135-136).

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    ascendente, concentrando-se nos setores mais dinmicos da economia. Conclui que as desigualdades observadas no processo de incluso e mobilidade econmica devem ser explicadas no apenas como fruto de diferentes pontos de partida, mas tambm como reflexo de oportunidades desiguais de ascenso social aps a abolio.

    1.5 CONCLUSO

    Como mostrado nas pginas anteriores, a situao vigente em meados do sculo XIX era tal que, bem ou mal, o negro detinha um lugar central no sistema econmico. Como escravo, sustentava a economia primrio-exportadora (so-bretudo o caf, mas tambm a cana-de-acar, o ouro e o algodo) e, nas cida-des, respondia pela maior parte dos servios (eram artesos, reparadores, alm de executarem servios pessoais). Havia ainda os chamados negros de ganho, escravos que ofereciam seus servios nas ruas, cujo trabalho representava uma renda adicional para muitas famlias da classe mdia urbana (servios diversos, incluindo-se a tambm a prostituio e a mendicncia).

    Na segunda metade daquele sculo, dois constrangimentos histricos vm al-terar essa situao: a Lei de Terras e a abolio, sem qualquer mecanismo de pro-teo ao recm-liberto. Aliado a esses eventos, a poltica de imigrao, baseada na idia do branqueamento da nao, recrudesce o quadro social. O negro perde o lugar no mercado de trabalho. Essa perda significou a perpetuao de uma si-tuao de pobreza e misria. Sem lugar nos setores econmicos mais dinmicos, o negro vai buscar espaos nos meandros e interstcios possveis: os pequenos servios, o trabalho precrio etc.

    Efetivamente, no havia no discurso republicano nenhuma proposta (ou pro-jeto) de integrao voltada aos ex-escravos ou aos seus descendentes. Como j afirmou Bosi, para o negro brasileiro, o liberalismo republicano nada tinha a ofe-recer (BOSI, 1992, p. 244). Essa, contudo, no era uma questo menor poca. Nunca demais lembrar que, no final do sculo XIX, dois teros da populao era formado por descendentes de africanos. Nesse momento, a questo racial apresentava-se como uma temtica central no debate sobre o desenvolvimento nacional. Entendendo o embranquecimento como condio necessria ao avan-o do pas, o pensamento social da poca apontava a centralidade do tema da

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    raa. A imigrao era entendida como etapa imprescindvel do processo de afir-mao da nao e dos nacionais. Essa compreenso do problema racial permitiu no apenas abrir as portas para o imigrante europeu, mas tambm determinou a forma como este foi recebido no pas.

    Nesse contexto, no se decretava oficialmente o exlio do ex-cativo, mas esse passaria a viv-lo como um estigma na cor da sua pele (BOSI, 1992, p. 272). De fato, para parcela majoritria da elite poltica nacional, a questo do negro se referia no apenas a sua substituio como mo-de-obra, mas, principalmente, necessidade de uma estratgia que promovesse sua diluio no contexto popu-lacional nacional. Abolida a escravido, no restou no debate poltico nacional o tema da incluso dos ex-escravos e seus descendentes no tecido social ou pol-tico da nao. Perdida sua centralidade no debate sobre o processo de trabalho nas propriedades rurais, a presena negra se esvaa como objeto de intervenes pblicas que tivessem como intuito a sua incluso. Ao contrrio, compreendida como um entrave ao desenvolvimento nacional, a presena da populao negra no pas era percebida como um obstculo que deveria ser superado. E a sua gra-dual extino seria ento realizada pela via do embranquecimento.

    Aguardando sua redeno pelo processo de mestiagem, restava populao negra manter-se nos extratos subalternos da sociedade. Nesse contexto, poucas opes restaram s vtimas da escravido recm abolida: ou a velha condio de agregado; ou a queda no lmpen que j crescia como sombra do proletariado bran-co de origem europia; ou as franjas da economia de subsistncia (ibid., p. 266).

    O mercado de trabalho livre no Brasil foi, assim, moldado por uma poltica de imigrao, cuja perspectiva era mais do que uma simples estratgia de subs-tituio de mo-de-obra. A imigrao, favorecida por taxaes e subvenes, em detrimento da mo-de-obra nacional, era parte de um projeto de nao que tinha no embranquecimento uma de suas mais importantes estratgias. O merca-do de trabalho nacional nasceu, assim, dentro de um ambiente de excluso para com uma parte significativa da fora de trabalho. Criando dessa forma o trabalho livre, criaram-se tambm no pas condies para que se consolidasse a existncia de um excedente estrutural de trabalhadores, aqueles que sero o germe do que se chama hoje setor informal.

    Assim, se, de um lado, a ideologia do Brasil moderno, do progresso e do crescimento, no comportava a viso do pobre, sobretudo do pobre e negro, a

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    grande maioria, de outro lado, a despeito desse mesmo discurso modernizante, a sociedade brasileira sempre tem convivido com a pobreza e com a desigualda-de, fazendo destas uma espcie de ponto de apoio de sua reproduo. O Brasil, desigual em sua essncia, precisa dos pobres e da pobreza. O dia-a-dia de nossa sociedade no prescinde dos servios pessoais a baixo custo. Essa sinergia per-versa vige at nossos dias.

    No pas que convive e vive da desigualdade, o negro, ao perder o lugar cen-tral no mundo do trabalho, no deixou de exercer um papel social como o ncleo maior dos pobres, prestadores de servios aos quais as classes mdias recorrem ostensiva e sistematicamente.

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  • CAPTULO 1 A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTO RACIAL NO BRASIL 43

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  • AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO 45

    RACISMO E REPBLICA: O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAO RACIAL NO BRASIL

    LUCIANA JACCOUD CAP

    TULO

    INTRODUO

    O racismo nasce no Brasil associado escravido, mas principalmente aps a abolio que ele se estrutura como discurso, com base nas teses de in-ferioridade biolgica dos negros, e se difunde no pas como matriz para a interpretao do desenvolvimento nacional. As teorias racistas, ento largamente difundidas na sociedade brasileira, e o projeto de branqueamento vigoraram at os anos 30 do sculo XX, quando foram substitudos pela chamada ideologia da de-mocracia racial. Nesse novo contexto, entretanto, a valorizao da miscigenao e do mulato continuaram propiciando a disseminao de um ideal de branqueamento como projeto pessoal e social. Sua crtica s ganhou repercusso nas ltimas dcadas do sculo XX, quando a denncia da discriminao como prtica social sistemti-ca, denunciada pelo Movimento Negro, somou-se s anlises sobre as desigualdades raciais entendidas no como simples produto de histricos acmulos no campo da pobreza e da educao, mas como reflexos dos mecanismos discriminatrios.

    Este captulo tentar recuperar os principais argumentos que permearam esse debate, destacando o papel da ideologia do branqueamento e, posteriormente, da democracia racial, como elementos formadores de um projeto nacional. Em um

  • 46 AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO

    sculo marcado pelo esforo de modernizao do pas, as vises hierrquicas do social e a amplitude das divises presentes na sociedade sustentaram um proces-so de construo social e poltica bastante distante dos princpios que organizam a cidadania no projeto de instituio de um Estado republicano e democrtico. Em um contexto de grande fora do pensamento autoritrio que ganhou ex-presso mxima na obra de Francisco Campos, de Oliveira Vianna e da