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O PRESENTE DE OXUM E A CONSTRUÇÃO DA MULTIPLICIDADE NO CANDOMBLÉ Miriam C. M. Rabelo Universidade Federal da Bahia – Salvador Bahia – Brasil A questão Parte importante da vida de um terreiro de candomblé envolve o preparo de oferendas – desde aquelas que dizem respeito à relação entre um adepto e seu orixá (ou caboclo) até aquelas em que toda a comunidade figura na posição de doador; des- de as oferendas mais simples, preparadas e arriadas sem despertar muita atenção de pessoas não pertencentes ao terreiro, até presentes elaborados, que convocam tanto os adeptos quanto os espectadores de fora e que requerem práticas coletivas, por ve- zes espetaculares, em locais públicos como praias e matas. Os circuitos de oferendas jogam papel importante na dinâmica relacional das comunidades de candomblé – não só fortalecem e aprofundam, via a mediação do terreiro, os laços entre adeptos e entidades, como também contribuem para que laços potenciais sejam devidamente identificados e encaminhados. Neste texto, tratarei de um desses circuitos – uma oferenda para Oxum. Pre- tendo fazê-lo tomando como foco o objeto mesmo – um presente preparado em um terreiro de candomblé e arriado nas águas do mar para este orixá. Colocar acento sobre o objeto tem aqui um significado particular, sendo uma injunção metodológi- ca: significa não deixar que o objeto desapareça ou que seja diluído pela estratégia de evocar o contexto que o explica. Ou melhor: é evitar operar o salto que leva do objeto direto para aquilo que, pertencendo a uma realidade de nível superior, supos- DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872015v35n1cap11

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O presente de Oxum e a cOnstruçãO da multiplicidade nO candOmblé

Miriam C. M. RabeloUniversidade Federal da Bahia – Salvador

Bahia – Brasil

A questão

Parte importante da vida de um terreiro de candomblé envolve o preparo de oferendas – desde aquelas que dizem respeito à relação entre um adepto e seu orixá (ou caboclo) até aquelas em que toda a comunidade figura na posição de doador; des-de as oferendas mais simples, preparadas e arriadas sem despertar muita atenção de pessoas não pertencentes ao terreiro, até presentes elaborados, que convocam tanto os adeptos quanto os espectadores de fora e que requerem práticas coletivas, por ve-zes espetaculares, em locais públicos como praias e matas. Os circuitos de oferendas jogam papel importante na dinâmica relacional das comunidades de candomblé – não só fortalecem e aprofundam, via a mediação do terreiro, os laços entre adeptos e entidades, como também contribuem para que laços potenciais sejam devidamente identificados e encaminhados.

Neste texto, tratarei de um desses circuitos – uma oferenda para Oxum. Pre-tendo fazê-lo tomando como foco o objeto mesmo – um presente preparado em um terreiro de candomblé e arriado nas águas do mar para este orixá. Colocar acento sobre o objeto tem aqui um significado particular, sendo uma injunção metodológi-ca: significa não deixar que o objeto desapareça ou que seja diluído pela estratégia de evocar o contexto que o explica. Ou melhor: é evitar operar o salto que leva do objeto direto para aquilo que, pertencendo a uma realidade de nível superior, supos-

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872015v35n1cap11

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tamente o explica – o contexto de normas, crenças, valores, relações de poder, etc. Sugiro que é possível fazer isso sem cair no problema oposto de isolar o objeto das suas múltiplas relações. A solução explorada no presente texto é atentar para as práticas, tanto aquelas de que o objeto gradualmente emerge, para logo em seguida desapa-recer (incluindo-se aqui as práticas visuais que o constituem enquanto coisa vista e apreciada), quanto aquelas que o presente suscita ou que cria ocasião para emergir.

Começo o texto narrando o evento que vai da preparação da oferenda no terreiro – um terreiro de médio porte da cidade de Salvador – até sua consumação na praia.

O evento

No sábado à tarde os preparativos já estavam em curso. Quatro balaios – um grande e três menores – estavam dispostos sobre mesas de plástico, ocupando o es-paço central do barracão. O balaio maior havia sido forrado com um tecido dourado e envolto com uma faixa dourada amarrada em um grande laço. Um dos balaios menores fora enfeitado de modo semelhante. Ambos eram destinados a Oxum. Ao lado dos balaios, sacos com saboneteiras, espelhos, carrinhos, bichinhos, bonecas, sa-bonetes, perfumes – uma profusão de miudezas para encantar qualquer criança. Cada vez que chegava alguém, mais presentes. Muitas flores acumulavam-se em baldes de água; no seu rastro, folhas caídas, pequenas poças de água no chão e um cheiro ado-cicado. Bacias com uvas, peras e maçãs. Da cozinha, vinham pratos com as comidas preferidas de Oxum: omolocum (feijão fradinho cozido, refogado com cebola, cama-rão seco e azeite e enfeitado com camarões inteiros e ovos cozidos); ipeté (inhame cozido e amassado, temperado com azeite de dendê e camarão seco) e peixe frito. Um grande bolo com cobertura amarela, colocado sobre um pedestal de gesso, atraía os olhos e a boca de quem chegava. Fora encomendado em homenagem à santa.

O presente era de Oxum, mas Iemanjá e Nanã também foram lembradas. Para Iemanjá fora preparado um prato de fava cozida e refogada com cebola, camarão e azeite; para Nanã, feijão preto cozido no azeite. Cada uma das orixás tinha seu pró-prio balaio, todos do mesmo tamanho e menores que o balaio principal de Oxum. Também havia bacias grandes com milho branco cozido, arroz cozido e pipoca e um prato com acaçá. Do quarto dos santos, aberto, haviam sido retirados os assentamen-tos das três Oxuns da casa, uma delas a Oxum da mãe de santo.

Os assentamentos foram levados para uma pequena área coberta contígua ao barracão, onde se encontram as estátuas de gesso dos caboclos Caitumba e Capan-gueiro (um índio e um boiadeiro), caboclos da mãe de santo. Os assentamentos de Oxum são compostos de louça amarela: uma sopeira, uma bacia, pratos, um quarti-nhão. No interior da sopeira está o otá da santa: a pedra em que ela reside, na qual foi

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assentada. O assentamento tem uma montagem vertical: o quartinhão carrega a bacia dentro da qual está a sopeira cercada pelos pratos, arrumados em sua volta como uma camada de pétalas. Ao serem trazidos, os assentamentos foram desmontados: a sopei-ra destampada, colocada no chão ao lado do quartinhão. Os conjuntos desmontados foram cercados de folhas e depois cobertos com um grande pano branco bordado.

Ao cair da tarde, filhos e filhas da casa já estavam reunidos para o corte dos bichos (a matança) para Oxum. Os assentamentos desmontados foram descobertos. Iaôs sem obrigação de três anos e abiãs1 sentaram-se em esteiras no barracão, distantes da cena principal comandada pela mãe de santo, pelo axogum (ogã responsável pelo sa-crifício) e por algumas equedes mais velhas2. Entre esses dois grupos estavam os demais rodantes, equedes e ogãs. O sangue dos bichos regou (alimentou) o otá e misturou-se à água do quartinhão. Veículo de axé3, atraiu os orixás dos abiãs e iaôs – entre eles duas Oxuns que deram voltas dançando no barracão. Depois do sacrifício, os bichos foram tratados – como de costume, os ogãs cuidaram da cabra e as equedes das aves. As par-tes internas dos bichos – também chamadas de axés – foram retiradas e preparadas na cozinha, sendo separadas cabeça, patas e extremidades. Algumas equedes agachadas puseram-se, então, a arrumar esse material em tigelas de barro. Ao final, o conteúdo depositado na tigela foi coberto por uma espessa camada de penas.

À noite, o movimento em torno dos balaios foi grande. As pessoas traziam presentes – bonecas, sabonetes, espelhos e pentes de plástico, canecas e porta-joias enfeitados –, cada qual fazendo questão de depositar o seu. Também selecionavam frutas e flores para colocarem no balaio. Um grupo de filhas de santo amarrava fi-tinhas amarelas em volta das miudezas para, em seguida, prendê-las nas bordas do balaio grande, formando franjas coloridas e multiformes. Depois, enquanto a matan-ça “descansava”, foram preparados os balaios menores que levariam apenas comida seca4. Parte do balaio pequeno de Oxum foi preenchido com o feijão fradinho e, sobre ele, foram dispostos ovos, camarões inteiros e frutas. O balaio de Iemanjá foi composto por duas metades: uma com arroz e outra com fava. O de Nanã, em dois círculos concêntricos: o maior, com feijão preto, foi rodeado por uma fina linha de pipocas. Sobre os grãos muitas flores foram plantadas – e muito foi discutido acerca da composição de cada arranjo.

Todo mundo dormiu no terreiro esta noite, em esteiras espalhadas no barracão, onde quer que houvesse espaço livre. A conversa prolongou-se por um tempo; pri-meiro argumentos inteiros, depois meias palavras e, por fim, antes do silêncio total, alguns breves ruídos. Poucas horas depois o silêncio foi quebrado pelo chamado da mãe de santo e, ainda de madrugada, a arrumação recomeçou. As partes dos bichos que haviam sido recolhidas no alguidar foram esvaziadas no balaio grande. Por cima, milho branco, porções do bolo, frutas, bonecas e espelhinhos de plástico, acaçás e muitas flores plantadas.

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Figura 1: Composição do Balaio de Oxum. Foto: Miriam Rabelo.

Ninguém ficou sem depositar algo no balaio – era um vai e vem de mãos, de corpos debruçados sobre as cestas, de comentários e exclamações. Quando tudo ficou pronto e arrumado, mais exclamações. Algumas fotos. Mas não sobrou muito tempo para contemplação; ainda havia muito a fazer.

Figura 2: Balaios prontos. Foto: Miriam Rabelo.

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Os assentamentos que comeram foram lavados primeiramente em grandes bacias de água e com sabão de coco, passando depois para uma segunda lavagem no amaci (infusão de folhas frescas maceradas, de cheiro agradável). Por fim, foram guardados, recolhidos de volta ao quarto, em sua montagem vertical.

Já eram quase 7 horas da manhã quando as pessoas foram trocar de roupa. Aos poucos, o ajuntamento formava-se de novo; desta vez, no lugar dos rostos adormeci-dos, faiscava a animação da festa por vir. Em vez das roupas de ração, de uso diário, as mulheres vestiam largas saias estampadas e ojás (faixas para cobrir as cabeças), a maioria do mesmo pano das saias; os homens, camisas brancas ou batas e bonés africanos. Cada um com suas contas. Alguém avisou que o ônibus chegara e pediu pressa: o pescador que levaria o presente prevenira que, caso atrasassem muito, com a maré enchendo, não haveria mais condições de o barco sair. A mãe de santo já estava a postos.

Os atabaques ressoaram e deu-se início a um pequeno xirê – momento dos ritos de candomblé em que os filhos de santo, na roda, dançam e cantam para os orixás. Quando começaram os cantos para Oxum, a mãe de santo presidiu a distribuição dos balaios entre aqueles que seriam responsáveis por carregá-los até a praia, não sem antes desfilarem com eles à cabeça: primeiro na roda e depois na pequena procissão que do barracão se dirigiu ao ônibus. Com os balaios, seguiram também os atabaques.

No ônibus a animação era geral. Cantava-se alto; quem sabia canto de Oxum puxava e logo tinha um coro para responder. Da rua, muita gente escutava e olhava. O ônibus seguiu pela orla em direção a Itapuã. Ao chegar, virou numa rua lateral e estacionou quase em frente a um condomínio residencial. Lá fora a procissão se refez; no princípio sem muita ordem, atravessou a rua e foi em direção à praia. Já na praia, seguiu mais unificada. Enquanto crescia o monte de chinelas acumuladas junto à

Figura 3: A roda na praia. Foto: Camila Hita.

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barraca dos pescadores, logo à entrada da praia, também crescia, perto do mar, a roda de filhos de santo descalços, dançando e cantando ao som dos atabaques, sob o olhar curioso dos passantes, que paravam para admirar. No centro da roda, foram deposi-tados os balaios. E, em meio ao movimento da roda, logo chegaram duas Oxuns nos corpos de seus filhos (um homem e uma mulher, ambos jovens, ambos iaôs), que fo-ram imediatamente paramentados. Com grandes laços amarrados na cabeça e na al-tura do peito, as santas balançavam os corpos suavemente, dançando na roda, então mais animada pela sua presença. Equedes borrifavam perfume quando elas passavam. E alguém sempre gritava: Ora ieiê Oxum!

Figura 4: A entrega dos balaios. Foto: Camila Hita.

Figura 5: Acompanhando a trajetória do barco.Foto: Camila Hita.

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Algumas voltas depois, a roda abriu-se, e o barco que já aguardava ocupou o foco das atenções e movimentos. Alguns ogãs de calças arregaçadas tomaram os ba-laios e entraram na água para subir no barco. Da linha formada pelas pessoas, paralela à linha do mar, saía um rabicho de gente, balaios e flores em direção ao mar, que não estava nem manso, nem revolto – apenas a exigir cautela.

O grupo, agora mais espalhado ao longo da praia, olhava de pé os ogãs entra-rem no barco e este sumir nas ondas. A expectativa era grande.

A essa altura, outros orixás já tinham baixado. Não ficaram muito: foram des-pachados pelas equedes e, em seu lugar, deixaram os erês – entidades infantis que os acompanham. Concentrados em um ponto mais distante do mar, os erês brincavam – pulavam, cantavam, faziam roda. Na outra extremidade do grupo, uma Oxum e uma Iemanjá, recém-chegadas no corpo de suas filhas – duas iás5 da casa –, zelavam pelo retorno seguro do barco.

Aos poucos, o pontinho escuro no meio das ondas foi assumindo a forma do barco que regressava. De mãos vazias e com a boa notícia de que o presente, engolido pelas ondas, não voltara – fora aceito por Oxum –, os ogãs dirigiram-se a Oxum, que os aguardava na praia. Caíram a seus pés em reverência e, um por um, foram abra-çados pela santa. Fizeram o mesmo aos pés da Iemanjá. Outras pessoas aproveitaram a ocasião para pedir a bênção às duas orixás – descobrindo suas cabeças e deitando os corpos na areia. Por fim, os orixás e os erês foram despachados, e o grupo seguiu para o ônibus.

Práticas e tempos: ocultar, mostrar e ver

Até sua consumação nas águas, o presente percorreu uma intrincada trajetória: foi feito pela combinação de diferentes ingredientes em balaios enfeitados, transpor-tado por diferentes meios até o mar, acompanhado por cantos e tambores, por gente e por santos, admirado pelos “de dentro” e pelos “de fora”, aceito por Oxum. Tam-bém produziu vários efeitos: reuniu a comunidade do terreiro, provocou a vinda de algumas Oxuns dessa comunidade, primeiro no barracão e depois na praia, alinhou os dentro e os de fora, ora separando, ora permitindo uma sutil circulação entre as posições. Nesta seção, pretendo refletir sobre essa trajetória e seus desdobramentos.

Talvez o primeiro elemento que chame atenção seja a dificuldade de dissociar o objeto feito – o presente – da série complexa de eventos envolvida na sua consecução e responsável pelo seu destino final. Nessa série estão incluídos os eventos do corte dos bichos e do preparo da comida seca dos orixás, os eventos diretamente relaciona-dos à composição do balaio, o pequeno xirê que antecede a viagem e os acontecimen-tos da praia quando o presente é finalmente lançado no mar.

Algumas observações podem ser feitas acerca desse transcurso temporal. Pri-meiro, temos aqui um período de dois dias, distribuídos em qualidades temporais distintas – tempos de intensa atividade e tempos de passividade e descanso. À pri-

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meira vista, essa diferença parece corresponder a uma divisão entre tempos fortes (em que acontecem os eventos definidores da sequência temporal como um todo) e tempos mortos ou fracos (em que ocorre pouca coisa relevante). No candomblé, entretanto, o descanso não é um tempo morto. O tempo da oferenda (do seu preparo à sua consumação) define-se por um conjunto de transformações, sobre o qual falarei mais a seguir – o sacrifício dos bichos, a preparação das comidas frias na cozinha, a composição do balaio são todos processos transformativos importantes. Porém, em-bora requeiram muita atividade por parte dos integrantes humanos do terreiro, essas transformações precisam de um intervalo de inatividade ou descanso para ter efeito, isto é, para poder efetivamente se processar e se estabilizar: a matança precisa des-cansar antes de (para) ser arriada, assim como as pessoas precisam repousar para que possam ser fortalecidas com as forças manipuladas no terreiro. Longe de ser um intervalo que simplesmente separa eventos transformativos diferentes – um tempo fraco –, o descanso é parte essencial de toda transformação. O fazer no candomblé demanda também deixar acontecer ou deixar que o tempo opere parte do trabalho.

Em segundo lugar, há algo a dizer sobre o evento e suas conexões temporais. É possível estendê-lo para trás – uma promessa feita a Oxum ou uma cobrança feita pelo orixá deslancha os preparativos e o planejamento – como também para frente – entre os desdobramentos do presente incluem-se novas promessas e planos para a oferenda no ano seguinte. Ou seja, o tempo do presente é o tempo de relaciona-mentos que precisam ser renovados, reativados, alimentados; é o tempo que envolve ações como prometer e honrar a palavra, ofertar e receber confirmação de que a oferenda foi aceita.

Um terceiro ponto é que o tempo da oferenda é um tempo composto, defini-do não só pelo ciclo da promessa como também por durações diferentes que ora se encontram, ora se justapõem. Refiro-me aqui às durações dos materiais que são reu-nidos no balaio. É notável a variedade desses materiais: o alguidar com as partes dos bichos destinadas a Oxum, pratos de barro com comidas frias (cada um composto de diferentes ingredientes), flores, ingredientes cozidos como milho branco, arroz, fava, feijão preto, e ingredientes crus como milho de pipoca, aos quais se agregaram sabo-netes, saboneteiras, espelhinhos de plástico, canecas coloridas, bonecas, carrinhos etc. Uma primeira tentativa de classificar e ordenar essa variedade pode resultar em uma divisão entre o tempo das coisas vivas que perecem (plantas, vegetais, animais) e o tempo das coisas não vivas (plásticos, pedras, recipientes de argila etc.) – mas no candomblé a quartinha com água, as contas, os atabaques e a pedra (otá) são vivos (comem, ou melhor, precisam ser alimentados). Tratar as diferentes durações que confluem na composição da oferenda com base na vida (pensada enquanto atributo de certas coisas) mostra-se no mínimo enganador: não porque “vida” seja uma noção alheia ao mundo do candomblé, mas porque nele a vida é menos propriedade que relação; define um campo inteiro de dependências, em que cada ser depende de muitos outros para existir, ou ainda, em que cada ser contribui potencialmente para

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a feitura de muitos outros. Seria melhor, então, para falar do tempo das coisas, recor-rermos à diferença entre coisas artificiais, cujo tempo seria determinado pelo projeto e fabricação humanas, e coisas naturais, supostamente portadoras de um tempo que independe de qualquer intervenção6? Neste caso o problema é que, quando conside-ramos as práticas que se desenrolam no preparo da oferenda e que mobilizam tanto minerais, vegetais e animais quanto artefatos de barro e de plástico, somos levados a concluir que todos são feitos, isto é, são alvo de algum tipo de intervenção, mesmo os crus: cozidos, manipulados, misturados, agregados, expostos ao tempo, à luz e ao calor7. O que importa na oferenda é a composição do conjunto, e esta é regida menos por considerações acerca da origem do material usado (natural x artificial) do que por considerações a respeito da afinidade entre os materiais e o orixá homenageado ou da maneira como estes se atraem – aqui temos Oxum, deusa vaidosa que gosta de enfeites, de perfume, de mimos, de brilho, de ouro, de amarelo, de riqueza etc.

Por fim, cabe notar que o tempo entre o preparo do presente e sua entrega a Oxum equivale ao intervalo entre a composição e o preenchimento do balaio e seu esvaziamento final quando é jogado no mar e tragado pelas águas – e esse intervalo é relativamente curto. Ou seja, o presente é feito para, em seguida (no dia seguinte), ser desfeito e sumir definitivamente de vista. Assim, em sua curta trajetória, passa de uma exposição reduzida – quando o que importa não é propriamente ver, admirar, mas fazer – a uma exposição máxima – quando desfila ante os presentes (do terreiro e de fora) como objeto de admiração – e, enfim, a uma invisibilidade completa e necessária – quando é dissolvido na água, seu desaparecimento (ou não retorno nas ondas) indicando sua aceitação por Oxum. Muito apropriadamente a trajetória da oferenda é semelhante àquela de pratos produzidos para encantar a vista e o paladar antes de serem incorporados como alimento pelo organismo. Mas, no caso do presen-te de Oxum, a dinâmica do ver e do ocultar, aparecer e sumir de vista permeia todo o processo de produção – não é restrita ao “consumo” nem equivale à diferença entre fazer e consumir.

Como tratar de um objeto que tem uma vida tão curta e cujo destino final é (se tudo der certo) não ser mais visto por ninguém? Um objeto cuja fabricação envolve o ocultamento sucessivo de coisas cuidadosamente preparadas e dignas de admiração? E cujo sucesso é, pelo menos em parte, medido por seu ocultamento nas águas? Em um conjunto de aulas sobre a visão (em que examina vários artefatos melanésios e tenta reconstituir, a partir deles, o que seria uma teoria melanésia da visão), Marylin Strathern (2013:24, tradução nossa) evoca o caso de antropólogos que estudam arte-fatos “entre grupos que deliberadamente fazem coisas com uma atenção detalhada a seu aspecto visual, para em seguida escondê-las, impedindo que sejam vistas”. Como entender objetos feitos (por artesãos experientes, em riqueza de detalhes, em compo-sições atraentes e belas) para não ser vistos? Strathern inicia sua própria reflexão re-cordando o argumento desenvolvido por Rita Astuti (1994 apud Strathern 2013) em seu estudo sobre as enormes esculturas de madeira que os Vezo de Madagascar pro-

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duzem por ocasião de ritos mortuários – esculturas que, embora impressionantes, não são feitas para ser vistas (servem para separar os vivos dos mortos). A questão para Astuti era como ver, enquanto antropóloga, objetos como as esculturas Vezo, que exigem daqueles que porventura as encontram que desviem o olhar. Para a autora, o importante nesses casos é privilegiar a atividade mesma de produção dos objetos.

Começarei seguindo essa sugestão de Astuti. Mas, antes de fazê-lo, é impor-tante deixar claro que não se trata de deslocar a atenção dos objetos para seu con-texto social ou cultural (tomando-os, por exemplo, como representações materiais de valores ou sentimentos). Esse caminho, como já argumentaram vários estudiosos (Strathern inclusive), termina por descartar os objetos (estes valeriam apenas como dado empírico que dá acesso ao que realmente interessa: a cultura, a sociedade, a economia). O caminho a ser trilhado consiste antes em tomar os objetos como enti-dades que emergem de certas práticas (inclusive práticas visuais) e contribuem, no curso mesmo de sua formação, para fazer emergir outras tantas entidades e processos.

Um dos elementos que chama atenção na preparação do balaio é a natureza eminentemente coletiva do processo: todos os adeptos da casa participam – fazem mesmo questão de participar – depositando alguma coisa no balaio (não raro algo que compraram ou prepararam para este fim). Embora alguns ofereçam balaios intei-ros a Oxum (sempre menores que o balaio da casa), todos (mesmo estes) procuram contribuir com o presente coletivo. Na verdade, aqueles que se mostram preocupa-dos exclusivamente com o presente individual terminam sendo alvo de comentários negativos. O presente de Oxum é, assim, um composto formado pela reunião de várias dádivas individuais – que aparecem no ato de ser depositadas no balaio e de-saparecem logo em seguida ao ser misturadas às demais. Desse modo, se cada um se distingue ao colocar um pouco de si na oferenda, também se apaga na medida em que o presente toma forma. Quando o barracão come por ocasião da abertura de um terreiro ou da renovação do axé de uma casa já aberta temos um procedimento semelhante: um buraco aberto no centro do salão recebe oferendas depositadas pelas mãos de todos os adeptos do terreiro.

Entre o evento que inaugura o barracão e os eventos envolvidos na preparação do presente de Oxum há ainda outro ponto em comum: um processo de composi-ção em camadas no qual aquilo que está embaixo é inacessível à visão, permanece escondido. É assim com o alguidar contendo as partes dos bichos sacrificados ao ser depositado no balaio: é oculto embaixo de camadas de arroz e milho branco sobre as quais flores são plantadas (vale notar que as partes preparadas dos bichos sacrificados foram cobertas com camadas de penas antes de ser adicionadas ao balaio). Em meio às flores, aparecem bonecas e alguns acaçás. Em volta do balaio, amarrados por fitas, brinquedinhos de plástico balançam toda vez que o balaio oscila ao ser carregado. A cena visível é “inocente”: nada sugere imediatamente aquilo que está oculto.

A feitura do balaio envolve um procedimento bem conhecido e já bastante comentado do candomblé: a arte de ocultar, de manter uma coisa em segredo en-

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quanto se revela outra (não necessariamente seu oposto). Conforme observado ante-riormente (Johnson 2002), esse procedimento foi fundamental como meio de defesa ou estratégia de preservação no período formativo do candomblé e nos anos em que os terreiros foram objeto de forte repressão policial. Era preciso ocultar para preser-var. Ou ainda: para obter aceitação e respeitabilidade (como religião, por exemplo) era preciso que os terreiros escondessem ou minimizassem a importância daquilo que poderia ser alvo de condenação da sociedade branca dominante e, em alguns casos mesmo, apresentassem o que estivesse mais afinado com o gosto e moralidade do observador externo8. O ocultamento seria então uma estratégia que a um só tempo serviria para proteger e para projetar certos terreiros no cenário local. Seguindo esse raciocínio, poderíamos dizer que a estratégia de ocultamento empregada na fabri-cação do presente de Oxum serve para projetar uma imagem da oferenda bastante palatável ao olhar curioso dos passantes – gente de fora que se detém para ver e fotografar – e, em termos mais gerais, da sociedade soteropolitana que não cansa de admirar e tornar pública a beleza do candomblé.

Será isso mesmo? Embora não negue a validade desse argumento, quero sugerir outra possibilidade interpretativa. Para isso, passarei em revista brevemente outras coisas que figuram no evento estendido do presente de Oxum. Iniciarei com os as-sentamentos. Já vimos que estes são compostos por uma coleção de potes e pratos: no caso do assentamento de Oxum, uma bacia de louça repousa sobre um quartinhão; dentro dela uma sopeira tampada rodeada por duas camadas de pratos. No assenta-mento dois receptáculos escondem conteúdos inacessíveis ao olhar – o quartinhão é mantido cheio, com água, e a sopeira guarda uma pedra (o otá do santo). Temos, assim, tanto objetos sobre objetos – numa montagem vertical – quanto objetos den-tro de objetos, conteúdos dentro de receptáculos e, às vezes, completamente ocultos em seu interior. Sansi-Roca (2006) já observou que o assentamento é um corpo – em alguns ritos, o corpo do adepto e o assentamento do seu santo são sujeitos à mesma série de operações emergindo como partes equivalentes de uma pessoa estendida. O que eu desejo ressaltar aqui é que no assentamento temos um processo de ocultamen-to – o otá, elemento central e definidor do conjunto inteiro, está oculto dentro da sopeira que é apenas parcialmente visível porque está envolta por camadas de pratos (sem contar o fato de que os assentamentos são mantidos em quartos fechados, aos quais não se tem acesso fácil).

Quando o santo vai comer, o assentamento é retirado do local em que perma-nece recluso ou escondido da vista dos passantes e é desmontado: a estrutura vertical é desfeita – os componentes do conjunto são separados e colocados lado a lado no chão – e os dois principais receptáculos são abertos, tendo seus conteúdos expostos (apenas para os filhos de santo da casa e particularmente para aqueles que presidirão a cena) para ser regados com o sangue dos bichos sacrificados. Temos aqui um corpo cujo interior é exposto na atividade de comer ou uma prática – comer – que se de-senrola no interior de um órgão aberto, parcialmente visível. Como vimos, finda a

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atividade e o descanso subsequente, o otá é de novo oculto na sopeira, e o conjunto é refeito e guardado. No alguidar colocado em frente ao assentamento são arrumadas as partes dos bichos ofertadas ao orixá. Uma vez arrumadas, elas são cobertas – par-cialmente ocultas – por camadas de penas. Mais uma vez se repete o procedimento de ocultar por baixo de camadas.

Tomemos essas coisas compostas (o assentamento, partes dos bichos arrumadas no alguidar) para refletir sobre o procedimento de ocultar sob camadas, tão comum no candomblé. Dois pontos destacam-se. Primeiro, ocultar quer dizer guardar, proteger do olhar, evitar que pessoas despreparadas tenham acesso direto àquilo que é fonte e veículo de axé. Segundo, trata-se de procedimento que define um modo de sociabili-dade operante no terreiro, que envolve uma diferença entre quem pode ver e ocultar (os mais velhos) e quem tem a visão controlada ou limitada por eles (os mais novos).

Voltemos ao balaio de Oxum – coisa composta, por excelência, cuja preparação mobilizou os assentamentos de três Oxuns do terreiro (que comeram) no evento do corte. No presente temos um recipiente/corpo oco (o balaio) que é preenchido com materiais diversos até ficar cheio; neste processo de preparação algumas coisas ficam ocultas embaixo de camadas, outras desparecem para dar lugar a entidades novas re-sultantes de misturas e combinações diversas. O alguidar contendo partes dos bichos sacrificados é escondido por baixo de camadas de milho branco. O que permanece oculto, entretanto, não são apenas coisas (os bichos), mas eventos (o sacrifício) – neste caso um evento fundamental à vida no candomblé, que aumenta e faz circular o axé.

O balaio, de fato, “empacota” uma série de eventos formativos importantes do candomblé (o preparo da comida dos orixás, o cuidado com os assentamentos, a possessão), eventos acompanhados com interesse pelos filhos da casa que deles par-ticipam com diferentes graus de envolvimento e possibilidades de observação. Assim como muitas das coisas ofertadas a Oxum, esses eventos somem da vista, uma vez “depositados” no balaio. Não obstante, permanecem, para aqueles que os acompa-nharam, um centro de força a partir do qual toda composição vibra.

Também no caso do balaio de Oxum a relação entre ocultar e guardar ou proteger é importante. Ocultar aqui não é apenas garantir a aceitabilidade por parte daqueles que estão de fora, controlando o que eles podem ver, ou um procedimento guiado exclusivamente pela expectativa do olhar (julgamento) que será devolvido pelos observadores externos. É um procedimento que modula as relações internas no terreiro e que o faz tanto por uma operação de separação, dividindo o grupo em duas categorias – aqueles que podem ver e escondem aquilo que veem e aqueles que, impedidos de ver, desconhecem ou apenas pressentem algo oculto –, quanto (e talvez mais importante) por uma operação de difusão, criando centros de força a partir dos quais o axé se transmite e difunde. Nessa direção, quando dizemos que o balaio não só oculta coisas, mas eventos, ocultar significa menos tornar inacessível uma história do que impedir que ela circule livre ou irresponsavelmente. Ou, ainda, significa guardar controlando o modo de sua lembrança e difusão.

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Mas o que dizer então dos objetos e substâncias que recobrem e ocultam os primeiros? Seriam apenas adereços, escolhidos e dispostos em função de sua utilidade em manter invisível aquilo que verdadeiramente importa? Não me parece. Os eventos narrados no começo desta exposição mostram que as camadas superficiais – do balaio, do alguidar com as partes dos bichos sacrificados, dos assentamentos – são alvo de in-vestimento, pois, acessíveis à visão, são o que tornam belo o conjunto. Montar o balaio é tanto uma prática ética – honrar uma promessa, atender um pedido e colocar-se na posição de fazer novos pedidos – quanto uma prática estética – produzir e exibir um objeto de beleza e encanto. Na preparação do presente dá-se muita atenção às super-fícies visíveis, à camada de cima da oferenda depositada, aos contornos externos do balaio: a cobertura de grãos, o arranjo das flores e enfeites, a confecção do laço que envolve o balaio e a distribuição dos brinquedos amarrados em suas bordas são objeto de muita experimentação, deliberação e avaliação. Espera-se não só fazer algo belo, mas exibir a beleza da oferenda – e, nesse ponto, mais uma vez, o presente de Oxum aproxima-se de muitas outras práticas rituais do candomblé em que a dinâmica de ocultamento é, em geral, acompanhada por outra, de forte exibição (ou, ainda, em que o próprio ato de ocultar deve de algum modo também ser exibido).

No candomblé é importante exibir o poder que circula no terreiro. Os rituais públicos são um espaço privilegiado de exibição, em que orixás e caboclos são hon-rados pela comunidade, recebem homenagem e se mostram em todo seu poder e esplendor. A festa é também o momento em que o terreiro se revela para os de fora, mostrando os poderes que são aí cultivados e postos em movimento, exibindo nas posturas, gestos e roupas a hierarquia que rege a casa. Na festa, os adeptos mostram cada qual uma dimensão de si não acessível cotidianamente, com seus corpos trans-formados pelas entidades que se apossam deles e que se movem altivas frente a uma audiência em geral atenta e envolvida pela beleza do espetáculo. Muitas outras coisas são exibidas e percebidas – depois comentadas –, e quanto mais de dentro for o espec-tador mais coisas é capaz de perceber e comentar.

Todo ritual envolve apresentação, transforma algo pouco acessível em uma presença sensível soberana; separa e relaciona audiência e participantes, capturados, engajados neste movimento de apresentação, quer diluindo, quer fortalecendo as fron-teiras entre eles. O candomblé não é exceção. Mas nele a apresentação parece adquirir maior destaque, não só porque os orixás e caboclos são entidades envolventes, que modificam visivelmente os corpos de seus filhos ao se apossar deles e, uma vez no comando, interagem através da dança, respondendo aos tambores e cantos, mas tam-bém porque muita gente atraída pelo espetáculo acorre para as festas, não raro turistas interessados em ter um gosto da cultura africana na Bahia. Adeptos não ignoram esse fato e é nítida a preocupação de fazer bonito na festa – não só de garantir a beleza do conjunto, mas de assegurar para si (ou, se for rodante, para sua entidade – orixá, caboclo ou erê) uma performance igualmente bela. A festa oferece ocasião para que tanto o filho quanto a entidade que irrompe em seu corpo sejam objeto de admiração.

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Entender essa ênfase na exibição é, para muitos pesquisadores do candomblé, localizar seus efeitos sociais. Entre esses efeitos, tem sido notada a experiência de mu-dança de status à qual a festa, em geral, e a possessão, em particular, dão lugar, trans-formando pessoas comuns (muitas das quais pobres e marginalizadas dos centros de poder) em deuses altivos (Bastide 1973a; Prandi 1991). A festa permite ao adepto ex-perimentar ser visto e frequentemente ser o centro da visão, como um outro poderoso.

Todavia, conforme tem sido argumentado, os efeitos dos rituais públicos re-caem não apenas sobre os adeptos individualmente como também sobre o candom-blé, enquanto instituição religiosa, ou melhor, sobre suas relações com diferentes se-tores sociais e mais especificamente com o Estado. Para alguns autores, a ênfase na exibição – na espetacularização mesmo – serve para projetar o candomblé na socieda-de mais ampla, forjando e fortalecendo conexões vantajosas aos terreiros que melhor logram mostrar e enaltecer seu poder aos de fora. Van de Port (2005), por exemplo, propõe que a possessão exibida com toda a pompa e espetáculo nas festas é um modo de produção do inefável usado pelas lideranças para autenticar seus terreiros. O ocul-tamento faz parte dessa mesma dinâmica de exibição – o que importa aos terreiros é menos manter certas coisas ocultas do que sugerir, através do que é mostrado, uma profundidade não acessível aos de fora. No jogo entre o que é mostrado e o que é sugerido – apenas vislumbrado ou imaginado pelo observador externo – o candomblé projeta-se e autentica-se frente à sociedade.

Mais uma vez queria propor outra direção interpretativa. A dinâmica de exi-bição visa atrair, encantar, envolver, tanto o observador humano que assiste à festa quanto as entidades mesmas: evoca a presença das entidades no terreiro e, se é apre-ciada, faz acontecer essa presença. Assim, é parte importante do circuito da promes-sa – chama o recipiente, desperta sua boa vontade, indica a intenção do doador e a seriedade de seu compromisso. Vale notar que nem sempre há visitante de fora para apreciar a oferenda. A matança coberta, por exemplo, é apreciada apenas pelos adep-tos da casa, que não cansam de admirar e comentar a beleza do conjunto.

Mostrar é produzir um lugar – o lugar de quem vê e aprecia (ou não) o que vê. Ou seja, ao serem chamadas a olhar, as muitas e diferentes pessoas que se agregam em volta do balaio (entre as quais, adeptos da casa e visitantes de outras casas, vizinhos, simpatizantes e clientes do terreiro, passantes e curiosos que pararam para admirar) produzem uma posição – a de quem vê – em alguns aspectos equivalente à de Oxum, recipiente da dádiva, que, como elas, deve se sentir atraída, envolvida e encantada com o presente ofertado. Em certo sentido, os observadores não são apenas testemu-nhas externas do evento, mas parte constitutiva dele; afinal, para que produza efeito ou para que seus efeitos possam ser deslanchados, o presente precisa ser visto9, isto é, construído e apresentado como objeto de um olhar (que aprecia, admira, se encanta). Em outras palavras, a comunidade que oferece o presente precisa vê-lo sendo visto. Mas, se os espectadores cavam a posição do vidente fazendo o presente ocupar a posição de objeto visto, é importante lembrar que no candomblé essas posições são

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sempre flutuantes: quem vê pode a qualquer momento vir a fazer parte do drama observado. A pessoa que admira o presente pode se converter em (ser tomada por) seu orixá e ser objeto do olhar de outros, e ver no sentido de admirar de longe pode se converter em ver enquanto participar – aceitar, receber e incorporar para si a ofe-renda. No jogo de posições temos uma flutuação entre vidente e visível e igualmente uma duplicação dos modos sensíveis de “absorver” a oferenda: assim, a Oxum que, incorporada na filha humana, vê (aprecia) o presente ofertado é também a Oxum que, força da água, recebe e traga o presente lançado ao mar (e não mais visível pelo grupo que, na praia, aguarda o retorno do barco).

Por fim, vale notar que, no presente de Oxum, ocultar, exibir e sugerir algo oculto ao mostrar diz algo acerca das múltiplas forças que atuam no mundo – é tam-bém realizar ou “performar” a dinâmica mesma dessas forças. Nesse sentido, tanto ensina algo a respeito dessa dinâmica quanto ajuda a posicionar cada um em seu meio. Vejamos como isso se aplica. No candomblé, aprende-se desde cedo que o mundo, as coisas e as pessoas são compostos de diferentes elementos, linhas de forças ou trajetó-rias10. Dois aspectos-chave definem essa multiplicidade. Em primeiro lugar, trata-se de uma composição heterogênea que nunca se mostra em sua totalidade, havendo sempre mais forças atuantes no mundo do que aquelas que são objeto explícito de atenção e cuidado. Até que alguém sinta os efeitos que provocam e identifique o apelo que fa-zem ou até que elas mesmas decidam se mostrar, muitas entidades permanecem como presenças silenciosas ou ocultas na vida das pessoas. A multiplicidade apresenta-se (no dia a dia dos terreiros, nos seus principais ritos e na história de seus adeptos) através de um jogo de visibilidade e invisibilidade (exibição e ocultamento): aquilo que se revela (e se vê) a qualquer momento dado é apenas uma parcela do que está de fato ocorrendo (ou do que já ocorreu). E, se é assim, é sempre possível que novas adições ou reordenamentos precisem ser feitos nos circuitos das relações e alianças já contraídas. Além disso, em segundo lugar, a multiplicidade que é exibida, admirada e celebrada nos principais eventos do candomblé não é matéria para simples apreciação. Precisa ser encaminhada e desenvolvida, ou “feita” ao longo do tempo e através de uma série de procedimentos que dependem de atenção, sensibilidade e trabalho de muitos agen-tes, do recrutamento e mobilização de uma série de mediadores materiais e de práticas diversas, entre as quais figuram também práticas visuais.

Não é difícil perceber como o presente de Oxum trabalha esse tema tão central à vida no candomblé que é a multiplicidade. Temos aqui um modo de composição em que elementos heterogêneos são dispostos de acordo com uma montagem em camadas. Nessa montagem camadas superficiais escondem – resguardam, protegem – conteúdos não acessíveis; ou, ainda, um exterior visível, apresentado para cativar o olhar, oculta, mas também indica, um interior invisível (arranjo que sugere excesso ou latência em relação ao que aparece). Emerge, então, um conjunto que requer mui-to trabalho para ser feito, que enreda os integrantes do terreiro em uma experiência e, num sentido mais abrangente, em uma história comum.

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Ao compor em camadas, filhos de santo refazem, via procedimentos materiais, a dialética entre mostrar e ocultar (ou entre ver e pressentir a presença oculta), pela qual o mundo se apresenta enquanto multiplicidade nunca plenamente revelada, cujas possibilidades de apreensão e entendimento estão sempre a escapar. Aprendem sobre a multiplicidade participando dela (conectando-se) e contribuindo para sua efetivação ou feitura ao assumirem a responsabilidade pelas alianças contraídas (ou herdadas de outros) e pelas promessas feitas (ou que outros fizeram em seu nome), enfim, pelo cuidado das entidades, dos outros humanos e de si mesmos.

Finalizando...

Para concluir, gostaria de voltar à ideia esboçada no começo deste artigo de que para entender o presente de Oxum precisamos acompanhar tanto as práticas das quais emerge como objeto (ou como objeto-evento), quanto aquelas que promove e ajuda a articular. Entre as primeiras, temos práticas de mistura e de composição (ou montagem em camadas), assim como práticas visuais em que ver é igualmente pres-sentir a presença de algo oculto, admirar é também participar, e olhar pode se conver-ter em apreciar a invisibilidade (do presente tragado pelas águas). Mas, à medida que vai tomando forma, o presente também produz efeitos: enreda os adeptos da casa na trama de Oxum e, ainda que por um tempo curto, atrai o povo de fora para o círculo de influência do terreiro, projeta o terreiro para a praia e borra seus limites, chama as Oxuns da casa (que tomam os corpos de seus filhos) e a Oxum força da água e, conectando-as, ensina algo sobre a multiplicidade dos seres e do mundo.

* * *

Quando o ônibus parou em frente ao terreiro, a animação ainda era grande. No terreiro um farto café da manhã aguardava o grupo que retornava de mãos vazias. Durante o café, os eventos da praia foram exaustivamente comentados, apreciados de novo e logo associados a outros eventos passados. Depois, ficaram só mesmo os filhos da casa. O samba e a cerveja que se seguiram até parte da noite lembraram a todos que ali tudo era (ou devia ser) só alegria.

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Notas

1 Abiãs são adeptos ainda não iniciados, mas que já se submeteram a outros ritos no terreiro como lim-peza e lavagem de contas ou bori (rito para alimentar e fortalecer a cabeça). O adepto iniciado é iaô. Um conjunto de rituais (obrigações) marca o tempo da iniciação; quando o iaô completa a obrigação de sete anos se torna um ebomi ou sênior da casa.

2 Equedes e ogãs são adeptos, femininos e masculinos respectivamente, que não incorporam seus orixás (não são rodantes) e que têm funções diferenciadas na casa.

3 Axé é princípio ou força propulsora que perpassa, constitui e vincula dinamicamente os seres: as di-vindades, seus filhos humanos, os animais, plantas e coisas (ver Elbein dos Santos 1977; Bastide 2001; Augras 1987; Goldman 1987, 2005; entre outros). Assegurar que o axé seja “liberado, canalizado, fixado temporariamente e transmitido a todos os seres e objetos” (Elbein dos Santos 1977:37) é o propósito mais geral dos ritos celebrados em um terreiro.

4 Há dois tipos de comida oferecidos aos orixás: as comidas secas (pratos, às vezes bastante elaborados, feitos com espécies vegetais) e as comidas que envolvem sacrifício animal (referido como matança). As primeiras são arreadas como pedidos, depositadas nos quartos dos santos e depois no mato ou na água, a depender do orixá. Mas as comidas secas acompanham também a oferenda de animais sacrifi-cados.

5 Iá (mãe) é o título dado às ebomis que têm cargo de mãe de santo. 6 Proposta, aliás, que teria a vantagem de estar afinada com a ideia, defendida por alguns adeptos, de

que o candomblé é uma religião de culto à natureza.7 Além do mais, na comunidade de terreiro aqui descrita, o discurso que enaltece o natural (como sinal

de bom gosto e exemplar de beleza) não encontra muitos defensores.8 Conforme apontam os estudiosos, esse processo envolveu, ao longo da história das religiões de ma-

triz africana, uma pluralidade de operações e estratégias de alcance variado – desde o ocultamento, sob uma roupagem católica, de práticas religiosas de origem africana até a eliminação de práticas pouco afinadas com a moralidade dominante (de que resulta o surgimento da umbanda); desde a

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interrupção e controle do acesso a certas dimensões do culto (mantidas em segredo) até a circulação de um discurso de forte valorização do segredo. Ver, por exemplo, Ortiz (1978), Prandi (1998) e John-son (2002). Para este último, transformações operadas nas relações entre o candomblé e a sociedade brasileira oferecem a chave para entender por que, de uma religião do segredo, o candomblé se apre-senta hoje como uma religião que cultiva o discurso de valorização do segredo.

9 Como observa Strathern (2013:24, tradução nossa): “Em alguns casos o ver – de uma audiência – é parte do ‘trabalho’ envolvido na produção de artefatos”.

10 Conforme observa Bastide, por exemplo, nas religiões de matriz africana, a pessoa é “sistema de com-posição de forças”, sistema que se caracteriza por um “jogo de dialéticas, de complementariedade, de conflitos, de reforço, de exclusão entre princípios descontínuos” (1973b:40, tradução nossa). A unidade não é descartada, mas trata-se fundamentalmente de uma unidade formal, que se manifesta concretamente “em estados sucessivos de conquista, perda e retomada do equilíbrio entre forças, que ao mesmo tempo em que nos lançam para fora de nós mesmos, estão em nós mesmos, são nós mes-mos” (1973b:41, tradução nossa).

Recebido em outubro de 2014.Aprovado em março de 2015.

Miriam C. M. Rabelo ([email protected])Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia. Pós-doutora pela Universidade de Toronto (2003) e pela Universidade de Aberdeen (2011).

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Resumo:

O presente de Oxum e a construção da multiplicidade no candomblé

Este trabalho tem como foco um presente ofertado pela comunidade de um terreiro de candomblé de Salvador para a orixá Oxum. Ao descrever a trajetória do presente – desde sua preparação no terreiro até sua consumação nas águas do mar –, procura-se acompanhar tanto as práticas que lhe dão forma quanto as relações e entidades que promove e ajuda a articular. Especial atenção é dada às práticas de ocultamento e exi-bição em jogo no preparo do presente e aos modos de ver a elas relacionados.

Palavras-chave: candomblé, oferenda, práticas de ocultamento e exibição, práticas visuais.

Abstract:

The gift for Oxum and the construction of multiplicity in the candomblé

The present paper focusses on a gift offered by a candomblé community from the city of Salvador to the orixá Oxum. It describes the trajectory of the gift – from its prepara-tion in the cult house to its consummation in the sea – and follows both the practices that give shape to the gift and the relations and entities which it promotes and helps articulate. Special attention is given to practices of concealment and exhibition at play in the gift’s preparation and to the modes of seeing that are related to them.

Keywords: candomblé, gift, practices of concealment and exhibition, visual practices.