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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF CORRESPONDÊNCIA COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE Rua do Giz (28 de Julho), 205/221 – Praia Grande CEP 65.075–680 – São Luís – Maranhão Fone: : (098) 231-1557 As opiniões publicadas em artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não comprometendo a CMF. BOLETIM DA COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE Nº 29 AGOSTO 2004 ISSN: 1516-1781 DIRETORIA Presidente: Sérgio Figueiredo Ferretti Vice-presidente: Carlos Orlando de Lima Secretária: Roza Maria Santos Tesoureira: Maria Michol Pinho de Carvalho CONSELHO EDITORIAL Sérgio Figueiredo Ferretti Carlos Orlando de Lima Izaurina Maria de Azevedo Nunes Maria Michol Pinho de Carvalho Mundicarmo Maria Rocha Ferretti Zelinda de Castro de Lima Roza Maria Santos ENDEREÇO ELETRÔNICO: www.cmfolclore.ufma.br SUMÁRIO Editorial ............................................................................................................. 02 As “cenas enunciativas” das toadas dos sotaques de zabumba, de matraca e de orquestra do bumba-meu-boi do Maranhão Deline Assunção .................................................................................................................... 02 O bumba-meu-boi como o conheci (2ª parte) Zelinda Lima .......................................................................................................................... 04 “Tudo que tem começo tem fim”: a festa de morte do bumba-meu-boi em São Luís Abmalena Santos ................................................................................................................... 06 Procissão de Nossa Senhora de Fátima: devoção e ritual Éster Marques e Joaquim Santos ............................................................................................ 08 Ritos fúnebres no Maranhão: tambor de choro de Jorge Babalaô Gerson Lindoso ...................................................................................................................... 12 Dose dupla: Teté e Felipe Josimar Silva ........................................................................................................................ 14 Notícias ............................................................................................................................. 15 Perfil Popular – Leonardo Martins dos Santos Carlos de Lima ...................................................................................................................... 16

ISSN: 1516-1781 BOLETIM DA COMISSÃO MARANHENSE DE … · plo a referência a entidades espirituais da religião afro-brasileira, ao discurso religioso e a lendas maranhenses, a representantes

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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF

CORRESPONDÊNCIACOMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE

Rua do Giz (28 de Julho), 205/221 – Praia Grande CEP 65.075–680 – São Luís – MaranhãoFone: : (098) 231-1557

As opiniões publicadas em artigosassinados são de inteira

responsabilidade de seus autores,não comprometendo a CMF.

BOLETIM DA COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE • Nº 29 AGOSTO 2004ISSN: 1516-1781

DIRETORIAPresidente: Sérgio Figueiredo FerrettiVice-presidente: Carlos Orlando de LimaSecretária: Roza Maria SantosTesoureira: Maria Michol Pinho de Carvalho

CONSELHO EDITORIALSérgio Figueiredo FerrettiCarlos Orlando de LimaIzaurina Maria de Azevedo NunesMaria Michol Pinho de CarvalhoMundicarmo Maria Rocha FerrettiZelinda de Castro de LimaRoza Maria Santos

ENDEREÇO ELETRÔNICO:www.cmfolclore.ufma.br

SU

RIO

Editorial ............................................................................................................. 02

As “cenas enunciativas” das toadas dos sotaques de zabumba, dematraca e de orquestra do bumba-meu-boi do MaranhãoDeline Assunção .................................................................................................................... 02

O bumba-meu-boi como o conheci (2ª parte)Zelinda Lima.......................................................................................................................... 04

“Tudo que tem começo tem fim”: a festa de morte do bumba-meu-boi em São LuísAbmalena Santos ................................................................................................................... 06

Procissão de Nossa Senhora de Fátima: devoção e ritualÉster Marques e Joaquim Santos ............................................................................................ 08

Ritos fúnebres no Maranhão: tambor de choro de Jorge BabalaôGerson Lindoso ...................................................................................................................... 12

Dose dupla: Teté e FelipeJosimar Silva ........................................................................................................................ 14

Notícias ............................................................................................................................. 15

Perfil Popular – Leonardo Martins dos SantosCarlos de Lima ...................................................................................................................... 16

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Boletim 29 / Agosto 20042222222222

EditorialO 22 de agosto - DIA IN-

TERNACIONAL DOFOLCLORE – é, este mês,alvo de comemorações volta-das para chamar atenção dopúblico e despertar seu maiorinteresse em relação ao con-teúdo do folclore/ cultura po-pular.

Em termos maranhenses,há mais de vinte anos é promo-vido um evento nesse períodopelo Centro de Cultura Po-pular Domingos Vieira Filho– CCPDVF, órgão da Secre-taria de Estado da Cultura –SESC, que, desde a reativaçãoem 1992 da Comissão Mara-nhense de Folclore-CMF, pas-sou a contar com a sua par-ceria.

Ao longo desse tempo te-mas têm sido explorados, atra-vés de uma diversificada pro-gramação de atividades, cujatônica, em 2004, é “CulturaPopular em Festa”. Apesar dasdificuldades financeiras oraenfrentadas a nível estadual, aSemana se mantém este ano,com um cunho teórico-práti-co e abrindo maior espaçopara crianças, adolescentes ejovens, na perspectiva de mo-tivá-los a um conhecimentoque leve a uma efetiva partici-pação, “pois ninguém gosta doque não conhece”.

Destaque, também, para atradição de Mestre Felipe eDona Teté, numa homenagemaos seus 80 anos de vida mar-cados pela dedicação à cultu-ra popular maranhense. E,embalados pelo som dos tam-bores de crioula e caixas doDivino, partimos para o 11ºCongresso Brasileiro de Fol-clore, a ser realizado em Goiâ-nia, levando os anais do 10ºCongresso, que teve São Luíscomo sede, representando umesforço conjunto com a Co-missão Nacional e demais Co-missões Estaduais de Folclore.

As “cenas enunciativas”As “cenas enunciativas”As “cenas enunciativas”As “cenas enunciativas”As “cenas enunciativas”de zabumba, dede zabumba, dede zabumba, dede zabumba, dede zabumba, de

bumba-meu-boi dobumba-meu-boi dobumba-meu-boi dobumba-meu-boi dobumba-meu-boi doCertamente, não poderíamos falar do Bumba-

meu-boi do Maranhão sem levar em conta aquiloque é considerado “sotaque” (ou estilo), o qual sedelineia na vida de um brincante de boi desde amais tenra idade quando, em sua cidade natal oumesmo no bairro em que reside, seu pai ou umbrincante mais velho o incentiva a participar, aaprender e, conseqüentemente, a manter tal sota-que, o que resulta na gênese, na origem social do(s)grupo(s) de Bumba-boi(s).

Isso nos leva ao que Maingueneau (2000) cha-ma de comunidade discursiva, isto é, “os grupossociais que produzem e administram um certo tipode discurso” (p. 29), a qual pode ser aplicada em doisdomínios diversos: o primeiro, para os enunciado-res de um tipo específico de discurso que parti-lham determinados “modos de vida, de normas”, eo segundo, domínio para enunciadores dependen-tes “de posicionamentos2 concorrentes (...) nummesmo campo discursivo e que se distinguem pelamaneira segundo a qual se organizam” (p. 29-30).Adequando esse conceito para o Bumba-meu-boi,teremos comunidades discursivas que produzem,reproduzem e fazem circular as toadas conforme osotaque característico desses grupos.

Com relação aos domínios de que fala Main-gueneau, ao que nos parece, o segundo é o maisapropriado para a comunidade discursiva dos gru-pos de bois, pois são conseqüências de um proces-so de escolhas determinadas socialmente, escolhasque no Bumba-meu-boi maranhense podem se darde formas diferentes de um grupo para outro. Osposicionamentos resultam na forma como é co-nhecido aquilo que é, convencionalmente, classi-ficado nos cinco sotaques do Bumba-meu-boi, asaber: zabumba, matraca, orquestra, baixada e cos-ta-de-mão3 .

Para a descrição dos sotaques do Bumba-meu-boi, comumente, são observados aspectos referen-tes aos instrumentos musicais predominantes, aoritmo, à dança, à indumentária, ao modo de tocar,ou seja, linguagens não-verbais. Não há qualquerdúvida sobre a relevância desses aspectos diferen-ciadores, posto que eles constituem práticas dis-cursivas intersemióticas4 que, junto com a lingua-

gem verbal, estabelecem, de forma completa, a iden-tidade de cada sotaque.

Tendo por esteio essa compreensão, uma ques-tão se impõe a partir do momento em que privile-giamos a representação textual como o próprioobjeto desta pesquisa: como se caracterizariam, emtermos textual-discursivos, os sotaques de zabum-ba, de matraca e de orquestra do Bumba-meu-boimaranhense, tendo em vista uma das categorias –a cena enunciativa – envolvidas no funcionamen-to dos textos de acordo com Maingueneau (1997)5 ?

Maingueneau (1997) advoga que um texto é olugar por excelência de manifestação de um dis-curso em que a fala é “encenada”. Qualquer dis-curso tem o objetivo de convencer e o faz cons-truindo uma representação da sua própria situa-ção de enunciação, que presume um enunciador,um co-enunciador, um momento e um lugar queo torna legítimo, isto é, a sua cena enunciativa.

Levando em conta essas observações, analisa-mos que as toadas do sotaque de zabumba geral-mente se referem ao cotidiano das fazendas de gado(onde possivelmente surgiu a brincadeira do boi) eao seu próprio contexto de enunciação imediato,ou seja, elas dizem a cena enunciativa que as tor-nou possível: a festa do Bumba-meu-boi. Um pri-meiro indício desse fato é o próprio vocabulárioutilizado, em que se vê, repetidas vezes, as palavrasvaquerada, turma, conjunto, vaquero, sistênça ouassistência (o público em geral), batuqueiro e, maisdo que nos outros sotaques, a palavra turista (fazeruma bonita apresentação para turista ver). Dessemodo, o sotaque investe em cenas validadas6, taiscomo uma transação comercial realizada numafazenda de gado (compra, venda e transporte degado) e o arquitexto da lenda do Pai Francisco paralegitimar a cenografia das toadas.

Ao recorrer constantemente a essas cenas va-lidadas, o sotaque constrói uma cenografia volta-da para a origem do folguedo, o que indica umposicionamento pautado na tradicionalidade.

No sotaque de matraca, principalmente nastoadas de Cordão e/ou Urrou, as palavras bata-lhão, trincheira, estratégia, metralhadora, canhão,luta, perdedor, fracassar, contrário, surrar, defen-

* Deline Maria Fonseca Assunção é mestra em Lingüística pela UFC e professora do Curso de Letras do CESC/UEMA.1 O artigo aqui apresentado e adaptado para esta publicação é parte da Dissertação de Mestrado da autora, cujo título original

é “Organização discursiva da festa do Bumba-meu-boi do Maranhão”.2 O posicionamento indica os diferentes modos que um escritor trabalha numa prática discursiva. Os textos produzidos

nessa prática pressupõem um processo de organização social que tem sua existência motivada por essa prática mesma.3 Para uma informação mais detalhada dos sotaques, ver Carvalho (1985; 1995) e Sousa (2003).4 A prática discursiva intersemiótica integra não só produções verbais, mas também produções de outros domínios semióti-

cos como o musical, o coreográfico, o pictórico etc. (Costa, 2001).5 As outras categorias apontadas por Maingueneau (2001b) são: os domínios enunciativos (elaboração - leituras, audições,

discussões - redação, pré-difusão e publicação), os gêneros do discurso, o suporte material, o etos e o código de linguagem.6 Cenas pré-existentes, ou seja, cenas que já fazem parte do “universo de saber e de valores do público” (Maingueneau,

2001b, p. 125-126).

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das toadas dos sotaques das toadas dos sotaques das toadas dos sotaques das toadas dos sotaques das toadas dos sotaques matraca e de orquestra do matraca e de orquestra do matraca e de orquestra do matraca e de orquestra do matraca e de orquestra do Maranhão Maranhão Maranhão Maranhão Maranhão11111

der, dentre outras, constituem o seu vocabu-lário. São palavras de guerra, de disputa, deluta, que marcam o seu posicionamento nocampo discursivo da festa do Bumba-meu-boi. Assim, as cenografias mostradas são, co-mumente, vinculadas ao universo bélico.

Outro recurso ao qual os grupos desse so-taque recorrem constantemente para a legi-timação das suas cenografias é o diálogo comoutros campos discursivos, como por exem-plo a referência a entidades espirituais dareligião afro-brasileira, ao discurso religiosoe a lendas maranhenses, a representantes daIgreja Católica e das ciências ocultas, ao dis-curso da ciência da História, utilizando osprocessos da intertextualidade e da interdis-cursividade7 simultaneamente ou não.

Dentre os sotaques do Bumba-meu-boido Maranhão, o sotaque de orquestra é o quetem o ritmo e a dança mais alegres. O própriovocabulário indica isso quando lança mão depalavras como festa, alegria, felicidade, balan-çar, dançar, agitar, sorrir, vibrar, brincar etc.,as quais se referem ao contexto imediato dastoadas, qual seja, a festa do Bumba-meu-boique as tornam possíveis.

Completando a temática festiva que exal-ta a brincadeira do boi, temas que evocam oromantismo, tais como o amor, a paixão, onamoro, a sedução, a lembrança (de lugares,de amores, da infância e da juventude), osonho, os astros celestes, os fenômenos danatureza e, também, a desilusão, a separa-ção, a solidão, a saudade, dentre outros, cons-tituem a cena enunciativa do sotaque emquestão.

Portanto, o investimento8 cenográficodas toadas do sotaque de orquestra é o de verde maneira romântica todos os temas queabordam, qualquer que seja o contexto maisimediato que as possibilitou. Mesmo quan-do a cena enunciativa sai desse contexto paraum outro e coloca em destaque a cronogra-fia (tempo) e a topografia (lugar), o fazem comromantismo.

CONCLUSÃO

Começamos esta pesquisa a partir de umaquestão: como se organizam, em termos tex-tual-discursivos, as toadas dos grupos tradi-cionais do Bumba-meu-boi do Maranhão, comsotaque de zabumba, de matraca e de orques-tra? Para obter a resposta, procuramos, ini-cialmente, destacar a noção de posicionamen-to (de acordo com o conceito de Maingue-neau) para ressaltar que os aspectos que dife-renciam os grupos, classificando-os em sota-ques, tais como a indumentária, os instru-mentos de toque predominantes, a dança (lin-guagens não-verbais) e, como não poderia dei-xar de ser, as toadas (linguagem verbal), indi-cam os diferentes modos que esses grupos tra-balham na prática discursiva dessa manifes-tação cultural marcando nela suas posições eidentidades.

Assim, após a análise dos três sotaques emquestão, observamos que o sotaque de zabum-ba investe numa cenografia que mostra, ge-ralmente, o cotidiano das fazendas de gado,num gesto de manutenção das origens do fol-guedo; que o investimento enunciativo dosotaque de matraca diz respeito ao universobélico; e ainda, que no sotaque de orquestrao predomínio das cenas enunciativas é a pró-pria festa do Bumba-meu-boi e as situaçõesde encontros e desencontros amorosos. Nãoestamos afirmando que essa é a única leiturapossível, mas é inegável que esses investimen-tos são característicos no corpus analisado(116 toadas dos três sotaques aqui citados).Daí concluirmos que esses diferentes sota-ques existentes no Bumba-meu-boi do Mara-nhão são resultado dos diferentes posiciona-mentos de diferentes comunidades discursi-vas e que os gestos enunciativos que caracte-rizam esses sotaques mantêm coerência comos tipos de cenas enunciativas apresentadaspor eles.

BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO NETO, Américo. Bumba-meu-boi no Maranhão. São Luís: Alcânta-ra, 1983.CARVALHO, Maria Michol Pinho de. Astoadas do Bumba-meu-boi do Maranhão.Trabalho apresentado no XII Concurso demonografias sobre o folclore maranhense.São Luís, 1985._____. Matracas que desafiam o tempo: é obumba-meu-boi do Maranhão – um estudoda tradição/modernidade na cultura popu-lar. Rio de Janeiro, 1995. 268f. Dissertação(Mestrado em Comunicação) – Programa dePós-Graduação da Escola de Comunicação,Universidade Federal do Rio de Janeiro.COSTA, Nelson Barros da. A produção dodiscurso lítero-musical brasileiro. São Pau-lo, 2001a. 486f. Tese (Doutorado em Lin-güística Aplicada) – Programa de Pós-Gra-duação em Lingüística Aplicada e Estu-dos da Linguagem, Pontifícia Universida-de Católica de São Paulo. Disponível noendereço: http://lael.pucsp.br/lael/teses/tese_nelson.zipMAINGUENEAU, Dominique. Novastendências em análise do discurso. 3ª ed.,Campinas, SP: Pontes: Ed. da UNICAMP,1997._____. Termos-chave da análise do discur-so. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000._____. Análise de textos de comunicação.São Paulo: Cortez, 2001a._____. O contexto da obra literária: enun-ciação, escritor, sociedade. 2ª ed., São Pau-lo: Martins Fontes, 2001b.REIS, José Ribamar Sousa dos. Bumba-meu-boi, o maior espetáculo popular do Ma-ranhão. 3ª ed., Aum. São Luís: [s.n.], 2000.SOUSA, Arinaldo Martins de. Dandonome aos bois: o bumba-meu-boi mara-nhense como artefato político. São Luís,2003. 127f. Trabalho de Conclusão deCurso (Graduação em Ciências Sociais) –Universidade Federal do Maranhão.

7 A Intertextualidade refere-se ao diálogo entre textos efetivamente produzidos e a Interdiscursividade ao diálogo entre discursos de um mesmo campo discursivo ou a camposdiscursivos diversos.

8 O investimento diz respeito às escolhas que remetem às estratégias de posicionamento dos autores na expectativa de tornar as suas encenações legítimas e bem sucedidas.

Deline Assunção*

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O bumba-meu-boi comoBUMBA MEU BOI DE ORQUESTRA

Bumba-meu-boi de Axixá – Morros

Como é natural, havia diferença entre os di-versos bois, mesmo dentro do mesmo estilo.

Assim, o boi de Rosário divergia dos bois de Axi-xá e Morros, pequenas diferenças, porém níti-das: naquele num ritmo mais apressado, os ins-trumentos básicos o banjo, o bombo, a rabecaetc, os versos mais curtos das toadas, o pistom...Os trajes, embora semelhantes, eram mais capri-chados: calções de algodão, abaixo dos joelhos, àmoda de príncipes, com abertura lateral, meiasde futebol, sapatos tênis, blusas de mangas com-pridas bem franzidas, gola alta, curto peitilho decetim, chamado babadouro, franjado de seda ebordado com lantejoulas, pequeno avental arre-dondado, geralmente com bordados do mesmomotivo, flores, estrelas, pássaros etc, tudo muitosimples: calça preta, blusa branca, amarela, azul-claro ou cor-de-rosa.

Os chapéus eram feitos usando como baseum chapéu-de-palha comum, revestido de cetimpreto ou vermelho, as abas dobradas lateralmen-te, que recebiam palmas de flores (rosas), espe-cialidade da famosa D. Rosa Galega, inexcedí-vel na profissão. As abas eram fracamente salpi-cadas com paetês, mas da parte traseira pendiaum maço de fitas coloridas, às vezes de papelcrepom, até os joelhos.

Andavam em fila dupla, dois cordões, tendoà frente meia-dúzia de índias, com saiotes dealgodão cor da pele, onde eram costuradas pe-nas de ema, penas que se repetiam em bracele-tes e perneiras; usavam golas redondas sobre osbustiês, salpicadas de contas; na cabeça, umcocar de penas e uma rala cabeleira de embira1 ,e nas mãos arco e flecha. Quando de sua apre-sentação, ajoelhavam-se, num só joelho, simu-lando disparar a seta.

O Pai Francisco vestia uma calça surrada euma blusa de chitão, portando a indispensávelboneca, que metia na mão de um espectadorpara, ao fim, ir buscá-la, recebendo uma gorjeta.Máscara de meia, chapéu de palha, com a bordadesfiada. Mãe Catirina, sempre um homem, apre-sentava-se com saia de chita, cabeção branco,lenço amarrado sob o queixo, grávida, uma bolsavelha debaixo do braço.

No boi-de-orquestra, bebe-se menos cachaça;mais conhaque, e refrigerante para as índias. Nasvisitas às casas, preferem fazer só uma meia-lua2 ,sem obedecer ao roteiro normal da apresentaçãodo auto, do reunir à despedida. Geralmente, aochegar saúdam os donos da casa, algumas pes-soas que querem distinguir, fazem uma breve pa-

rada para uma visão resumida do auto, cantamoutras toadas e dão as despedidas. Por sua vez, osvisitados oferecem mingau, água, ou outra qual-quer bebida, distribuídas pelo regente.

O boi é grande e gordo, feito do mesmo mate-rial – varas e buriti – coberto de lona e o courosolto, colocado sobre a armação. Bordados singe-los, o nome do boi escrito com capricho; guarnece,e logo entra na roda, acompanhado do vaqueiro,que usa chapéu simples, apenas recoberto de te-cido e com fitas pendentes na parte de trás. Em-punha vara-de-ferrão estilizada. Os músicos se po-sicionam e as fileiras se movimentam, os brincan-tes avançando e recuando, sacudindo os mara-cás, quase sem sair do lugar. Não andam a pé,nem de caminhão; somente de ônibus.

O boi de Axixá é semelhante ao de Morros.As músicas são melódicas e harmoniosas (alguémclassificou-as de cabriolantes), os trajes capricha-dos. A principal diferença está nos chapéus.

O senhor Feliciano Veras conta a seguintehistória: Certa noite, em Axixá, uns músicos, aovoltarem de uma festa, encontraram um grupode Bumba-meu-boi e começaram a acompanharcom os seus instrumentos as toadas. O efeitoresultou bonito e assim se foram introduzindo nabrincadeira novos sons, do pistom, do banjo, mo-dificando o ritmo inicial. Rosário gostou da in-venção e passou a imitar o de Axixá.

Os chapéus dos Bumba-meu-boi obedecema três estilos: de palmas, à moda portuguesa; osfechados e bordados dos dois lados e altos no cen-tro, que parecem um abajur; e os armados comarame fino formando bandeiras, escudos etc., oschamados gaiolas, sempre tendo por base umchapéu de palha comum, naturalmente revesti-do de tecido.

O charme da brincadeira ficava por conta dacriatividade e da inspiração poética do cantador,ou cantadores.

Em entrevista que me foi concedida pela Sra.D. Maria Teresa de Jesus Bacelar Araújo, Direto-ra da Escola Normal de Morros – Centro Educa-cional Monsenhor Bacelar, o Boi de Morros foipor ela criado em 1976, com o auxílio da tambémprofessora D. Marlene Ferreira. A idéia era anti-ga, mas o padre Bacelar achava que não era mui-to conveniente. Depois que ele morreu, as pro-fessoras concretizaram o desejo e fundaram ogrupo folclórico da Escola Normal. Houve gran-de aceitação da idéia e, formado o batalhão, veioele apresentar-se em São Luís, com grande su-cesso, com moças de 14 a 18 anos, quebrandodesse modo o preconceito que discriminava asmulheres.

As calças agora eram compridas, de cetimpreto, as blusas amplas, de cetim amarelo, os

peitilhos do tipo babadouro mais ornamentados,os saiotes bordados, pequenos e graciosos, oschapéus como os demais, porém com a aba do-brada na frente e rodeados de fitas compridas, emais ou menos com os mesmos bordados ingê-nuos. A música ficava a cargo dos rapazes, asmoças, devidamente caracterizadas, desempe-nhando todos os papéis do auto, e os familiaresacompanhando os cortejos e as apresentações.Um boi de mulheres, dirigido por mulheres, comcantadores mulheres tornou-se uma atração ondeaparecia. O Boi de Morros pode ser consideradoo primeiro grupo para-folclórico maranhense eteve longa duração.

Em 1979, ausentando-se de Morros, D. Mar-lene, D. Teresinha afastou-se do boi, ocasião emque o Sr. Zuza Lobato reuniu os elementos dis-persos e organizou o atual Boi de Morros, sem-pre com a presença de moças. Introduziu gran-des modificações.

OUTROS SOTAQUES

O Bumba-meu-boi era uma brincadeira quese espalhava por vários municípios e seus povoa-dos, levado por aqueles que mudavam de terra esentiam vontade de brincar São João. Então,muitas pessoas se resolviam a organizar a brinca-deira, a botar boi, ou por promessa ou por sauda-de de seu pago natal. Assim, ia o boi se adaptan-do aos costumes locais e ao gosto do povo.

No interior, geralmente, uma semana antesda festa, vai-se à mata para escolher um pau bemalto e linheiro, trazido com grande alegria, e en-feitá-lo para constituir um mastro festivo implan-tado na frente da casa escolhida para sediar osfestejos e inaugurado com uma ladainha. Notopo, uma bandeira pintada com a imagem deSão João.

No mais, procedia-se como nas outras locali-dades: ladainha e terço, rezados com devoção, afogueira crepitando à porta, depois da reza o boiindo à capela próxima e regressando para brin-car em casa, onde quase sempre há uma latadapara abrigo dos brincantes, vindos de longe. Paraa morte do boi, ergue-se outro poste, menor – omourão – enfeitado de papel e de onde pendembolos etc. Ao final da festa ambos são derribadosem novo ritual. Tive oportunidade de assistir àapresentação de um grupo de Cururupu, em casado Seu Lauro.

Depois do dia de São Marçal (30 de junho), oLauro se despedia de mim dizendo que agorairia para o interior, para brincar no circo. Indaga-do sobre o que era esse circo, ele me descreveuassim: os donos dos bois, no interior, contavam

* Zelinda Maria de Castro e Lima é pesquisadora da cultura popular maranhense.1 Embira ou envira - fibra extraída da árvore da família das Timeleáceas, também conhecida como embireira ou envireira, usada na fabricação de cordas e estopa.2 Meia-lua - ligeira apresentação do grupo com a cantiga de algumas toadas etc.

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o conheci (2ª parte)com ele, que levava o grupo de barco, depois decaminhão, ou mesmo a pé, para a localidade àsua espera. E lá estava, armado num terreiro pre-viamente preparado, cercado por paredes-meiase com bilheteria, onde o boi se apresentava, fa-zendo jus à metade da renda da porta. Este era ocirco, a arena de terra batida.

O boi do sotaque de Cururupu, depois dosfestejos de São João, São Pedro e São Marçal,vinha a São Luís em visita ao boi do Laurenti-no, no antigo bairro do Areal (Monte Castelo).Laurentino (que só tinha uma filha, Anália) aomorrer, deixou o boi de herança para D. Terezi-nha Jansen Pereira e ainda lá ele tem sede, naFé em Deus, mantendo a tradição de brilho eesplendor.

O grupo de Cururupu é semelhante aos de-mais de outros sotaques, porém o guarda-roupaapresenta diferenças, calções bordados na fren-te, casacos no feitio de um gibão de vaqueiro,todo bordado de flores e pássaros e blusas decores variadas. Os chapéus, de palha e recober-tos de cetim, com a aba quebrada na frente, os-tentam grinaldas de pequenas flores armadas empalmas. Dançam em roda e o amo exibe ummaracá.

Catirina e Pai Francisco: ele de paletó pretocom aplicações de papel branco nos bolsos e naabertura, máscara com bigodes e sobrancelhasfartos e chapéu de palha desfiado; ela de vestidoestampado e a infalível boneca, o casal encarre-gado da parte cômica. Outra característica doboi de Cururupu é que seus componentes tra-zem pandeirinhos pequenos e os percutem comas costas das mãos, daí ser também conhecidocomo sotaque de costa de mão.

O boi que Antônio Bruno Pinto Nogueira, oconsagrado artista popular Nhozinho, imortali-zou nas famosas rodas-de-boi que esculpia era oboi de Cururupu. Certa vez, tive notícia de quechegara a São Luís um desses bois. Contratei-opara se apresentar perante o Nhozinho, na casade sua irmã Amelinha, para que ele o apreciasse.Foi uma noite muito comovente o encontro doNhozinho com as lembranças de sua infância.Ele ficou muito contente, no seu carrinho de mu-tilado, ria a mais não poder das peraltices do PaiFrancisco e nos dizia que estava igual ao quefizera a alegria de seu tempo de menino.

Nhozinho era esse artista fabuloso, que trans-formou todo o seu sofrimento, a mutilação que adoença lhe causara, em bonecos de buriti repre-sentando os brincantes do boi, miniaturas idên-ticas aos personagens, com um detalhamento deperfeccionista. Basta dizer, para exemplificar oseu apuro, que alguns bonecos, de 20 centíme-

tros de altura, exibiam entre os dedos o cigarrominúsculo ainda com a cinza na ponta; outrosportavam óculos ou deixavam aparecer no bolsotraseiro o lenço branco ou a garrafa de pinga. Asrodas (na verdade eram duas, uma dentro daoutra) mostravam dezenas de figuras assim deta-lhadas, penduradas e distribuídas de forma acompor o grupo de Bumba-meu-boi em plenaexibição.

De outra feita, o boi de Cururupu, sabendoda festa que meus filhos me ofereciam no HotelPraia-Mar, por motivo de meu aniversário, fize-ram-me a surpresa de lá ir e se apresentar, encan-tando os presentes.

Outros grupos, de Viana e São João Batista, epovoados desses municípios têm um tipo de to-que diferente e apresenta certas peculiaridades.Por exemplo: as mulheres, proibidas de partici-par da brincadeira, acompanhavam o boi e eramchamadas mutucas3 . Tinham a seu cargo umatarefa auxiliar, conduzindo os chapéus nos des-locamentos, carregando bolsas e sacolas de per-tences e amparando maridos e amantes bêba-dos, enfim, oferecendo o apoio logístico à fun-ção. Uma de suas importantes obrigações era ocuidado com o miolo, ou alma do boi, isto é, orapaz que, sob a armação, dá vida ao bicho. Can-sado, suadíssimo, recebia das mulheres a maioratenção quando dava seu lugar ao substituto (oboi tem vários miolos), pois qualquer golpe de arna noite fria podia causar-lhe sérios danos à saú-de; era certo estuporar, como diziam.

As roupas também divergiam das de outrosgrupos: os cordões são padronizados: calças com-pridas de cetim, camisas de chita ou cetim,saiotes retos e golas pequenas. Muitas fitas colo-ridas. Os bordados muito simples. O boi, bemgrande, tinha o couro de veludo, retangular, arre-matado por uma tira de pano bordada, mais tar-de substituída por um galão, e era assentado como auxílio de colchetes ou botões de pressão. Osbrincantes sacudiam maracás; havia vaqueiros erapazes, primeiros, segundos e terceiros, que co-laboravam no desenvolvimento da comédia e aju-davam na matança.

Outro personagem era o Cazumbá4 , com suaslargas batas coloridas, avultadas ancas postiçase horrendas máscaras, fazendo soar monótonoschocalhos de metal, atrás das índias que desem-penham o seu papel de abre-alas do boi, conhe-cidas como as Tapuias, mais ou menos semelhan-tes às já descritas. O auto tem a mesma estrutu-ra, correndo do reunir à despedida como nos de-mais; os músicos tocam grandes pandeiros, o tam-bor-onça5 , matracas6 , tudo obedecendo à dire-ção do Amo, que marca as etapas com um apito.Neste sotaque as matracas são batidas em com-

3 Mutuca - moscardo da família dos Tabanídeos, inseto que persegue homens e animais e cuja desagradável picada causa grande incômodo.4 Cazumbá - o Originário do Cazumbi africano. Do quibungo. Zumbi, Uzumbi: duende, espírito dos mortos etc.5 Tambor-onça – cuíca, um cilindro de madeira coberto de couro numa extremidade à qual está fixado um bastonete. A música consiste numa espécie de ronco obtido com a

esfregação do bastonete com as mãos, no interior do instrumento.6 Matraca. Duas tabuínhas de madeira pesada, batidas uma contra a outra

passo lento e cadenciado, muito diferente do rit-mo alucinante dos outros bois de matraca. As varasde ferrão são feitas de galhos enfeitados de fitasde papel.

Os brincantes desse sotaque, já dissemos,são pessoas egressas da Baixada, saudosas e quese reúnem para brincar o São João, como JoãoCâncio e Apolônio Melônio, desejosas de reviversuas lembranças dos bois de suas terras. Estes,antes reunidos no mesmo boi, um dos maioresde São Luís, desentenderam-se, cada um indofundar seu próprio grupo, o primeiro, no bairrodo Cavaco (Fátima) e o outro, depois de umaabstinência de cinco anos sem brincar, fixou-seno bairro da Floresta.

Na separação, João Câncio ficou com o pes-soal e Apolônio com o boi, prometendo a si mes-mo que nunca mais quereria saber da brincadei-ra. Comprei o boi, guardei-o em minha casa. Ele,por sua mulher, ficou sabendo que estava comi-go. Um dia ela me procurou dizendo que eleestava muito inquieto, desassossegado, queren-do botar boi. Disse-lhe que não me surpreendia anotícia, que sempre esperei pelo pedido, e lheentreguei o boi. Ajudei na montagem do conjun-to, naturalmente fui madrinha e o Boi de SãoJoão Batista se tornou (e é até hoje) um granderepresentante do folclore do Maranhão. Entre osdois antigos amigos criou-se um clima de concor-rência braba: aonde um ia o outro não pisava.Nunca chegaram às vias de fato, é verdade; masa disputa dava-se no capricho que cada um im-punha ao seu grupo, nas vestes, no aumento doschapéus, no número cada vez maior de brincan-tes, na matança, cujas festas se prolongavam atépor dez dias, cada qual oferecendo mais comidae bebida, apresentando o mourão mais alto e maisbonito. Os cantadores se encarregavam de man-ter a porfia: de um lado o genial Coxinho, deoutro... As toadas procuravam explorar temas his-tóricos, expressar os mais ardentes elogios à ci-dade, mas sempre sobrava uma para mexer como adversário.

Outro conjunto desse sotaque da Baixadaera o de José Apolônio, no Caratatiua, que seintitulava Boi de Viana, e promovia concorridasnovenas antes do dia 24, ladainhas que reuniammuitos fiéis, atraídos também, não há dúvida,pelas mesas-de-doces que oferecia.

Também se apresentou em São Luís o Boi deCajapió, que tinha como característica o uso decaixas no acompanhamento das toadas, e o boi eas burrinhas eram muito maiores de que os deoutros grupos.

Zelinda Lima*

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É chegada a hora da despedida. É o fim de umatemporada de convivência, da vida em comuni-

dade, ou melhor, em coletividade. Madre-Deus,Maioba, Maracanã, Matinha, Pindoba, Jussatuba, SãoJosé de Ribamar e outros se preparam para a derradei-ra festa, para a celebração que marca simbolicamenteo “fim” e o recomeço da temporada do bumba-boi.

Estou me referindo à festa de morte dos gruposde boi que acontece anualmente no final da tempora-da junina. Os primeiros começam a morrer já no mêsde julho; outros morrem até o final do ano; o certo éque a morte da brincadeira se estende pelo segundosemestre do ano e é, geralmente, realizada em umfinal de semana.

A morte de um bumba-boi, assim como a prepa-ração para a temporada junina, requer tempo, traba-lho e muita dedicação por parte de quem organiza abrincadeira. Nesse artigo descreverei as etapas que com-preendem uma festa de morte de um bumba-meu-boi em São Luís a partir de um grupo determinado1,o que não significa dizer que todos os outros realizama festa dessa mesma forma. Em São Luís há umagrande variedade de grupos e, conseqüentemente, di-ferentes formas de realização dessa festa que depen-dem, sobretudo, da concepção e da criatividade dosseus organizadores.

MOVIMENTAÇÃO DO GRUPOANTES DA FESTA DE MORTE

Para iniciar a festa de morte de um boi, é necessá-rio que os organizadores reúnam-se para providenciaras prioridades. Geralmente, a direção e outros inte-grantes se reúnem nas semanas que antecedem à fes-ta, definindo a alimentação, os tipos de bebidas, di-vulgação na imprensa, reparos nas indumentárias enos instrumentos, carro de som, mesas e cadeiras,transporte para buscar os boieiros, doces e bolos, omourão2, enfeites e brinquedos para o mourão, atra-ções ao público tais como: radiola de reggae, grupo depagode e outras.

Feito esse levantamento, o grupo procura encon-trar meios para conseguir atender todos esses itens,sem os quais a festa não poderia ser realizada. Partedestes são conseguidos com recursos próprios ou atra-vés de doações. É importante ressaltar que algumastarefas ainda são definidas a partir da questão de gêne-ro, como por exemplo destaca-se a busca do mourãoconsiderada uma tarefa masculina e a sua ornamenta-ção que se caracteriza como atividade feminina, assimcomo a preparação dos bolos, doces e das comidas.

A “ÚLTIMA ANDANÇA” DO BOI

Chegou o dia da despedida. A sede, a cada instan-te, começa a receber um maior número de convida-dos e simpatizantes. A atração contratada anima oambiente junto com o repinicar de matracas. Os pan-deirões são colocados na fogueira para esticar o couro

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na intenção de obter uma boa afinação. Pode-se veralguns integrantes fantasiados e os acompanhantes da“derradeira andança” do boi começam a se movimen-tar pela sede. A animação marca todas as etapas dessafesta, as pessoas se reencontram, se cumprimentam,brincam, comentam sobre o desempenho da brinca-deira no período junino e se divertem dançando aosom das músicas.

O cenário é organizado, a sede do grupo é todaornamentada. São bandeirinhas coloridas, holofotes,cadeiras, mesas e, geralmente, é organizado um altarque tem como destaque o santo protetor dos boiei-ros, São João. Ouve-se também, o pipocar dos fogue-tes e anúncios informando o motivo da movimenta-ção. No ar sente-se o cheiro de pólvora, de couroesquentado, do alcool das bebidas, o que faz lembraro período junino. É possível sentir também, a emo-ção dos brincantes, os olhos de alguns expressam sen-timentos profundos pelo brinquedo que está se des-pedindo e a felicidade de ter cumprido mais uma vezo compromisso com o santo protetor.

Em um determinado momento, o locutor docarro de som anuncia que está na hora do grupo guar-nicê e avisa que o amo vai iniciar sua cantoria. Anun-ciam a programação da noite, ou seja, todos os lugarespor onde o boi vai se apresentar madrugada adentro.Alguns grupos ficam nas mediações do seu própriobairro, já outros se apresentam em localidades distan-tes, dependendo dos contratos ou convites que sãorecebidos e aceitos.

As apresentações realizadas no próprio bairro dogrupo são consideradas uma dádiva para os de “casa”,pois podem se despedir e acompanhar o boi que re-presenta o seu lugar, podendo, inclusive, recebê-lo naporta de suas casas. Mas o grupo também é presente-ado, pois o dono da casa, ao recebê-lo na sua porta,serve bebidas, caldo de feijão, água e até um descanso.É uma forma de retribuir ao bumba a sua presença noespaço de casa. A recepção nessas dançadas geralmen-te é muito calorosa, o que mostra todo o prazer ealegria de um “boieiro” ou mesmo um simpatizanteem receber, só para si, o boi de sua paixão.

É anunciada também a presença de pessoas con-vidadas como, por exemplo, alguns cantadores deoutros grupos. É comum, na festa de morte de umboi, a presença de integrantes de outros, que vão pres-tigiar a festa dos seus contrários3. Quando se trata dosamos, estes são convidados a cantarem algumas toa-das, que geralmente têm como tema o motivo dafesta, uma homenagem ou um agradecimento peloconvite. Constata-se assim, que, apesar de serem inte-grantes de outros grupos, a relação entre os amos podeser de amizade e consideração. Isso demonstra tam-bém o caráter solidário que a festa de morte propicia.

Dados os anúncios, o amo soa o seu apito, sacodeseu maracá e inicia o “guarnicê” do boi. Todos os inte-grantes começam a formar o batalhão, vão se aproxi-mando do amo e o conjunto vai se organizando: ín-dias, caboclos de pena, caboclos de fita, matraquei-

ros, pandeireiros, tocadores de tambor onça e o miolocom o boi. Após a formação, os membros do grupo sedirigem para os ônibus e esses seguem viagem para suaprimeira apresentação da noite, retornando à sedesomente na madrugada ou manhã de domingo.

No amanhecer do dia acontece a primeira etapada festa, conhecida como a fuga do boi. Nesse mo-mento, o boi, sentindo-se encurralado e pressentindosua morte, começa a dar suas primeiras fugidas dobatalhão. Durante o prosseguimento da apresentaçãocomeça a correr desvairadamente pelas ruas do bair-ro, fugindo do vaqueiro. A burrinha, as índias e ovaqueiro seguem-no. O boi tenta desviar-se e, às vezes,corre para cima dos que o perseguem, enfrentando-osde forma valente e corajosa. O miolo dá várias corri-das para longe do grupo e, algumas vezes, para seproteger, entra nas casas que se encontram abertas. Osmoradores, integrados na real situação do boi, escon-dem-no, não deixando seus algozes pegá-lo, mas nãotem muito jeito. O vaqueiro, a burrinha e as índiasvão atrás, buscam sua prenda que tenta fugir. Trazem-no de volta para o grupo e não o deixam só por ne-nhum momento.

Seguem-se, assim, várias tentativas de fuga do boi,que não conseguiu enganar seus perseguidores. O boiacompanha o grupo até uma outra dançada, de ondefoge sem deixar rastros. Todo o grupo vê a fuga, omiolo-boi sai desesperadamente pelas ruas do bairro.Seus algozes, no entanto, não tentam qualquer formade perseguição: todos eram cúmplices desse momen-to, sabem que estava na hora dele se recolher. Este,geralmente, vai se abrigar na casa da sua madrinha4,na casa de uma pessoa que está pagando promessa ouna casa de um boieiro, saindo de lá somente na horade sua morte.

A festa continua após a fuga, a animação é a mes-ma do início. O grupo continua sua caminhada pelasruas do bairro. Em seguida vão buscar o mourão nasede e enfiá-lo no lugar determinado para a realizaçãodo rito. Terminando o fincamento do mourão, todosse recolhem a fim de abastecerem as energias para amorte, que tem início, geralmente, às 18:00 horas.

Durante toda a madrugada e o romper do dia, oclima entre os boieiros é de festa, mas o sentimento,como eles mesmo se expressam, é de alegria e tristeza.Esse sentimento ambíguo permeia todo o desenrolarda morte do boi. Estão presentes na preparação detoda a festa, na ornamentação do mourão, nas brinca-das pela cidade ou pelas as ruas de casa, na melodiadas toadas, na fugida do boi e nas feições dos boieiros,que não escondem sua alegria de mais um ano terembrincado e realizado todas as etapas da festa e a suatristeza por ser a última brincada, a separação do con-junto. Os sentimentos são confusos, ambíguos, aomesmo tempo em que se está alegre por realizar todoo ciclo de “vida” do boi, há uma tristeza nos olhos quereflete uma saudade do tempo da festa e uma dorcontida pela morte do novilho.

* Abmalena Sanches Santos é graduada em Ciências Sociais pela UFMA, mestre em Antropologia pela UFPE e professora do Uniceuma.1 Título inspirado no depoimento de seu Basílio, conhecido como Calça Curta, miolo do Boi da Madre Deus.2 As informações contidas nesse artigo advém da minha convivência junto ao grupo de Bumba-meu-boi da Madre Deus, que teve início no ano de 1995, quando comecei o meu

trabalho de campo para realização da minha monografia de conclusão do Curso de Ciências Sociais pela UFMA.3 Mourão - tronco de madeira enfiado no centro do terreiro, cheio de galhos, todo revestido de papéis coloridos. Nele são pendurados brinquedos, balas, bombons, miniaturas

de motivos juninos. Serve para amarrar o boi no dia da sua morte. Como o boi, este também tem padrinhos, que são responsáveis pela sua decoração.4 Contrário - adversário direto num desafio. Por extensão, qualquer brincante de outro boi. (Azevedo Neto: 1983:79). Hoje pode ser considerado qualquer outro grupo de boi.5 Madrinha - no ritual do bumba-meu-boi em São Luís é comum a presença de uma mulher e um homem representando os padrinhos do boi.

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O FIM DAS FESTIVIDADES DO CICLODE VIDA: O BOI VAI MORRER

O dia é domingo, na sede o clima é de espera.Pessoas transitando sem parar, foguetes anunciam afesta, o som ligado anima os que ali já se encontram.O cantador se prepara para guarnicê o grupo parasaírem em busca do boi. Todos se organizam e saemcaminhando, cantando, tocando e dançando pelas ruasdo bairro até a casa onde o boi está escondido.

Chegando mais próximo da casa, o grupo pára eos donos abrem a porta. O miolo entra e busca onovilho que se encontra com o couro todo coberto depastilhas (doces feitos de açúcar e queijo), enroladasem papéis coloridos. Nos chifres há balões coloridos ealguns galhos de mato, indicando que o boi veio damata. Quando o miolo se veste na cangalha do boi esai pela porta todos batem palmas. Há estouro defoguetes e o grupo começa novamente a cantar, tocare dançar. O boi, nesse momento, está preso e nãopode fugir. Seguem em cortejo o caminho que levaráao local onde será realizado o ritual.

Chegando perto do mourão, o grupo se organizana posição de uma apresentação e o cantador iniciasua cantoria com o guarniçê. Uma cantoria lamento-sa e sofrida. O público fica atento a todos os passos dogrupo, muitas pessoas invadem o círculo feito pelosbrincantes a fim de conseguir o melhor ângulo paraassistir ao ritual, nesse momento há uma certa confu-são, um empurra-empurra. Os tocadores, junto como cantador, não entram na roda. Já os personagensfantasiados entram e dão início à sua apresentaçãocom um bailado empolgante. O miolo baila de formaagressiva. O vaqueiro tenta laçar o novilho, que se saicom facilidade das investidas inúteis do vaqueiro. Aperformance do miolo-boi6 lembra um boi bravo,zangado e valente. Após o guarnicê, iniciam-se as toa-das feitas especialmente para esse momento:

“Te despede Capricho do PovoCumpre tua sinaEsse é o teu deverO povo vai ficar tristePois chegou o diaEm que tu vai morrer...”

“É meu rapazÈ hora de trabalhar (bis)Traz Capricho do PovoQue ele vai se acabarJá pedi pra São JoãoPra São Pedro e São Marçal...”(Mané Onça – 15/09/96)

Ao passo que as toadas são cantadas, na roda acon-tece todo o ritual. O miolo não permite que o lacem.Começa então uma luta pela sobrevivência do novilho.O miolo não se deixa intimidar e vencer pelo vaqueiro,“por que às vezes eu não deixo o vaqueiro laçar não, eusaio correndo, me fugindo mesmo, né”. Depois de váriastentativas frustadas de laçar o boi, o vaqueiro entrega o

laço para a madrinha7, “dá fogo, dá fogo, é preciso àsvezes a madrinha mesmo laçar o boi para levar para omourão”. O boi ainda tenta relutar, mas a madrinhaestende o laço e o seu afilhado não o recusa, “mas nãotem jeito, aí a madrinha chega, depois que laça ele vaipara o mourão, a madrinha vem com a fita e bota assime não tem como ele desobedecer a madrinha8.”

Observa-se assim, o desejo de vida que permeia omiolo do boi, que só se deixa vencer se a madrinhaestiver com a fita para laçá-lo. Enquanto ele puderadiar tal momento vai adiando, não permitindo que olevem para mourão. E, percebe-se, também, a inver-são do papel idealizado da madrinha, que para o cris-tianismo tem a função de protetora, devendo zelarpelo seu afilhado e, no bumba, além de tais funções,pode assumir a condição de levar o seu afilhado paramorte sendo, nesse momento, o seu algoz, pois é elaquem o laça e o prende no local do seu sacrifício.

A madrinha pega o boi pelo laço e prende-o nomourão, soltando o novilho. O miolo começa a bai-lar, mesmo preso, e a rodar em torno do mourão. Nopé do mourão há garrafões de vinho, bacia ou balde evelas acesas. Partindo para sua derradeira hora, já con-formado de sua morte, o miolo-boi arrasta-se pelochão até chegar ao mourão. A corda é puxada pelovaqueiro e pelo Pai Francisco. Chegando ao pé domourão, Pai Francisco emocionado, enfia-lhe o facãoabaixo de sua cabeça, o vaqueiro e outros integrantesderramam o vinho na bacia, o miolo sai de baixo doboi. Cobre-o com a sua barra, levando-o para casa,onde será guardado até a próxima brincada. A festacontinua. O vinho é distribuído entre os integrantes eo público. Todos querem beber o sangue do boi quesignifica vida e bons fluídos para quem dele tomar.

DERRUBADA E DISTRIBUIÇÃO DOMOURÃO: É O LAVA-PRATOS DO BOI

Essa se constitui a última etapa da festa de mortedo bumba. É realizado um dia depois do ritual damorte. Pode-se encontrar grupos que a realizam umasemana após a festa de morte. Outros realizam nomesmo dia. Nessa etapa verifica-se uma total liberda-de para os brincantes, que se vestem à vontade, nãoutilizam mais suas indumentárias, o boi já não partici-pa. A sede novamente é organizada, mesas de bolos edoces, cadeiras e mesas postas, músicas de vários esti-los. O clima de festa continua, ouve-se o pipocar defoguetes e várias pessoas, entre brincantes, torcedo-res, simpatizantes e curiosos, transitam aguardando oinício do ritual de derrubada do mourão.

Em um determinado momento o amo do grupoanuncia que irá guarnicê o boi, mas é necessário queos pandeirões estejam afinados, portanto, é hora delevá-los à beira da fogueira. O amo, ao iniciar suacantoria, faz com que o grupo se reúna, os tocadorese os baiantes. Após cantar parte do repertório do ano,o amo solicita que um dos brincantes dirija-se aomourão com uma escada e suba no mesmo. A canto-ria não pára, os versos, geralmente, determinam paraquem vai os primeiros pedaços do mourão. Os galhossão distribuídos respeitando uma certa hierarquia,começa pelos os padrinhos do boi e do mourão, segue

para as pessoas que ajudam financeiramente o grupo,os brincantes mais antigos, os que mais se dedicam àbrincadeira. O restante dos galhos é distribuído entrea assistência, a garotada e todos que conseguem umpedaço que é jogado aleatoriamente.

Ressalto que há uma grande quantidade de criançaspresentes nessa etapa da festa. Outro ponto é a competi-ção pelo pedaço de mourão, onde adultos e criançasdisputam de igual para igual para obtê-lo. Segundo D.Pureza, brincante do Boi da Madre Deus, assim como ovinho distribuído na morte do boi, o pedaço do mourãotambém traz fluídos bons para quem consegue um pe-daço e o guarda. Já para as crianças o que importa éganhar o galho que tiver mais brinquedos, balas e enfei-tes. Após a distribuição, a direção do grupo inicia a divi-são dos bolos e doces entre os presentes na festa, encer-rando a temporada de festa ou ciclo do boi.

Destaca-se que a morte representa o encerramento,a finalização da “vida” do boi no ano. De acordo com oque Prado analisou sobre a festa da matança de boi nointerior do Maranhão, “o conjunto de brincantes e sim-patizantes daquele boi se reúnem [Sic.], pela última vez,para celebrar um sacrifício da separação de uma uniãotecida através de vários meses...” (Prado; 1977:183).

A festa de morte do boi tem por finalidade, como sesabe, encerrar o ciclo de vida da brincadeira, dar fim aogrupo até o próximo ano, nas reuniões e ensaios. Sabe-seque atualmente alguns grupos continuam a se apresentarfora da temporada junina e após a festa de sua morte.Entende-se esse fato como uma mudança na dinâmicavivida pela brincadeira devido às necessidades dos gruposde atender às novas exigências do contexto social.

É importante registrar que a morte dentro do boinão é vista como o fim de tudo, pois além de hoje seapresentarem fora de época, dentro do próprio ritualjá vivem a expectativa do próximo ano. Alguns já pen-sam nos padrinhos e madrinhas, como já marcamdatas para as próximas reuniões do grupo.

BIBLIOGRAFIA

ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte noOcidente desde a Idade Média. Lisboa, 1989.CARVALHO, Maria Michol P. de. Matracas quedesafiam o tempo: é o bumba-meu-boi do Mara-nhão. Um estudo da tradição/modernidade nacultura popular. São Luís: [s.n.], 1995.PRADO, Regina de P. Santos. Todo ano tem. Asfestas na estrutura social camponesa. Rio de Ja-neiro: Museu Nacional, 1977 (Dissertação deMestrado).RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Riode Janeiro: Achiamé, 1983.SANCHES, Abmalena Santos. Capricho doPovo: um estudo sobre o bumba-meu-boi daMadre de Deus. São Luís: UFMA, Monografiade conclusão do Curso de Graduação em Ciên-cias Sociais, 1997._________. “O Universo do Boi da Ilha”: umolhar sobre o bumba-meu-boi em São Luís doMaranhão. Recife: UFPE/PPGAS. Dissertaçãode Mestrado em Antropologia, 2003.

6 Miolo-boi - denominação para identificar a intensidade da relação que existe entre o homem e o boi durante todo o período da brincadeira. Essa observação advémespecificamente da relação de Seu Basílio (Calça Curta) com o Boi da Madre Deus.

7 Outros grupos podem elaborar o ritual de forma diferente como, por exemplo, não incluindo a madrinha nesse momento, deixando o conflito ser resolvido entre o vaqueiroe o boi.

8 Depoimento de Seu Basílio (Calça Curta), miolo do Boi da Madre Deus.

Abmalena Santos*

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Boletim 29 / Agosto 20048888888888

Procissão de Nossa SenhoraA intenção deste trabalho é apresen-

tar uma análise crítica das reelaboraçõessimbólicas das procissões1 populares emSão Luís, enquanto fenômenos culturaisde caráter devocional e não eclesiástico,a partir do levantamento da situação atualda Procissão de Nossa Senhora de Fáti-ma, realizada no bairro do João Paulo, soba responsabilidade de D. Lili2. É meu pro-pósito pensar se, numa sociedade cadavez mais saturada de discursos religiosos/devocionais, prontos a resolver todos osproblemas da vida terrena, há ainda umlugar para a procissão como um ato/es-paço sagrado coletivo?

Será possível pensar a procissão comoum rito conciliador entre a terra e o céu;entre o devoto e o santo; entre o sagradoe profano? Ou é mais fácil pensá-la ape-nas como um compromisso solene quedeve ser cumprido anualmente em fun-ção de uma tradição social?

Essas hipóteses consideram não so-mente o exarcebamento da discussão emtorno da iconoclastia e da idolatria3, le-vando a própria Igreja Católica a negarparcialmente esses rituais, deixando-oscada vez mais a cargo das Irmandades,mas também a redução da importânciadas procissões como fenômenos religiososde enraizamento cultural, de represen-tação de uma identidade, de organiza-ção de uma memória mítica, de susten-tação de um discurso ético. Partindo des-ses pressupostos, será que a procissão ain-da pode ser percebida pela tradição que

sempre a identificou? Ou, é necessárioreelaborar essa tradição para compreen-der o fenômeno na contemporaneidade?

PROCISSÕES POPULARES

VARIANTE ECLESIÁSTICA

O caráter popular da procissão4 cos-tuma ser percebido através de duas va-riantes. A primeira é que a procissão fun-ciona como um fenômeno simbólico co-letivo, de alcance ilimitado, capaz deaglutinar em torno de si pessoas, gruposou categorias sociais distintas, a partir deum sentimento construído pela e para acomunidade. É por isso um evento socialreligioso previsto, informal e de reforçoque escapa do universo cotidiano por fun-dir num mesmo espaço/tempo a espon-taneidade, a descentralização, a desper-sonalização e a continuidade. É, portan-to, um reflexo da religiosidade popular,fundamentado pela tradição eclesiástica,às vezes resultante diretamente da Igre-ja, às vezes das Irmandades ou Confra-rias5 que, por muito tempo, foram res-ponsáveis por estes eventos.

Neste caso, a procissão é um aconte-cimento social, motivada pelo divino erealizada sob a égide da Igreja, que su-prime a hierarquia e assume um ar con-ciliador entre a extrema formalidade e aextrema informalidade, constituindo umespaço propício para a coesão e a visibili-dade da identidade coletiva e reafirma-

ção de valores comuns, ou para a elabo-ração de novos sentidos comunitários. Ocaráter devocional dessas procissões énormalmente resultante do trabalho co-munitário das Irmandades, ou seja, gru-pos de leigos ligados à religião católicaque tem, ainda hoje, a responsabilidadede garantir todo o ritual do evento, inclu-sive os custos da celebração: a festa reli-giosa, a arrumação do andor, o percurso,as personagens, as vestimentas, os para-mentos, os cantos a serem entoados, ohorário a ser cumprido, o local da missa eos convidados especiais.

A obrigação assumida pelas Irmandadesé um costume datado de 1760, período emque a Igreja Colonial - até então uma ins-tituição forte e capaz de coordenar a lutacontra a idolatria – deixa de adotar umapolítica centralizada e unificada em re-lação às crenças e práticas religiosas doscolonizados, coincidindo essa época coma chegada dos escravos africanos no Ma-ranhão. Como os africanos nunca sãopriorizados como objeto da conversão re-ligiosa nem mesmo pelas ordens religio-sas, eles acabam por juntar aos seus cos-tumes ritualísticos a tradição cristã, le-vando ao surgimento das Irmandades eConfrarias, primeiro na Bahia e, poste-riormente, no Maranhão.

Aos negros juntam-se os índios e osmestiços na luta contra as ambiguidadesdo sistema social. Agem nos interstícios evazios deixados pelos limites da ordemimposta pela Igreja e pelos Jesuítas6. Fa-

* Ester Marques é professora do Departamento de Comunicação Social da UFMA e pesquisadora de cultura popular. Joaquim Santos é professor da Escola de Música epesquisador da cultura popular.

1 As procissões foram instituídas no Brasil pelos jesuítas, a partir de 1549, durante a fundação da cidade de São Salvador e o governo de Tomé de Sousa, com a celebraçãodo Corpo de Deus (Corpus Christi). Tais atos devocionais tinham o caráter penitencial ou festivo para atração dos índios ou a recuperação de colonos corruptos, mas depoistornaram-se comuns, funcionando como centros de interesse pelo processo de aculturação, convergências religiosas e sincretismo supersticioso. (Cascudo 1984:636)

2 D. Lili é o pseudônimo de Aliete Ribeiro de Sá, 75 anos, moradora no bairro do João Paulo, há 50 anos. Folclorista, compositora e produtora popular, D. Lili também organizao Pastor do Menino Deus (auto de natal) e colabora com vários grupos folclóricos juninos.

3 Na história da cultura humana o surto do iconoclasmo (do grego eikon, imagem + klasmos, ação de quebrar) retorna como crise de tempos em tempos sob a forma de horroràs imagens, denúncia de sua ação danosa sobre os homens e destruição pública de todas as suas manifestações materiais (...). A interdição das imagens (eikon) é um dosdogmas fundamentais das tradições Islâmica, Filosófica Grega e Judaico-Cristã na Idade Antiga, que preferiam acreditar no poder, na superioridade e na transcendência dapalavra: «Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima do céu, nem embaixo da terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diantedelas, nem as servirás» (Êxodo 20,4-5). A interdição torna-se emblemática na percepção do Deus maometano: «Se Deus está em todas as coisas, se todas as coisas são Deus,e daí tanto a impossibilidade de representar Deus quanto o perigo de qualquer figuração facilmente se converta numa forma de idolatria» (...). Na Filosofia é Platão quem pregaa idéia de que a imagem pode se parecer com a coisa representada, mas não tem a sua realidade. É uma imitação da superfície, uma ilusão, um engodo, um simulacro (eidolon,de onde deriva a palavra ídolo; eidolon latreia de onde deriva idolatria). Já na Idade Média são os imperadores Leão III, Constantino V, Constantino VI e Leão V que proibemo culto das imagens de 730 até 843 quando os ícones da catedral de Santa Sofia voltam a ser cultuados. A terceira interdição acontece no século XVI com a reforma protestante,causando a destruição das imagens e perseguição dos seus seguidores. Segundo o autor, estamos vivendo uma quarta fase de interdição com a recusa da imagem tanto amidiática quanto a religiosa. (Machado 2001 pgs.6-32)

4 A palavra procissão se refere à idéia de uma marcha, representada no cortejo litúrgico, e toma o significado de uma peregrinação terrena, mas também de um constante avançoem direção ao divino. Toda procissão é um rito celebratório que dá corporeidade à idéia de ciclo, de transcurso, como prova do seu retorno ao ponto de partida. A procissãoera um rito pagão que envolvia a adoração de Deuses em formas de animais e, juntava dança, música e teatro numa grande festa profana, até ser assimilado pela Igreja Católicae ser depurado dos seus aspectos mais grotescos. (Cirlot 1984 p.475-486). Câmara Cascudo classifica as procissões segundo a sua função cultural. Daí que existem asprocissões dos oragos, as rogativas, a dos penitentes, as devocionais, e as das almas, entre outras. (Cascudo 1984, p.636)

5 Em São Luís, a organização das procissões pelas Irmandades vem do século XIX, tornando-se uma instituição bastante importante, não só por contar com pessoas das mais diferentesclasses sociais, mas principalmente pelo trabalho social que desenvolviam junto às comunidades carentes. «A Quaresma, como uma das mais importantes solenidades que a Igrejarealizava, tinha por responsáveis as Irmandades devotas do Senhor do Bom Jesus, sob as invocações: dos Passos, na Igreja do Carmo; dos Martírios, com sede na Igreja de Santana;da Cana Verde, na Igreja do Desterro e da Coluna dos Navegantes nas capelas dos respectivos nomes, situadas junto à Igreja de Santo Antonio» (Oliveira 2003 p.191)

6 De fato, pelos idos de l673, o trabalho catequético no Maranhão alcança seus objetivos: a escravidão indígena acaba, a sociedade maranhense cristaliza-se, as povoaçõesfundadas pelos sertanistas vaqueiros ou bandeirantes imitam as povoações jesuíticas. Mas, ao lado da igreja, erguem-se os casarões, os paços do conselho, os pelourinhos.E, as senzalas em que sofrem e penam os negros escravos que os Jesuítas esquecem na sua evangelização. Os Senhores constroem suas casas ao lado dos colégios jesuíticos,dos quais se tornam protetores, recebendo em troca a proteção oficial da igreja. (Marques 1999 p.114)

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zem isso buscando no catolicismo popu-lar a reposição da sua religiosidade, semdeixar de lado seus ritos, deuses, práticase mitos, partes de um imaginário secular-mente transmitido nas lendas e narrativascotidianas. Num momento histórico «emque as ‘brincadeiras de negros’ - folgue-dos, danças, batuques - são permitidas, emesmo aconselhadas pelos Jesuítas, tantopor implicarem em válvulas de escapecomo por acentuarem as diferenças entreas diversas nações» (Sodré l988, p.l23).

É importante ressaltar que na «segun-da metade do século XVIII, já os Jesuí-tas tinham deixado de lado seu processocatequético-evangelizador que lhes ga-rantira, nos primeiros séculos, a simpatiae a confiança dos negros e índios, para setransformarem em senhores de engenho,aliados oficiais dos fazendeiros contraqualquer tentativa de crítica por parte dasociedade usando para tanto o poder ofi-cial da Igreja» (Marques, 1999 p.114). Asrelações promíscuas entre os dois pode-res torna-se tão evidente que obriga a jun-ta governativa, após uma rebelião popu-lar coordenada por Manuel Beckman, aexpulsar os Jesuítas do Estado em l773 ea decretar a abolição da Companhia doComércio do Maranhão. Isto coincidecom a extinção da Companhia de Jesuspelo Papa Clemente XIV, cedendo à pres-são de reis católicos de França, Espanha,Portugal e Áustria, deixando-os sem qual-quer poder e sem a proteção de Roma.

Esses fatores interligam-se para criaro cenário onde a religiosidade popular e,mais precisamente, as procissões adotamsignificados próprios a cada comunidade,mas sem deixar de lado a herança jesuíti-ca secular: «Como resultado, um catoli-cismo popular, com a sua própria e origi-nal interpretação do dogma, foi capaz dese desenvolver no século XIX» (Assunção2003 p.43). As Irmandades assumem, por-tanto, não somente o lado ritualístico dascerimônias religiosas, mas também o tra-balho catequético-evangelizador, tornan-do-se, ao longo dos anos, instituições po-liticamente fortes junto às comunidadescarentes da cidade; colaborando com asaúde, a educação e a sobrevivência depessoas pobres.

VARIANTE FAMILIAR

Por outro lado, a procissão pode tam-bém ser percebida como uma manifesta-ção popular devocional privativa, efeitomais direto da promessa caseira de umafamília, feita em honra e memória de umSanto/Santa, sem a interferência diretaou indireta da Igreja ou de qualquer dosseus membros. Nesse caso, a procissãoaparece como efeito mais permanente docatolicismo popular, visto como o espaçodas práticas religiosas de pessoas batiza-das que se professam católicas sem a pre-sença da constelação sacramental:

«O catolicismo popular aparece comouma variante do catolicismo oficial, uti-lizado no processo de evangelização domundo novo. O que o caracteriza é a in-dividualização das relações do homemcom os seres sagrados, sobretudo com asalmas e os santos. É em torno deles quegira todo o processo de trocas, de pedi-dos, de cumprimentos, de promessasnuma relação paralela e profana ao cato-licismo oficial e a autoridade sacerdotal»(Oliveira apud Araújo 1986, p.42).

Nessa perspectiva, a religião atua comoreguladora de uma desordem ao atribuiruma ordem significativa às experiênciasindividuais, tornando-as coletivas e tota-lizantes, moldando-as num mundo socialcom sentidos singulares, únicos. Um mun-do em que os princípios da ordem socialsão considerados não só como úteis, de-sejáveis ou justos, mas também como ine-vitáveis para as representações desse mes-mo mundo. «Um sistema de símbolos queatua para estabelecer duradouras dispo-sições e motivações nos homens, atravésde uma ordem de existência geral e, ves-tindo essas concepções com tal aura defatualidade que as disposições e motiva-ções parecem singularmente realistas.»(Geertz 1989, p.105).

O que o catolicismo propõe é umarelação direta entre o Santo e o devoto,portanto, estruturada no princípio bási-co da troca recíproca e da solidarieda-de, isto é, se o Santo, que é tão ocupa-do, concede o privilégio de atender os

homens deste mundo, então, ele devereceber, de qualquer forma, a retribui-ção no além. A fé nesse Santo, e não emoutro Santo qualquer, prediz a busca deuma ajuda superior no plano divino. Semabdicar da sua fé católica, o devoto optapor individualizar sua relação diretamen-te com o divino, estreitando seus laçosde comunicação com o ser sagrado. Parao homem, acostumado a participar dosseus ritos e cultos, numa relação diretacom o sagrado e o divino, a necessidadede ter que pedir a um padre que autori-ze e intermedeie essa relação soa estra-nha e ambígua.

Assim, o que vale aqui é a tentativade humanizar a relação entre os doismundos, numa re-elaboração constantedo sagrado e do profano. O devoto atalhao percurso para obter graças, resolver pro-blemas ou levar uma vida mais digna. Sea justiça humana é desigual e mal conse-gue sair das suas próprias contradições, adivina não falha, é companheira eficazno trato de todas as questões. É por issoque, ao estabelecer através do Santo umcanal de comunicação com o divino, odevoto garante proteção eterna; facilida-des para conquistar benefícios; prestígiocoletivo; autoridade para falar em seunome; poder para promover suas festas eprocissões; atenção para resolver os pro-blemas insolúveis da comunidade. Passaa ser o representante oficial/oficioso doSanto na comunidade, independente-mente da presença da Igreja.

O modelo seguido pelas procissõesparticulares demonstra o caráter privati-vo da cerimônia. Todo o planejamento daprocissão é de responsabilidade do de-voto principal, o dono/dona da festa (aque fez a promessa ou a que guarda oSanto) junto com a comunidade. Os de-votos são, assim, instados a colaborar naprodução da festa, por meio do recebi-mento das “cartinhas”7, pagando suas pro-messas, solicitando outras ou reforçandoos laços de solidariedade uns com os ou-tros. Daí é que o meio mais usado parareforçar esses laços passa, portanto, a ser

de Fátima: devoção e ritual

7 É um convite que funciona como um chamamento para a festa. Nele estão contidas as informações principais do evento: quem convida, dia, horário, percurso, a importânciada participação etc. As cartinhas são distribuídas aos “noitantes” que ficam na obrigação de retornar o convite com alguma coisa dentro do envelope (ou fora dele): velas,foguetes ou ajuda em dinheiro para os preparativos.

Ester Marques e Joaquim Santos*

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a promessa8, por permitir o caráter de con-tinuidade que permanece mesmo depoisque a graça é paga.

O pagamento da promessa é, desseponto de vista, a expressão simbólica domilagre alcançado pelo devoto que assu-me, diante da comunidade, um statusdiferenciado por ter conseguido não so-mente estabelecer a relação, mas cele-brar o contrato com o Santo. É um ilumi-nado que, a partir desse momento, passaa adquirir responsabilidades de represen-tante do sagrado na terra. É, por isso, queo devoto pode continuar pagando o mila-gre indefinidamente e justificar o seugosto, através desse argumento. Por ou-tro lado, se a promessa não é paga porqualquer motivo e o devoto morre, então,a dívida ad aeternum passa para alguémda família ou da vizinhança, que fica coma responsabilidade do compromisso. Apromessa apresenta-se como um contra-to, estabelecido conforme algumas regras9

e objetiva uma dívida que pode ser pagaantes ou depois do milagre - tanto porquem a fez, quanto por quem é designa-do para isso pelo promesseiro - dependen-do da evolução intencional de cada um.

No primeiro caso, ocorre a antecipa-ção do pagamento como uma espécie decrédito de gratidão, mas também de res-peito para demonstrar que da mesma for-ma que o Santo cuida do devoto, o devo-to cuida do Santo, que um é tão impor-tante como o outro. No segundo caso,cumprindo a sua parte da dívida a poste-riori pela graça alcançada. O que impor-ta nos dois casos é que a comunicaçãofique estabelecida e permaneça comouma ligação eterna, universal e abertapara novos contatos.

Por isso, é através da procissão que odevoto marca sua presença na cerimônia:ou arrumando o altar e o andor, ou cola-borando com o pagamento da banda demúsica, da mesa de doces, com a organi-

A conversão da família foi imediata epoderosa. Já nesse ano, D. Lili e os filhospassam a colaborar com os festejos deNossa Senhora, que começam no dia pri-meiro de maio com a reza do terço até odia 13, quando acontece a procissão. Nosanos seguintes, a colaboração passa a sermais permanente, indo desde o preparodas crianças, representando anjos e pas-tores com seus respectivos carneiros, atéa organização dos cânticos, passando peladistribuição das “cartinhas” aos “noitan-tes”, a contratação de músicos e até a lim-peza da santa (nova pintura).

Essa colaboração sempre foi partilha-da por outras pessoas da comunidadecomo D. Zezé Coelho que preparava amesa de doces e as flores, D. Neuza, D.Terezinha Pereira, D. Glória, D. Assun-ção, D. Lizoca e D. Luisa, que se reveza-vam com a ladainha; D. Maria José, quelimpava a casa para receber os convida-dos, Seu Raimundo que se responsabili-zava pela iluminação da casa, enquantoSeu Hélio emprestava a bateria do seucarro para garantir luz ao andor e SeuDedequinho afinava o contra-baixo noritmo certo. Todos trabalhavam dia-e-noi-te para que tudo ficasse pronto para ogrande dia da festa.

Assim, durante décadas, o dia 13 demaio representou um dia longo e simbóli-co para todos. O dia, na verdade, começa-va na véspera com o preparo dos bolos, alimpeza e a decoração da casa, a arruma-ção do andor e continuava depois com a“alvorada” de foguetes e músicas religiosasde madrugada para anunciar a festa. Todoo bairro se movimentava para saudar a vir-gem, que logo pela manhã era transporta-da para o andor, onde ficava à espera daprimeira ladainha, que acontecia ao meiodia em ponto, seguida de outra saraivadade foguetes e de um almoço coletivo paraos colaboradores diretos da festa. Depoisdo almoço, a mesa principal da casa eraarrumada com os bolos e as lembrancinhas

CONTINUAÇÃO

8 Do ponto de vista antropológico, a promessa, ao lado da oração e do benzimento, serve para controlar situações-limites em que é necessário dar ordem ao caos, através deuma ajuda externa, não qualquer ajuda, mas aquela vista como infalível e justa, a que chega na hora certa. Existem promessas de todos os tipos: preparar em casa um altarpara o santo ou de sair em procissão com a sua imagem; aquisição de ex-votos à imagem e semelhança do santo ou do milagre recebido; promessa de acender velas, fazersacrifícios e penitências; rezar terços e ladainhas; assumir um determinado comportamento (não cortar o cabelo ou unha) e não consumir determinado alimento por exemplo.

9 John Searle analisa as regras da promessa ao dizer que, embora um falante não saiba que regras cumpre para realizá-la não pode deixar de cumpri-las se quiser efetivamentefazê-la. Daí é que ele formula as regras que fundam a relação: «o locutor diz que realizará uma ação futura; - o locutor tem a intenção de a realizar (regra da sinceridade); -o locutor crê que a pode realizar; - o locutor pensa que não a realizaria de outro modo, no curso normal das coisas; - o locutor pensa que o alocutário quer que ele a realizemais do quer que ele não a realize; - o locutor tem a intenção de se colocar a si próprio sob a obrigação de a realizar, ao dizer o enunciado; - tanto o locutor como o alocutáriocompreendem o enunciado;- tanto o locutor como o alocutário são ambos seres conscientes, sendo seres humanos normais.» (Searle apud Rodrigues l996, p.l27)

10 A devoção a Nossa Senhora do Rosário de Fátima data do primeiro aparecimento da virgem aos três pastorinhos portugueses Lúcia, Jacinta e Francisco, ocorrido em 13 demaio de 1917. Antes do aparecimento da Virgem, a sua vinda à terra foi prenunciada pelo Anjo da Paz que apareceu duas vezes, em 1916, para explicar a força da oraçãoe da penitência aos três pequeninos. Assim, de maio a outubro de 1917, a Senhora de Fátima apareceu pedindo que todos rezassem o rosário para salvar o mundo dospecados; para que Lúcia ajudasse o mundo a se devotar ao seu Coração Imaculado e para que as almas fossem levadas para o ceú. Disse-lhes também que Francisco e Jacintamorreriam logo, mas que Lúcia permaneceria na Terra por mais tempo. Em outubro, a Virgem fez o milagre do sol (depois de uma chuva, o sol apareceu entre as nuvens ese transformou numa bola de fogo dançando no céu de um lado para outro até secar todo o terreno); enquanto os três pastores viam cenas celestiais como São José, Mariae o Menino Jesus, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora do Carmo e até Jesus com a Cruz. Todos passam a acreditar nas crianças e a história se espalha pelo mundo.Depois do milagre, Francisco adoece de febre pneumônica e morre em 4 de abril de 1919, seguido de Jacinta que morre em 21 de janeiro de 1920. Rapidamente, a famade Nossa Senhora de Fátima espalha-se pelo mundo, assim como os cultos em sua devoção (Martins 1987).

zação do baile e da ladainha, com a com-pra de foguetes e velas ou preparando ascrianças para representarem personagensligados ao santo ou a sua história ou, ain-da, carregando o andor durante o tempoda procissão. O ato devocional transfor-ma-se nesse ritual em ato sacrificial, empenitência simbólica, em ato de comu-nhão. Cada um cumpre, à sua maneira,o seu contrato com o Santo e, dessa for-ma, mantêm o status que o legitimadiante da comunidade

FESTA DENOSSA SENHORA DE FÁTIMA

Realizada desde a década de 30 doséculo XX no bairro do João Paulo, a pro-cissão de Nossa Senhora de Fátima foiinicialmente organizada por D. Raimun-da Sousa, moradora na rua Antonio Bay-ma, no bairro do Caratatiua, com o apoioda comunidade, até a década de 90,quando faleceu. De lá para cá, a festafoi assumida por D. Aliete Ribeiro de Sá,mais conhecida por D. Lili, que já faziaparte da festa desde 1959 por força deuma promessa. Ela assumiu essa funçãoa pedido da anterior devota, que a esco-lheu como sua sucessora, pela sua devo-ção com a Santa.

Entre 1958 e 1959, um dos filhos deD. Lili teve convulsões durante vários diase foi “despachado” pelos médicos da épo-ca, o que causou grande consternação nafamília. Desesperada com a morte imi-nente do filho, D. Lili é aconselhada pelairmã Anailda Araújo (D. Naná) a se “ape-gar” a Nossa Senhora de Fátima10, entãojá uma Santa famosa por conta dos inú-meros milagres promovidos em todo omundo. Dois dias depois, vários terços re-zados, muitas lágrimas derramadas e umacompreensão da fé como único caminhoda salvação, o menino volta para a casa,sarado e sem seqüelas, para surpresa dosmédicos que acompanham o caso e ale-gria e júbilo da família.

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de Nossa Senhora, ao mesmo tempo emque os refrigerantes, sucos, vinhos e ou-tras bebidas eram postas na geladeira eque o sistema de som ficava pronto para afesta (dançante), que aconteceria no finalda procissão.

O cair da tarde anunciava a chegadados devotos para a procissão11. Cada umvinha vestido com a sua melhor roupa e,usando o seu melhor sorriso. Cada umtrazia à mão a vela, o terço, o caderno decânticos, uma criança vestida de anjo oude pastorinha. Cada um vinha contritode sua fé e consciencioso de seu compro-missão ritualístico. Depois chegavam osmúsicos contratados, além da banda mar-cial do Exército, especialmente convida-da para o evento, a rezadeira e os demaisdevotos. Uma saraivada de foguetes davainício ao ritual com uma criança vestidade Nossa Senhora à frente, os pastoresatrás, seguidos dos anjos, do andor, doscantadores, dos devotos e dos músicos.

Um forte sentimento de comunhão to-mava conta de todos numa união solidá-ria e polissêmica, configurando o ritual depassagem: um espaço cósmico e um tem-po sacro-profano. O cortejo solene, coma imagem de Nossa Senhora à frente, se-guia então pelas ruas dos bairros do JoãoPaulo e Caratatiua até a Igreja da Gló-ria, no bairro da Alemanha ou de São Ju-das Tadeu, no João Paulo, onde era reza-da a missa e onde a solenidade ganhavaares de catolicismo oficial. No final damissa, o cortejo fazia um percurso dife-rente até chegar a residência de D. Rai-munda, onde a festa continuava com areza da ladainha de Antonio Rayol pelasrezadeiras contratadas para o ofício, aofinal da qual cânticos eram entoados, fo-guetes eram tocados, comidas e bebidaseram servidas, até o início do baile quevazava a noite adentro. E, assim, a cele-bração chegava ao fim com a certeza dodever cumprido e a sensação plena do con-trato celebrado.

Atualmente, depois do falecimento deD. Raimunda, a festa assumiu um ar maisrecatado, ficando restrita a realização daprocissão pelas ruas do bairro do JoãoPaulo até a Igreja de São Judas Tadeu,onde é realizada a missa, ao final da qualretorna para a casa de D. Lili para as des-pedidas finais. Muitas das pessoas que par-ticipavam da distribuição dos custos dafesta morreram ou já estão muito idosas

para colaborar. Além da família e dos pa-rentes de D. Lili, participam do cortejoalgumas pessoas que pagam promessas eoutras que vão por simples curiosidade. Adistribuição das cartinhas acontece ape-nas como convite, já que todas as despe-sas são garantidas pela família responsá-vel pela Santa e por alguns pagantes depromessas, que ainda mantêm o hábito dedoar velas, foguetes, roupas para os anjosou algum dinheiro. Os músicos do Exérci-to continuam acompanhando a procissão,respeitando o convite feito anualmente porD. Lili. A ladainha voltou a ser entoada e,no final, da procissão, chocolate quentecom bolo de tapioca compensa o sacrifí-cio do cortejo.

No entanto, apesar da manutençãodo núcleo principal do ritual, a procis-são atualmente mescla a devoção de al-guns com o encontro festivo de outros.O caráter sagrado que era o ponto forte

CONTINUAÇÃO

11 A procissão como ritual envolve um conjunto desordenado de todos os tipos sociais: «penitentes que pagam promessas, aleijados que buscam alívio para seus males, homensnormais que apenas demonstram sua devoção ao santo (...). Une o alegre com o triste, o sadio com o doente, o puro com o pecador» (Da Mata 1977 p.16-17).

da festa assume agora ares de uma cele-bração mais familiar, mais íntima, me-nos ritualística, mais próxima da coti-dianidade das pessoas. O respeito inicialquase demiúrgico pela Santa deu lugara uma relação mais terrena, de umaamizade profunda por alguém muitoquerido que ocupa um lugar especial nacasa, com direito a um pequeno altar,onde divide o espaço com outros Santostambém muito especiais. Mas, é NossaSenhora de Fátima quem continua rei-nando na casa como a mãe sagrada, ilu-minando a todos que a visitam com asua aura de sabedoria eterna. A dinâmi-ca das pequenas mudanças ocorridas nes-se tempo não diminuiu a fé artesanal dosprimeiros tempos, mas, ao contrário, for-taleceu um laço que atravessou a histó-ria sem perder a sua graça principal: con-tinuar nos indicando o caminho da feli-cidade, da justiça e da verdade.

BIBLIOGRAFIA

ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig. “A formação da cultura popular maranhense. Al-gumas reflexões preliminares”, in Olhar: memória e reflexões sobre a gente do Mara-nhão. (Org.) Izaurina Nunes, Comissão Maranhense de Folclore, São Luís: Litho-graf, 2003.ARAÚJO, Maria do Socorro. Tu contas! Eu conto!: caracterização do significadodo Bumba-meu-Boi... São Luís: Sioge, l986.CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte:Itatiaia, vol. 4, l984. (Col.Clássicos da Cultura Brasileira).CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos, Lisboa:Teorema, 1982.CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos (trad. Rubens Eduardo FerreiraFrias). São Paulo: Ed. Moraes, 1984.Da MATTA, Roberto. Carnavais, paradas e procissões: reflexões sobre o mundo dosritos. Revista Religião e Sociedade, São Paulo: Gráfica da Revista dos Tribunais,maio, 1977.ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. (Col. Vida eCultura): Lisboa: ed. Livros do Brasil, S/DGEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara,l989.MACHADO Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. (Col. N-Ima-gem). Rio de Janeiro: Ed. Marca d’água, 2001.MARTINS, Antonio Maria. O segredo de Fátima nas memórias e cartas da IrmãLúcia. São Paulo: Ed. Loyola, 1987OLIVEIRA, Lenir. “Caminhos da Quaresma”, in Olhar: memória e reflexões sobrea gente do Maranhão. (Org.) Izaurina Nunes, Comissão Maranhense de Folclore,São Luís: Lithograf, 2003.RODRIGUES, Adriano Duarte. Dimensões pragmáticas do sentido. Lisboa: Cos-mos, l996.SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. por um conceito de cultura no Brasil. Rio deJaneiro: Francisco Alves, l988.

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Ritos fúnebres no Maranhão:Tu devia pedir pra alguém colocar teu gravador

lá dentro,Será que tá gravando...?

Se fosse nessas outras casas, tu não podia tirarfoto e gravar

Tambor de Choro!Aqui na Casa de Jorge, ele permitia, ele era mais

aberto...Muita gente veio aprender o que é Mina foi aqui

na casa dele!!!

(Comentário feito por uma mulher que assistiaao Tambor de Choro de 1 ano de ‘Pai Jorge’,Terreiro de Iemanjá, 09/06/2004)

Todas as pessoas, ao longo de suas vidas, passampor diversas fases ou estágios nos quais as transiçõesde uma posição a outra são quase que inevitáveis, ouseja, o abandono de velhos costumes e práticas e aadoção de novas, marcando um estado de vida paraoutro onde esses processos são mais conhecidos naAntropologia como ‘Ritos de Iniciação ou de Passa-gem’. De acordo com Van Gennep (1978), há ritos depassagem no nascimento, infância, casamento e mes-mo na própria ‘morte’.

Geralmente, esses ritos são pontificados por ceri-mônias, que em termos de religião, denotam a pro-gressiva participação e aceitação de alguém para fazerparte daquele novo grupo religioso (Gennep, 1978).Os ritos fúnebres representam a última dessas transi-ções, pontilhando a entrada do espírito ao reino dosmortos, desprendendo-o de um mundo material parao espiritual.

Nas religiões afro-brasileiras, os ritos de passagemou de iniciação estão muito presentes, desde os mo-mentos preliminares da adesão do indivíduo à religiãoem si até sua morte. Bastide (2001, p.47) atesta queno Candomblé a ‘queda de uma pessoa em ‘estado desanto bruto’1 ao solo corresponde à morte da perso-nalidade antiga, logo o ser que renasce não é mais omesmo, e sim um novo “eu”, agora divinizado.

Dentre os mais variados e diversos ritos de passa-gem existentes ao longo do ciclo vital das sociedadesem geral, trataremos nesse artigo especificamente so-bre a ‘morte’ no contexto das religiões afro-brasileiras,especificamente em uma comunidade afro-religiosa deTambor de Mina de São Luís, o Terreiro de Iemanjá.Por mais de quarenta anos o Terreiro de Iemanjá foiliderado pelo Babalorixá-Vodunon Jorge Itaci de Oli-veira no bairro da Fé em Deus, que faleceu no dia 09 dejunho de 2003, tendo o seu Tambor de Choro2 (corpopresente e um ano), organizados por aquela comunida-de e liderados pelo seu irmão-de-santo Euclides Mene-ses, Babalorixá da Casa Fanti-Ashanti.

São variadas as denominações para os rituais fú-nebres nas religiões afro-brasileiras e no Maranhãoesses ritos são denominados de ‘Tambor de

Choro’(nação nagô) e Zelim, Zeli (nação Jeje, FerrettiS., 1996, p.162) ou Sirrum (Jeje-mahin); no Candom-blé de nação keto eles são denominados de Axexê e nanação angola Ntambi ou Mukundu (Prandi, 2000,p.176), já no Batuque, do Rio Grande do Sul, é o‘Aressun’ (Corrêa, 1992, p.132). Em Salvador, preci-samente na Ilha de Itaparica, existe o ‘Culto Egúngúnou de Babá Égún’3, onde os ancestrais representamlinhagens de famílias, dinastias reais ou protetores decertas cidades e regiões, além de outros que desempe-nham funções particulares, sendo um culto dedicadoaos espíritos ancestrais (mortos) e que se assentou noBrasil no primeiro terço do século XIX. (Santos, 1986,p.118-119).

A perda do Babalorixá Jorge Itaci foi algo extre-mamente inesperado pelo povo-de-santo maranhensee pela comunidade afro-religiosa da Fé em Deus, ondeaquele líder afro-religioso estava prestes a realizar umde seus sonhos que era lançar um CD com cânticosdo Tambor de Mina e um vídeo sobre a história do seuterreiro e também da própria religião. Foi com grandesurpresa que recebemos a notícia da morte de Jorge, apartir de uma nota no jornalismo televisivo local, daíos reflexos impactantes que a nossa pesquisa poderiasofrer com o desaparecimento do principal informan-te.

No dia da morte do babalorixá Jorge Itaci (09 dejunho de 2003), chegamos ao Terreiro de Iemanjá porvolta das 17:30h e o clima no ambiente não parecianada com o usual, onde as crianças estão sempre brin-cando, correndo pelo Viva Fé em Deus (praça emfrente ao Terreiro de Iemanjá) e fazendo algazarra;jovens e demais adolescentes sentados nos bancos dapraça do ‘Viva’ conversando alegremente. Pairava noar a tristeza, o silêncio e a dor pela morte não só deum grande pai-de-santo daquela comunidade, mas deum líder de opinião ou representante comunitário daFé em Deus (agente comunicador).

Já havia algumas pessoas no local e também sen-tadas no salão de danças do terreiro, velando o corpode Jorge e muitas outras ainda estavam por chegar,pois os filhos-de-santo desse babalorixá não estão con-centrados apenas no Maranhão e sim em outras cida-des como: Belém, Teresina, Rio de Janeiro, Manaus,São Paulo, Rio Grande do Sul etc. O velório se pro-longou durante a noite toda com uma movimentaçãobastante considerável no período noturno com a pre-sença de muitos adeptos da Umbanda e do tambor deMina do Maranhão, amigos, pesquisadores, admira-dores, moradores do bairro, além de líderes afro-reli-giosos de outras casas, dentre eles: Euclides Meneses(Casa Fanti-Ashanti, no Cruzeiro do Anil); Joãozinhoda Vila Nova (Terreiro de Mina Mamãe Oxum e PaiOxalá-Vila Nova); Astro de Ogum (vereador e presi-dente da Federação de Umbanda e Cultos Afro doMaranhão); Ribamar Castro (Palácio de Obaluaê, no

João Paulo), Sebastião do Coroado (Tenda EspíritaSão Sebastião ‘Vale da Natureza’, no Coroado).

Devido ao posto hierárquico elevado que ‘PaiJorge’ ocupava no Terreiro de Iemanjá muitos eramos vínculos (com pais, mães, filhos, irmãos, netos,bisnetos-de-santo, família carnal etc.) que deveriamser quebrados (Amaral, 1994) e mesmo há toda umacomplexidade em torno dos ritos fúnebres dentrodas religiões afro-brasileiras, como atesta Ferretti M(2000, p.210) ‘no Tambor de Choro se uma pessoaprecisa sair momentaneamente do ritual (necessida-des fisiológicas, por exemplo) ela geralmente deixaum lenço ou outro objeto no seu lugar, a fim de queo espírito do morto não o ocupe’. Já Oliveira (1989,p.50) diz que ‘um Tambor de Choro mal dirigidoou organizado, ou seja, com possíveis falhas, comu-mente acarreta morte dentro do terreiro e todos osrituais e particularidades devem ser rigorosamenteobedecidos.

O início do Tambor de Choro de ‘Pai Jorge’, queseria de corpo presente, foi marcado para às 9:00hda manhã e foi dirigido por Pai Euclides e participa-do pela comunidade afro-religiosa do Terreiro. Naporta de entrada do salão de danças havia velas bran-cas acesas, um alguidar4 com banho de ervas e umpote com a inscrição Ilê Vodum, o banho era paraquando as pessoas entrassem e saíssem esfregassemnas mãos e braços, uma forma de purificação paraadentrar ao terreiro e ao sair para limpar-se devidoao contato com um ambiente ou atmosfera em quese processa um rito fúnebre.

Esteiras foram colocadas no salão de danças paraque os filhos-de-santo pudessem sentar em cima e seacomodar, entretanto muitas pessoas ficaram de pése comprimindo, devido aquele espaço ser pequenopara o grande contingente de pessoas que tanto par-ticipavam do ritual ou só assistiam. Bem no centroficou o caixão de ‘Pai Jorge’, coberto pela bandeiracom o símbolo do Divino Espírito Santo e outra daFederação de Umbanda e Cultos Afro do Mara-nhão, tendo na sua cabeceira uma mesinha com umcopo d’água com alguns galhinhos vegetais dentro euma imagem de São Luís Rei de França e de NossaSenhora da Conceição, santos principais do babalo-rixá e do terreiro associados ao encantado Dom LuísRei de França (Xangô) e Iemanjá, além de váriascoroas de flores.

Antes do toque propriamente dito ser inicia-do, algumas obrigações privadas são efetuadas (co-midas, preparação dos objetos rituais do morto,carrego etc.) e que os não-iniciados e mesmo fi-lhos-de-santo com grau hierárquico menos eleva-do não têm acesso. Exatamente às 9:30h da ma-nhã o toque do Tambor de Choro foi iniciadopelo babalorixá Eu-clides com o cântico deImbarabô,5 seguido de outros cânticos em ‘africa-no’, onde os filhos-de-santo acompanhavam can-

* Graduando de Com. Social(Jornalismo), Estudante/Pesquisador(PIBIC –CNPq) e membro do GPMINA, Grupo Mina, Religião e Cultura popular, Departamento de Sociologiae Antropologia-UFMA

1 Bastide (2001, p.312) diz que a expressão ‘Santo Bruto’ refere-se ao êxtase de caráter violento, anterior à iniciação no Candomblé.2 Cerimônia ou rito fúnebre específico do Tambor de Mina do Maranhão, onde não há danças e somente cânticos tanto em africano quanto em português, onde todos

permanecem sentados em esteiras de palhas, gesticulando com as mãos, esfregando uma mão na outra. Segundo Ferretti M. (2000, p.209), o Tambor de Choro é realizadoou de corpo presente, sétimo dia (uma semana depois da morte) e no final do período de luto (1 ano), de acordo com o nível hierárquico da pessoa. Ferretti S. (1996, p. 162)tem o objetivo de despachar ou encaminhar o espírito do morto, fazendo com que ele tome consciência de que já morreu.

3 Culto estruturado e organizado em torno dos espíritos ancestrais, chamados de terreiros de egum ou candomblés de egum, expressões utilizadas por Braga (1992, p.128,131). O mesmo autor estudou esse culto na comunidade de Ponta da Areia, na Ilha de Itaparica, em Salvador. É um culto estritamente masculino em que as almas ancestraissão evocadas e aparecem sob grandes ‘Opás’, roupas do egun, onde nem mesmo os ‘Ojés’, sacerdotes do cultos egúngún, podem se aproximar, ou seja, no momento que osegúngúns estejam materializados (Braga, 1992, p.107). Geralmente, os egúnguns se comunicam através de uma voz rouca e cavernosa, sendo decodificada para os presentespelo Ojé.

4 Recipiente ou vaso de barro, usualmente utilizado nos terreiros de Mina para colocar água, banhos rituais e comidas de santo, além de outras utilidades.5 Primeira palavra do cântico em africano dirigida ao orixá exu, que inicia o ritual do toque de Tambor de Mina Nagô (Oliveira, 1989, p. 58; Ferretti, 1996, p. 298).

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tambor de choro de Jorge Babalaôtando e esfregando uma mão na outra, ora em círcu-los, ora de forma horizontal ou vertical6.

Junto aos tambores no lado esquerdo da porta deentrada ficou o babalorixá Euclides sentado com al-gumas de suas filhas-de-santo e também Pai Franceli-no Xapanã (descendente do Terreiro de Iemanjá comcasa em Diadema-SP, Casa das Minas de Toya Jarina)e, do lado direito, Mãe Zeca, guia do Terreiro de Ie-manjá, com um abano de palha na mão e um pote debarro,7 onde ela batia levemente a ‘boca dopote’(abertura superior do vaso de barro).

Na ordem dos cânticos, ao chegar nos do orixáIemanjá, todos se levantaram e, de pé, cantaram paraa deusa das águas, dona daquele terreiro e principalorixá do babalorixá falecido. A partir desse instante, opote que Mãe Zeca abanava foi quebrado por PaiEuclides e logo foi retirado do salão de danças por ela.

O primeiro intervalo do ritual foi para o almoço epara um rápido descanso, devido ao esforço que oritual exige, pois mesmo paradas as pessoas ficam sen-tadas no chão e não podem se levantar por qualquercoisa, além do sol escaldante que fazia naquele dia,desgastando muito a todos presentes. Na retomadado toque houve a participação mais ampla de todos ospais, mães e filhos-de-santo daquele ritual, onde cadaum deveria cantar para a sua ‘entidade cabocla’, ouseja, uma espécie de despedida ou desvínculo daquelaentidade do indivíduo com o babalorixá.

A segunda parada foi para a despedida dos familia-res consangüíneos de ‘Pai Jorge’ (esposa, filhos, netos,sobrinhos, irmãos etc.), sendo um momento de muitador e tristeza no último ‘Adeus’ a essa grande figura,contando antes com um discurso de conforto e solida-riedade proferido por Dona Teresinha Jansen (madri-nha do terreiro, comadre de ‘Pai Jorge’ e uma das orga-nizadoras do boi e do Tambor de Crioula da Fé emDeus) e também por ‘Astro de Ogum’. O toque foireiniciado de forma inesperada por nós, logo consegui-mos entrar no salão de danças que estava completa-mente ‘lotado’ e, a partir daí, os últimos cânticos emafricano e também em português, específicos do Tam-bor de Choro do Maranhão, foram entoados por Eu-clides e pela guia de sua casa (Isabel Costa), enquantotodos de pé faziam o gesto de passar uma mão sobre aoutra de maneira muito mais acelerada em direção àporta da rua, cantando mais freneticamente:

“Taca, mataca, taca mataca, taca mataca”... “Abi xexê ababô, abi xexê aba bô”...“Vai pra baía tum tum tum” Vai pra báia tum tum tum Olha o tum, olha o tum”(Cânticos do Tambor de Choro, Terreiro de Ie-manjá, 10/06/2003)

Um segundo pote foi quebrado e retirado do sa-lão novamente por Mãe Zeca. É importante men-cionar que nesse momento houve uma parada final, afim de ser feita a homenagem a ‘Pai Jorge pelas Cai-xeiras do Divino Espírito Santo’ (Adeus’)

O Tambor de Choro foi encerrado e o cortejofúnebre até o Cemitério do Gavião (bairro popular da

Madre Deus) começaria, logo o caixão foi suspensopor quatro homens no salão de danças do terreiro e,ao sair na rua, foi aplaudido pelas dezenas de pessoasque lotavam o Viva Fé em Deus’ e as ruas do terreirode Iemanjá sendo colocado no carro do Corpo deBombeiros do Maranhão.

Antes mesmo de chegar o cortejo fúnebre até ocemitério, uma grande tempestade começou a cair nacidade de São Luís, que na verdade eram as lágrimasde Iemanjá junto com os raios e trovões de Xangô,que estavam inconformados com a perda de seu gran-de filho, fato muito comentado e interpretado nomeio afro-religioso de São Luís pelo povo-de-santo dacidade. Após o enterro de ‘Pai Jorge’, debaixo de mui-ta chuva, os filhos-de-santo e muitas pessoas voltaramao terreiro de Iemanjá nos ônibus fretados para aque-la ocasião.

Na porta de entrada do salão de danças estavaesperando pelo retorno do povo, duas mães-de-santoda casa de Iemanjá, uma com um fogareiro (defuma-dor) na mão, Dona Zeca de Avereço, e Dona Florên-cia que dava instruções para as pessoas lavarem asmãos e os braços no alguidar com banho de ervas,limpeza depois do retorno do cemitério. Durante umano a Casa de Iemanjá ficou fechada e de luto pelamorte do chefe principal daquele terreiro, havendoapenas nos dias de festas dos santos, voduns e orixás edemais entidades cultuadas, ladainhas em frente aoaltar no salão de danças do terreiro.8

No dia 09 de junho de 2004, em que ‘Pai Jorgecompletou um ano de morto, foi oficializado o seu‘Tambor de Choro’ para despachar o seu carrego.9

Novamente Euclides comandou o ritual e ‘Pai Fran-celino Xapanã esteve presente naquela cerimônia fú-nebre.

Como aquele Tambor de Choro era de corpoausente, no meio do salão de danças foi colocada umameaçaba, esteira de palha, onde seria colocado o car-rego do morto para ser despachado. Antes do iníciodo toque houve comida de obrigação para os filhos-de-santo e demais membros do Terreiro de Iemanjáno quarto de Dom Luís, compartimento sagrado doterreiro a que tem acesso somente os iniciados e de-mais membros diretos daquela comunidade de santo,local privado onde são realizadas as feituras de Minadaquela casa. Logo no início do toque, ‘Dona Rai-munda Oliveira’, mais conhecida como ‘Dona Bido-ca’ (esposa de Pai Jorge) esteve presente no salão dedanças assistindo ao ritual, perto de Dona Florência,vindo a ficar bastante emocionada quando os tambo-res começaram a tocar.

Nesse Tambor de Choro, Mãe Zeca (guia do ter-reiro) não participou, sendo substituída por MãeFlorência, que ficou encarregada de abanar e baterlevemente no pote de barro ao longo do ritual. Oponto alto dessa cerimônia fúnebre foi ao meio-dia,quando o carrego de ‘Pai Jorge’ foi trazido para o salãode danças por Biné Gomes (filho do terreiro e rela-ções públicas da casa) e por um abatazeiro, gerandomuita emoção nos filhos-de-santo e, a partir de cânti-cos específicos desse ritual, foi levado por dois abata-zeiros (tocadores) antigos daquele terreiro a um local

por nós desconhecido.Depois dos tocadores terem ido despachar o car-

rego, o babalorixá Euclides, acompanhado de MãeFlorência, se dirigem até a porta de entrada do salãode danças para que o babalorixá quebrasse o pote debarro e mãe Florência destruísse o abano de palha etambém fossem jogadas fora o restante das bebidas(vinho e cachaça), que ao longo desse ritual servirampara lavar o ferro, instrumento sagrado que conduz otoque de Tambor de Mina, servindo como um maes-tro para os demais (abatás ou tambores e Xequerês-cabaças).

Ao voltarem, os abatazeiros lavaram suas mãos ebraços no alguidar junto à porta de entrada do salãode danças. O ritual prosseguiu até o final da tarde(16:00h) e nos dias subseqüentes houve a limpeza doterreiro e o Tambor de Alegria, reabertura das ativida-des afro-religiosas daquela casa. A morte do babalori-xá Jorge Itaci teve grande repercussão nos meios decomunicação da cidade (televisão, rádio e jornais diá-rios), revelando sua representatividade, empatia e ca-risma junto à mídia do Maranhão.

BIBLIOGRAFIA

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6 Gesto característico do Tambor de Choro do Maranhão e que tem o significado de afastamento e de condução do espírito do morto a um bom lugar.7 Segundo Ferretti (1996, p.165), na Casa das Minas (nação Jeje), o pote de barro simboliza o corpo do ‘morto’ e os outros materiais utilizados no ‘Tambor de Choro’ (Zelim

ou Sirrum) são a bebida que representa o sangue; a cuia a cabeça do morto e a água é tudo.8 Ao longo de todo o período de luto, acompanhamos, através de nossa pesquisa no Terreiro de Iemanjá, as homenagens as entidades (voduns, orixás, encantados, caboclos,

etc.), que não podiam contar com festas propriamente ditas com toques e demais particularidades, apenas com ladainhas e preces. Houve duas homenagens maiores nosdias de Dom Luís Rei de França (25.08.03) e de Iemanjá (08.12.03) naquela casa, onde o primeiro recebeu missa na Igreja de Santana e ladainha no terreiro e para Iemanjáa comunidade organizou um almoço e teve também ladainha.

9 O Carrego é um cesto de palha contendo os pertences rituais do morto e comidas oferecidas antes do ritual, de acordo com Ferretti M. (2000, p.215).

Gerson Lindoso*

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Crianças precoces no fazer a cultu-ra popular maranhense, Felipe e

Teté foram unidos por várias coincidên-cias. Nascidos no mesmo mês (junho)e no mesmo ano (1924), caminharamrumo ao mesmo destino: o Laborató-rio de Expressões Artísticas – LABO-RARTE. Este ano ambos estão come-morando 80 anos de uma existênciadedicada à produção cultural.

Irreverente em sua simplicidade, Al-merice da Silva Santos, popularmenteconhecida como Teté, nasceu no dia 27de junho, no sítio Conceição, no lugarchamado Batata, em São Luís. Temuma filha, quatro netos, doze bisnetose dois tataranetos.

Na sua infância, no Bairro do JoãoPaulo, Teté começa a cantar e tocar cai-xa na festa do Divino Espírito Santo deMaximiana. Reza ladainhas e canta emprocissão. Já tocou caixa em diversasfestas como casas das Minas, de Nagô ede Fausta, esta última no Bairro de Fá-tima. Atualmente toca na festa de Cecí-lia da Purificação Pinheiro, na Vila Pal-meira, e reza ladainha na queimação depalhinhas do Centro de Cultura Popu-lar Domingos Vieira Filho.

Brincante do tambor de crioula doSeu Lauro, Dona Teté participou daestréia, em 1973, de uma nova dançacriada por ele, chamada Cacuriá, ondetocava caixa, cantava e dançava, desta-cando-se das demais companheiras aoinovar no modo de dançar, criando umestilo próprio, alegre, sensual eapimentado,b como ela costuma dizer:“uma dança menos religiosa e mais re-boculosa”.

Participante do Projeto Pró-Arte, co-ordenado por Tácito Borralho, Tetéensinou a dança do Cacuriá paracrianças durante quatro anos.

Em 1980, Dona Teté foi convidadapara ensinar bater caixa do Divino paraalgumas pessoas que trabalhavam napeça teatral “Passos”, espetáculo apre-sentado durante o período da SemanaSanta pelo LABORARTE, da qual fezparte substituindo uma pessoa e quepelo seu desempenho ficou fazendo

Dose dupla: Teté e FelipeJosimar Silva*

parte do grupo a convite de NelsonBrito. Trabalhou nas seguintes peças:“João Paneiro”, “Era uma vez uma ilha”,“Minha terra minha vida” e “A canga”.

Somente em 1986, Teté e NelsonBrito criaram o grupo de Cacuriá, noqual permanecem até hoje. O grupo jálançou dois CD’s: “Cacuriá de DonaTeté”, em 1997, e “Divino Cacuriá deTeté”, em 2004.

O Cacuriá de Dona Teté, como ogrupo é conhecido, trás como marcauma coreografia bastante sensual, mãosnas cadeiras e muito rebolado, que se-gundo Teté: “Uma gostosura dos diabos”.É uma dança convidativa que misturaas rimas de duplo sentido (Eu sou jaca-ré poiô / Sacode o rabo jacaré) com osmovimentos alegres dos pés à cabeça.

Hoje, o Cacuriá de Dona Teté é bas-tante conhecido e já fez participaçãoespecial no espetáculo “Mãe Gentil”,do coreógrafo Ivaldo Bertazzo, que pas-sou por São Paulo e Rio de Janeiro.

Para Dona Teté, aos 80 anos de ida-de, o Cacuriá é para toda a vida. “Nun-ca vou largar a dança. Eu me sinto im-portante quando canto e toco Cacuriá,me dá muito prazer. Se eu não estivercantando para o povo e chamando elepara dançar, eu não me sinto feliz. Sóvou parar quando não tiver mais forças”.

MESTRE FELIPE

Nasceu no povoado Taboca, no mu-nicípio de São Vicente de Férrer. Suaesposa, Raimunda do Carmo, dedica-setambém ao grupo de tambor de criou-la, sendo a sua coreira número um.

A paixão pela arte de tocar herdoude sua avó Enesia Costa Pereira, quefazia tambor de crioula para São Bene-dito. Aos três anos de idade Felipe játocava no meião e no crivador e, a par-tir dos dez anos, começou a tocar notambor grande, segurado pelos homensdo grupo porque ele ainda não tinhaforça física. Nessa época, passou a can-tar e improvisar versos.

Em 1949, foi morar na ilha do Meio,próximo a São Vicente de Férrer, onde

continuou a tocar e cantar tambor decrioula com os amigos de maneira in-formal por simples diversão. Nesse tem-po já possuía a sua própria parelha.

Por volta de 1966, mudou-se paraSão Luís, morando na Vila Passos, ondeapós o trabalho continuou brincandoquase todas as noites com os amigosde São Vicente de Férrer que tambémmoravam aqui, mas sem a preocupa-ção de formar grupo organizado. Abebida era oferecida por um vizinhoque tinha um comércio. Era só come-çar a bater e ele já mandava uma garra-fa de cachaça.

Fundou sua turma de Tambor deCrioula com o nome de União de SãoBenedito, em 12 de maio de 1973.

Seus primeiros contratos vieram deconvites feitos por Joila Moraes e Valde-lino Cécio para fazer apresentações emTerezina e em outros locais de São Luís.

Em 1978, Nelson Brito convidouMestre Felipe para realizar uma ofici-na de tambor de crioula no LABO-RARTE e ele recorda com carinho dealguns dos seus primeiros alunos: Xa-vier, Jorge de Rosário, Luís Cláudio, So-raya e Ana Leda.

Participou do Festival Internacionalde Teatro de Expressão Ibérica, emPorto (cidade portuguesa); fez apresen-tações nas cidades do Rio de Janeiro,São Paulo, Brasília, Bahia, Fortaleza,Terezina, Aracaju, Goiânia e Palmas.

O primeiro CD “Tambor de Criou-la do Maranhão”, lançado em 1998,contou com o auxílio de César Nasci-mento e teve a participação de Lucia-no Gonçalo, Marco Aurélio, João No-gueira, Nelson Brito, Rogério, Vagner,Suelen, Rosa Reis e Isabel. O segundoCD “O Calor do Tambor de Crioulado Maranhão” contou com o apoio deErivaldo e outras pessoas.

Mestre Felipe, aos 80 anos de idade,continua vivendo sua paixão pelo tamborde crioula, embora quase não possa tocarpor motivo de doença. E afirma: “Todafesta que existe eu vou. Um tambor émuito bom, não existe coisa melhor. É notambor que me sinto realizado”.

* Josimar Mendes Silva é licenciada em História e pesquisadora da cultura popular maranhense.

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Festa em Codó

N O T Í C I A SN O T Í C I A SN O T Í C I A SN O T Í C I A SN O T Í C I A SCultura Popular em Festa Seminário de

Ações Integradasde FolcloreSim, festa que abre um destaca

do espaço para as crianças,adolescentes e jovens, com o obje-tivo de que elas melhor conheçama nossa cultura popular na sua di-versidade e riqueza. E, a conhecen-do de forma viva e interessante pos-sam aprofundar o seu gosto pelascoisas da gente do Maranhão.

Para suscitar esse maior e maisenvolvente conhecimento, temosas oficinas ministradas por NilMuniz e Carlos Diniz, onde o me-xer com o barro leva à criação depersonagens familiares ao univer-so da cultura popular maranhense.São cazumbás, vaqueiros, matra-queiros e fofões que surgem e seapossam das mentes e coraçõesdos seus autores infantis e juvenis.Os dois instrutores têm históriapara contar como criativos autoresdas 200 (duzentas) peças de cerâ-mica integrantes da Exposição“Expressão Arte e Movimento”que abre a Semana.

Vem, então, a força cênica dosespetáculos teatrais “Brincadeirade Encantação”, da CompanhiaCircense de Teatro e Bonecos, e“Catirinando”, de Silvana Cartáge-nes e grupo, os quais têm comotemática as nossas brincadeiraspopulares. As marionetes do pri-meiro mostram os personagens doBumba-meu-boi e a Catirina do se-gundo traz o universo sociocultu-ral da mulher que vive na zona ru-ral num duro dia-a-dia de trabalhoe se diverte nas nossas brincadei-ras juninas.

Somam-se a essas atrações ospapagaios de papel de RaimundoSalazar e Antonio dos Santos, que

vêm de Peritoró para a Exposição“Papagaiada” (marcando a presen-ça do interior do Estado) e a apre-sentação do Boizinho Reciclado,da Associação Melhor Viver, dobairro da Liberdade.

Um momento de reflexão sobrea sociedade brasileira e a sua con-traditória realidade é proporciona-da pela socióloga, professora, mes-tra e doutora da Universidade Fe-deral do Ceará, Peregrina de Fáti-ma Capelo Cavalcante, autora dolivro “Como se fabrica um pistolei-ro”. A sessão de autógrafos é mar-cada pela apresentação de “UrubuMalandro”, grupo de choro recém-criado, em que o cantor e compo-sitor Antonio Vieira participa to-cando surdo.

“Dose Dupla: os 80 anos de Fe-lipe e Teté” fecha com chave deouro a Semana, num show-home-nagem a essas duas estrelas quebrilham na constelação da culturapopular maranhense e são brinda-das por coureiros/coureiras doTambor de Crioula e Caixeiras daFesta do Divino Espírito Santo,manifestações que contam com oseu efetivo envolvimento.

E, ainda temos o lançamento donº 2 do jornal “Na Ponta do Giz”,do Centro de Cultura Popular Do-mingos Vieira Filho, e do Boletimnº 29, da Comissão Maranhensede Folclore, cuja parceria viabilizaa promoção desta Semana, que,apesar das dificuldades financeirasenfrentadas a nível estadual nestemomento, está aí, tão resistentequanto a cultura popular mara-nhense cujas atividades propõem-se a divulgar.

Wilson Nonato de Sousa, mais conhe-cido como Bita do Barão de Guaré, nasceuem Codó (MA). De infância pobre, teve quetrabalhar desde os sete anos de idade paraajudar na manutenção de sua família.

Seus dons mediúnicos se manifesta-ram desde os cinco anos de idade, quandosurpreendia seus familiares ao acertar onome das pessoas que lhe batiam à porta.Posteriormente desenvolveu sua mediuni-dade tornando-se um dos mais famosospais de santo do Maranhão.

Anualmente, Bita do Barão recebe nomês de agosto grandes caravanas que paraCodó se dirigem a fim de participar dosfestejos dos santos e orixás da Tenda Espí-rita de Umbanda Rainha Iemanjá, festa quedura uma semana com vasta programação.

Neste ano, a festa aconteceu no perío-do de 14 a 20 de agosto, com obrigação aSão Lázaro (arreada de Acossi e seus co-mandados de falange para receberem a co-mida de santo), procissão pelas ruas deCodó seguida de leilão, obrigação a SãoJerônimo com arreada de Xangô e seuscomandados de falange, obrigação de To-bosssa com arreada de princesas, passeatapelo centro de Codó, obrigação de SãoCosme e São Damião com arreada de Ibe-ge, obrigação a São Jorge com arreada doorixá Ogum Militar e seus comandados defalange, cruzamento das correntes esquer-das com direita chefiada pelo Exu TrancaRua das Almas, obrigação ao mártir SãoSebastião com arreada de Oxossi e cortejopelas principais ruas de Codó.

A professora e membro da Comis-são Maranhense de Folclore, Maria doSocorro Araújo participou do VI Se-minário de Ações Integradas em Fol-clore: patrimônio imaterial e turismo,no período de 10 a 14 de junho, emSerra no estado do Espírito Santo. So-corro Araújo representou a ComissãoMaranhense de Folclore no evento eministrou a palestra “Bumba-meu-boibrincadeira! Ou espetáculo?”

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Perfil PopularLeonardo Martins dos Santos

Carlos de Lima*

Nasceu em 6 de novembro de 1921, emGuimarães (MA), filho de Bernardo José

dos Santos e Sinfrônia Martins dos Santos.Desde menino seu divertimento era brin-

car no Tambor de Crioula; nada de peladas.“Bola é cousa de pouco tempo pra cá. Mesmoquando cheguei aqui (São Luís), em 1940,tinha medo do próprio Boi... Tinha pique-tes, aqueles cavaleiros... qualquer cousa me-tia a espada... ali na praça Deodoro, onde ti-nha o quartel do 24°.”

Aqui brincou no boi de Misico (Hemeté-rio Raimundo Cardoso), na Vila Passos, masmuitas vezes voltou ao interior sempre parabrincar no Boi até 1949. Ensaiava umas toa-das, mas não tinha vez. “Os cantadores anti-gos não davam valor à gente nova; mesmo quefosse bonito eles faziam tudo para a gentenão aparecer.” Mas, começou a cantar em1955. “Eu tinha voz nesse tempo. Não tinhaera a teoria que eu tenho agora.”

Leonardo afinal assumiu como cabeceirao papel de cantador no Boi de D. Irinéia, numbarracão da festa de São Gonçalo, na Liber-dade... “e assim ficamos até agora”. E cantou,conforme seu próprio depoimento:

Eu separei, me preparei (bistou dentro da minha turmatou de cimavem vê minina,vem vê o boi rolá na campina.

Agora eu acabei de vê,meus vaqueiro já vem,agora eu acabei de crê:Quem empresta não milhora,quem facilita não tem.

Trás o boi, meu vaqueiro,assim que se faz;não vai fazê como quemque fala demais...Depois de feito caiu seu cartaz!

* Carlos Orlando de Lima é pesquisador da cultura popular maranhense.

Como o Boi usava uma casa emprestada(“Carinho de casa alheia, você sabe, hoje sim,amanhã não; hoje tá contente, depois táolhando com cara torta...” Leonardo pegou-se com São João e prometeu: o que ganhasseno Jogo do Bicho empregaria na compra deuma casa que sediasse o Boi. “Ganhei muitasvez e comprei a casa por 15 mil. Ele (S. João) éo dono da festa, quem me deu esse meio.”

Outra paixão do Leonardo era o Tamborde Crioula. “Não danço em baile, nunca fuiao futenol ou na praia. Mas Tambor deCrioula, Nossa Senhora, onde tiver eu vou,em Alcântara, em Guimarães, pra todo lado,São Bento, São Vicente Ferrer... Neto de ín-dio, Leonardo sabia se defender... “essas cou-sa, andá no meio dos outro... Eu preparo re-

médio pra diabete, negócio de úlce-ra, isso eu preparo, isso vem de meuavô que era índio.”

O grande Leonardo da Liberda-de foi sempre franco e espontâneonas palavras. Dizia o que devia serdito. O general Castelo Branco eraPresidente da República. Sua filha,D. Antonieta, veio ao Maranhão edesejou ver o Bumba-meu-boi. O en-tão deputado Alberto Aboud ofere-ceu seu sítio, no Caminho de Riba-mar, para a exibição. A Zelinda con-seguiu, com muita insistência e re-comendação, que o Boi chegasse às10 horas da noite. Esperou-se até as11... e nada da Senhora chegar. Às 11e meia Leonardo impacientou-se:“Dona Zelinda, essa moça não qué vêboi ninhum e eu vou mimbora. A cus-ta de mingau de milho, refrigerantes,etc., logo servidos, conseguiu a donada casa, Lucinha, detê-lo por um pou-co mais de tempo. E argumentava:“Seu Leonardio, o senhor sabe paraquem vai se apresentar? Para a filhado Presidente da República!

O negro velho pôs as duas mãos fechadasnas cadeiras e perguntou altivo: “E daí, dona?Meu cumprimisso é com o Santo, já passa demeia noite e eu não posso fartá ou chegá atra-sado pra donde eu inda vou.” Felizmente D.Antonieta chegou e o boi se exibiu, sendomuito elogiado pela ilustre dama. Leonardoagradeceu, naturalmente vaidoso, mas con-trariado com o atraso de seu próximo com-promisso.

Esse era o nosso grande e saudoso amigoLeonardo Martins dos Santos, dono do Boide Zabumba do bairro da Liberdade: leal, sin-cero e consciente de seu valor, não se rebai-xando para ninguém.

Deixou-nos no dia 24 de julho e deve ter oseu lugar entre os justos, no reino dos céus.

Boletim 29 / Agosto 200416161616161616161616