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i STANISLÁVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E PROCESSO DE MONTAGEM DEESPETÁCULOS STANISLÁVSKI E O COSPLAY: UMA ÍNTIMA LIGAÇÃO COM A TEATRALIDADE Diego Brito Bezerra (PIBIC/CNPQ;Iniciação Científica); Orientador: Fernando Lira Ximenes; Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará - IFCE O século XX teve início com uma era vinculada a mudanças frenéticas: o petróleo ganhava seu espaço como o impulsionador da economia mundial, a Europa deixava de ser a única fonte de realização plena do ser humano em termos de cultura, economia e pensamento diante de um novo mundo que se mostrava ao horizonte do Atlântico; numa velocidade frenética as tensões sociais abalavam as já frágeis firmações sociais e políticas estabelecidas no velho continente, pois havia a ascensão de pensamentos radicais que contestavam tudo que fora feito até então e punha em cheque toda a estrutura montada pela burguesia para servir aos seus propósitos, chegando até mesmo a ameaçar a própria existência humana. O pensamento socialista estava presente por todo o mundo e as instituições políticas como eram conhecidas estavam ficando abaladas, algo que acabará por acarretar duas poderosas e destruidoras guerras mundiais, gerando a ascensão econômica, política, social e cultural dos Estados Unidos, a fundação do comunismo e seu domínio na Rússia, que mais tarde abocanharia praticamente todo o leste europeu com a União Soviética (URSS) e o esfacelamento das instituições europeias, tendo estas que serem praticamente reconstruídas do nada, pois depois de tantos conflitos, guerras, embates ideológicos e profundas crises pouco sobrara do antigo sistema social para poder-se apoiar. Foi um período de forte transformação mundial. Algo que reverbera profundamente até nossos dias. Sendo uma época coroada pelo caos, a contestação e as ebulições explosivas de pensamento, sendo provavelmente o mais intenso, forte e incrível momento de manifestação do pensamento humano da história, onde todos os níveis da sociedade sofreram seus abalos e tiveram que adaptarem-se as mudanças radicalmente. Provavelmente nunca se produziu tanto em termos de conhecimento, pensamento e reflexão sobre uma época do que na primeira metade do século XX. As ciências avançaram para todos os campos (exatas, humanas e políticas). A tecnologia construtiva era tão impressionante quanto o poder de destruição que se criava no seu oposto e nunca houve tantos embates ideológicos num espaço tão curto de tempo, levando a situações de extrema violência e reações proporcionalmente ferozes de pessoas, classes, sociedades e países dispostos a defender seus valores, não sendo poucos os momentos em que os conflitos armados não foram usados para tal fim. No meio de todo este turbilhão de acontecimentos as artes entraram neste vendaval, no qual foi possível criar alguns dos maiores artistas e pensadores da humanidade em todos os tempos. As artes plásticas, a música e a dança passaram por violentas transformações. Linguagens artísticas em ebulição surgiram em toda parte, muitas trazendo abalos as

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iSTANISLÁVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E PROCESSO DE

MONTAGEM DEESPETÁCULOS

STANISLÁVSKI E O COSPLAY: UMA ÍNTIMA LIGAÇÃO COM A

TEATRALIDADE

Diego Brito Bezerra (PIBIC/CNPQ;Iniciação Científica); Orientador: Fernando Lira

Ximenes; Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará - IFCE

O século XX teve início com uma era vinculada a mudanças frenéticas: o

petróleo ganhava seu espaço como o impulsionador da economia mundial, a Europa

deixava de ser a única fonte de realização plena do ser humano em termos de cultura,

economia e pensamento diante de um novo mundo que se mostrava ao horizonte do

Atlântico; numa velocidade frenética as tensões sociais abalavam as já frágeis firmações

sociais e políticas estabelecidas no velho continente, pois havia a ascensão de

pensamentos radicais que contestavam tudo que fora feito até então e punha em cheque

toda a estrutura montada pela burguesia para servir aos seus propósitos, chegando até

mesmo a ameaçar a própria existência humana.

O pensamento socialista estava presente por todo o mundo e as instituições

políticas como eram conhecidas estavam ficando abaladas, algo que acabará por

acarretar duas poderosas e destruidoras guerras mundiais, gerando a ascensão

econômica, política, social e cultural dos Estados Unidos, a fundação do comunismo e

seu domínio na Rússia, que mais tarde abocanharia praticamente todo o leste europeu

com a União Soviética (URSS) e o esfacelamento das instituições europeias, tendo estas

que serem praticamente reconstruídas do nada, pois depois de tantos conflitos, guerras,

embates ideológicos e profundas crises pouco sobrara do antigo sistema social para

poder-se apoiar.

Foi um período de forte transformação mundial. Algo que reverbera

profundamente até nossos dias. Sendo uma época coroada pelo caos, a contestação e as

ebulições explosivas de pensamento, sendo provavelmente o mais intenso, forte e

incrível momento de manifestação do pensamento humano da história, onde todos os

níveis da sociedade sofreram seus abalos e tiveram que adaptarem-se as mudanças

radicalmente.

Provavelmente nunca se produziu tanto em termos de conhecimento,

pensamento e reflexão sobre uma época do que na primeira metade do século XX. As

ciências avançaram para todos os campos (exatas, humanas e políticas). A tecnologia

construtiva era tão impressionante quanto o poder de destruição que se criava no seu

oposto e nunca houve tantos embates ideológicos num espaço tão curto de tempo,

levando a situações de extrema violência e reações proporcionalmente ferozes de

pessoas, classes, sociedades e países dispostos a defender seus valores, não sendo

poucos os momentos em que os conflitos armados não foram usados para tal fim. No

meio de todo este turbilhão de acontecimentos as artes entraram neste vendaval, no qual

foi possível criar alguns dos maiores artistas e pensadores da humanidade em todos os

tempos.

As artes plásticas, a música e a dança passaram por violentas transformações.

Linguagens artísticas em ebulição surgiram em toda parte, muitas trazendo abalos as

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instituições cristalizadas no tempo e na rigidez de suas formas, tentando descobrir qual

detinha condições para levar os valores humanos perante este século que nascia sob a

alcunha da dúvida e onde as perguntas da humanidade eram tantas e as repostas tão

poucas, que não era possível encontrar um caminho certo ou mesmo construir um mais

firme. Diante de tantas transformações, o teatro e a própria teatralidade do homem

passaram a serem vistos com muito afinco, pois provavelmente nunca se discutiu tanto

essa linguagem e seu valor para o homem do que neste momento.

Quando vemos Stanislávski, um dos frutos artísticos desse momento singular da

humanidade, observamos que ele foi um dos primeiros a estudar a arte teatral de forma a

não aprisioná-la nas regras do teatro formal de até então, sendo um dos primeiros a

buscar outros caminhos para as artes cênicas, estando disposto a fazer com que o ser

humano pudesse se expressar mesmo estando ligado a um ambiente artístico onde estas

regras reinavam, buscando um ator vivo, rompendo com muitos conceitos da

dramaturgia e interpretação da época. Sua memória das emoções, apesar de ser muito

questionada pelos estudiosos e sendo questionada e analisada em outras ocasiões pelo

autor, foi um caminho criado a fim de, a partir de um texto, o ator pudesse se expressar

de forma a manifestar sua teatralidade, se utilizando de seus sentimentos para transpô-

los a personagem. Tal tentativa culminaria na busca de tentar criar algo que libertasse o

ator do seu cotidiano a fim de expressasse de forma mais espontânea.

O teatro sempre foi um reflexo social de seu tempo, estando sempre agindo de

forma a responder de maneira adequada às necessidades que determinada época pediam

para que ele agisse de maneira a tornar as coisas melhores.

O trabalho em questão visa uma análise destes mecanismos trabalhados pelo

diretor e como eles afetam no processo de construção das personagens dos praticantes

de cosplay (processo cênico no qual determinadas pessoas buscam se transvestir em

personagens de animações, filmes, videogames e outras mídias populares), tendo como

base de análise dos cosplayers (praticantes de cosplay) da Super Amostra Nacional de

Animes, na cidade de Fortaleza-CE. Dessa forma, busca-se mostrar como os

ensinamentos do diretor russo influenciam essa linguagem teatral de maneira a seus

praticantes encontrarem nela um caminho para manifestarem sua teatralidade.

Tais questionamentos e experiências teatrais surgiam através de uma constante

necessidade do diretor do Teatro de Arte de Moscou em trazer para a cena um ator

orgânico, longe dos processos declamatórios e por muitas vezes considerados vazios por

ele, fruto de um processo cristalizado e por muitas vezes considerado relapso. Uma

necessidade que permanece até os nossos dias, tanto para o fazer teatral dos artistas

quanto das demais pessoas.

Um dos pontos abordados por este estudioso se deve a necessidade de acreditar

na realização do ato teatral, assim como faziam as crianças, algo muito valorizado por

Stanislávski. A crença infantil no ato cênico que elas eram capazes de realizar era um

dos pontos que ele gostava de enfatizar em seus processos junto aos seus atores, isso se

deve ao fato de que a teatralidade ganha um valor de manifestação do homem perante as

experiências que ele ganha ao longo da vida, sendo elas compreendidas através leituras,

aprendizados, imagens e outras formas de conhecimento, não necessariamente estando

vinculada a um fazer artístico, nem obrigatoriamente tendo a noção de estar realizando

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uma manifestação cênica. algo perceptível no pensamento de alguns cosplayers perante

análise de suas apresentações e o vinculo dessa arte com o teatro.

Isso ocorre devido ao fato da teatralidade sempre ter estado ligada ao ser

humano, mas devido às imposições sociais, conforme nós vamos crescendo nossas

atribuições artísticas naturais vão sendo retidas pelas regras de conduta social, fazendo

as pessoas terem dificuldades de expressão teatral. Algo que Stanislávski conhecia

muito bem.

Muitas destas noções interiores que nos auxiliam no manifesto de nossa

teatralidade e a aparição do nosso ser artístico, especialmente quando falamos dos

cosplayers e das brincadeiras nos jogos infantis, estão ligadas aos processos vinculados

a mimeses, pois ela vem entrelaçada com a proximidade das nossas relações sociais e

nossa postura social, estando intimamente ligada a todas as formas de manifestações

sociais criadas pelo homem, sendo estabelecida como um caminho para o processo de

aprendizado pela vida afora, pois é através dela que o homem consegue ser reconhecido

pelos seus semelhantes, se reconhecendo mutuamente através de seus códigos comuns,

compartilhados uns com os outros, numa comunhão de gestos e de experiências

baseadas no espelhamento e no convívio com a sociedade a qual eles estão inseridos,

não deixando de ter a sua própria identidade diante desta forma de manifestação que

aparentemente parece querer buscar a padronização do comportamento do ser, mas que

na verdade está mais vinculada na reverberação da multicultura existente em cada um

dos seres constituintes da uma sociedade.

Apesar de tais construções aparentemente levarem a uma equidade de

pensamento o processo não encerrasse neste patamar, pois as ações miméticas também

são processos construtores de novos caminhos totalmente próprios, possibilitando a

criação de novos mundos estéticos ou sociais, nos ajudando na constituição do nosso

ser, não apenas num aspecto comportamental, mas também metal, social e psicológico,

pois a mimese não está atrelada apenas numa constituição material, mas também no

aspecto simbólico, este contendo uma ligação íntima na constituição do nosso ser social.

Uma base como essa, tão importante na constituição dos movimentos artístico

dos cosplayers, pode ser vista também como uma base inicial para o fazer artístico de

Stanislávski, especialmente quando se visa despertar o imaginário e as emoções dos

seus artistas, pois assim há uma possibilidade de adentrar numa realidade virtual, se

envolvendo na fantasia que o evento teatral é capaz de proporcionar, estando seus

participantes muito longe de ficarem numa postura de passividade, mas sim de

modificar o seu meio através de ações ativas, mesmo que aparentemente elas não

tenham movimentos significativos.

Tais ações existem pela finalidade de “adaptar” a visão do mundo concreto,

julgado real, com a concretização do universo imagético existente nos conteúdos

inspiradores dos praticantes de cosplay. Tudo isso ocorre de maneira tão atrelada às

relações de cotidiano de alguns destes praticantes que fica difícil verem algum problema

na realização desta manifestação, uma vez que esse processo mimético acaba por não

deter uma diferenciação entre verdadeiro e falso nem entre bem e mal.

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Quando tratada a questão do cosplay, fica clara a busca dos cosplayers em

encontrar e manifestar a sua natureza imagética de forma a poder reproduzi-la no

universo do real, no intuito de imitar, de maneira intencional, uma imagem

(personagens de animações, filmes ou seriados) com uma situação desejada, atrelada

com uma serie de transformações e adaptações da mesma para que esta, por meio da

imitação, possa se realizar de maneira plena no universo real, satisfazendo seus

praticantes (cosplayers), e permitindo desinibir se e expressar-se através da teatralidade.

Desta forma não há como dizer que os cosplayers estejam simplesmente imitando os

seus elementos inspiradores, mas sim atuando e representando, expressando

mimeticamente sua natureza inspiradora de forma a expressar com toda a energia que

lhe for possível.

O equilíbrio entre o ator em cena e o seu cotidiano também fazia parte desse

processo, pois o descontrole entre os campos do ficcional e real poderiam gerar

problemas de equilíbrio para o ser tanto artístico quanto social. Uma afirmação de que

A teatralidade também possui sua diferenciação perante o espaço, pois o transitar do

meu EU-cotidiano para o meu Não-EU, ou seja, o outro, requer ter a capacidade de

diferenciar a nossa vida cotidiana da vida teatral, estabelecendo uma relação de

cumplicidade entre aquele que faz e aquele que observa, pois não há uma confusão entre

o mim com a minha manifestação (cosplay) , pois seus ambientes estão delimitados,

estando o espaço cênico carregado de teatralidade.

Quando buscado a ideia de manifestar uma personagem vemos na abordagem de

Stanislávski uma questão relacionada com a intimidade do papel para com o ator,

através da percepção de nós mesmos no papel. Pensando nisso, seria adequado buscar

uma comparação entre os papéis escolhidos pelos cosplayers e suas intimidades para

com eles, pois entrevistando os mesmos ficou perceptível que eles quase sempre tentam

trazer personagens com os quais eles possuam alguma intimidade. Tais acepções,

quando voltamos para Stanislávski, tem haver com um aspecto de espontaneidade para

com o papel, o que torna a arte do cosplay possuidora de uma serie de vínculos com a

organicidade, não estando necessariamente ligada a nenhum conceito, mas nem por isso

passa a ter um valor artístico menor do que uma arte conceitual estruturada. Muito do

teatro mais antigo trabalhava a ideia do fazer e se realizar como pessoa de forma mais

espontânea. Afinal, uma realização mais viva das artes cênicas sempre esteve como uma

das buscas de muitos pesquisadores, mas por uma serie de motivos elas não foram

conquistadas e permanecem incompletas.

O teatro mostra ao longo da sua história que por mais que se busque o seu

aprisionamento e repressão, ele sempre encontra outros caminhos para encontrar uma

expressão mais espontânea, e como as várias faces da cultura são capazes de penetrar e

contaminar por outras perspectivas, achando novas formas para lidar com situações de

crise, o cosplay pode ser visto como uma dessas variantes. Uma vez que ele possui uma

forma da qual é capaz de contagiar as pessoas a conseguirem expressar a sua

teatralidade, fugindo do aprisionamento social o qual a comunidade acaba por

encarcerá-las.

Um ponto que deve ser visto quanto ao teatro é a sua natureza construtiva do

homem. Tudo do teatro perpassa pelo homem, sendo este um ser que está ligado

intimamente a necessidade de manifestar sua teatralidade de alguma forma. Observando

esse detalhe fica perceptível que tais amarras colocadas ao longo da história teatral,

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especialmente pela classe burguesa, a fim de defender seus ideais e valores ao longo de

quase três séculos não teriam condições de permanecer sem serem contestadas durante

muito tempo. Com a chegada do século XX o mundo passou por mudanças

extremamente profundas, nas quais houve uma maciça onda de contestação de valores e

barreiras impostas.

Algo tão essencial ao humano que o teatro não teria outra escolha a não ser estar

presente neste processo. Os pensamentos de Stanislávski são parte desse momento, não

sendo errôneo afirmar que sua obra ainda está viva na prática cênica de nossa

modernidade. O cosplay é um dessas linguagens que possuem ligações com este artista,

sendo uma fonte para a manifestação da teatralidade humana.

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STANISLÁVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E PROCESSO

DE MONTAGEM DE ESPETÁCULOS

ILUMINAÇÃO CÊNICA: RELENDO STANISLAVSKI

Felipe Braccialli;

Narciso Larangeira Telles da Silva (Orientador);

Curso de Teatro;

Instituto de Artes;

Universidade Federal de Uberlândia;

A iluminação cênica, há algum tempo, tem ganhado bastante importância

durante o processo de criação de cena de um espetáculo, ela deixa de ser um elemento

que entra ao final da criação com a única função de mostrar a cena que está ocorrendo, e

torna-se um elemento de estímulo para os atores, o diretor e a cena como um todo.

A pesquisa sobre iluminação ganha força e começa junto com a pesquisa do

espetáculo.

“O comportamento dos atributos expressivos da iluminação,

quando elaborados a partir de conceitos que trabalham paralelamente

às idéias dos autores e de direção dos espetáculos, favorecem as

sensações e sentimentos embutidos na proposta.“ (PEREZ, 2007,

p.29).

Diretor e iluminador ao iniciar o processo devem sentar para discutir as

possibilidades de iluminação e como pensá-la em conjunto com a cena.

“A cena viva requer uma luz viva, isto é, uma luz que possa

vibrar de acordo com a sua freqüência e não uma luz artificialmente

sobreposta ou colocada à cena, com uma outra freqüência; enfim,

requer uma luz não decorativa, não pictórica, não literária: apenas uma

luz presente, que dure o tempo da cena, o tempo da percepção.”

(CAMARGO, 2006, p.65).

Nessa perspectiva, o iluminador tem que, a todo o momento, encontrar novas

soluções que componham com a cena e que proporcione um melhor desenvolvimento

da peça. Porém, pergunta-se quais caminhos seguir para criar uma concepção de luz e

trazer propostas para modificação da cena?

Cada iluminador tem o seu “método” de criação, como cada idéia surge e a

maneira como planeja seus projetos. Alguns seguem as necessidades técnicas da cena,

onde precisa de luz e onde precisa de sombra; outros buscam no abstrato ou no

simbolismo, são várias as possibilidades. Também tem os que aproveitam de métodos

criados para a cena, mesmo que não, necessariamente, feitos para a parte específica de

iluminação cênica.

Com base no método de Constantin Stanislavski, criado, entre outras coisas, para

a direção de atores e aperfeiçoamento da atuação realista, pode-se pensar em alguns

caminhos a seguir na criação da concepção de luz.

No entanto, para isso ser possível não se pode seguir a risca os ensinamentos, já

que, os mesmos, foram feitos para outra área de criação artística da cena, mas a releitura

das indicações apontadas por Stanislavski transpondo para o conceito da iluminação

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cênica encontra-se que os caminhos traçados para a área de atuação e podem ser

utilizados na criação da concepção de iluminação cênica.

Quando Stanislavski propunha aos seus atores trabalhar com o “se mágico” ele

queria que os atores criassem a situação hipotética em sua cabeça para assim descobrir

qual seria a melhor atitude de cada personagem, sempre a busca de indicações para os

mesmo na dramaturgia escolhida para a cena. Ao criarem as mesmas situações

hipotéticas da cena, é possível analisar os efeitos que a luz teria em cada situação, por

exemplo: Se ao final da tarde, as personagens se encontrassem em um parque e fossem

assaltadas, como seria essa luz? A partir dessa hipótese pode-se seguir dois caminhos

para a criação de luz: (1) ter como base somente as questões realísticas da cena,

reproduzindo assim um possível por do sol interferido por luzes brancas ou amarelas

dos postes de luz disposto em um parque público; (2) ou então, tem se uma abordagem

de uma iluminação mais simbólica, que não se foca na ambientação real da cena, mas na

criação do “clima” da cena. Um por do sol que aos poucos vai escurecendo deixando

apenas penumbras na cena e um tom avermelhado vai sendo introduzido ao fundo para

criar um suspense do assalto que vai se seguir.

Se tomar mais tempo em analisar essa situação é possível encontrar, ainda,

outros caminhos para a criação da iluminação da cena a partir de outros pontos de vista.

O “se mágico” também pode ser pensado em relação ao: (a) efeito; (b) trocas; (c)

intensidade da luz; (d) local em que a situação ocorre, por exemplo, em uma cena que

ocorre ao ar livre em uma tarde de verão a luz será uma, se está em uma sala fechada

iluminada a velas, a luz é outra, se está de noite com uma lua cheia, se está dentro de um

carro em movimento, etc. Podemos criar qualquer situação necessária para a cena e,

assim, entendendo a situação, é possível pensar em qual luz que comporia melhor para

ela. Criar situações com o “se mágico” também é uma possibilidade de criar as

mudanças de cenas, tendo como base a situação instaurada no momento anterior ao

inicio da cena. Por exemplo, a situação de uma cena inicial de uma peça poderia ser um

raio que cai do céu e queima a caixa de energia de uma rua deixando-a toda no escuro, e

ela ser montada quase que por completa só com artifícios de iluminação cênica.

Para o “se mágico” ser funcional tem que se apropriar de outro ensinamento que

Constantin deixou para seus atores, o da observação da vida. Como, muitas vezes, a arte

imita a vida, então é preciso retirar material para a criação de cena da própria vida.

Observar o comportamento humano, o clima, as paisagens, a natureza, a física, o

funcionamento das coisas, tudo é essencial para o ator, e, portanto também para o

iluminador.

Em uma palestra de Jules Fisher ele fala “Quando o artista está olhando pela

janela, está trabalhando.”, isso porque observar as coisas é um dos melhores modos de

se ter novas idéias para criação. Ele também fala que quanto mais você sabe, mais você

sabe, tudo que se pode ser observado ou aprendido te “alimentará” de alguma maneira

no desenvolvimento de sua arte.

O iluminador tem que ter a arte da observação como seus refletores, muito bem

afinados. Essa observação no caso não se limita unicamente à vida, mas também a arte,

já que a vida e a arte se misturam a todo o momento.

Observar a sombra mudando de direção conforme o dia vai passando é entender

que, a disposição dos refletores transforma totalmente o sentido da cena. Perceber que

as cores ganham mais ou menos vida com as diferentes formas de iluminar é entender

que tudo pode ser mudado durante a peça pela mudança simples da gelatina que está nos

refletores. Ver os desenhos que se formam nas sombras que passam pela janela, os

reflexos que os metais têm ao sol, ou até as sombras que cada pessoa faz atrás de um

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pano, tudo isso é pura observação do cotidiano que facilmente é aproveitado em cena e

na criação da luz de uma peça.

A observação de outras formas de artes, como: pintura, filme, fotografia e

desenho também ajuda a pensar em iluminação e em cores. O aproveitamento da visão

de outras pessoas sobre a vida possibilita encontrar soluções diferentes para a luz de

uma cena específica.

“Podemos afirmar ainda que os designers de iluminação podem, através da

pesquisa visual nas artes pictóricas, buscar elementos poéticos e de estrutura física das

luzes em determinadas épocas.”(PEREZ, 2007, p.78). Um quadro que retrata um bordel

antigo, e traz toda a sensualidade do lugar, é possível que os tons avermelhados estarão

presentes, assim é possível “pintar” essa imagem na cena com uma luz que misture

vermelho, âmbar e branco.

Isso também se aplica em outras artes, que não apenas a arte pictórica. Os

diferentes efeitos de luz podem ser encontrados no cinema e na televisão, idéias de

mudanças de luz podem surgir a partir de músicas, pela fotografia, planos e

profundidades, foco e cores, entre outras tantas possibilidades.

A arquitetura dos lugares é, também, algo importante a ser observado, como a

luz do sol é aproveitada em uma casa, que efeitos ela cria em cada lugar, os desenhos

que fazem através dos vitrais de uma igreja, a textura da luz ao ultrapassar os diferentes

meios transparentes, a luz refletida na água. Tantas possibilidades de efeitos de luz e

sombra no cotidiano que a observação deles se torna de suma importância para a criação

de uma concepção de luz.

A observação do cotidiano, possibilita a criação da iluminação cênica, pois é

possível estabelecer os tipos de refletores, as angulações, as cores, a intensidade, os

cortes, as mudanças, o tempo de duração, as repetições entre outros tantos pontos

essenciais para a montagem e operação da luz em cena. Todos esses elementos sempre

estão presentes na luz, mas, ao focar a observação em cada um deles, facilita a análise e

aproveitamento da utilização.

A compreensão sobre qual refletor deve ser utilizado para determinada cena, a

análise sobre onde colocá-lo no espaço para o efeito desejado ser alcançado, a partir

dessa definição é escolhida a melhor cor a se utilizada, a necessidade da luz ser cortada

de alguma maneira, quanto tempo ela vai permanecer da mesma forma, como vai ser

mudada a luz e quantas vezes essa luz vai aparecer novamente em cena. São caminhos

iniciais para se pensar na criação da iluminação cênica.

Outro ponto que deve ser aproveitado das experiências citadas por Stanislavski é

a própria memória emotiva. Deve-se entender que a percepção do mundo muda com o

envelhecimento, percebe-se que não existe uma visão correta sobre a vida e sim

perspectivas sobre o momento em que se viveu a situação. A lembrança da casa em que

se passou a infância e nunca mais voltou, faz com que a pessoa tenha a percepção de

que ela era enorme, e se por acaso voltar a essa mesma casa, descobrirá que ela não era

tão grande assim. Tal fato ocorre porque a criança percebe o mundo muito maior.

Quando a pessoa cresce e a casa continua do mesmo tamanho, parece que ela era muito

maior antes. Nesse sentido, pode-se analisar em todas as questões, inclusive a luz.

Lembrar como era azul o céu da infância e nunca mais encontrar um céu tão azul

dessa maneira já te cria sentimentos sobre essa cor, o que pode ser usado em cena. Por

exemplo, para criar uma lembrança de infância, deve ser utilizada uma cor que te remete

ao passado. Ver uma foto antiga que o tempo envelheceu e deixou amarelada também

ativa a memória emotiva, sempre ligando o sépia ao velho. A luz não só ilumina, mas

também trabalha com a sensibilidade das pessoas. Nesse contexto, trabalhar com a

memória é essencial para fortalecer a cena em sentidos e emoções.

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Apesar de a memória, os sentimentos e as percepções serem individuais,

algumas coisas, como, cores, luzes, desenhos, objetos, trazem uma associação similar

para muitas pessoas, trazendo a sensação para um momento da vida. Isso por dividir

uma mesma cultura, uma mesma região, um mesmo tempo.

Usar o material pessoal de cada um é fortalecer a cena de sentido e de ligações

com a realidade, o que há muito tempo é usado pelos atores, mas não se pode privar

esse recurso só para a criação do personagem, ele tem que ser aproveitado também para

outros lugares da cena, como figurino, cenografia, maquiagem e, claro, iluminação.

Outro elemento importante priorizado por Constantin e que pode e deve ser

usado pelos iluminadores é a própria dramaturgia do espetáculo. O dramaturgo ao

escrever seu texto desde o inicio dá indicações da iluminação desejada na cena, como

por exemplo, a estação do ano que se passa, o horário que a cena acontece, o ambiente

que está se passando, o clima que deve ser instaurado na cena, como outras informações

importantes. Alguns dramaturgos chegam até a indicar mais precisamente alguns

caminhos para o iluminador, deixando nas rubricas onde alguns focos devem aparecer

naquele momento, ou então a necessidade da cena ter pouca luz, até mesmo black out,

geralmente apontados em finais de cenas.

Deste modo, o próprio estudo da dramaturgia ajuda ao iluminador entender qual

é o caminho que a luz deve ter em cena para compor totalmente com o sentido trazido

no texto teatral, claro que, também dialogando com a concepção criada pelo diretor da

peça, e os outros designers do espetáculo. Entender com propriedade o texto e seus

personagens ajuda o iluminador pensar no efeito de luz que cada cena precisa, até

mesmo quais paletas de cores vão ser usadas em cena, e se os personagens vão ter luzes

com cores específicas para representá-los.

A seguir será exemplificada a criação da concepção de luz feita para o Grupo

Giz de Teatro (Uberlândia) para a peça “A Cantora Careca” de Eugène Ionesco em

20091. Em conversa com a diretora, o iluminador identificou que o trabalho teria como

base o realismo na montagem de uma peça absurda, o que já indicou, apesar de poucas

informações (a peça, o estilo dramatúrgico e o estilo de encenação), muito material a se

pensar. Nesse contexto, o iluminador foi à busca de leitura sobre o texto e tentou

entender a história, sobre o que ela falava e o lugar que se passava. Nas primeiras

leituras conseguiu separar o elenco em três núcleos: casal Smith, casal Martin e

empregados. Em outras conversas com a diretora o iluminador foi informado sobre a

cenografia, que seria composta por seis mesas que se juntavam e formavam uma grande

mesa de jantar e um castiçal (http://migre.me/fo1Di) e o que o grupo pretendia abordar

no espetáculo a falta de comunicação entre as pessoas que sentam em uma mesma mesa,

mas não se olham e não se escutam e ainda assim, isso se torna uma rotina na vida.

Também, falaram que o figurino seria trabalhado em tons de vermelho, cinza e creme

(http://migre.me/fidAN).

Com esses elementos o iluminador iniciou a criação da concepção de iluminação

do espetáculo. O iluminador teve, como base no inicio, a sensação, que a peça passava e

a concepção que a diretora reforçava, da dureza dos corpos, das relações das pessoas. A

partir dessas informações a base do espetáculo foi trabalhada com uma luz dura, que se

movimentava pouco e que deixavam marcas da movimentação. Pensando a geral e o

contra de base, fazendo uma geral, com refletores PAR64 #5, sem nenhuma gelatina ou

forma de correção de luz. Foi utilizada uma luz dura, que chega até ser cansativa para se

ver em cena, mas que ao mesmo tempo amplia o foco da cena que são as pessoas, e as

relações entre elas.

1 Iluminação realizada por Felipe Braccialli

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Depois da base ter sido pensada, foi trabalhada a sutileza da cena, mesmo

parecendo estranho pensar em sutilezas em uma proposta tão dura como aquela. Logo

ao início da cena a grande mesa de jantar era fragmentada em duas pequenas mesas que

se distanciavam e ficavam uma virada de costas para a outra, como um símbolo da

incomunicabilidade das pessoas, que mesmo em uma mesma mesa, olhando para frente

não vê o outro. Foi pensado na disposição inicial da vela na mesa de jantar, e tentado

trazer, essa iluminação, vindo do mesmo lugar que viria a luz se a mesa não tivesse sido

desfeita, para assim reforçar a idéia de que as mesas só estão separadas no pensamento

das pessoas e não na realidade. Para isso foi feito um corte de cena, também compondo

com a idéia da direção de ser tudo quadrado e duro, foi usado um elipsoidal para cada

foco que era colocado em cena, cortando em quadrados a luz (http://migre.me/fidpa).

Retomando a informação que já tinha tirado do texto sobre os casais, foi

decidido que eles teriam que ter uma diferenciação de iluminação quando o foco das

cenas fossem eles. Para o primeiro casal, Smith, que quase não se levantava da cadeira,

e ficava o tempo todo dentro de casa, e que tem seus contínuos rituais repetidos com

total sincronia, o iluminador identificou que tal situação reflete a monotonia da vida

cotidiana, assim foi usada a luz mais dura para a peça, que foram os refletores sem

nenhum tipo de gelatina. Para o segundo casal, Martin, que, apesar de não se lembrarem

um do outro, ainda tem os mesmos movimentos e falam as mesmas coisas, foram

colocados alguns refletores PAR64 #5 com gelatina de cor âmbar, isso por que eles

vinham de um outro ambiente que não aquela mesma sala de sempre. O âmbar dava

uma leve esquentada na cena e um maior destaque para os figurinos, trazendo um pouco

mais de profundidade, já que a cena agora tinha uma dinâmica de movimentação grande

esse tipo de luz ajuda a ampliar a falta de memória dos personagens. O último casal, que

era o bombeiro e a empregada, foi trazido uma luz vermelha, primeiro por que eles não

viveram a solidão toda dos patrões, esses dois personagens tinham contato físico e

emocional, mesmo o bombeiro vivendo em eterna busca por um fogo a se apagar e a

empregada só queria saber de desvendar mistérios que não existiam. Essa intimidade

que os dois mostravam trazia ao iluminador uma sensação mais caliente, algo que

destoa dos ingleses, e uma cor que sempre vem à memória para esse tipo de situação era

o vermelho, que também possibilitava esquentar a cena. Outro bom motivo de ter sido

escolhido o vermelho foi para dar um maior destaque para o bombeiro, que entra na

cena como um profissional importante para os outros, que o consideram quase um

confessor.

Durante o processo também foi recebida à colaboração dos atores, com imagens

que a cena trazia e memórias que tinham sobre o assunto, quase sempre vindos de

algum filme ou seriado que tinham assistido. Tal fato foi reportado na cena do

interrogatório do bombeiro. No inicio essa cena consistia em descobrir quem estava

tocando a campainha, sem nenhuma sensação de interrogação, no entanto durante a

montagem da luz um dos atores trouxe para o iluminador a imagem de uma lâmpada em

cima do bombeiro para interrogá-lo, segundo ele “como nos filmes”. Com isso foi

acrescentado à cena um PC de contra, quase a pino no ator para experimentar. Ao

mostrar para a diretora a mudança na iluminação, ela relatou que tinha gostado e que a

qualidade da cena melhorou, para a situação de um interrogatório.

Essa exemplificação leva-nos pensar como as diferentes observações da cena, do

texto e mesmo as diferentes memórias, trazem novas percepções sobre o trabalho e

também como a luz pode transformar o sentido da cena, saindo de uma tentativa de

entender os acontecidos, para um interrogatório de filmes americanos

(http://migre.me/fifen).

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Durante todo o processo de criação da concepção, memórias, imagens, fotos,

filmes devem ser considerados. Nessa peça específica, o texto ditava o tempo das luzes,

como, por exemplo, na cena do relógio, em que não se sabe ao certo quanto tempo se

passa sem nenhum assunto acontecer entre os atores. Nessa situação, à luz que se

movimenta de frente para trás pode aumentar essa ausência de diálogos e dar a sensação

de horas, dias e meses que se passavam sem nada acontecer. Ou seja, durante todo o

processo de criação o iluminador fez uma releitura do Método de Stanislavski.

As artes se misturam e já não dá mais para se separar processos de criação,

entender que tudo pode ser relido e reaproveitando em outras áreas é essencial para o

desenvolvimento da criação e renovação artística. Trazendo de novo as palavras de

Jules Fisher, “The more you know, more you know.”, ou seja, quando mais você sabe,

mais você sabe. Quanto mais você se influencia por novas artes, novas áreas, novos

lugares, novos textos, novas experiências de vida, mais material para criação você vai

ter. E quanto mais material você tem, mais você consegue aproveitar métodos de outros

lugares para a criação de sua própria arte.

Bibliografia

CAMARGO, Roberto Abdelnur. Luz e Cena: processos de comunicação co-

evolutivos. São Paulo. 2006.

PEREZ, Valmir. Desenho de Iluminação de Palco: pesquisa, criação e

execução de projetos. Campinas. 2007.

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TEMA: STANISLÁVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E PROCESSO

DE MONTAGEM DE ESPETÁCULOS

TÍTULO DO TRABALHO: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE AS POÉTICAS

DE STANISLAVSKI E BRECHT, SOB O EIXO TEMÁTICO DE SUAS

IDEOLOGIAS.

Francisco de Paulo D’Avila Júniori (orientador Prof. Ms. Rodrigo Martins Ruiz

ii;

Centro de Artes; UFPel)

RESUMO

O teatro, durante o século XX, obteve importantes contribuições, tanto teóricas quanto

práticas, a partir de dois grandes encenadores: o russo Constantin Stanislavski, e o

alemão Bertolt Brecht, que desenvolveram, através de suas poéticas, distintos modos

estéticos e ideológicos. Este artigo tem como objetivo, por meio de uma pesquisa

embasada em ambos os estudos, delinear um quadro comparativo entre esses dois

encenadores, buscando de forma dialética, o ponto de intersecção que destaca a questão

da ideologia social em ambas as teorias. Para tanto, analisei comparativamente uma

encenação de cada um deles visando reconhecer a dimensão social em suas práticas

cênicas. Tal iniciativa parte de um entendimento particular em relação à concepção do

fazer teatral, por acreditar e defender que essa arte deve compreender os anseios e

transformações de nossa sociedade. Brecht se direciona profundamente para um

engajamento social, observando o ato teatral como manifesto, e almejando o despertar

de uma sociedade passiva frente às mazelas humanas. Já Stanislavski, dedica sua

trajetória ao trabalho do ator e ao processo de criação, priorizando a ética teatral,

valorizando a arte como arte. Portanto, observo em cada um desses homens de teatro,

características primordiais, que devem embasar o fazer teatral, pois são capazes de

atender as próprias inquietudes do ser humano, transformando-o socialmente; onde,

concomitantemente, a técnica relacionada ao pensamento social é exercitada.

Palavras-chave: Encenação; Processo de Criação; História do Teatro; Engajamento

Social; teatro político.

1. INTRODUÇÃO

O teatro contemporâneo é resultado de várias práticas teatrais decorrentes de uma

explosão de experimentações e pensamentos vanguardistas que permearam o final do

século XIX e estenderam-se pelo século XX. Os diferentes modos de compor a cena

teatral hoje fazem parte de um processo de oposição a regras dominantes da época,

oposição essa, que pretendia a renovação do fazer teatral, com desejos e aspirações de

novos fundamentos estéticos, capazes de acompanhar a evolução dos tempos. Muitas

são essas contribuições oriundas dessas práticas, como a funcionalidade dos cenários e

figurinos, a direção dos atores, a abordagem do texto, dentre tantos outros elementos

que tomaram distintas formas durante esse tempo. E sobremaneira, o desenvolvimento

de novos procedimentos relacionados ao processo de criação do ator. A passagem do

século XIX para o XX foi um tempo de nascimento, de grandes homens de teatro, que

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fizeram de suas vidas um lugar de pesquisa e busca de uma arte verdadeira, podendo

assim deixar grandes legados para a criação no século atual. Nessas aspirações

encontramos diversas preocupações, como a ética do teatro e a necessidade de trabalhar

temas coletivos, numa forma de um despertar político nas sociedades em

transformações sociais e em conflitos de guerra. O “Realismo” cênico e a forma “Épica”

são dois desses fundamentos estéticos, representados respectivamente por Constantin

Stanislavski e Bertolt Brecht, que me deterei a abordar neste estudo, onde direciono o

foco para dois desses grandes pensadores, que através de suas ideologias e de suas

poéticas revolucionaram o fazer teatral, concebendo estéticas diferentes, cada um com

seu objetivo, mas que pelo hibridismo existente nos processos de criação teatral hoje,

podem e devem ser refletidas e relacionadas.

A necessidade desse breve estudo bibliográfico e comparativo parte de um

entendimento particular de que a composição teatral e o trabalho do ator devem estar

amplamente ligados a fatores sociais, de cunho político, e também a um treinamento

físico, intensivo e contínuo podendo abranger de forma significativa as transformações

da nossa sociedade. Ao analisar o ponto de intersecção político de suas criações para

com a sociedade, necessitei verificar de forma panorâmica como essas implicações

reverberavam nas encenações.

2. Estudo comparativo entre as propostas de Stanislavski e Brecht

Passemos agora a apresentar uma breve notícia a respeito dos dois homens de

teatro analisados no presente estudo. Através desta pesquisa bibliográfica, acho

pertinente, trazer alguns dados importantes da vida desses mestres, dados de suas

trajetórias artísticas e os principais acontecimentos das épocas em que viveram.

Podendo assim contextualizar essas informações, com a dimensão social encontradas

em suas concepções.

Stanislavski (1863-1938), talvez seja o mais conhecido teórico e encenador da

história do teatro, isso se deve ao fato de que ele foi o primeiro homem a sistematizar o

trabalho do ator, indo contra a uma má teatralidade, que era calcada em princípios

tradicionais, em banalidades e a um exibicionismo em voga nos teatros russos. Isso se

deu através da elaboração de um sistemaiii

, com grande ênfase em aspectos psicológicos,

capaz de designar possíveis linhas na construção de personagem. O moscovita, filho de

um fabricante de tecidos, desde pequeno tem contato com o mundo artístico incentivado

pelo próprio pai, que mandará construir um pequeno teatro para a família. Stanislavski

tem sua primeira representação aos sete anos de idade e desde então passou através da

sua prática a levantar questionamentos que levaria ele a dar importantes passos rumo a

um novo jeito de se fazer teatro, além de ser um dos fundadores do Teatro de Arte de

Moscou, um dos mais significativos teatros do mundo que foi palco de importantes

acontecimentosiv

que influenciam até hoje a arte dramática.

Brecht (1898-1956) encenador e dramaturgo alemão que dedicou sua prática

teatral para questões de cunho político. Em plena ascensão da Alemanha nazista, houve

a necessidade da utilização do teatro politizado, onde o objetivo maior era modificar a

sociedade. Brecht propunha um teatro anti-naturalistav, onde ficasse evidenciado o

espaço teatral e a representação, no sentido de não causar comoção no expectador, para

que o mesmo fosse estimulado a um distanciamento da obra, para que seu poder de

reflexão e critica não fosse prejudicado. Em 1920 Brecht passa a conhecer mais a teoria

Marxista, teoria na qual vai influenciar muito seu teatro. O diretor da companhia o

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Berliner Ensemble, tem como principais obras dramáticas: O Homem é um Homem

(1924-26), A Ópera dos Três Vinténs (1928), A Mãe (1932), Galileo Galilei (1937),

Mãe Coragem e seus Filhos (1938-39) e O Círculo de Giz Caucasiano (1943-45).

A luz do conhecimento cênico político de Bertolt Brecht, faço emergir

questionamentos e provocações sobre as possíveis implicações ideológicas e políticas

também no trabalho de Stanislavski, que em primeiro momento é conhecido por estudos

relacionados a uma ética teatral e a um trabalho sistemático de ator. Sabemos que

Brecht é o maior referencial do teatro político mundial e ao aproximar ele a

Stanislavski, pretendo identificar os encadeamentos sociais também nas obras do mestre

russo. Na medida em que conduzo essa discussão, pergunto-me se é possível, de fato, a

criação teatral que exclui os fatos sociais e a contextualização político-histórica?

Acredito não ser possível, caso ao contrário estaria individualizando a manifestação

artística e potencializando uma “isenção” em relação ao mundo do qual o artista faz

parte. Por vez essa reflexão é ante-sala do próximo item que versa sobre Stanislavski

criador em um contexto político.

Stanislavski por suas conquistas no âmbito teatral é hoje motivo de pesquisa para

muitos estudantes da arte da interpretação, que vêem no mestre russo, um caminho a ser

seguido, uma orientação vinda de práticas e reflexões sobre a evolução do evento teatral

e do treinamento do ator. Parece-me difícil estabelecer de forma cronológica os

pensamentos de Stanislavski, visto que seus livros foram traduzidos de forma

incompleta e alguns de seus escritos ainda não chegaram até nós. Partindo desse

pressuposto, é possível existir muitas leituras equivocadas sobre Constantin Alexeiev e

discursos preferidos sem certa reflexão e contextualização, com grande risco de termos

equívocos sobre as obras do encenador russo. É completamente ingênuo afirmar que o

moscovita não se posicionava politicamente através do teatro, sua face de pesquisador

foi muito forte, durante sua trajetória, seus pensamentos foram se remodelando e se

reestruturando. Se analisarmos alguns pontos de seu trabalho, podemos encontrar sim,

alguns posicionamentos, mesmo que esse não fosse seu foco principal. Como conta

Guinsburg (2001) pouco antes do histórico encontro, em 1897, entre Stanislavski e

Nemiróvitch-Dântchenko (1858-1943), do que resultou a fundação do TAM, reuniu-se a

primeira conferência Pan-Russa de Gente do Teatro.

Nesse conclave, em que importantes membros da vida cênica russa

puderam trocar idéias sobre a situação do teatro, desenhou-se um

quadro que um dos participantes resumiu nos seguintes termos:

“Pouco a Pouco, o teatro está sendo sacrificado ao comércio e as

empresas mercantis. Perdeu sua significação educativa e artística. O

atual contingente de pessoas ligadas ao teatro abrange criaturas que

não tem qualquer relação com a arte e que vêem nelas apenas um

meio de ganhar a existência”. (GUINSBURG, 2001, p. 301).

Com esse dado importante, percebemos qual rumo à arte dramática tinha tomado

na época e por conseqüência os descontentamentos que estava gerando dentre alguns

artistas que convinham de um mesmo pensamento, na qual a arte deveria suprir muito

mais do que o cenário comercial, e sim um cunho educativo e social. As condições do

teatro russo no final do século XIX eram de extrema precariedade, tendo em vista a

administração dos teatros imperiais, que ora eram comandados ou por pessoas

totalmente alheias ao trabalho teatral, ou meramente incapacitadas a realizá-lo. Os

atores eram mal vistos pela sociedade, chegando a serem postos ao mesmo nível que os

criminosos e as prostitutas, obtendo espaços mínimos nas casas de teatro, dispondo de

pequenos camarins sem ventilação e constantemente empoeirados. Sem contar o

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treinamento dos atores, que não obtinham uma boa formação, tornando-se assim

incapazes de desempenhar com independência e criatividade a função cênica.

A Criação do TAM (1898) é de forma significativa um primeiro posicionamento

político de Stanislavski que junto com Nemiróvitch-Dântchenko, tentam resgatar a

essência sagrada há algum tempo perdida no teatro russo. Por parte de Constantin

Alexeiev essa busca foi se sistematizando através de treinamentos intensivos e

contínuos em uma disciplina férrea e um rigoroso controle da aparelhagem físico-vocal.

Seu ator precisava trabalhar utilizando-se como material humano, podendo assim

conceber e fazer nascer um novo ser, que tivesse vida e pudesse expressar.

Já no contexto que Brecht estava inserido, justamente entre as duas grandes

guerras mundiais, foi um momento bastante propício para a criação do seu teatro

político. Brecht identificou a necessidade de um teatro que pudesse influenciar nas

relações sociais dos indivíduos de sua época, podendo chegar a uma exposição objetiva

dos fatores sociais e econômicos que determinavam tais relações. O efeito V -Efeito de

Distanciamentovi

é uma teoria antiga, empregada por outros dramaturgos ao longo da

história do teatro, mas que sob a concepção de Brecht, adquire uma ativação política

através de diálogos estilizados, canções narrativas e elementos informativos, capazes de

distanciar o expectador a fim de possibilitar uma melhor compreensão e racionalidade.

Seu teatro era feito especialmente para a classe operária, como um manifesto e um

convite para que o proletariado pudesse agir e transformar a sociedade. Para o ator de

Brecht o fundamental era um conhecimento social, cerebral, consciente do seu papel na

sociedade, para que quando em estado de cena, pudesse através de sua interpretação

distanciada, fazer com que o expectador pudesse identificar-se com o personagem,

possibilitando a crítica e a reflexão. Brecht assim como Stanislavski, era um pensador

em transformação, e o conhecimento de sua teoria não é de fácil compreensão, devido a

muitas modificações durante os anos de desenvolvimento, como salienta Rosenfeld:

Não é fácil resumir a teoria do teatro épico de Brecht, visto seus

ensaios e comentários sobre este tema se sucederem ao longo de

aproximadamente 30 anos, com modificações que nem sempre

seguem uma linha coerente. Tendo sido bem mais homem da prática

teatral do que pensador de gabinete mostrava-se sempre disposto a

renovar suas concepções para obter efeitos cênicos melhores.

(ROSENFELD, 1985, p. 145)

Para Rosenfeld(1985), duas são as razões para o teatro épico de Brecht: Primeiro,

o desejo de não apresentar apenas relações inter-humanas individuais-objetivo essencial

do drama rigoroso e da “peça bem feita”, - mas também as determinantes sociais dessas

relações. Para Brecht a arte deve penetrar as almas dos sufocados, e esse contato não

poderia ser feito através das convenções que o teatro tradicional estabelecia. Segundo, a

concepção marxista, o ser humano deve ser concebido como o conjunto de todas as

relações sociais e diante disso a forma épica é para Brecht a única capaz de apreender

aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria para uma ampla

concepção de mundo. O “Drama Rigoroso” para Brecht, fazia com que os expectadores

identificassem as coisas tais como elas eram no cotidiano, tornando-se corriqueiras e

habituais, para tanto, incompreensíveis. No entanto como há leituras superficiais e

equivocadas sobre Stanislavski, há também sobre Brecht. Não é pertinente pensarmos o

“Teatro Épico” como um combatente a emoção, muito pelo contrário, o que o

dramaturgo alemão sempre pretendeu, foi elevar a emoção ao raciocínio.

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O que Brecht combate, ao combater a ilusão, é uma estética que

encontrou sua expressão mais radical na filosofia de Schopenhauer: a

arte como redentora quase religiosa do homem atribulado pela tortura

dos desejos, a arte como sedativo da vontade, como paliativo em face

das dores do mundo, como recurso de evasão nirvânica e paraíso

artificial. (ROSENFELD, 1985, p. 148)

No ano de 1917, a Rússia passava pela segunda revolução e a tentativa da

implantação de um sistema socialista, estava perto de ser concretizada. O Teatro de Arte

de Moscou já havia conquistado certo espaço no cenário teatral russo. No dia 25 de

outubro, a rebelião de Bolcheviquevii

de São Petersburgo havia começado e na noite do

dia 26 o TAM representava O Jardim das Cerejeiras, texto do dramaturgo russo Anton

Tchecov que tinha como temática uma família aristocrata em decadência. Segundo

Allen (2004), Stanislavski compreendia a revolução como uma maneira de novos

públicos inundarem o teatro, como uma oportunidade para difundir o conhecimento.

Compreendendo a arte como função social e educativa, e não entendendo a

manifestação artística como um luxo para o público, mas uma necessidade. A revolução

russa era de certa forma agraciada por Stanislavski, mesmo que isso representasse a

perda da empresa da família prosseguindo com a ruína financeira.

Algo muito importante que devemos salientar é o fato de Brecht além de formular

esteticamente seu teatro político, exercia função também de dramaturgo, onde seus

escritos eram desenvolvidos especialmente para suas encenações. Diferentemente de

Stanislavski que não compunha textos para encenar, utilizando-se para suas encenações

realistas, textos de alguns dramaturgos que acabaram fazendo participação chave em seu

trabalho, alguns desses dramaturgos, apresentados pelo seu companheiro Nemiróvitch-

Dântchenko.

Mas é verdade que desde o inicio o Teatro de Arte de Moscou

proclamou o seu empenho em retratar cenicamente os problemas

sociais da vida contemporânea, como meio de contribuir para o seu

conhecimento e solução e de elevar e educar em todos os sentidos o

público e o povo. (GUINSBURG, 2010, p. 68).

Segundo Guinsburg (2010) a inclusão no repertório do TAM de obras dramáticas

engajadas; na crítica a sociedade e no protesto contra sua ordem e valores, na

conscientização para a necessidade de reformas institucionais e políticas, não é fruto do

mero acaso. Podemos observar nomes como: Turguêniev (1818-1883), Tolstoi (1828-

1910), Ostróvski (1904-1936) e do próprio Tchekhov (1860-1904), que além da

qualidade dos textos e a ligação com a cena realista, representavam ao seu modo,

aspectos e formulações do processo de questionamento social e político que vinha se

desenrolando. A Fermentação revolucionária e a própria revolução que vinha

medrando trouxeram para a cena do teatro várias peças que refletiam o

clima político/social, os descontentamentos, o protesto, e os sonhos

como o herói que dissesse a verdade de maneira ousada.

(STANISLAVSKI, 1989, p. 338).

Um dos autores que chegou até o TAM, levando suas indignações e

descontentamentos foi Aleksei Maksimovich Peshkov (1868-1936) com o pseudônimo

de Máximo Gorki. Pequenos Burgueses foi à primeira peça encenada pelo TAM, que

não obteve grande sucesso, como a segunda peça encenada intitulada: A Raléviii

que

obteve estrondoso sucesso ao ser, dirigida por Stanislavski. Em A Ralé, temos

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personagens que contrapõe os camponeses e a burguesia, vagabundos que viviam à

margem de um sistema de barbárie social.

Já vimos que Stanislavksi não está isento de um contexto político emergente, que

acabara influenciando em suas obras. Mas como especificamente essa influencia

discorre em suas montagens? Podemos analisar essa obra de Gorki, que me parece uma

boa escolha para pontuar e discutir a dimensão social no teatro Stanislavskiano. O

elenco escalado para representar A Ralé, incluído Stanislavski, acaba por buscar um

clima favorável à emoção cênica desses vagabundos escritos por Gorki. A preocupação

era fugir de uma interpretação rasa e vulgar dos atores, dando conta das características

especificas desses homens da liberdade. Os 14 Miseráveis apresentados nesta obra por

Gorki, representam as pessoas que estão totalmente a mercê da sociedade russa, no

sentido financeiro, mas que não se fecha ao tema. Gorki cava as personalidades desses

personagens que vivem em um albergue sem condições básicas para se viver, nem como

se aquecer do frio no inverno russo. Destrincha as atitudes, as revoltas, os sonhos de

cada um deles. Segundo Stanislavski (1989) a história de Gorki havia instigado, a

vontade de conhecer mais a fundo à vida dessas ex-pessoasix

os tinha tomado conta. Foi

organizada uma expedição pelo Mercado de Khítrov afim de que através de muitas

observações, essa experiência pudesse trazer originalidade e dignidade à interpretação

dos atores, nesse contexto de vida tão “distante” da realidade burguesa da época.

Pusemos os salgados sobre a mesa, isto é, vodca e salame, e começou

o banquete. Quando lhes explicamos que o objetivo da visita era

estudar a vida dos ex-homens para a peça de Gorki, os vagabundos

choraram de emoção. “Que honra nos fizeram!”- exclamou um deles.

“O que há de interessante em nós, para que vão nos levar a cena?”-

surpreende-se ingenuamente outro.” Pela conversa deles, logo eles

deixariam de beber, logo se tornariam gente, sairiam dali, etc, etc.

(STANISLAVSKI, 1989, p. 346).

Essa viagem pelo Mercado de Khítrov, foi inspirando o encenador, que acabou

levando a experiência viva para a criação dos figurinos, dos objetos e todo o desenho da

mise-em-scéne. Os objetos possuem grande importância para essa vivacidade e são

colocados em cena desde o começo para que o ator se habitue a eles. Na foto mais

famosa que temos de A Ralé, observamos um espaço realista verossímil com o da rua,

além dos figurinos que fazem que tanto o ator quanto o público se aproxime do contexto

da encenação.

Em “Minha vida na Arte”, Stanislavski relata sua dificuldade como ator ao

interpretar o personagem principal da peça de Gorki, no transferir para a interpretação a

questão social do momento e o posicionamento político do autor. Compara o

personagem Satin de A Ralé com o personagem Dr. Stockman da peça O Inimigo do

Povo de Henrik Johan Ibsen (1828-1906), autor que o TAM também encenará e texto

que desenlaça questões sociais também muito aguçadas.

Assim no papel de Satin eu não conseguia obter conscientemente

aquilo que obtivera inconscientemente no papel de Stockman. Em

Sátin eu interpretava a própria tendência e pensava no sentido

político social da peça e era isso que eu não conseguia transferir. Já

no papel de Stockman, ao contrário, eu não pensava em política nem

na tendência, e ela acabou saindo por si mesma, intuitivamente. Mais

uma vez a prática me levou a conclusão de que, nas peças dê sentido

político/social, é especialmente que o ator viva as idéias e os

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sentimentos do papel e então a tendência se manifestará por si

mesma. (STANISLAVSKI, 1989, p. 347).

Seu papel como ator é de extrema importância para muitas formulações de seu

método. Esse depoimento em especial, mostra que por mais que ele tenha tido

problemas com a interpretação de seu personagem na peça dos vagabundos, não deixa

de atentar para as tendências sociais e políticas. Apenas sugere uma outra via, que não a

direta para tal manifestação. No caso de Brecht, o trabalho desde a escrita das peças até

a apresentação para o público, é direcionado diretamente a uma criticidade para com a

ordem natural das coisas. No ano de 1928, Brecht estreava sua peça revolucionária e

uma das que obtiveram maior sucesso, intitulada: A Opera dos Três Vinténs com

músicas do compositor Kurt Weill (1900-1950). A peça inicia com a seguinte

justificativa para o título: Vocês ouvirão agora uma ópera. Porque ela foi planeada de

forma tão pomposa, como só um mendigo poderia sonhar, e porque ela deveria ser tão

barata, que até os mendigos possam pagar, ela se chama A Ópera dos Três Vinténs.

Para Guinsburg (2009) ao escrever a Ópera, Brecht abandona o expressionismo e

as influências dadaístas e anarquizantes, encaminhando-se decididamente ao marxismo.

Acaba criando um espelho artístico da burguesia e uma sátira do capitalismo anglo-

saxão. Dentro de suas propostas revolucionárias, Brecht emprega a música como efeito

de comunicação direta com o público. As personagens brechtianas representam antes as

idéias que a burguesia tem dos mendigos, bandidos ou prostitutas, ou como ela gostaria

que fosse.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devo dizer que não creio em uma construção criativa que em dado momento, não

tome partido por certa ideologia e/ou filosofia. O que constatei é que Stanislavski

encontra na estética realista sua forma para conectar-se com os expectadores, diferente

de Brecht que estiliza o realismo, para obter de forma direta a reflexão no público. Seria

necessário aprofundar esse estudo para identificarmos melhor essas implicações

políticas no mestre russo, ao mesmo tempo em que observamos Brecht que é a maior

referencia do teatro político.

Observamos duas obras especificas, em países distintos, em diferentes fases

políticas e com diversas transformações sociais. Artistas com estéticas dessemelhantes,

com objetivos diferentes, mas intrinsecamente em relação com a sociedade. Torna-se

possível analisar em A Ralé que há um interesse do encenador russo em adentrar o

mundo desses vagabundos e não só em um sentido criativo, mas em traços sociais, no

qual assume um compromisso de representar com vivacidade e respeito às figuras

marginalizadas na sociedade. Assim como há essa mesma preocupação em A Opera dos

Três Vinténs de Brecht, que como de costume em suas obras, coloca de forma

distanciada nos palcos as mazelas sociais e todas as complexidades existentes nos

temas.

Na era da Pós-Modernidade e com esse hibridismo existente hoje nos processos de

composição teatral, onde bebemos em várias práticas saber as definições, as histórias e

as amplitudes desses grandes homens e seus estudos, torna-se fundamental. Defendo

que o trabalho do ator deve estar ligado à ética e a sociedade, e pra mim esses dois

homens representam transformações importantíssimas nessas esferas.

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i Ator da Cia. teatral Aurora e acadêmico de Teatro – Licenciatura da UFPEL. Integrante e bolsista do

Programa de Iniciação a Docência-Pibid (http://pibidteatroufpel.blogspot.com.br/). Colaborador do

Projeto de Extensão Tatá – Núcleo de Dança-Teatro (http://grupotata.blogspot.com). Colaborador do

projeto Teatro em Exercício (http://teatroemexercicio.blogspot.com). ii Ator, professor e pesquisador. É professor colaborador do curso de Teatro-Licenciatura da UFPEL.

Graduado em Artes Cênicas-Habilitação em Interpretação Teatral (2002) e em Direção Teatral (2004)

pela UFRGS. Especialização em Teoria do Teatro Contemporâneo pela UFRGS (2005) e Mestre em

Letras pela UNISC (2007). iii

A palavra “Sistema” vai ser substituída por alguns teóricos como “Método”, por acreditarem que

Stanislavski não elabora nenhuma receita, apenas deixa alguns procedimentos para o trabalho do ator. iv Com a apresentação da peça “A Gaivota” de Tchecov, que marca a representação de uma obra

simbolista numa encenação realista stanislavskiana. v Nesse sentido me refiro a uma não naturalização das ações cotidianas que a cena realista produz.

vi Anatol Rosenfeld em seu livro “O Teatro Épico” passeia pela história mundial do teatro e vai identificar

implicações épicas em ‘Dramaturgos de vários tempos. vii

Partido Operário Social-Democrata Russo liderada por Vladimir Lenine. viii

A peça escrita por Gorki é chamada inicialmente de “No Fundo da Vida”, mas por indicação de

Nemiróvitch-Dântchenko, Gorki intitula sua peça com apenas as duas primeiras palavras “No Fundo”. Na

Tradução para o Brasil, a peça é chamada de “A Ralé”, nome que muitos críticos dizem ser incoerente,

dando outro significado. ix

Expressão que Stanislavski usa ao descrever os vagabundos de A Ralé em seu livro Minha vida na Arte.

REFERÊNCIAS

ALLEN, D. Stanislavski para iniciantes. Buenos Aires: Era Nasciente, 2004.

GUINSBURG, J. Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou: do realismo externo ao

tcheknovismo. São Paulo: Perspectiva, 2010, 2ª ed.

GUINSBURG, J. Stanislavski, Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2001.

PATRIOTA, Rosangela. J. Guinsburg, A Cena em Aula: itinerários de um professor em

devir. São Paulo: Ed. USP, 2009.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985.

STANISLAVSKI, C. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

THOSS, Michaël; BOUSSIGNAC, Patrick. Brecht para iniciantes. Tradução de Maria

Lúcia Pereira. São Paulo: Brasilience, 1990.

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STANISLAVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E PROCESSO DE MONTAGEM DE ESPETÁCULOS

REPRESENTAÇÃO E PRESENTAÇÃO NO TEATRO STANISLAVSKIA NO

Gabriela Fregoneis (UNICAMP)

Resumo: Objetivos, super-objetivos, memória emotiva, ações físicas... É indubitável a importância e influência das ideias desenvolvidas pelo russo Constantin Stanislavki no teatro contemporâneo. O verdadeiro ator, segundo Stanislaski, é aquele que sabe dar vida ao texto dramático e sua personagem, trazendo veracidade e realidade em suas ações. O presente artigo visa focar nos aspectos teatrais e performativos no legado do encenador russo, tendo como ponto de partida a reflexão acerca da representação e presentação no processo de montagem da peça Ensaio.Hamlet da Cia. Dos Atores. Falar de teatro é, inevitavelmente, falar das ideias cênicas desenvolvidas por Aristóteles e Constantin Stanislavski, já que ambos se debruçaram, principalmente, sobre a questão do “natural” e da ação (mimese). É indubitável a importância dos pensamentos e escritos de Constantin Stanislavki para o desenvolvimento da teoria e prática teatral, seja por meio da negação ou da afirmação de suas ideias e desdobramentos no teatro contemporâneo. O olhar voltado para o trabalho do ator, reflexão e crítica acerca de seus processos criativos, proporcionou o desenvolvimento de um Método ou Sistema que pudesse sensibilizar o corpo para os impulsos psicológicos criativos. Algumas das perguntas que surgem nesse momento são: onde, no teatro, Stanislavski não está?! Como atualizar as ideias desenvolvidas por Stanislavski dentro do teatro contemporâneo?! O método desenvolvido pelo encenador russo para a construção do personagem e criação de um papel deu ao ator a autonomia sobre seu fazer artístico, colocando o ator como um “ser criador”. Exercícios para desenvolver a agilidade física juntamente com a aptidão psicológica criativa (processo interior) foi um dos principais focos de seu estudo. Segundo Odette Aslan1, o trabalho de Stanislavski pode ser resumido nos seguintes pontos:

“*luta contra o clichê, a má “teatralidade”, busca da sinceridade; *estabelecimento das vontades das personagens para motivar o jogo do ator; *clima favorável à emoção cênica, meio de desencadear uma emoção verdadeira no ator; *estabelecimento de um subtexto para exprimir nas peças de Tchekhov o que se encontra nas entrelinhas, nos silêncios, para nutrir o texto”.

Para Stanislavki representar um papel é “criar a vida profunda de um espírito humano e exprimí-la de forma artística” 2. Indo além da ideia de representação apresentada pelo diretor russo, o presente artigo tem como foco a reflexão acerca dos conceitos de representação e presentação dentro dos processos criativos de montagem da peça Ensaio.Hamlet realizado pela Cia. Dos Atores em 2004. Iniciamos a discussão apresentando os conceitos de representação segundo o Dicionário de Teatro do Patrice Pavis 3:

1 ASLAN, Odette. O ator no século XX. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.71.

2 Ibidem, p.74.

3 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008, p.338-339.

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“O francês insiste na ideia de uma representação de uma coisa que já existe (principalmente sob forma textual e como objeto dos ensaios), antes de se ‘encarnar‘ em cena. Representar, porém, é também tornar presente no instante da apresentação cênica o que existia outrora num texto ou numa tradição teatral. Esses dois critérios – repetição de um dado prévio e criação temporal do acontecimento cênico – estão, com efeito, na base de toda encenação... A palavra inglesa performance indica a ideia de uma ação realizada (to perform) no próprio ato de sua apresentação. A “performance” teatral envolve ao mesmo tempo o palco (e tudo o que, antes, prepara o espetáculo) e, depois, a platéia (com toda a receptividade de que ela é capaz)”.

Tomando como base as próprias palavras do Pavis, existem dois critérios que tangem a representação, que é “a repetição de um dado prévio e criação temporal do acontecimento cênico”. Todavia o caráter referente ao “acontecimento cênico” está mais ligado, a meu ver, com os aspectos presenciais do que os representacionais, ou seja, de tornar a criação como base para o acontecimento vivo da ação e palavra no palco, ao invés de simplesmente repeti-la, como planejado. O conceito de performance apresentado por Pavis tem uma ligação direta com a ideia de presentação, como ele mesmo diz: “uma ação realizada no próprio ato de sua apresentação”, ou seja, ela envolve o presente da ação juntamente com a receptividade do espectador. Sendo assim, toda presentação apresenta características intrínsecas a performance, como o próprio verbo diz, to perform, a forma se modela em si mesma; se auto-expressa. Pavis continua a dissertar o assunto no que diz respeito ao tema “presente da representação”:

O teatro não representa algo preexistente, que teria existência autônoma (o texto) e que se apresentaria “uma segunda vez” nos palcos. É preciso tomar a cena como acontecimento único, construção que remete a si mesma (este é o signo poético) e que não imita um mundo de idéias. “O drama é primário. Não é a reprodução (secundária) de algo (primário), apresenta a si mesmo, é ele mesmo” (SZONDI, 1956:16; 1983:15). A representação só existe no presente comum ao ator, ao espaço cênico e ao espectador.

Por mais que a cena, e tomo como ponto de partida a naturalista/realista, seja um acontecimento “único”, na maioria das vezes ele está ligada a uma ideia de repetição desse acontecimento, seja por meio das marcações de cena, das partituras corporais dos atores e do desenvolvimento de um texto dramático fechado (ao contrário do processo criativo performático do work in progress). Sob o aspecto apresentado por Peter Szondi, é possível pensar, em contrapartida, em Re-presentação, ou seja, a repetição de uma presentação e não mais como simples presentação (ação única que se desenvolve no tempo-espaço). A representação está relacionada com o conceito de reprodução, que segundo o Dicionário de Teatro do Pavis4, “é uma imitação/transformação do mundo pelo teatro”. A distinção entre esses dois conceitos se faz necessária, pois o objeto de estudo desse artigo, a peça Ensaio.Hamlet5 da Cia. Dos Atores, transita sob esses dois universos oscilantes. A peça é uma releitura da obra clássica de Shakespeare, Hamlet, trazida para dentro de uma sala de ensaio, o que explica a escolha do título. Os atores atuam como se realmente estivesse ensaiando Hamlet, com a convivência do público e o olhar direto do espectador. A peça faz o que Patrice Pavis chama de “Retreatralização

4 Idem, p.340.

5 Elenco: Emílio de Mello, Enrique Diaz, Felipe Rocha, Bel Garcia, Malu Galli, Marcelo Olinto e César

Augusto. Direção: Enrique Diaz.

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do teatro” 6, em que a cena não “esconde seu jogo e supervaloriza as regras e as convenções do jogo, apresenta o espetáculo apenas em sua realidade de ficção lúdica. A interpretação do ator indica a diferença entre a personagem e o ator”. Um exemplo disso é o fato dos atores lembrarem uns aos outros de que eles estão “representando” personagens, como pode ser visto na cena em que Polônio morre e minutos depois ele se levanta como se nada tivesse acontecido. Hamlet se dirige a ele no mesmo instante dizendo “deita aí porque você está morto”. Nesse momento é colocado diretamente em conflito a ideia do jogo entre presentação e representação. O elenco narra enquanto atores e interpretam enquanto personagens. Outro aspecto importante a ser lembrado é o fato de os atores transitarem entre ficção e realidade, entre o texto de Shakespeare e suas biografias, como a parte da peça em que a personagem Ofélia lê cartas reais escritas pela atriz. A metodologia inicial no processo de montagem aplicada pelo diretor da peça Enrique Diaz, traz algumas dos preceitos stanislavskianos, como análise minuciosa do texto, estudos dos objetivos e intenções para chegar numa releitura contemporânea da obra, discussão sobre a obra dramática, vivencia do texto, criação de personagem, construção de ações físicas, dentre outros. Segundo a dissertação de Mestrado de Roberto Moretto7:

Trabalho de mesa com o texto. Estudava-se cada ato, cada cena, e discutia-se o que todos haviam entendido. Depois partíamos para um trabalho de entendimento com vivencia: meu ponto de vista do texto, o próprio texto ou os dois. Tanto escolhia-se personagens, quanto Enrique delegava. E então ensaios.

A Memória Emotiva8, que em sua essência diz que a experiência psicológica interior vem antes da forma e ação exterior, foi utilizada pelo grupo, mas de uma maneira não psicológica, ou seja, a memória emotiva das experiências corporais, das vivencias físicas, das experimentações na carne, etc. Para melhor compreensão sobre o tema acima abordado, indico a leitura do artigo de Jorge Larrosa Bondía 9 “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, em que o autor descreve de maneira demasiado poética as vivencias em torno dos processos experimentativos. No livro O Ator e o Método10, o diretor e ator russo-brasileiro Eugênio Kusnet, apresenta a Análise Ativa como uma maneira dos atores analisarem o material proposto pelo texto dramatúrgico na ação cênica, nos ensaios, procurando compreender a obra dramática através da ação praticada ou improvisada pelos intérpretes a partir de conhecimentos superficiais da peça, e não na base de grandes estudos cerebrais de entendimento do texto. Acredito que Enrique Diaz conduziu os processos criativos e experimentais do grupo por esse viés, fazendo rápidos estudos de mesa, discutindo posteriormente as leituras subjetivas do texto e já partindo para exercícios práticos de ações físicas. O fio condutor desse espetáculo não é a construção psicológica dos personagens, mas o que a 6 Idem, p.341.

7 MORETTO, Roberto Carlos. Ensaio. Hamlet: ruptura da linearidade dramática e corpos em rede na cena

de Enrique Diaz. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2009, p.14. A dissertação completa pode ser visualizada em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27155/tde-07102009-134423/pt-br.php 8 STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, capítulo

Memória das Emoções. 9BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência.

http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf 10 KUSNET, Eugênio. O Atore e o Método. Coleção Ensaios - Ed. minc - INACEN - RJ. 1987, p.98.

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leitura contemporânea do grupo sobre a obra clássica de Shakespeare faz reverberar e questionar nos tempos atuais na receptividade do espectador. Como o próprio Stanislavski disse em sua obra Preparação do Ator 11, a “imaginação cria coisas possíveis de existir e acontecer, e já a fantasia cria coisas impossíveis de ocorrer”. Processos criativos em torno da imaginação, e não da fantasia, foram muito utilizados na montagem. Enrique Diaz pedia aos atores que fizessem acontecer 'alguma coisa de real', frente ao ficcional que já estava apresentado, ou seja, era colocado em questão o aspecto presentacional dos atores, o se fazer presente em cena para algo inusitado e verdadeiro acontecer. “O espetáculo instaura sucessivos cortes no texto, os quais são preenchidos com processos de ensaio e de construção da obra e com relatos dos atores sobre a elaboração das personagens e de seu processo de representação” 12. A diferença entre o Método subjetivo de construção do personagem segundo Stanislavski, e a metodologia utilizada por Enrique Diaz, está no caráter da construção coletiva dos personagens realizada pelo grupo:

O ator Marcelo Olinto narra como foram essas reuniões, que segundo ele, começaram da seguinte maneira: A escolha por trabalhar em workshops define uma estratégia de pesquisa segundo a qual alguém compartilha técnicas práticas que resultam em experimentações coletivas13.

Em todo momento as leituras e experimentações individuais são compartilhadas

e vivenciadas pelo grupo, já que não há definição única de personagem para cada ator. A oscilação entre as histórias reais e ficcionais dos atores e os momentos de representação e presentação são algumas das características mais marcantes desse espetáculo. A peça traz discussões críticas acerca da vida contemporânea nas grandes cidades, como uma das cenas de Polônio: “Polônio assiste a uma cena escondido, mas assiste com uma câmera nas mãos, alusão a todo o sistema de câmeras infiltradas, as câmeras dos realities shows que assistem a vida das pessoas, um voyeur das emoções alheias” 14. O espetáculo busca trazer questões atuais acerca dos temas apresentados pelo texto original de Shakespeare, como ao invés de Polônio se sentir vigiado pelas pessoas da corte, ele se sente monitorado pelo uso excessivo da tecnologia moderna. Outro aspecto crítico que diz respeito à encenação, é o fato de Hamlet deixar de ser a personagem do texto de Shakespeare e se tornar a personagem do grupo, ela é vivida pelo coletivo, explicitando em seus discursos questões existenciais do homem, relatando as problemáticas pessoais e artísticas do grupo. A duplicação de personagens (Ofélia, fantasma, Hamlet...) em cena nos remete a ideia de questionamento de identidade, como se todos, em algum momento da vida, pudessem ser um Hamlet, uma Ofélia, etc. Podemos associar o fato de o grupo assumir em diferentes momentos o mesmo personagem, inclusive homens assumirem papéis femininos e vice-versa (como na cena em que Laertes se despe de suas roupas, veste um vestido, e ao final desta ação se transmuta em Ofélia), com o conceito de repetição e simulacro apresentado por Deleuze15: “O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potencia positiva 11

Idem, p.73. 12

MORETTO, Roberto Carlos. Ensaio. Hamlet: ruptura da linearidade dramática e corpos em rede na

cena de Enrique Diaz. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2009, p.2. 13

Ibidem, p.14. 14

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=espetaculos_biografia&cd_verbete=5889 15

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.167

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que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução”. De acordo com a definição de Deleuze, leva-se em consideração que não existe O Hamlet original, mas Hamlets que se tornam potencias positivas a partir desse personagem. O espetáculo busca trabalhar, dentro de uma linguagem teatral performativa, com a sensibilidade do público, com seus aspectos presenciais, com suas sensações visuais, auditivas, olfativas, etc. Em um momento da peça, Ofélia morta entra como bife cru que, passado a ferro, faz subir o cheiro de carne queimada; Ofélia é agora um pedaço de carne, briga-se por um pedaço de carne, literalmente. Enterra-se Ofélia em um balde, em um buraco e esta é coberta pela terra que se despeja de um saco. Essas são algumas das cenas mais fortes de Ofélia, e que desmistifica o universo feminino da personagem shakespeareana.

Em síntese, o presente artigo buscou refletir sobre os conceitos de representação e presentação dentro da prática do teatro contemporâneo, tendo como ponto de partida as ideias apresentadas pelo encenador russo Constantin Stanislavski e seus desdobramentos na cena teatral atual, apresentando como objeto de investigação o espetáculo Ensaio.Hamlet da Cia. Dos Atores.

Bibliografia: ASLAN, Odette. O ator no século XX. São Paulo: Perspectiva, 2003. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998 KUSNET, Eugênio. O Ator e o Método. Coleção Ensaios - Ed. minc - INACEN - RJ. 1987, p.98. MORETTO, Roberto Carlos. Ensaio. Hamlet: ruptura da linearidade dramática e corpos em rede na cena de Enrique Diaz. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2009 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008. STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, capítulo Memória das Emoções.

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STANISLAVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E PROCESSOS DE

MONTAGEM DE ESPETÁCULOS

UM MÉTODO STANISLAVSKIANO PARA ANTI-NELSON RODRIGUES

Joadson do Prado Brito Silva; Orientadora: Profª. Ms. Maria de Souza; Universidade

Estadual do Sudoeste da Bahia/Campus Jequié.

Abro as veias, irreprimível

Irrecuperável a vida vaza.

Ponham embaixo vasos e vasilhas!

Todas as vasilhas serão rasas,

Parcos os vasos.

Pelas bordas – à margem

Para os veios negros da terra vazia.

Nutriz da vida, irrecuperável

Irreprimível, vaza a poesia.

(Marina Tzvietáieva)

Buscando relatar o processo de criação do espetáculo Anti-Nelson Rodrigues,

tanto seu processo teórico quanto prática a partir do método de Constatin Stanislavski,

peço licença aos colegas que dividiram comigo o palco, sentimentos, experiências e

descobertas dentro deste processo.

A montagem de Anti-Nelson Rodrigues nasceu na disciplina de Improvisação e

Jogos Dramáticos I no curso de Licenciatura em Teatro, orientada pela Prof.ª Ms. Maria

de Souza na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/Campus Jequié-BA. O

espetáculo fez parte da V Mostra Cênica-Didática dos Cursos de Licenciatura em Teatro

e Licenciatura em Dança da UESB, pelo Programa de Extensão Engenho de

Composição¹. No elenco do espetáculo estavam reunidos: Adeilma Menezes, Ana

Barroso, Caio Braga, Eliana Santos, Gece Melo, Gil Rufino, Joadson Prado, Nágela

Almeida, Polly Kirlya e Vicente de Paulo, dirigidos pela Profª. Ms. Maria de Souza.

O processo de montagem foi divido em duas etapas: a primeira foi o estudo

teórico do método de Constatin Stanislavski, realismo e melodrama em Nelson

Rodrigues; e a segunda foi à parte prática, partindo para a sala de ensaio² na construção

das personagens e respectivamente a montagem da obra.

Dividirei este artigo em duas etapas, a primeira é a relação dos estudos teóricos

para nossa prática que foram os livros A Preparação do Ator e A Construção da

Personagem, de Constantin Stanislavski; e Gesto Psicológico de Michail Checkhov. A

segunda etapa é o relato da parte prática do processo de criação até o espetáculo.

Anti-Nelson Rodrigues é uma peça que foi escrita em 1973 por Nelson

Rodrigues a pedido da atriz Neila Tavares, como ele já estava cansado de fazer teatro

político, fez uma peça que diferente de suas outras obras, acaba com um final feliz e fala

sobre o amor de Joice, uma suburbana pura e testemunha de Jeóva, que se apaixona por

Oswaldinho, um jovem carioca rico e mulherengo que há 10 anos escreve uma carta

para o pai dizendo que ele é chifrudo. Mesmo sendo uma peça simples e sem muita

polêmica, ela não tem nada de Anti e traz em seu enredo muitas discussões próprias do

estilo do autor.

Em suas peças, Nelson Rodrigues sempre demonstrou um interesse por dar vida

a personagens polêmicas e próximas da realidade humana, personagens tipos.

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Ao sabermos que trabalharíamos com Nelson Rodrigues por conta do seu

centenário, imaginamos que fossemos representar uma obra bem ousada do autor, e não

pensávamos em Anti-Nelson Rodrigues, até porque não a conhecíamos.

Quando fomos apresentados à obra, percebemos que a história era bem simples e

estávamos interessados em textos mais ousados em relação a sua dramaturgia. Aos

poucos entendendo a obra e começando a enxergar a riqueza de personagens que

estavam esperando por nós.

No início do processo entendemos o que era uma montagem realista e que

chegaríamos próximos desta montagem, mas não a consideraríamos como realista,

porque estaríamos também investigando o melodrama, pelo fato dos personagens

rodrigueanos trazerem traços melodramáticos. Essa observação foi feita a partir da

leitura do texto de Luiz Arthur Nunes, onde ele fala da importância de temas que

chegassem num nível de exagero para Nelson Rodrigues, esse exagero só poderia

chegar através de personagens populares por conta de sua experiência como jornalista,

onde os temas tratados eram sempre referentes à crueldade da vida real, “comungando

dos mesmos valores culturais do povo brasileiro, capturando- lhe a carne e o espírito”.

O melodrama em Nelson Rodrigues se confundi com o realismo por conta dos

personagens que se apresentam próximos da realidade e de temas que são discutidos

pela sociedade. Fugindo das idealizações realistas, os personagens rodrigueanos são

pautados no exagero dos movimentos e nas súbitas mudanças de emoção. Portanto,

existi uma dualidade na obra rodrigueana, fazendo com que ela chegue nesta

aproximação realista.

Depois de entendermos o que seria nossa montagem, chegamos a Stanislavski a

partir do capitulo Comunhão no livro A Preparação do Ator, em um diálogo que trouxe

referências significantes para o nosso trabalho e a relação com o outro em cena. A partir

desse estudo percebemos a importância da comunicação com o colega, mas muitas

vezes deixamos que essa comunicação passe despercebida, porque a comunicação que

percebemos não é a mesma que Stanislavski cita em seu livro. Depois desta leitura e

analise sobre o que estava sendo estudado, com certeza cada discente/ator, dentro de si

fez a seguinte pergunta: “Será que quando entro cena, estou em comunhão com meu

colega?”.

Problematizando essa discussão na sala de ensaio, nos perguntamos o que seria

essa comunicação, e percebemos que a entendíamos de forma diferente, caiamos no

senso comum, e deixávamos a encenação mecânica, sem emoção.

Há truques mecânicos, que os atores usam para encobrir sua lacuna

interior, mas só servem para acentuar o modo vago como fitam. Não

preciso dizer-lhes que isto é, ao mesmo tempo, inútil e prejudicial. Os

olhos são os espelhos da alma, o olhar vago é o espelho da alma vazia.

É importante que os olhos do ator, o olhar, reflitam o profundo

conteúdo intimo da sua alma. E o tempo todo que estiver no palco

deve compartilhar esses recursos espirituais com os outros interpretes.

(STANISLAVSKI, 1964, pág. 239)

Entendemos através da teoria e da pratica, a importância de ficarmos sempre

alerta para que essa relação com o outro e com o público não se torne uma relação

vazia. No cuidado de estar em comunhão com o outro, buscando uma percepção maior,

um olhar para o outro, primeiramente é preciso à busca pelo contato interior com a cena

e com o que está ao seu redor, observando os fatos e as ações.

Analisamos Comunhão, fazendo relação com a nossa prática artística,

entendendo esse entrosamento com o outro e nos perguntando se realmente

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compartilhamos este momento de cena. Ao nos questionarmos, a resposta era clara, sem

duvida alguma esse contato em algumas situações passava despercebido por nós,

permitíamos que o contato não existisse.

Entendemos que para entrar em contato precisaríamos de um nível de

concentração que nos fizesse adentrar naquela realidade que estávamos propondo.

Buscando essa relação de troca com o outro, antes do trabalho com o texto, passamos a

exercitar nossa concentração e foco para o que iriamos fazer, entrando num nível de

observação para conhecermos o outro.

Entrar em contato e se desprender do texto (elemento que nos geralmente mais

nos preocupamos em cena), fez com que entrássemos em sintonia um com o outro e,

pela primeira vez, sentimos o calor, a energia que pairava sobre a sala de ensaio.

Percebemos que não era só olhar e tocar, era algo além das técnicas, era um contato

íntimo, físico e espiritual, numa troca de sentir.

Podem imaginar um colar valioso no qual, de três e três elos de ouro,

surge um elo de latão e depois dois de ouro amarrados com um

barbante? De que serviria um colar desses? E quem pode querer, no

palco, uma linha de comunicação constantemente interrompida que,

quando não deforma, destrói a representação? E, no entanto, se na

vida real a comunicação entre as pessoas é importante, no palco é dez

vezes mais importante.

(STANISLAVSKI, 1964, pág. 237)

Depois deste período de exercícios, buscando este contato intimo entre o grupo,

o processo foi tomando forma e aos poucos os caminhos que devíamos percorrer foram

sendo desvendados. Começamos naquele momento a adentrar no universo de Nelson

Rodrigues a partir de suas personagens.

Após os estudos sobre o método de Stanislavski e o universo rodrigueano,

iniciamos um estudo de personagem unindo o Gesto Psicológico (GP)³, método criado

por Michail Chekhov para construção da personagem partindo da ação física, buscando

instigar, induzir os sentimentos da personagem.

Nas qualidades e nas sensações encontramos a chave para o tesouro de

nossos sentimentos. Mas existirá tal chave para nossa força de

vontade? Sim, e encontramo-la no movimento (ação, gesto). Você

pode facilmente provar isso a si mesmo tentando fazer um gesto forte,

bem delineado, mas simples. Repita-o várias vezes e você verá que,

após um certo tempo, a força de vontade tornar-se-á cada vez mais

forte sob a influencia desse gesto. Além disso, descobrirá que espécie

de movimento que fizer dará a sua força de vontade uma certa direção

ou inclinação; ou seja, despertará e animara em você uma necessidade

e um desejo definidos. [...] Chamemos-lhes Gestos Psicológicos

(doravante citados como GP’s), porque seu objetivo é influenciar,

instigar, moldar e sintonizar toda a sua vida interior com seus fins e

propósitos artísticos.

(CHEKHOV, 2010, p. 75-84)

O contato com o gesto psicológico se deu em três etapas: a construção do

boneco, a transferência do gesto do boneco para o nosso corpo e, o trabalho de

observação do GP do colega de cena.

Para começar a construção do nosso GP, montamos um boneco de papel que

havíamos recebido da orientadora. Cada boneco foi montado partindo de uma ação que

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definimos com o gesto psicológico do personagem que estávamos criando. Depois de

montados, formamos uma roda de análise dos GP’s onde cada ator apresentou o que

tinha criado e fez a análise de seu personagem buscando identificar seus anseios e o

caráter através da ação que ele propunha, percebendo a direção de seus membros e

identificando o que expressava. Após essa identificação, aplicamos o GP ao nosso

corpo.

De inicio foi um trabalho árduo, por que estávamos andando por caminhos

desconhecidos e não tínhamos ainda muito contato com o texto que íamos montar.

Depois de experimentarmos o GP no nosso corpo, passamos para a próxima etapa do

gesto psicológico, ficando semanas repetindo a mesma ação, trabalhando com a

respiração e aos poucos introduzindo elementos que davam suporte para a nossa prática,

como objetos e figurinos.

Assumindo este corpo desconhecido que estávamos exercitando, deixamos a

pesquisa individual e iniciamos uma pesquisa em dupla. A primeira atividade das duplas

foi observar o GP do outro e estudar a sua movimentação, depois passávamos para a

segunda tarefa que era induzir a movimentação do GP através de um som que

emitíamos, já na terceira tarefa as duplas apresentavam seus GP’s ao mesmo tempo. Em

dupla, podemos aprimorar os nossos GP’s, e aos poucos íamos transformando nossa

prática em pequenas cenas corporais. Finalizando o trabalho de criação dos GP’s, demos

inicio ao estudo da obra de Nelson Rodrigues e, ao invés de utilizar o GP para criar um

personagem, começamos a utiliza-lo para estudar os personagens que íamos interpretar

no palco.

Iniciamos este processo fazendo uma análise das personas que faziam parte do

universo da peça: Gastão, Tereza, Oswaldinho, Leleco, Salim Simão, Joice e Elenice.

Neste caso ainda não sabíamos quem interpretaríamos de fato, por que os personagens

não haviam sido divididos, então, começamos a estudar todos os personagens a partir da

leitura da peça.

Seguindo para mesa de leitura, passarmos um período de três semanas

analisando a obra, após esse estudo, houve a divisão de cenas e personagens. Como já

tínhamos criado um GP, voltamos a este trabalho, mas com nos personagem que cada

um interpretaria. Ao longo da construção das cenas, íamos colocando traços de nossos

GP’s nos personagens de Anti-Nelson Rodrigues.

Assumir um GP significa, portanto, preparar o papel inteiro em sua

essência, após o que se tornara uma fácil tarefa elaborar todos os

detalhes nos ensaios realizados no palco. Não terá de vacilar e tatear o

caminho, como frequentemente acontece quando o ator começa

vestindo um papel com carne, sangue e nervos, sem ter descoberto

primeiro sua coluna vertebral. O GP fornece-lhe justamente essa

coluna vertebral. É o modo mais curto, mais fácil e mais artístico de

transformar uma criação literária numa obra de arte cênica.

(CHEKHOV, 2010, p. 87)

Baseando-se em outro estudo teórico, fizemos a leitura de Vestir a personagem,

capitulo II do livro A construção da personagem de Constantin Stanislavski. Depois

deste estudo, levamos para a sala de ensaio elementos que poderiam auxiliar nas nossas

criações. Sabendo da importância que o figurino tem para a cena e para o

desenvolvimento do personagem, utilizamos dele para nossa criação, buscando trazer o

personagem através do figurino e do que ele sugeria para nós.

Com os figurinos escolhidos, experimentamos vestir a personagem analisando

cada movimentação, limitação e imagens que traziam para o nosso corpo. Alguns

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figurinos traziam limitações, mas para nossa construção elas foram bem vindas por que

pudemos utilizar das limitações como meio de criação para o corpo das personagens.

Outra parte importante do processo foi o seminário de criação que os cursos de

Dança e Teatro realizam um mês antes da estreia para mostrarem para a comunidade

acadêmica, em um seminário acadêmico-performático, o que estamos montando.

O seminário teve inicio no pátio administrativo da Universidade, onde iniciamos

um ritual, despindo nossas vestes para vestirmos o figurino dos personagens do

processo, que também se transformou no figurino do espetáculo. Essa troca de pele foi

acompanhada pela música de Edgardo Donato, “A Media Luz”, um tango que também

levamos para o palco. Seguindo para o Laboratório de Artes³, vestidos com os

personagens, iniciamos o seminário teórico falando sobre os estudos feitos a partir de

Stanislavski e do Gesto Psicológico (mostrando uma prática com o GP). Apresentamos

também um pouco da história de Nelson Rodrigues e da peça que estávamos montando

falando sobre o melodrama e o realismo presente em suas obras. Depois de

compartilharmos um pouco do processo com o público, voltamos para a sala de ensaio.

Já estávamos na metade do processo, percebíamos em nosso corpo o trabalho que

estávamos exercitando, e o quanto aquele processo estava sendo importante para nossa

formação de artista/pesquisar/educador.

Finalizando esta parte das técnicas que utilizamos, em resumo, cito no artigo um

pouco sobre o nosso desenvolvimento em relação a outros elementos da cena, o cenário

de Anti-Nelson Rodrigues. Antes de falar desses elementos, exponho aqui que a

produção deste e de outros espetáculos do nosso curso de Teatro é custeada por nós,

alunos e professores do curso. A verba que o programa de extensão recebe é para

manutenção do evento (as Mostras Cênico-Didáticas) para podermos estar apresentando

no teatro, visto que na Universidade ainda não temos o espaço para mostrarmos nossas

produções artísticas para a comunidade.

Voltando a falar sobre os elementos de cena, especificamente o cenário,

iniciamos um estudo, tentando resolver o que mais tarde se tornaria para nós um

elemento que representaria nosso espetáculo inteiro.

Dividimos o palco em cinco espaços. No centro do palco colocamos a sala de

Salim Simão e Joice; ao lado esquerdo, o quarto de Gastão e Tereza; ao lado direito, o

quarto de Oswaldinho; na parte esquerda da boca de cena, ficou o escritório de

Oswaldinho, onde acontecia a metade da peça; e no lado direito da boca de cena, a praça

onde em um momento da peça o casal Oswaldinho e Joice se encontraria. Para

identificarmos os espaços dos quartos e sala, fizemos três paredes que ficaram

disponibilizadas no fundo do palco, conseguimos também móveis e objetos de época

para completar o cenário.

Chegada à semana da estreia do espetáculo, estávamos à flor dar pele, como em

toda estreia, mas cientes do que havíamos montado. Foi o processo mais instigante e

ardente para nós, atores, que pela primeira vez montávamos um texto completo e de

Nelson Rodrigues.

Estreamos no dia 02 de Setembro de 2012 em duas sessões, no Centro de

Cultura Antônio Carlos Magalhães na cidade de Jequié-BA, com segunda apresentação

no dia 03 de Setembro. Após a apresentação, nos encontrávamos em êxtase com o que

tínhamos feito e, com a receptividade do público. Como em todo processo, passamos

por momentos difíceis, relações que se estremeceram, perdas afetivas, mas o calor do

público e a comunhão que alcançamos, foram como um presente para todos nós.

Ao final do espetáculo, aconteceu um bate papo com a plateia, percebemos o

quanto eles fruíram do que tinha ocorrido palco. Ao final, sinalizaram que viveu cada

cena como se estivessem acompanhando uma cena de novela. Fizeram esta referência

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por conta dos personagens, da cenografia, da forma com que foram apresentados a eles,

e da luz, que pintou o espetáculo.

Após a estreia, passamos um ano tentando inscrever nosso espetáculo em alguns

editais de fomento à cultura, aqui no estado da Bahia. Mas, em 2013 conseguimos

aprovação no edital do 3º MUST (Mostra Universitária Salvador de Teatro) na Escola

de Teatro da Universidade Federal da Bahia, apresentando o espetáculo no dia 21 de

Abril deste ano, na sala 05 da escola de Teatro da UFBA.

Finalizando este artigo, só tenho a agradecer aos colegas que compartilharam

todo esse trabalho, a nossa orientadora Maria de Souza, que tanto nos aconselhou e

instigou para que nossa montagem tivesse a essência e o nível de concentração que

conseguimos obter ao longo do processo.

Chegando ao fim, que pra nós foi só o inicio do percurso que ainda temos pela

frente, fica a catarse, o dever cumprido e, a certeza de que a busca continua.

Notas:

________________________

¹ O programa de extensão Engenho de Composição é um programa que promove as Mostras Cênica-

Didáticas dos cursos de Licenciatura em Teatro e Licenciatura em Dança da Universidade Estadual do

Sudoeste da Bahia. Ele é coordenado pela Prof.ª Ms. Adriana Amorim. Neste ano de 2013, o Engenho de

Composição está em sua VIII edição. ² Nossas aulas práticas aconteciam na sala de dança do Centro de Cultura Antônio Carlos Magalhães, ao

lado da Universidade.

³ Ao longo do artigo, ao citar GP, estarei falando de gesto psicológico. ³ O Laboratório de Artes é um espaço cedido pela Universidade para nossas aulas práticas. Ele não é uma

caixa preta, ainda está em processo de reforma.

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Referências Bibliográficas

STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. 19° ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2010.

_________________________. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2005.

CHECKHOV. Michail. Para o ator. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

RODRIGUES. Nelson. Teatro Completo de Nelson Rodrigues: peças psicológicas.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. v. 1.

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STANISLÁVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E PROCESSO DE

MONTAGEM DE ESPETÁCULOS

CRUZAMENTOS STANISLAVSKIANOS NO “PROJETÃO” EM MONTAGEM DE

BRECHT

José Manoel de Souza Junior; Orientador: Marcos Chaves; Universidade Federal da Grande

Dourados.

Pontuações iniciais

Ao estudarmos teatro sabemos que muitas teorias nasceram desde o seu surgimento,

e no decorrer desses períodos históricos muitos encenadores foram se destacando por suas

teorias ou trabalhos teatrais, refletindo e modificando significados. Citarei dois, do século

XX, que observo relevantes para estudantes de artes cênicas: Constantin Stanislavski e

Bertold Brecht.

Constantin Stanislavski nasceu na Rússia, em 1863, e sempre teve contato com

teatro através de sua família, que por puro intelecto ensaiava e apresentava peças teatrais

dentro de casa no circulo Alexeiev. Juntamente com um amigo, Vladimir Dantchênco,

fundou o TAM (Teatro de arte de Moscou) com finalidade de inovar a forma de interpretar

dos atores, baseando-se em teorias sobre preparação vocal, corporal e técnicas de

interpretação. Através dessas teorias formulou o que conhecemos hoje como “sistema

Stanislavski”.

Bertold Brecht nasceu em Augsburg, na Baviera, em 10 de fevereiro de 1898 e

morreu em 14 de agosto de 1956, em Berlim Oriental. Poeta, escritor, dramaturgo, diretor,

ator, músico, teórico, autor de inúmeros escritos sobre teatro, foi o responsável pelas mais

profundas transformações nas artes cênicas do século XX. É o responsável pelo chamado

teatro épico que tem como objetivo principal despertar o senso crítico do espectador, e para

isso usa como artifício o distanciamento – que faz com que os atores, ao invés de se

identificar com a personagem, mostrem a ação através de “gestus sociais”, possibilitando

assim a consciência critica individual do público tirando-o de sua passividade como

espectador. “Brecht foi poeta e dramaturgo, mas antes de ser diretor de teatro, pensador de

teatro, foi estudante de medicina e ajudou a atender soldados feridos da Primeira Guerra

Mundial. Ele viveu um quadro social peculiar da história do mundo e daí tal força de sua

obra. Força no sentido de vitalidade, intensidade e humanidade (NETO, 2007, p.48)

O diretor Paulo José, em uma publicação da editora autêntica sobre a montagem da

peça Um homem é um homem do grupo Galpão, afirma que no teatro de Brecht a música é

tão importante quanto à palavra e o gesto. Há sempre canções comentando ou ampliando

significações das cenas. Ele próprio era um músico razoável, tocava clarineta, e compôs

vários temas para suas primeiras peças.

Rosenfeld em suas teorias diz que “geralmente a música assume nas obras de Brecht

a função de comentar o texto, de tomar posição em face dele e acrescentar-lhe novos

horizontes” (ROSENFELD, 2009, p. 160)

Brecht escreveu várias peças, mas aqui nos ateremos à obra intitulada A Alma Boa

de Setsuan. Em A Alma Boa de Setsuan três deuses chegam à província de Setsuan, com

uma única missão que é encontrar pessoas boas, pois dizem que "há dois mil anos se escuta

o mesmo clamor: o mundo não pode continuar como está, ninguém consegue permanecer

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bom, se for constatado que ainda há um número satisfatório de pessoas que levam uma

existência condigna, poderá então o mundo continuar como está” (BRECHT, 1992, p. 62).

Wang, o vendedor de água, recebe-os e tem a incumbência de encontrar uma hospedagem

para os deuses. Após várias tentativas sem sucesso e quase sem esperanças, resolve pedir

ajuda à prostituta Chen-te (personagem central da obra). Essa decide dispensar um cliente,

que pagaria uma quantia referente ao de seu aluguel, que esta atrasado, e então aceita

hospedar os deuses. No dia seguinte os deuses, ao saírem satisfeitos por terem encontrado

uma alma boa, resolvem agradece-la doando a ela "mais de mil dólares de prata", com os

quais a protagonista, dias após, adquire uma pequena tabacaria. Por ser uma pessoa muito

boa, Chen-te passa a ser explorada pelos moradores da cidade e em um momento de crise e

dificuldades surge então o primo Chui-ta que nada mais é que o lado mal e duro de Chen-

te. O desalmado “primo” faz com que os negócios se elevem transformando a pequena

tabacaria em uma grande fabrica de fumos. Porém a personagem criada pela protagonista é

tão dura, que chega a ponto de prejudicar alguns amigos da mesma. A bondade da prima é

tomada pela maldade do primo e isso faz com que os moradores de Setsuan comecem a

sentir falta de Chen-te que saiu para uma viagem e desconfiam de um possível assassinato

por parte do primo. E é ai então que ela resolve se desmascarar e num tipo de julgamento

final revela que Chen-te e Chui-ta são a mesma pessoa.

Para falar sobre minha personagem, Wang, falarei um pouco sobre minhas

experiências teatrais até hoje. Meu primeiro contato com teatro se deu depois de

adolescente com a peça teatral A Paixão de Cristo e depois disso duas montagens: Dois

Corações e quatro segredos de Liliana Iacocca, onde interpretava o papel de Mário de

Andrade e depois em O Rico avarento de Ariano Suassuna, onde interpretava o mendigo e

Canito Chefe. Todas essas experiências são totalmente diferentes da que passei em A Alma

Boa de Setsuan, pois antes de estudar teatro na universidade não pensava muito em como

fazer o público enxergar minhas emoções ou mesmo a da personagem, e sim em como fazer

exatamente os trejeitos e características exteriores na finalidade de divertir a plateia o

máximo que pudesse.

Por isso que me dedico aqui a pesquisar a personagem Wang, já que é a primeira

que tento realizar baseado em alguns conceitos tanto brechtianos como stanislavskianos.

A Construção da Personagem Wang

Ao iniciarmos o quarto semestre de artes cênicas na Universidade Federal da

Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul, os acadêmicos precisam decidir se serão

bacharéis ou licenciados em artes cênicas, iniciamos então uma disciplina chamada

Encenação II que tem como objetivo geral montar uma peça de um autor de livre escolha

que ajuda nessa decisão. A este evento intitulamos “Projetão” pelo fato de que, geralmente,

existem muitos alunos em uma só sala, nesta etapa do curso, e visa proporcionar aos

acadêmicos a experiência de uma montagem teatral grande, já que muitos entram no curso

de artes cênicas sem ter participado de alguma peça teatral. Outra obra que já foi montada

pelo projetão foi Sonho de uma noite de verão de William Shakespeare, no ano anterior. A

terceira turma, ao se reunir, decidiu que Bertold Brecht seria o dramaturgo do projeto no

ano de 2013. Dentre várias peças analisadas, a escolhida pela turma foi a obra A Alma Boa

de Setsuan. O professor-diretor Gil de Medeiros Esper decidiu que alguns personagens

seriam dobrados, e depois de muito analisar as personagens minha escolha foi em Wang o

vendedor de água.

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Ao iniciar a leitura da obra percebi um forte traço da teoria de Brecht, pois Wang é

um dos grandes narradores da peça. Comecei então a imaginar como seria a vida dessa

personagem e logo então pensei como seria um vendedor de água na vida real indo então à

pesquisa para composição da personagem.

Alguns dias de pesquisa na internet e nada encontrava. As dúvidas começaram a

surgir na cabeça: Como seria o andar da personagem, como ele se vestiria, como seria sua

fala e seus trejeitos. Stanislavski em seu livro sobre A preparação do ator traz que “o ator

tem obrigação de viver interiormente o papel e depois dar à sua experiência uma

encarnação exterior” (STANISLAVSKI, 2012, p. 44). Baseado nesse conceito tentei então,

antes de mostrar os trejeitos e as manias exteriores, interiorizar Wang. Surge então a

primeira característica, vivenciada por mim, de um cruzamento stanislavskiano na

montagem de Brecht, pois procurei descobrir e viver interiormente uma personagem que

tem como forte característica a narração.

Após ler o texto várias vezes, e dialogar com a turma, pude perceber que Wang era

um homem simples e batalhador que sofria muito para conseguir algo na vida. Por ser

vendedor de água às vezes ficava sem vender nada, pois quando chovia ninguém se

interessava em comprar água. Com isso trapaceava mudando as medidas dos copos na hora

de vender seu produto. Mas mesmo sendo um trapaceiro foi considerado (pelas

personagens divindades) um bom homem. É ele que recebe os deuses em sua chegada e

encontra a alma boa de Setsuan. Wang demonstra, em sua relação com os enviados à terra,

ser uma pessoa bastante insegura, porém não hesita em bajular os santíssimos, que é como

ele os chama, para conseguir algo de bom para sua vida, mas a insegurança é mais forte; e

quando ele pensa que foi abandonado por Chen-te, foge com medo do julgamento dos três

deuses. No decorrer da peça, ainda acontecem outros encontros com os deuses onde

ocorrem variações de emoções vividas pela personagem como o medo, o desespero e a

alegria.

Um importante fator em nossa montagem foi a parte musical, e isso também me

influenciou consideravelmente na construção de Wang, que tem forte participação nas

canções realizadas ao vivo na peça, onde trago minha experiência musical (já que sou

musico amador desde os 14 anos de idade).

Musicalmente falando, vários exercícios foram desenvolvidos para que a turma

conseguisse alcançar a afinação, e o conjunto de vozes desejado, os atores foram

auxiliados, nesta etapa, pelo professor Marcos Chaves, explicando que a respiração é

essencial para que se alcance um melhor resultado – tanto no canto como na dicção – e que

ajuda muito na atuação dos intérpretes em seus trabalhos. Stanislavski afirma que “o

trabalho de colocação da voz consiste primordialmente no desenvolvimento da respiração e

na vibração das notas sustentadas” (STANISLAVSKI, 2012, p. 139).

Foi então que me aproximei a essas características, e fui a busca da construção do

perfil de Wang. Procurei em minhas lembranças momentos de alegria, desespero, medo, e

também busquei em minha vivência musical toda a energia que pude (colocando na prática)

para conseguir expressar uma verdade possível na vida do vendedor de água, “Esses

sentimentos, tirados da nossa experiência real e transferidos para o papel, é que dão vida à

peça” (STANISLAVSKI, 2012, p. 204).

Semelhante pesquisa de cruzamentos pode ser observada na revista de estudos

teatrais na américa latina – Urdimento, da UDESC (edição número 4 publicada em 2002).

Na referida revista a pesquisadora Heloise Baurich Vidor, da Universidade do Estado de

Santa Catarina, escreve em seu artigo A Emoção e o Ator: Stanislavski, Brecht, Grotowski

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interessantes reflexões como o primeiro ponto comum entre Stanislavski, Brecht e

Grotowski: a ideia do ator como duplo.

Brecht, apesar de querer um determinado tipo de interpretação, para a qual criou

o distanciamento, não centrou seu trabalho na problemática do ator propriamente,

mas a presença deste era essencial para que as idéias revolucionárias, do homem e dramaturgo Brecht, pudessem ganhar corpo e partir para a transformação dos

homens, seu primordial objetivo. A transformação dos homens, implicava, para

Brecht, na transformação de seus atores. Porém, apesar desta diferença na

abordagem da atuação tanto em Stanislavski, quanto em Brecht e em Grotowski,

a emoção do ator no palco, representando um personagem, não deve ser

semelhante à de uma pessoa no dia-a-dia. “No teatro de Stanislavski e de Brecht,

o que ocorre é o encontro da pessoa do ator com um personagem de ficção. O ator

acredita nas palavras do seu papel e na sua imagem. (VIDOR, 2002, p. 33)

Considerações finais

Acredito que relevantes autores-pensadores teatrais, mesmo que tenham

pensamentos distintos, acabam (de alguma forma) tendo seus conceitos cruzados, trazendo

para os atores, encenadores e pesquisadores da arte de atuar, uma gama enorme de

possibilidades que auxiliam seus trabalhos.

Não creio que buscar um diálogo com Stanilavski e Brecht, na construção de uma

personagem, seja exercício incompatível – respeitando suas linhas diferenciadas. Em minha

trajetória teatral até então, percebo exercício difícil para um ator, ao representar um papel,

deixar fora do palco suas inquietações pessoais. Uma pessoa, por mais técnica que busque

ser, é influenciada por suas emoções e vivências que se atualizam em suas ações.

Em minha construção da personagem Wang em A Alma boa de Setsuan de Bertold

Brecht, visitei conceitos stanislvskianos, usei minhas experiências e memórias para chegar

a um resultado visando colaborar com a montagem inserida no “Projetão”. A pesquisa não

cessa, os autores centrais deste artigo estarão presentes em minha trajetória acadêmica

teatral, acredito, em (muitas) outras vivências.

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Bibliografia

VIDOR, H. B. A emoção e o ator: em Stanislavski, em Brecht, em Grotowski. Revista

Urdimento, Florianópolis/SC, v. 4, p. 32, 2002.

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 2012.

STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 2012.

BRECHT, Bertold. Teatro completo - volume 07. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1992.

ROSENFELD, Anatol . A arte do teatr: aulas de Anatol Rosenfeld.São Paulo: Editora

Publifolha, 2009.

NETO, Dhenise de A. C. Uma Análise Crítica da Montagem Um Homem É Um Homem de

Bertolt Brecht, pelo Grupo Galpão. Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2007.

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Ritorna Stanislávski! : As contribuições do pensamento stanilaviskiano na montagem do espetáculo Ritorno a Corall ina.

José Maxsuel Lourenço Alves1

Eliane Tejera Lisboa (Orientadora)2

Stanislávski tem algo a nos dizer? É no jogo com a (in)utilidade desta pergunta que este trabalho se faz. Nele, discutimos a atualidade das contribuições deste autor para o ofício do ator, a partir do debate sobre o que é o contemporâneo proposto por Giogio Agamber; da construção das personagens e da encenação da qual estas personagens fazem parte: Ritorno a Corallina, escrita por Juan Carlos Gené, na montagem realizada pelo Grupo Teatral Arupemba. Problematizamos como o estudo das personagens deste espetáculo dialoga com dilemas da encenação contemporânea, como a encenação com poucos elementos cênicos e o uso de objetos imaginários e a formação de novos atores; ao mesmo tempo em que, apropria-se de questões essenciais à arte do ator como o trabalho com diversos focos, o estímulo à imaginação e o trabalho a partir de ações físicas propostas pelo estudioso russo. PALAVRAS CHAVE: STANILÁVSKI, RITORNO A CORALLINA, ATUAÇÃO CONTEMPORÂNEA.

Ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos (AGAMBER, 2009: 70)

A luz lentamente incide sobre o centro do palco, no qual uma mulher

(Salustiana) concentradamente limpa o chão. Seus cabelos desgrenhados, o rosto sujo, começam a semear uma suspeita – há algo de “anormal” com esta mulher. Ela fala sozinha, ou melhor, com a deusa3, segundo ela; o que alimenta nossa impressão de estranheza diante desta figura. Suas orações, bem como o nicho que está no lado direito do palco, sugerem que aquele espaço é uma capela. Outro personagem, um homem jovem (Pascoal), invade o espaço, e observa tudo com desconfiança. Algo nas paredes do espaço o intriga, desloca e desvia sua atenção. Inicia-se uma conversa entre os dois, enquanto a trama e o espaço, através das ações das personagens revelam e escondem o que está por vir. Aos poucos entendemos que as paredes da capela estão quase completamente cobertas por rabiscos e pinturas, feitas pelo terceiro personagem que aparece na trama, um homem velho (Franco), que carrega latas de tinta, tão invisíveis quanto sua pintura.

1 Ator do Grupo Teatral Arupemba; integrante do Núcleo de Estudos Teatrais – NET, Vinculado à Unidade Acadêmica de Arte e Mídia -UAAC. Mestrando no Programa de Pós graduação em historia da Universidade Federal de Campina Grande. Email: [email protected]. 2Diretora do Grupo Teatral Arupemba; Coordenadora do Núcleo de Estudos Teatrais – NET e Professora de Teatro da Unidade Acadêmica de Arte e Mídia – UAAM. Email: [email protected]. 3 A plateia, diferentemente dos demais personagens, escuta as respostas da deusa.

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Franco e Pascoal são pai e filho, respectivamente. O primeiro não quer falar com o segundo e ambos trocam afrontas em função das qualidades estéticas das pinturas e do desejo do filho de levar o pai para casa, até que de dentro do nicho uma voz invade a cena chamando Franco. Todos ouvem, exceto Pascoal que não reage às falas em italiano da mulher (Corallina) que está dentro do nicho. Esta insiste no chamado, “Franco, Franco Sei Tu”, e indignada com sua indiferença adormece entristecida, enquanto Salustiana enfurecesse-se com a “falta de educação de Pascoal”. Desse modo, inicia-se a montagem, realizada pelo Grupo Teatral Arupemba, do texto Ritorno a Corallina, de Juan Carlos Gené. O texto discute, entre outras coisas, as angústias de um migrante que sonha voltar à terra natal e sofre as consequências do confisco de sua poupança pelo Estado venezuelano na década de 80. Na historia estão presentes as relações de poder e a ausência de ternura entre o gênero masculino na família Di Fiori, a oposição entre os lugares que a razão e a inspiração ocupam em nosso mundo, assim como o lugar da arte neste. A trama opõe pai e filho e suas historias de vida, conduzindo-nos ao questionamento a respeito do que é a arte e a loucura para nós, bem como nos faz suspeitar do quanto o domínio das dimensões estritamente técnicas do fazer artístico dá conta da produção daquilo que nomeamos como arte. Nessa empreitada o grupo viu-se diante de um dilema: como provocar na plateia a tensão entre os personagens Franco, Salustiana, Corallina versus Pascoal? Como estabelecer imagens que fugissem dos critérios estéticos de beleza, que necessariamente deslocariam o julgamento da plateia diante do que veria pintado, para o campo da percepção individual? Como guiar a leitura da plateia, abrindo-lhe espaço para resignificar aquilo que percebe e, ao mesmo tempo, garantir a unidade das leituras, que são essenciais à própria dramaturgia? O texto coloca que, enquanto Franco orgulha-se de suas pinturas e as crê exuberantes, Pascoal, que estudou pintura por mais de três anos, para satisfazer o desejo do pai, diz que as pinturas parecem desenhos tolos: “ ridículos, infantis, menos que merda!” Então, Como provocar o deslocamento que acontece com o olhar de Pascoal no desenrolar da historia, do ingênuo à obra prima, uma vez que ele mesmo muda de opinião?

A opção do grupo foi colocar no trabalho dos atores a provocação destas referencias, optando pela utilização de nenhuma pintura. Tornou-se rapidamente evidente para o Arupemba que qualquer imagem impediria a crença nas verdades que a beleza e a feiura das pinturas ocupam na dramaturgia, tendo em vista que Franco e Pascoal mudam de opinião algumas vezes. Ora, se for fato que as verdades residem nos olhos de quem com elas se encontra, provocar na plateia a dúvida e a imaginação, ao mesmo tempo com sentido tornou-se uma das bases desta encenação.

Nesse sentido, os atores ganharam uma nova e velha tarefa: fabricar a crença de que as paredes negras, formadas pela penumbra do espaço físico do teatro, estavam repletas de cores, e de imagens. Neste lugar mágico, as pinturas poderiam ter a forma e a cor que cada um pudesse imaginar, elas poderiam mudar de status, de belas a feias e vice versa, sempre de acordo com as reviravoltas da dramaturgia. Ao optar pelas paredes nuas a encenação provocava os atores a trabalharem em si um dos antigos conselhos propostos por Tortsov, diretor fictício da obra A Preparação do Ator, de Stanislávski:

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O que chamamos de verdade no teatro é a verdade cênica da qual o ator tem de servir-se em seus momentos de criatividade... Instilem vida em todas as circunstancias e ações imaginadas até conseguirem satisfazer plenamente o seu senso de verdade e até terem despertado um sentimento de crença na realidade de suas sensações. (1999: 169)

Acreditar no que se faz durante o aqui agora na cena, tecer para si uma mentira tão rica em detalhes, tão centrada sobre si mesma a ponto de o próprio autor crer na veracidade de suas ações e sentimentos: eis a proposta chave para o trabalho do ator. A tarefa dos atores em Ritorno à Corallina seria, portanto, ver as pinturas em meio à penumbra, manusear os objetos imaginários com precisão, no caso de Salustiana e Franco; não ouvir as falas de Corallina no caso de Pascoal; acreditar-se etérea e sólida simultaneamente no caso de Corallina. Para isso fazendo uso de alguns princípios básicos da interpretação propostos por Stanislávski, como a avaliação das circunstâncias dadas, atenção, foco, imaginação, o trabalho com objetivos e superobjetivo.

Isso nos conduz ao eixo central da discussão que propomos aqui: a contemporaneidade de Stanislávski. Entre o tempo em que trabalhou como ator, diretor e escritor e nós, mais de 70 anos nos separam e muita coisa mudou no fazer teatral e, no entanto, suas palavras permanecem atuais. Aquilo que ele propunha para o trabalho dos ensaios como a manipulação de objetos imaginários, é reiteradas vezes trazido para as encenações e muitas vezes faz parte da própria dramaturgia da cena. Suas propostas são criticadas, o tipo de teatro que ele praticava, o naturalista, cada vez mais é posto em desuso no campo teatral, desde Brecht e o teatro épico até o teatro performático, passando por encenações que buscam a imersão da plateia na cena, ou que provocam o ator a falar de si mesmo e fazer disso o material de sua arte. O mundo mudou, a cena mudou e Stanislávski, certamente não permanceria o mesmo. Neste sentido, como é possível pensar, diante de tanto tempo e tantas mudanças, que o diretor russo é nosso contemporâneo?

Talvez uma questão anterior precise ser levantada: afinal, o que é para nós o contemporâneo? Giorgio Agamber, traz alguns apontamentos que nos podem ser úteis, pois para ele o contemporâneo não é o presente ou aquilo que faz parte de uma mesma geração; é, antes de qualquer outra coisa, uma postura diante da vida, do tempo, e do mundo em que se vive. Um modo de andar na corda bamba da desconfiança, diante das certezas do seu presente, e por isso, o tempo todo tomar-lhe distância, enxergando a historicidade das práticas e das escolhas (2009:58-59). Algo próximo à postura que o próprio Stanislávski assumia diante de seus escritos e de seu trabalho, uma vez que entendia-os como resultado da especificidade de sua experiência no Teatro de Arte de Moscou.

Stanislávski foi um homem que viveu a passagem do século XIX para o XX. Um tempo em que a crença na ciência e na técnica e nas suas capacidades de tradução das “verdades intrínsecas do mundo e das práticas humanas” e da melhoria da qualidade de vida a partir da racionalização do mundo, eram tomadas como certeza. No entanto, seu olhar quebrava as

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“vértebras de seu tempo4”, uma vez que desacreditava, na possibilidade de fixação de um método que fosse eficiente para todos os atores em qualquer lugar e tempo. Podemos dizer, como Agamber, que Stanislávski é alguém que “não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte de sombra, a sua intima obscuridade (2009: 63-64); e que por isso estava atento a singularidade de seu oficio, pois seus escritos propunham, inclusive na sua forma de exposição, a experiência/vivencia como rotina de trabalho e não as certezas da aquisição de uma técnica universal ou de uma ciência da arte.

Ao mesmo tempo, ele viveu seu próprio tempo e alimentou-se das vivencias, saberes e modos de reflexão sobre a vida que circulavam. Neste sentido, a psicologia e a sociologia, por exemplo, reverberam em suas palavras e afetam seu modo de pensar o trabalho. Elementos como a vida interior da personagem e a atenção às circunstâncias dadas, são elementos essências para a compreensão de como este autor alimentava-se das ciências que pretendiam explicar o homem, para melhor por em cena este sujeito. Sua conexão e estranhamento com seu presente deram-lhe a espessura histórica que rompe com os limites do teatro de seu próprio tempo e permitem que ele, ainda tenha muito a nos dizer. Nesse sentido, Stanislávski é contemporâneo de nosso tempo, uma vez que seu pensamento fraturou seu presente de tal modo que suas reflexões continuam atuais, e por mais que suas palavras sejam dobradas em função dos objetivos das mais variadas correntes, suas propostas para o trabalho do ator sobre o próprio oficio, continuam sendo premissas fundamentais para qualquer pessoa que aceite o desafio de subir ao palco, tenha ele a estrutura física que a encenação/performance propor. Mas através da reflexão de Agamber poderíamos nos perguntar: e nós podemos ser contemporâneos de Stanislávski?

O contemporâneo coloca em ação uma relação especial entre os tempos. Se, como vimos, é o contemporâneo que fraturou as vértebras de seu tempo (ou ainda, quem percebeu a falha ou o ponto de quebra), ele faz dessa fratura o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e as gerações. (2009: 71)

Ter um encontro com outro tempo, outra geração: eis o desafio.

Aceitá-lo nos conduz a necessidade de conhecer o Grupo Teatral Arupemba e a sua montagem de Ritorno a Corallina. O grupo é constituído por atores, que estudam o teatro desvinculado da academia. Entre suas encenações, a prática da construção da dramaturgia a partir dos trabalhos na sala de ensaio, de improvisações, do recolhimento de depoimentos, da reunião de citações, reportagens, textos e imagens os mais diversos era o trabalho cotidiano. Deste modo, os atores nunca haviam trabalhado com uma dramaturgia que precedesse a sua pratica, bem como os dilemas da construção deste tipo de personagem e edificação da encenação baseada em um texto preexistente. O primeiro exercício de deslocamento em relação a si próprio foi, portanto, a escolha de um texto dramatúrgico, para a encenação.

4 Esta expressão é utilizada pelo o Agamber, dando a ler o tipo de exercício necessário ao estranhamento do presente: a fratura de sua espinha dorsal e a posterior sutura, para que montados nesta possamos olhar de maneira singular o nosso próprio tempo(2009: 60-61, 65).

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Ao grupo emergiu uma diferença fundamental: o texto trazia o desenho de um caminho. Os atores já conheciam o fim da historia, os personagens não diziam frases que saíram de seu trabalho de improvisação, de suas memórias, angustias, risos e dores; não haviam depoimentos a colher, poemas para costurar. As partituras que criavam deveriam estar conectadas desde o inicio do trabalho com um fantasma que passou a lhes acompanhar como sombras: as personagens. Nesse sentido, a opção da direção (Eliane Lisboa) foi o do trabalho a partir da leitura/analise ativa, pois para ela era essencial:

conduzir o processo criativo através da ação, principio primordial do teatro. A investigação da estrutura da ação, que se dá na experimentação através da criação do ator pode revelar o impulso primeiro que originou a obra, possibilitando, assim, alcançar níveis diferenciados entre texto e ação, que transcendem a mera ilustração da palavra(DAGOSTINI, 2007, 23)

criar enquanto se lê, por diretamente na cena as ações propostas pelo texto, onde a movimentação, que nascia da cena, contribuía para o trabalho dos atores na produção de posturas, de vozes, de sentimentos e crença na veracidade da vivencia daquilo que estavam experimentando e, ao mesmo tempo, compreendiam sutilezas e complexidades que a intriga dramatúrgica propunha e que com a simples leitura, passava sorrateiramente despercebida. Desse modo, os conflitos entre as personagens aconteciam nos corpos dos atores simultaneamente a sua apreensão racional. Cada novo ensaio provocava novas sensações que punham em xeque o material construído, uma vez que a cada vez que as frases eram ditas em posicionamentos distintos e a partir de provocações diferentes geravam novos sentimentos, novas percepções que tornavam mais complexas, e mais humanas as personagens.

De modo semelhante, optou-se pelo trabalho simultâneo com improvisações, onde as personagens viviam situações diversas das do texto contribuíam no fomento da construção dos corpos e modos de pensar das personagens. Como é Pascoal trabalhando em sua loja, como dá ordens aos funcionários e como trata os clientes? Como eram Franco e Corallina quando viviam na Itália? Como era a vida de Salustiana antes da chegada de Franco à capela, uma vez que ela comenta que era continuamente abusada sexualmente por policiais? Viver estas perguntas, através do improviso, provocava nos atores inquietações diante daquilo que acreditavam ser as personagens naquilo que o texto propunha, e a sua colocação em outras situações. Ampliar as vivencias das personagens era uma maneira de ampliar a sua humanidade, de suturar no corpo e mente dos atores as possibilidades e bloqueios de seus corpos e dos corpos das personagens. O ator Allan Barros, por exemplo, que vive o papel de Franco, precisou construir um corpo velho, com ritmos e intensidades distintas das suas. Em cena, este corpo foi posto em ação e julgamento a cada ensaio. Mesmo envelhecido seu corpo precisava ganhar as nuances provocadas por diversas situações como a raiva, a impaciência, a paixão. Precisava carregar objetos imaginários, viver momentos de êxtase. Em todos estes casos, era preciso cuidar para achar a medida deste trabalho, para garantir-lhe a verdade e

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permanência da personagem e fugir da possibilidade de caricaturização do velho. No trabalho de leitura ativa, a necessidade do trabalho com a provocação destes detalhes emergiu como uma evidencia ao grupo.

Caso semelhante se deu com a construção da personagem Corallina, encenada por Camila Melo. O Fato de ela poder ser lida como uma alucinação, ou mesmo um espírito, provocou na atriz o impulso para a construção de uma postura leve, na fala, no jeito, no andar. Este impulso foi posto a prova na sala de ensaio e precisou dialogar com seu oposto em função de algumas características colocadas pelo autor ao longo do texto. Corallina passou a vida no campo, cuidando da terra e dos animais, é possível interpretá-la como a expressão do modo como Franco lembra-se dela: jovem, trabalhando no campo de uma Itália dos anos 40. Além disso, a personagem vive momentos de intensa descoberta, desilusão, tristeza e alegria. Estes extremos foram percebidos na sala de ensaio a partir da fragmentação de instantes das cenas que contribuíam para a conformação da personagem como uma figura mais concreta, terrena. O desenho escolhido pela direção foi o trabalho com a oposição entre a ideia de uma figura etérea, e a solidez na presença cênica; com o intuito de produzir a incerteza na percepção do público.

Salustiana é uma personagem que é compreendida pelo mundo racional como louca, “ diagnosticada e certificada”, como ela própria afirma em certo momento da historia. Neste caso, foi essencial para a atriz Elma Silva, o trabalho com a expressão do corpo de maneira menos retilínea, com andares distintos e com uma postura baseada na flexão dos joelhos, bem como a construção de comportamentos que tinham o impulso e o trabalho com o exagero como princípios básicos. Além disso, a personagem dança algumas vezes na cena, para isso, o contato e improvisação com a dança contemporânea foi primordial, tendo em vista que precisávamos por em cena uma dança que fosse a manifestação da alegria, da tristeza ou da fé desta personagem, que tem o convencional e a normalidade como sua antípoda. Portanto, sua dança precisava ser não descodificável a partir de nenhuma matriz conhecida, precisávamos que de seus movimentos emergissem um modo próprio de expressão corporal que, fundisse beleza e estranhamento.

Nesse caso, o trabalho na sala de ensaio ganha ainda mais destaque, para evitar a construção de versões extremamente racionalizadas de como seria o seu comportamento. Deste modo, cuidamos para que a sala de ensaio fosse um espaço de devir para esta personagem, onde a provocação dos sentidos e dos impulsos fosse elevada a “décima potencia”, para a posterior lapidação. Longe de uma loucura escrita na compreensão racional, Salustiana é uma personagem epidérmica, que exigia da atriz sensibilidade e atenção maiores, para que esta possa “ ter o direito de expressar o grotesco” em sua verdade própria.

Pascoal, por fim, é personagem o qual eu mesmo interpreto, que suscitou alguns problemas que só surgiram com a sala de ensaio. A dificuldade em manter uma personalidade distinta de outros personagens que eu já havia criado se tornava algo difícil de vencer, e que só pode ser detectada através da leitura ativa. O mesmo aconteceu com o trabalho de indiferença às falas de Corallina, uma vez que elas não existem para ele pela maior parte da trama, por isso, era preciso não reagir a suas palavras, choro, sua presença em cena. Coisa que racionalmente era entendida, mas que em

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cena era de difícil realização, pois neste momento, mente e corpo, interior e exterior custavam a conectar-se.

O excesso de concentração física, provocava em meus ombros um acumulo de tensão que paralisava meus braços, tornando todas as minhas atitudes mecânicas; por maior que fosse minha crença e meu estado interior de fidelidade a vida da personagem, meu corpo tensionado expressava um ator com braços tensos com pouca presença cênica, que corrompia toda a cena. A sala de ensaio tornava-se um lugar onde passei a perseguir minhas tensões musculares e relaxá-las, como nos aconselhou Stanislávski, na observação das tensões do personagem Kóstia.(1999:133).

Em todos os casos, percebemos que o trabalho com a leitura ativa aliada ao simultâneo diálogo e experimentação de algumas premissas propostas por Stanislávski em A Preparação do Ator foi essencial em nosso trabalho. Em alguns momentos o estudo racional alimentava a pratica do ensaio, noutras o ensaio provocava uma nova compreensão de variados elementos da vida destas personagens; muitas vezes nos pegávamos preocupados com e praticando exercícios, que este autor propunha, sem que com isso pudéssemos nos dar conta que dialogávamos com suas inquietações.

Outro fator importante no trabalho de montagem desta encenação é o grupo ensaia em salas de diferentes texturas e dimensões. Cada espaço afetava a encenação e exigia a reconfiguração do espaço constantemente, provocando nos atores a necessidade de uma maior consciência espacial para adaptarem-se a cada realidade. De modo semelhante, o grupo também trabalhou com duas provocações: 1) a troca de personagens entre os atores e a vivencia da cena em cenários modificados, onde tinham que circular entre objetos cênicos e jogar com eles, subindo e descendo neles; 2) a troca de temas da linguagem que eram anteriores à fala, neste caso, fazia-se cenas dramáticas em tom cômico, musical ou trágico. Ambas as provocações objetivavam a manutenção da vida das personagens ao longo dos meses de ensaio e o estimulo de novas sensações, desenhos de cena, falas, e partituras corporais que poderiam ser interessantes à montagem final da encenação.

Estas questões e esta experiência nos levaram a concluir que Stanislávski ainda tem muito a dizer ao teatro do presente, e que mesmo se não quisermos ouvi-lo, suas reflexões certamente vão reverberar em nosso trabalho, tendo em vista sua disseminação no campo, e sua preocupação com o fazer teatral, que em certa medida, continua provocando aos que a ele se dedicam algumas das mesmas questões que inquietavam o autor russo e que fazem dele nosso contemporâneo.

O trabalho com um texto com base naturalista e com a manipulação de objetos imaginários, tornou-se a linguagem de Ritorno a Corallina. Foi o modo de o Grupo Teatral Arupemba aproximar-se do tempo de Stanislávski, trilhar o caminho inverso, mas não oposto, do percurso de seu pensamento rumo ao teatro de seu presente e compreender suas inquietações em torno da tarefa do ator de viver uma personagem. Este foi o nosso modo de fraturar as vértebras do tempo e assumir o risco, com todas as fugas e desvios ao teatro naturalista que desejamos, de também sermos contemporâneos de Stanislávski e do nosso próprio tempo.

Bibliografia

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AGAMBER, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, Argos, 2009. DAGOSTINI, Nair. O Método de análise ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. Tese de Doutorado. Pós graduação em literatura e cultura Russa, do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo. 2007 GENÉ, Juan Carlos. Ritorno a Corall ina. Buenos Aires, Ediciones de La flor, 1994 STANISLÁVSKI, Constatin. A preparação do Ator. Trad. Pontes de Paula Lima. 15° Ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999. _____________. A Construção da Personagem. Trad. Pontes de Paula Lima. 4° Ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1986.

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STANISLÁVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E PROCESSO DE MONTAGEM DE ESPETÁCULOS

PROCESSO DE ENCENAÇÃO A PARTIR DE ESTADOS ANÍMICOS: APROXIMAÇÕES E CONTRADIÇÕES EM RELAÇÃO AO MÉTODO

STANISLÁVSKI Marco Antonio de Oliveira; Orientador: André Luiz Antunes Netto Carreira; Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. A teoria desenvolvida por Konstantin Stanislávski parece, ainda nos dias de hoje, afirmar sua atualidade. Apesar das grandes transformações que o teatro tem passado, sua pesquisa sobre o trabalho do ator parece ter validade e encontrar espaço em diversas vertentes do teatro. A sistematização minuciosa desenvolvida a partir da observação e reflexão da prática dos atores do TAM – Teatro de Arte de Moscou mostra-se paradoxalmente enquanto um trabalho pioneiro acerca das artes da atuação, ao passo que ainda surte efeito no teatro contemporâneo, tornando-se objeto de estudo, reflexão e questionamento no campo do teatro.

Até mesmo pesquisas experimentais mais atuais, que extrapolam algumas noções imprescindíveis segundo a pesquisa de Stanislávski – como o conceito de personagem, por exemplo – relacionam-se de alguma maneira com a lógica da pesquisa de atuação desenvolvida pelo encenador russo, mesmo que no sentido da recusa. Naturalmente, ao longo dos anos diversos conceitos e elementos do teatro perderam seu valor, bem como outros ganharam força. A noção de teatralidade e performatividade, por exemplo, são questões extremamente atuais e que eram pouco ou não eram discutidas na época de Stanislávski. Qual seria de fato a importância dessa teoria para o teatro experimental contemporâneo, que põe em discussão questões outras e mais pertinentes ao tempo atual?

De acordo com minha experiência enquanto ator no grupo ÁQIS – núcleo de pesquisa sobre processos de criação artística, que desenvolve uma pesquisa teórico-prática proveniente sobretudo da atuação a partir de estados anímicos, pretendo investigar o processo de encenação sobre o texto dramático Baal, de Bertolt Brecht, com foco no que ainda resiste das pesquisas de Stanislávski numa prática contemporânea de teatro. O processo foi realizado no primeiro semestre de 2013.

Cabe aqui deixar claro algumas premissas que se tornam importantes para leitura deste artigo: analiso o processo de encenação, contudo parto do ponto de vista de ator em cena, e então analiso como a atuação proposta, eixo principal na pesquisa, gera o resultado estético apresentado em cena. Pretendo portanto analisar as proposições de Stanislávski acerca do trabalho do trabalho do ator, e comparar como duas proposições de atuação que partem de tempos e premissas extremamente distintos, geram suas práticas em cena que se aproximam e divergem. Além disso, utilizo o termo método Stanislávski presente no título remetendo às práticas pesquisadas e publicadas nos livros de Stanislávski, relacionando pouco com um possível passo-a-passo de atuação que durante algum tempo acreditou-se ser a pesquisa do encenador russo.

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O laboratório experimental do ÁQIS está em atividade desde 2007 com o intuito de “interpretar movido pela experiência física de um estado emocional sugerido pelos atores, antes mesmo da aproximação a uma determinada dramaturgia”1. O grupo é composto por alunos e ex-alunos de graduação e pós-graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, sob coordenação do Professor Doutor André Carreira. Sou integrante do grupo desde o início de 2013, porém já havia assistido à encenação do grupo para o texto Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, além de conhecer razoavelmente sobre a pesquisa em estados. Vários processos de encenação foram realizados ao longo da existência do grupo, gerando experiências de diferentes pontos de partida a fim de investigar as particularidades da criação que surge da atuação por estados. Alguns conceitos foram se tornando importantes premissas no trabalho do ÁQIS. Dentre eles, posso destacar o conceito de empilhamento, que André Carreira e Ana Luiza Fortes definiram como “(...) a justaposição aleatória de elementos contraditórios como matriz do processo criativo da interpretação teatral”2. O empilhamento seria portanto um acúmulo de elementos, tais como o figurino, a interpretação por estados, o texto, o espaço da encenação, sem um pensamento prévio que articule tais elementos. A camada semântica se dá justamente na perspectiva do espectador, no momento em que todos os elementos se articulam durante a encenação.

Além disso, outro conceito que obviamente define a prática do grupo é a atuação a partir dos estados: segundo Ligia Ferreira, atriz colaboradora do grupo de pesquisa:

(...) uma interpretação que nascesse a partir de estados emocionais, na qual o ator pesquisa em si formas para atingir determinado estado, sem a intervenção prévia de um texto, de uma situação dramática ou de uma personagem. A ideia básica era produzir o estado, buscando os estímulos corporais necessários para que se pudesse criar um mapa dessa energia no corpo.3

Através de estímulos corporais, tais como contrações musculares, modificações respiratórias, ou mesmo a busca por algum estado emocional, como por exemplo raiva ou choro, os atores buscam produzir uma presença cênica alterada, que os desloque da presença cotidiana, mas por uma via outra que não a sugerida pelo texto. A busca pelos estados coloca o ator em ação, produzindo um acontecimento real no momento da encenação, afastando o ator da possibilidade de representação. Aqui me refiro à representação como o ato de tornar algo novamente presente através da repetição. Acredito que os estados busquem uma experiência real e desconhecida a cada vez que os espetáculos são encenados, partindo para uma via de criação de energias muito mais do que a repetição de algo já conhecido. Todos esses elementos e suas implicações deslocam a pesquisa realizada no ÁQIS para o território do teatro experimental contemporâneo, onde a noção de personagem parte muito mais da performance do ator em cena do que uma ideia extraída do texto

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dramático. Esse, por sinal, torna-se somente mais um dos elementos de jogo em cena, perdendo sua posição de gerador da encenação para, nesse caso, uma prática de atuação. Os estados produzem uma encenação que se pauta no aqui-agora, visto seu caráter desconhecido e real que a cada vez provocado, pode transforma a ação para algo novo. O empilhamento gera inimagináveis possibilidades de sentido para a encenação, trazendo como consequência básica a ressignificação de um texto dramático. No teatro contemporâneo, a semiologia perde potência no teatro, abrindo espaço para a experiência proporcionada através do espetáculo: essas são ideias de grandes teóricos contemporâneos como Patrice Pavis e Marvin Carlson. É a partir desses argumentos que considero a prática do ÁQIS uma pesquisa contemporânea, que questiona e problematiza os citados elementos. Sigo então na minha busca por fazer um paralelo à pesquisa stanislavskiana. Seria possível encontrar vestígios em uma pesquisa contemporânea, em específico a pesquisa desenvolvida pelo ÁQIS? Quais são os possíveis diálogos entre essas duas pesquisas de atuação? Para tanto, me ocupo agora em descrever o processo que participei enquanto ator, a experiência de montagem do espetáculo Baal, de Bertolt Brecht. A montagem iniciou em março de 2013. Pessoalmente, divido o processo de criação do espetáculo em três etapas. A primeira compreende o trabalho com estados, leitura do texto e produção de material bruto. A segunda, definição de personagens, ensaio, escolha de figurinos e objetos de cena, definição de marcas do espetáculo. A última etapa contém as quatro apresentações do espetáculo e o fechamento de possíveis níveis de sentido gerados pela encenação.

O grupo, já formado por integrantes que haviam participado de no mínimo uma encenação realizada pelo ÁQIS, recebeu dois novos integrantes, um deles, o autor desse artigo. Iniciamos o processo com a retomada dos estados, afinal o grupo estava há algum tempo sem praticar. O texto a ser encenado já era de conhecimento do grupo e uma leitura inicial foi realizada, mas sem extrema importância ou discussão de texto. As práticas envolviam a roda de estados – momento em que os atores pesquisadores fazem uma roda, aproximando-se uns dos outros, e começa então a produção de estados, podendo sair da formação de roda quando se sentirem produzindo presença proveniente da alteração física. Jogos em dupla também foram realizados a fim de estimular os parceiros, seja no sentido de gerar um estado partindo de condições externas ou de por à prova o estado perante provocações físicas do outro.

A leitura inicial do texto coincide com a proposta de criação para o ator por Stanislávski: “O trabalho preparatório do ator sobre um papel pode ser dividido em três grandes períodos: estuda-lo; estabelecer a vida do papel; e dar-lhe forma”4. Mas a leitura foi apenas para conhecimento de todos acerca do texto, não um estudo sobre o texto. Acredito que a prática do ÁQIS tenha alterado a ordem: a primeira etapa tornou-se estabelecer a vida do papel, a partir da criação de estados que produzem energias.

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Várias questões foram levantadas com intuito de aprofundar ainda mais a pesquisa em estados. Experimentamos por algum tempo metade dos atores de olhos fechados, produzirmos todos o mesmo estado, em dupla, um propor o estado para o outro. As consequências de certas variações físicas ainda não são completamente compreendidas pelo grupo de pesquisadores, além disso, a atuação a partir de estados, como toda técnica de atuação, pode sutilmente passar de uma atuação verdadeira, produzindo energia e acontecimento real, para a representação formal das características exteriores que um estado produz. Além disso, todas essas práticas aos poucos criavam um universo lúdico, um levantamento de material bruto a ser desenvolvido com outros elementos na encenação do texto, com a introdução de pequenos diálogos e falas retiradas do texto, desenvolvendo assim a atmosfera gerada pelos atores e seus respectivos estados trabalhados.

A leitura do texto aconteceu novamente depois dessa etapa inicial de produção a partir de estados. Por mais que a leitura remetesse ao acesso racional das impressões sobre a peça e personagens, a etapa anterior já havia desenvolvido a construção de um universo lúdico que arrisco dizer, esteve persente inclusive nas apresentações do espetáculo. A primeira impressão da peça veio da criação não racional, não de uma leitura e de um entendimento consciente, mas sim de impulsos criativos dos atores pesquisadores. Para Stanislávski, a leitura do texto dramático é por si o primeiro contato com a personagem:

A familiarização com o papel constitui, por si só, um período preparatório. Começa com as primeiríssimas impressões da primeira leitura da peça. Esse momento importantíssimo pode ser comparado com (...) o contato inicial entre dois seres que se destinam a ser namorados (...).5

Nota-se aqui a importância que o texto ainda apresenta na pesquisa de Stanislávski. Ele, juntamente com o trabalho do ator, desenvolve o norte da encenação. Na pesquisa do ÁQIS, o texto é um elemento, um organizador de tensões dramáticas, mas funciona como mais um elemento a ser jogado, um mote da ação. A criação encenação no grupo de pesquisa passa menos pelo racional e mais pela produção criativa que o ator consegue produzir. É inegável que essa produção se relacione com o texto, mas aqui não há nenhuma intenção consciente de relacionar o estado produzido com as tensões dramáticas do texto: o que se busca é um empilhamento que se dá pelo acaso e pela coexistência de elementos. Outra questão abordada por Stanislávski é a questão das circunstâncias externas e interiores. Quanto às circunstâncias externas, vejo que as práticas de pesquisas contemporâneas levaram seu conceito ao extremo. Stanislávski se refere às circunstâncias externas como elementos textuais externos aos personagens: “Entre as circunstâncias exteriores da vida de uma peça, o plano mais fácil de estudar é o dos fatos”6. Na prática do ÁQIS vejo que as circunstâncias externas vão muito além do texto, mas também acabam por causar os mesmos efeitos nas personagens ou atuantes em cena. Os fatores externos

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seriam as adversidades que o personagem deve lidar no decorrer da peça. A dramaturgia se expandiu para muito além do texto e as circunstâncias externas tornaram-se outros elementos, bem como figurino, movimentações, marcações, relações em cena. Todos esses elementos tornaram-se muito maiores que a reprodução de marcas ou indicações do texto, mas elementos de jogo que transformam a personagem e criam uma nova dramaturgia de cena. A segunda parte da criação de Baal envolve a criação dessas circunstâncias externas. O figurino, escolhido pelos próprios atores, os objetos de cena e as relações sempre desconhecidas, dadas a partir do contato com os estados que variavam de acordo com a escolha dos atores, geravam sempre novas circunstâncias externas a cada encenação. A dramaturgia da cena é inesperada, impossível de ser estudada, porque se dá somente no ato da encenação. Os ensaios se encaminhavam no sentido de estabelecer ritmo às cenas e passar o texto entre todos os participantes. Quanto às circunstâncias interiores, parece-me aqui haver uma importante convergência entre as duas pesquisas:

A dificuldade desse aspecto da percepção emocional é que o ator, agora, está se aproximando de seu papel não por meio do texto, das palavras desse papel, e tampouco pela análise intelectual ou outro meio de conhecimento consciente, mas por meio de suas próprias sensações, suas próprias emoções reais, sua experiência pessoal de vida.7

O que, no processo de encenação do ÁQIS ocorre em primeira ordem, não deixa de estar presente no trabalho de Stanislávski. O que chamamos de estado, as emoções reais dos atores, também são encontradas no trabalho do encenador russo. Não se trata aqui, em nenhum dos casos, em colocar-se no lugar do personagem, mas sim colocar-se em situação. Utilizar experiências, seus estados emocionais pessoais ao colocar-se na situação sugerida, quer pela dramaturgia do texto, quer pela dramaturgia da cena. Após a etapa de ensaios, fomos às apresentações. Uma questão que rondou as apresentações e que esteve extremamente em voga nas pesquisas de Stanislávski tem a ver com a questão da cena crível, da interpretação crível. Acredito, de acordo com as minhas experiências enquanto ator, esse ter sido um dos maiores legados da sistematização de Stanislávski: a questão do superobjetivo e ação direta.

Este [superobjetivo] é a essência interior, a meta que abrange tudo, o objetivo de todos os objetivos, a concentração de toda partitura do papel, de todas as suas unidades máximas e mínimas. O superobjetivo contém o significado, o sentido íntimo de todos os objetivos subordinados da peça.8

Esses elementos do trabalho do ator justificam internamente suas ações, tornando-as críveis para ele mesmo e para o espectador que participa da encenação. Em Stanislávski, o estudo dos superobjetivo e ação direta decorrem mais uma vez do trabalho sobre o texto, e a lógica que o ator deve assumir precisa estar de alguma maneira relacionada com a dramaturgia. Já nos processos contemporâneos, a justificativa interna do

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ator não mais precisa relacionar-se com o texto, sequer precisa ser conhecida pelo público, diretor ou colegas atores. Mesmo num trabalho de acúmulo de elementos aleatórios, que por vezes contradiz a lógica textual, a justificativa interna e os objetivos devem estar presentes em cena para que a ação torne-se crível. Entre o texto e a ação, deve haver aí uma justificativa. Na cena do Baal com Sophie, a atriz Naiara Bertoli utilizava um estado de riso. O texto dramatúrgico fragiliza sua personagem. Porém sua risada dava um ar de deboche perante o personagem Baal. Suas ações eram extremamente críveis porque estavam justificadas: seu estado tinha um objetivo de estar em cena, bem como seu texto, gerando uma nova leitura da cena, da personagem e do espetáculo. Dentre outras possíveis aproximações que poderiam ser feitas, me detenho especialmente nessa, que considero a mais válida e diria até, necessária para o trabalho de atuação, sendo uma proposta de pesquisa experimental ou qualquer outro tipo de teatro. Comprovo aqui a importância dos estudos de Stanislávski e sua atualidade para as práticas de atuação. Bibliografia: CARREIRA, André e FORTES, Ana Luiza et al (Org.). Estados: relatos de uma experiência de pesquisa sobre atuação. Florianópolis: Editora da UDESC. 2011. STANISLÁVSKI, Konstantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1990. 4ª Edição

1 CARREIRA, André e FORTES, Ana Luiza et al (Org.). Estados: relatos de uma experiência de pesquisa sobre atuação. Florianópolis: Editora da UDESC. 2011. P. 9. 2 Ídem, P. 10. 3 Ídem. P. 17. 4 STANISLÁVSKI, Konstantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1990. 4ª Edição. P. 19. 5 Ídem. P. 19. 6 Ídem. P. 28. 7 Ídem. P. 40. 8 Ídem. P. 91.

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1

A PRÁTICA DO ESTADO COMO UM TREINAMENTO PSICO-FÍSICO DO

ATOR

André Carreira1

Marcos Bittencourt Laporta2

Resumo: Desde o ano de 2011 venho investigando no ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de

Criação Artística um procedimento de atuação por estados psicofísicos, que envolve uma vertente

laboratorial e outra através de investigações de textos teóricos de pesquisadores variados. Além disto,

com a prática do procedimento são produzidos espetáculos para verificar o procedimento em cena, como

Circus Negro, Os Pequenos Burgueses e mais recentemente Baal. Através deste artigo venho dar

continuidade aos meus estudos, acrescentando a ele a ideia do estado como uma possibilidade de

procedimento técnico psicofísico do ator à luz de uma perspectiva biológico-científica e da teoria

stanislavskiana.

A noção de estado pela práxis pessoal

Um estado compreende um procedimento psicofísico adotado pelo ator que

resulta numa sensação, que não necessariamente é uma emoção fixa. O ator atinge um

estado através de um olhar interno, no qual se volta para si. A investigação do estado do

ator pode partir de estímulos imagético-mentais ou estímulos corporais, que evocam

uma sensação dotada de especificidade e complexidade.

A investigação laboratorial se dá por uma livre exploração dos estados de cada

ator, através de exercitações individuais e em grupo, por procedimentos físico-vocais

explorados até adquirirem organicidade. Assim, surgem matrizes, que são estas ações

orgânicas, codificadas e nomeadas.

O ÁQIS vem desenvolvendo experimentações textuais com os estados, que

resultam em espetáculos, como Circus Negro, de Daniel Veronese, em 2009, e Os

pequenos Burgueses, de Máximo Górki, em 20113 e 2012. Atualmente tem-se

1 Orientador; Professor do Departamento de Artes Cênicas – CEART – Centro de Artes/UDESC –

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil. 2 Aluno do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina

– UDESC; Bolsista do ÁQIS (IC) – Cnpq. 3 Ler artigo Estados: Uma experiência inicial com o espetáculo Pequenos Burgueses, no qual relato a

experiência prática com o espetáculo.

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produzido um novo espetáculo no grupo, Baal, texto original de Bertolt Brecht e

adaptado pelo professor André Carreira, que será apresentado no International Brecht

Simposium, no mês de Maio deste ano (2013) em Porto Alegre – RS.

Até então, através da prática laboratorial, experienciei os seguintes estados:

- enjôo: foi meu primeiro estado. Conseguia chegar nele através de contrações na parte

supra e infra-abdominal e fortes contrações em diversas partes do corpo. A sensação era

extremamente intensa.

- apatia: Conseguia chegar até ele deixando o tronco cair até o chão com os braços

moles e coluna relaxada. Depois, respirava pela boca com o maxilar relaxado

intensamente, com uma respiração cortada, mesclando a respiração com movimentos

nos quadris.

- estado de alerta: Conseguia chegar a este estado através de contrações fortes e

seguidas nos joelhos, contraindo os braços e abrindo os dedos o máximo possível, além

de abrir os olhos fortemente. Minha respiração fica lenta. Também me utilizo de

estímulos imagéticos mentais: imagino que estou muito cansado, em cena num grande

palco, em frente ao público e que tenho que prosseguir com a peça e vencer o cansaço.

- tensão na respiração suspensa: suspendia a respiração ao máximo e apertava

fortemente mãos e pés, tentando manter a máxima suspensão do ar e a tensão corporal.

- choro: atinjo-o através de expirações entrecortadas pela boca e contraindo os pés. Com

a prática percebo que as imagens mentais são importantes para manter e reforçar o este

estado por um tempo mais prolongado.

- riso: atinjo-o por contrações abdominais simultâneas a imagens mentais engraçadas.

- ansiedade: procedimento de exaustão através de pulos e deixando a coluna cair ao

chão. Logo depois, desenrolo a coluna rapidamente e sacudo rapidamente as pernas.

Com a prática este procedimento foi abreviado, e agora o estado é atingido apenas

sacudindo a perna direita de modo rápido. O estado também mudou um pouco com a

prática laboratorial, de modo que a ansiedade tem sido experienciada com uma mistura

de angústia.

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- constrangimento: através de micro-tensões na mão e na pélvis e contrações no pescoço

e no peito tenho a sensação de vergonha e constrangimento, que leva a um riso

agoniado.

- formigueiro: micro-tensoes nos pés, sacudindo as pernas e com uma contração na

escápula reforço a imagem de que estou pulando num formigueiro, gostando disto e

sentido dor ao mesmo tempo. Este é um dos estados mais complexos, dos

experienciados.

Considero entre todos os elementos físicos a respiração importante para atingir

os meus estados e isto dialoga com as ideias de Artaud a respeito de um atletismo

afetivo (1993, p.152), em que associa padrões respiratórios a cada alteração da

afetividade humana:

A respiração acompanha o sentimento, e pode se

penetrar no sentimento pela respiração, sob a

condição de saber discriminadamente, entre as

respirações, aquela que convém a este sentimento.

(Artaud, 1993:156)

Assim, a respiração para Artaud é associada ao acesso a uma sensação/paixão

dotada de uma materialidade fluídica. Isto dialoga com a noção de estado, já que apesar

de haver um meio psicofísico material para alcançar um estado ele está sujeito a

flutuações, seja individualmente ou em jogo.

Uma perspectiva biológica

A investigação de um estado envolve o problema corpo-mente, que é discutido

de maneira interdisciplinar, seja nas artes ou outras áreas afins, como Psicologia ou

Biologia.

Damásio (2011, p.118) discute esta questão através do pressuposto de uma

ligação indissociável entre cérebro e mecanismos físicos. O cérebro, criador de mapas

mentais, é imbuído de um poder de literalmente introduzir o corpo como um conteúdo

do processo mental. Através do cérebro, o corpo se torna um tema natural da mente.

O estado do interior do corpo é transmitido ao cérebro por

canais neurais dedicados a regiões cerebrais específicas. [...]

com as informações químicas disponíveis na corrente

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sanguínea, essas mensagens neurais informam o cérebro

sobre o estado de boa parte do interior do corpo.

(Damásio, 2011:127)

Sendo o estado uma sensação que é associada a imagens mentais e envolto nesta

ligação corpo-mente, esta ideia de Damásio se faz pertinente a entende-lo não só a partir

de um procedimento atoral de criação, mas também a partir de uma perspectiva

fisiológica.

Um diálogo com Stanislávski

Sabe-se que a irrupção dos escritos de Konstantin Alekreev, mais conhecido

como Konstantin Stanislávski, estabeleceu uma ordem de técnicas e procedimentos do

uso do corpo-voz, através de uma consideração empírica do fato teatral que

fundamentou uma técnica para o ator.

Serrano (1982, p.57) estabelece uma linha divisória entre os dois Métodos de

Stanislávski: O primeiro em fins do século XIX, definido por Carnicke como um

sistema holístico4, busca uma introversão do ator e evocamento de algo interior ou

interno a ele, através da sua memória emotiva. No segundo sistema, desenvolvido no

início do século XX e melhorado até a morte do encenador russo, dá-se importância a

ação física que ativa emoções anteriores do ator no aqui-e-agora. Assim atesta

Magarshack (1990:54):

Las acciones físicas, grandes y pequenas, son valiosas para el

actor por su verdad claramente perceptible. Dan vida al

cuerpo del ator, que es la mitad de la vida de su papel. Son

también valiosas porque sólo através de ellas puede el actor

penetrar en la vida y en los sentimentos de su caracterización,

fácil y casi imperceptiblemente, y porque ayudan a mantener

sua atención concentrada em el cenario, en la obra y en su

papel.

O mecanismo de um estado psicofísico compreende a ações corpóreo mentais e

portanto físicas, em que o ator é um construtor de conteúdos emocionais - ainda que

complexos – e não um mero evocador – o estado não é interpretado a partir de uma

4 Do original: The first, most pervasive of these is Stanislavski´s holistic belief that mind, body and spirit

represent a psychological continuum (Carnicke, 2010:07).

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imersão psicológica strasberiana. Desta forma, o estado é uma emoção real e vivenciada

organicamente pelo ator em suas várias facetas, que são únicas a cada momento do

aqui-e-agora. Sabendo regular relativamente esta matéria fluídica de sensação, o ator

emergido no estado produz presença, pois se encontra inteiro num diálogo para em-si-

para-si e para com o outro, com os diversos elementos do espaço e as diversas personas

com as quais ele está em jogo.

Serrano (1989, p. 58) em sua análise dialética do método stanislavskiano,

considera o Método das Ações Físicas do encenador russo como uma possibilidade

única de conjugação entre introversão e extroversão ativas do ator, em que se

hierarquizam e valorizam-se comportamentos reais do ator dialeticamente vinculados

com conteúdos mentais. Um estado vai além disto, pois faz uma conjugação sem esta

hierarquização, empilhando conteúdos psicofísicos com conteúdos da cena, e assim

mantendo relativamente a relação dialética de Serrano, com seus ruídos e flutuações.

Considerações Finais

O estado num treinamento atoral, então, leva o ator a um conhecimento

profundo de si, de seu diálogo psicofisiológico, ainda que nunca haja uma síntese total

no mesmo – talvez o melhor seja não have-la, é o que torna a pesquisa do procedimento

instigante.

O treinamento psicofísico através de um estado significa um penetrar em si e

além de si, modificando o que o ator já conhece como mecanismo pessoal, numa

reconstrução constante e latente. Assim, um estado compreende um sistema/método que

não se sistematiza, que se desestabiliza, onde há um corpo-movimento inconcluído,

incompleto e inteiro, orgânico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MAGARSHACK, David; STANISLAVSKI, Konstantin. El arte escénico. Espanha:

Siglo Ventuno, 1990.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

CARNICKE, Sharon Marie. Stanislavski´s System: Pathways for the actor. In:

HODGE, Alison. Actor Training – Second Edition. Edited by Alison Hodge. New

York: Routledge, 2010. P.1-22.

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SERRANO, Raul. Dialética del trabajo creador del actor. México: Editorial Cartago,

1982.

DAMÁSIO, Antonio. E o cérebro criou o homem. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS

CORPORAIS ATÉ À DRAMATURGIA DO ATOR

ELEMENTOS DE UMA CENA DO REAL NO CINEMA DE JOHN CASSAVETES

Ana Luiza Fortes Carvalho (CAPES; Mestrado); Orientador: Prof. Dr. André

Carreira; UDESC

Nick organiza um jantar de boas vindas para Mabel, ela acaba de voltar do hospital

psiquiátrico. Sente-se inadequada nessa situação familiar repleta de regras que para ela,

mesmo após o tratamento, continuam não tendo muito sentido. De repente, a explosão. Ela

sobe no sofá, canta e dança, indiferente aos olhares perplexos dos convidados (“Mas ela não

estava curada?”) e aos pedidos de seu marido para que ela pare de fazer o que está fazendo.

Os convidados partem. A situação volta a tornar-se intima, privada, sem testemunhas, exceto

por nós que assistimos ao filme.

É importante destacar que durante toda essa sequencia não vemos Mabel, apenas a

ouvimos cantarolar. A câmera insiste em mostrar os olhares. Queremos ver Mabel. Nosso

olhar demanda uma presença que apenas pressentimos. E eis que ela surge. Para em seguida

voltar a desaparecer. Como um animal acuado, ela foge. Gritos de crianças, portas batendo.

Sangue. Ela volta a subir no sofá. Seu marido, Nick, a derruba com um tapa. As crianças

gritam e correm até a mãe.

Mabel deitada no chão, seu rosto expressa sofrimento, ternura e dúvida. Até que ela

decide se levantar: Eu só estou cansada. Ela leva as crianças para a cama, como corresponde

ao seu papel de boa mãe. Um de seus filhos diz que está preocupado com ela. Mabel

responde simplesmente: Não se preocupe. Eu sou uma adulta. Eu estou bem.Nick diz: Foi

uma noite dura,amanhã será melhor. Enquanto eles descem as escada Mabel afirma: Sabe.

Eu sou realmente louca. Eu nem sei como essa confusão toda começou. Eles descem e

começam a arrumar a sala de jantar, recolhem pratos, apagam as luzes e fecham as cortinas.

A câmera acompanha esse diálogo silencioso de forma frontal como filmando o final de uma

peça de teatro. O show terminou, mas a vida segue. Nada mudou, mas por detrás da cortina

Mabel sorri. Enquanto surgem os créditos, o telefone toca.

A situação descrita acima se configura como um fluxo contínuo. Ela se desenvolve

não respeitando qualquer lógica clássica de roteiro e de montagem. Não há pausas. Para

John Cassavetes importa registrar mais que uma situação verossímil a busca por uma

verdade, que surge da insistência em acompanhar de perto o que fazem os atores. No filme

Uma mulher sob influência (1974) a câmera de certa forma parece “perseguir”os

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personagens enfatizando os seus momentos de angústia, medo e felicidade. Ela respira com

os atores e todo o tempo ressalta as suas presenças. Mas é possível pensar no cinema esse

termo tão discutido no campo teatral? O cinema tem a capacidade de construir uma presença

meta narrativa, que perpassa a ficção para produzir uma sensação de acontecimento real no

espectador?

É preciso lembrar que no teatro, afirma-se que essa presença provém da ideia de que

o ato teatral acontece no aqui agora, de forma efêmera e não mediada por nenhum aparato

tecnológico, ao contrário do que ocorre no cinema. No entanto, vale questionar: o simples

fato de uma pessoa realizar ações frente à outras qualifica-se como presença? Aqui me

interessa discutir um estado de presença que não existe a priori, mas que se constrói

enquanto um lugar diferenciado de enunciação e que pode ou não ocorrer na relação com o

espectador.

Por essa razão, acredito que é possível pensar em uma presença cinematográfica do

ator. Visto que certos tipos de cinema parecem buscar e demandar do espectador uma

relação de fruição que ultrapassa os limites da ficção, provocando estados emocionais

potentes o suficiente para instaurar uma qualidade de presença como a que aponta Hans

Ulrich Gumbrecht, no livro Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir.

Nele, o autor aponta a produção de um efeito de presença como algo que contrapõe o

sentido e que produz sensações e afetos que não se explicam racionalmente. Para o autor,

esse efeito estabelece com o interlocutor uma relação corporal, quase de incômodo, e se

refere a momentos de intensidade em uma obra que transgridem qualquer possibilidade de

interpretação. Segundo Gumbrecht, nesses momentos é produzido um impacto que só depois

o interlocutor pode chegar a compreender.

No entanto, é interessante notar que, para o autor, não há necessariamente

prevalência de uma instância de relação sobre a outra e sim, uma dinâmica que se dá pela

tensão entre presença e sentido. Desse modo,

A relação entre efeitos de presença e efeitos de sentido também não é uma

relação de complementariedade (...) Ao contrário, podemos dizer que a

tensão/oscilação entre efeitos de presença e efeitos de sentido dota o objeto de

experiência estética de um componente provocador de instabilidade e

desassossego. (GUMBRECHT, 2010, p. 137).

Ou seja, uma obra usualmente não está dotada apenas de efeitos de presença, mas

joga no limite entre essa instância e outra, relacionada à narrativa e a produção de

significados.

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Apesar de acreditar que é possível identificar o efeito de presença em uma obra

cinematográfica, reconheço que é necessário compreender as especificidades do campo.

Especialmente no que diz respeito ao lugar de mediação da câmera, sendo necessário pensar

em um filme simultaneamente a presença como registro de algo que passou no momento da

filmagem e como um acontecimento que se dá na relação entre espectador e obra. Embora

por um lado, o cinema não conte com o nível de realidade material que o teatro proporciona,

por outro sempre estará associado a produção de uma realidade documental, sustentada pela

noção generalizada de que a câmera registra sempre algo que aconteceu de verdade.

A esse respeito, Jean- Louis Comolli (2008), afirma que, ontologicamente, desde o

primeiro filme todo o cinema se configura a partir de um nó único documental: o da

“inscrição verdadeira”, que segundo ele, é a única verdade possível ao cinema. Filmando o

que se passa em sua presença o cinema filma sempre no presente. Ou seja, apresenta o

registro de um acontecimento que permanece sempre atual na repetição daquele instante.

Desse modo, vale seguir questionando de que modo o cinema produz presença?

Como é possível reconhecê-la se não temos o ator diante de nós, em carne e osso, para servir

de testemunha de que algo está acontecendo naquele momento? Como criar vínculo com

uma imagem que passou por um processo de edição?

Em primeiro lugar é necessário apontar que a presença que me interessa pensar nesse

artigo, está relacionada com o lugar de enunciação, com uma escolha do artista, que possui

raízes nas vanguardas históricas e no movimento modernista, por inserir um gesto pessoal na

obra, um gesto de autoria. Algo que desloca o seu lugar de produtor de ficção para tornar-se

alguém que tem algo a dizer em relação ao mundo.

Esse gesto pode ser percebido na construção de procedimentos que enfatizam a

sensação de presença, como criação de um elemento vincular, no processo de alguns

cineastas, como é o caso do trabalho com os atores nos filmes de Cassavetes.

Esses cineastas não estão preocupados em produzir transparência, efeito almejado

pelo cinema clássico que visa ocultar toda e qualquer característica que revele o

procedimento de construção da obra. Pelo contrário, desejam estabelecer com o espectador

uma relação de honestidade, que permite que ele tome parte ativamente do processo de

elaboração do filme, por meio da identificação de elementos vinculares, como é o caso da

presença. Vale notar, que nesse contexto, a presença, apesar de se estabelecer a partir da

corporeidade dos atores, faz parte da construção de um real, que não diz respeito unicamente

a realidade material, configurando-se como algo que a extrapola e a resignifica.

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A partir do texto O real quando menos se espera, da pesquisadora portuguesa

Anabela Moutinho (2011), cabe seguir questionando qual é o real possível ao cinema, bem

como perguntar que tipo de realismo é admissível na realidade cinematográfica. De forma

geral, essa questão parece estar relacionada ao jogo entre ilusão e realidade que o cinema

provoca em meio à construção artificial de um efeito de realidade. Segundo a autora, no

entanto, alguns cineastas (entre os quais Cassavetes) parecem possuir uma convicção, que

ultrapassa os limites da criação desse efeito, de que todos os planos devem ser habitados por

vestígios pessoais (e não apenas por personagens e situações verossímeis).

Moutinho aponta que, por mais que esses vestígios possuam aspectos ficcionais ou

reais, sejam captados espontaneamente ou cuidadosamente construídos, nesses filmes o

ritmo da vida nos é oferecido na sua duração específica: lenta e de algum modo, enigmática.

Para a autora, o cinema que nos propõe esses cineastas, com presenças que podem ou não

produzir em nós identificação, nos remete à nossa condição humana: solitária e repleta de

faltas, mas em última instância partilhável.

Ainda segundo Moutinho, essas obras pertencem a uma categoria de filmes realistas

que querem que o cinema seja capaz de dar a ver e não só de ver. E nessa tentativa de

aproximação do real é possível perceber que os cineastas vão utilizar diferentes

procedimentos, mais ou menos manipulados, mas que implicam em um compromisso ético,

em que o filme realista produz um “gesto” que está além dele: “ao dar a ver o filme realista

faz para que outros façam.” (MOUTINHO, 2011, p. 85). Em uma atitude de transformação,

conforme aponta Moutinho, não sobre a realidade apresentada, mas sim, sobre o espectador,

que pode escolher ser afetado ou não por essa provocação.

Inserido nesse contexto, o cinema de Cassavetes nos permite identificar diversos

elementos que possuem semelhanças com o universo teatral, que o identificam como uma

obra preocupada em alcançar esse patamar idealizado pelo cinema realista de afetar o

espectador de forma oposta à da indústria do entretenimento. O seu cinema configura-se

como uma ficção registrada aos moldes do cinema direto. No qual, em dado momento, as

cenas se distorcem, a duração se alonga, as ações se repetem e a causalidade se interrompe,

reconfigurando o seu “realismo”. Ao final de um de seus filmes, a sensação é de que

assistimos algo entre uma peça de teatro e um filme, registrado por uma mise-en-scène

documental. Como ocorre na cena final de Uma mulher sob influência (1974), descrita no

inicio desse texto.

Sendo assim, vale questionar de que modo a presença atravessam os filmes de

Cassavetes? Uma resposta possível passa pela disposição do cineasta em deixar brechas em

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seus filmes que serão ocupadas e, algumas vezes, até perfuradas por aspectos da realidade,

que nesse caso, parece ter uma relação direta com o trabalho dos atores.

De acordo com Comolli, Cassavetes produz uma intensa relação física entre câmera e

atores. Filma corpos viscerais e inconscientes, habitados por toda espécie de afeto e

emoções, e dessa forma, permite o aparecimento de uma experiência particular de atuação

no cinema, que se baseia em filmar o exterior para descobrir o interior, aquilo que está

oculto.

Para o autor, no caso de Cassavetes esse feito se realiza em um ato de aprofundar

uma “verdade dos corpos”. Assim todos os ensaios exaustivos têm por objetivo fazer mudar

o estatuto da cena, “fazê-la passar da dimensão da encenação àquela da experiência (...)”

(COMOLII, 2008, P. 03.) A cena como experiência, como performance, inscreve-se nos

corpos dos atores.

A descrição de Comolli situa de forma clara os atores nos filmes de Cassavetes em

um lugar bastante próximo de algumas questões discutidas no teatro a partir do século XX.

Principalmente no que diz respeito à superação da noção de personagem para dar lugar a um

ator-criador, que insere o seu universo pessoal em cena e se utiliza do próprio corpo como

material de aproximação do real, criando um procedimento que problematiza o lugar da

ficção na contemporaneidade.

“A cena como experiência”, apontada por Comolli parece referir-se a um lugar

fronteiriço no trabalho do ator, em que ele passa a se relacionar com o ficcional da obra a

partir de uma dupla perspectiva: uma que se refere a aspectos de significação e outra que diz

respeito a uma instância da experiência pessoal ligada ao afeto. Busca-se com isso uma

ruptura com a simulação da realidade para se chegar a um lugar distinto, dotado de

organicidade e vitalidade.

Ao comentar o desenvolvimento das relações entre ator e personagem no teatro do

século XX no livro En busca del actor y del espectador, o pesquisador italiano Marco De

Marinis, apresenta uma série de pontos que permitem realizar associações entre o teatro e o

cinema de John Cassavetes.

O método das ações físicas, criado por Constantin Stanislavski e considerado

procedimento chave no desenvolvimento teatral posterior, por exemplo, tem como

característica principal o deslocamento do desenvolvimento de um papel a partir do texto

para posicionar o sujeito ator como ponto de partida da criação. Aspecto esse que podemos

relacionar sem muito esforço ao trabalho desenvolvido por Cassavetes com seus atores.

Visto que, segundo De Marinis, essa característica se relaciona também ao feito de suscitar

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sensações interiores nos atores que depois serão exteriorizadas, comentário que encontra

paralelo com o pensamento de Comolli, descrito anteriormente, a respeito do esforço do

cineasta estadunidense em filmar o exterior para revelar o interior, aquilo que está oculto e

que se relaciona com o processo particular da atuação em sua obra.

Ainda de acordo com De Marinis, outra mudança importante que as ações físicas

suscitam no trabalho do ator, é a criação de uma autonomia criativa, que força os limites

entre ator e personagem. De modo que:

o personagem se converte para o ator em um simples instrumento, um meio,

como todos os demais dos quais se serve, para ativar e modelar seu próprio

processo expressivo.(DE MARINIS, 2005, p. 36).

O que é possível perceber no processo de Gena Rowlands na criação de Mabel. Fica

evidente no filme que não há uma correspondência naturalista entre ação e narrativa e

tampouco uma linha de personagem causal, mas sim, uma ênfase na expressividade da atriz

naquela determinada situação ficcional.Nesse sentido, de acordo com De Marinis, ao

analisar o teatro de Jerzy Grotowski, é possível notar que nesses casos,

o personagem é construído pelo diretor, não pelo ator e serve para

manter a mente do espectador ocupada, para que o espectador possa

perceber (...) o processo oculto do ator. (RICHARDS apud DE

MARINIS, 2005, p. 37).

De fato, o trabalho de Cassavetes em elaborar uma narrativa que é muito básica e que

cumpre a função de criar uma linha cronológica palpável, com certo grau de continuidade, é

reflexo do seu desejo em valorizar o que os atores realizam frente a câmera.

A busca por esse tipo de procedimento (relacionado à lógica das ações físicas), para

De Marinis, diz respeito especificamente a uma tentativa de responder a seguinte pergunta:

“como (e o que) fazer para que a ação em cena seja real, isto é, obviamente não realista, mas

eficaz, crível, sincera (...)?” (DE MARINIS, 2005, p. 47).

O próprio pesquisador responde, afirmando que as ações físicas representam a

tentativa do artista em levar vida à cena, vida verdadeira, autêntica, ao trabalhar com aquilo

que se considera a verdade primária do ator: sua realidade corporal. Em direção à construção

de uma presença total, conforme descrita por Stanislavski, que se baseia na realização de

uma ação real (crível), a partir de uma dialética entre exterioridade (precisão do movimento)

e interioridade (justificação interior).

O critico de cinema Ruy Gardnier inicia uma reportagem especial sobre John

Cassavetes na revista Paisá com a seguinte citação de José Lino Grünewald:

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Os atores não estão para representar, mas representam para estar. (...) Os

personagens se dão a conhecer através do filme e não em virtude do rótulo

generalizante para um determinado conteúdo abstrato.(GRÜNEWALD apud

GARDNIER, 2006, p. 14).

Segundo Gardnier, essa característica apontada por Grünewald em relação ao filme

Acossado (1960), de Jean Luc Godard, é pertinente também para pensar o cinema de

Cassavetes. Especialmente no sentido de caracterizar um tipo de experiência

cinematográfica que coloca o espectador como alguém que acompanha a trajetória dos

personagens sem entender o todo de suas ações e sentimentos. Esse gesto, para Gardnier,

traz o espectador para o centro da cena, pois cria espaços de incerteza que ele deve buscar

preencher.

Em seguida, Gardnier utiliza uma expressão para descrever os personagens nos

filmes de Cassavetes que vai ao encontro da problemática que proponho nesse artigo. Ele

afirma que nos filmes do cineasta “os personagens são muito mais presenças físicas,

movimento, energias, do que propriamente essências, psicologias, estabilidades”

(GARDNIER, 2006, p. 14). Presenças essas que importam muito mais que a narrativa e que

colaboram para a sensação de que o cinema de Cassavetes possui características que o

aproximam do feito teatral. Seus filmes são repletos de demonstrações de que, apesar da

mediação da câmera, o que importava era captar o acontecimento vivo, privilegiando de

acordo com Gardnier, “os momentos mais do que o todo, as ações mais do que as

significações, a vibração mais do que a coesão.” (GARDNIER, 2006, p. 15). Para o critico:

Todo ser humano protagonista de um filme de Cassavetes é acima de tudo

desejante. Que transborda de vida e movimento, uma energia que é ao mesmo

tempo excessiva e autodestruitiva, mas na qual está impressa a maravilha que é

sentir-se vivo. (GARDNIER, 2006, p. 15).

Esse elemento confere aos filmes um elemento de imprevisibilidade e risco, nunca se

sabe para onde os seus personagens irão, o que nos faz esquecer, inclusive, que se trata de

uma ação filmada e portanto, já fixada. Nessa característica reside o mérito de Cassavetes

em produzir uma obra que constrói espaços de significação que pouco se relacionam com

uma lógica narrativa tradicional, para privilegiar a esfera da experiência compartilhada com

o espectador.

Nesse sentido, é possível realizar um cotejo com o pensamento de José Sanchéz no

livro Dramaturgias de la imagen quando ele afirma que o real é o que se vê. Não é o que

dizem. Nesse sentido, a presença de uma qualidade reclama a presença de outra qualidade. E

eu como espectador ao ver e reconhecer uma presença de qualidade em um ator, produzo

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outra qualidade. Ou seja, o que o ator faz me obriga como espectador a fazer. Me coloca em

cena enquanto sujeito. Trata-se de um tipo de obra que mobiliza, que desloca uma condição

de previamente determinada de recepção.

A existência de uma cena mimética que esconde o procedimento para que o

espectador “veja” uma fatia da vida, estimula a criação de um movimento artístico oposto

que se pretende vivo por si, pois almeja que a vida esteja existindo naquele momento,

gerando uma ideia de continuidade.

No teatro do século XX, de acordo com De Marinis, ficou claro que essa busca

estava necessariamente relacionada a ideia de enfatizar justamente uma forma artificial, que

pudesse eliminar do ator uma falsa espontaneidade, rompendo com seus estereótipos,

automatismos etc. Por outro lado, no entanto, segundo o pesquisador italiano,

para conquistar as qualidade da verdadeira espontaneidade, que pode

convencer e seduzir o espectador e predispor ele a uma experiência verdadeira

(estética, cognitiva, espiritual) a artificialidade e os contrastes técnicos apesar

de serem necessários, não são suficientes. Para ser real em cena é fundamental

que a ação física seja também verdadeira, isto é, orgânica, baseada em uma

correspondência exterior/interior da parte do ator. (DE MARINIS, 2005, p.48)

Em uma dialética constante entre processo artificial e processo espontâneo que cria

uma relação mais direta com o espectador. Nesses casos, a obra parece emergir de uma

relação de dupla autoria: o artista que fala do seu procedimento e o vivencia e o espectador

que constrói nos espaços vazios a sua própria experiência com aquele acontecimento.

Na obra de Cassavetes, a aproximação ao teatral, por meio do processo dos atores, é

um dos elementos que reconfigura a representação e aproxima o espectador do

acontecimento gerado pelo filme, suscitando questões, o que parece ser o grande objetivo do

cineasta, como fica claro na seguinte citação:

Eu não vou chamar meu trabalho de entretenimento. Pra mim é exploração. É fazer

perguntas pras pessoas, constantemente: Quanto você sente? Quanto você sabe? Você

está consciente disso? Você está à altura disso? Você pode com isso? Um bom filme

vai te fazer perguntas que você não se fez ainda, questões em que você não pensa

todos os dias da vida. Ou, se você já pensou nelas, você não conseguiu respostas, ou

não as colocou da mesma maneira. Filme pra mim é investigação da vida. Do que

somos. De quais são nossas responsabilidades na vida – se é que temos alguma. Do

que estamos procurando: que problemas você tem que eu tenho também? Que parte da

vida estamos ambos interessados em conhecer melhor?

A partir daí, o verdadeiro torna-se incorporado, não é mais uma simulação da

realidade. O real no contexto cinematográfico, assim como no teatral, deve ser pensado

como o lugar dos afetos e da possibilidade de voltar a confiar em algo, em uma época

dominada pela desconfiança generalizada e pela apatia em relação ao mundo e às coisas.

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REFERÊNCIAS

CASSAVETES, John. Uma mulher sob influência. Estados Unidos: Faces Distribution,

1974 (146 min.).

COMOLLI, Jean-Louis. Mais verdadeiro que o verdadeiro: o cinema de John

Cassavetes e a ilusão da vida. In:. Ver e poder – a inocência perdida: cinema, televisão,

ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

DE MARINIS, Marco. En Busca del Actor y del Espectador: Compreender el Teatro II.

Buenos Aires: Galerna, 2005.

GARDNIER, Ruy. Um desequilíbrio constitutivo. In: Revista Paisá. Ano II – N° 8. São

Paulo: Algo Mais Editora. 2006.

GUMBRECHT, Hans, Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue

transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto. 2010.

MOUTINHO, Anabela. O real quando menos se espera. Disponível em:

<http://www.bocc.ubi.pt/pag/moutinho-anabela-real-quando-menos-se-espera.pdf> Acesso

em: 20 de agosto de 2011.

SANCHEZ, José A. Dramaturgias de la imagen. 3.ed. Cuenca: Universidad de Castilla La

Mancha, 2002.

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Tema: STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS CORPORAIS ATÉ ÀDRAMATURGIA DO ATOR

Título: UM ESTUDO DE GROTOWSKI EM COMPARAÇÃO ÀS PRÁTICAS DE

STANISLAVSKI

Arthur Malaspina Junior 1; Prof. Ms. Moira Stein2 (Orientador); Centro de Artes, Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

RESUMO Este artigo expõem alguns pontos, que ora se interceptam, ora não, entre os trabalhos desenvolvidos por Grotowski e Stanislavski, ambos relacionados ao conceito de ações físicas, como: a centralidade e a prioridade do trabalho do ator sobre si mesmo, a ideia de personagem e a ressignificação do texto. O ponto chave que ajuda a compreender ao mesmo tempo a continuidade e as diferenças entre o trabalho dos dois teóricos em questão, trata-se do impulso. De Stanislavski até Grotowski, a palavra interpretação, no sentido de intérprete do texto literário e/ou dramático, veio perdendo espaço, à medida que o ator, cada vez mais, passa a ter domínio de sua arte, articulando entre corpo e alma, sem a necessidade de uma personagem. Palavras-chave: Ações Físicas; Impulso; Trabalho do Ator. Jerzy Grotowski (1933-1998) criou o Teatro Laboratório em 1959 em Opole, sudoeste da Polônia. Mas foi quando se transferiu para Wroclaw que adquiriu status de Instituto de Pesquisa Teatral, onde se dedicava a investigar o universo da arte teatral e, em particular, a arte do ator. Peter Brook define Grotowski como:

[...] uma pessoa que investigava a natureza do trabalho do ator, seu fenômeno, seu significado, a natureza e a ciência dos seus processos mentais, físicos e emocionais. [...] Um teatro de vanguarda onde pobreza não é inconveniência, onde a limitação de dinheiro não é justificativa para meios inadequados que, automaticamente, comprometem os experimentos. (BROOK, 2011 apud JERZY GROTOWSKI, 2011, p.9)

O diretor e teórico russo Constantin Stanislavski (1863-1938), fundador do Teatro de Arte de Moscou, criou o conceito de ação física, nomeada inúmeras vezes por ele mesmo como ação psico-física, onde no percurso de sua execução, as ações devem desencadear processos interiores, e provocar no ator, uma imediata necessidade de justificação das mesmas. Stanislavski aponta que:

[..] o ponto principal das ações físicas não está nelas mesmas, enquanto tais, e sim no que elas evocam: condições, circunstâncias propostas, sentimentos. O fato de um herói de uma peça acabar se matando não é tão importante quanto as razões interiores que o levaram ao suicídio. [...] Existe uma ligação inexorável entre a ação de cena e a coisa que a precipitou.

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(STANISLAVSKI, 1989, p. 3) Existem algumas conexões que poderíamos estabelecer entre o trabalho de Grotowski e Stanislavski, como a centralidade sobre o trabalho do ator, a prioridade do trabalho do ator sobre si mesmo, entre outras. Mas a ligação mais forte é aquela que diz respeito às ações físicas, pontuadas anteriormente. Grotowski as utiliza como ponto de partida do seu processo, dando continuidade ao desenvolvimento do trabalho que havia sido interrompido pela morte de Stanislavski. A relação entre o cotidiano e não cotidiano fica evidente no trabalho de ambos, o que de fato esclarece os diferentes fins de seus métodos.

Em seu trabalho, Grotowski redefine a noção de organicidade. Para Stanislavski, “organicidade” significava as leis naturais da vida “normal” que, através da estrutura e da composição, aparecem no palco e se torna arte; enquanto para Grotowski, organicidade indica algo como potencialidade de uma corrente de impulsos, uma corrente quase biológica que vem de “dentro” e que vai terminar num ação precisa. (RICHARDS, 2011, p.107)

O ponto chave que ajuda a compreender, ao mesmo tempo, a continuidade e os diferentes fins do trabalho dos dois artistas em questão, é o impulso. Este elemento era conhecido por Stanislavski, no final da sua vida, como fundamental para a construção e a manutenção das ações físicas, possibilitando ao ator estimular e reforçar os impulsos que existem dentro da ação, mas ele os associava às ações físicas no contexto da vida comum das relações: das pessoas em circunstâncias realistas da vida cotidiana, e de certas convenções sociais. Segundo Bonfitto (2002) as ações físicas funcionam como uma espécie de “iscas”, pois elas desencadeiam processos interiores no ator. Porém, mesmo com essa estruturação do método das ações físicas, Stanislavski ainda continua a falar em circunstâncias dadas, “se”, sentimentos, imaginação, entre outros, mas agora tais elementos são colocados a partir da problemática que envolve a execução das ações físicas. Outra questão ligada à ação física é a que se refere à relação entre ação externa e interna. Stanislavski buscou eliminar ao máximo os estereótipos de interpretação externas, assim limitava-se a estimular e reforçar os impulsos que estavam dentro das ações, sem as executar fisicamente, tornando-as autênticas e produtivas. Acreditando que o ator não deveria buscar o sentimento, mas sim em concentrar-se em como realizará tal ação, variando e explorando inúmeras possibilidades de como executá-la, modificando ritmo, intensidade, entre outros. Portando, o conceito de ação física envolve tanto as ações executadas exteriormente quanto as ações internas desencadeadas pelas primeiras. Stanislavski (1989) afirmava que a ação exterior alcança seu significado e intensidade interiores através do sentimento interior, e este último encontra sua expressão em termos físicos. O “impulso” para Grotowski, segundo Richards (2012), é algo que empurra de dentro do corpo e se estende para fora em direção à periferia, mas que não vem de um campo unicamente corporal. Antes de uma pequena ação física, existe um impulso, como se ela ainda estivesse praticamente invisível de fora, mas já tivesse nascido no interior do corpo. Buscava impulsos orgânicos em um corpo desbloqueado que se orienta para uma plenitude que não pertence à vida cotidiana, buscando assim não utilizar o gesto comum, ou a naturalidade cotidiana, mas sim um signo que é característico da expressão primária.

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Outro aspecto, considerado relevante para Grotowski (2011), ligado ao impulso é a justa tensão. Na qual um impulso, para ele, aparece em tensão. Quando temos a intenção de fazer alguma coisa, dentro de nós existe uma tensão certa, dirigida para fora. Não se tratando de um trabalho que envolve somente contrações musculares, mas sim o equilíbrio dinâmico entre tensão e relaxamento. Stanislavski (2010) também mantinha uma preocupação com o nível de tensão dos seus atores, pois dizia que a pressão de um músculo, num só ponto, conseguiria desiquilibrar lhe o organismo todo, espiritual e fisicamente. Richards (2011) também fez uma relação entre ação física, atividade, gesto e movimento, apontado por Grotowski, onde se concluiu que uma atividade, por exemplo, como limpar o chão, ou lavar a louça, não é uma ação física, mas pode vir a se tornar na medida em que está última tenha um “por que”, um “para quem”, ou um “contra quem”, assim haverá um ciclo de pequenas ações (ações, reações, pontos de contato), e não apenas o movimento ou gesto, sendo estes movimentos periféricos, que não nascem dentro do corpo, portanto não vivo e nem orgânico. Em Stanislavski, mesmo em sua última fase, o método das ações físicas, a alavanca geradora de ações continua a ser o texto escrito. E a construção dessas ações deve partir de conhecimentos ligados a experiências já vividas pelo ator, ou ligados a experiências sensíveis que são construídas durante o processo artístico. O ator, por meio de improvisações a partir dos dados do texto e de suas experiências pessoais, cria suas ações, estas que são atentamente observadas por ele mesmo para que depois possa resgatar esse mesmo sentimento de verdade ao executá-la novamente.

De Stanislavski até Grotowski, a palavra interpretação (no sentido de intérprete do texto literário e/ou dramático), veio perdendo espaço à medida que o ator, cada vez mais, passa a ter domínio de sua arte, articulando entre corpo e alma, na qual a ideia de “personagem” também se redefiniu. Richards menciona que o “personagem” no trabalho de Stanislavski:

[..] é um ser completamente novo, nascido da combinação entre o personagem escrito pelo autor e o próprio ator. O ator começa com seu “eu sou” e vai buscar as circunstâncias do personagem proposto pelo autor, para alcançar um estado de quase-identificação com o personagem, um novo ser. [...] A criação de uma pessoa viva, realmente viva – esse é o objetivo da verdadeira arte. (RICHARDS, 2011, p. 112)

Já no trabalho de Grotowski (2007) com o seu Teatro Laboratório, os atores

não buscavam os personagens. Os personagens, na verdade, apareciam na mente do espectador. O ator não se identificava como o “personagem”. Isso fica claro com o exemplo do Príncipe Constante de Ryzard Cieslak, onde o “personagem” foi construído através de uma montagem e era destinado, sobretudo, à mente do espectador.

No teatro de Grotowski, a formação de atores não se tratava de uma questão de ensinar algo, mas de tentar eliminar do seu organismo a resistência a esse processo psíquico, acabando, assim, com o intervalo de tempo entre impulso interior e reação exterior. É a chamada via negativa, onde não há um agrupamento de habilidades, mas uma erradicação de bloqueios. Como o próprio título do capítulo - “Vestir a personagem” - diz, Stanislavski acreditava que a caracterização externa explica e ilustra, e assim, transmite aos espectadores o traçado interior do seu papel. Então fazia uso de figurinos, adereços, maquiagem, tendo toda uma preparação anterior a peça, para que assim o ator entrasse em cena, e não fosse reconhecido pelos espectadores pela transformação que estes

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recursos tinham possibilitado. Diferentemente de Grotowski, onde a transformação ocorria enquanto a plateia assistia, de maneira pobre e usando apenas o próprio corpo e seus recursos. A expressão facial era transformada através dos próprios músculos e seus impulsos interiores. Com relação à disposição do espaço cênico, Stanislavski fazia uso da já conhecida planta de palco e auditório, pois tudo era calcado no texto e o cenário deveria reproduzir tal qual a realidade do contexto da peça, limitando assim as diversas disposições possíveis. Grotowski nos mostrou que é possível que a cada montagem esse espaço se modifique através das infinitas variações espaciais entre ator e plateia. Os atores podem representar meio aos espectadores, interagindo com a plateia, esta com um papel passivo no drama (como em Caim, de Byron e Shakuntala, de Kalidasa). Os atores podem construir estruturas entre os espectadores, incluindo-os na arquitetura da ação e submetendo-os à sensação de pressão, congestão e limitação do espaço (como em Akropolis, de Wyspianski). Os espectadores podem ficar separados dos atores, por exemplo, por uma cerca alta, acima da qual apareçam apenas suas cabeças (como em O Príncipe constante, de Calderon). Ou a sala inteira é utilizada como um lugar concreto (como a última ceia de Fausto). Grotowski foi eliminando gradativamente tudo que se mostrava supérfluo, ele percebeu que o teatro poderia existir sem maquiagem, sem figurinos especiais e sem cenografia, sem uma área separada para representação (palco), sem iluminação, sem efeitos de som, etc. Mas ele não podia existir sem a relação da percepção direta, da comunhão ao vivo entre espectador e ator. Era o chamado Teatro Pobre. Essa concepção de “teatro pobre”, despojado de tudo que não é essencial a ele, fez Grotowski chegar a sua espinha dorsal e as profundas riquezas que se encontram na verdadeira natureza desta forma de arte. Acreditavam que por meio dela, ultrapassariam suas fronteiras e limites, preencheriam seus vazios, provocariam a si mesmos e aos outros. Esse desafio aos tabus, essa transgressão, causa o choque que arranca a máscara, permitindo que nos entreguemos despidos a algo que é extremamente difícil de definir. A ideia deste artigo não é comparar ambos teóricos com intuito de minimizar um perante o outro, até porque, de Stanislavski a Grotowski temos uma divergência de contextos e formas de se pensar e fazer teatro. Grotowski sempre deixou bem claro que Stanislavski não ampliou seu trabalho sobre as ações físicas porque veio a falecer, assim não torna exclusivas e inovadoras as práticas desenvolvidas em seu Teatro Laboratório. Para ele, Stanislavski representa um marco na história do teatro, com um legado que serviu e servirá sempre como referência para investigações ainda mais profundas na prática teatral. _____________________________ 1Ator e acadêmico do curso de Teatro – Licenciatura da UFPel. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID – CAPES) na área de teatro (http://pibidteatroufpel.blogspot.com.br). Colaborador do Programa Tatá – Núcleo de Dança-Teatro (http://grupotata.blogspot.com), e do projeto Teatro em Exercício (http://teatroemexercicio.blogspot.com). Ator na Cia. Teatral Aurora (http://ciateatralaurora.blogspot.com.br) 2É professora da Universidade Federal de Pelotas, em Teoria e Prática da Interpretação Teatral, coordenadora do curso de Teatro – Licenciatura. Possui graduação em Bacharelado em Interpretação Teatral pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e mestrado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2006). Tem experiência na área de Teatro, com ênfase no Trabalho do Ator, atuando como atriz, professora, preparadora de atores e diretora, principalmente nos seguintes temas: composição cênica, improvisação, movimento, organicidade, processos de criação, treinamento do ator e voz.

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REFERÊNCIAS

BONFITTO, Matteo. O ator compositor. 2ª edição, São Paulo: Editora Perspectiva,

2007. BROOK, Peter. Prefácio. In: GROTOWSKI, Jerzy. Para um teatro pobre. Tradução

de Ivan Chagas, 2ª edição, Brasília: Teatro-Caleidoscópio & Editora Dulcina, 2011.

GROTOWSKI, Jerzy. Para um teatro pobre. Tradução de Ivan Chagas, 2ª edição, Brasília: Teatro-Caleidoscópio & Editora Dulcina, 2011.

__________________. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski: 1959 – 1969. São Paulo: Perspectiva; Sesc, 2007.

RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo, Editora Perspectiva, 2012.

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. 27ª edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2010.

_________________________. A construção da personagem. 18ª edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2009.

_________________________. Manual do Ator . São Paulo, Editora Martins Fontes, 1989.

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TEMA

STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS

CORPORAIS ATÉ À DRAMATURGIA DO ATOR

TÍTULO

ESTUDO DA ATENÇÃO

NAS AÇÕES FÍSICAS DE STANISLAVSKI

Autor: Francisco de Assis Gaspar Neto

Programa de Pós Graduação em Teatro (PPGT)

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

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Em Das ações físicas às imagens vivas, Stanislavski (1984) apresenta dois

modelos de atenção que se colocam para o ator em todas as fases do seu trabalho. Pode-

se denomina-los, segundo o próprio Stanislavski, de Clichês, por um lado e Estado

Criador Interior, por outro. O primeiro está relacionado ao modo como a atenção do ator

está voltada para as opiniões gerais e correntes a respeito do papel que ele deve

executar. Elas exercem uma pressão exterior: ao invés de entrar em contato direto com a

“vida” do papel o ator reproduz a forma externa de representações anteriores e

consagradas por outros atores. Também, pode-se reproduzir um arsenal de gestos e

trejeitos consagrados pelo senso comum, o que de qualquer forma estaria ligado à

cristalização nas interpretações. Para Stanislavski essas opiniões são clichês que se

colam ao papel, assim como as opiniões correntes a respeito da obra. O que está

implícito no modelo dos clichês é a ideia de um movimento que vai de “fora para

dentro”, das opiniões do mundo para a execução do ator. Uma imagem apropriada é a

do ator afastado intelectualmente e afetivamente da personagem, focado nas pressões

mundanas que atacam o processo de composição.

O Estado Criador Interior é a contrapartida aos clichês que de antemão apresenta

um modelo de atenção que se inicia e amadurece no interior do ator e se direciona para

a vida espiritual do papel, afastado das pressões mundanas. Contrapartida sem

reciprocidade, porque enquanto os clichês vão da vida mundana para as reproduções do

ator, o Estado Criador Interno vai das ações do ator para a vida espiritual, espaço que se

estabelece entre ator e personagem. A pergunta aqui é se é possível fazer uso de certa

descrição de um processo de suspensão do juizo habitual para explicar o funcionamento

destes dois modelos nas proposições de Stanislavski. O processo em questão é uma

nova leitura do conceito de Epoché, originalmente central na filosofia de Edmund

Husserl e revisitado por Depraz, Varela e Vermesch (2002;2006) que valorizam a

análise pragmática, ao invés da abordagem hermenêutica tradicional. Antes de

trabalharmos com o conceito é preciso defini-lo e situá-lo históricamente. A palavra

Epoché no contexto husserliano traduz-se como suspensão do juízo, enquanto a palavra

grega epokhé (εποχη) significa colocar entre parênteses. Em termos cognitivos trata-se

da atitude de colocar em suspensão uma verdade, recusando-se a dar-lhe um significado

total. A Épochè husserliana se insere na tradição filosófica ocidental como reação à

filosofia cartesiana e, mais especificamente, ao modo como Descartes faz corresponder

o indivíduo e o mundo. Para Descartes o pensamento está diretamente ligado ao mundo

e ao reconhecimento dos objetos nele contidos, ou que a mente é uma consciencia

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subjetiva que contém ideias que correspondem diretamente às coisas que estão no

mundo (VARELA, THOMPSON, ROSCH,1991), se os sentidos não atrapalharem. É

possível que dois órgãos sensoriais percebam diferentemente o mesmo objeto, mas isso

é uma falha sensível e não uma prova da não relação das idéias e dos objetos. Esse

processo ficou conhecido pela noção de intencionalidade de Franz Brentano: “De

acordo com Brentano todos os estados mentais (percepção, memória, etc.) são a respeito

de alguma coisa ou direcionados para alguma coisa” (VARELA, THOMPSON,

ROSCH,1991, p. 15). As referências mentais estão sempre direcionadas para um objeto,

ou ideia. Assim, segundo Brentano, e seguindo a tradição filosófica, a mente está

sempre intencionada para o mundo, consciente ou inconscientemente. Husserl, aluno de

Brentano, procurou extender os estudos sobre a intencionalidade, pensando-a a partir da

experiência e defini-la sem nenhuma relação com o mundo. Assim, Husserl colocou em

questão a noção de que a mente era naturalmente intencionada para o mundo e, ao

mesmo tempo, teve de repensar a idéia de experiência. O primeiro passo foi suspender a

ideia habitual de que havia uma relação direta da mente com o mundo e a essa

suspensão ele denominou de Epoché. O objetivo de Husserl era descobrir os processos

puramente mentais e reduzir a experiência humana a essas estruturas essenciais, além de

mostrar como o mundo humano é gerado a partir dela. Isso levou à conclusão de que

para conhecer o mundo era preciso conhecer a própria estrutura do conhecimento e,

consequentemente, essa estrutura só pode ser conhecida pela própria mente. Husserl

coloca no centro das suas investigações o mecanismo que leva à cognição e não as

opiniões que se colam a ela.

Em On Becoming Aware (2002) e A redução à prova da experiência (2006),

Natalie Depraz, Francisco J. Varela e Pierre Vermersch tratam da mudança de

paradigma no que diz respeito à Epoché, tendo como objetivo estabelecer as etapas do

processo pelo qual as coisas emergem à consciência. Enquanto os estudos de Husserl

ficaram no campo especulativo, o novo estudo investiga como o processo pode ser

observado na vida cotidiana. Para eles, o ciclo primário dessa nova concepção de

Epoché caracteriza-se por uma atitude ativa de suspensão da objetividade da atenção

natural na direção de uma atenção difusa, deixando emergir à consciência conteúdos

pré-refletidos, ainda indistintos e que sentimos nos habitar de modo nebuloso.

Diferentemente da atenção natural que está voltada para a necessidade de responder às

demandas da vida cotidiana a Epoché apresenta uma conversão na atenção de fora para

dentro. A atenção difusa tem caráter de abandono, de deixar-vir, uma negação do

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hábito. Estes três momentos da Epoché serão tomados aqui para estabelecer algumas

relações com o texto de Stanislavski. Eles serão trabalhados à medida que forem

encontradas relações entre eles. Em Stanislavski, esse movimento começa com as ações

físicas e vai se fortificando no corpo do ator até que este sinta interiormente como sua a

vida da personagem:

Em outras palavras, não analisamos nossas ações com a razão, friamente,

teoricamente, mas as atacamos pela prática, do ponto de vista da vida, da

experiência humana, dos nossos próprios hábitos, do nosso sentido artístico e

outros, de nossa intuição, de nosso subconsciente. Nós mesmos procurávamos

o que quer que fosse necessário para nos ajudar a cumprir nossas ações; a nossa

própria natureza vinha em nosso auxilio e nos guiava. Pensem nesse processo e

compreenderão que se tratava de uma análise interior e exterior de nós

mesmos, como seres humanos nas circunstâncias da vida do nosso papel.

(STANISLAVSKI, 1984, p. 249)

Este é o primeiro ponto para a análise de uma reversão da atenção pensada a partir do

método das ações físicas. Se ambos os modelos apresentados no início do texto podem ser

chamados de atenção, o que neles se difere? Dir-se-á que é uma diferença de qualidade e

também de força. A atenção está naturalmente voltada para a necessidade de responder às

demandas da vida cotidiana (DEPRAZ, VARELA & VERMESCH, 2006;2002). Nas atividades

habituais a atenção é naturalmente interessada no mundo. O hábito organiza as atitudes por

meio da apreensão de regularidades, estabelecendo relações a partir de esquemas sensórios

reconhecidos e objetivados. Relacionando isso aos clichês de que nos fala Stanislavski, e ao seu

vetor de dentro para fora, entende-se que naturalmente a percepção está atenta às informações

que vêm de fora, muito mais do que ao seu próprio processo de funcionamento. Escapar ao

aprisionamento do mundo é antes de qualquer coisa um gesto inabitual. A atenção natural não

se desvia voluntariamente do mundo e uma ação, não natural ou inabitual, deve necessariamente

ocorrer para que isso aconteça. Essa ação pode ser um acontecimento externo e casual, uma

ordem ou ensinamento, dados a alguém por um agente externo ou resultado de prática

individual. Mediações de caráter mundano, intersubjetivo ou individual. Em Stanislavski

encontramos um ensinamento que se espera que se tansforme em uma prática individual:

Pelo que lhes mostrei hoje, devem compreender que isso é importantíssimo.

Não é à toa que insisto em que vocês dêem a esses exercícios sua especial

atenção. Quando tiverem elaborado uma técnica semelhante à que se

desenvolveu em mim, devido ao meu longo treino, então poderão fazer o que

eu fiz. E quando conseguirem isso, a mesma vida criadora interior, além do

âmbito da sua consciência, agitar-se-á espontaneamente em vocês. Seu

subconsciente, suas intuições, suas experiências tiradas da vida, o hábito de

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manifestar qualidades em cena, tudo isto trabalhará, por vocês, no corpo e na

alma, e criará para vocês. (STANISLAVSKI, 1984, p. 242)

Trata-se da interrupção de um vetor que vai da percepção para o mundo e a sua

conversão em um vetor que vai da percepção para os seus modos de funcionamento,

assim como foi dito da redução fenomenológica anteriormente. Do exterior para o

interior. É preciso escapar das amarras do mundo e para tanto deve-se estar fortemente

treinado para isso e motivado. Outra passagem do texto de Stanislavski é, neste sentido,

emblemática: “Enquanto atuo, vou me escutando e sinto que, paralelamente à linha

ininterrupta de minhas ações fisicas, corre outra linha, a da vida espiritual de meu

papel” (Stanislavski, 1984, p. 239). Enquanto Tórtsov, personagem que enuncia a fala

acima, exercita o encadeamento das ações físicas sua atenção está voltada para o seu

interior e para um evento muito específico que se passa nele: o paralelismo ininterrupto

entre as ações físicas e a vida espiritual do papel. Eis porque, logo de início,

Stanislavski avisa que a análise do papel não pode ser meramente intelectual, agora

entendemos, com o risco de se perder o instante fugaz do encontro daquelas duas linhas.

Anuncia-se, neste momento, o segundo movimento da Epoché. A mudança na

qualidade de atenção é um ato de conversão consciente de fora para dentro. Neste, a

atenção desloca-se dos processos de construção da percepção, mais do que a percepção

dos objetos dados. A atenção focada para o interior abre espaço para a percepção dos

próprios processos de apreensão de informações. Do ponto de vista cognitivo trata-se de

um fazer específico, causado por uma mudança de atitude na relação do sujeito com o

mundo. A visada deixa de ser sobre o que se observa para o como se observa. A atenção

volta-se para os meios mais do que para as finalidades. Stanislavski mostra que isso é

necessário para se alcançar a percepção do encontro fugaz entre a vida física do ator e a

vida espiritual do papel. Mas, se essa relação não pode ser percebida por uma atenção

habitual isso deve significar que ela é muito mais fraca ou de difícil acesso. Por isso, ele

diz que, no processo inicial, o ator tem de se manter focado na consecução das ações

físicas e no foco com os objetos:

Vocês viram que eu não fiz isto por meio de uma análise puramente intelectual,

mas me estudei nas condições determinadas pelo papel, e com a participação

direta de todos os elementos interiores humanos, com o seu impulso natural

para a ação física. Não levei a ação até o fim porque tive receio de cair em

clichês. Porém, o ponto principal não está na ação propriamente, mas na

evocação natural de impulsos para agir. (STANISLAVSKI, 1984, p. 236)

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O que Stanislavski propõe é um método de germinação, de estar atento para

encontrar o que ainda não está muito claro, mas que se credita que será muito mais

potente e visível quando se alcançar:

Mas esses sentimentos ainda são transparentes, não são muito provocadores.

Ainda é dificil defini-los ou ter interesse neles. Mas isso não é um infortúnio.

Estou satisfeito, porque sinto dentro de mim o começo da vida espiritual de

meu papel disse Tórtsov. — Quanto mais vezes revivo a vida fisica, mais

definida e firme vai se tornando a linha da vida espiritual. Quanto mais

freqüentemente sinto a fusão dessas duas linhas, mais fortemente acredito na

veracidade psicofisica desse estado, e mais firmemente sinto os dois planos

de meu papel. (STANISLAVSKI, 1984, pp. 239-240)

Um ato de fé inicial dispara um processo de busca por algo que não se sabe

existir, mas é preciso se manter no percurso, atento aos menores sinais, focado na tarefa

a cumprir e nos objetos com os quais se trabalha. É bela neste sentido a imagem criada

por Depraz, Varela e Vermesch (2002, p. 8): “O caçador imóvel sabe ao menos o que

ele espera com vigilância e paciência, enquanto que, no caso em questão, há a espera

sem conhecimento do conteúdo que vai se revelar”. O ato de fé traduz-se aqui como um

ato consciente de espera ou de deixar-vir, que serve de trampolim para os saltos internos

do sistema:

Quanto mais vezes revivo a vida fisica, mais definida e firme vai se tomando a

linha da vida espiritual. Quanto mais freqüentemente sinto a fusão dessas duas

linhas, mais fortemente acredito na veracidade psicofísica desse estado, e mais

firmemente sinto os dois planos de meu papel. (STANISLAVSKI, 1984, pp.

239-240)

Não há mudança quantitativa no processo, como um conjunto de diferentes

ações que vão se adicionando em direção a um fim esperado. O que há são saltos

qualitativos dentro da repetição das mesmas ações. Um ato de fé leva à insistência nas

ações físicas e no foco com os objetos. A cada repetição as ações físicas vão

fortalecendo a consecução dos seus elos e o foco nos objetos vai aumentado a sensação

de veracidade. Sentir o que se está fazendo com um ato verdadeiro e autêntico, valida a

fé neste fazer. Aí então o processo recomeça, mas em outro plano, mais fortemente

percebido. O sistema salta sobre ele mesmo e a cada salto mais forte será a sua demanda

por atenção. A tal ponto do ator sentir que está tomado por esta força e que ela trabalha

autonomamente:

Tive a ingenuidade de pensar que estava criando as ações fisicas, que as estava

administrando. Mas na realidade, verificou-se que elas eram apenas os reflexos

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externos do trabalho criativo que além do alcance do meu consciente ia sendo

executado dentro de mim pelas forças subconscientes de minha natureza.

(STANISLAVSKI, 1984, p. 250)

Esta passagem exemplifica o terceiro movimento da Époché, o deixar-vir.

Fortemente amparado pelos dois primeiros estágios do processo o deixar-vir trás

consigo um caráter de não intencionalidade. Na vida mundana o hábito sempre nos leva

a ter atitudes objetivadas em relação àquilo que nos é oferecido à percepção, na medida

em que a atitude mais natural, mais involuntária, é a de ler e julgar esses dados

procurando oferecer uma resposta, se não acertada, pelo menos imediata, no que diz

respeito às previsões futuras. Por isso uma mudança no estatuto da atenção é realizada

por um gesto de abandono ou desapego. Deixar passar e recusar a responder. O gesto de

abandono é em si um fazer. Estranho fazer caracterizado pela recusa por um objetivo,

uma espera por algo ainda indefinido, nebuloso, que embora possa ser intuído não é de

todo apreendido.

Assim, minimamente, foi possível estabelecer um paralelo entre o método das

ações fisicas e descrição pragmática do ciclo básico da Époché apresentada por Natalie

Depraz, Francisco J. Varela e Pierre Vermersch. Ele foi apresentado como uma

sensação interna forte que responde ao ato de fé inicial e que fortalece na seqüência este

mesmo ato de fé, fazendo com que o sistema relance sobre si mesmo. Então, todo o

processo só pode ser validado por esta sensação interna qualificada somente por aquele

que a sente. Ela não pode ser medida por nenhum modelo externo, clichês e opiniões. O

próprio Stanislavski assume isso ao dizer que o ator deve se orientar pela lógica e

consecutividade das ações, traçar pequenos objetivos e dar-lhes um passado e um

futuro, doar atenção e tempo às ações físicas para encontrar suas devidas qualidades.

Finalmente, o importante é que a relação da percepção com o mundo não se constrói a

partir de duas substâncias estanques, mesmo que uma esteja diretamente direcionada à

outra, mas em gradações, planos intermediários que unem o ator à personagem, como

pontes.

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BIBLIOGRAFIA

DEPRAZ, N., FRANCISCO J. VARELA & VERMERSCH, P. On Becoming

Aware: A Pragmatics of Experiencing. Philadelphia, John Benjamins North America,

2002.

_____________________________________ A Redução à Prova da

Experiência. Arquivo brasileiro de Psicologia, v.58 n.1, Rio de Janeiro jun. 2006

STANISLAVSKI, C. A Criação de um Papel. Rio de Janeiro, Ed. Civilização

Brasileira, 1984.

VARELA, FRANCISCO J.; THOMPSON, E. & ROSCH, E. The embodied

mind. Cognitive science and human experience. Boston, MIT Press, 1991.

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A Memória emotiva de Stanislávski e o ator pós-dramático1

Professora Dra. Sandra Meyer Nunes2

Juarez José Nascimento Nunes3

Palavras – chave: Trabalho do Ator, Memória Emotiva, Ator pós-dramático.

Resumo: O presente trabalho busca fazer uma revisão do conceito memória emotiva, presente no sistema de Stanislávski a partir dos trabalhos de Théodule Ribot. De forma a poder relacioná-lo ao trabalho do ator pós-dramático.

O que o conceito de memória emotivo de Stanislávski pode trazer à luz ao trabalho do ator, especificamente ao ator pós-dramático?

Stanislávski

Buscando-se uma resposta para questão tema desse trabalho, fez-se conveniente adentrar, ainda que de forma pontual a biografia de Stanislávski em seguida dirigi-se o foco para o conceito da memória emotiva, o objeto de estudo aqui estabelecido, delimitando-se o recorte do assunto a ser tratado.

Konstantin Sergueievich Alekseiev (Stanislávski), segundo Sharon Marie Carnicke, 4 nasceu na Rússia em 1863, vivenciou as transformações científicas e sociais sucedidas entre os séculos XIX e o XX, teve contato com tradições culturais da Europa e da Ásia, foi testemunha de três grandes revoluções, uma delas a revolução bolchevique de 1917 que levou ao poder o partido comunista e teve conseqüências em todo mundo. De acordo com suas próprias palavras, o mestre 1 DISCIPLINA: INVESTIGAÇÃO CÊNICA I. Abordagens do corpo na Arte, Filosofia e Ciência; PPGT CEART/UDESC, 2011. 2 Professora Dra. Sandra Meyer Nunes, ministrante da disciplina Investigação Cênica 1, PPGT CEART/UDESC. 3 Juarez José Nascimento Nunes, mestrando do PPGT CEART/UDESC, orientado pelo professor Dr. Stephan Arnulf Baumgärtel 4 Stanislavsky System , Pathways for the actor (O Sistema [de] Stanislávski - Caminhos para o ator. Texto apresentado na disciplina Investigação Cênica 1, no mestrado do PPGT do CEART/UDESC, 2010/1, ministrada pela professora Dra. Sandra Meyer, autor da tradução desconhecido.

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russo teve “uma vida multicolorida variada, no decurso da qual foi forçado mais de uma vez a mudar suas idéias fundamentais“ (Stanislávski, 1952:3).

Stanislávski, ainda de acordo com Carnicke, foi um dos primeiros praticante do Teatro no século XX a articular a sistemática do trabalho do ator.

A Formalização da técnica de interpretação realizada por Stanislávski não constituiu um fenômeno isolado; é o resultado do interesse e da busca de muitos artistas, tais como: Antoine, Copeau, Craig e outros que tentaram fazer a revisão dos princípios básicos da arte de representar. Os problemas da formação técnica constituíam uma parte importante de suas preocupações. Os manuais dos séculos XVII e XVIII tornaram-se obsoletos. Nestes procurava-se aplicar os princípios da oratória ao trabalho de criação dos atores e sua interpretação no palco. Coube, também, a Stanislávski a importante tarefa de sistematizar os conhecimentos intuitivos dos grandes atores do passado e explicitar aos atores contemporâneos de seu tempo, como agir no momento da criação ou da realização. O seu sistema é uma quebra da tradicional maneira de ensinar, herdada dos velhos manuais que segundo afirmação sua, em 1906, se tratava de uma “gramática da atuação”.

Em 1912, afastado do Teatro de Arte de Moscou, onde encontrava resistência por parte de Dantchenko e dos atores em relação a sua técnica; cria seu primeiro estúdio a fim de trabalhar com atores que considerava mais disponíveis. Com o agravamento da crise pós-revolução bolchevique, e consequentemente da situação do Teatro na Rússia e depois de dois anos de turnê pela Europa, vivendo abaixo do cada vez mais opressor controle bolchevique escreve a Dantchenko: “A América é a única platéia, a única fonte subsidiária com a qual podemos contar” (1961: 84). Muitos dos profissionais que trabalharam com ele se deslocam para o ocidente como atores, diretores e professores, onde promovem as idéias de Stanislávski sobre o Trabalho do Ator, difundindo seu Sistema para além das fronteiras da Rússia.

Confirmando Bonfitto, como se verá adiante, Jacó Guinsburg cita as atividades de Stanislávski, na busca de uma interpretação apurada:

Nós estávamos protestando contra a forma de se atuar no palco, contra a teatrada e o pathos afetado, a declamação e a representação exageradas, contra o sistema de estrelato que arruinava o ensemble, contra o modo como as peças eram escritas, contra a insignificância dos repertórios. A fim de rejuvenescer a arte, declaramos guerra contra todos os convencionalismos do teatro: no desempenho, direção,

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cenários, trajes, entendimento das peças etc.(s.d apud GUINSBURG, 1985, p. 40).

Em Língua Portuguesa o principiante pode acessar o sistema de Stanislávski

através de quatro obras: Minha Vida na Arte, A preparação do Ator, A Construção da Personagem e A Criação de um Papel; os três últimos livros, em nossa língua, foram traduzidos por Pontes de Paula Lima, da versão feita pela norte-americana Hapgood, a qual traduziu e editou dos escritos em russo. Entretanto, estas nossas versões possuem omissões de palavras, frases, idéias e capítulos inteiros, que se originam de decisões de cortes da edição da tradutora norte-americana5.

Uma das conseqüências desta má tradução se deu, sobretudo no conceito de memória emotiva.

Meyer (2010) chama atenção para o fato de que na etimologia da palavra emoção, no latim emovere (mover para fora) encontra-se a noção de movimento; a emoção como força motriz permanente. Ainda conforme a professora do CEART/UDESC, o termo utilizado por Stanislávski, do russo, o verbo “pervezat” o seu substantivo “perevizanie” foram mal traduzidos para as teorias com ênfase na vivência emocional tendo como tradução mais correta a experiência consciente e atentiva6.

Consoante Carnicke o sistema de Stanislávski, também chamado de Método da Ação Física, teve diversos seguidores, nas várias fases em que foi desenvolvido. Um de seus alunos (Richard Boleslavski) fundou em 1925 o "Laboratório de Teatro", nos Estados Unidos. Esta iniciativa, baseada apenas na chamada "memória emotiva", causou grande impacto no teatro americano. Stella Adler foi a única norte-americana que estudou com Stanislávski, seguindo o Método de Ações Físicas (em Paris, durante 5 semanas no ano de 1934). Adler apresentou o novo método a outro teórico da representação, Lee Strasberg, que o rejeitou - motivo pelo qual Adler declarou que ele "entendeu tudo errado". De 1934, ano em que Adler estudou com ele, até sua morte em 1938, Stanislávski continuou no desenvolvimento de seu sistema, acrescentando novas idéias e reforçando as já desenvolvidas.

5 http://pt.wikipedia.org/wiki/Constantin_Stanislavski acesso em 18/06/2010. 6 Bondiá em uma conferência versa sobre o significado da experiência chamando atenção para o fato de que na sociedade da informação se passam muitas coisas, más que a experiência é cada vez mais rara; visto que a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. Ver referência bibliográfica.

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Antes de se direcionar o olhar para o conceito de memória emotiva de Stanislávski, criando condições para se verificar as possibilidades de relacioná-lo ao trabalho do ator pós-dramático; é preciso esclarecer qual o conceito de Trabalho do Ator aqui a ser utilizado.

Pavis em seu dicionário define o Trabalho de Ator assim:

No programa das escolas de atores figuram exercícios (em STANISLÁVSKI, MEIRHOLD, COPEAU, DULLIN, BRECHET, VITEZ, LASSALE) que muitas vezes dão lugar à preparação meticulosa de um fragmento de encenação. Daí a idéia de sistematizar os exercícios e trabalhos do ator que se tornam apresentações dentro da escola ou para um grupo de amigos ou de profissionais (...). Muitas vezes, atores ou aprendizes de atores se organizam entre si, e testam modos de apresentação experimentais (PAVIS, 1999 p.412).

Visando os objetivos aqui estabelecidos se utilizará o conceito do Dicionário de teatro de Patrice Pavis: O Trabalho do Ator entendido como procedimentos preparatórios de execução da encenação por parte do ator, através de exercícios que dependendo do interesse dos executantes segue-se esta ou aquela escola, como as já mencionadas por Pavis em seu dicionário.

Memória Emotiva

Estudando-se o Trabalho do Ator em Stanislávski, encontra-se no que é denominado sua primeira fase ou processos interiores o conceito de memória emotiva. Conforme Bonfitto (2002) e reafirmado acima através de Guinsburg, o trabalho desenvolvido por esse diretor russo, girou em torno da constatação de problemas referentes aos procedimentos da composição de personagens; de forma que esses procedimentos de composição se desprendessem de práticas herdadas, onde os papéis eram transmitidos já prontos “como modelos que deveriam ser reproduzidos” (2002 p,23). Na denominada primeira fase o ponto de partida do ator eram os processos interiores, visando manter-se no tempo a qualidade do trabalho do Ator. Assim Stanislávski reconhece a necessidade de se estabelecer um “estado criativo” onde o trabalho do ator em seu processo interior, segundo Bonfitto, tem a memória emotiva como o elemento mais importante de motivação em seu processo criativo, e para alcançá-lo é necessário recorrer à mente e a vontade como elementos motivacionais (2002, p.24).

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Nas obras de Stanislávski, localiza-se o conceito de memória emotiva no capitulo IX do livro Preparação do Ator, onde o mestre russo esclarece o papel da memória das emoções como técnica para o Trabalho do Ator. Para Stanislávski são as experiências tiradas do real e trasnsferidas para o papel (personagem) que darão vida as cenas e as motivações para o desencadeamento deste processo que vem do interior, sem isso considerava que a movimentação de cena se tornava mecânica. Para realizar uma interpretação verdadeira, coerente ao naturalismo; o ator, necessariamente, deveria recorrer aos seus próprios sentimentos na representação. Ou seja, saber relacionar suas experiências humanas de vida com seu trabalho de cena. Mesmo em peças simbolistas ou aquelas que se passassem no plano da fantasia. Para o diretor russo, os personagens experimentam sentimentos análogos aos que o ator pode ter sentido alguma vez na vida. Dessa forma induzia os atores a se concentrar nas situações propostas pelo autor do texto dramático e em visualizações ativas que proporcionassem uma ação idêntica à situação exigida em cena indo à direção aos objetivos da personagem, criando verossimilhança e sendo assim verdadeiro em seu sistema.

De acordo com a professora Sandra Meyer Nunes (2010) o enfoque sobre a memória dado por Stanislávski, em seu trabalho de ator, é “considerado como o aspecto subjetivo” sendo denominado “Psicotécnico”.

Ainda segundo Meyer, Stanislávski encontrará nas obras de Augusthe Théodule Ribot traduzidas em russo “uma ressonância científica para suas intuições acerca das experiências emotivas” (2010 p.201).

Más quem foi o pouco conhecido Ribot? O que há em suas obras sobre a memória emotiva que se possa encontrar no conceito de Stanislávski tornando possível associa-lo ao trabalho do ator pós-dramático?

Ribot e as emoções.

Théodule Ribot (1839-1916)7 foi responsável pela criação na França da "psicologia científica", rejeitando uma psicologia que defendia espiritismo e introspecção em favor dos fatos e os dados conhecidos: fisiológicos e biológicos. Ribot estava interessado em psicologia patológica porque para ele, isso permitia compreender mecanismos psicológicos normais. Foi influenciado pelo

7 http://pt.wikipedia.org/wiki/Th%C3%A9odule-Armand_Ribot acesso em 20/05/2010.

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evolucionismo de Herbert Spencer8, como se verá a frente Não construiu modelos. Seu trabalho era empírico e racional. Em uma edição comemorativa dos cem anos de lançamento de sua obra A Lógica dos Sentimentos, Jacó-Vilela e Rocha Monteiro (2004) afirmam que sua trajetória se inicia defendendo duas teses em filosofia, “à qual a psicologia francesa encontra-se, até meados do século XX, umbilicalmente ligada”.

A primeira versa sobre David Hartley, considerado, pelo autor, o verdadeiro fundador e organizador da psicologia associacionista inglesa. A segunda e mais relevante, discute a transmissão hereditária de doenças mentais tema que se tronará base de trabalhos posteriores (JACÓ-VILELA, ROCHA MONTEIRO, 2004 p.9)

Ribot é provavelmente mais conhecido por seu trabalho sobre regressão em amnésias, a Lei de Ribot. A lei define de uma forma lógica a disfunção progressiva da memória na doença. Primeiras a serem afetados são as memórias recentes. Em segundo lugar, memórias pessoais -, indo para baixo, para o passado. Em terceiro lugar, as coisas adquiridas intelectualmente pouco a pouco são perdidas; últimos a desaparecer são os hábitos e as memórias emocionais. Assim, a Lei Ribot refere-se à amnésia progressiva como um gradiente temporal que vai do mais recente para a mais antiga memória. Para Ribot essa lei implícita que a memória depende de modificações permanentes e organização dos neurônios, e é a sua desorganização que conduz à amnésia. A Lei Ribot considera apenas um tipo de memória, definido por uma dupla capacidade de conservação e de reprodução de alguns estados (por exemplo, uma habilidade), o reconhecimento e localização no passado que são realizadas pela consciência é exclusivamente psicológica e não constituem a memória.

O trabalho de Ribot foi importante porque representou o início da psicologia patológica, que incluiu a neuropsicologia. Dois de seus alunos influenciados por ele entraram para a história da psicologia; foram: Pierre Janet9, que o sucedeu no 8 Herbert Spencer (1820/1903) filósofo inglês e um dos representantes do positivismo; considerado o "pai" do Darwinismo social, fez campanha pelo ensino da ciência, combateu a interferência do Estado na educação e afirmou que o principal objetivo da escola era a construção do caráter. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Herbert_Spencer. Acesso em 28/07/2010. 9 Pierre-Marie-Félix Janet, (1859/1947) psicólogo e neurologista francês que fez importantes contribuições para o estudo moderno das desordens mentais e emocionais envolvendo ansiedade,

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Collège de France, e o outro foi Alfred Binet10. Os conceitos biológicos de Ribot levaram o filósofo Henri Bergson11 a escrever Matière et mémoire.

Num primeiro momento a obra de Ribot se posicionará contra a psicologia espiritualista corrente na França se expressando em 1870 em La psycologia anglaise contemporaine, onde apresenta a escola associacionista e o ideário positivista de Jhon Stuart Mill12 (1806-1873), Spencer (1820-1903), Taine13 (1828-1893), Francis Galton14 (1822-1911), nesta obra, ainda conforme Vilela:

“expõe a concepção de psicologia como ciência experimental, cuidando dos fenômenos, de suas leis e causas, e não se ocupando, portanto, nem da alma nem da essência – questões metafísicas, não verificáveis objetivamente” (2005, p.10)

Em 1879 com La Psycologie Allemande Contemporaine intensifica seus ataques a corrente metafísica e aponta as características de uma psicologia cientifica: esforço em direção a precisão, emprego da experimentação, busca de

fobias e outros comportamentos anormais. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Janet. Acesso em 28/07/2010 10 Alfred Binet (1857/1911), pedagogo e psicólogo francês, ficou conhecido por sua contribuição à psicometria, a saber, foi o inventor do primeiro teste de inteligência, a base dos atuais testes de QI. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Binet 11 Henri Bergson (1859/1941), filósofo e diplomata francês. Conhecido principalmente por Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e memória, A evolução criadora e As duas fontes da moral e da religião, sua obra é de grande atualidade e tem sido estudada em diferentes disciplinas - cinema, literatura, neuropsicologia, bioética, entre outras. Recebeu o Nobel de Literatura de 1928. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Henri_Bergson . Acesso em 28/07/2010 12 John Stuart Mill (1806/1873) foi um filósofo e economista inglês, e um dos pensadores liberais mais influentes do século XIX e defensor da teoria ética do utilitarismo. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Stuart_Mill. Acesso em 28/07/2010 13 Hippolyte Adolphe Taine (1828/1893), crítico e historiador francês, membro da Academia francesa (cadeira 25: 1878-1893). Foi um dos expoentes do Positivismo do século XIX, na França. O Método de Taine consistia em fazer história e compreender o homem à luz de três fatores determinantes: meio ambiente, raça e momento histórico. Estas teorias foram aplicadas ao movimento artístico realista. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hippolyte_Taine. Acesso em 28/07/2010. 14 Francis Galton (1822/1911), antropólogo, meteorologista, matemático e estatístico inglês. Criou o conceito estatístico de correlação e a amplamente promovida regressão em direção à média. Foi o primeiro a aplicar métodos estatísticos para o estudo das diferenças e herança humanas de inteligência, e introduziu a utilização de questionários e pesquisas para coletar dados sobre as comunidades humanas, o que ele precisava para obras genealógicas e biográficas e para os seus estudos antropométricos. Como um pesquisador da mente humana, ele fundou a psicometria (a ciência da medição das faculdades mentais) e a psicologia diferencial. Era primo de Charles Darwin e, baseado em sua obra, criou o conceito de "Eugenia" que seria a melhora de uma determinada espécie através da seleção artificial. O primeiro livro importante para a Psicologia de Galton foi Hereditary Genius (1869). Sua tese afirmava que um homem notável teria filhos notáveis. O objetivo de Galton era incentivar o nascimento de indivíduos mais notáveis ou mais aptos na sociedade e desencorajar o nascimento dos inaptos. Propôs o desenvolvimento de testes de inteligência para selecionar homens e mulheres brilhantes, destinados à reprodução seletiva. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Francis_Galton. Acesso em 28/07/2010.

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determinações quantitativas, delimitação de campo de estudo e publicação de monografias.

A partir de 1880, Ribot começa a esboçar sua visão de “psicologia fisiológica”, definida pela possibilidade de estabelecer medições no estudo do fato psíquico, e que, embora recorrendo as psicologias inglesa e alemã , não se prende nem ao associacionismo nem ao atomismo. A visão ribotiana de “experimento”, no entanto diferia bastante da então prevalente naqueles países europeus e mesmo do que hoje entendemos pelo termo (JACÓ-VILELA, ROCHA MONTEIRO, 2004 p.11).

Ribot estimulará alguns de seus discípulos, já citados, a cursarem medicina com Charcot15 na Salpêtrière além do curso de filosofia, a matriz da psicologia francesa, como já fora mencionado.

Consoante Vilela, os temas em sua segunda fase são a memória (Lês Maladies de la mémoire, 1881), a vontade (Lês maladies de lá volonté, 1883) e os estados mórbidos da personalidade (Lês maladies de la personalité, 1885).

No estudo da memória, abandonou a concepção de “faculdade da alma” adotando uma perspectiva biológica, de cunho evolucionista, que depois será seguida pela neuropsiquiatria francesa, formulou a idéia de “múltiplos sistemas de memória” o que estabeleceu a sua Lei da regressão.

A psicologia dos sentimentos de Ribot é considerada um trabalho fundamental sobre a vida emocional, constitui o ponto de partida para todos os futuros trabalhos nesta área. Ribot procurou colocar em seu devido lugar o estudo de sentimentos e emoções, enquanto tentava lutar contra o intelectualismo e mostrar que e emoção é um fato primordial que não pode ser reduzido ainda mais. Ele vê na vida emocional a sensibilidade vital ou orgânica, sem consciência,

15 Jean-Martin Charcot (1825/1893), médico e cientista francês; alcançou fama no terreno da psiquiatria na segunda metade do século XIX. Foi um dos maiores clínicos e professores de medicina da França e, juntamente com Guillaume Duchenne, o fundador da moderna neurologia. Suas maiores contribuições para o conhecimento das doenças do cérebro foram o estudo da afasia e a descoberta do aneurisma cerebral e das causas de hemorragia cerebral. Durante as suas investigações, Charcot concluiu que a hipnose era um método que permitia tratar diversas perturbações psíquicas, em especial a histeria Charcot é tão famoso quanto seus alunos: Sigmund Freud, Joseph Babinski, Pierre Janet, Albert Londe e Alfred Binet. A Síndrome de Tourette, por exemplo, foi batizada por Charcot em homenagem a um de seus alunos, Georges Gilles de la Tourette. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Martin_Charcot. Acesso em 28/07/2010.

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ou seja, tendências puramente fisiológicos vitais na consciência, em seguida, vem as emoções primitivas e, finalmente, os sentimentos mais elevados. Após Psicologia dos sentimentos (1896), escreve A Lógica dos Sentimentos (1905) e Ensaio Sobre as Paixões (1907). Em 1910 inicia cinco estudos que da o titulo de: Problemas da Psicologia Afetiva, onde passa a alegar oposição completa e absoluta entre a vida emocional e intelectual e a impossibilidade de conhecer o emocional com os processos intelectuais.

Como todo o terceiro momento da produção bibliográfica de Ribot, La logique dês sentiments demonstra bem a chamada “crise da Razão” vivida ao final do século XIX. Ribot chamará atenção para o fato de que, ao contrário do defendido pelo pensamento dominante (existência de uma única lógica, a intelectual ou racional), existe uma lógica outra, a afetiva. Para tanto, mostrará como, ao longo dos séculos, a primeira se tornou a única possibilidade de explicação, levando a crer que o racicícnio regular, isento de contradições, é inato no homem, sendo outras formas de raciocinar, como imaginação, mero fruto de desvios e anomalias (JACÓ-VILELA, 2004 p. 215)

Nesta perspectiva se observa que em Ribot afeto e ação, sentimento e atividade estão, portanto, juntos, constituindo com o intelecto a personalidade integral do ser humano, a lógica intelectiva é o juiz da lógica afetiva que é de caráter mais concreto e utilitário – porque se volta mais para as questões das necessidades humanas.

Teria advindo daí a resistência, enfrentada por Stanislávski, da parte de seus atores como fora citado acima por Carnicke? A impossibilidade de seus atores irem além dos limites da razão dominante, que desconsiderava a lógica afetiva?

Visto que Ribot se referia a memória afetiva e Stanislávski à memória emotiva; Meyer Nunes esclarece que o mestre russo “alterou o nome no começo da década de trinta, entendendo que o termo memória emotiva expressa com mais propriedade o conceito” (2010, p.201).

Salomom Merener aponta:

(...) Stanislávski evitava dirigir-se diretamente as emoções e não tentava desperta-la em seu método, mas atuava no sentido de aproximar o ator de seus conteúdos emocionais por meio da lógica de conduta da personagem. Deste modo, as recordações do já vivido surgiam de modo reflexo, tendo como parâmetro a relação indissolúvel entre o físico e o psíquico no processo de criação (MERENER apud MEYER NUNES, 2010, p. 202).

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Para Ribot “uma emoção sem sua ressonância em todo corpo não é mais do que um estado intelectual” 16 (1939, p, 161). Concordando com William James17 irá afirmar:

Ao contrário do senso comum, deve-se dizer: é porque nós choramos que nós estamos tristes, porque nós batemos que sentimos ira (cólera, raiva), porque nós trememos que nós temos medo. Suprima no medo os batimentos cardíacos, a respiração ofegante, o tremor, o enfraquecimento muscular, o estado particular das vísceras; suprima na raiva a agitação do peito, a congestão da face, a dilatação das narinas, o serrar dos dentes, a voz reprimida, as tendências impulsivas; suprima da tristeza, as lágrimas, os suspiros, os lamentos, o sufocamento, a angústia – o que restará? Um puro estado intelectual, pálido, incolor, frio. Uma emoção desincorporada, (disembodied) é um não ser (1939, p.96).

Para Ribot (1939) há dois tipos de memória afetiva: a memória afetiva verdadeira, e a memória afetiva falsa; a primeira é considerada por ele como concreta, a segunda abstrata. A memória afetiva concreta, verdadeira é uma reprodução no momento presente de um estado afetivo anterior com todas as suas características peculiares, acompanhada de manifestações orgânicas e fisiológicas que são responsáveis pelo fenômeno da emoção verdadeira. Enquanto que a memória afetiva abstrata, falsa é apenas uma representação de um acontecimento passado que não é sentido. Sendo esta a mais freqüente. Estes aspectos das memórias: verdadeira e falsa reafirmam o pensamento de Ribot para quem uma emoção sem ressonância na totalidade do corpo é apenas um estado intelectual.

No caminho de James, segundo Meyer Nunes (2010) Ribot elabora a justificativa da possibilidade de se acessar o estado afetivo, entretanto esclarece que os fenômenos orgânicos e fisiológicos que desencadeiam a emoção não são reproduzíveis apenas pela vontade.

Ao chegar a esta mesma conclusão Stanislávski; dará um passo adiante principiando o conceito de ação física. O trabalho de Ribot inaugurou um outro 16 Tradução Juarez Nunes.

17 Willliam James (1842/1910) pioneiro psicólogo e filósofo estadunidense, com formação em medicina. Escreveu sobre a então jovem ciência da psicologia, incluindo temas como a educação e a psicologia da experiência religiosa. Foi um dos formuladores e defensores da filosofia do pragmatismo, perspectiva influente nos Estados Unidos por boa parte do século XX. Acesso em 02/08/2010.

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olhar e tratamento às emoções, buscando afasta-las da retórica intelectual e localizando-as no corpo.

Um século depois se encontra Antonio Damásio, partindo, assim como Ribot, de estudos patológicos, para um olhar e forma de entender a emoção que põe em cheque a tradição filosófica ocidental racionalista; tradição esta que já nos tempo de Ribot, final do século XIX e inicio do século XX já se encontrava em crise.

Conforme Meyer Nunes (2010) se Stanislávski, ancorado em Ribot criou a “metáfora de uma casa, com muitos compartimentos, armários e gavetas” para designar a memória emotiva localizada no corpo. Damásio, ao contrario, não vendo a memória armazenada em formas de fatos ou arquivos de recordação, descreverá a memória “em forma de dispositivo”.

Não haveria imagens permanentes retidas. São registros dormentes e implícitos de objetos e eventos e eventos não presentes que se engendram com a as imagens e objetos “reais” percebidos, que são ativos e explícitos. Quando evocamos a memória recuperamos os dados sensoriais característicos, bem como os motores emocionais associados com as reações que tivemos no passado. Por isso, podemos ser conscientes de que recordamos tanto quanto do que vivemos em tempo presente (Meyer Nunes, 2010 p.204).

Esse dispositivo que para Damásio se encontra no corpo, consoante Meyer Nunes, é denominado marcador somático.

Semelhante ao marcador somático de Damásio, que teria a função de nos guiar em situações da vida, Ribot em sua perspectiva evolucionista afirmará que:

[...] a lógica dos sentimentos serve ao homem em todos os casos que ele tenha interesse teórico ou prático (no fundo sempre prático) em tirar ou justificar uma conclusão e não possa, ou não queira utilizar os processos racionais. (1904, p.38).

Ou seja, tanto em Damásio como em Ribot as emoções são regidas pelo principio da finalidade, contrariamente ao raciocínio lógico que infere tendendo a uma conclusão, exigindo um desencadeamento rigoroso e segue uma ordem linear. O emocional não

“visa uma verdade, más um resultado prático, e está sempre orientado nessa direção. Portanto, há por um lado, uma

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grande analogia de natureza a atividade voluntária, e por outro, com atividade criativa (invenção, imaginação), uma vez que quando se quer e quando se cria, o fim é estipulado de antemão e condiciona os meios” (RIBOT, 1904 p.50).

Enquanto o raciocínio lógico se isenta dos afetos e atua através de palavras ou signos abstratos do calculo, a lógica emocional atua através de estados concretos, percepções visuais, táteis, motoras. Ou seja, reafirmando o já varias vezes afirmadas a emoção é antes de ser um conceito intelectual, é uma manifestação corporal. E o entendimento desta assim se relaciona a uma perspectiva do pensar, a perspectiva de que o corpo, tal como é representado no cérebro, constitui um quadro de referência indispensável aos processos neurais que experienciamos como sendo a mente. Ainda conforme Damásio:

De acordo com essa perspectiva, os nossos mais refinados pensamentos e as nossas melhores ações, as nossas maiores alegrias e as nossas mais profundas mágoas usam o corpo como instrumento de aferição. Por mais surpreendente que pareça, a mente existe dentro de um organismo integrado e para ele; as nossas mentes não seriam o que são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro durante o processo evolutivo, o desenvolvimento individual e no momento atual. A mente teve primeiro de se ocupar do corpo, ou nunca teria existido. De acordo com a referência de base que o corpo constantemente lhe fornece, a mente pode então ocupar-se de muitas outras coisas, reais e imaginárias (DAMASIO 1995, p.17)

O que Ribot adiantou um século atrás, em a relação às emoções na configuração do pensamento, no corpo e hoje é revisto de maneira mais profunda por Damásio; aparece de forma semelhante no pensamento de Espinosa. Para Espinosa como para Ribot e Damásio o dualismo corpo alma não se faz presente.

(...) a alma e o corpo são uma só e mesma coisa e mesma que é concebida, ora sob o atributo do pensamento, ora sob a extensão (...) a ordem das ações e das paixões do nosso corpo é, de sua natureza, simultânea à ordem das ações e das paixões da alma. (ESPINOSA, 1973, p. 177).

Espinosa recusa qualquer superioridade da alma sobre o corpo, e para ele os corpos afetam e são afetados entre si. Em face disso foi feita a opção dessa breve citação sem que se entre em discussões mais pertinentes já que o objetivo aqui é outro.

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Delineado o conceito de memória emotiva de Stanislávski bem como suas origens em Ribot fazendo relações com a atualidade do trabalho de Damásio e antes que se possa buscar estabelecer relações entre este conceito e o trabalho do ator pós-dramático se faz necessário se dizer de qual ator pós-dramático esta se referindo, para em seguida traçar as conclusões deste trabalho.

O ator pós-dramático.

Dado que se trata de um conceito em gestação, assim como o próprio termo que o originou, por se tratar de uma manifestação teatral que ocorre na contemporaneidade e vem sendo estudada. Aqui se utilizará como referência as observações feitas por Matteo Bonffito em seu trabalho: O ATOR PÓS-DRAMÁTICO: UM CATALIZADOR DE APORIAS, com intuito de se delimitar o tema.

Como afirma Bonfitto:

(...) se por um lado o horizonte de elementos que caracteriza o ator pós-dramático é amplo, por outro, tal denominação institucionaliza a existência de um conjunto de manifestações expressivas teatrais que inclui, senão todos, ao menos a maioria dos nomes mais representativos da cena experimental contemporânea (2009, p.28).

Como se observa o ator pós-dramático encontra-se no campo da experimentação, o conceito Teatro Pós-dramático de Hans Thies Lehmann, ainda que sistemático não apresenta contornos definidos; bastando citar neste caso a simbiose do teatro contemporâneo com a performance ou em alguns momentos com a dança colocando o ator pós-dramático em zonas de ambigüidade ou sobreposição.

Com intuito de organizar o discurso e de aglutinar práticas executadas por atores e atrizes pós-dramáticos, Bonffito aponta três aspectos do tema em questão:

1- Presentação e Representação, 2- Processo narrativo: do linear à parataxe, 3- Actante atuante ou seres ficcionais. Por necessidade semântica de tema o professor da Unicamp/Udesc, a fim de estabelecer um recorte, chama a atenção

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para o fato de que muitos dos termos por ele utilizados recebem um ajuste semântico.

Assim, o primeiro aspecto do trabalho do ator pós-dramático é analisado a partir da colocação de Lehmann de que no Teatro Pós-dramático o texto não possui o seu posto de destaque, como ocorre no Teatro Dramático, fenômeno comumente denominado de textocentrismo. Considerar-se, também, a afirmação de Guinsburg (2001) de que: “a definição de texto dramático é preciso não ser encarada de maneira estrita e tradicionalmente em cânones literários dramáticos“, o grau de complexidade da questão aumenta.

Ao se a problematizar o papel do texto literário no teatro, se problematiza, também, a representação de personagens. Com as diferentes formas de composição dramatúrgica, conforme Bonffito, o ator está colocado entre presentação e representação.

Neste sentido o conceito de representação é visto a partir da implicação da “referencionalidade”. Representação no que diz respeito aos processos de atuação do ator, consoante Bonffito, implica no reconhecimento da existência no objeto ou no campo de observação de códigos e convenções sócio-culturais (2009, p.90). Contrariamente, considerará os processos que não sejam reconhecíveis, enquanto códigos de uma convenção sócio-cultural e que comportem em si graus significativos de autoreferencialidade como da esfera de presentação. A presentação não implica necessariamente na inexistência de um texto. Bonffito exemplifica com os trabalhos de Tadeusz Kantor e Jerzi Grotóvski; onde apesar da presença de um texto o que dará o caráter da presentação será a forma como o texto fora explorado, os modos empregados por sua utilização enquanto material (2009, p.90).

(Lembre-se que um dos aspectos pelos quais Lehmann18 definirá o teatro pós-dramático como teatro político, justificado em Lukács, será a forma deste teatro, implicando em novas formas de percepção).

A utilização de um texto não aumenta necessariamente o grau de referencialidade, já que nos modos de atuação em sua utilização pode se diluir, 18 Este aspecto do conceito do Teatro pós-dramático aparece em sua obra O Teatro pós-dramático, o autor versou sobre ele no seu Seminário Teórico: Além do Teatro Dramático – CEART/UDESC, 2010 e no Seminário Internacional – Instituto Goethe-SP/2003. .

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perdendo sua carga referencial, diante a luz, o espaço, os movimentos, ações, gestos ou mesmo com sua exploração vocal. É importante frisar, como já se viu anteriormente, que uma das características apontadas por Lehmann do Teatro pós-dramático é o fato de que os materiais de composição cênica perdem a relação hierárquica encontrada no denominado Teatro dramático, onde o texto durante séculos teve uma posição de destaque.

Eliminado o texto como fator de determinação da polaridade presentação representação o que resta?

É necessário se atentar: a determinação da referencialidade de um objeto no fenômeno da representação implica em códigos e convenções socioculturais, mas de acordo com Bonffito, este não é um elemento determinante; visto que nos espetáculos de Bob Wilson, Richard Foreman e Robert Lepage, há uma larga utilização de códigos sócio-culturais e convenções e, no entanto se encontram no campo da presentificação e não da representação. Em nota de roda pé, Bonffito, lembra que os procedimentos não codificados culturalmente podem adquirir um papel de relevância, internamente na esfera da presentificação (2009, p.91).

De certa forma Bonffito reconhece certa simetria entre representação Teatro dramática e presentificação Teatro pós-dramático, entretanto, alerta, coerentemente que a determinação de diferença entre ator dramático e ator pós-dramático, não é a mera utilização de texto ou de códigos ou convenções teatrais ou culturais, más os modos de elaboração, articulação e reinvenção de tais elementos (2009, p.91).

Se o ator dramático tem em seu horizonte de trabalho a improvisação, uma história, na maioria das vezes linear. O ator pós-dramático não devendo necessariamente contar uma história tem diante de si um leque de inúmeras possibilidades ligadas “à esfera da presentação” o que emerge é a manifestação da presença; em oposição à ilustração de situações e circunstâncias, com isso ganha relevo o corpo e suas possibilidades expressivas. Assim o ator pós-dramático tem suas competências ampliadas. Conforme Bonffito:

(...) que transitam entre teatro dramático, o circo, o cabaret, o teatro de variedades, o teatro musical, o teatro-dança e a performance, dentre outras manifestações que compõem o continum das artes cênicas ou performáticas (2009, p.93).

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Ainda que a partitura seja um elemento comum ao trabalho do ator-dramático e o pós-dramático; para o segundo a mesma se configura de forma diferente visto que no pós-dramático não contando necessariamente uma história se terá a possibilidade de rearticular ou reinventar códigos e convenções. As partituras do ator pós-dramático contem, de acordo com Bonfitto, “diferentes graus de abstração e subjetividade”. Dessa forma o ator pós-dramático desloca seu apoio de objetivos concretos como o de materializar um significado preestabelecido para produção de sentidos; partindo do material disponível sabendo distinguir a produção de significado da produção de sentido. Justificando suas ações “a partir de procedimentos e elementos que ultrapassam os oferecidos pela atuação dramática”. Bonffito chama de sentido:

O efeito de um processo de conexão entre as dimensões interior exterior do ator/performer, desencadeado a partir não de conteúdos previamente estabelecidos, más a partir dos elementos que envolvem a exploração e a execução dos materiais de atuação. Ou seja, o processo envolve especifica e primeiramente a relação entre o ator/performer através da globalidade de seus processos perceptivos e tais materiais. É a partir dessa relação, que frequentemente não é regida por uma rede semântica predeterminada, que os sentidos podem ser produzidos (2009, p.94).

Neste caso a dimensão metafórica do dentro e do fora deverá ser vivenciada pelo ator e o espectador. A dimensão pós-dramática permite ao ator/performer através da produção de sentidos vivenciada diante o espectador, produzir uma qualidade de presença que o remete a presentação, retirando-o da esfera da representação. Nesta configuração cênica, contrariamente ao que ocorre no teatro dramático não se apóia em uma “rede semântica que oriente atuadores e espectadores”.

Será a resultante dialética das tensões interiores e exteriores que preencheram as ações com sentidos, visto que o ator pós-dramático não dispondo de uma história para contar tem o foco de sua atenção deslocada do “que” para o “como”. Emergindo daí outra característica da identidade desse ser em processo de formação que é o ator pós-dramático.

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Colocado por Lehmann19 que os procedimentos no teatro pós-dramático remetem a uma estrutura não linear colocando fim na hierarquia entre os elementos dessa estrutura “o ator pós-dramático atuará em muitos casos em uma estrutura caracterizada pela parataxe”.

A filosofia instaurou que se deve “considerar a multiplicidade das coisas e dos seus variados aspectos na ótica da unidade conceptual” (Reale,2002 p.20) O discurso hipotáxico, o discurso nascente da filosofia, tem a ligação de uma proposição principal ligada a outras que dela dependem e são subordinadas, enquanto que no discurso paratáxico, do qual menciona Bonffito, o procedimento sintático se desvela, através de uma série de proposições coordenadas e, portanto, sem nexo estrutural e funcional de subordinação e dependência. Assim no discurso em questão não se encontra nexo lógico preciso; derivando algumas conseqüências, ao trabalho do ator pós-dramático, como as já mencionadas.

Se o ator se encontra no espaço do discurso paratáxico sem uma história linear a referencia personagem se desmancha no ar.

Devido às conotações dadas ao termo personagem, sobretudo no ocidente, Bonffito utiliza, por achá-lo mais adequados e abrangentes os termos: actante atuante ou ser ficcional.

O deslocamento para o campo do discurso paratáxico, além de remeter o ator pós-dramático na esfera da composição de seres ficcionais o posicionam no terreno da autoreferencialidade conferindo-lhe um caráter autoral. Esse caráter autoral é conseqüência de uma estrutura na qual esta apoiado que lhe possibilita produzir sentidos, qualidades expressivas que emergem:

“a partir de sua relação pragmática com os materiais de atuação, ou seja, de seu modus operandi. Portanto, determinados processos subjetivos serão necessariamente evocados e, consequentemente, pode-se falar de um grau mais perceptível de criação, digamos autoral” (Bonffito, 2009 p. 97).

Sendo assim é atribuição do ator pós-dramático saber como dar vida a diferentes materiais, que produzirão por sua vez seres ficcionais.

19 Informação dada no Seminário Além do Teatro dramático – CEART/UDESC, 2010.

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Para Bonffito as praticas e procedimentos como: montagem, repetições, risco, presente continuo, ritualização das ações, musicalidade das ações, corporeidade como matriz de ocorrências expressivas etc. que o ator pós-dramático utiliza para “compor ou incorporar” seres ficcionais o deslocam das esferas conceituais de indivíduos ou tipos humanos. (2009, p.98). Assim as matrizes que geram materiais de atuação, do ator pós-dramático, se relacionam com a exploração de processos perceptivos, constitutivos de experiências e não de ilustração de histórias ou teses de qualquer gênero.

Resumindo: o ator pós-dramático não é reprodutor de código e convenções teatrais, não é ilustrador de histórias lineares; o ator pós-dramático deve possuir a capacidade de transitar em diversas linguagens, de compor partituras partindo de materiais abstratos ou subjetivos, dando sentido através das relações que estabelece com os materiais de atuação. Para Bonffito (2009) o ator pós-dramático aparenta ser um catalisador de fissuras ante a gama de inúmeros processos, às vezes ainda não teorizados ou solucionáveis, ou seja, um catalisador de aporias20.

Catalisando Aporias

O que faz do ator pós-dramático um catalisador de aporias, é outra coisa senão a experiência, sobretudo por se encontrar submerso em zonas de ambigüidades ou sobreposição, como se apontou acima; remetido à presentação. Este estado de presentação é o que lhe confere o caráter autoral de seu trabalho. Caráter este que o faz, necessariamente, ser um catalisador e, portanto se tornar um sujeito da experiência. Experiência que lhe confere se tornar um território de passagem.

Inserido na esfera da presentação o ator pós-dramático terá sua partituras elaboradas a partir de abstrações, experenciando a metafórica ligação dentro fora, estando na dimensão da lógica das emoções e, portanto no campo do paratáxico, do não linear. Produzirá sentido a partir de um processo subjetivo (emoções) que estão encravados em seu corpo e se manifestam a partir das relações que possa estabelecer entre o espaço onde se encontra e os demais materiais de atuação que

20 Nota de rodapé de Matteo Bonffito: O conceito de aporia foi explorado por muitos filósofos desde a Antiguidade, tais como Zenão de Eléia até os dias de hoje, (como na obra de Derrida). Apesar das múltiplas implicações que tal conceito comporta, ele remete à noção de paradoxo, a impasses sem solução, a caminhos que são inexpugnáveis.

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lhe são conferidos, incluindo-se, também, as relações que possa estabelecer com o público.

Para Nietzsche21 a melhor forma de expressão do pensamento é a dança, talvez porque quando se dança, vive-se atentamente as emoções ritmadas pelo fluxo que estas conferem ao movimento sem que seja necessário intelectualiza-las.

Conforme se apontou acima a má tradução dos termos utilizados por Stanislávski deslocaram as emoções do campo da experiência atentiva e colocaram-nas na vivência, essa abordagem das emoções proporciona a realização do fenômeno que Ribot chamou de memória falsa ou abstrata, em outras palavras emoção intelectualizada.

A intelectualização da emoção remete ao campo da informação, nos retira da esfera da experiência, assim como a intelectualização da sociedade remeteu o saber ao acumulo da informação.

Conforme Bondía:

A experiência é o que nos toca, nos afeta. Informação, intelectualização não é experiência.

Para o professor da Universidade de Barcelona, no mundo moderno atual a informação se tornou objeto e a opinião o subjetivo, uma reação automática. A velocidade de acontecimentos e a obsessão pelo consumo do novo impedem a conexão significativa com a vida. Impede a memória, pois a sucessão alucinante de eventos excita sem deixar vestígios. Torna-se sujeito da vivência pontual, tudo atravessa, excita, agita choca, mas nada acontece.

O tempo se tornou mercadoria, não se pode perder tempo.

A experiência, caminho de mão dupla do ator pós-dramático se tornou rara, visto que a vida hiperativa moderna sempre mobiliza impedindo-se de parar para pensar, olhar, escutar, sentir, atentar-se aos detalhes, suspender as opiniões, o automatismo, cultivar a atenção, a delicadeza, a arte do encontro, ter paciência, dar- 21 Informação obtida na disciplina Investigação Cênica 1, ministrada por Sandra Meyer Nunes, PPGT CEART/UDESC, 2010/1 (...) Em Português experiência é “o que nos passa”; em Francês, “ce que nous arrive”; em Italiano, “quello que nos succede”; em Inglês, “that wat is happening to us”; em Alemão, “was mir passienrt”; em Espanhol, “o que nos passa” (2001, p 210).

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se tempo e espaço, elementos presentes permanentemente na vida daquele que se propõe à experiência como o ator pós-dramático.

Estar sujeito à experiência é encontras-se ao que a palavra experiência propõe que é provar (experimentar), estar propenso a uma travessia a um espaço indeterminado e perigoso. Consoante Bondiá:

A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio e também o ex de existência. A experiência é a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fará também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo (2001, p. 24).

O ator pós-dramático na experiência é simplesmente o sujeito que ex-iste em

sua singularidade finita e imanente. É um sujeito, sujeito a submeter-se a algo, portanto, passível da instabilidade que possa decorrer do fenômeno experimentado.

Para Bondía (2001) enquanto território de passagem a experiência é uma paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo; esse sujeito é passional, é paciente não é agente. Isto não quer dizer passividade, já que assumindo uma paixão, assume-se, posiciona-se assume a responsabilidade pelo outro.

Na paixão, o sujeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso, o sujeito apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodomínio, más está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado (BONDÍA 2001, p.19)

Resultante de uma tensão entre escravidão e liberdade a paixão provoca felicidade e sofrimento, prazer e dor, com isso a paixão extrema oscila entre vida e morte. A paixão se desenvolve no horizonte da morte, como a única coisa desejada a viver e, também, como condição da possibilidade do renascimento da vida.

Assim a experiência e o sujeito da experiência, o sujeito passional ou o ator pós-dramático funda uma ordem ética em torno de um saber e uma práxis. Um saber que é o saber de experiência fundado na relação entre conhecimento e vida humana. Más, é um conhecimento mediado pela vida através da apropriação utilitária,

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implicando no modo como responde ao que vai acontecendo ao longo da vida e no modo como dá sentido aos acontecimentos que lhe acontece.

O acontecimento é comum, a experiência é singular.

A experiência é um saber concreto, encarnado em cada individuo, é intransferível, se relaciona a uma forma de estar no mundo, tem uma qualidade existencial, é por isso ética, pois é determinada por um modo de conduzir-se, tem seu estilo, portanto tem sua dimensão estética. É através da experiência e do saber dela derivado que se apropria a própria vida.

A ciência moderna tornou a experiência em um elemento de método, fazendo com que esta deixasse de ser o meio de um saber singular passando a ser método da ciência objetiva; convertendo-a em experimento, deixando de ser o que nos acontece e o modo como lhe é dado sentido.

É no campo da experiência que o ator pós-dramático se depara com uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver”, nem “pré-dizer”.

Conclusão

Ao sistematizar um processo de criação de trabalho do ator de forma a romper com a tradição então vigente Stanislávisk, influenciado por leituras de Ribot, ao cunhar o conceito de memória emotiva, posiciona o ator dramático no campo da experiência, à qual este deveria recorrer sabendo relaciona-la na execução de suas representações de personagens. Esse processo como se viu, denominado psicotécnico, tinha um caráter subjetivo.

É importante ressaltar, como se observa no exposto acima, que desde o final do século XIX as emoções vem se deslocando da interpretação racionalista dualista, sendo localizada encravada no corpo com importância fundamental nos processos do pensamento humano.

É nesta perspectiva que concebe as emoções como fenômeno orgânico, portanto físico corporal, na qual se apoiou Stanislávski para incluir em seu sistema de trabalho a memória emotiva; que se torna possível estabelecer algum aspecto

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relacional entre o conceito aqui estudado e o trabalho do ator pós-dramático, aqui apontado.

Através da revisão do conceito de emoções e compreendendo-o fora da lógica dualista do senso comum, percebe-se que os conceitos de ação física e memória emotiva de Stanislávski são conseqüências de uma busca, que em sua trajetória percebeu que toda e qualquer ação física esta imbuída de emoções, consideradas fundamentais no processo de decisão do corpo, que passa às vezes pela consciência, permitindo se aferir qual caminho seguir; e em outros momentos não; se manifestando através de impulsos, fora de controle, sendo analisada pela consciência posteriormente.

Controle tão caro ao poder, poder tão posto em cheque pelo pós-dramático.

Está no caráter político do teatro pós-dramático e no caráter autoral do trabalho do ator pós-dramático a possibilidade de se pensar trabalhar o conceito de memória emotiva herdado de Stanislávski.

É em sua forma política através de sua produção, sua montagem, em elementos como: repetições, risco, presente continuo, ritualização das ações, musicalidade das ações, na não hierarquia entre seus elementos de composição, na contraposição ao discurso hipotáxico, através da experiência tanto de quem faz como de quem participa como publico de um espetáculo pós-dramático; que se torna possível rever o conceito de memória emotiva de Stanislávski. Entendo-se a emoção fora de um viés intelectualizante, e esta como principio da ação não controlada, uma ação próxima da ritualização, onde todos apaixonadamente celebrem a vida através da arte. Vivendo uma experiência única, singular.

O que faz do teatro pós-dramático, um teatro político é o fato de sua ação buscar provocar um corte (interrupção) numa ordem pré-estabelecida levando as pessoas terem uma experiência a mais do que a proporcionada por um teatro discursivo linear, já que a mídia cumpre este papel nos informando das mazelas da vida, reproduzindo valores e mantendo tudo na sua mais perfeita ordem na esfera da informação, que como se viu não proporciona o saber da experiência e sim apenas a subjetividade da opinião.

Esta na base do trabalho do ator pós-dramático a possibilidade de experimentar o mergulho em suas emoções, visto que este gera composições de

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suas partituras de ação a partir da exploração de processos perceptivos, constitutivos de experiências estabelecidas entre ele e os materiais de atuação. Tendo como perspectiva que a lógica emocional atua através de estados concretos, percepções visuais, táteis, motoras.

E, uma vez que o ator pós-dramático tenha se tornado um sujeito da experiência, um território de passagem, estando numa zona de hibridismo, muitas vezes, com a performance que combate a divisão entre vida e arte, o mesmo passa a ter um leque de infinitas possibilidades de emaranhar-se em suas emoções que estão latentes em seu corpo, e não em seus pensamentos, que uma vez estando no pensamento se artificializam se tornam intelecto, se tornam outra coisa.

A memória emotiva é um excelente arcabouço para o ator pós-dramático, enquanto sujeito da experiência buscar através de seu trabalho de ator um corpo sem órgãos. Mas este é o tema de um outro trabalho.

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONDÍA, J.L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Fonte: http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf.Acesso em 29/08/2010. BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002. CARNICKE, Sharon Marie. Stanislavsky's sistem: Pathway for de actor in: Twentieth Century Actor Training. ed. Alison Hodge. London: Routledge, 2000. DAMASIO, A.R. O erro de Descartes – Emoção, razão e o cérebro humano. Tradução: Dora Vicente e Georgina Segurado, São Paul:Editora Schwarz Ltda, 1995. GUINSBURG, J. Stanislávski e o teatro de arte de Moscou: do realismo externo ao Tchekhovismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. GUINSBURG, J. e FERNANDES, S. O Pós-dramático: um conceito operativo? – São Paulo: Perspectiva, 2008.

NUNES, Sandra Meyer. As metáforas do corpo em cena. Florianópolis: UDESC/ANNABLUME, 2010. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. REALE, G. Corpo, alma e saúde. O conceito de homem de Homero a Platão. São Paulo: Paulus, 2002. RIBOT, Th. A Lógica dos Sentimentos; tradução, Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro: EdUERJ,2005. __________ La Psychologie des sentiments. Paris : Alcan Presses Universitaires de Paris, 1904. ESPINOSA, B. Vida e. Obra Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. STANISLÁVSKI, K. A Preparação do Ator. Tradução: Pontes de Paula Lima (da tradução norte-americana). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1964. _________________ A Construção da Personagem. Tradução: Pontes de Paula Lima (da tradução norte-americana). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1970

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__________________A Criação de um Papel. Tradução: Pontes de Paula Lima (da tradução norte-americana). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1972 __________________Minha Vida na Arte. Tradução de Paulo Bezerra (do original russo). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1989.

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS CORPORAIS ATÉ À DRAMATURGIA DO ATOR

DE STANISLÁVSKI A BARBA: A DRAMATURGIA DA DANÇA DOS ORIXÁS EM AUGUSTO OMOLÚ

Julianna Rosa de Souza (Bolsa de Mestrado CAPES); Orientadora: Profa. Dra. Maria Brígida Miranda; Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT / UDESC). Neste artigo o objetivo é partir da “dramaturgia da dança dos orixás” de Augusto Omolú, o qual era ator/dançarino negro e integrante do Odin Teatret dirigido por Eugenio Barba e identificar em seu trabalho artístico algumas contribuições e/ou reflexões sobre a ação física – termo cunhado por Constantin Stanislávski. Quem foi Augusto Omolú?

Nasce no ano de 1962, no estado da Bahia Augusto José da Purificação Conceição, conhecido artisticamente como Augusto Omolú. Coreógrafo, dançarino e artista, ator/dançarino integrante do grupo dinamarquês Odin Teatret (dirigido por Eugenio Barba). Augusto desenvolvia uma técnica pessoal chamada: Dramaturgia da Dança dos Orixás, onde trabalhava com a ressignificação dos movimentos da Dança dos Orixás do Candomblé.

Recentemente, em específico, no dia 02 de junho de 2013, Augusto foi violentamente assassinado em sua Chácara Omolú no Bairro de Buraquinho, em Salvador. Com esta brutalidade e violência, interrompe-se seu ciclo de vida e arte, ficando em aberto seu trabalho e sua técnica pessoal.

Neste escrito, utilizarei uma entrevista realizada em 2012, em Porto Alegre como fonte e fundamento para o debate sobre a técnica de Augusto Omolú e consequentemente a possível relação com o conceito de ação física de Stanislávski. A entrevista citada integra minha pesquisa de mestrado em teatro e, portanto, não foi publicada. Dessa forma, compreendo que as anotações, os vídeos, fotos e também as lembranças (memórias) do tempo em que pude estar com ele em Salvador serão elementos complementares para aprofundar a presente discussão.

Para compreender o processo de ressignificação e seus desdobramentos na Dramaturgia da Dança dos Orixás é importante explicar que o Candomblé é uma religião de matriz africana, onde cada orixá possui uma “dança”, ou seja, segundo Augusto: “cada dança dos orixás pode ter de vinte a trinta movimentos, porque os orixás se comunicam com os movimentos, com as codificações, cada orixá conta

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uma história” (Entrevista não publicada, concedida em maio de 2012, Porto Alegre).

Destaco que Augusto Omolú – o qual já traz em seu nome artístico o nome do Orixá OMOLÙ - desde pequeno vivia neste universo do candomblé. Em entrevista, ele diz:

Quando eu era pequeno, seis ou sete anos, tinha mania de imitar os orixás. Os orixás chegavam se manifestavam, ficavam dançando, mas eu também ficava dançando atrás, muito mais como um divertimento, não tinha noção, não tinha ideia do que estava fazendo, mas para mim aquilo tudo era meu mundo, era minha vida ali dentro da roça.

Augusto afirma que os movimentos, as danças, os rituais, a religião do candomblé faziam parte da sua vida. Dessa maneira, percebo que a proximidade entre a religião e a arte aparece em sua técnica pessoal, pois estes dois polos compunham suas identidades. O desafio era, portanto, transformar estes movimentos vindos da dança dos orixás em ações físicas. Quando o movimento se transforma em ação física?

Antes de explanar sobre esta passagem do movimento para a ação, é necessário acrescentar que as contribuições de Jerzy Grotowski delinearam ainda mais o conceito de Ação Física, diferenciando-o de Movimento, Gesto e Atividade.

O ator Thomas Richards (em seu livro Trabalhar com Grotowski) traz a fala do diretor polonês:

É fácil confundir ações físicas com movimentos. Se estou caminhando em direção à porta, não é uma ação, é um movimento. Mas se estou caminhando em direção à porta para contestar “suas perguntas”, para ameaça-lo de interromper a conferência, então haverá um ciclo de pequenas ações e não apenas movimentos (Richards, 2012, p. 86- 87).

Diante desta citação é possível estabelecer dois aspectos: (1)

toda ação deve possuir uma intenção e (2) os movimentos podem sugerir, ou indicar, situações para desenvolver um ciclo de pequenas ações. Nesta citação abriga-se a concepção de Grotowski, entretanto, através dos estudos da Profa. Dra. Sandra Meyer Nunes (2009) é possível lembrar que:

Stanislávski e Grotowski propuseram novos entendimentos acerca de como o ator conhece e elabora seus processos cognitivos [...] A noção de ação física teve um papel

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central na nova configuração pedagógica, ressaltada como chave para que a criação e a emoção surgissem, já que não poderiam ser despertadas pela vontade ou consciência do ator. Ao invés de evocar um estado mental ou emocional inicial, Stanislávski entendeu que o ator deveria acionar a materialidade do seu corpo. É quando concebe o método das ações físicas (Nunes, 2009, p. 14).

Mais adiante Nunes reitera: “Foi Stanislávski que formulou a

necessidade do trabalho de laboratório e ensaios, como processos criativos sem o vínculo direto com a cena e sem espectadores, desenvolvendo um procedimento continuado junto aos atores” (Nunes, 2009, p. 73).

Ao sistematizar estes processos criativos e pensa-los enquanto pedagogias para os atores, Stanislávski esboça os primeiros traços da ação física, embora inicialmente tenha trilhado caminhos apontando para uma “memória emotiva”. O que busco ressaltar neste parágrafo é a transformação dos conceitos, os quais com o passar dos anos foram sendo afetados (modificados) seja pelos motivos de traduções, ou mesmo com as contribuições de outros diretores. A meu ver, Stanislávski deixou portas abertas para que outros pensadores e criadores da arte teatral pudessem adentrar e visualizar o fazer teatral de diversos ângulos.

O diretor italiano Eugenio Barba foi destes pensadores que com a criação do Odin Teatret e da ISTA (International School of Theatre Anthropology) funda suas teorias e práticas teatrais. Augusto Omolú começa a trabalhar com Barba em 1994, vai para a ISTA e dez anos depois começa a integrar o grupo Odin, e neste contexto percebe no teatro a possibilidade de transformar os movimentos da dança dos orixás em ação. Em entrevista Augusto conta:

Eu trabalho isto em minhas aulas, com os alunos, onde inicio com orixás, os movimentos e depois trabalhamos com a improvisação. Então, vamos transformando todos os movimentos de dança em ações. Até que você já não vê mais o orixá. É como se o orixá fosse o movimento de partida, e de repente você elimina o orixá e fica somente com a energia. Nesse momento, é transformar a dança em teatro, o movimento da dança é transformado em ações (Entrevista não publicada, concedida em maio de 2012, Porto Alegre).

A partir desta fala de Augusto, observo outro aspecto, na

passagem do movimento para a ação: a energia.

Energia, um passo ou impulso para ação.

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A energia é fundamental, pois como define Barba, a energia é

“justamente este estar pronto para ação, a ponto de produzir trabalho” (Barba, 1994, p. 84). Em seu livro Canoa de Papel Barba esmiúça esta concepção e chama-a de sats. “O sats é o momento no qual a ação é pensada-executada por todo o organismo [...] é o ponto no qual se está decidido a fazer” (1994, p. 84). Barba ainda afirma que “a energia pode ficar suspensa numa imobilidade em movimento” (1994, p. 84). Seria neste instante o ponto de transformação do movimento em ação, que Augusto buscava em sua Dramaturgia da Dança dos Orixás? Como se pode traduzir esta “imobilidade em movimento”? O diretor italiano dá mais algumas indicações sobre isto:

Não está ligado somente à imobilidade dinâmica. Numa sequência de ações, é uma pequena descarga de energia que faz mudar o curso e a intensidade da ação ou a suspende improvisadamente. É um momento de transição que desemboca numa nova postura bem precisa, uma mudança de tonicidade do corpo inteiro (Barba,1994, p. 86).

Diante desta citação e das explanações feitas até aqui, percebo a intencionalidade e a energia como pontos chaves para o desenvolvimento das ações físicas, onde a primeira pode gerar a dramaturgia e a segunda a presença e/ou organicidade do ator na cena. No caso de Augusto Omolú, havia uma utilização do movimento encontrado na dança dos orixás, consequentemente se descobria uma estrutura universal dos movimentos, onde cada orixá trazia determinada energia e intensidade específicas. Assim, o desafio era este impulso e contra-impulso entre uma universalidade do movimento e uma especificidade de energia de cada orixá. Consequentemente, na composição das partituras, a tensão entre a universalidade e especificidade dava dinamicidade à ação, criando assim a dramaturgia da dança dos orixás. É claro que para cada espectador esta dramaturgia é traduzida de um modo, Augusto Omolú deixa isto evidente em sua fala, ao contar que:

Os orixás estão no mundo, porque eles são a natureza. Quando você começa a trabalhar com a natureza, levando a energia dos deuses, as pessoas começam então a criar uma identificação muito grande. Há pessoas que choram. Choram de emoção, sentem, por exemplo, oxum e começam a se descobrir. Começam a ter uma relação muito grande com a água, com a terra, com o ar.

Quando Augusto traz a relação dos orixás com a natureza, aponta

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para um nível de identificação tanto naquele está na posição de espectador quanto daquele que atua (ator). Sobre este envolvimento interior e exterior, espectador e ator, Renato Ferracini (2013, p. 118) destaca:

O ator busca compor com o mundo ao seu redor para, com isso e por meio disso, agir diferenciando-se em suas microações. Esse poder de composição também não deve ser confundido com causa-efeito: o atuador não se afeta para depois agir. Ele, em realidade, age com o afeto, no afeto, pelo afeto. Compõe, negocia com o meio e age com ele, e nesse processo transforma-se e transforma.

Com esta citação de Ferracini é possível perceber o que Augusto Omolú afirmava em relação à identificação dos espectadores e atores, pois longe de pensar uma causa e seu efeito, é pensa-las enquanto espirais, interligados, um afetando e sendo afetado pelo outro. Considerações Finais Neste escrito busquei identificar alguns conceitos de Constantin Stanislávski ao trabalho desenvolvido por Augusto Omolú. O conceito de ação física foi ponto fundante do debate e a partir disto a ideia de partitura de ação e dramaturgia.

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Referências Bibliográficas BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. São Paulo: Editora HUCITEC, 1994. FERRACINI, Renato. Ensaios de atuação. São Paulo: Perspectiva, 2013. NUNES, Sandra Meyer. As metáforas do corpo em cena. São Paulo: Annablume/UDESC, 2009. RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski: sobre as ações físicas. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS CORPORAIS ATÉ A DRAMATURGIA DO ATOR.

O GESTO NO RITUAL AÇOBANHÃ.1

Márcia Souza Oliveira; (orientadora) Renata Bittencourt Meira; Mestrado em Artes; Universidade Federal de Uberlândia MG.

E abra seus espaços pela extensão de seu corpo! Deixe-se levar pelo quadril Márcia! Não use o braço até que seu quadril disponibilize outra parte do corpo para a ação! Meu processo está lento no querer agir. Altere seu ritmo corporal pela expansão! Acordei com ela estalando os dedos me chamando para a agilidade. Falar. Fale seus sons, seu texto, seus gemidos, seus gritos. Falar. Guarde e inicie novamente pelas mãos! Fale seu texto pelo tônus das mãos deixando que elas direcionem sua voz! Trago veracidade na voz, essa voz pausada, clara que fala pela energia das mãos. Guarde todas as sensações a cada nova etapa da ação! A cada pausa chego mais próximo de uma energia cotim. Será melhor passar as bolinhas pelas costas se já estiver deitada. Ela agora está me tocando abrindo as palmas das minhas mãos. Entrego-me para a energia no chão. Fale! Use as mãos! Use a voz! Use o quadril em movimentos de oito! As escápulas... vá para elas com as bolinhas! Guardo. Bolinhas nos pés sem perder os movimentos do quadril! Lata d’água na cabeça! Guardo e recomeço pelo andar com raiz miudinha e braços em movimentos ondulatórios e encontro minha açobanhã improvisando seu ritual.2

Riviviscenza3 de uma Açobanhã, composição que assume o risco da palavra poética! E cujo dinamismo e contraste ocasionam a complexidade da bruxa cainana, do caipira boboca, da loucura balagadundundundum.

1 O texto é resultado de experiências corpo/orgânico vivenciadas na disciplina Corpo, Máscara e Culturas Populares; ministrada pelas professoras Drª Renata Bittencourt Meira e Drª Joice Aglae Brondani, no Mestrado em Artes da Universidade Federal de Uberlândia. 2012-2 2 Relato de vivência transcrito do Caderno do Eu na disciplina Máscara e Culturas Populares em 2012-2. 3 Riviviscenza é uma tradução para o italiano do termo russo perezivanie. A citação é encontrada em A Arte Secreta do Ator, um dicionário de Antropologia Teatral de BARBA & SAVARESE (p.138) onde Franco Ruffini expõe o sentido do termo no sistema Stanisláviski: “mente”, para Stanisláviski, significa intelecto, vontade e sentimento numa inter-relação recíproca... é a tarefa da perezivanie treinar a mente do ator a construir exigências, ou seja, estímulos que obrigam o corpo a reagir de forma adequada... É preciso que o contexto funcione como se fosse uma exigência real.

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Lugar onde estou quando o gesto se recria, atravessa-me e aciona meu corpo-mente pela linguagem, pela respiração, pela sensibilização de kundalini4, quando ao percorrer minha musculatura, se amplia sibilantemente.

E que o corpo guarde, e que a imaginação guarde para que a mente respire como se fosse real a paixão do gesto que ecoa desta pesquisa, essa proposição que me trouxe ao Ritual da Cultura Popular!

Ritual que é acionado quando açobanhã em riviviscenza oferece seus pontos baiados, suas expressões lingüísticas, a corporeidade do baio brasileiro, o popularesco sertanejo e o disforme.

Esta estética popular, em Açobanhã, é o reflexo da vida que ela carreia. Estética que ancorada na pesquisa em cultura popular de Renata Meira, onde se expõe a paradoxal situação de poder existente entre visibilidade e invisibilidade do corpo popular que é um corpo sonoro, recheado de sentido e sentimentos.5

A autobiografia de açobanhã foi sugestionada pelas características que absorvi nas relações do convívio com deficientes mentais; pelos meus fragmentos de infância (sensações, memórias, fantasias); pela imaginação (meus ecos interiores) e pelas poéticas textuais que compuseram a pesquisa corporal. E no meu corpo as referências culturais e a expressão corporal propositaram um caldo cultural.

É possível definir o que é cultural e o que é orgânico?

Nos papéis representados canto a história cartográfica do corpo apaeano6. Através dos movimentos que executo em cena,

4 O circuito de energia que sobe por trás da coluna e desce pela frente, é a manutenção dinâmica da ligação terra e céu É citado por Rodrigues em sua “Anatomia Simbólica” e faz parte das técnicas de Tai-Chi-Chuam. Pierre Wiel desenha a dinâmica ondulante que percorre o corpo humano e faz a analogia com uma serpente, “a serpente uraeus que representaria a maior força do universo: a energia. (MEIRA, p. 146) 5 Quando Renata Meira, em O Ciclo das Festas (1997) mostra o resultado de um trabalho artístico focado na Cultura Popular, ela também aponta a necessidade de um diálogo entre a Arte Performática e outras ciências permeado por interesses estéticos, intelectuais e políticos; diz sobre uma pesquisa onde há diferentes leituras por parte dos expectadores através de uma avalanche de informações sensoriais; revela pela cena como elaborou a organização de fragmentos colhidos no campo. Fragmentos estes permeados pela ambigüidade, conflitos, subjetividade das relações. 6A palavra apaeano é utilizada entre os profissionais (professores, assistentes social, pedagogas, psicólogas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, enfermeiras etc.) para denominar os portadores de deficiências que se encontram matriculados na instituição APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) localizada na cidade do Prata, em Minas Gerais. Lugar onde iniciei minha pesquisa pessoal, convivendo enquanto Arte Educadora, com profissionais e alunos da instituição. Meu contato com o universo institucional de uma APAE me proporcionou a observação do corpo do deficiente mental e da deficiência múltipla (físico, visual e auditivo. Por quatro anos consecutivos me permiti assimilar e incorporar os trejeitos, as singularidades, as emoções, a linguagem a forma de pensamento, enfim a corpo orgânico do cidadão deficiente.

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faço-me compositora das várias melodias internalizadas. Para esse outro, essa pessoa de visibilidade e invisibilidade, que represento, abro meus orifícios, meu diafragma, meu imaginário.

Trabalho de sutilezas. Resgatando musculaturas. Extremamente forte. Movimentos inteiros onde o técnico prepara o corpo para o criativo aflorar. Proposições orgânicas!

Em cena: a organicidade do corpo-mente é propiciada pelo contato com o chão. A respiração e os movimentos circulares acionam a energia vital. Ao se tornar perceptível a respiração dialoga com o tônus do movimento. O texto falado é também o verbo do movimento respiratório que alcança as extremidades corporais. A explosão do riso solto e verdadeiro é mais uma riviviscenza!

Riviviscenza também acionada pela organicidade da língua tupi guarani. Cujas palavras (que contam sobre quem re-a-presento) trazem um significado muito provocativo e ocasionam imagens preciosas e vívidas à cena.

As escolhas das palavras que acionam esta pesquisa são também seus frutos. Bruxacainanabalagadumdumdumdumkundalinicaipiraboboca dentre outras (que não foram citadas neste resumo) dizem sobre a necessidade de expressar. Corpo Apaeano insere sutileza às fisicalidades do trabalho, diferentemente da definição deficiente mental. E a palavra açobanhã se mostra mais sugestiva ao propósito ritualístico da máscara.

A escolha de uma dramaturgia ritualística popular performática que se abre para a recepção, e se apresenta dizendo quem é, e se revela energia na ação e fecha o trabalho recolhendo-se. Também se re-a-presenta...

...: Para dizer sobre as sensações e subjetividades cuja expressividade contempla a exploração sensível e cultural do meu corpo oferecendo ao repertório performático possibilidades múltiplas de comunicação.

Meira delineou para esta bricolagem uma poética textual com haicais, Leminski, Manoel de Barros, pontos cantados, roda de conversas e as leituras de pesquisadores diversos! 7

7 A Palavra Poética e o Corpo Sensível foi o nome do módulo da disciplina Corpo, Máscara e Cultura Popular, onde Meira linca seus estudos de educação somática e danças brasileiras. Renata Bittencourt Meira vem desenvolvendo acerca de dez anos uma pesquisa de consciência e expressão corporal no Instituto de Artes na UFU, e desde 2008 subsidia o Programa de Pós Graduação em Artes. Sua pesquisa aborda o corpo como um organismo sensível, com capacidade de sentir e perceber a si, ao outro e ao mundo e íntegro com suas subjetividades- pensamento, emoção, memória, imaginação. Em sua trajetória de trabalho, Renata Meira, abarca a pesquisa de campo; estudo de repertório tradicional com análise coreográfica, de movimento, de palavras poéticas e prática rítmica;

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Na cena minhas ações físicas sobrepujavam a apatia: meus segmentos corporais ganhavam audição, em minha pele se percebia vidência, minha memória se encharcava de ririviscenza. Meu corpo se reeditava para eu ser toda eu me abrindo em proposições orgânicas.

E cantei meus movimentos girando minha flor, e fiquei compositora de minhas melodias internalizadas, e virei sereia sereiando num mar de oposições. E permiti-me o encontro com uma criança, uma mulher, uma dor de sofrimento que vem de uma deformidade, uma cicatriz de alma! Riviviscenza (s) culturais.

A performance quando é analisada pelos expectadores é entendida como uma provocação cênica de um texto móvel que oferece dúvidas: O que não cabe mais em mim?

E o que fica mais forte é a questão do visível e invisível, o nosso lugar, a nossa identidade, o que a gente deixa oculto, o que a gente desvela.

Açobanhã, nome com o qual aciono a minha matriz ritualística na cena performática é a ausência do que ela representa es la própria condición de existência del “representante”. É a minha condição enquanto artista, mulher, mãe solteira, pobre, educadora, brasileira. Ela é o silêncio, a translucidez dos transparentes. A condição do negro, do índio, do congadeiro, do capoeirista, do deficiente, do louco, da criança vítima de violências (nesses seqüestros de identidades).

Açobanhã, este meu corpo/máscara da cultura popular, é o espaço de liberdade que acontece no jogo entre visibilidade /invisibilidade. As fitas coloridas que deixam entrever o rosto da performer revelam e escondem os sofrimentos; as humilhações; o estrangulamento de palavras e de sentimentos; a cor da pele (este lugar de origens múltiplas); a fome que se satisfaz nas migalhas; a solidão; o feio; o malafincado; o pesado da vida que sobrecarrega corpo; a imaginação exacerbada que rompe com as convenções; a esquizofrenia social.

O início da pesquisa de criação da máscara foi com a Joice Brondani. Ela sempre iniciava com um aquecimento (cabeça, peito, centro, quadril), e a cada encontro ia acrescentando um pequeno detalhe. Pequenos achados. Foi pelo corpo que começamos a transgredir nossos limites representacionais. Ficávamos horas a estabelecer um discurso performativo corporal transgressor onde interpretávamos os elementos fogo, ar, água, terra, cores diversas, vibrações sonoras, animais.

exercícios de criação (danças, músicas, repertório tradicional e diálogo corporal); análise de processos ensino aprendizagem e criação de práticas educativas em dança com diretrizes de educação popular.

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Os meus primeiros achados surgiram como caricaturas dentro de processos que se aproximavam de mergulhos indagatórios muito pessoais. Palavras soltas reverberaram dessa investigação onde o verbo acordar estava circunvizinhado pelo fazer, abrir, limpar, recomeçar, agir. Experiência particularizada pelas necessidades práticas. Ações de acordar-me para ser e estar de novo no começo, mesmo que a dor e o enjôo superassem o querer. E foi limpando tudo e indo adiante que comecei a perceber um corpo que trazia a dor da castração. Dor da qual era preciso me libertar. Era preciso crescer, buscando, libertando, estando viva.

E adveio meu contexto social: o lugar era uma cidade pequena para onde eu deveria levar outras propostas. O contexto cultural acatou a raiz como muito importante e com ela o desarticulado, o desengonçado, a sensualidade, a loucura e seus conceitos e seus preconceitos.

Meu corpo rompeu cristalizações, minhas articulações ganharam espaços dentro de mim. Uma máscara foi moldada e remodelada. As amplitudes dos espaços que ganhei alongaram minha percepção. Fiquei vazia. Porém caminhava para um lugar e nesta caminhada enchia o pote de mim. Partilhei experiências com outros. E esvaziei o pote assim que ele se encheu novamente. Mas o que escolhi levar? O que valeu a pena carregar?

A pesquisa me trouxe argumentos para a exploração do irreverente. A raiz foi mesmo muito importante! Ela foi o suporte após a liberação das amarras, esse rompimento da couraça. Sai da couraça com o soluço e a lágrima, pois uma couraça traz sempre o apego à dor que impede o fluxo da energia. A raiz então sustentou o corpo despertado para o novo, irrigou as energias que não estavam recebendo seu fluxo de vida.

No módulo com Renata Meira comecei a desvendar a memória com palavras alinhavadas e para isso pesquisei poéticas.

Dançando a kundalini no chão, pés buscando outras formas com as bolinhas. Fiquei compositora de minhas melodias internalizadas, uma criança, uma mulher, uma dor de sofrimento que revelava certa deformidade, denunciava uma cicatriz de alma.

Açobanhã ganhou suas características primeiras: nasceu carnavalesca, nasceu uma bruxa louca.

Pela imaginação a gente se re-edita,

pela mitologia a gente se justifica.

Meira.

Neste momento eu estava-me re-editando. Decompondo minha arquitetura e reconstruindo meu processo pessoal (pelo

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alongamento, espreguiçamento com som, com texto que não era teológico), amassando bolinhas, sentindo a pele, abrindo as articulações, locomovendo, buscando o animal, vibrando as omoplatas, as vértebras, o quadril.

Ao tentar justificar a existência desta carnavalesca que dança tal qual uma bruxa louca, descobri os dicionários e neles palavras que foram sendo alinhavadas à minhas raízes étnicas e culturas. Realizei a decomposição de signos lingüísticos que incorporei ao repertório textual e entendi que baía é um pequeno golfo, de boca estreita, que se alarga para o interior; e que do é pertencimento. Mas como o meu estado era de um desarranjo de construção, achei que a resposta encontrada não me favorecia e continuei minha visitação a vários dicionários.

Enquanto eu estava nesta procura Meira trouxe O Baião de Princesas8 e iniciamos um trabalho de sutilezas e a questão da invisibilidade surgiu. E com as melodias o texto foi se alinhavando.

Para a criação do Ritual da Cultura Popular revirei minhas cinzas em pontos cantados que dizia meus medos, minhas fantasias, minha invisibilidade. Abrindo meu ponto veio em cortejo o bicho papão, o bicho baiano, o bicho cigano; o cheiro do alho queimado na beira do Chico; assaltou-me as dores das bárbaras cenas, bárbara insana de barbacena. Apresentei-me Açobanhã. Na ação cantei a invisibilidade do biriba, do boboca, do cambá, do campenga. E fechei meu corpo guardando o que é meu.

Glossário açobanhã: a máscara

biriba: pessoa simples, mas astuta, caipira, serrano

cainana: mulher adoidada

cambá: negro africano

campenga:pessoa que puxa uma perna

malafincado: termo utilizado por Manoel de Barros em O livro das Ignorânças

8 www.barca.com.br

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REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

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2-BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.

3-BRONDANI, Joice Aglae. Varda Che baucco! Transcursos fluviais de uma pesquisatriz: bufão, commédia Dell Arte e manifestações espetaculares populares brasileiras. Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2010.

4-BUENO, Silveira. Vocabulário Tupi-Guarani-Português. São Paulo, Ed. Brasilivros, 1987.

5-DIÉGUEZ, Ileana (comp).Des/tejiendo Escenas. Desmontajes: processos de investigación y creación. México:CITRU-INBA- CNA, 2009.

6-GUINSBURG,J. Stanislávski, Meierhold & Cia.São Paulo: Perspectiva,2001.

7- LEMINSKI, Paulo. Matsuó Bashô: a lágrima do peixe. São Paulo: Brasiliense,1983.

8-LOBETO,Claudio. Prácticas Socioestéticas y Representaciones em La Argentina de La crísis. 1ª Ed, Buenos Aires: El autor,2004..

9-MEIRA, Renata Bittencourt. O ciclo das festas: uma leitura cênica da dança do fandango e das festas populares em Cananéia, l itoral sul do Estado de São Paulo. Campinas: Unicamp / Instituto de Artes, SP, 1997.

10-------------------------------------------- Baila bonito baiadô: educação, dança e culturas populares em Uberlândia Minas Gerais. São Paulo:UNICAMP, 2007.

11-NAVARRO, Fred. Dicionário do Nordeste: 5000 palavras e expressões. São Paulo, Ed. Estação Liberdade, 1987.

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1

CORPO QUE CONSTRÓI UMA DRAMATURGIA

Projeto de Pesquisa apresentado ao programa de Pós-Graduação em Artes – Curso Mestrado – Subárea Teatro – Instituto de Artes – Universidade Federal de Uberlândia. Linha de Pesquisa: Práticas e Processos em Artes.

Discente: Marly Magalhães.

Orientador: Fernando Aleixo

Esta proposta apresentada como Projeto de Pesquisa, pensada como uma carta de intenções esboça um trabalho de pesquisa que pretende atuar tendo como foco a questão da voz no trabalho do ator. Mais precisamente, a pesquisa abordará o estudo sobre o mecanismo de produção vocal no contexto do trabalho de pessoas (não necessariamente atores) portadores de alguma deficiência auditiva (surdo/mudo). A experiencização através da prática, do trabalho em grupo, do contato direto. As motivações que me levam a formular tal proposta é a possibilidade de aprofundar parte das pesquisas iniciadas na graduação quando no desenvolvimento das bolsas de iniciação científica e de iniciação artística1. Também, a ampliação da ênfase do trabalho vocal a partir do redirecionamento do objeto/foco do estudo: pessoas surdas. Tal objeto exige, necessariamente, uma abordagem interdisciplinar envolvendo estudo de linguagens, a comunicação e expressão do corpo e da voz.

Esta pesquisa, ao incorporar ações de estudo e treinamento vocal, possibilitará o desenvolvimento acadêmico e de formação técnica aliando processo de criação, reflexão e fundamentação conceitual e teórica. Nesse trabalho os termos: “voz”, “palavra”, “fala”, serão sempre citados trazendo como referência a comunicação de maneira geral, com gestos e língua de sinais, o qual o foco principal é a emissão de sons. A utilização dos vibradores/ressonadores para potencialização da emissão sonora do ator e a ação física.

1 PIBIC: A Benfazeja: O Trabalho Vocal na Composição do Tipo Teatral, 2010. PINA: A Benfazeja: Teatro e Literatura à partir de um Conto de Guimarães Rosa, 2011.

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Vibradores/Ressonadores:

“Na vibração e ressonância da voz envolvemos o corpo inteiro com todo o seu conteúdo sensível. Embora não existam comprovações científicas sobre o fenômeno da ressonância subglótica (cavidades torácica e traqueal abaixo da glote), o ator deve, no uso da imaginação, desenvolver a capacidade de produzir vozes a partir de diferentes regiões do corpo. O que lhe permite fazer vibrar em diferentes padrões as pregas vocais e, conseqüentemente, alcançar um repertório amplo de registros vocais”. (ALEIXO. 2007, p. 51)

Serão abordados os estudos do encenador Constantin Satnislavski, sobre o uso da voz em cena, sobre ações físicas, dramaturgia do corpo. Stanislavski em sua obra estabelece conceitos como os do subconsciente, da atenção, da imaginação e da memória, da visão periférica. Neste caso, o corpo que fala, o corpo que constrói uma dramaturgia, já que as pessoas envolvidas não possuem a voz falada como recurso de comunicação, e sim utilizam do corpo todo para se comunicarem.

Ao invés de responder com palavras, ergueu-se rápido, caminhou despachadamente até o palco e sentou-se com todo seu peso numa poltrona, para descansar, como se estivesse em sua casa. Não fez nem tentou fazer coisa alguma e, a sua simples postura, sentado, impressionava. (STANISLAVSKI, 1994, p. 63)

O trabalho realizado junto às pessoas surdas nos revela como elas buscam naturalmente uma maneira de interagir com os ouvintes, já que uma pequena minoria de ouvintes fala a língua de sinais, então elas buscam meios como a atenção, a memória e mesmo a imaginação para ampliar seus recursos de fala. As pessoas surdas têm uma facilidade enorme em buscar a memória emotiva, passar o sentimento pra pele, pra expressão facial e corporal sem que pareça estereótipo, tudo muito natural. A utilização da visão periférica, o falar com os olhos. A criança filha de pessoas surdas não chora quando desejam algo, porque sabem que não serão ouvidas, sendo assim utilizam de gestos, do corpo para serem entendidas. Seus corpos são trabalhados desde o nascimento para falar, para manifestar suas vontades, quando em cena esse corpo é um verdadeiro espetáculo.

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Um exemplo claro desta potencialização gestual/corporal dos surdos, o falar com o corpo, construir uma dramaturgia com o próprio corpo, está nos filhos dos casais surdos, ou mesmo quando só um dos pais é surdo. Neste caso o filho fala Libras fluentemente, mas percebe-se que o corpo não sente uma necessidade explícita em falar por ser ouvinte, não mostra tão natural como os surdos natos, ele fala com as mãos e com a expressão facial e corporal exigida para o sinal2, sem envolver-se num todo, corporalmente.

Um dos anseios com este trabalho é que as pessoas surdas que queiram fazer teatro entendam que LIBRAS, a linguagem deles, é só mais um elemento para composição teatral, e não uma obrigatoriedade. Os surdos temem muito, devido a História vivida por seus antepassados, de quando a linguagem de sinais era proibida em escolas, que os ouvintes estejam querendo obrigá-los a falar, por isso eles evitam utilizar os vibradores/ressonadores para potencializar a produção sonora, eles optam pela língua de sinais e rejeitam a emissão sonora, mesmo que pra composição da cena. A idéia é que eles criem uma dramaturgia com o corpo, com o que eles possuem de possibilidade sonora e se utilizem da LIBRAS em momentos desejados, ou que ela se faça realmente necessária dentro da proposta do ator e não do ser humano.

Um trabalho realizado com a aluna Lorena Carla, do Curso de Teatro, de quando realizaria sua habilidade específica, foi o norteador de toda essa proposta de trabalho. No momento foi usada uma mistura de linguagens, corporal e de sinais. Ela estudou o texto a ser apresentado em LIBRAS, depois foram selecionados alguns sinais que contribuíam para estética e entendimento da cena e também para dramaturgia textual como; sangue, morte, rio, peixes, pássaros e outros. Então a ação física, a expressão corporal e facial compunha a cena, ou seja, o corpo dela em cena. Poucos dias de trabalho e ela já conseguia reproduzir o som de um navio zarpando. Com um simples toque de sua mão no pescoço de quem emitisse o som e ela conseguia reproduzir o som. O resultado foi satisfatório para o que era exigido naquele momento, fazendo pensar o que seria o universo da pessoa

2 A Língua de Sinais exige expressões faciais e corporais que acompanham os sinais, dando às vezes outro significado ao sinal, como o de aceitação e rejeição, por exemplo.

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surda interpretando, já que Lorena era a primeira aluna surda da Universidade Federal de Uberlândia no curso de teatro. Como Stanislavski nos apresenta um estudo voltado ao trabalho corporal, ações, imaginação, trabalho vocal do ator, porque não debruçar sobre seus ensinamentos para adquirir ferramentas para esse trabalho, focar o corpo em cena, movimentação, gestos, o estar em cena, presença cênica, fé cênica. Em seu livro “A Preparação do Ator” (1964), Stanislavski declara que o trabalho corporal de um ator deve ser feito de forma consciente, com possibilidades para desenvolver a organização espaço-temporal, a resistência, a flexibilidade. A proposta desse trabalho é estimular o sistema sensorial, trabalhar a voz como extensão do corpo e o movimento desse corpo no espaço, utilizando uma linguagem própria para construir uma dramaturgia.

Vários outros autores serão referenciais para essa pesquisa, por exemplo:

Jerzy Grotowski acredita que o ator deve trabalhar seu aparelho vocal entendido como composição corpórea. Voz, movimento e respiração, criam toda a poética cênica. Cada indivíduo respira em seu tempo, então se faz importante a comunhão entre respiração, vibradores e todo o corpo. Grotowski fala de forma pontual, da importância do ato de respirar, da voz como extensão do corpo, dos vibradores/ ressonadores como instrumento de ampliação de possibilidades vocais.

Sara Lopes fala sobre a importância que se dá ao ato de saber respirar para ampliar movimentos e capacidade de emissão de sons. O controle da respiração para a execução de um trabalho teatral também é possível a um deficiente auditivo. A voz que Lopes define como instrumento poético se faz possível às pessoas que movimentam seu aparelho vocal, mesmo que debilitado por alguma deficiência. A comunicação teatral também é possível através de outros meios como o olhar, ações físicas e a expressão corporal.

O fonoaudiólogo Madel Valle Rodrigues trata sobre as deficiências de ressonância dos surdos. Madel Valli Rodrigues traz em seu trabalho de conclusão de curso Aspectos vocais no deficiente auditivo, ponderados apontamentos sobre o aparelho vocal dos deficientes que muito auxiliarão na

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pesquisa cênica que se pretende realizar. Valle Rodrigues revela que “o indivíduo com deficiência auditiva tem grande possibilidade de apresentar desvios do padrão normal da voz. São citados problemas como ressonância “cul-de-sac”, faríngea ou nasal” (RODRIGUES, 1997, p.6).

Aline do Carmo Prado, fonoaudióloga, lotada na secretária de Saúde do Rio de Janeiro e de Itaguaí, especialização em Voz pelo CEFAC- Saúde e Educação e Moacyr Sreder Bastos (MSB), defende que a produção vocal dos surdos é geralmente acompanhada por uma alteração da ressonância faríngea excessiva do tipo de “cul- de-sac”.

Certamente no avançar da pesquisa muitos outros autores, pesquisadores surgirão para orientar e fomentar este trabalho. E como metodologia será necessário aprofundar o estudo da Língua de sinais, LIBRAS, focando a busca de sinais que poderão ser usados poeticamente dentro da própria linguagem. Pois com a experiência nota-se que os sinais usados no cotidiano dos surdos não satisfazem a linguagem poética teatral. Como o intérprete trabalha com contexto, fica a desejar com relação ao conteúdo do teatro, visto que nem sempre o intérprete é conhecedor do fazer teatral e sua interpretação fica longe da proposta, pois sentimento, imaginação, criatividade, emoção fazem parte do nosso dia a dia e não podem ser deixados de lado, ignorados simplesmente por defender um contexto. Também experimentos e práticas vocais, exercícios técnicos para o desenvolvimento dos elementos vocais (sons), explorando vibradores/ressonadores junto ao grupo formado por surdos. Estudo teórico-pesquisa e estudo de bibliografias específicas sobre a voz e a criação teatral para surdos e busca de bibliografias e ou experiências práticas de jogos teatrais possíveis aos surdos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEIXO, Fernando M. Corporeidade da voz: voz do ator. Campinas: Editora Komedi, 2007.

ALEIXO, Fernando M. Corporeidade da voz: O Teatro Transcende – N. 12. Blumenau: FURB, Divisão de Produções Culturais, 2003.

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6

ALEIXO, Fernando M. Corporeidade da voz: aspectos do trabalho vocal do ator – Cadernos da Pós-Graduação IA/UNICAMP – Ano 6, Volume 6 – N° 1, 2002.

ALEIXO, Fernando M. Vocabulario Poético do Ator: Corporeidade da voz e dramaturgia do corpo. Projeto de Pesquisa Docente em execução no Curso de Teatro do Departamento de Musica e Artes Cênicas da Universidade Federal de Uberlândia. 2008.

ALEIXO, Fernando M. A Voz (do) Corpo: Memória e Sensibil idade. Revista de Estudos Pós-Graduação em Artes Cênicas/ Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. – Vol 1, n.6 (Dez, 2004) Florianópolis: UDESC/CEART 2004.

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(org.). Voz Profissional: O profissional da Voz. Carapicuiba - SP: Pro-Fono Departamento Editorial, 1995.

GAYOTTO, Lucia Helena. Voz, partitura da ação. São Paulo: Summus, 1997.

GUBERFAIN, Jane Celeste (Org.). Voz em cena - volume 1. Rio de Janeiro: Revinter, 2004.

. Voz em cena – volume 2. Rio de Janeiro: Revinter, 2005.

GROTOWSKI, Jerzy. Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. Editora Perspectiva S.A. 2007.

LOPES. Sara Pereira. Diz isso cantando: A Vocalidade Poética e o Modelo Brasileiro. Tese (Doutorado em Arte) - ECA - Universidade de São Paulo. São Paulo, 1997.

PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

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7

PRADO, Aline do Carmo. Principais características da produção vocal do deficiente auditivo. Revista CEFAC vol.9 o.3 São Paulo Julho/Setembro. 2007. (online) http///dx.doi.org/10.1590/S1516 – 184620070003000142

RODRIGUES, Madel Valle. Aspectos Vocais no Deficiente Auditivo. CEFAC (Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clinica. Voz). Monografia de Conclusão do Curso de Especialização em Voz. Orientadora: Miriam Goldenberg. São Paulo, 1997.

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TONEZZI, José. Distúrbios de Linguagem e Teatro: o afásico em cena. São Paulo: Plexus Editora, 2OO7.

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Iminências do aqui-agora no contexto da redescoberta do corpo nas artes presenciais do

início do século XX

Milene Lopes Duenha1

RESUMO

Encenadores, coreógrafos e estudiosos das artes presenciais do início do século XX pareciam

caminhar em uma mesma direção, a que estreitava conexões entre arte e vida, artista e público, se

opondo à reprodução de formas. A intenção de descobrir novos meios de produção nas artes

presenciais impulsionou práticas pedagógicas inovadoras, que tornaram a ação corporal foco

destes fazeres. As reflexões que aqui apresento tratam do ímpeto de renovação, e da ideia de

redescoberta do corpo, que direcionou a produção artística do início do século XX. Utilizo como

referências textos de André Lepecki, Marco De Marinis, Josette Féral, Erika Fischer-Lichte,

Sandra Meyer Nunes, Jean-Jacques Roubine e Beatrice Picon-Vallin.

Redescoberta do Corpo; Teatro; Dança;

Existem experiências que são capazes de nos realocar, que nos potencializam ao lançar o

convite a olhar e estar no mundo com outra postura. A experiência artística é, para mim, um

desses impulsionadores, cujo potencial de afecção2 é capaz de resgatar o corpo de uma anestesia

do condicionamento cotidiano. Para que isso aconteça é necessário o convite para a experiência, e

a aceitação do convite para as possíveis conexões nessa experiência. O afeto, neste jogo do

encontro entre presenças, se potencializa à medida que o ato realizado ao vivo, opera em devir

constante.

1 Mestranda do programa de Pós-graduação em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina sob orientação

da Prof. Drª Sandra Meyer Nunes. 2 Proponho aqui o entendimento de afecção pelo filósofo holandês Bento Espinoza, que traz a ideia de afeto como

fator capaz de aumentar ou diminuir nossa potência de agir. Utilizo como referência para esta a colocação a Parte III

da Ética – A origem e a natureza dos afetos (1992).

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Não é uma conversa atual este desejo de produzir uma arte potente, capaz de afetar o

interlocutor, alguns artistas e estudiosos chamam essa potência de expressividade3, outros de

eficácia4, outros de teatralidade

5, outros de performatividade

6, e alguns atribuem à presença do

artista este potencial de afecção:

A presença seria o bem supremo a ser possuído pelo ator e sentido pelo espectador. A

presença estaria ligada a uma comunicação corporal “direta” com o ator que está sendo

objeto de percepção [...] Nem sempre ela existe através das características físicas do

indivíduo [...] mas sob forma de energia irradiante, cujos efeitos sentimos antes mesmo

que o ator tenha agido ou tomado a palavra, no vigor de seu estar ali. (Pavis, 2001, p. 305)

A noção de presença que considera o artista como uma figura dilatada que se impõe sobre

quem assiste a um espetáculo, interessou a um percurso na história das artes presenciais, no

sentido do desenvolvimento de técnicas e de metodologias de criação. Porém, alguns elementos

das questões relacionais entre artista e espectador, que passaram a ter relevância já na quebra da

quarta parede Stanislavskiana, parecem não estar contempladas nesta abordagem, como por

exemplo, a consideração do fato de termos o espectador não somente como quem assiste ao que

se apresenta, mas entendê-lo como interlocutor, como agente na experiência do encontro.

Proponho então nesta busca por outras possibilidades de aproximação da presença, um

breve percurso de abordagens do corpo, acreditando que as mudanças ocorridas ao longo da

história nos revelariam pistas em favor da potencialização dos efeitos do encontro entre artista e

espectador. Utilizo como referências textos de André Lepecki, Sandra Meyer Nunes, Marco De

Marinis, Josette Ferral, Erika Fischer-Lichte Jean-Jacques Roubine e Beatrice Picon-Vallin.

3 O francês Jean-Georges Noverre (1727 -1810) é uma primeira inspiração para este termo.

4 O professor da Universidade de Bologna Marco De Marinis traz o conceito de eficácia no livro Em busca del actor

e del espectador (Galerna, 2005). 5 O dramaturgo e encenador russo Nicolai Evreinov (1879-1953) é a primeira referência deste termo segundo

pesquisa realizada pelo professor Edelcio Mostaço, publicada no artigo Considerações sobre o Conceito de

Teatralidade. Disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Edelcio.pdf

acesso em: 03/07/2013. 6 O conceito de performatividade é desenvolvido por vários estudiosos. Em uma primeira instância o filósofo

britânico John Langshaw Austin (1911 - 1960) traz a noção de ato performativo em sua obra How to do things with

words (1962). Outros estudos como os de Judith Butler, Erika Fischer-Licthe e Josette Féral também definem as

noções de performatividade. A referência principal para este texto é a de Fischer-Lichte (2011).

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Uma herança mecanicista do século XVI7 condenou a abordagem do ser humano como

máquina e “criou analogias do corpo como engrenagem de um relógio, instrumento musical,

autômato, ou estátua, reforçada pela crescente mecanização da fisiologia humana” (NUNES,

2009, p. 49). As noções de organicidade e subjetividade pareciam estar longe das abordagens da

ação corporal. Essa herança ainda tem reverberação em práticas atuais nas artes, que se baseiam

na ideia de dominação do gesto e dos movimentos de modo a controlar os instintos. Uma parte da

história do teatro e da dança se faz na vigência deste pensamento, implicando na valorização

exacerbada do apuro técnico em detrimento da espontaneidade.

Ao francês Jean-Georges Noverre (1727 – 1810) que escreveu Letters sur la Danse no

século XVIII se atribui a preocupação com as possibilidades de provocar emoção no público, o

seu balé de ação, primava por uma dança mais expressiva, que não se fazia somente na

demonstração de força muscular e apuro técnico, mas na simplicidade, na vazão dos sentimentos

e paixões. Tal abordagem não excluía a hierarquização do corpo, a conquista desses novos modos

de operar através da valorização da razão e do espírito, porém, Noverre não parece deter-se na

estrutura mecanicista, dando passos na direção do encontro com o espectador.

O pesquisador teatral Jean-Jacques Roubine8 traz algumas pistas do contexto em que

pulsavam os anseios de ações corporais mais ligadas às sensações e não à reprodução de formas

pré-estabelecidas já no início do século XIX.

Em 1827, a geração romântica descobre, maravilhada, a atuação física livre e intensa dos

intérpretes ingleses de Shakespeare. Percebe-se, então, que não basta uma simples

animação gestual do papel. E o exagero, que impressionava uns vinte anos atrás, agora

provoca o sorriso. Sonha-se com atores que saibam expressar paixões verdadeiramente

sentidas, e não simplesmente mimadas — exatamente como os ingleses! (ROUBINE,

1987, p.4 da tradução)

A expressão das paixões que Roubine menciona passa a ser alvo, em oposição à

simulação mecânica das emoções. Se pretendia, já na primeira metade do século XIX, uma

interpretação “vivida”9 (ROUBINE, 1987, p.4). Em favor de uma ação cênica mais gestual, surge

7 Tago esta referência do livro As metáforas do corpo em cena (Annablume, 2009) da professora Sandra Meyer

Nunes. 8 Contidas no texto O Tempo das Misturas, no livro Le Théâtre du geste; mimes et acteurs [O Teatro do Gesto;

Mimos e Atores], organizado por Jacques Lecoq, publicado pela editora Bordas Spectacles em 1987, com tradução

inédita de José Ronaldo Faleiro. 9 Grifo do autor.

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a necessidade de renovação da pedagogia teatral, e das práticas de dança, o que, segundo

Roubine, tem François Delsarte (1811-1871)10

como um importante representante, uma vez que

este estudioso buscava a compreensão das “manifestações físicas dos sentimentos, as variações

da respiração em função das emoções, etc” (ROUBINE, 1987, p.4). Roubine afirma que “o corpo

teatral moderno” nasceria neste contexto (1987, p.4).

A expressão das emoções já aparecia como objetivo no desenvolvimento de técnicas de

interpretação no teatro e de apresentação na dança, mas dentre os mecanismos de atuação, a

estrutura textual e a coreografia eram determinantes, o que culminou em uma abordagem do

corpo como ao que serve à dramaturgia textual ou à coreografia.

Erika Fischer-Litchte11

ao apresentar uma perspectiva sobre o trabalho do ator no século

XVIII revela que as noções de corporalidade na cena estavam sujeitas à fidelidade ao texto

dramático. Ao ator caberia a transmissão, através da personagem, dos “significados que o autor

havia expressado em seu texto por meios linguísticos [...] para isso, ele (o ator) deveria deixar de

atuar de acordo com seus caprichos [...] ” (2011, p. 160). A orientação do artista, além de ser

atrelada às possibilidades de atribuição de significado às ações – outra cara herança à produção e

recepção da arte na atualidade -, também o direcionava ao distanciamento do aqui-agora,

sugerindo uma utilização do corpo como recipiente do personagem. “El ser humano “tiene” [grifo

da autora] un cuerpo que puede manipular e instrumentalizar como cualquier objeto” (FISCHER-

LICHTE, 2011, p.158).

Mas este corpo é um “corpo-sujeito” como coloca Fischer-Litchte em leitura de Helmuth

Plessner, como sair de si mesmo se este é o material da própria existência? Na abordagem de

Fischer-Litchte a voz de Edward Gorgon Craig, que deseja eliminar o ator do cenário, aparece

defendendo que o corpo dos homens e das mulheres, com seu caráter acidental, não seriam

material adequado ao teatro, pois, este caráter acidental não permitiria que se configurasse a obra

10

O francês François Delsarte desenvolveu princípios dos quais a dança moderna se valeu, seus estudos uniam

ciência e técnica, defendendo a necessidade de aliar o conhecimento da linguagem do corpo com a linguagem da

alma, para isso sistematizou as expressões humanas e suas diversas variações de emoções. Identificou em suas

pesquisas que a expressão humana é composta basicamente pela tensão e o relaxamento dos músculos - contration

and release –, princípio posteriormente utilizado pela coreógrafa Marta Graham. Os princípios desenvolvidos de

modo indutivo por Delsarte direcionaram muitas práticas de dança e teatro que passaram a defender um uso da

técnica em favor da expressão natural e fluída, distanciando-se dos gestos mecanizados. Dentre os artistas

influenciados pelo pensamento de Delsarte estão: Isadora Duncan, Ruth Saint Denis, Loïe Fuller, Kurt Jooss, Mary

Wigman e Rudolf Laban (MADUREIRA, 2002). 11

No livro Estética de lo performativo (Abada, 2011).

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de arte como era por ele entendida (2011). Para que a atuação pudesse contemplar de modo mais

fidedigno as expressões do texto, uma mudança radical deveria acontecer: “[...] Debía ayudar al

actor a hacer desaparecer su físico estar-em-el-mundo, su cuerpo fenomênico sobre el escenário y

transformarlo em um “texto” [grifo da autora] de signos al servicio de los sentimientos, los

estados ánimo, etc... de um personaje. (FISCHER-LICHTE, 2011, p.160).

Marco De Marinis (1995)12

afirma que a produção cênica do início do século XX é

marcada pelo movimento de renovação da cena contemporânea, e que tem no aspecto da

redescoberta do corpo um grande impulsionador das práticas teatrais mais relacionadas ao

desenvolvimento de técnicas corporais, em detrimento ao textocentrismo vigente em parte do

século XIX. Tais ações de resistência no teatro culminaram em ações pedagógicas inovadoras

deste fazer, e inauguraram práticas e procedimentos ainda explorados no século XXI.

As mudanças nos modos de produção do acontecimento presencial, mais precisamente no

teatro e na dança do início do século XX, são também resultado de um novo entendimento de

corpo e do mover, que exibe neste momento a pretensão de proporcionar ao espectador

experiências mais relacionadas ao campo das sensações. Essa premissa vai direcionar por um

longo período, os estudos das artes presenciais, inaugurando caminhos em favor do protagonismo

do corpo, contexto em que a visão dualista – por tanto tempo vigente como explicação da relação

corpo-mente – começa a perder efeito13

. Tal entendimento de corpo também redimensiona a

abordagem da relação entre artista e espectador, ao voltar a atenção ao corpo e suas reações

físicas, aderindo a uma visão que passa da perspectiva da polaridade entre as posições de ativo e

passivo – um realiza e o outro assiste - para a respectiva da participação, em que artista e público

são agentes no contexto do acontecimento presencial.

De Marinis (2005) traz informações sobre estudiosos e encenadores do início do Século

XX que intencionavam “restituir ao teatro a riqueza sinestésica e a plurisensorialidade” (2005,

12

No texto Copeau, Decroux et la naissance du mime corpo, que integra o livro organizado por Patrice Pavis e Jean-

Marie Thomasseau chamado Copeau l Éveilleur, com tradução para o português e notas de José Ronaldo Faleiro. 13

Essa mudança de perspectiva em relação ao entendimento do corpo ganha força na segunda metade do século XX,

em um movimento em favor da interdisciplinaridade nas artes, que passa a acolher explicações do campo das

ciências cognitivas para entender a relação corpo-mente. Neste contexto há o questionamento da visão dualista que

dividia o corpo em duas substâncias, uma material e outra pensante. Para as ciências cognitivas não é uma alma -

coisa fora do corpo - que comanda as ações do corpo, não é uma mente, dona do corpo que determina seu

funcionamento. O corpo é uma organização complexa, de partes vitais e interdependentes que responde, de diversas

formas, aos estímulos do ambiente. As referências que utilizo nestas afirmações podem ser consultadas em

Churchland (2004), Descartes (2008), Damásio (2011), e Nunes (2009).

Page 130: iSTANISLÁVSKI E A TEATRALIDADE: ENCENAÇÃO E … · seu domínio na Rússia, ... observamos que ele foi um dos primeiros a estudar a arte teatral de forma a ... o mim com a minha

p.59). Os processos teatrais da primeira metade do século XX passaram a desenvolver técnicas

corporais de treinamento do ator, em favor da reteatralização do teatro, inaugurando assim o

conceito de ação física. De Marinis (1995) afirma a adesão de um grande número de encenadores

e pedagogos à reteatralização, atribuindo a estes homens de teatro o desenvolvimento da ação

física, da transformação da figura do intérprete executor em criador. Dentre estes reformadores

do teatro estão Jacques Copeau (1879 – 1949), Ettiene Decroux (1898 – 1991), Edward Gordon

Craig (1872 – 1966), Adolphe Appia (1862 – 1928), Vsevolod Meyerhold (1874 – 1940),

Constantin Stanislavski (1863 – 1938) e Antonin Artaud (1896-1948).

Ao apontar Copeau como um dos protagonistas do fenômeno da redescoberta do corpo,

De Marinis (1995) exemplifica a importância atribuída ao movimento neste momento da

produção teatral, pois, para Copeau o drama é ação, e o desenvolvimento da técnica do ator está

mais vinculado à fisicalidade do que à intelectualidade. Os encenadores-pedagogos desse

momento acabaram por desenvolver técnicas de preparação do ator extremamente apuradas, uma

vez que, “o treinamento do ator seria uma questão chave para a renovação radical do fazer

teatral” (DE MARINIS, 2005, p. 65), assim nasceu o Mimo Corporal com Copeau, e a criação da

primeira gramática para a linguagem do teatro com Decroux.

Sob a intenção de tornar o teatro uma experiência plurisensorial, muitos experimentos

foram acolhidos. O teatro tem seu desenvolvimento na busca por uma ação eficaz, com bases em

aspectos sensoriais, “em uma manipulação perceptiva, sinestésica do espectador” (DE MARINIS,

2005, p.64)14

. Discursos que apontam para práticas teatrais de estímulos sensoriais são

observados em vários autores do início do século XX. O ímpeto da renovação teatral que faz

surgir a ideia de treinamento para a ação eficaz no teatro tem, segundo De Marinis (2005),

Meyerhold e Serguei Eisenstein (1898 -1948), como representantes na Rússia. As impressões de

eficácia no trabalho de Eisenstein, por exemplo, estariam em qualidades emergentes no

movimento e na relação dos atores, conforme observação de Ornella Calvarese (in: DE

MARINIS, 2005, p. 66): “[...] o verbal se transformava em espacial, o sonoro em visual, em uma

babélica e festiva sinestesia perceptiva”.

14

Neste momento da produção teatral percebe-se uma certa radicalidade em escritos de encenadores no

desenvolvimento de seus métodos específicos, o que justifica a exposição por De Marinis da ideia de manipulação do

espectador, contudo, na atualidade, já não se considera essa possibilidade, passa-se a entender o espectador como

cúmplice no ato da apresentação. Referências para esta afirmação podem ser observadas em escritos de Ana Pais

(SESC, 2010).

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A pedagogia teatral ganha novas referências na intenção de provocar as sensações do

espectador. Técnicas de treinamento do ator emergem neste contexto em que a ação corporal

passa a ser foco. As preparações do ator e do dançarino aproximam-se, a cada impulso de

descoberta de novas formas de mover-se diante do público, em uma atitude reacionária à

armadilha do vazio. Beàtrice Picon-Vallin15

afirma que o treinamento no início do século XX

destinava-se a ensinar o ator a “aprofundar o conhecimento de seu esquema corporal, a testar e a

dominar seu gestual e seus movimentos para evoluir num espaço-tempo particular, o da cena”

(PICON-VALLIN, 2008, p. 62). A ideia de domínio do movimento foi impulso para as técnicas

de atuação neste período, apesar da noção de treinamento ter seu significado vinculado ao ato de

adestrar um corpo, as intenções estavam, notadamente, relacionadas a uma reação às convenções

da supremacia do texto.

Meyerhold é um representante expressivo deste momento do teatro, pois sua prática se

baseava na “busca de uma teatralidade não cotidiana”, que exigia um ator “polivalente”,

malabarista, acróbata, músico, dançarino, o que a autora chama de corpo “versificado” (PICON-

VALLIN, 2008, p. 63). Craig era também um expoente neste contexto de valorização das ações

corporais na cena, ele e Meyerhold entendiam o movimento como “o elemento mais importante

da arte do teatro” (PICON-VALLIN, 2008, p. 63). A herança da Commedia dell’Arte influenciou

o pensamento destes encenadores. Para Craig (que teve um relacionamento com Isadora Duncan)

a dança era a origem das artes. A vida impressa no teatro era impressa antes no corpo do ator. A

encenação, composta por diversos elementos, priorizava o corpo e a ideia de ação, estes

elementos, por sua vez, operariam em favor do acontecimento presencial. A preparação do ator se

desenvolve então no estudo do movimento, no “treinamento como forma de organizar as

modalidades do jogo cênico” (PICON-VALLIN, 2008, p. 63), a descoberta de meios específicos

de chegar à cena gera autonomia nos processos de construção do espetáculo que, exigente de

vida, se faz em pesquisa constante.

O dizer do corpo

Um fato a ser observado no contexto da redescoberta do corpo é a alteração da hierarquia

existente entre o texto e os demais elementos da construção cênica. Essa mudança, a princípio,

favoreceu o corpo em detrimento a outros elementos, mas posteriormente, uma nova inquietação

15

No livro A cena em ensaios (Perspectiva, 2008).

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moveria as práticas contemporâneas a destronar um e outro elemento, colocando-os em um

mesmo patamar. Patrice Pavis (2010), em sua pesquisa sobre encenação traz uma afirmação de

Craig que ilustra este contexto de valorização do movimento e da importância atribuída aos

elementos da cena:

Entendo por movimento o gesto e a dança que são a prosa e a poesia da ação. Entendo

por cenografia tudo aquilo que se vê, tanto os figurinos as iluminações, quanto as

cenografias propriamente ditas. Entendo por voz as palavras ditas ou cantadas em

oposição às palavras escritas; pois, as palavras escritas para serem lidas e aquelas

escritas para serem faladas são de duas ordens inteiramente distintas (Craig in: PAVIS,

2010, p. 16).

O ator, diante deste novo fazer teatral, deveria ter grande capacidade de adaptação,

deveria estar atento não somente ao modo de dizer o texto, mas no seu gesto, na luz, em como se

relacionar com o cenário, e nas reações do público. Essa capacidade de adaptação garantiria ao

seu trabalho “maior eficácia ante o espectador” (PICON-VALLIN, 2008, p. 65). Neste sentido a

eficácia dependeria então da abertura às relações entre o artista e o ambiente, ampliando a noção

de presença, que de impositiva passa à ideia de abertura ao aqui-agora. O treinamento corporal

teria o papel de preparar o ator para um dizer do corpo, e este dizer do corpo se faria em

constante devir. Picon-Vallin ilustra o pensamento acerca da preparação do ator com a seguinte

frase: “Os pianistas constroem seus dedos de música, os atores devem construir seu corpo de

teatro” (2008, p. 67). Para Picon-Vallin “o trabalho de um ator treinado se torna uma espécie de

dança na qual as palavras [...] não são mais que desenhos sobre a tela dos movimentos” (2008, p.

67).

Devo esclarecer que a noção de treinamento não se restringe somente à compreensão

física, à uma memória muscular, há nesta abordagem a compreensão do corpo como uma rede de

conexões, como no trabalho de Stanislavski que considera as ações psicofísicas, e no de

Meyerhold com o conceito de Biomecânica: “Se a ponta do nariz trabalha, o corpo todo trabalha”

(PICON-VALLIN, 2008, p. 69). A ideia de treinamento aos poucos ganha a referência a uma

inteligência física, admitida nas práticas contemporâneas, que compreende corpo-mente

integrados. Picon-Vallin traz como exemplo uma fala de Ariane Mnouchkine que afirma que o

ator deve “desenvolver os músculos da imaginação”. (Mnouchkine in: PICON-VALLIN, 2008, p.

69).

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A preparação do ator estaria vinculada à incursão em técnicas diversas, nesta arte do

gesto, não se primaria apenas pelo movimento, mas pela intersecção de elementos distintos em

favor da cena, neste lugar em que o corpo “fala”, como afirma Jean-Jacques Roubine (1987), a

noção de treinamento ligada ao atletismo não contemplaria as especificidades exigidas nesta arte.

Em um movimento de observação de práticas e teorias Josette Féral16

, atribuia valorização

da arte do ator à democratização do jogo, às iniciativas educativas, e ao número crescente de

atores. A autora divide em duas correntes “os homens de teatro, encenadores e reformadores”, um

grupo que a partir da própria prática definem a arte do ator na intenção de criar o “ator do futuro”

(2001, p. 01 da tradução). E um grupo mais voltado à crítica teatral, e ao desvendamento dessa

arte do movimento através de conceitos e análises subjetivas. O grupo de encenadores e

reformadores do teatro com relação mais empírica, voltados às descobertas no fazer, tem traços

comuns em seus trabalhos que, segundo Férral, estariam nas polaridades imprecisão - rigor,

sensibilidade - razão, intuição - raciocínio, inspiração - trabalho, o talento – técnica (2001, p. 02).

Questões sobre modulação de energia e a ideia de presença emergem neste ínterim, e terão

reverberação nas pesquisas de Jerzi Grotowski (1933 – 1999) e Eugênio Barba (1936).

A dança que exigia vida

O desenvolvimento das técnicas de preparação do ator no início do século XX e as

diferentes configurações que a dança ganha neste mesmo período parecem ser impulsionados por

um desejo de aproximação entre arte e vida. Na dança, a exemplo de Noverre o balé clássico

deixa de buscar somente o apuro técnico na execução dos passos, a necessidade de gestos com

potencial emotivo define os rumos da dança. A história da dança moderna assim como o teatro

moderno tem seu início ainda no século XIX, e as mudanças em favor dessa aproximação entre

arte e vida e consequentemente, entre arte e público culminam no século XX em uma dança que

não abandona o rigor técnico, mas que o desenvolve de modo distinto, e que tem como foco

principal a relação com a vida, solicitando os sentidos, convocando as emoções pelo gesto.

16

No texto L´art de l´acteur [A arte do ator], do livro Mise enscèneet Jeu de l´acteur: Entretiens. Tome 1:

L´espacedutexte [Encenação e jogo do ator: entrevistas. Tomo 1: O espaço do texto]. Montréal (Québec)/Carnières

(Morlanwelz): Jeu/Lansman, 2001, com tradução de José Ronaldo Faleiro.

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As norte-americanas Isadora Duncan (1877 – 1927) e Loïe Fuller (1862 – 1928) são

reconhecidas como precursoras da dança moderna17

. A atriz e dançarina Loïe Fuller, apesar de

ser mais reconhecida como artista de variedades do que bailarina, figura neste contexto de

desenvolvimento da dança moderna ao propor em sua serpentine dance, uma relação entre

figurino, movimento e iluminação. Isadora Duncan também propõe novas relações na dança a

partir da diferente utilização de figurinos e da exploração de movimentos a partir da escuta, da

clara referência nos elementos da natureza. Duncan ignora a técnica da dança clássica ao

apresentar uma dança livre, de pés descalços, cabelos soltos e figurino leve (GARCIA e HASS,

2006), o oposto da dança clássica. A arte grega é uma referência estética para Duncan. Em seu

trabalho utiliza música clássica, de compositores como Frédéric Chopin e Richard Wagner. Sua

atitude se transformou em técnica, difundida em escolas até os dias de hoje18

. A relação entre os

movimentos da natureza e os movimentos do corpo, como ocorre na prática de Duncan

configuram um modo de abertura ao ambiente, situação na qual a hierarquia de valor entre corpo

e ambiente não vigora, ao favorecer a escuta, ao dar às presenças no ambiente um mesmo valor.

A redescoberta do corpo impulsionou ações em vários segmentos da arte, mas na dança

algumas características se assemelham bastante aos anseios dos estudiosos do teatro. A vontade

de rompimento, e a busca de novas possibilidades de produção em dança, impulsionaram outras

formas de entendimento do movimento, técnicas de dança e teatro se fundiam neste contexto. A

dança moderna teve continuidade e sistematização com coreógrafos como Ruth Saint Denis

(1879 – 1968), Ted Shawn (1891 – 1972), Doris Humphrey (1895 – 1958), Martha Graham

(1894 – 1991), Mary Wigman (1886 – 1973) e Rudolf Laban (1879 – 1958).

St. Denis formulou sua própria teoria da dança influenciada pelas técnicas teatrais e

culturas orientais como as da Índia, Egito e Japão. Shawn tem histórica contribuição para a

evolução da dança ao criar uma técnica sobre ações essencialmente masculinas. Tinha como

referências iniciais temas relacionados à cultura popular, o folk, e a cultura indígena americana.

St. Denis e Shawn criaram em 1915 a escola Denishawn, em Los Angeles (GARCIA e HASS,

2006). A dança moderna americana ganhava formas de danças étnicas com estes artistas, e

17

Fuller desenvolve seu trabalho na segunda metade do século XIX, inicialmente nos Estados Unidos, mas é na

França, depois de diversas turnês, que se estabelece, chegando a realizar apresentações com Isadora Duncan.

Algumas imagens e outras informações sobre esta artista podem ser conferidas em:

http://www.victoriangothic.org/la-loie-fuller-the-serpentine-dance/ Acesso em: 28/01/2013. 18

Ver: http://www.smartlabs.us/customers/isadoraduncan/home Acesso em 28/01/2013.

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muitos bailarinos e coreógrafos passariam por essa formação, entre eles Doris Humphrey e

Martha Graham.

Humphrey defendeu em seu trabalho que o movimento se origina dos instintos naturais do

corpo. Através da queda e recuperação estudou o equilíbrio, e classificou os gestos de acordo

com as relações dos homens entre si os denominando como sociais, funcionais, rituais e

emocionais. Dividiu os movimentos em simétricos - assimétricos, angulosos – arredondados

(GARCIA e HASS, 2006). Humphrey defende ainda em seu trabalho a estreita relação entre sua

arte e a realidade de seu tempo.

Rudolf Laban, na Alemanha, desenvolvia uma sistematização em dança que considerava

os movimentos cotidianos, a Labanotação19

, que tinha a finalidade de registrar as qualidades

fundamentais do movimento tais como: esforço, peso, tempo e espaço. Mary Wigman

desenvolveu seu trabalho sob a influência de Laban, e Dalcroze. Em sua dança, Wigman refletia

o estado de caos e desesperança pós – Primeira Guerra Mundial. Wigman tinha foco na relação

do corpo com o espaço, dando ênfase no tronco, torso e bacia. Desenvolveu o que se chamou de

Dança Expressionista Alemã, criando uma linguagem corporal em forma de expressão teatral.

Fundou sua escola em Dresden, mas a fechou em função do regime Nazista.

Dentre os bailarinos e coreógrafos citados, Martha Graham é reconhecida como maior

representante, devido a sua dedicação à formulação de uma técnica da dança moderna e registro

de seu processo. Seu método contraction-release baseado na mudança de foco do impulso do

movimento, que passa da periferia do corpo – como ocorria na dança clássica – para o centro do

corpo20

, alteração esta justificada por uma reflexão sobre o ser humano em seu tempo

(GARAUDY, 1980). Se no balé clássico havia a realização de movimentos que pareciam ignorar

a ação da gravidade sobre os corpos, na dança moderna essa relação torna-se oposta, há a

intenção clara de mostrar um corpo que cede à ação da gravidade, sendo desenvolvidas várias

técnicas de movimento a partir desse princípio. Ao que a dança contemporânea irá aderir mais

adiante. Neste contexto Graham propõe uma dança não apenas produto de invenção, mas

19

A Labanotation conhecida também como Kinetography é um método de notação em dança que se destina a

registrar o movimento com sinais gráficos. 20

A mudança de foco do impulso do movimento também se apresenta em outros estudos como os de Delsarte

(anterior aos de Graham), Mary Wigman, Doris Humphrey e Rudolf Laban.

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possibilidade de expressão das emoções, o que se identifica muito facilmente nos diversos

registros de seu trabalho21

.

Tais afirmações se confirmam em uma citação de Graham comentada por Garaudy:

Nossos gestos não são somente um reflexo ou um eco passivo de uma solicitação

exterior, pois todo movimento de dança procede de centro do corpo para a periferia,

unificando o ser e impedindo-o de se dispersar. Pela disciplina da dança exercemos o

direito imprescindível de retomada de nós mesmos. (Graham in: GARAUDY, 1980, p.

101). Com Martha Graham, a dança moderna, como forma de relacionamento com os

homens e com a história, não é somente uma forma de comunicação: torna-se um

aspecto da consciência do mundo que está se construindo (GARAUDY, 1980, p. 101).

A partir de uma dança que reflete os sentimentos humanos em cada momento histórico, é

possível identificar um pulsar, conectando arte e vida, cuja relação é explicitada em uma

produção de grande carga emotiva, revelando a dor e o “peso” do estar no mundo em um período

de graves acontecimentos, como as grandes guerras mundiais, principalmente sob o olhar de

Graham.

Enquanto que na dança moderna há o movimento de reação à técnica do balé clássico,

com a sistematização desse novo modo de pensar a dança - que prima pelos sentimentos, e não

pelas formas -, no teatro, há a intensa investigação acerca da formação do ator, também

reacionária à tradição do “império do texto”, que determinaria a partir de informações dadas pelo

dramaturgo, as ações dos atores, ou seja, se fariam por formas pré-estabelecidas. Por outro lado, o

ímpeto de sistematização neste período culminou no desenvolvimento de técnicas e

procedimentos exigentes de muita disciplina, memória e preparo físico, à exemplo da técnica de

Graham, e da complexa gramática desenvolvida por Etienne Decroux, que se assemelha aos

códigos da dança clássica. Uma armadilha estaria na abordagem da técnica enquanto meio de

“enformar” o ator e o bailarino, impedindo-o das possibilidades relacionais que emergem na

abertura ao universo subjetivo, sob o risco de transformar esta arte em um ato vazio de pura

exibição da técnica. Um panfleto parece divulgar: Há que se produzir uma arte conectada com

emoções vivas!

21

Alguns registos videográficos podem ser conferidos em: http://vimeo.com/14503522, e

http://www.youtube.com/watch?v=WOdOGFtTa7A Acesso em 28/01/2013.

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As contribuições destas práticas artístico-pedagógicas são fundamentais para o

desenvolvimento da noção de presença em relação, que abordo neste trabalho hoje ao considerá-

la como possibilidade de potencialização do acontecimento do encontro no aqui-agora. O foco na

ação corporal, a criação de metodologias de trabalho em favor de um ato com potencial afetivo

quer, como emergência, a intensificação da experiência da vida. Recordemos os muitos exemplos

de Stanislavski que, na busca por uma verdade na atuação, ensina que as ações do corpo-mente

são integradas22

, parece impossível pensar em um teatro no qual as experiências não são vividas

no corpo. Recordemos Duncan que, ao sentir as batidas do coração e dançá-las, deixa-nos lições

sobre conexão com o ambiente a partir de uma escuta atenta. Recordemos Graham que dança a

dor da existência humana sentindo-a em seu ventre, mostrando que o olhar atento ao mundo é o

que produz o material do fazer artístico. A história perpassa o hoje na arte, mas sua configuração

no hoje estará sujeita ao aqui-agora desse movimento do corpo no tempo, e das presenças que

aqui se encontram.

Referências:

DE MARINIS, Marco. Copeau, Decroux et la naissance du mime corporel [Copeau, Decroux e

O Nascimento do Mimo Corporal], in Copeau l Éveilleur [Copeau, Aquele que Desperta]. Textos

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FÉRAL, Josette. L´art de l´acteur [A arte do ator], in Mise en scène et Jeu de l´acteur:

Entretiens. Tome 1: L´espace du texte [Encenação e jogo do ator: entrevistas. Tomo 1: O espaço

do texto]. Montréal (Québec)/Carnières (Morlanwelz): Jeu/Lansman, 2001. — Tradução de José

Ronaldo FALEIRO.

22

Meyer, 2009.

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FISCHER-LICHTE, Estética de lo performativo, Tradução: Diana González Martín e David

Martínez Perucha, Madrid: Abada, 2011

GARAUDY, R., Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. Tradução: Antônio

Guimarães filho e Glória Mariani.

GARCIA, A e HASS, A.N. Ritmo e Dança. Canoas: Ulbra, 2006.

MADUREIRA, José Rafael. François Delsarte: Personagem de uma Dança (Re) descoberta.

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<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000239232&fd=y> Acesso em:

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http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Edelcio.pdf

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para a dança brasileira. São Paulo: Edições SESC SP, 2010. p.78-100.

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Saadi; Tradução: Fátima Saadi, Cláudia Fares e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Perspectiva,

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Spectacles). — Tradução inédita de José Ronaldo FALEIRO.

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS CORPORAIS

ATÉ À DRAMATURGIA DO ATOR

TECENDO O FIO DAS AÇÕES DO ATOR-NARRADOR. NARRAR PRA QUÊ?

Gisele Soares de Vasconcelos (doutorado); orientador Felisberto Sabino da Costa;

PPGAC/USP; profa. do Departamento de Artes/UFMA.

Este artigo propõe uma reflexão acerca dos estudos das ações físicas a partir de

procedimentos vivenciados pelas atrizes, do grupo Xama Teatro - MA, durante o

processo de criação do espetáculo As Três Fiandeiras. O procedimento, que se

fundamenta no trabalho com as ações físicas, engloba a preparação do ator sobre o

narrador-personagem, assim como sobre a ação vocal, cuja execução de objetivos

possibilita a nomeação de ações em cena, com a finalidade de impulsionar a execução

de gestos e sonoridades enquanto porta de acesso às emoções. Notícias jornalísticas

abrem espaços para a criação do ator sob a ótica das ações físicas, considerando os

elementos como o tempo-ritmo, impulso e imaginação. O estudo discorre acerca do

impulso a partir de ações como denunciar, comentar, comover, amedrontar, glorificar,

de forma a contribuir para a dramaturgia do ator-narrador. Alia-se a essa prática, o

exercício com as circunstâncias propostas como motivador para a execução das ações,

assim como a passagem do texto da narração em 1ª pessoa para 3ª, sob o ponto de vista

das variadas personagens que compõe o evento, a trama ou uma determinada narrativa.

Esta comunicação consiste num relato de experiência com o objetivo de

identificar ações físicas do ator-narrador no processo de criação dramatúrgica, tendo,

como fonte inicial, reportagens jornalísticas.

No início do processo de montagem do espetáculo As Três Fiandeiras, pelo Grupo

Xama Teatro, uma série de exercícios foram propostos pelo diretor e dramaturgo, Igor

Nascimento, com a finalidade de identificar as ações físicas do ator-narrador.

A proposta visava descascar memórias, assim como se descasca a tinta de uma

velha parede, para alcançar algo que poderíamos chamar de essencial. A linha das ações

físicas nos parecia um caminho semeador para o encontro com a performance do ator-

narrador.

As atrizes do Grupo Xama Teatro trabalham com narração oral em suas atividades

artísticas, como oficinas, intervenções, programas radiofônicos, espetáculos e

contadores de historias, desde 2002. O longo tempo de trabalho com essa pratica fez

surgir uma serie de repetições em relação ao fazer teatral, envolvendo tom da voz,

posturas, gestos e que, acabaram por tornarem-se vícios das atrizes em sua forma de

narrar.

A ideia para o caminho criativo de re-descoberta do ator- narrador, veio como um

tesouro escondido nos lugares mais subterrâneos. A primeira noticia jornalística foi

encontrada, literalmente, em um córrego numa rua do Centro de São Luis, Ma. Nesse

momento, caminhava o diretor do espetáculo As Três Fiandeiras, Igor Nascimento,

ainda sem material concreto para o início dos trabalhos com as três atrizes, Érica

Quaglia, Gisele Vasconcelos e Renata Figueiredo, quando a noticia "Corpo de mulher

encontrado no matagal" veio aos seus pés como uma oportunidade para o início dos

trabalhos de criação e exercício de imaginação.

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A notícia trazia o relato simples de um acontecimento e, junto a ele, espaços

abertos para criação e imaginação do ator-narrador, que deveriam ser preenchidos por

imagens, associações e impressões. As primeiras impressões da leitura, são, para

Stanislavski (2003, p.21) como sementes, e com um "fervor virginal" devem acontecer

junto com o "entusiasmo e fervor artístico", que, para ele, são duas importantes

condições no processo criador.

Com o objetivo de encontrar, na face oculta do texto, um pouco de nós mesmas,

partimos para a recriação, agindo e reagindo fisicamente, estimuladas pelo exercício

com as ações físicas quando “o que é importante é o que você dá e traz para o texto e

você deve colocar nisso toda a sua vida!” (MOLIK, 2012, p. 54)

"Corpo de mulher encontrado no matagal".

O corpo de uma mulher foi encontrado em um local conhecido por Setor

das Pontes, no bairro Bacuri. O corpo estava com uma corda no pescoço e

com as partes inferiores dentro do Riacho Cacau.

A suspeita é de que ela tenha sido estrangulada e arrastada para o riacho.

a mulher estava com o braço direito engessado, o que determinou que ela

estava com uma fratura. Havia sangue recente, levando a crer que ela

tenha sido morta poucas horas antes de ter sido encontrada.

(...) Segundo moradores próximos, praticamente todos os dias um

homem, que seria o marido da vitima, ia busca-la no Setor das Pontes e,

às vezes, ela se escondia dele, entrando para um matagal as margens do

Riacho Cacau. No local, a mulher, que foi reconhecida em função do braço engessado

era chamada de Coroinha e seria moradora da Vila Vitória, cerca de 8km

do local onde foi encontrada. (O Estado do Maranhão, s/d, 2012)

Após a leitura da noticia “Corpo de mulher encontrado no matagal” e da retirada

das primeiras impressões do texto, o diretor solicita às atrizes a execução de cinco

ações. Este foi o começo de uma série de mal entendidos referente às ações físicas. Na

execução de uma sucessão de cinco gestos e movimentos (Ex. 1. apontar o caminho; 2.

Segurar o braço; 3. Enforcar; 4. Arrastar o corpo; 5. Demarcar o lugar), era possível

identificar apenas uma ação física do ator-narrador: ilustrar a história. Em todo

movimento havia apenas uma única ação com a finalidade de ilustrar, desenhar com

gestos no espaço o que se fala.

As ações, encontradas pelas atrizes, no exercício com a notícia “Corpo de mulher

encontrado no matagal”, remetiam sempre a ilustrar um fato, um determinado momento

da história. Cada ação cabia no lugar do fato narrado, distante de uma movimentação

rumo à veracidade, o que se via era um modo estereotipado, um pleonasmo, no qual a

fala e o gesto dizem a mesma coisa.

Diante da consciente confusão, o momento seguinte tinha como objetivo

experimentar novas ações e deixar de lado os clichês. "A ação verdadeira, a ação com o

propósito útil, despertada por impulsos interiores, tem primeiro de viver, e é isto que

tenta alcançar." (STANISLAVSKI, 2003, p. 265)

Uma vez que a "ação cênica não quer dizer andar, mover-se para todos os lados,

gesticular em cena", a questão não estaria "no movimento dos braços, das pernas ou

corpo, mas nos movimentos e impulsos interiores" (STANISLAVSKI, 2003, p. 69).

Nessa busca, os movimentos e impulsos interiores foram o caminho para a execução de

novos gestos e ações (Ex. 1. Apontar - anunciar; 2. Mãos em stop - alertar; 3. Tapar os

olhos - oprimir; 4. Bater no peito – denunciar).

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Os verbos anunciar, alertar, oprimir e denunciar tornaram-se estímulos para a

criação a partir das ações físicas do ator, agora, direcionada não somente ao “o que vai

fazer”, mas “por que” e “para quê”. Desta forma, a ação justifica-se pelo seu objetivo e

relaciona-se à função: “por que quando mexo sutilmente o meu braço, isso é um gesto.

Mas quando quero abrir o espaço, faço uma linha precisa com os dois braços, por

exemplo. Isso é uma ação e aquilo é um gesto” (MOLIK, 2012, p. 100).

As ações, enquanto partitura com começo, meio e fim, foram executadas,

inicialmente, sem o uso da palavra e, posteriormente, com a utilização de texto

improvisado, tendo como objetivo conservar a proposta do ator que narra, em terceira

pessoa e que, desta forma, não participa como personagem da história narrada.

As ações criadas, no segundo momento, foram trabalhadas juntamente com as

primeiras e remetiam ao superobjetivo de alertar, chamar atenção para os maus tratos

contra a mulher, contra a violência doméstica. Este foi objetivo geral encontrado no

exercício de improvisação com ações físicas da notícia jornalística "Corpo de mulher

encontrado no matagal". Uma mulher havia sido encontrada morta! Sim, este era o fato

do qual viriam ações concretas motivadas por questões: Por quê? Quem? Pra quê?

A atenção para a precisão e objetividade do gesto, da ação e da narração, evitando

os excessos, resultou no jogo dinâmico com variação de tempo-ritmo a partir da

variação do esforço (leve-forte) e da repetição das ações, gestos e palavras.

No jogo com ações físicas e vocais o resultado do trabalho criativo, incluía

execução das ações e a escrita criativa do texto.

Escuta agora o que eu vou contar (gesto de apontar para o publico, ação de

chamá-lo para a história, anunciar um episódio): Uma mulher caminhava,

acelerada e um homem a seguia, a mulher andava na frente e o homem

prosseguia caminhando atrás (ação de ilustrar o caminho com a

movimentação do braço direito), ela na frente, ele atrás, ela na frente, ele

atrás... ele na frente (pausa) alcançou a mulher. E o pior ainda está por vim (ação de alertar, mão em stop)! Com uma corda o homem a sufocou,

sufocou, ao ponto de ela não mais poder escutar, olhar, respirar, gritar por

socorro, aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa (ação de ilustrar, esticando pra

cima o braço direito) Eu vou continuar a história, por que eu sou mulher,

ela é mulher, tu és mulher, e eu quero respeito e cuidado! (ação de

indignação e alerta, batida no peito com a mão direita) Já desfalecida foi

jogada no chão sendo arrastada pelo homem, até a margem de um rio, onde

metade do seu corpo ficou na água e a outra metade, na terra. (agachada,

ação de indicar o espaço demarcando o lugar com as mãos) Acontece que

suas pernas, na água, começaram a se transformar num rabo de sereia, que

na água, se mexia, levando o homem para o fundo do rio, e de lá nunca mais apareceu. (Gisele Vasconcelos. 04/12/2012)

O desafio da constante busca pela precisão da ação física, assim como da escolha

das finalidades e objetivos, acompanhou a série de exercícios subsequentes envolvendo

reportagens jornalísticas e ações físicas do ator-narrador.

Diante da notícia jornalística “Pecuarista envolvido em trabalho análogo à

escravidão tem bens bloqueados pela Justiça” (Jornal O Estado do Maranhão, 05/12/

2012), era fundamental, em primeiro lugar, conforme lição de Stanislavski (2003,

p.159), “por em ordem para obter o fio da peça”.

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A identificação de quatro momentos importantes, exercício proposto pelo diretor

Igor Nascimento, faz referencia ao estudo das partes do texto como meio para chegar às

substancias interiores: “Para começar, contentemo-nos com o simples enredo exterior, o

fio dos acontecimentos” (STANISLAVSKI, 2003, p. 141).

A lista das partes componentes da notícia “Pecuarista envolvido em trabalho

análogo à escravidão tem bens bloqueados pela Justiça” compreendia: 1. Apresentação

do Gilrassic Park como zoológico cujo proprietário, Gil Alencar, mantinha 12

trabalhadores sob práticas desumanas; 2. Exposição das situações e condições nas quais

os trabalhadores eram submetidos; 3. Citação da poesia de Manoel Bandeira, O Bicho,

para ilustrar o horror pelo qual os homens eram submetidos; 4. Punição do explorador

por parte da justiça.

Para cada parte era necessário dar um título cuja beleza poética seria capaz de

despertar sentimentos em relação à sua recepção. A capacidade de criação da poética da

palavra, agradável aos ouvidos, propulsora de sentido e de interesse ao espectador/

ouvinte, desperta, ao mesmo tempo, vontade e as emoções do ator em seu processo

criativo.

Desse exercício, intelectual e criativo, resultam os seguintes títulos: 1. Gilrassic

Park, um zoológico de bichos homens; 2- Água de beber aos bichos, água de morrer aos

homens; 3- O que eu vejo? Um rato? Não, um homem!; 4- Sem dó, nem pena!

Identificado o título poético para cada parte, o exercício seguinte visava sua

qualificação: 1- curiosidade macabra, 2- indignação penosa, 3-piedade amargurada, 4-

vitória insatisfeita.

A palavra motivadora “pra quê”, acionada sobre cada qualificação, age como

força objetiva da narração? Narrar com indignação! Pra quê? Narrar com piedade! Pra

quê? Na resposta dos “pra quês” adveio o objetivo para a narração referente a cada

parte: 1. Narrar para amedrontar; 2. Para conscientizar; 3. Para impressionar e 4. Para

criticar.

Todas as qualificações devem convergir para uma linha direta de ação,

percorrendo toda a obra, à luz do superobjetivo, proposto por Stanislavski (2003, p. 99),

como um desejo que “contém o significado, o sentido íntimo de todos os objetivos

subordinados da peça”.

Coube à ação “denunciar” a atitude geral do ator- narrador em relação ao texto. A

partir dela todas se convergiam dada a sua função de englobar as demais e de evocar

impulsos para narração / ação.

Os objetivos são como notas musicais, formam os compassos, que por sua

vez produzem melodia, ou melhor, as emoções – um estado de mágoa,

alegria, etc. A melodia se desenvolve, formando uma ópera ou uma

sinfonia, ou seja, a vida de um espírito humano num papel, e isso é o que

a alma do ator canta. (STANISLAVSKI, 2003, p. 72)

Uma terceira notícia jornalística, com a imagem de um jumento sendo retirado de

um buraco, com o apoio de um sofá, trazia, como texto, apenas frases de legenda da

imagem. Os espaços abertos para criação impulsionaram a identificação de personagens

e circunstâncias para a ação. Bombeiro, curiosos, motorista do trator, burro, jornalista e

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fotógrafo foram tomados como papéis para o exercício das ações e das circunstâncias

propostas.

Com a finalidade de impulsionar o estado criativo do ator e conduzi-lo para o

jogo, aciona-se a imaginação e ação fazendo uso do “se mágico”. Desta forma, o ator-

narrador passa a agir concretamente dentro de uma determinada situação e responde às

circunstancias através da narração / ação.

Na busca da veracidade na fala e ações, do essencial que se esconde por baixo da

tinta descascada da velha parede, por baixo das palavras do texto e por trás de cada

papel, Stanislavski (1994, p. 137) nos indica o caminho do subtexto e do “se mágico”:

O subtexto é uma teia de incontáveis, variados padrões interiores, dentro

de uma peça e de um papel, tecida com “se mágicos”, com circunstâncias dadas, com toda sorte de imaginações, movimentos interiores, objetos de

atenção, verdades maiores e menores, a crença nelas, adaptações, ajustes

e outros elementos semelhantes. É o subtexto que nos faz dizer as

palavras que dizemos num peça.

Nas circunstancias dadas para o papel do curioso, juntamente com as ações da

atriz (espiar e saltar para olhar), no jogo proposto para a notícia do resgate do jumento,

pergunta-se: - e se for uma criança, e se alguém tiver sido atropelado, se foi uma bala ou

um tiro e se tiver atingido alguém, se for minha pequena?

Para o motorista, apresentado pela atriz-narradora, que executa as ações de afastar

os curiosos, questões são postas como circunstancias que afetam a narração em relação

ao corpo-voz, tempo-ritmo, emoção e imaginação: - e se esse guincho não suportar o

peso, se esse povo não sair da frente, se acabar machucando alguém, se não chegar a

tempo?

Na execução da narração / ação o tempo-ritmo relaciona-se com os estados de

ânimo e sentimentos, dinamizados nas relações entre espaço e tempo. Para Stanislavski

(2004, p. 214), o tempo – ritmo interior se manifesta no tempo-ritmo exterior através

das ações físicas e pode “afetar nossa disposição interior, a disposição do espírito, pode

fazer adormecer ou levar ao auge da excitação”.

No processo de criação do ator-narrador, as circunstancias dadas estimulam o

tempo-ritmo dos movimentos e da fala, assim como o tempo-ritmo provoca

sentimentos, sensações e sentimentos nas circunstâncias. Stanislavski (1994, p. 220)

afirma que “o tempo-ritmo só pode ser evocado e sentido com clareza se houver a

presença de imagens interiores que lhe correspondam, se forem sugeridas certas

circunstâncias para afetar as emoções referentes aos objetivos e ações a serem

efetuados”.

Na experimentação de circunstancias para o papel do animal, no exercício do

resgate do jumento, a atriz-narradora tomada pelo estado de aflição, no chão com o

movimento do sacudir as pernas para o alto, responde, de forma concreta, às

circunstâncias: - se ninguém me encontrar, se eu ficar pra sempre nesse buraco, se me

encontrarem e não conseguirem me tirar daqui?

As imagens mentais sugeridas pelas circunstancias criam o estado de aflição e a

movimentação do corpo, que se fundem enquanto duas naturezas, espiritual e física, nas

quais “o espírito não pode deixar de reagir às ações do corpo, desde que estas sejam

autênticas, tenham um propósito e sejam produtivas” (STANISLAVSKI, 1994, p. 162).

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Na proposta da performance do ator-narrador, pergunta-se sobre onde começa o

narrador e onde começa a personagem, quando quem fala é o narrador e quando é a

personagem? No rumo dessa questão trabalha-se o revezamento de terceira e primeira

pessoa, onde a terceira pessoa aborda a personagem abstratamente e primeira

concretamente.

No exercício desse revezamento tem-se a execução de falas, em primeira pessoa, a

partir dos subtextos e circunstâncias dadas, para as personagens da notícia do resgate do

jumento:

Curioso: Por que toda essa gente reunida? O quê aconteceu? Deixa eu passar... Será que foi uma criança? Um atropelamento? Deixa eu passar?

Deixa eu ver se não é minha menina! Não! Não é minha menina! É um

bicho! Não sei se choro ou se dou risada! É um bicho, e agora me sinto

aliviada! Mas é um bicho e eu to rindo por isso!

Motorista: Ora, mas que tanta gente na frente! Sai, Sai! Mas que trator

lerdo! Anda! Sai moleque! Sai da frente!

Animal: Me tira daqui! Não me deixem aqui nessa escuridão! Não quero

ficar aqui! (Gisele Vasconcelos. 17/12/2012)

Sob o ponto de vista de cada uma destas personagens, o ator-narrador experimenta

a fala em 3ª pessoa:

Sob o ponto de vista do curioso, a ação de coibir do ator-narrador, traz para a

personagem qualificações que o identificam como fuxiqueiro, com variações no tempo-

ritmo, corpo-voz, emoção e imaginação na narração / ação estimuladas, pelas

circunstancias e ações físicas:

- Havia um círculo com muita gente, gente miúda, gente grande, em baixo,

em cima, por todo lado e direção! Um curioso aflito pedia passagem,

atropelava os outros, tentava ver, olhar o que acontecia ali, o que

mobilizava toda aquela multidão. Tentava por baixo das pernas. Era

impedido! Pisavam-lhe a cabeça! Tentava subir nos ombros de outro

alguém! Era impedido! Formavam colunas de gente a sua frente! Quando enfim... conseguir olhar... quase não acreditava! Égua! Era um jumento, um

bicho socorrido! (Gisele Vasconcelos. 17/12/2012)

Sob o ponto de vista do motorista do trator, cuja ação glorificar, deu ênfase à

narração / ação, tem-se a seguinte escrita criativa:

- Em meio a um círculo de gente de todo tamanho, surge um objeto enorme

amarelo, com uma tromba gigantesca e dentes afiados, era um trator guiado por um outro trator, um homem rude, grosso, gordo e de voz grossa que

gritava pra multidão! “Deixa eu passar, seu bando de fuxiqueiro! Sai

moleque!” Com toda sua “rigidez” o homem conseguiu tirar o animal

daquele profundo buraco. (Gisele Vasconcelos. 17/12/2012)

O caminho da re-descoberta do ator-narrador, experimentado pela atrizes do

Grupo Xama Teatro (MA), a partir de noticias jornalísticas, trouxe para o trabalho

prático a relação entre ação física, objetivo e circunstancias dadas. Na mobilização de

seus elementos (corpo-voz, tempo-ritmo, emoção e imaginação), o ator-narrador parte

do desejo de induzir visões interiores nele mesmo e na sua audiência, fazendo surgir

uma série de ações.

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Ao descascar a tinta da velha parede compartilha-se com Stanislavski (2003, p.

281): “o essencial não está nessas pequenas ações realísticas, e sim em toda sequência

criativa efetivada graças ao impulso dado por essas ações físicas.”

Referências Bibliográficas

STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Tradução de Pontes de

Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. Tradução de Pontes

de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.

MOLIK, Zygmunt; CAMPO, Giuliano. Trabalho de voz e corpo de Zygmunt

Molik: o legado de Jerzy Grotowski. Tradução de Julia Barros. São Paulo: É

Realizações, 2012.

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS CORPORAIS

ATÉ A DRAMATURGIA DO ATOR

A DRAMATURGIA E AS COMPLEXIDADES DO PERSONAGEM

Autora: Nayara Lopes Botelho; Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia/IFTO - Campus Gurupi

Coautor: Professor Brenno Jadvas Soares Ferreira/IFTO – Campus Gurupi

Resumo

O ator cumpre um papel muito complexo, utilizar seu corpo como fonte de uma

nova existência; através dele (o corpo), deve-se trabalhar o psicológico, o físico e o

emocional, tudo isso em vista de um bem maior, a construção de uma personagem.

Através das ações físicas, o ator como um artista criativo, deve estabelecer total

intimidade entre ele e a personagem, através de seu corpo, o ator deve constituir signos

corporais, tais signos tem o papel de avivar na personagem, todas as suas emoções e

intenções, o que no caso, o ator deve estudar cautelosamente, assim externando as

relações claras, em atos reveladores de seu interior. Tais relações devem ser

evidenciadas através das partituras de ação, o que resulta na dramaturgia própria do ator

para o seu personagem. Stanislávsky propõe que a emoção independe da vontade. E as

partituras servem como recursos que colaboram para a liberação tanto da mente quanto

do corpo, o que envolve uma pesquisa contínua, repetitiva e disciplinada da parte do

ator. Meu primeiro contato com o método stanislavskyano foi quando eu estava a

montar meu primeiro espetáculo “profissional” Ópera do Malandro, no qual representei

Teresinha Fernandes de Duran, o que me proporcionou a construção de uma

dramaturgia propicia a minha personagem, deste modo vivenciei o que Stanislávsky

acreditava: que o método das ações físicas em conjunto com a análise do texto resultaria

na criação da vida do personagem. É isso que vou abordar neste estudo sobre

Stanislávsky.

Palavras Chaves: Teatro, Partituras de Ação, Stanislávski.

Ser ator não é fácil, pois cada personagem é um desafio. Como todo ser humano

tem a capacidade de ser expressivo, o personagem deve ser construído com todas as

suas capacidades intelectuais, emotivas e psicológicas, deve haver ações que

proporcionem ao personagem uma vida real, natural, normal e clara ao público que

assiste. O ator deve ter um corpo disponível a qualquer eventualidade que seu

personagem exija, além de saber lidar com cada fluxo de energia que o personagem

pede.

Para que o ator desempenhe um bom trabalho é necessário que ele estude

cautelosamente, assim externando as relações claras, em atos reveladores de seu

interior. Tais relações devem ser evidenciadas através das partituras de ação, o que

necessita de uma boa preparação corporal e construção psicológica do personagem que,

pois assim se saberá o que ele gosta, o que ele quer, o que ele faz, o que ele pensa,

sente, deseja para si próprio, e entre outras características que chamamos de construção

psicológica da personagem.

O método Stanislávski propõe a esse ator que deseja experimentar a verdade

cênica em seu trabalho e não só a imitação, que ele desenvolva suas ações físicas,

desenhos/signos corporais e variações rítmicas, através das linhas diretas de emoções e

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memória emocional – onde libera o subconsciente -, tudo isso estimularia a pesquisa do

ator pela vida interior da personagem, o que produziria a realidade no palco - o realismo

psicológico -, que se manifesta nas ações que o ator desenvolve, tendo assim o objetivo

de trazer a consciência corporal interligada à emotiva para o corpo do ator, o que deve

deixar claro ao público a relação que o corpo do ator tem com a vida e as intenções do

personagem. Tais recursos interiores colaboram para a liberação tanto da mente quanto

do corpo, o que envolve uma pesquisa contínua, repetitiva e disciplinada da parte do

ator.

Em minha formação no curso técnico em Arte Dramática no IFTO, pude

vivenciar de forma prática o que Stanislávski disse em seus trabalhos sobre a preparação

e processo criativo de um ator. Na construção da minha personagem, Teresinha

Fernandes de Duran no processo de montagem do espetáculo Ópera do Malandro de

Chico Buarque, dirigida pelo professor Brenno Jadvas, eu me deparei com a

necessidade de pesquisar as possibilidades que o meu corpo poderia dar à Teresinha,

assim interligando minhas ações com os sentimentos e intenções dela, o passado em que

ela viveu e o futuro que ela almejava. Com esse estudo pude perceber que o ator que

deseja ser profissional deve ser detalhista em suas ações, objetivos e emoções. O ator

deve expor seu personagem ao público de uma forma muito clara e isso só é possível –

de acordo com os estudos de Stanislávsky -, através das partituras corporais que o ator

deve construir estudando o personagem de forma mais intimista.

Assim, ao mesmo tempo que eu estudava a teoria de Stanislávsky, fui ao mesmo

tempo aplicando-a em meu trabalho de criação da personagem, assim concordo com a

frase do referido autor que diz: “O ator deve ter uma grande força de vontade”.

(STANISLÁVSKY, 1997. p. 209) E também quando o mesmo diz:

O realismo espiritual e a autenticidade dos sentimentos artísticos (...)

constituem a mais difícil [realização] de nossa arte, exigindo, ambos,

uma árdua e longa preparação interior. A diferença entre minha arte e

aquela [praticada por outros] é a diferença entre "parecer" e "ser”.

(STANISLÁVSKY, 1997. p. 208)

E foi exatamente isso que eu tive que me disciplinar para alcançar, deixar de

imitar a minha personagem e passar a vivê-la de forma autentica, consciente e realista

no palco.

A linha contínua

Um dos pontos que Brenno sempre cobrava de mim e do restante do elenco da

Ópera do Malandro era a intensidade, a energia de cada cena. Não podíamos quebrá-la,

não poderíamos cortá-la, pois isso colocaria a nossa apresentação em cheque. Então, a

solução que eu encontrei para sempre manter o ritmo da cena foi, além de estudar o

texto extraindo assim o subtexto, identificar em minha realidade o tempo-ritmo do

movimento de cada cena.

Cada cena tem seu conteúdo, suas ações e seus objetivos específicos, além de

cada personagem, portanto, eu tive que trabalhar minha imaginação para que assim eu

pudesse produzir a imagem e sons interiores. Segundo Stanislávski esse recurso de

criação do ator tem sua eficácia, pois dá “vida às circunstâncias entre as quais nos

movemos.” Sendo, na concepção do referido autor que, nós nunca podemos deixar de

representar alguma coisa quando estivermos em cena, que sempre devem haver ações

vivas em nosso gestos e movimentos, e os mesmos devem ser orgânicos e objetivos. A

alternativa que eu encontrei foi imaginar, pois imaginando eu realmente conseguia ficar

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mais consciente a todas as partes do meu corpo em cena e também conseguia fixar

minha atenção e concentração na vida de minha personagem.

O fluxo de imagens que Stanislávski comentou realmente permite que nós atores

tenhamos “a faculdade de ver coisas que na verdade não existem; para tanto, criamos

uma imagem mental das mesmas.” (STANISLÁVSKY, 1997. p. 106) O que para mim,

possibilitou realmente a linha contínua que meu diretor sempre cobrava. Com tais

imagens eu pude manter o fluxo de energia que cada cena pedia isso de acordo com seu

objetivo. Portanto,

O ator e o papel têm, nessas linhas contínuas, sua razão de ser, uma vez

que elas dão vida e movimento ao que está sendo representado. (...) Em

essência, um papel deve ser caracterizado por um andamento

ininterrupto e por sua linha contínua. (STANISLÁVSKY, 1997. p.

120)

Através dessa linha contínua realmente houve ação, assim alcançando o objetivo

determinado para aquela e as demais cenas.

A memória emotiva

No processo de criação da minha personagem, me deparei com uma barreira que

de certa forma me impedia de continuar a explorá-la. Era a de não estar mais

conseguindo produzir as vontades espontâneas que cada momento pedia. De tanto

ensaiar, repetir, ler, tentar novas alternativas para gestos, comecei a atuar de forma

mecanizada, a organicidade não estava mais latente em meu corpo e também em minhas

intenções. Foi então que, ao voltar-me novamente a Stanislávski, percebi que haveria

uma saída para tal improdutividade.

Não há ações físicas dissociadas de algum desejo, de algum esforço

voltado para alguma coisa, de algum objetivo, sem que se sinta,

interiormente, algo que as justifique; não há uma única situação

imaginária que não contenha um certo grau de ação ou pensamento;

nenhuma ação física deve ser criada sem que se acredite em sua

realidade, e, conseqüentemente, sem que haja um senso de

autenticidade. Tudo isso atesta a estreita ligação existente entre as

ações físicas e todos os chamados "elementos" do estado interior de

criação. (STANISLÁVSKY, 1997. p. 2 e 3)

A solução deste momento de falta de espontaneidade e criatividade foi buscar

então os elementos do estado interior de criação. O referido autor disse então que,

Em cena, como na vida real, os elementos - ação, objetivos,

circunstâncias dadas, senso da verdade, concentração da atenção,

memória emocional - devem ser indivisíveis. Eles atuam

simultaneamente uns sobre os outros, e complementam-se

mutuamente. (...) São os componentes básicos e orgânicos (...)

necessários ao estado criador de um ator. (STANISLÁVSKY, 1997.

p. 69)

A partir deste momento então fui em busca do senso da verdade, da

concentração, e principalmente da memória emocional que tanto me fazia falta. Notei

então que, antes de tudo eu deveria ter disciplina tanto corpórea quanto psicológica, eu

deveria aprender a me concentrar mais e também a treinar mais, treino este que seria

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através da repetição. Percebi que se houvesse um empréstimo de minhas emoções – as

que um dia eu senti, e até as que eu sentia -, da minha parte para a minha personagem,

eu conseguia reviver a organicidade que tanto buscava e era necessária a Teresinha.

Então os sentimentos que Teresinha necessitava, tinham suas bases iniciais em minha

própria experiência de vida.

Outra coisa que fui obrigada a realizar para o bom desempenho de minha

personagem foi a subdivisão do meu texto em pequenas partes, as chamadas unidades

de ações. Estas foram divididas segundo a linha contínua das cenas como um todo. Com

isso, além de conseguir concentrar minha atenção de forma mais objetiva às emoções e

também aos gestos que eram necessários à cena, eu pude mais facilmente colocar em

ação o subtexto que também Stanislávski tanto falava. E desta forma, houve uma

mudança em minha atuação.

O subtexto reforça tanto mais o texto quanto mais diferir dele. Produz

uma entonação mais rica, mais variada ou propõe uma ambiguidade.

Moldável à vontade, renova-se à vontade do comediante, impedindo-o

de cansar-se de seu próprio texto. Ele alimenta a personagem. É um

vetor de inflexão e um suporte da memorização. Na aplicação do

processo stanislávskiano, o ator nunca decora o texto palavra por

palavra, e repetindo os encadeamentos de seu subtexto, seguindo todo

dia os mesmo meandros de seu itinerário interior, que desencadeia os

sentimentos e que lhe acodem as palavras do texto. (PAVIS, 2008. p.

368)

As ações físicas

Dentre todos esses desafios que me deparei com a construção da minha

personagem, as experimentações dos gestos foi uma das mais difíceis. Mesmo porque,

meu diretor havia proposto que eu teria que dividir meu personagem com mais uma

atriz, devido ao pouco numero de personagens na peça e ao grande número de colegas

no curso, assim Teresinha e Lúcia tiveram que ser encenadas por duas atrizes

concomitantemente.

Eu e minha colega, tivemos que estudar e experimentar muitas partituras físicas

de forma aproximada. Isso era um desafio, pois além do meu corpo não ser parecido

com o dela em sua estrutura física, ela tinha em si, um jeito mais delicado e feminino

que o meu. Lembrei-me então do que Stanislávski disse: “Um ato físico trivial adquire

um enorme significado interior: a grande luta interior procura uma válvula de escape

através de uma dessas ações exteriores.” (STANISLÁVSKY, 1997. p. 2) Então, eu e

minha parceira decidimos criar um gesto típico para nossa personagem, gesto este que

estaria presente em todas as maiores ações que Teresinha desempenharia em cena.

Visto que, a interpretação que estávamos dando a nossa personagem era de uma

mulher esnobe, interesseira e extremamente inteligente além de fina, surgiu então à

necessidade de evidenciar o caráter dela através do corpo. Então, a partitura que definiu

Teresinha em nossa montagem foi simplesmente: o braço direito dobrado a frente do

corpo e servindo de apoio ao braço esquerdo que ficava dobrado enrolando o cabelo,

quadril direcionado para o colega que estava em cena e a perna direita ficava um pouco

flexionada, dando assim um ar feminino e poderoso.

Foi neste momento que a citação a seguir fez sentido para mim, o que

evidenciou o método stanislávskiano na interpretação de minha personagem; “[...] o

ponto principal das ações físicas não está nelas mesmas, enquanto tais, e sim no que

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elas evocam: condições, circunstâncias propostas, sentimentos.” (STANISLÁVSKY,

1997. p. 3) O sentido de partitura de ação física somente fez sentido para mim quando tive

que evidenciar o caráter e a intenção de minha personagem através de meu corpo e,

também quando, para me orientar em cena tive que criar diversos gestos e ações

sistematizados para realizar a função objetiva de minha atuação na cena. Assim, mesmo

quando não realizava uma ação que necessitava de meu corpo como um todo, realizando

um gesto ou movimento, eu aprendi a desenvolver a ação interna, o que me permitiu

ficar “viva” no palco.

Uma das facilidades que eu tive para desempenhar organicamente as ações

físicas da peça foi manter meu corpo sem pontos de tensão. E isso exigia então, que

antes de entrar em cena, eu me separasse do restante do elenco e me preparasse com

alongamentos e exercícios que disponibilizassem meu corpo ao movimento de forma

consciente e realista.

Quando tiverem desenvolvido força de vontade em seus movimentos e

ações corporais, vocês terão muito mais facilidade em incorporá-los

ao seu papel, e aprenderão a entregar-se sem pensar, instantânea e

inteiramente, ao poder da intuição e da inspiração.

(STANISLÁVSKY, 1997. p. 7)

Considerações acerca da temática

A construção de minha personagem proporcionou essas e muitas outras

experiências que me fizeram crescer profissionalmente e entender mais sobre o método

stanislávskiano, pois era exatamente este que o meu diretor trabalhava com minha

turma. Apenas ler sobre a teoria do referido autor não adianta para nós que desejamos

vivenciá-la e aplicá-la em trabalhos futuros. Percebi que o ideal é estudar a teoria e em

conjunto, aplicá-la em uma montagem ou experimento cênico.

De qualquer forma, posso dizer que realmente foi gratificante para mim,

enquanto atriz e estudante do método de Stanislávski ter uma dramaturgia corporal

construída de forma consciente, orgânica e perceber que cada ação possuía uma

intenção diferente, e esta por sua vez, produziria um efeito condizente às necessidades

da cena e da personagem naquele momento.

(...) O trabalho de um ator não é criar sentimentos, mas apenas

produzir as circunstâncias dadas, nas quais os sentimentos

verdadeiros serão espontaneamente criados. (...) "Sentimentos que

parecem verdadeiros" (...): isto não quer dizer sentimentos reais, mas

algo muito próximo deles e das emoções criadas de forma indireta,

através da incitação de sentimentos interiores autênticos.

(STANISLÁVSKY, 1997. p. 9)

O ator deve aprender a acreditar naquilo que está fazendo. A verdade cênica

neste sentido exerce de forma importantíssima sua função, pois, representar com

realismo e organicidade, requer acreditar naquilo que esta realizando. “O objetivo do

ator deve ser o de transformar a peça numa realidade teatral. (...) Na vida imaginária

de um ator tudo deve ser real.” (STANISLÁVSKY, 1997. p. 167)

Construindo esse universo imaginário a partir do estudo do texto é onde o ator

consolida a fusão de sua dramaturgia com a do autor. Cabe ao ator dar o „colorido‟ às

falas e ações propostas pelo autor, percebendo suas nuances e desenhos rítmicos. As

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partituras corporais podem ser consideradas como um „novo texto‟, criado a partir do

texto proposto pelo autor. Elas possuem uma vida própria que tornam possível o elo

entre o público e os acontecimentos vividos pela personagem em busca de seus

objetivos na cena.

Referências bibliográficas

ASLAN, Odette. O ator no século XX: evolução da técnica/problema da ética. São

Paulo: Perspectiva, 2003.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2008.

STANISLÁVSKI, Constantin. Manual do ator. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes,

1997.

AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. SP: Perspectiva,

2004.

GUINSBURG, J. Dicionário de Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. 2 edição

rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva/ Edições SESC SP, 2009

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURASCORPORAIS ATÉ A DRAMATURGIA DO ATOR

STANISLÁVSKI E ESTADOS ANÍMICOS:

Reflexões sobre Modos de Atuação no Trabalho do Núcleo de Pesquisa ÁQIS

Patricia Leandra Barrufi Pinheiro; André Luiz Antunes Netto Carreira (orientador); PPGT – UDESC

“Será que devemos usar nossos mesmos e velhos sentimentos (…) em todos os tipos de papel, de Hamlet a Sugar, em O pássaro azul? E o que mais podemos fazer? (…) Vocês esperam que um ator invente todo tipo de novas sensações, ou até mesmo uma nova alma, para cada papel que interpretar? Quantas almas teria ele que abrigar?” (Stanislavski, 1988 p. 21)

O grupo de pesquisa ÁQIS – Núcleo sobre Processos de Criação Artística (UDESC), estuda desde 2007, formas de atuação através dos chamados Estados Anímicos. Entende-se por Estados Anímicos o ato de expressar “emoções”, “sensações”, mudanças fisiológicas e/ou comportamentais, buscando assim, uma linguagem corporal. Para o grupo de pesquisa o trabalho com os Estados é um campo de experimentação teatral que não se pauta na representação, mas sim numa proposta de criação e atuação através de estados emocionais gerados de forma lógica pelo ator. Ou seja, o ator define um estado desejado (tristeza, alegria, cansaço, excitação, entre outros) e busca codificar em seu corpo as formas de acessar essa “sensação”: acelerar a respiração, tensionar partes do corpo, etc. Na atuação por estados, os atores identificam logicamente os “gatilhos” para conseguir chorar, por exemplo.

A proposta inicial do trabalho do grupo foi trabalhar a partir da nossa própria noção do que seriam os chamados Estados Anímicos, sem contaminações de definições já pré-estabelecidas, buscando assim, uma pesquisa prática. E em um segundo momento, fomos em busca de conceitos, partindo para estudos teóricos para embasar o trabalho. Neste artigo procuro fazer uma reflexão sobre o trabalho com os chamados Estados Anímicos, utilizando algumas conceitos de Stanislávski em união com a teoria desenvolvida pelo grupo ÁQIS.

O processo com os Estados Anímicos teve início como um desejo de iniciar uma pesquisa consistente e diferenciada, da pesquisa corporal que já realizávamos, voltado para experiências de atuação. Segundo Carreira (2011) “estes estados são induzidos e experimentados pelos atores como jogo” e posteriormente colocados em cena no processo de interpretação.

A construção de jogos de interpretação impulsionada pela experimentação de estados anímicos articula uma condição de interpretação independente da lógica do texto, da história, das motivações internas da personagem proposta pela

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dramaturgia. Então se pode dizer que buscar um estado – de alegria, de tristeza, de imobilidade, de euforia, de depressão etc. -, é buscar uma condição básica, um patamar sobre o qual será construído o processo de interpretação. (Carreira & Fortes, 2011 p.12)

Com base nessa forma de atuação, o núcleo de pesquisa teatral Áqis criou os espetáculos “Circus Negro” (2008), “Pequenos Burgueses” (2011) e “Baal” (2013). Uma das premissas para a criação teatral do grupo é que a construção corporal precede a leitura do texto, não devendo assim, os atores se influenciarem pelos personagens que interpretam.

No trabalho com os Estados Anímicos acredita-se que “despertar” o sentimento (ou sensação) por ele mesmo, sem a intenção de contextualizar uma cena específica ou um texto específico, auxilia na busca por uma ruptura na interpretação. Para uma maior compreensão, podemos ainda definir Estados como:

as emoções como reações subjetivas e experiências associadas a variações fisiológicas e comportamentais, comunicando a condição interna da pessoa aos outros, provocando uma resposta. Identificamos estados emocionais não somente por suas expressões faciais, outrossim, pela atividade motora, linguagem corporal e mudanças fisiológicas. (Pereira in Carreira & Fortes, 2011 p. 114).

Ou seja, a atividade motora, a linguagem corporal e as mudanças fisiológicas ditam a condição dos estados muito além das expressões faciais, o ato de “mostrar” estar triste, alegre, etc. Outra questão bastante pertinente ao grupo é a liberdade de improvisação, nas mudanças de estados e na relação com os outros atores. Em nossos estudos, encontramos uma definição do pesquisador teatral Jorge Dubatti, sobre o Teatro de Estados, que se assemelha a nossa compreensão do ato de improvisar a partir de Estados Anímicos. O autor cita que no Teatro de Estados, mesmo realizando experiências com o texto e “desviando a história e extraviando o tempo cronológico pelo tempo de intensidades”, podem surgir “novos espaços-tempo” (Dubatti, 2007).

A questão de criar diferenciados tempos de intensidades e de experimentações (mesmo utilizando um texto, não nos prendemos a ele), torna a pesquisa pela atuação através de estados algo desafiador. Isso acaba obrigando os atores do grupo a questionarem constantemente seus conceitos e seu produto artístico.

Entende por teatro de estados um teatro de corpos de atores afetados pelo acontecimento teatral, pela ação da poética. Um teatro em que vale mais as presenças do que as ausências, um teatro do aqui e agora, do “entre”, que relacionam atores com atores e atores com espectadores (Dubatti , 2013).

Neste contexto, pode-se citar que as investigações cênicas do Áqis contrariam algumas ideias de Constantin Stanislavski.

É possível alguém sentar-se em uma cadeira e sem nenhum motivo ter ciúmes? Ou ficar todo emocionado. Ou triste? Claro que é impossível (…) em cena (…) não pode haver, em circunstância alguma, qualquer ação cujo objetivo imediato seja o de despertar um sentimento qualquer por ele mesmo. Desprezar essa regra só pode resultar na mais repugnante artificialidade. (Stanislavski, 1986 p. 68)

Stanislávski, também utilizou-se da palavra “Estados” no trabalho com atores. Ele buscou a compreensão de estados físicos-espirituais que auxiliassem os atores em seus processos criativos. Mas é interessante ressaltar que, apesar de Stanislávski utilizar-se do termo, este se difere na forma compreendida pelo grupo de pesquisa ÀQIS. Todavia, a compreensão da noção de Estado Interior de Criação, citada por Stanislávski é de supra importância para compreender o trabalho desenvolvido pelo grupo. Para o diretor russo,

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esse Estado Interior é alcançado pelo união de elementos como mente, vontade, sentimentos e disponibilidade de atuação. Para ele, no Estado Criador, é muito importante a “ausência de toda e qualquer tensão física e a completa subordinação do corpo à vontade do ator”, e que a criatividade seria “condicionada pela absoluta concentração de toda a natureza do ator” (Stanislávski, 1988 p.65).

Sobre o Estado Criador, Stanislávski fala ainda sobre desenvolvermos um domínio pleno e completo (ele fala da arte, mas podemos contextualizar aqui, o domínio sobre o corpo e a atuação). No trabalho com os estados também se busca esse controle sobre o corpo, esse domínio sobre o que estamos criando e desenvolvendo como um trabalho de atuação. Nas palavras mais precisas de Constantin Stanislávski acerca desse ato criativo, “Um ator volta-se para o seu instrumento criador, tanto espiritual quanto físico. Sua mente, vontade e sentimentos combinam-se para mobilizar todos os seus elementos interiores”, surgindo assim o que ele define como estado interior de criação, afirmando que assim os atores são capazes de possuir “domínio pleno de sua arte” (Stanislávski, 1988 p.65). O “sistema” leva o ator ao estado criativo através da perda da tensão muscular e objetiva exprimir os estados interiores pela imaginação.

Podemos pensar também na definição das Ações Físicas no contexto com o trabalho com os estados. Principalmente quando o autor fala sobre objetivo e autenticidade. A pesquisa prática dos atores almeja uma definição dos objetivos da construção de seu estado. Eu, enquanto pesquisadora, procuro que estes objetivos sejam claros e autênticos em minha construção criativa.

Não há ações físicas dissociadas de algum desejo, de algum esforço voltado para alguma coisa, de algum objetivo, sem que se sinta, interiormente, algo que as justifique; não há uma única situação imaginária que não contenha um certo grau de ação ou pensamento; nenhuma ação física deve ser criada sem que se acredite em sua realidade, e consequentemente, sem que haja um senso de autenticidade. Tudo isso atesta a estreita ligação existente entre as ações físicas e todos os chamados “elementos” do estado interior de criação. (Stanislávski, 1988 p. 2)

No trabalho realizado no espetáculo “Circus Negro” (2008), a proposta do ÁQIS foi trabalhar com os estados anímicos levados ao extremo e ao mínimo (de forma física). Inclusive definimos graus de atuação destes estados. Poderíamos mantê-los em determinadas porcentagens aproximadas: 1%, 15%, 50%, 80% e 100% (ou poderíamos variar entre estas porcentagens de acordo com nossa vontade). Nesta montagem, foi escolhido apenas um estado como fio condutor para cada atuação. A performance foi criada para ser apresentada no espaço urbano, com utilização de trajeto. O público precisava acompanhar os atores, numa espécie de procissão por vários locais, onde os atores estipulavam que aconteceriam as cenas. Então, a manutenção dos estados deveria se dar por todo esse momento: na relação e na condução do público, na relação com os atores em cena.

Posteriormente a este trabalho, o grupo lançou um livro intitulado “Estados: Relatos de uma experiência de pesquisa sobre atuação” (2011 – UDESC) com artigos escritos por todos os integrantes, onde expõem suas compreensões sobre o processo laboratorial criado com os Estados. Um dos artigos, contextualiza o modo de construção individual dos atores, explanando sobre como estes pensaram sobre seus processos criativos, estímulos, recursos físicos, experiência, modificações e articulação entre texto e estado. Uma das afirmações mais recorrentes foi que a busca pelo estado realmente partia de algo muito íntimo e interno, e que “(...) vários foram os caminhos experimentados por cada ator”, onde chegamos a conclusão que “os questionamentos individuais se intersectam a partir das indagações sobre o jogo com os estados” (Santos in Carreira & Fortes, 2011 p. 33).

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A explicação do processo criativo de uma das atrizes, que também participou da escrita do livro, define bem o trabalho que realizamos para a performance do “Circus Negro”. A atriz Naiara Alice Bertoli transcreve suas impressões físicas quando almejava encontrar os estados de depressão e choro:

(…) encontrei uma forma física que foi se definindo ao longo da pesquisa e que ao final, consistia em movimentar rapidamente o pé direito de forma que toda a perna balançasse e então eu deixava que esse movimento fluísse em todo meu corpo. Ao mesmo tempo, comprimia o abdome repetidas vezes, forçando o ar a sair pela boca. Com a junção do movimento que vinha da perna, o abdome começava a fazer movimentos fragmentados, como quando choramos ou rimos. Porém nesse momento, o impulso para que o estado realmente se instaurasse era auxiliado pelas imagens. Eram imagens provocadas: olhava para alguém com um estado melancólico e sentia pena, tristeza; (…) Mas assim que o choro vinha, começava a focar no abdome e era o suficiente para que me levasse ao extremos do estado (…). (Bertoli in Carreira & Fortes, 2011 p. 85)

Já para a criação dos “Pequenos Burgueses” (2011), a ideia era intercalarmos dois estados e explorar a transição entre eles. Nesta experiência trabalhamos com a noção de camadas, sobrepondo informações como figurino, relação e sobreposição de estados. Isso recorda o pensamento de Stanislavski sobre a composição de elementos em cena e que estes não podem ser dissociados do trabalho de ator: “Em cena, como na vida real, os elementos - ação, objetivos, circunstâncias dadas, senso de verdade, concentração da atenção, memória emocional – devem ser indivisíveis”, afirmando ainda que “Eles atuam simultaneamente uns sobre os outros, e complementam-se mutuamente”, sendo portanto componentes “básicos e orgânicos (…) necessários ao estado criador de um ator” (Stanislávski, 1988 p.55). A apresentação do “Pequeno Burgueses” se deu em uma sala fechada, decorada como sendo uma casa familiar, com sofás, televisão, mesa de cozinha, bebidas e comida. Os atores só ficaram conhecendo o cenário no dia da apresentação e tiveram que aprender a se relacionar com esse local de modo improvisado. Outro diferencial do experimento em questão, era que os atores nunca haviam ensaiado juntos. Uma das propostas era exatamente lidar com o desconhecido: o espaço e a apresentação em si. Como continuamos apresentando algumas vezes, e o espaço já estava então conhecido, criamos de forma inconsciente outra proposta: a montagem “Pequenos Burgueses” possui dois núcleos de atores, que intercalavam sua participação nas apresentações, então nunca sabíamos exatamente com quem iríamos contracenar no dia.

Na performance teatral “Baal (2013), atual experiência realizada pelo grupo, os atores trabalham com sobreposições de estados, em vários níveis de porcentagens como na montagem “Circus Negro”, mas também com variações. Inicialmente, “Baal” foi desenvolvido para ser apresentado no espaço urbano. Quando apresentamos na rua pela primeira vez, o grupo refletiu e decidiu experimentá-lo também em espaços fechados. Essa decisão se deu pela energia gerada pelos estados dos atores, que nos pareceu, em um primeiro momento, mais baixa do que no trabalho do “Circus Negro”, por exemplo. O núcleo voltou então a se questionar sobre as composições com os Estados Anímicos criados pelos estímulos físicos e sobre a manutenção destes durante o momento da apresentação (período em que nos encontramos atualmente).

Tendo em vista que o trabalho do Núcleo de Pesquisa ÁQIS teve seu início em uma pesquisa prática e posteriormente um aprofundamento em uma pesquisa teórica para embasarmos nossos estudos, foi possível perceber que apesar de parecer contrariarmos as ideias de Constantin Stanislávski, na busca desassociada das “emoções” e estados, o estudo deste se fez necessário para uma maior compreensão deste trabalho. É possível encontrarmos reflexos da noção que possuímos sobre os processos de criação dos Estados

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em vários momentos na fala de Stanislávski: na memória das emoções, nas ações físicas e no estado interior de criação. Apesar das diferenças de pensamento, algumas noções se identificam e se conciliam.

O processo criativo originado através do processo com Estados Anímicos é algo denso para nós, enquanto atores, do ponto de vista da intensidade e pela concentração de informações que buscamos fisicamente para compor nossa linguagem corporal. Procuramos trazer a todo instante uma racionalidade das ações para que a noção desse “estado” não se torne puramente emocional, pois não é esse o objetivo. Essa “sensação” buscada como um modo de atuação deve ser codificada e poder ser acessada sempre que o ator entrar em cena. Por isso não podemos depender de lembranças dessas sensações, mas podemos sim acionar os “gatilhos” que despertam esse corpo anímico, pronto para entrar em cena e atuar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DUBATTI, JORGE. Apuntes sobre Ricardo Bartís creador. Disponível em: Revista Meyerhold, n. 5. Buenos Aires. p. 1 Disponível em: http://www.revistameyerhold.com/numero5.html acesso 30 de junho de 2013.

DUBATTI, Jorge. Filosofia del teatro I : convivio, experiencia, subjetividad. 2º ed. Buenos Aires: Atuel, 2007.

MAURO, Karina. Estética de la multiplicidad, teatro de intensidades, teatro de estados: un teatro eminentemente porteño. Informe VII. Alternativa Teatral. 7 de abril de 2009. Disponível em: http://www.alternativateatral.com/nota375-informe-vii-estetica-de-la-multiplicidad-teatro-de-intensidades-teatro-de-estados-un-teatro-eminentemente-porteno acesso em 30 de junho de 2013.

MUÑOZ P., Carolina. Eduardo Pavlovsky: Teatro del Estupor. Acta lit. n.29 Concepción, 2004. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?pid=S0717-68482004002900005&script=sci_arttext acesso em 30 de junho de 2013.

STANISLAVSKI, Constantin. Manual do Ator. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.

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Stanislávski e as ações físicas: das partituras corporais até à dramaturgia do ator

Interlocuções entre a memória no sistema de Stanislávski e no corpo contemporâneo

Patricia Leonardelli (bolsa pós-doutorado FAPESP); Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais; Unicamp.

A memória é um atributo central no trabalho do ator na quase totalidade das pedagogias, tanto históricas como modernas, senão de todas. Não é forçoso afirmarmos dessa forma se partirmos de uma noção de memória como centro expandido, como processo que se constrói no complexo circuito em que percepção, sensação, intelecção e afetividade desenham as informações da forma como as reconhecemos. Nossa reflexão se concentrará precisamente no recorte comparativo entre a sua utilização no sistema de Stanislávski, ainda, para a autora, o mais rigoroso pedagogo da arte do ator ocidental, e como ela é concebida e opera no pensamento contemporâneo pela perspectiva de alguns autores da neuroquímica, das ciências cognitivas e da filosofia pós-estruturalista para os quais a psico-fisiologia da memória passa por profundas revisões.

Tentaremos não ser cansativos no resgate histórico do sistema, sem o qual torna-se impossível a contextualização necessária para nossa análise. O trabalho de memorização das falas era um problema crucial na cena teatral européia e russa no fim do século XIX, de fato, uma crise que já se anunciava décadas antes. A estrutura do melodrama romântico e dos vaudevilles se confrontava com os limites intrínsecos à linguagem, os quais giravam fundamentalmente em torno do desgaste da forma de atuação dos gêneros. Confrontando a saturação da atuação “de estilo”, foi possível a Stanislávski projetar uma arte de ator para além da pessoalidade, dos estilos, das máscaras e tipos, e sugerir um trabalho de ator que partisse do humano na cena. De onde se evolui para a idéia de “real”, de ilusão de realidade no palco, de realismo, mas não um realismo que se deseja mais um gênero a substituir outros, mas de realismo como representação do humano.

Partindo de tal princípio, Stanislávski faz uma revolução particular no trabalho do ator com a memória, pois substitui a mnemotécnica externa pelo trabalho orgânico com o texto. Isso significa todo um novo encaminhamento para se pensar e operar a memória que está inserido

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nessa passagem do “tipo” para a “personagem dramática”. Se nos gêneros teatrais anteriores a fala era essencialmente decorada, ou seja, memorizada externamente (muitas vezes, a utilização das “dálias” tornava até mesmo o trabalho de decorar desnecessário), a partir do sistema o trabalho com o texto e as ações físicas passa a integrar a lógica de funcionamento orgânico do ator nas metamorfoses de criação da personagem, e torna-se elemento-chave da vida interior. Desnecessário salientar que a pesquisa aos elementos constituintes da vida interior tornaria-se o esforço maior do pedagogo na dita primeira fase do sistema.

Profundamente influenciado pela emergente psicologia experimental de Théodule-Armand Ribot (uma das primeiras correntes a se debruçar sobre as relações entre produção física e vida mental excluindo influências metafísicas e espirituais, e que tem na memória tema central de investigação), A memória das emoções é um conceito que Stanislavski desenvolve a partir da idéia de “memória afetiva” de Ribot, porém buscando para efeito de investigação teatral, uma aproximação entre a ação e a lembrança que não existe a princípio na teoria experimental. Stanisalvski conecta intimamente o trabalho da memória das emoções àquele da memória das sensações e a uma possível “memória motriz’, que já era intuída desde o início das pesquisas, mas que só foi verdadeiramente identificada e incorporada no Método das Ações Físicas. A memória das emoções é a capacidade de todo ser humano de concentrar e apresentar registros afetivos ligados a determinadas situações, situações que estabelecem conexões absolutamente singulares com as emoções, e cuja singularidade define o universo mnemo-afetivo do ator. Tais emoções nascem antes de uma memória das sensações, da vivência do que é apreendido pelos sentidos e reconhecido em padrões de percepção para daí se desdobrar em referenciais emocionais.

A memória está na chave nos processos de individuação, e define e qualifica a subjetividade. Ela se apresenta como registro das experiências e processo determinante na singularização humana, da mesma forma como sucede com a vida ficcional. Uma das questões fundamentais, portanto, consistia em desvendar os canais de acesso aos conteúdos vivenciados que permitissem sua apresentação e transformação a fim de se reconstruir um comportamento igual ao comportamento da personagem. Nesse processo, a memória e a imaginação estão na base do sistema. As técnicas se orientam no sentido de criar um acervo de experiências emocionais e de encontrar os operadores que permitam uma fabulação tão eficiente para o ator que ele consiga se projetar inteiramente nas situações da personagem. Essa etapa das pesquisas foi denominada Linha das Forças Motivas.

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Para seguirmos na descrição da primeira etapa do sistema de Stanislavski, convém que expliquemos quais são as Forças Motivas que dão nome ao processo. São três: o sentimento, a mente e a vontade. No método, o sentimento é o maior dos mestres, porém reside numa esfera do aparelho psíquico que não está sujeita à evocação e utilização imediata dos materiais para fins expressivos. Portanto, ele deve ser “despertado” pelas duas outras forças motivadoras: a mente (concebida aqui como intelecto, faculdade da razão) e a vontade. Em seu método, Stanislavski pretendeu sempre atingir indiretamente os sentimentos/emoções, para evitar clichês de expressão. O caminho é mental no sentido de revelar ao ator a lógica de conduta da personagem e levantar as emoções provavelmente envolvidas em seus movimentos pra daí, indiretamente, conduzir o ator à incorporação desse comportamento:

Já em sua primeira etapa das investigações, tantas vezes acusada de promover exclusivamente a instrumentalização dos processos internos do ator, Stanislavski parte do corpo para criação dos exercícios e pensa o âmbito físico do homem como reflexo da memória e de sua vida psíquica. Sua abordagem, aparentemente psicologizante, foi a primeira a pensar sistematicamente no teatro as relações e formações dos corpos pela influência do vivido que permanece, e o levou a estudar, antes da reconstrução de comportamento que cria a personagem, os processos psico-físicos do comportamento cotidiano e seus possíveis descondicionantes, tomando o ator como cobaia para uma pesquisa que é, em si, trans-teatral.

Os elementos constitutivos da vida interior formam o quadro técnico pelo qual Stanislavski estruturou a primeira fase de seu treinamento interpretativo. Esse período é marcado até a morte de Tchekov, que redirecionou profundamente o andamento da pesquisas do TAM. Em 1918, Stanislavski desenvolve um projeto que seria de grande contribuição para a consolidação da etapa seguinte de suas pesquisas Trata-se do Estúdio de Ópera do Bolshoi. O trabalho de interpretação com os cantores, a partir da estrutura rítmica das partituras musicais, despertou para a importância do ritmo interno na criação da personagem, e produziu o conceito de ação rítmica.

Stanislavski reconheceu, no avanço de suas investigações, que uma limitação fundamental encontrada em seu sistema consistia na fixação e recuperação dos materiais expressivos. Por mais eficiente que fossem os exercícios, a manifestação de um estado interno muitas vezes encontrava formas irrepetíveis no corpo, o que se tornava um problema para trabalho do ator que precisa apresentar a mesma performance inúmeras vezes durante uma temporada. Por tanto, o eixo de abordagem

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precisaria se deslocar para o material que pode ser codificado: a ação física, e não mais os estados internos.

Evidentemente, o approach sobre a criação das ações físicas seguiria os preceitos já desenvolvidos pelos estudos até então, ou seja, toda ação física é coerente ao comportamento psicológico: uma ação psico-física alinhada à lógica interna de funcionamento da personagem. Portanto, esse redirecionamento da pesquisas não significa de modo algum uma ruptura com a fase anterior. Ele é um passo adiante na sistematização dos procedimentos que pressupõe um domínio avançado dos exercícios da Linha das Forças Motivas, base de toda a atitude viva do ator.

Essa fase ulterior ficou conhecida como Método das Ações Físicas, e foi interrompida com a morte do pesquisador. Os exercícios visavam a direcionar a concentração do ator sobre o como fazer, sobre a qualidade e o ritmo na realização das ações. Observou-se que a repetição de uma mesma ação, com intensidades diferentes, altera não somente as referências pessoais acessadas da memória emotiva pelo “se mágico”, como pode sugerir novas configurações para todos demais elementos da vida interior.

Tal constatação é muito importante, pois revela que a execução aparentemente mecânica de um movimento quando realizada com consciência e concentração, pode resgatar as circunstâncias dadas e restaurar o seu sentido, e que não somente os processos internos conduzem à ação. Em termos estritamente científicos, as pesquisas de Stanislavski anteciparam a idéia de um fluxo de memória em que a vias aferentes e eferentes tem a mesma importância, ou seja, o aparato motor e sensorial é tão determinante no processo de criação das memórias quanto o centro nervoso, pois desse primeiro vêm os estímulos que desencadeiam as associações de registros do cérebro. E essas associações não seguem necessariamente uma ordem lógica de solicitação-resposta, antes pelo contrário. Entretanto, compreendemos que não existia uma neurologia suficientemente desenvolvida e direcionada para o esclarecimento dessas relações no início do século passado.

Nos últimos anos de suas atividades, as ações físicas adquiriram considerável autonomia em relação ao texto escrito, se comparado às pesquisas dos primeiros anos. Em sua montagem inacabada de O Tartufo (interrompida pelo seu falecimento), Stanislavski trabalhou as partituras físicas praticamente sem o texto, partindo apenas da idéia geral de cada ator sobre o conteúdo e o desenvolvimento da cena. Primeiro, se apresentava o esquema de ações, para depois entrar o texto, um

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processo inverso àquele experimentado na etapa da Linha das Forças Motivas. O quadro de conceitos foi modificado por uma perspectiva mais processual, em que se fundem as forças motivas vontade-sentimento em um vetor dinâmico de criação, orientado pela atividade mental. O entendimento de organicidade se encaminha mais para a resolução da ação psicofísica do que para o macro-conjunto de implicações que alimentam os processos interiores.

Talvez seja necessário que se dê alguma atenção à noção de organicidade. Para Stanislavski tratava-se de encontrar uma pedagogia para a reconstrução em cena da condição humana mais simples e natural, que conforme o diretor, escapa ao ator no instante em que se convenciona a entrada em cena. Seguindo essa concepção, o corpo-mente orgânico desenvolve-se quando o corpo responde a todas as exigências feitas pela mente de uma maneira que não é nem redundante, nem negligente, nem incoerente. Para Stanislavski, a organicidade no palco não era análoga, mas igual à organicidade na vida; e poderia ser construída pelo alinhamento, este sim, construído por analogias, entre o comportamento cênico e o comportamento natural.

E qual a ressonância de tal noção de organicidade nos dias atuais?

Enquanto o sistema de Stanislávski se sustenta em um desenho do humano como integração corpo-mente em um todo orgânico, em que ação e pensamento se alinham não por uma lógica de representação, mas por uma lógica de existência em cena, o desenho de humano, se é que existe, desde os pós-guerras e, de forma mais agudiziada, na pós-modernidade, parece apontar para a dissociação, dissolução, esquizofrenia e o comportamento paradoxal e uma memória hiper-estimulada que muito acumula em loopings de simultaneidades e que habita corpo que já avançaram para além dos estratos biológicos. É nesse novo território experencial de um corpo que já não é mais o corpo trabalho pelo mestre russo que irrompem, ao nosso ver, as problemáticas envolvendo transposições técnicas.

A questão, de fato, não parece ser de gênero, mas de estrutura: de que corpo e de que memória falamos em tempos e conjunturas tão distintas? Sabe-se, desde Bergson, pelo menos, que a memória não é retenção, nem tampouco uma linha que organiza a experiência em eventos históricos. No pensamento bergsoniano, os limites entre percepção e memória, e entre memória e imaginação se desfiguram e derrubam a idéia de pureza das funções arborescentes à luz de uma abordagem dos processos não mais por concepções exteriores a respeito de seus locais e funções, mas pela manipulação de vetores internos aos conceitos, tais como tempo, espaço e corporalidade.

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Memória e percepção tornam-se movimentos do ser em conhecimento. O corpo é a fronteira entre passado e futuro, e o passado pressiona o presente pelas condições do presente, de onde Bergson conclui que o passado sobrevive no corpo (como delimitação espacial do presente) de duas maneiras: em mecanismos motores e em lembranças independentes. O corpo é o limite que presentifica. Mas, paradoxalmente, ilustra pelos dispositivos de sua memória, o deslocamento no tempo. Para o filósofo, o espaço onde reside a memória não é uma linha de passado, mas um caldeirão em fluxo. Cada “questão” pressiona o todo da memória, sem que haja alguma linearidade arbitrária apriorística de seleção, de onde nasce a imagem do cone de Bergson.

Nessa perspectiva, corpo é a imagem que delimita e conforma o espírito, em outras palavras, que o torna presente. Tal delimitação se dá objetivada pelas circunstâncias do presente. Daí que todas as atribuições do espírito passam pelo corpo, e uma hierarquia entre estas não é mais possível. Há ainda o dualismo, em que o corpo seleciona as representações e as lembranças (mas não as armazena), mas não gera estados intelectuais diretamente, porém é um dualismo que já não fixa incontestavelmente as funções e privilegia a ação, a consciência da associação como o estar em fluxo pressionado pelas necessidades do plano, o contato que provoca as identidades.

Os processos humanos são, pois, abordados pela ação do tempo, espaço e corporalidade. Vemos que as sensações são os atributos que fixamos, que destacamos e extraímos da volatilidade dos acontecimento e aos quais retornamos como referência para qualificarmos as coisas. Os movimentos são a percepção no espaço, sempre divisíveis, sempre em ação. O fato é que, no fluxo das vivências, os movimentos carregam as sensações e as apresentam à consciência como fenômenos também dinâmicos, de onde se conclui que todos os movimentos não são tanto os transportes dos objetos, mas de nossos estados no tempo-espaço. O ser-em-fluxo tem uma subjetividade líquida, que se constrói na chave da consciência sobre o devir, sobre a justaposição da fixação qualitativa das sensações com a intangibilidade quantitativa do movimento.

No projeto pós-estruturalista, a dilatação dos termos que era sugerida e apontada pela teoria da memória de Bergson, mas que encontrava, no dualismo, seus limites epistemológicos, avança no entendimento do ser como fluxo. Corpo e alma são parte da dinâmica dos processos que organizam/desorganizam o universo, eles não sofrem mudanças, eles são mudança (como já antecipava Bergson).

A estabilidade da matéria e de certas estruturas morais, intelectuais, afetivas que permite com que intuamos nosso corpo e

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identifiquemos um conjunto metafísico que nos individualiza não são produtos de uma natureza em si teleológica, porém o resultado de agenciamentos que produzem adensamentos com certas especificidades, mas que seguem em transformação. Os seres são compreendidos, em última instância, como estratos orgânicos, históricos, intelectuais, afetivos e morais em relação rizomática. Matéria e potência são instâncias com graus de pressão diferentes do mesmo fluxo que, pela variação na velocidade do movimento das partículas, cria e dissolve as formas de vida e de ser em vida.

O que percebemos como matéria são adensamentos orgânicos com qualidades em constante transformação pelas relações rizomáticas no grande deslocamento espaço-temporal não-teleológico do plano de consistência. A dinâmica das transições moleculares entre as duas instâncias do ser, matéria e potência, não é excêntrica ao plano e aos seus agenciamentos. Não há transcendência, portanto, não há corpo como matéria estática nem espírito como essência que escapa.

Vemos que a memória é a criação não mais de um sujeito que percebe, mas de um sujeito que supera a percepção, deriva, devém e é invadido. Ele não se dá apenas nas condensações dos estratos que o definem num recorte no tempo e no espaço, mas nas projeções extra-corporais, nas fronteiras diluídas, nos agenciamentos assumidos pela intensidade dos desejos. Aqui a noção de memória coletiva atinge o trans-humano: é da memória de um sistema que estamos tratando.

Para melhor entendermos no que consiste essa noção de memória como parte do sistema de estratos e agenciamentos, mas também como potência em devir, falemos de dois conceitos-chave da filosofia de Gilles Deleuze e da cibernética de Pierre Lévy, os quais redefinem um terceiro, a realidade: atual e virtual. “Virtual” tem sua origem semântica no latim medieval virtualis, que deriva de virtus, força, potência, e, na Escolástica, significaria não só o que está em potência, mas o que necessariamente não se manifesta em ato.

Deleuze propõe um outro sentido para o virtual pela revisão precisamente dessa última atribuição, ou seja, o virtual é a potência que deseja ser ato, deseja a atualização. O virtual é o possível constituído em suspensão, mas não um possível como fenômeno estático, e sim um complexo problemático que chama um processo de resolução: a atualização. É realidade latente, consistente, organizada, autônoma, devinda, que aguarda pela efetivação das relações que lhe transportem da suspensão para atualização. Assim, o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. Ele contém o real na névoa problemática de tensões e

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tendências que lhe identificam, mas cuja resolução não está contida aprioristicamente nessa névoa.

Esse é um ponto fundamental das relações de atualização, e que as distinguem da realização: elas são sempre criadoras. O virtual, a potência em desejo, contém e oferece as possibilidades de relação para definir o real, mas as formas de atualização não são dadas estruturalmente pela possibilidade. Cada conjunto de estratos carrega suas virtualidades e organiza sua identidade precisamente na maneira como as atualiza e como recria novos virtuais.

A questão da memória é problematizada ontologicamente em um grau que extrapola as teorias que abordamos até então, pois a localização das entidades não se dá mais em uma linha de tempo unilateral (ou no máximo, bilateral) em que o cosmos se divide entre o planeta e a transcendência e as criações progridem por sucessão de relações binárias (o princípio do terceiro excluído na teoria da razão clássica). Todas as operações se constroem no plano e pelos múltiplos agenciamentos das entidades em devir, cuja organização forma um mapa fluído de platôs e rizomas que, levado às últimas conseqüências, se junta à física quântica para justificar uma existência simultaneamente virtual e atual dos seres. A memória não é somente o vivido trazido do passado para responder às necessidades presentes. Ela não se revela exclusivamente pelo que reconhecemos atualizado, pelo que está instaurado pela urgência da ação. Ela forma um espaço que contém tudo que se adensa na entidade, resiste, e que se coloca em um devir de criação, mas abarca igualmente os seus duplos virtuais simultâneos. A criação tem suas próprias razões que não se submetem às regras de funcionalidade das demandas do presente. A memória é entendida no próprio âmbito das potências como virtuais (e não possibilidades) e das atualizações como síns (e não derivações quantitativas do provável), ou seja, na forma como já as apresentamos: em relações inventivas. Atual e virtual inseparáveis e coexistentes no tempo.

Atualização e virtualização como movimentos criadores são os vetores que qualificam de forma mais complexa o entendimento do ser em construção cognoscente no tempo e no espaço. A individuação se dá exatamente nesse trânsito criativo, nas particularidades que o definem, nas escolhas, nos desejos, na afirmação ou negação de tendências, em suma, em tudo que resiste e se impõe na atualidade das relações. Uma noção de sujeito só pode ser tomada como: instâncias mais ou menos diluídas, e que por isso encontram alguma diferenciação, dentro do mapa rizomático. Os movimentos de atualização e virtualização não são homogêneos, mas radicalmente o oposto; e são suas particularidades no tempo e no plano que podem indicar uma possível subjetivação em rede.

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Esta se faz na construção dos estratos, pela ação das forças tonais, mas logo pelo ultrapassamento dos estratos de percepção, de memória, de afetos pelas forças naguais.

A memória é o resultado da ação das forças de individuação em nível atual e virtual simultaneamente e em devir. O âmbito da atualização nos permite reconhecer o indivíduo/objeto do plano como presença, enquanto a virtualização configura a existência do mesmo indivíduo na não-presença, sendo ambas dimensões do ser real. O atual se desgasta para se reinventar no virtual e inserir melhor o ser na inteligência global do plano

Sua função e local estão absorvidos pelo fluxo e seus princípios de operação: a memória é resistência no estrato, mas já é imediatamente criação no tempo múltiplo do ser virtual/atual, que se extingue e se recria alternando aspectos sem abandonar a rede. Corpo e mente não são máquinas isoladas com estatutos e atributos naturalmente específicos. São dimensões do ser que se definem conforme a velocidade das forças e a intensidade dos desejos, que qualificam os agenciamentos e direcionam os devires.

É nesse corpo e com essa memória que se produz a cena contemporânea. Mais, uma vez, não de trata de analisar as múltiplas linguagens, posto que elas só existem pelas demandas de um novo pensamento para o corpo. Em que medida esse corpo aporta um sistema organicista, essencialista, histórico e metafísico é campo interessante de debate? Parece-nos que, muito mais do que um debate técnico, está em questão a própria noção de homem que se tem e que se deseja construir e afirmar pela arte. Um homem que fala de reconhecimento dos indivíduos e um corpo que já não consegue se reconhecer senão na própria liquidez.

Diferentes tempos

Discursos

Corpos

Artes

É celebre a passagem em que Stanislávski manda o repórter americano de volta a sua terra para descobrir a sua maneira e fazer teatro, pois o que ele produziu só foi possível pelas suas singularidades de sua trajetória histórica e pessoal. O que só reafirma nossa hipótese de que qualquer argumentação consistente nesse campo não se dará no âmbito a técnica. Mas, da filosofia e dos projetos humanistas e pós-humanistas.

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Bibliografia

ALLIEZ, Éric. Deleuze Filosofia Virtual. São Paulo: editora 34, 1996.

BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes: 2006. _____. Memória e Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DAMASIO, Antonio. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro

humano. São Paulo: Companhia das letras, 1996.

DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade. São Paulo: editora 34, 2001.

LÉVY, Pierrre. O que é o virtual?. São Paulo: editora 34, 1996.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.

_____ (trad. Ricardo Correa Barbosa). O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1993.

STANISLAVSKI, Constantin. El trabajo del actor sobre si mismo. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1980.

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_____. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977.

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS CORPORAIS ATÉ À DRAMATURGIA DO ATOR

PODEMOS PENSAR PRESENÇA EM STANISLÁVSKI?

Paulo Eduardo Pinheiro Rosa (Bolsa CAPES); Dra. Sandra Meyer Nunes; Universidade do Estado de Santa Catarina.

SOBRE SENSO COMUM E STANISLÁVSKI

Realismo, memória emotiva e, dependendo do caso, método das ações físicas. Esses são os conceitos prontamente citados quando começamos a falar de Stanislávski. Endeusado por uns, condenado por outros; ele talvez seja um dos maiores mitos que povoa o imaginário teatral ainda na atualidade. Segundo Sharon Marie Carnicke (2010), o russo Constantin Stanislávski, nascido em 1863, – ator, diretor e teórico de teatro – foi o prímeiro teórico do século XX a articular um sistema de treinamento de atores. Buscando refletir sobre, e sistematizar sua prática, mantinha um detalhado registro de toda atividade relacionada à arte que ele via ou fazia, e, ao identificar que “o trabalho do ator consistia na simples repetição de procedimentos e códigos que caracterizavam as personagens e as situações” (BONFITTO, 2006, p. 21-22); Stanislávski, buscando “caminhos verdadeiros” para o teatro, elaborou diversos exercícios tentando desenvolver uma prática que auxiliasse o ator a trabalhar mais facilmente a sua arte. Podemos pensar que seu trabaho sofreu fortes influências do contexto político-social-cultural da época, pois “antes de sua morte em 1938, ele testemunhou três grandes revoluções: a derrubada do histrionismo do século XIX pelo realismo, a rejeição do realismo pelo modernismo, e a mudança política da Rússia da monarquia para o comunismo”1 (CARNICKE, 2010, p. 1).

Interessado em práticas que pudessem auxiliar a entender – ou executar – o ofício do ator, seus escritos apresentam uma série de concepções e ideias sobre a atuação; inclusive a “crença holística […] que corpo, mente e espírito representam um continuum psicofísico”2 (CARNICKE, 2010, p. 7). Assim, em acordo com o psicólogo francês Théodule Ribot – que acreditava que emoção não existe sem uma consequência física – postula que “em toda ação física existe algo psicológico, e no psicológico, algo físico”3 (STANISLAVSKII, 1989, p. 258 apud CARNICKE, 2010, p. 7). Para Stanislávski, o mental, o espiritual e o físico estariam sempre em conjunto; um aspecto permeando e tomando parte nos demais.

Assim, ambicionando essa conexão, Stanislávski desenvolve o conceito de “ação física”, ou ainda, “ação psico-física”

Reconheço, como primeira característica fundamental, o fato da ação física ter sido considerada e nomeada inúmeras vezes por Stanislávski como uma ação psico-física. Ou seja, no processo de sua execução as ações devem desencadear processos interiores, agindo dessa forma quase como “iscas” (BONFITTO, 2006, p. 25)

Portanto, o conceito de “ação física” envolve tanto o componente externo da ação, como o consequente processo interno desencadeado por ela.

Resumindo: o ponto principal das ações físicas não está nelas mesmas, enquanto tais, e sim no que elas evocam: condições, circunstâncias

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propostas, sentimentos. O fato de um herói de uma peça acabar se matando não é tão importante quanto às razões interiores que o levaram ao suicídio. […] Existe uma ligação inexorável entre a ação de cena e a coisa que a precipitou (STANISLÁVSKI, 1989, p. 3 apud BONFITTO, 2006, p. 25)

Mas como garantir que o componente externo de uma ação física ative os processos internos, constituindo a ação psico-física? Como possibilitar que tal conexão interior–exterior ocorra?

UM ASPECTO NEGLIGENCIADO

Em seu livro Stanislavsky in Focus, Sharon Marie Carnicke (2009) traduz a palavra russa perezhivanie como experiencing; palavra que já havia sido traduzida por Hapgood como living a part (vivendo um papel); e buscando me aproximar da discussão realizada pela autora, opto por utilizar nesse trabalho o verbete experenciar.

Considerado por Carnicke como um conceito fundamental do sistema desenvolvido por Stanislávski, o termo experenciar “descreve o que atores sentem quando os exercícios liberam com sucesso seu potencial criativo total”4 (CARNICKE, 2009, p. 129). E apesar de sua extrema importância, aprender a “experenciar” não é possível. Mas – idealmente – fomentado por uma conjunção cultural e de exercícios que alimentariam a possibilidade de instauração desse estado.

Em primeiro lugar, ele não nomeia nada concreto que possa ser descrito e aprendido, mas identifica um estado criativo que o sistema pode, com sorte, nutrir. Ao longo de seus escritos, Stanislávski relaciona “experenciar” com estados mentais e de ser que parecem mais familiares: “inspiração,” “criação,” “disposição criativas,” a ativação do “subconsciente.” Ele também o compara com a sensação de existir completamente no momento imediato – o que ele chama “eu sou” (Ia esm’) e o que atores americanos geralmente chamam de trabalho “momento a momento”5 (CARNICKE, 2009, p.129)

Mas o que definiria esse momento? O que seria “experenciar”? Carnicke ainda diz: “em segundo lugar, experenciar expressa uma totalidade que não pode ser decomposta em partes componentes”6 (CARNICKE, 2009, p. 129) e “em terceiro lugar, experenciar reside na dimensão tácita; ele pode ser conhecido mas não expressado”7 (CARNICKE, 2009, p. 130). Ou seja, esse estado a ser sentido pelo ator é algo completamente subjetivo e, talvez, até impossível de ser descrito. Stanislávski descreve esse estado como um momento feliz, mas raro onde o ator seria “tomado” pelo papel; Michael Chekhov descreve que ao atingir esse momento, ele se torna observador de sua criação (apud CARNICKE, 2009).

A pesquisadora traz a discussão para a contemporaneidade e relaciona o estado descrito com a ideia de estado de fluxo (flow) de Mihaly Csikszentmihaly. Eleonora Fabião, analisando a presença cênica, diz que “a qualidade da presença do ator está associada à sua capacidade de encarnar o presente do presente, tempo da atenção” (2010, p. 322), capacidade essa que ela também associa à teoria do fluxo

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onde o agente produtor dessa presença se encontraria em um estado diferenciado de consciência, provocado por seu envolvimento de forma total no fazer da ação.

O corpo cênico está cuidadosamente atento a si, ao outro, ao meio; é o corpo da sensorialidade aberta e conectiva. A atenção permite que o macro e o mínimo, grandezas que geralmente escapam na lida quotidiana, possam ser adentradas e exploradas. Essa operação psicofísica, ética e poética desconstrói hábitos. Atentar para a pressão e o peso das roupas que se veste, para o outro lado, para as sombras e os reflexos, para o gosto da língua e o cheiro do ar, para o jeito como ele move as mãos, atentar para um pensamento que ocorre quando rodando a chave ao sair de casa, para o espírito das cores. A atenção é uma forma de conexão sensorial e perceptiva, uma via de expansão psicofísica sem dispersão, uma forma de conhecimento. A atenção torna-se assim uma pré-condição da ação cênica; uma espécie de estado de alerta distensionado ou tensão relaxada que se experimenta quando os pés estão firmes no chão, enraizados de tal modo que o corpo pode expandir-se ao extremo sem se esvair (FABIÃO, 2010, p. 322).

Poderíamos, então, pensar que Stanislávski estava falando de presença cênica quando tentava descrever esse estado de “experenciar”? Recorrendo a Patrice Pavis, “ter presença” é se fazer notar e cativar o público; é ter um algo indefinido que provoca a identificação imediata do espectador. A presença seria algo a ser possuído pelo ator e sentido pelo espectador, numa relação de comunicação direta com o ator, objeto de percepção (2008, p. 305).

SOBRE PRESENÇAS

Mas como podemos “produzir presenças”? Como saber que estamos efetivamente “possuindo algo” que é “sentido pelo espectador”? É necessário perceber também, a necessidade de uma relação. Não é apenas, algo que é possuído pelo ator; nem tampouco, apenas algo a ser sentido pelo espectador; mas a resposta se localiza no entre-lugar do encontro dessas duas forças. A presença, se localiza no encontro. Eleonora Fabião (2010) traz que o corpo é um sistema relacional e que

A atividade do ator não é autônoma, mas relativa; o ator é relativo ao espectador por reciprocidade e complementaridade [...] Neste sentido, a famigerada “presença do ator,” longe de ser uma forma de aparição impactante e condensada, corresponde à capacidade do atuante de criar sistemas relacionais fluidos, corresponde a sua habilidade de gerar e habitar os entrelugares da presença (p. 323).

Assim, para gerar presença, seria necessário gerar relações, criar vias de comunicações. Ao buscar as palavras de outros estudiosos acerca do mesmo fenômeno, encontramos descrita por Thomas Leabhart como o “jogo alquimista” onde “o corpo humano comum, com a sua experiência comum se transforma em puro ouro de presença dramática através de um ator que facilita o fluxo de energia, um ‘jogo de

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oposições’ que negocia as ‘diferenças de potencial’.”8 (2003, p. 398). E para entender como esse fluxo de energia se dá, Luís Otávio Burnier apresenta o conceito de “corporeidade”, que seria a forma como essa energia “toma corpo” intervindo no espaço e no tempo, sem, no entanto, representar o aspecto puramente físico dessa ação, antecedendo-a (BURNIER, 2009, p. 55). Entre outras diversas formas de descrever e explicar essa “energia”, Renato Ferracini, ator-pesquisador do Grupo Lume, escreve que

[...] os atores, em seu longo aprendizado, conseguem, de certa forma, utilizar e manipular essa energia de maneira expandida, dilatada, quando em cena. Na Índia, essa presença, que provém da manipulação da energia, é chamada de prana ou shakt; no Japão, koshi, ki-hai e yugen; em Bali, chikara, taxu e bayu; na china, kung-fu ou chi (FERRACINI, 2003, p. 108).

Hans Ulrich Gumbrecht em seu livro “A produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir” versa sobre a materialidade da comunicação e como toda comunicação (ou em outras palavras, todo “encontro”) gera presença. Presença essa que, no entanto, é deixada de lado em virtude de uma geração de sentido, uma interpretação racional (2010, p. 39).

A palavra ‘presença’ não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos. [...] Por isso, ‘produção de presença’ aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos “presentes” sobre corpos humanos (GUMBRECHT, 2010, p. 13).[...] então a expressão ‘produção de presença’ sublinharia que o efeito de tangibilidade que surge com as materialidades de comunicação é também um efeito em movimento permamente. Em outras palavras, falar de ‘produção de presença’ implica que o efeito de tangibilidade (espacial) surgido com os meios de comunicação está sujeito, no espaço, a movimentos de maior ou menor proximidade e de maior ou menor intensidade. [...] qualquer forma de comunicação implica tal produção de presença; que qualquer forma de comunicação, com seus elementos materiais, ‘tocará’ os corpos das pessoas que estão em comunicação de modos específicos e variados (GUMBRECHT, 2010, p. 38-39).

Ou seja, tais relações de presença, apesar de sempre existirem, ocupam intensidades distintas. Mas porque a presença cênica, ou mesmo, os efeitos de presença causam tão grande fascínio em nós? “Aquilo que chamamos de ‘experiência estética’ nos dá sempre certas sensações de intensidade que não encontramos nos mundos histórica e culturalmente específicos do cotidiano em que vivemos” (GUMBRECHT, 2010, p. 128). Assim, a arte nos possibilita um mundo que nos é indisponível cotidianamente.

Se a experiência estética é sempre evocada por e sempre se refere a momentos de intensidade que não fazem parte dos respectivos mundos cotidianos em que ela ocorre, segue-se que a experiência estética se localizará necessariamente a certa distância desses mundos (GUMBRECHT, 2010, p. 130).

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Tal caráter fornece a condição de “insularidade” ao evento vivido. Condição que pode ser alcançada de duas formas, uma onde somos “arrebatados”; “nesse caso, o súbito aparecimento de certos objetos de percepção desvia a nossa atenção das rotinas diárias em que estamos envolvidos e, de fato, por um momento, nos separa delas” (GUMBRECHT, 2010, p. 132). Ou seja, nos coloca numa posição de suspensão. E outra onde o aparecimento do evento é facilitada, onde – por quaisquer razões – os observadores são convidados à serenidade, “isto é, a estarem ao mesmo tempo concentrados e disponíveis, sem deixarem que a concentração calcifique na tensão de um esforço” (GUMBRECHT, 2010, p. 132).

Em A redução à prova da experiência (DEPRAZ, VARELA, VERMERSCH, 2006), temos uma descrição de épochè como um processo em três etapas; suspensão pré-judicativa; mudança da atenção do exterior ao interior e o deixar-vir, o acolher da experiência. Ao analisar a épochè como um exercício, uma prática, os pesquisadores propõe que tal procedimento pode ser voluntário e, portanto, uma escolha do praticante. No entanto, o fato de ser uma escolha, não implica em controle.

Esta mudança de direção da atenção corresponde a um fazer do ponto de vista da cognição: ele acarreta (ou é causado por) uma mudança de atitude na minha relação com o mundo. Analisada do ponto de vista das técnicas de ajuda à sua realização, tal mudança é essencialmente percebida como uma suspensão de controle, no sentido em que se poderia quase acusar a atitude natural (pode se acusar uma atitude!) de exercer uma influência hipnótica muito difícil de ser interrompida. Este primado conferido à idéia da suspensão do controle conduz ao uso de uma linguagem que é aquela do relaxamento, do abandono, ou mesmo da entrega ou do deixar-vir (lâcher-prise) (DEPRAZ, VARELA, VERMERSCH, 2006, p. 8) (grifo do autor).

Considerando que a etapa que dá início ao processo – a suspensão – poderia ser iniciada sob três formas diferentes: 1) por um acontecimento externo – como uma experiência estética; 2) por mediação de outra pessoa – como um modelo; 3) por prática – como um treinamento. Poderíamos relacionar então a épochè com o estado de fluxo; e por consequência com a presença? Pois:

Em estado de fluxo, ações sucedem-se de acordo com uma lógica interna que parece dispensar intervenções conscientes do agente. O agente experimenta a ação como um fluxo contínuo de momentos em que exerce controle absoluto da situação e no qual há apenas uma pequena distinção entre self e meio, entre estímulo e resposta, entre passado, presente e futuro (CSIKSZENTMIHALYI, 1975, p. 36 apud FABIÃO, 2010, p. 321-322).

O momento de suspensão da épochè, o estado de fluxo, o experenciar, a presença… seriam todos esses conceitos relacionáveis? Mesmo com anos entre eles os separando? Carnicke (2009) apresenta conjuntamente a declaração de Mozart afirmando que suas ideias fluíam e ele não conseguiria afirmar de onde viriam; sustenta também que os depoimentos de Stanislávski, Chekhov e Mozart se assemelhariam aos estudos apresentados por Csikszentmihaly, pois todos estariam

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tentando verbalizar o inefável, um mesmo conhecimento que pode ser sentido, mas não explicado, um mesmo conhecimento tácito.

OUTROS QUESTIONAMENTOS

Michael Polanyi alega podermos saber mais do que podemos explicar; em estudo sobre o filósofo, Mark K. Smith nos mostra que para Polanyi, “atos criativos (especialmente atos de descoberta) são atravessados ou carregados com sentimentos pessoais e compromissos”9 e que “as suposições, palpites e imaginações que fazem parte dos atos exploratórios são motivados pelo o que ele descreve como ‘paixões’”10 (SMITH, 2003). Assim, Polanyi chama essa fase que precede o teorizar, que precede a formalização do conhecimento, de conhecimento tácito. A partir dos estudos de Mihaly e as reflexões de Gumbrecht, a descrição de épochè e outras teorizações e conjeturas; poderíamos aos poucos chegar à uma compreensão maior desse estado que tanto nos encanta.

“Vários pedaços de conhecimento tácito podem ser juntados para ajudar a formar um novo modelo ou teoria”11 (SMITH, 2003) e assim, quem sabe, traçar os fundamentos de uma crescente percepção dos processos que compõem essa relação tão enigmática. Restarão as perguntas de como chegar nesse estado? Como garantir afetar ao público com tal força? Como manter a “vida” do personagem? Como “viver o papel”? Como possibilitar uma atuação que propicie o experenciar?

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Bibliografia:

BONFITTO, Matteo. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislávski a Barba. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

CARNICKE, Sharon Marie. Stanislavsky in Focus. 2nd. ed. New York: Routledge, 2009.

______. Stanislavsky’s system: pathways for the actor. In: HODGE, Alison (Org.). Actor training. 2nd. ed. New York: Routledge, 2010. p. 1-25.

DEPRAZ, Natalie; VARELA, Francisco; VERMERSCH, Pierre. A redução à prova da experiência. Arquivos Brasileiros de Psicologia. V. 58, n.1, Rio de Janeiro, junho de 2006.

FABIÃO, Eleonora. Corpo cênico, estado cênico. Revista Contrapontos - Eletrônica. V. 10, n. 3, Vale do Itajaí, setembro-dezembro de 2010.

FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. 1. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: O que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.

LEABHART, Thomas. Sport, statuaire et redécouverte du corps précartésien dans le travail du mime corporel d’Étienne Decroux. In: PEZIN, Patrick. Étienne Decroux, mime corporel: textes, études et témoignages. 1er. ed. Saint-Jean-de-Védas: L’Entretemps éditions, 2003.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

SMITH, Mark K.. Michael Polanyi and tacit knowledge. 2003. Disponível em: <http://infed.org/mobi/michael-polanyi-and-tacit-knowledge/>. Acesso em 12 jun. 2013.

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Notas:

1 Before his death in 1938, he witnessed three great revolutions: realism’s overturn of nineteenth-century histrionics, modernism’s rejection of realism, and Russia’s political move from monarchy to communism.

2 Stanislavsky’s holistic belief that mind, body and spirit represent a psychophysical continuum.

3 In every physical action there is something psychological, and in the psychological, something physical.

4 describe what actors feel when the exercises successfully release their full creative potentials.

5 In the first place, it does not name anything concrete that can be described and learned, but rather identifies a creative state that the system can, with luck, foster. Throughout his writings, Stanislavsky relates “experiencing” to states of mind and being that seem more familiar: “inspiration,” “creating,” “creative moods,” the activation of the “subconscious.” He also compares it to the sensation of existing fully within the immediate moment – what he calls “I am” (Ia esm’) and what american actors generally call “moment-to-moment” work.

6 In the second place, experiencing expresses a totality that cannot be broken down into component parts.

7 In the third place, experiencing resides within the tacit dimension; it can be know but not expressed.

8 Le corps humain ordinaire, avec ses expériences ordinaires se transforme en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un «jeu d’oppositions» qui négocie les «différences de potentiel».

9 creative acts (especially acts of discovery) are shot-through or charged with strong personal feelings and commitments.

10 the informed guesses, hunches and imaginings that are part of exploratory acts are motivated by what he describes as ‘passions’.

11 Many bits of tacit knowledge can be brought together to help form a new model or theory.

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS

CORPORAIS ATÉ A DRAMATURGIA DO ATOR

STANISLÁVSKI E O TEATRO DOCUMENTÁRIO: ANÁLISE DO

PROCESSO DA MONTAGEM "ESSES CARAS"

Renan Bonito Pereira; Universidade Federal de Uberlândia

Resumo: Este artigo tem como objetivo a análise de uma parte do processo do

espetáculo "Esses Caras", monólogo em criação e construído a partir de depoimentos de

homens homossexuais. A peça em questão tem como base para sua construção o teatro

documentário, o qual historicamente uma das suas maiores referências é Erwin Piscator,

mas que no processo em questão as ideias e reflexões de Marcelo Soler nos soam mais

próximas. Neste texto enquanto o processo da montagem for sendo revelado tentaremos

elucidar de que forma os procedimentos utilizados a partir de tal gênero teatral se

aproxima ou se distancia das técnicas e do sistema stanislavskiano, não somente no que

tange a sua primeira fase – memória afetiva/emotiva - mas também a sua segunda fase,

o método das ações físicas.

O processo de montagem intitulado “Esses Caras” surge do desejo do

diretor, Breno Ferreira Maia, enquanto este concluía uma iniciação cientifica1 em que

analisava a dramaturgia do espetáculo “Mural Mulher”, de João das Neves, que fora

realizado com depoimentos/gravações de mulheres na década de 70. A partir dessa

pesquisa surge então a ideia de uma peça construída através de depoimentos, só que

agora apenas com homens homossexuais. Depois da vontade veio a oportunidade: a

disciplina da graduação em Teatro da Universidade Federal de Uberlândia intitulada

Laboratório de Encenação em que o aluno deveria passar por um exercício de

encenador. A partir disso iniciamos o processo, eu e Breno enquanto alunos da

disciplina, e alguns artistas colaboradores2.

O teatro documentário aparece dentre varias correntes artísticas do pós

guerra na Alemanha, e tem lá sua maior expressão, com Piscator, Houchhuth,

Kipphardt, entre outros: Entre os pioneiros desse gênero teatral merece

destaque o diretor Erwin Piscator, que certamente se inspirou

nas experiências de Meyerhold. Já na década de 1920

encenou peças ou reportagens teatrais fazendo o uso de

gravações sonoras, fotos, fotomontagens e filmes para cercar

as cenas interindividuais com a documentação de ambientes

históricos e de um vasto fundo social (ROSENFELD, 1993.

p. 121-122)

Quando iniciamos nosso processo o objetivo era recolhermos apenas

depoimentos audiovisuais e a partir deles reconhecermos temas e questões recorrentes e

1 “Poética de cena no documentário Mural Mulher, de João das Neves” (PIBIC/FAPEMIG), concluída em

2011, enquanto graduando em Teatro pela Universidade Federal de Uberlândia. Orientador: Maria do

Perpétuo Socorro Calixto Marques.

2 O espetáculo ainda encontra-se em construção e o que pretende-se aqui é relatar o processo que houve

durante o período da disciplina Laboratório de Encenação, entre novembro de 2012 a maio de 2013.

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que nos interessavam artisticamente para assim iniciarmos o processo de improvisação e

construção de cenas:

Na prática documentária não se pretende construir

uma ficção sobre fatos que ocorreram, mas organizar um

discurso a fim de discuti-los, fazendo o uso de documentos de

toda ordem para explorar uma significação outra, diferente da

obtida quando se trabalha com produtos assumidamente

ficcionais. (SOLER, 2008, p. 2)

Sobre a escolha do tema, no caso a homossexualidade, nos aproximamos

dos estudos primeiros do teatro documentário já que nesse gênero “aplicam sua arte

quase sempre a temas da história política recente, geralmente com a intenção de

informar, esclarecer, criticar e desmascarar.” (ROSENFELD, 1993 p. 122).

Um dos depoentes no processo fora eu próprio, homem homossexual

também. Acreditava que em um momento ou outro no colhimento dos depoimentos

haveria um momento em que eu daria um relato sobre eu, mas não esperava que fosse

no inicio. Logo no inicio do processo, quando já havíamos colhido um depoimento, ao

chegar na casa do diretor para um encontro do processo ele me avisa que pegará a

câmera e filmará meu depoimento: Fomos até a cozinha para a filmagem e enquanto o

Breno arrumava a câmera eu pensava como iria começar, no que era melhor focar e

quem sabe... “PARE DE ENSAIAR!” ouço o Breno gritar. Rio de nervoso. Iniciamos...

Não me recordo como comecei só me recordo que foi mais difícil do que eu sempre

havia imaginado. De lembrar como fora eu fico agora, enquanto escrevo, nervoso...

meu estomago contrai-se ou como ouvi uma vez “sinto borboletas no meu estomago”.3

Os encontros na sala de ensaio iniciaram após o meu depoimento e o

exercício proposto era que eu entrasse na área demarcada, sentasse em uma cadeira ao

centro de frente para uma câmera (todos nossos encontros eram registrados) e lesse um

trecho do meu relato impresso o mais natural possível, testando buscar a naturalidade do

dia em que fora colhido. Esse exercício fora de inicio de grande dificuldade pois eu

enquanto ator tentava ler um relato meu enquanto persona o mais natural possível, relato

este transcrito por outro – no caso o diretor. Essa busca pela naturalidade da fala me

remete aos estudos de Stanislavski e a sua investigação por um teatro que buscava

colocar em cena o homem comum, em seu dia a dia.

Para se chegar a esse estudo da fala é necessário um minucioso estudo e

compreensão da obra encenada, e sobretudo do texto proferido pelo ator, mas, nesse

caso é uma situação atípica e acredito eu não usada por Stanislavski: buscar a

naturalidade da fala a partir de um texto construído a partir do próprio ator, sobre a sua

vivencia. Nesse caso não me cabia um estudo do meu próprio texto já que os objetivos,

super objetivos e circunstancias dadas, por exemplo, já me eram familiares: a

dificuldade encontrava-se na limpeza de uma falsa fala cotidiana em que me prendia nos

ensaios.

A partir desses exercícios primeiros partimos para improvisações

corporais a partir do mesmo trecho do relato, improvisações livres e improvisações com

o uso de projeção como estímulo. O elemento da projeção fora muito usado durante

todo o processo e é um dos elementos que fora para a cena, seguindo também uma

tendência do gênero documental. No caso do exercício citado, e de outras, o estimulo

eram as filmagens dos próprios ensaios ou até mesmo do depoente, no caso eu mesmo.

Neste dia utilizei uma cadeira em minha improvisação.

3 Trecho do diário de bordo do autor. Referencia ao depoimento colhido dia 20 de dezembro de 2012.

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Após essa primeira improvisação corporal o diretor deu continuidade a

ela mas sempre inserindo outros elementos e re-improvisando o trecho do meu

depoimento até que em um determinado ponto pediu que eu selecionasse parte do

material corporal. Nesse momento ele sempre me questionava de onde partia os

movimentos, que eu tentasse identificar os impulsos das ações para que quando ele

solicitasse eu pudesse reproduzi-las com a mesma intensidade: “Não me falem de

sentimentos, não podemos fixar os sentimentos. Podemos fixar e recordar somente as

ações físicas” (STANISLAVSKI, apud BONFITTO, 2006, p. 25).

Stanislavski em sua segunda fase - Método das Ações Físicas - propõe que a

partir da prática e execução da ação física pudéssemos chegar mais facilmente em

estados, de que eles viriam juntamente com a execução das ações: “o ponto principal

das ações físicas não está nelas mesmas, enquanto tais, e sim no que elas evocam:

condições, circunstancias propostas, sentimentos.”. Percebia isso ao criar ações a partir

de determinados pontos do meu depoimento que me provocavam por exemplo uma

sensação incômoda. A partir da movimentação criada, ao executa-la, tal sensação era

possível de ser reconhecida novamente em meu corpo.

Dentre um vasto material corporal, o Breno começou a selecionar e

propor exercícios que eu elegesse durante outras improvisações o que me era mais

interessante. Nesse processo retiramos a cadeira como elemento de improvisação e

depois de uma primeira seleção de movimentos ele a inseriu novamente, alterando ainda

mais a atual partitura corporal. Durante a limpeza dessa partitura o que me era mais

solicitado era que não as reproduzisse aleatoriamente e sim que sempre tivesse um

impulso a que recorrer a ação, nos lembrando assim de Grotowski, que com seu método

das ações físicas dera continuidade ao trabalho iniciado de Stanislavski.

Da apresentação final que fizemos para a disciplina Laboratório de Encenação o

espetáculo compreendia em três quadros. O primeiro, assim como o terceiro, possuía

elementos simultâneos: enquanto eu, ator, realizava a cena era projetado vídeos. E é

desses quadros que o artigo está abordando. O primeiro quadro a sua construção fora

toda explicitada até aqui e resultou na partitura que realizo em uma cadeira enquanto é

projetado um depoimento de uma mulher nos contando a sua primeira experiência

amorosa e de como fora frustrante já que seu parceiro a traiu com um homem. Enquanto

narra eu realizo minha partitura e perceber corporalmente de que forma ele me afeta

enquanto o executo. Esse quadro é um jogo proposto pelo diretor já que todos acreditam

na fala da mulher, mas que na verdade é uma atriz que se apropriou de um trecho do

meu depoimento pessoal, trecho esse trabalhado no inicio do processo, e relatado no

inicio desse texto, e que resultou na partitura que realizo simultaneamente ao vídeo.

Para a realização do terceiro quadro elementos da primeira fase do pai do teatro

– linha das forças motivas - nos soam mais próximos. A cena consistia em um texto que

era a junção de trechos do meu depoimento com o primeiro depoente sobre a infância. A

primeira parte do texto era mais lúdica e referia-se ao meu relato e a segunda parte era

do primeiro depoente mas algumas semelhanças entre nossas infâncias fora ressaltadas

para maior identificação pessoal com o texto. Nesse sentido a memória emotiva e a

imaginação me serviram para construção da cena: “Stanislavski via a emoção como

condição necessária para que o ator pudesse fazer seu trabalho. A memória seria,

então, o elemento através do qual o ator poderia despertar as emoções já vividas

anteriormente.” (BONFITTO, 2006, p. 29). A partir de lembranças da minha infância,

somada ao exercício de imaginar-me na situação em que o outro depoente se encontrava

eu conseguia realizar uma cena simples, lúdico, mas tocante sobre a solidão e a abuso

sexual na infância. Enquanto a cena era aparentemente leve em seu gestual – mas denso

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em suas palavras – a projeção simultânea ajudava a dar o tom da cena: inúmeras fotos

de crianças4 surgiam e desapareciam ao som de catracas.

O teatro documentário, gênero com pouca expressão no cenário brasileiro

atual, quando fora proposta pelo diretor enquanto estética adotada me era pouco

conhecida e o que percebo é que não pretendemos em nosso processo seguir alguma

cartilha de como deve ser a cena documental e sim de que forma podemos construir

uma dramaturgia a partir de materiais reais, coletados através de depoimentos por nós

ou encontrados em pesquisas, utilizando diferentes procedimentos para nos auxiliar na

construção das cenas, o que nos trechos explicitados no texto, percebemos que as idéias

de Stanislavski – tanto da sua primeira fase quanto da segunda – nos foram de extrema

importância.

4 As fotos eram apenas de crianças de homens homossexuais, algumas em poses afeminadas, outras

não. Algumas fotos usadas no vídeo podem ser encontradas nesse endereço: http://criancaviada.tumblr.com/

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BIBLIOGRAFIA

BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2011.

ROSENFELD, Anatol. O teatro documentário in Primas do Teatro. São Paulo:

Perspectiva, 1993. (p. 121 a 128)

SOLER, Marcelo. Teatro documentário: a pedagogia da não ficção. Tese de

mestrado da Escola de Comunicação e Arte da USP, 2008. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27155/tde-13072009-184640/pt-br.php

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STANISLAVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS

PARTITURAS CORPORAIS À DRAMATURGIA DO ATOR

O CORPO DO ATOR EM AÇÃO NO MUNDO - AS AÇÕES FÍSICAS E OS

PROCESSOS COGNITIVOS

Sandra Meyer; Programa de Pós-Graduação em Teatro; Universidade do Estado de Santa Catarinai.

A busca de integração das dimensões “interior e exterior” ou “física e espiritual” do ator

foi constante na trajetória artística de Constantin Stanislavski e configurou procedimentos de ignição dos aspectos mentais e corporais, numa unidade psicofísica que justificaram a sua ação. A noção de ação física teve um papel central na nova configuração pedagógica, ressaltada como chave para que a criação e a emoção surgissem, já que não poderiam ser despertadas inteiramente pela vontade ou consciência do ator. Ao invés de evocar um estado mental ou emocional inicial, Stanislavski entendeu que o ator deveria acionar seu corpo. É quando concebe o método das ações físicas. Neste sentido, a estratégia de conhecimento foi alterada, pois é a partir das ações do corpo que o ator articularia os demais elementos da representação e se aproximaria da “natureza criadora”. Este artigo traz uma colaboração no sentido de relacionar o sistema das ações físicas do ator, concebido por Stanislavski, com os estudos do corpo na contemporaneidade e, consequentemente, de seus novos entendimentos na construção do conhecimento. Através do método das ações físicas Stanislavski propôs uma determinada relação entre cognição e ação, a que denomino como uma cognição em ação, e que conformaria uma teoria do corpo. A atuação do ator já pressupunha, para Stanislavski, um ponto de vista da experiência, do corpo do ator em ação no mundo.

As questões que Stanislavski (1989) propôs possibilitam ao ator “trabalhar sobre si mesmo” e sobre a personagemii, apontando para procedimentos a respeito de como o ator conhece e se conecta com o seu ambiente, se relaciona com sua memória, imaginação, consciência, inconsciente e vontade, e altera seus estados corporais e mentais. O seu sistema apresenta uma consistente contribuição para os estudos do corpo e da ação, por meio de questões sobre a relação corpo e mente e corpo e ambiente, constituindo-se, neste sentido uma ética e uma política cognitiva.

Stanislavski percebeu que o conhecimento do ator envolveria um ponto de vista da experiência, um modo especial de práxis. A “arte da vivência” configura-se como o primeiro trabalho literário de Stanislavki, onde ele aponta para o processo de “materizalização criadora”. Ao abordar conscientemente a criação, Stanislavski dissipa, de algum maneira, o mito de que o processo criador é incognoscível (KRISTI Apud STANISLAVSKI, 1986, p. 31)iii, se pensarmos que antes do diretor russo o trabalho do ator era comumente relacionado à fatores inatos como talento e genialidade. O que o ator conhece não se resume a conceitos e ideias separadas de uma prática, pois é o corpo como um todo que aprende enquanto age. O entendimento do conceito de ação e, mais do que isso, a sua “incorporação” enquanto conhecimento no corpo é apontado como um dos desafios mais instigantes na prática do ator. Os momentos de desamparo e dúvidas na geração de ações justas e orgânicas para as personagens sempre ocorrerão, já advertia Stanislavski (1995), não importa quantos papeis o ator já tenha construído.

Stanislavski reconhece a impossibilidade de se adquirir controle sobre a esfera do subconsciente, cabendo apenas o desenvolvimento de um método de abordá-lo e se render ao seu

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“poder natural” e, ao mesmo tempo, não estar à mercê da ação das emoções. Para tanto, buscou desenvolver uma psicotécnica consciente para despertar a criatividade subconsciente da natureza, esta “terra prometida.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 349). E este método não diz respeito somente à imersão nos conteúdos interiores não conscientes, por meio da convocação da memória ou de sua emergência natural, ou de atitudes voluntárias, via ação física, mas, também, nas simples ocorrências do exterior e nos pequenos acasos. São aquelas situações que não são, necessariamente, ligadas ao personagem ou as circunstâncias do ator, mas que devem ser consideradas, pois injetam “um pouco de vida real no teatro e que instantaneamente nos arrebata para um estado de criatividade subconsciente.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 339). Quaisquer ocorrências espontâneas, tais como uma cadeira que cai em cena ou uma reação da platéia, e que, devidamente aproveitadas, poderiam ser excelentes meios para aproximar o ator do seu subconsciente.

Stanislavski acreditava num fluxo de consciência sustentado, e constantemente redirecionado, por impulsos subconscientes e estímulos sensórios. Demonstra, através de seus escritos, estar ciente, de certa forma, de toda a complexidade inerente a um organismo vivo, em seus ajustamentos constantes com o ambiente e entre os níveis conscientes e inconscientes, bem como nas operações do acaso. Ajustamentos estes que caracterizam a busca de um pensamento menos cartesiano e mais sistêmico acerca do corpo em ação, visivelmente presente nas teorias cognitivas da atualidade.

A visão de mente, proposta por inúmeros filósofos cognitivistas na atualidade, redimensiona o conceito de razão, a faculdade que define e guia o ser humano em sua conduta e ações, e cujo controle visto, até então, como “consciente” diferencia-nos dos outros animais. Lakoff e Johnson (1999) advertem que a maior parte de nossos pensamentos são inconscientes, abaixo do nível consciente da cognição em sua operacionalidade, ou seja, pouco acessível à consciência pela extrema rapidez e complexidade de conexões, impossíveis, ainda, de serem aferidas e observadas conscientemente, mais do que pelo caráter repressor ou inacessível, no sentido dado pela psicologia freudiana. O que os levou ao conceito de inconsciente cognitivo.

As conexões entre consciente e inconsciente em Stanislavski merecem um capítulo à parte, mas é certo que Stanislavski situou o trabalho sobre as ações e o comprometimento do corpo como chave para o contato com a memória, as emoções, os sentimentos e demais estados consciente ou inconscientes. As ações permitiriam o acesso a um potencial criativo e orgânico, evitando a hegemonia do pensamento analítico e racional, visto como empecilho e amarra para a livre associação de ideias e imagens e a organicidade final do ato. Stanislavski enfatizou a dimensão prática do trabalho do ator, sendo as reflexões quanto ao método das ações físicas o ápice desta dimensão: “Em outras palavras, não analisamos nossas ações com a razão, friamente, teoricamente, mas as atacamos pela prática, do ponto de vista da vida, da experiência humana [...] trata-se de um processo de análise interior e exterior de nós mesmos, como seres humanos nas circunstâncias da vida de nosso papel. (STANISLAVSKI, 1995, p. 249).

Porque ele utilizou o termo ação “física” ao invés de “psicofísica”? Esta questão apontada por Thomas Richards (2001) importa na medida em que a busca de Stanislavski é permeada, todo o tempo, pela união entre corpo e espírito, nas dimensões físicas e psíquicas do ator. O termo ação física, no entanto, não pode ser entendido como exclusão ao que é comumente descrito como não físico, mas a partir da premissa de que a entidade física carrega a dimensão psíquica ou espiritual em sua própria operacionalidade, sendo possível ser vislumbrada do exterior, ou seja, na ação do corpo.

Ao requisitar o comprometimento do corpo do ator na experiência, Stanislavski não excluiu a necessidade do pensar ou do analisar, mas instaurou uma espécie de deslocamento da atividade cognitiva. Ao invés da exclusiva análise por meio das operações eminentemente cerebrais (o “frio” cérebro) ou mentais, ele propôs ao ator pensar com suas ações, ou seja, pensar com todo o seu corpo, importante reversão para um delineamento da cognição enquanto ação

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corporificada, enunciada na contemporeidade (MEYER, 2011). O conhecimento do que o corpo em ação experimenta e desencadeia favorece a

construção de um outro tipo de entendimento para os processos cognitivos, secularmente creditados a incidência e hegemonia de uma mente (enquanto uma entidade imaterial) sobre um corpo que se faz instrumento. Na história da filosofia e da ciência, predominaram os conceitos onde os estados mentais direcionam-se aos objetos do mundo e seus conteúdos. A concepção desencarnada de mente como “espelho da natureza” contaminou visões subsequentes, na certeza de que os processos mentais olham e representam o mundo.

Alguns filósofos, a partir do século XX, entretanto, abriram uma perspectiva de aproximação entre a ciência, de concepção objetivista, e os contextos pragmáticos da experiência humana. O filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938), compreendendo que a cognição não podia tomar o mundo ingenuamente, desconsiderando que este leva a marca de nossa experiência e de nossa estrutura corpórea, buscou expandir a noção de ciência incluindo uma ciência do “mundo-vida” - a fenomenologia pura - que uniria ciência e experiência. Hurssel já alertava para a importância do corpo nas questões da percepção e da consciência: “...o perceber, considerado apenas como forma de consciência e prescindindo do corpo e dos órgãos corporais, apresenta-se como algo carente de toda essência, como o vazio olhar de um ‘eu’ vazio”(Apud JANA,1995, p.60). O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) também enfatizou o contexto pragmático e corpóreo da experiência humana. Ele tentou apreender a imediatez de nossa experiência não reflexiva, sujeitando a consciência e a percepção às leis dos órgãos do corpo.

Procurando enlaçar ciência com experiência humana, os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela propõem uma alternativa para o entendimento da cognição. Vêem o fenômeno do conhecer não no sentido meramente representacional, como se houvessem informações ou objetos de um mundo pré-dado, portanto, fora de nós, que captamos e colocamos em nossa cabeça (MATURANA,1994, p.115). O organismo e o meio estariam ligados numa reciprocidade que dificultaria o delineamento do quanto um modela ou é modelado pelo outro. Portanto, nada estaria pré-dado, nem no sujeito, nem no mundo. Segundo este entendimento, o mundo não é um espaço onde são depositados os organismos, não é uma estrutura imposta sobre os seres a partir do exterior por um processo autônomo, mas uma criação também destes seres, como um reflexo de sua biologia. Nasce daí o conceito de Autopoiese ou autopoiesis (do grego auto "próprio", poiesis "criação"), que trata da capacidade dos seres vivos de se autoproduzirem. Nesta auto-organização, as estruturas cognitivas emergiriam dos modelos sensórios-motores, numa relação estreita entre percepção e ação. Este entendimento de percepção (que não é atividade “puramente” mental) não entende o mundo como pré-dado e independente do receptor, mas implicado diretamente na sua estrutura sensório-motora. O domínio cognitivo não seria pré-dado nem representado, mas emergiria na experiência imediata no mundo. Isto implica em uma não separação entre o ser e o mundo.

Os estudos sobre fisiologia e psicologia da época de Stanislavski, em sua forte inclinação pragmática, a exemplo da teoria dos reflexos condicionados do fisiologista russo Ivan Pavlov (1849-1936) e as relações sobre o corpo e as emoções do filósofo norte-americano William James (1842-1910), confirmaram, de certa forma, as pesquisas de Stanislavski. Ao estudarem as atividades do cérebro e do corpo, muitas destas teorias já argumentavam uma fisiologia própria para as emoções e outros comportamentos. James afirmava que as alterações corporais, que são por sua vez respostas e reflexos instintivos aos acontecimentos, são as causas das emoções, e não os fenômenos que ocorrem simultaneamente ou que decorrem delas. Nos apontamentos de Stanislavski, por volta de 1930, foram encontrados extratos dos livros de Théodule Ribotiv e Ivan Michailovich Séchenov (1829-1905) este considerado o pai da fisiologia russa. Pavlov, por sua vez, acessa as obras de Séchenov e James. Configura-se um campo de conhecimento para o desenvolvimento das teorias russas acerca do comportamento

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nas décadas de 1920 e 30. Contrapondo-se à visão introspectiva da psicologia mais tradicional e rejeitando a noção de alma e de um inconsciente inatingível, os “objetivistas” procuravam outras formas de explicar o comportamento, tendo a teoria dos reflexos como hipótese (MEYER, 2011). Surge, neste momento, um espectro de conhecimentos que na segunda metade do século XX se organizam nas ciências cognitivas por meio da noção de embodiment, ou corporização, no sentido de algo que se torna conhecimento no corpo a partir da ação deste no mundo envolvendo o sistema sensório-motor em conexão com o meio.

Não é sem motivo que a palavra drama é derivada de açãov, e o ator, visto como aquele que age, posto que “a vida é ação”, enfatiza Stanislavski (1995, p. 63). Quando formula o método das ações físicas o mestre russo admite que o corpo em ação fornece um caminho mais natural e seguro para que o ator atinja uma postura cênica. Esta descoberta estava relacionada à constatação de que não há controle sobre os sentimentos, sob o entendimento de que os fenômenos do espírito são imateriais e evanescentes. Nos primeiros anos de pesquisa Stanislavski intensifica o enfoque sobre os processos interiores, nomeando como “linha das forças motivas” da vida psíquica o trabalho sobre a emoção e o sentimento. Isolados das suas causas naturais, as emoções e sentimentos deveriam ser revividos através de um processo introspectivo e a mente e a vontade seriam as responsáveis por desencadeá-losvi. As emoções do ator estavam, para o diretor, ligadas a evocação de resíduos da memória de suas experiências, passíveis de serem relacionadas as da personagem e em circunstâncias dadas. Estas circunstâncias diziam respeito aos elementos, geralmente ditados pelo texto teatral, referentes ao contexto existencial e histórico da personagem e aos demais aspectos da encenação.

Vale ressaltar que, em 1987, o americano Mark Johnson reconduziu a relação entre corpo, movimento e cognição. Mostrou que a cognição tem origem na motricidade (o que Piaget já havia enunciado). De acordo com Lakoff e Johnson (1999) para evocar quaisquer questões usualmente creditadas ao ato de volição, usamos uma razão formatada pelo corpo, por uma cognição inconsciente que não temos acesso direto e pensamentos metafóricos, ou seja, conexões neurais associadas à experiência sensória motora, o qual nós pouco percebemos. Para compreender as coisas e agir no mundo categorizamos experiências, objetos e pessoas e estas categorias, antes de serem conceitos estabelecidos, emergem diretamente de nossa experiência na interação de nossos corpos com o ambiente. A nossa experiência, de acordo com Lakoff (1987), é estruturada através do embodiment de esquemas de imagens sinestésicas.

A atividade do ator pressupõe o entendimento da noção de si mesmo, dos aspectos do próprio organismo e de suas interações com outros seres e o ambiente. Reconhecer o corpo, na atualidade, como um sistema processual e dinâmico requer o entendimento de que o cérebro reconstrói o sentido do eu, a cada momento, provocando estados do organismo constantemente reconstruídos e que delineiam a presença do corpo em ação no mundo.

Na possibilidade de se pensar o ator como um sujeito não cartesiano, novas relações devem se estabelecer entre corpo e mente, se constituindo como tópicos essenciais para discussão do problema da ação. O ato pensante e o ato consciente passam a ser entendidos como implementados no corpo em ação no mundo, não mais como atributo de uma razão descolada ou anterior à experiência. A mente, pela lente das teorias das ciências cognitivas, é encarnada, corporificada, e não responde exclusivamente a uma condição a priori. Hoje, as teorias cognitivas que pesquisam estas questões não duvidam da fisiologia dos estados mentais e do correlacionamento dos processos do corpo e da mente. A constituição das ações é um processo de conhecimento, e o problema epistemológico do trabalho do ator consiste em averiguar os procedimentos que cercam o próprio ato de conhecer. Ao perceber a rede complexa de conexões que consiste em seus atos, o ator poderá compreender mais amplamente seus processos de conhecimento de si mesmo e do mundo. Atento a si, ao meio e ao instante presente, o ator abre-se simultaneamente à experiência imediata, como convém ao jogo teatral.

As questões referentes à pesquisa das ações do ator, por Stanislavski formuladas,

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permitem estabelecer diálogos com teorias contemporâneas do conhecimento. Ele estabeleceu, no início do século XX, procedimentos que apontavam para novos entendimentos acerca dos processos de conhecimento e aprendizagem nas relações entre corpo e mente, e que foram desenvolvidos por Grotowski na segunda metade do mesmo século. Este direcionamento implicava num conhecimento operativo e numa experiência de transformação, eminentemente prática, das conexões entre os estados físicos e os não físicos, enunciados pelos encenadores como estados espirituais. Na escuta do corpo, outras conexões se estabeleceram.

O processo vivido pelo ator ultrapassa o nível literário ou imagético, na descrição de personagens e do contexto envolvido – havendo ou não texto teatral referente – e envolve a complexidade da ação humana e a imprevisibilidade das relações espaços-temporais momentâneas (SERRANO, 1996). Pensar e mover não são acontecimentos separados, mas aspectos de um mesmo processo cognitivo dinâmico, possibilitando ao ator situações cênicas constantemente reconstruídas. Similar ao que ocorre no método das ações físicas, nos estudos das ciências cognitivas na atualidade o corpo aparece como desencadeador dos processos cognitivos, o que não significa apenas uma troca de supremacias, pois o corpo enunciado nestas teorias não se separa da mente quando age no mundo.

Tanto no teatro como na filosofia, o discurso sobre a ação tende a uma origem voluntária e consciente e a objetivos teleológicos. O conceito de ação física se edificou a partir de um entendimento que o movimento do corpo deve se justificar, intencional e conscientemente, em relação a um dado contexto, mas as próprias reflexões de Stanislavski provenientes de suas investigações junto a atores já demonstravam que a prerrogativa de que o ato voluntário ou intencional é, necessariamente, dotado de consciência não se sustentava.

As reflexões de Stanislavski acerca do trabalho do ator sobre suas ações envolve questionamentos em torno da vontade, das emoções e da possibilidade ou não de controle do ator sobre os processos cognitivos que propiciam a ação, discutidas em torno da relação consciente e inconsciente. O agir sem um fim determinado – no sentido moderno de intenção ou objetivo, não significa ausência de lógica, reflexão ou certa consecutividade, sob pena de se agir em geralvii, como advertia Stanislavski (1995, p. 229), mas o reconhecimento de que a ação humana é forma de conhecimento processual e dinâmica. Mais do que uma atuação de forma a repetir padrões estabelecidos e suas finalidades, o método das ações físicas solicita a ação em tempo presente e o campo aberto de suas possibilidades. O que envolve a investigação da lógica e sucessão das ações, num trabalho que envolve o comprometimento do já traçado anteriormente, simultâneo ao que emerge no aqui e agora. Stanislavski enfatizava a necessidade de se pensar no que fazer, e não nas emoções propriamente ditas, deixando a ver a dimensão prática do método das ações físicas.

Neste sentido, o caráter eminentemente teleológico pode ser redimensionado, se o conceito de ação for revisto como uma rede dinâmica de relações que envolve a resposta imediata ao meio, através da experiência, e não como algo eminentemente a priori. Com este entendimento, considera-se que os níveis de controle sobre nossas ações não são facilmente detectáveis e manipuláveis, ainda que tentemos programar os seus fins. O ser humano e seu comportamento são fenômenos adaptativos complexos e não é possível estabelecer prognósticos para o caminho que as ações tomam (JUARRERO, 2002). Serrano (2004) enfatiza que o objetivo da ação, o “para que” tão caro a Stanislavski, não pode seguir um modelo mecânico de causa e efeito nem estar despregado do aqui e agora, sob pena de perder seu caráter transformador imediato na relação percepção-ação do ator.

Os objetivos propostos pelo ator para a criação de suas ações desempenham um papel determinante como “motores voluntários” para que as demais relações que se estabelecem em tempo presente possam emergir a partir de uma disponibilização à improvisação. Como salienta Serrano (1996, p. 224), “se olharmos as ações tão somente como condutas teleológicas conscientes, isto permitirá construí-las de antemão e longe da situação dramática real, com longas

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listas de ações a respeitar..” O ato criativo emerge em cena, muitas vezes, por ações aparentemente involuntárias, mas

que são orquestradas em uma rede neuronal rica em referências, memórias e ações imediatas sem o controle intencional do ator. O corpo em ação rompe com a escala temporal entre percepção e ação, decisão e ação, pensamento e ação e pede por uma resposta em tempo presente. O corpo precisa pensar enquanto age, agir em estado de reflexão, como se conhecesse de um modo próprio. A ação é um conhecimento processual e a práxis (o que o homem faz, no seu sentido arcaico grego) do ator se organiza em conexão com o ambiente em tempo real.

Desta forma, a ação se converte em algo menos teleológico. Este entendimento de ação implica numa revisão da ideia de finalidade como algo passível de ser plenamente engendrado antes que a ação de fato principie, bem como de intelecto e reflexão como algo anterior ou despregado da ação. Considerando que a ação só pode ser realizada no presente do indicativo, pressupõe-se uma presença especifica do ator, um modo de estar no aqui e no agora.

As ações humanas tendem a esta incerteza, visto que o corpo opera numa orquestração constante na experiência. O que leva a crer que não temos controle total sobre as finalidades, tampouco sobre todo o processo acional. Imerso processualmente na linha do tempo, o “saber prático” aponta para um devir. Sendo do campo das possibilidades, a ação do ator, neste sentido, também não pode ter um fim absoluto, em se tratando das relações entre corpo e mente, interior e exterior, em seu movimento de indeterminação. Adquirir um corpo, como salienta Bruno Latour (2008, p.41), é um empreendimento que produz simultaneamente um meio sensorial e um mundo sensível. Neste sentido, superar o “dualismo mente-corpo” não é uma grande questão fundadora, seria apenas resultado da falta de uma definição dinâmica do corpo como “a aprendizagem de afetar e ser afetado”, aprendizagem esta que resulta de um operar recursivo entre o corpo e o meio.                                                                                                                i  Universidade do Estado de Santa Catarina. ii Em Minha vida na arte, Stanislavski (1989) define seu método como dividido em duas partes: o trabalho do ator sobre si mesmo e sobre o papel. iii Prefácio de G. Kristi para a obra El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mesmo en el proceso creador de las vivencias (Stanislavski, 1986). iv Obras de Ribot traduzidas em russo que foram, de acordo com Bogdam (1999), consultadas por Stanislavski: Les maladies de la memoire (1881), Les maladies de la volonté (1883), La psycologie de l’attention (1889), la psychologie des sentiments (1896) e L’essai sur l’imagination (1900).  v  O drama pode ser definido etimologicamente como em ação, do original grego Spãua. Stanislavski (1995, p. 62) salienta que no sentido grego, a ação refere-se à literatura, à dramaturgia, à poesia, e não ao ator e sua arte. Ainda assim, o ator tem direito de apropriar-se da palavra  vi  O período da Linha das Forças Motivas corresponde ao do Teatro de Arte de Moscou, fundado juntamente com Dântchenko, em 1898, quando Stanislavski toma contato com autores contemporâneos como Tchékhov, ao da  experiência com o Estúdio de Ópera. Fundado em 1918, este Estúdio propiciou a experimentação com elementos que culminariam no método das ações físicas.  vii  Stanislavski descreve a ação generalizada como aquela que ocorre sem objetivos específicos, lógica ou consecutividade, e sem atenção a detalhes e estímulos que possam dar vida orgânica e dimensão humana ao papel. Referências:

BOGDAM, Lew. Stanislavski, le Roman Théâtral du siécle. Saussan: L’EntreTemps Éditions, 1999. JANA, José Eduardo Alves. Para Uma Teoria do Corpo Humano. Lisboa: Epistemologia e Sociedade, 1995. JUARRERO, Alicia. Dynamics in action, intentional Behavior as a complex system. Massachusetts: A Bradford Book: The Mit Pess, 2002.

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                                                                                                               LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Philosophy in the Flesh, the embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books, 1999. LAKOFF, George. Women, fire, and dangerous things. What categories reveal about mind. Chicago: University of Chicago Press, 1987. LATOR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. IN: NUNES, João; ROQUE, Ricardo. Objectos Impuros: Experiências em Estudos. Porto: Edições Afrontamento, 2008. MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El árbol del conocimiento. Chile: Editorial Universitária, 1994. MEYER, Sandra. As metáforas do corpo em cena. São Paulo: AnnaBlume, 2011. RICHARDS, Thomas. At work with Grotowski on physical actions. London: Routledge, 2001. SERRANO, Raúl. Tesis sobre Stanislavski en la educación del actor. Cidade do México: Escenologia, A.C, 1996 ______. Nuevas Tesis de Stanislavski: Fundamentos para una teoría pedagógica. Buenos Aires: Atuel, 2004. STANISLAVSKI, Constantin. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mesmo en el proceso creador de las vivencias. Tradução por Salomón Merener da edição russa da Editora Estatal Arte, Moscou. Buenos Aires: Domingo Cortizo – Editorial Quetzal S.A., 1986. ______________. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. ______________. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

 

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS CORPORAIS ATÉ À

DRAMATURGIA DO ATOR

DIÁLOGOS PERFORMÁTICOS INTERATIVOS PARA ATORES VIRTUAIS

Saulo Popov Zambiasi (PPGEAS - UFSC)

Patricia Leandra Barrufi Pinheiro (PPGT - UDESC)

Em espetáculos teatrais, performáticos, ou mesmo no cinema, não apenas o ator é

elemento fundamental da cena, mas todo o conjunto de elementos que a compõem. Esses

elementos podem ser a maquiagem e figurino, que servem como caracterização da

personagem; a trilha sonora e iluminação que compõem a atmosfera ou o clima da cena; o

cenário e demais elementos de cena, inclusive bonecos. A própria contação da história e a

imaginação permite às pessoas verem esses elementos agregados como mais uma personagem.

Segundo Moretti (2008), Kantor já via os elementos que compõem uma cena não apenas como

objetos, mas também como atores. Dessa forma, esses elementos não seriam somente

acessórios com a intenção de fornecer um auxílio para interpretar a personagem.

Tal como qualquer outra tecnologia utilizada para a composição de espetáculos teatrais

e performances, novas tecnologias têm sido também introduzidas para servirem como auxílio

no enriquecimento dos sentidos do público e dos atores, tais como as tecnologias

computacionais. Isso vai desde a utilização de datashows para compor mais um elemento

visual à cena, até a utilização de robôs como representação de uma personagem na ação. A

utilização desses novos recursos tem se mostrado questionadora em vários níveis, trazendo à

tona a discussão das fronteiras entre o ser humano e a máquina. Não apenas a máquina como

uma ferramenta, mas a máquina como uma extensão do ser humano (Abraão, 2007).

Gama (2011), afirma que:

Hoje, já temos nos espetáculos de dança, mais comumente, corpos vivos

interagindo com imagens, humanas ou não. Softwares são criados para isso.

Esses recursos colocam o ator polivalente, diante de novos desafios. (…)

Vemos espetáculos que têm como objeto seu próprio processo de criação,

deixando à mostra a colaboração de todos os envolvidos na parte criativa. O

ator, então, deve se relacionar diferentemente com seus novos parceiros.

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Deve responder às necessidades que a nova cena lhe exige. Poderíamos estar

na iminência de ver um novo ator? Um super ator como queria Meyerhold? O

ator pós-dramático? (Gama, 2011).

Partindo-se do princípio que ao se ver como natural a utilização das tecnologias, desde

as antigas até as mais atuais, torna-se natural a visualização de uma cena composta por robôs,

virtuais ou mecatrônicos, e até com um certo nível de inteligência artificial, interagindo com

atores e demais elementos do cenário.

Em certos textos literários, ou mesmo no cinema, pode-se observar cenas que mostram

os robôs evoluindo de tal forma que chegam a sentir e demonstrar emoções. Contudo, segundo

Damásio (2000), as emoções estão ligadas à sobrevivência dos indivíduos de forma direta.

Isso tem papel intrínseco na reação do indivíduo ao seu meio e às suas interações, assim como

à sua adaptação conforme as necessidades. Nesse sentido, Minsky (1998) diz que a questão

não está em se uma máquina pode ser tão inteligente ao ponto de emergir emoções, mas em

que não há como haver um robô realmente inteligente que não possua emoções. Tem se

observado que não há como haver uma forma artificial inteligente que possa ser realmente

efetiva no papel das interações entre robôs e humanos sem existência das emoções (Scheutz,

2000).

Dessa forma, em um robô em cena, ter-se-ia também um ator, ou objeto-ator, como

diria Kantor, provido de inteligência artificial e emoções. Mas essas emoções devem ser

dinâmicas, mudando conforme a ação, conforme um roteiro ou mesmo em relação à interação

entre os elementos.

No teatro, Constantin Stanislaviski (1988) apresenta a memória das emoções como

uma forma de reviver emoções coletadas pela pessoa durante suas experiências de vida e

utilizá-las para reconstruir uma imagem interna de algo, lugar, pessoas, sentimentos

experimentados.

Tais sentimentos podem parecer estar além da possibilidade de serem

evocados, mas, subitamente, uma sugestão, um pensamento ou um objeto

conhecido fazem com que nos sejam trazidos de volta na plenitude de sua

força. As vezes, as emoções têm a mesma intensidade de sempre, as vezes

são mais fracas, ainda, os mesmos sentimentos fortes podem retornar um

tanto modificados (Stanisláviski 1988).

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Um ator, segundo Stanisláviski (1988) pode possuir modelos de memórias emocionais

armazenados em suas mentes, de suas lembranças, de suas vivências. Quanto maior a

quantidade de memórias emocionais um ator tiver, maior riqueza criativa terá este para

estimular novos processos em situações completamente diferentes. Para ele:

Em ocasiões de perigo real, um homem pode ficar calmo, mais tarde, porém,

ao evocar a memória do perigo que o ameaçou, pode vir a desmaiar. Este é

um exemplo de que a memória emocional tem um poder maior do que os

sentimentos originalmente experimentados (Stanislaviski 1988).

Craig (1957), de um lado oposto, apresenta um elemento chamado Super Marionete.

Esse elemento seria o ator sem emoções. Para ele, as emoções seriam desnecessárias para uma

efetiva representação da cena.

Tudo leva a crer que a verdade em breve amanhecerá. Suprimi a árvore

autêntica que haveis posto sobre a cena, suprimi o tom natural, o gesto

natural e acabareis igualmente a suprimir o ator. É o que acontecerá um dia e

gostaria de ver alguns diretores de teatro encarar essa ideia a partir deste

momento. Suprimi o ator e retirareis a um realismo grosseiro os meios de

florescer a cena. Não existirá mais nenhuma personagem viva para confundir

a arte e a realidade em nosso espírito; nenhuma personagem viva em que as

fraquezas e as comoções da carne sejam visíveis. O ator desaparecerá e no

seu lugar veremos uma personagem inanimada - que se poderá chamar, se

quereis, a "Super marionete" - até que tenha conquistado um nome mais

glorioso (Craig, 1957).

Ter-se-ia um ator com perfeita conservação da homogeneidade e coerência da obra de

arte, sem um ator vivo, mas sim um manequim, uma criação artificial e mecânica. Ainda

assim, um ator, uma pessoa desprovida de si em sentimentos para produzir um produto

representativo, uma personagem.

Para Kantor (1988), o manequim de Craig deveria apenas “se tornar um MODELO que

encarna e transmite um profundo sentimento da morte e da condição dos mortos - um modelo

para o ATOR VIVO”, e não algo para substituir o ator completamente.

No contexto da Super Marionete de Craig (1957), ter-se-ia um ator que se desprende

de suas experiências vividas e de seus sentimentos para a criação de um produto automatizado

para uma representação homogênea. Seguindo uma contrapartida dessas ideias, tem-se

Stanislaviski (1988) que buscava justamente as premissas intrínsecas da vivência dos atores e

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suas memórias de emoções. Em tempo, tem-se a possibilidade da existência de robôs em cena

como mais um elemento ou ator, em concomitância com as ideias de Kantor (1988). Contudo

não um robô automatizado e frio, mas a visão de um robô seguindo as ideias de Damásio

(2000) da necessidade das emoções para a sobrevivência de um indivíduo e, no caso de um

robô, a emergência de uma inteligência artificial suportada por um conjunto de emoções,

necessárias para sua composição (Minsky, 1998) e (Scheutz, 2000). Dessa forma, ter-se-ia

uma nova versão da Super Marionete de Craig (1997), uma versão 2.0, uma oposta. Não um

ator homogêneo desprovido de emoções, mas uma máquina, um robô, seja ele virtual ou

mecatrônico, provido de um conjunto de modelos de emoções, sua própria memória das

emoções, citada por Stanislaviski (1988). Ter-se-ia em cena uma Persona Ex Machina.

O termo Persona Ex Machina utilizado aqui provém do Latim Pessoa da Máquina e é

inspirado no Deus Ex Machina, o “Deus descido da máquina”, dispositivo mecânico utilizado

na Antiga Grécia, “que vinha em auxílio do poeta quando este precisava resolver um conflito

humano aparentemente insolúvel” (Berthold, 2004).

Com base no contexto supracitado, o presente trabalho dialoga na utilização de

elementos computacionais na forma de atores em cena, chamados aqui de Persona Ex

Machina, ou simplesmente PEM. Esses PEM’s podem ser classificados como atores virtuais,

vistos em uma grande tela via recurso de datashow, por exemplo, ou por agentes robóticos

interagindo no ambiente real. A utilização de tais recursos no teatro, performance e dança não

é nova e já vem sido executados em alguns trabalhos.

Um exemplo de PEM é o Robô Thespian (ROBOTHESPIAN, 2013). Este é um

projeto desenvolvido com o intuito de possuir uma comunicação flexível e uma base de

informações controlando seus movimentos, sons, vídeo, etc., configurável via web. O

Thespian possui uma base padrão de conteúdo com roteiros para, de forma automatizada,

cantar, declarar poesias, interpretar personagens. É possível acrescentar novos roteiros de

performances para aumentar as possibilidades das ações dele. Como forma de criar um

espetáculo atraente, o projeto uniu a arte com a tecnologia com equipes de roteiristas,

animadores, designers e outros. Entretanto, o Thespian não interage com as pessoas. Ele se

utiliza de seus roteiros prontos e executa suas apresentações.

O Robô Titan (ROBOTX, 2013) também trabalha no conceito de Ator-Robô. Este

PEM é utilizado para apresentações de rua e em diversos tipos de eventos. Normalmente é

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apenas o robô que atua, contando piadas e debochando do medo das pessoas de robôs grandes,

com aparência grotesca e que causam medo, referenciando a si mesmo. Por mais que esse robô

pareça interagir com o público, não há uma conversa real.

Existem também espetáculos teatrais utilizando robôs, como o drama “Sayonara”,

escrito e dirigido por Oriza Hirata, com a assessoria técnica de Hiroshi Ishiguro da

Universidade de Osaka & ATR Intelligent Robotics and Communication Laboratories. A

teatralidade na cena é somada à ciência ao juntar a participação de um robô humanóide

feminino interagindo diretamente com uma atriz. O espetáculo se mantém na temática: "o que

a vida e a morte significam para os humanos e para os robôs?" (Hirata, 2010), (Lange, 2011).

A androide, entretanto, não possui uma inteligência artificial e é controlada via

controle-remoto.

Conforme visto nas apresentações e espetáculos citados acima, não houve uma real

interação entre pessoas e robôs autônomos que interagem e, inclusive, improvisam na

interação com outro ator ou com o público. O presente trabalho dialoga justamente nessa

interação, conversa e improvisação, além de propor um conjunto de princípios a serem

utilizados para a criação de um espetáculo teatral, dança ou performance com a utilização de

uma Persona Ex Machina, conforme descritos a seguir:

1. Princípio da Autonomia: Uma PEM deve ser um agente autônomo, possuindo uma

certa inteligência artificial para poder agir sozinho, sem a intervenção humana por

controle-remoto, teclado ou joystick, durante um espetáculo teatral, dança ou

performance;

2. Princípio da Percepção: Uma PEM deve utilizar as informações de seus sensores,

analisando-as, processando-as e respondendo com ações, ou não, em tempo de

apresentação. Nada deve ser pré-processado;

3. Princípio da Ação: Uma PEM deve poder agir no ambiente real ou virtual em que se

encontra por meio de atuadores, como por exemplo braços mecânicos, rodas, cabeça

robótica, expressões animadas em uma tela de computador ou datashow;

4. Princípio da Interação: Um humano ou outra PEM deve poder interagir com uma

PEM por meio de conversa, gestos e ações, tal como interagiria com outra pessoa;

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5. Princípio do Roteiro: Uma PEM deve ter um roteiro de base para seguir, deve poder

encontrar as deixas dos outros atores em cenas e deve poder seguir seu roteiro

conforme pontos de checagem no tempo da execução do espetáculo.

6. Princípio da Improvisação: Uma PEM deve ter a possibilidade de improvisar, em

alguns pontos do espetáculo e escolher a melhor resposta que lhe convier conforme

interações não planejadas com outros atores e, inclusive, com o público.

7. Princípio da Interpretação: Uma PEM deve poder interpretar sua personagem e

utilizar de mudanças de humor conforme as necessidades do espetáculo e das

interações.

Os princípios de Autonomia, Percepção e Ação, são cobertos pela tecnologia de

Agentes Inteligentes, já bastante difundida e com diversos padrões de implementação nos dias

atuais. Um Agente, segundo Russel e Norvig (2004) é um elemento, inserido em um ambiente,

que pode perceber esse ambiente por meio de sensores e responder à ele por meio de

atuadores. Ainda, um agente possui um processamento interno, que analisa as entradas de

forma a respondê-las da melhor maneira possível e com um certo grau de autonomia.

Para cobrir o princípio da Interação, nesse trabalho é sugerida a utilização de técnicas

de conversa entre o agente PEM e demais elementos interativos na cena (atores) por meio de

conversação em linguagem natural. Na Inteligência Artificial, existem os chatterbots (ou

chatbots) na forma de elementos que visam simular conversações em linguagem natural

(Primo, 2008).

O primeiro chatbot criado foi o ELIZA, desenvolvido por Joseph Weizenbaum (1996)

no Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT). Por meio de uma sentença digitada pelo

usuário, o chatbot identificava uma palavra chave importante ou um contexto mínimo. O

processamento se dá pela manipulação de palavras e frases de modo a responder de forma

“inteligente” as perguntas dos usuários.

Posteriormente, o ELIZA evoluiu para uma versão mais atual, chamada ALICE

(Artificial Linguistic Internet Computer Entity), com uma estrutura própria de codificação de

premissas baseada em XML (eXtensible Markup Language) chamada AIML (Artificial

Intelligence Markup Language), com um padrão bastante atual, baseada em contextos e

atualmente liberada sob a licença GNU GPL. Isso acabou de por servir de base para que

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muitos chatbots atuais utilizassem esse padrão para compor sua implementação (Wallace,

2003).

Segundo Primo (2008), no Brasil, o primeiro chatbot criado foi o Cybele, por volta de

1999. A intenção era gerar uma discussão crítica sobre a experiência de um robô utilizando a

língua portuguesa como base para a conversação.

Um outro chatbot é a ARISA (acrônimo para Assistant Representative: an Instance

using Services Architecture). Em verdade, a ARISA é um Software Assistente Pessoal (SAP)

baseado na Arquitetura Orientada a Serviços (SOA) que possui um módulo de chatbot para

interação com o usuário. Sua base de conhecimento é implementada em um banco de dados,

utiliza uma interface gráfica web para alimentar sua base e seu motor de processamento é um

serviço web. O chatbot da ARISA se encontra em funcionamento desde setembro de 2010 e

foi integrado ao sistema de assistência pessoal via software de computador em janeiro de 2011

(Zambiasi, 2012).

Quando o usuário envia uma frase para a ARISA, seu sistema procura por todas as

ocorrências, ou premissas, que são compatíveis com a frase entrada pelo usuário e escolhe

uma resposta aleatoriamente, dessas compatíveis. Caso não encontre nada compatível, o

sistema seleciona uma frase aleatória de um conjunto de frases classificadas como “scapes”,

ou também chamadas de frases de fuga (Zambiasi, 2012). O fato de poder haver várias

palavras chaves encontradas em uma frase passada pelo usuário, dá a possibilidade do chatbot

escolher aleatoriamente o tópico da qual irá tratar. Assim também ocorre no caso de não

encontrar um tópico que o chatbot reconheça. Essa aleatoriedade, fornece recursos de

improvisação. O chatbot nunca ficará sem retornar uma devida resposta, mesmo que seja uma

mudança do assunto. Isso também fornece recursos para suprir o princípio da Improvisação

supracitada.

Por fim, para dar suporte ao princípio do Roteiro, esse trabalho se apropria da ideia de

roteiros de interação baseados em mudanças de estados anímicos, de Zambiasi e Pinheiro

(2012). Um estado anímico é definido como um estado de humor, e a mudança desses estados

se dá pela mudança de humor de um elemento artificial interativo (agente) com um usuário.

Essa mudança de humor pode afetar a forma como a conversa entre um agente se dá com o

usuário ou mesmo pode alterar as ações desse agente, tal como a memória das emoções de

Stanisláviski (1988).

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Para que seja possível que um agente ou, no caso aqui utilizado, uma PEM possa

modificar seu estado anímico, é necessário também definir roteiros de interação para cada

estado anímico possível ou que se quer implementar. Considerando que seja utilizada a

interação via conversação em linguagem natural utilizada por chatbots, esses roteiros são, em

verdade, um conjunto de premissas de uma linguagem de interação baseada na implementação

destes (Zambiasi e Pinheiro, 2012).

Os estados anímicos, de uma PEM podem ser, por exemplo, baseados no conceito dos

quatro quadrantes do modelo circumplexo de Russel e Lemay (2000) sendo mapeadas em

sentimentos, tais como Bravo, Indiferente, Feliz, Apaixonado.

Conforme as respostas ou perguntas dos usuários, uma PEM deve poder alterar seu

humor. Considerando a utilização da linguagem AIML de chatbots, é adicionado um novo

elemento fazendo parte da resposta, com informações sobre modificação de pontuação de

humor. Por exemplo, se o usuário (outro ator) falou algo para uma PEM, e essa seleciona uma

resposta considerando que a frase do ator foi agressiva, então uma informação de perda de

pontuação pode estar agregada a frase. Essa informação não é mostrada ao ator e nem deve ser

utilizada como resposta, mas utilizada para alterar o sistema de pontuação da PEM. Caso essa

pontuação passe de um certo limiar, o humor da PEM é alterado. Quando esse humor é

alterado, o chatbot passa a utilizar o roteiro relativo àquele humor. Para facilitar a criação dos

roteiros (arquivos AIML) escreve-se todas as premissas no estado anímico correspondente.

Por exemplo, um roteiro que representa a PEM brava, deve ter apenas respostas ríspidas para

com o usuário. (Zambiasi e Pinheiro, 2012).

No caso de haver mais de um ator em cena, interagindo com uma Persona Ex

Machina, se for possível o reconhecimento pela PEM de quem está interagindo com ela, então

também é possível que a PEM trate de forma diferente, com formas diferentes de humor para

cada ator. Tendo o ator sido reconhecido, e tendo a Persona Ex Machina uma informação de

qual humor ele têm para aquele ator naquele momento, a tarefa de selecionar o roteiro

correspondente é simples.

Concluindo, o presente trabalho apresentou a utilização de elementos virtuais ou

mecatrônicos artificiais para atuarem como atores. Algo não diferente do que já tem sido

discutido e utilizado na atualidade. Essa é uma possibilidade real e com perspectivas

interessantes a nível de discussão sobre a utilização de novas tecnologias em cena ou mesmo

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para um diálogo sobre a interferência destas na sociedade. Ainda, o artigo apresentou uma

sugestão de um conjunto de princípios para a criação de uma Persona Ex Machina, ou

simplesmente PEM, na forma de um ator artificial para ser utilizada em espetáculos teatrais,

performances ou dança. Em tempo, foram discutidos os recursos tecnológicos de

implementação e suporte aos princípios de PEM sugeridos, mostrando as possibilidades reais

de aplicação da proposta na prática. Por fim, este trabalho deve servir como base para a

aplicação real da proposta em um espetáculo teatral laboratório com o suporte do Grupo

Subverse: Grupo de Pesquisa em Ciberarte (Subverse, 2013).

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STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS CORPORAIS

ATÉ À DRAMATURGIA DO ATOR.

STANISLÁVSKI NA COMÉDIA POPULAR: UM RELATO POÉTICO DAS

VIVÊNCIAS EXPERIMENTADAS NESSA ESTÉTICA.

Vanessa Lopes Ribeiro; Orientadora: Roberta Ninin; Faculdade de Comunicação, Artes

e Letras - Universidade Federal da Grande Dourados.

INTRODUÇÃO

O presente artigo reflete uma pesquisa iniciada acerca de Stanislávski na

comédia popular através da construção da personagem tipo. Essa pesquisa parte de um

breve relato poético sobre as experiências vivenciadas e proporcionadas pelas aulas de

Tópicos Especiais em Artes Cênicas I, ministradas pela professora mestre Roberta

Ninin, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) que possuía como

proposta relacionar o conteúdo trabalhado na disciplina, ou seja, a Comédia Popular e

teorias do teatro com os repertórios que cada aluno trazia consigo de uma vivência

anterior a disciplina.

Como consequência dessa proposta, o que se encontrará descrito, brevemente, é

a problematização e argumentação fundamentada na experiência teórico-prática de que

é possível basear-se em Constantin Stanislávski para a criação e manutenção da

personagem tipo na comédia popular.

O ator, independente do gênero da obra em que atua, deve

esforçar-se para executar corretamente as ações criadas por

ele, nas circunstâncias dadas pelo autor, de forma gradual,

lógica, coerente, captando sucessivamente cada verdade e

acreditando nelas, para poder chegar gradualmente ao mais

importante momento dramático. Ele tem que saber por que e

para que faz tudo o que realiza em cena, as circunstâncias

dadas, os “se”, as ações físicas, os objetivos, a fim de criar a

vida do papel e com ela a “vida do corpo humano”.

(DAGOSTINI, 2007, p.75)

DESENVOLVIMENTO

Em algum momento da vida as pessoas descobrem – cedo ou tarde - a

atividade que desejam realizar profissionalmente. Sendo assim, fiz a minha escolha, aos

sete anos de idade fazia a minha primeira peça, além das brincadeiras do faz-de-conta,

do brincar de teatro e de acompanhar os ensaios do grupo cujo qual minha avó dirigia.

E, nesse momento, eu sabia, desde então, que essa era minha sina.

E foi dessa forma que entrei pelas entranhas do teatro e cada vez mais fui me

aprofundando. Descobrindo possibilidades e alternativas para o fazer teatral através da

prática. Com o passar dos anos, é normal que se perceba e reconheça as afinidades pelas

diversas expressões e manifestações de acordo com suas preferências e habilidades.

Sendo assim, com o passar dos anos e os diversos processos que vivenciei, fui

me reconhecendo em uma forma, percebi o quanto era mais prazeroso determinadas

montagens do que outras, com quais estéticas me identificava e produzia com uma

qualidade maior.

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Para prosseguir, faz-se necessário, neste momento, utilizar a divisão Aristotélica

do teatro: comédia e tragédia. A fim de simplificar a quantidade de gêneros existentes e,

por conseguinte, tornar mais claro, de certa forma, as seguintes linhas deste trabalho.

Segundo Pavis:

Tradicionalmente, define-se a comédia por três critérios que a

opõem à tragédia: suas personagens são de condição modesta,

seu desenlace é feliz e sua finalidade é provocar o riso no

espectador. [...], a comédia nada tem a extrair de um fundo

histórico ou mitológico; ela se dedica à realidade quotidiana e

prosaica das pessoas comuns: daí sua capacidade de

adaptação a qualquer sociedade, a infinita diversidade de suas

manifestações (...). (PAVIS,2005, p.52-53)

E, para contrapor-se a essa definição e a esta manifestação, têm-se:

A tragédia é a imitação de uma ação de caráter elevado e

completo, de uma certa extensão, numa linguagem temperada

com condimentos de uma espécie particular conforme as

diversas partes, imitação que é feita por personagens em ação

e não por meio de uma narrativa, e que, provocando piedade

e temor, opera a purgação própria de semelhantes emoções.

(ARISTOTELES apud PAVIS p. 415)

Nota-se, portanto, as diferenças e como são opostas tragédia e comédia. Mas é

importante ressaltar que não existem somente esses dois gêneros e que no momento

histórico, século XXI, em que nos encontramos, há a mestiçagem das duas

manifestações e junção de outros elementos resultando em outros gêneros, como a

tragicomédia; o drama, o teatro épico; o teatro pós-dramático; entre outros. É fato que as

definições apresentadas são, de certa forma, ultrapassadas por apresentarem a falsa ideia

de que a tragédia é mais importante e digna do que a comédia, apesar de esse

pensamento persistir até a atualidade por parte de alguns. Utilizaremos das definições

apenas como uma base, um breve esboço.

Entre os mais diversos trabalhos realizados durante todo o meu percurso no

teatro, ao compor o Hendy- Grupo de Pesquisa e Experimento em Teatro dirigido por

Fabricio Moser1, através das pesquisas e experimentos realizados para as peças do

repertório do grupo encantei-me pelas montagens mais ligadas a linha trágica, a linha do

dramático, das montagens que trabalhavam com o denso. Não, necessariamente, uma

tragédia, mas processos que se utilizam de elementos trágicos em sua linha condutora.

O mesmo tinha como característica o trabalho com base em Stanislávski,

porém, isso não significava “ignorar” o público e realizar uma interpretação voltada

somente aos atores do elenco, a existência da famosa quarta parede. Não, muito pelo

contrário, acreditava-se sim na troca incansável com o público. Afinal os espetáculos

haviam sido criados para o público que alí estaria, sendo assim, ocorreria troca de

energia e informação. Sendo escolhido através da estética adotada pela encenação o

como essa troca ocorreria e em que vias. Ao relatar minha base stanislavskiana, refiro-

me, principalmente, à verdade do ator, ao trabalho realizado por esse:

1 Grupo que compôs a cena teatral da cidade do Estado de Mato Grosso do Sul, originário da cidade de

Dourados. Surgiu em 2007 com o patrocínio da Fundação Victor Civita e Enersul através do Projeto

Letras de Luz. Nos anos de 2008 a 2010 funcionou com recursos próprios e de editais, responsável por

diversos eventos e manifestações na cidade encerrou suas atividades no ano de 2010.

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Partindo da biografia da personagem, de seu comportamento,

das circunstâncias da ação, o ator procede “como se”, entra

em um processo psicológico que desencadeia nele o

sentimento real, ele “vive” o acontecimento e suas

consequências, em vez de contentar-se em reproduzir a

manifestação de um sentimento exterior que ele não sente.

(ASLAN apud NININ p.40)

E nada impede que, ao se trabalhar com uma criação de papel e com uma

construção da personagem pautada em Stanislávski, tenha-se um treinamento de ator

baseado em Eugenio Barba, Laban e na teoria da exaustão física. Que exista uma

representação baseada em partituras cênicas e no corpo dilatado, em oposições, sendo

este receptor e emissor de energias. Pois, o teatro é isso: uma aglutinação de teorias,

técnicas e o sentir para justapor os conhecimentos e dar vida ao que acreditamos.

Durante essa pesquisa de experimentos corpóreos e de preferências, notei o

quanto me era difícil trabalhar com a comédia. Sempre houve um bloqueio, não me

sentia bem no palco, ou não acreditava na proposta, ou, então, achava “forçado” demais

o trabalho e caricatural a ponto de inferiorizar o público. Recordo-me do quão

traumatizante foi uma montagem de um espetáculo cômico no Hendy em que consistia

em uma sátira da televisão brasileira. Eu me senti exposta no mesmo. Fato é que esse é

o meu bloqueio, talvez a minha labuta mais árdua dentro do teatro para me despir desse

certo “preconceito” que criei a respeito da minha atuação em comédia.

É nesse ponto em que recorro às aulas de Tópicos Especiais em Artes Cênicas I

– ou, como chamávamos entre a turma, Técnicas Circenses. Ao me matricular na

disciplina esperava enfrentar outros bloqueios como a falta de ritmo; a fobia de altura e

melhorar a coordenação motora, mas, qual não é a minha surpresa, ao me deparar

rotineiramente com elementos cômicos. E, além disso, a comicidade popular.

Importante ressaltar que a comédia popular brasileira tem suas raízes, pesquisas

e origens na cultura popular o que difere totalmente da cultura de massa, essa última

marcada pela efemeridade e superficialidade. Embora a cultura popular seja de caráter

significativo, formativo e possua grande complexidade devido a sua verticalidade no

cotidiano do viver e no contexto das pessoas, essa é facilmente desprezada pela

população e sufocada por movimentos originários do sistema vigente.

O conceito popular comumente vem acompanhado de

preconceitos e desqualificações. O sentido dado ao termo

refere-se a algo tosco, mal ajambrado, às vezes até possuidor

de alguma beleza, porém simplória e superficial. O popular,

dentro dessa visão, não atingiria a profundidade filosófica ou

o rigor e a complexidade estética do tratamento que uma

cultura elevada dedica às coisas do Espírito.

Outras vezes, o conceito popular refere-se ao folclore,

entendido como um conjunto de expressões simbólicas,

geralmente olhado como resíduos decadentes, anacrônicos,

expressão do saber de uma gente atrasada culturalmente e de

uma época ainda imersa em concepções simplórias e

supersticiosas sobre o mundo. [...] É a mesma visão elitista

que vê as classes populares apenas como turba ou massa,

negando-lhe individualidade e refinamento espiritual. Só o

ser da elite atingiu o status de indivíduo, de ser em si, íntegro,

inteiro, dentro dessa visão eivada de preconceitos [...].

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[...] Percebemos dentro de uma cultura que se transmite de

forma oral um manancial de experiências e informações a

serem vividas, descobertas e transmitidas. E a conclusão a

que chegamos é que a cultura popular encerra em si um

sistema de práticas complexas que alcança todo o

conhecimento humano.2

Por conseguinte, tomando como objeto a cultura popular para embasamento da

comédia e, consequentemente, o teatro popular tem-se material para os trabalhos

teóricos e práticos das aulas, que consistiram em um processo gradativo das

possibilidades a serem exploradas através do jogo cênico durante o seu tempo-espaço.

Através de jogos foi-se apropriando elementos característicos e marcantes dessa

expressão teatral. Notando-se que a triangulação e comunicação com o público são

essências no trabalho desenvolvido. No decorrer das aulas, durante os experimentos e

jogos, sempre esteve presente o cômico e eu fui me entregando aos poucos. É fato que

ainda existe certa resistência da minha parte, mas o rompimento de um bloqueio ocorre

de forma lenta e processual. A quebra dessa barreira só é possível a partir do momento

em que se encontra caminhos a serem seguidos a fim de se alcançar o objetivo principal,

no meu caso Stanislávski para chegar a comédia popular. Acho que esse foi o grande

mérito desta disciplina: proporcionar a intersecção de conhecimentos e aproveitar o que

cada um já tinha de bagagem e repertório pessoal.

É nesse ponto que faço um arriscado palpite: a utilização do Stanislavski dentro

da comédia. Afinal, ambos possuem elementos em comum e que são favoráveis à

representação cênica e que procuram contribuir para o melhor desenvolvimento da cena.

Mas retomo aqui que é uma base stanislavkiana sem a utilização da quarta parede, sem

ignorar o público.

Os princípios de Constantin Stanislavski encontram-se sim na comédia popular.

Pude notar isso claramente durante as aulas; por exemplo, durante a aula oferecida pelo

artista e palhaço Breno Moroni3. Durante as diversas etapas da aula em um momento o

mesmo passou uma sequência de movimentos prontos (anda, bate o peito, cai, vira uma

cambalhota), ou seja, nada mais era uma gag4. Enquanto esse trabalho era executado

poucas pessoas pararam para ver, diferentemente do que aconteceu quando foi proposto

improvisar cenas de clowns com bananas. Essas cenas partiam do repertório e da

vivência do artista, ou seja (partindo do crença de que o clown é baseado no eu de cada

artista e por isso humano e frágil), de alguma forma elas passavam pela organicidade,

pela repetição e se estruturavam melhor, proporcionando, assim, a verdade cênica.

A partitura de ações físicas criadas de forma lógica e coerente

mantém a atenção do ator na esfera da cena e o orienta numa

linha estável do papel, despertando assim a fé no autêntico e

2 Site da Fraternal Companhia de Arte e Malas-Arte: www.fraternal.com.br, acessado em 20.08.2008

apud NININ. 3 Em um sábado durante a aula que coincidiu com a Mostra de Palhaço da cidade de Dourados, o

convidado do evento Breno Moroni forneceu uma aula-oficina para a turma na Praça Antônio João. A

aula tinha como enfoque o público, as técnicas utilizadas pelos clowns e criação de esquetes. 4 Do inglês norte-americano gag: efeito burlesco. A palavra é empregada em francês desde a década 20. A

gag é, no cinema, um efeito ou um esquete* cômico que o ator parece improvisar e que é produzido

visualmente, a partir de objetos, de situações inusitadas: é “na gíria dos estúdios, um achado irresistível

que revigora e multiplica o riso num filme cômico” (B. CENDRARS em L’Homme Foudroyé). No

cinema, como no teatro, o ator cômico* inventa, às vezes, jogos de cena, lazzis*, que contradizem o

discurso e perturbam a percepção normal da realidade. (PAVIS, 2005, p. 181)

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a verdade do que faz em cena. O ator, em cena, é levado a

perceber a verdade do corpo e do espírito através da linha das

ações físicas, pois ela cria uma interação entre ambos, “entre

a ação e o sentimento, graças a isso o exterior ajuda o

interior e o interior evoca o exterior”5. Por meio da ação

física o ator pode expressar toda a complexidade da lógica da

conduta psicofísica da personagem. (DAGOSTINE, 2007,

p.75)

E nesse momento retomando o clown, já citado, para a criação desse tipo - no

meu caso tratava-se de um clown Augusto - foi necessário à observação de mim mesmo

para poder compô-lo. Ou seja, foi do interior para o exterior, como cita Stanislávski. E

nos momentos em que me sentia perdida para a composição desta minha persona recorri

para o recurso do exterior para o interior.

E, não foi somente nesses momentos que foi possível estabelecer uma relação

entre os conhecimentos, em outras situações foi notório o quão útil e coerente foi

Stanislávski.

Em todos os jogos e exercícios propostos, havia sempre uma circunstância dada,

ou seja, uma situação em que os tipos da comédia se encontravam nela e a partir disso

desenvolver uma cena. Para tal, é necessário estabelecer os objetivos a serem

alcançados que se convertem em um único alvo; para Stanislávski, o superobjetivo.

Sendo este o objetivo central, o ápice a ser alcançado. É a verticalização do presente

momento na cena ou, no jogo, ou na obra a fim de descobrir os meios das personagens e

o que essas pretendem.

[...] O superobjetivo gera desejo para sua realização, estimula

a imaginação criativa, absorve nossa atenção, satisfaz o

sentido da verdade, desperta a fé e os demais elementos da

atitude do ator. Deve ser fundido com a sensibilidade do ator,

converter-se em algo próprio, encontrar a essência interior do

ator. (DAGOSTINI, 2007, p. 28)

É através desse foco, desse superobjetivo que as ações vão se desencadear, que

ocorrerá a linha transversal da ação, como, através da ação, os personagens/tipos vão

viver suas histórias e chegar aos seus desfechos. Para isso, os atores elaboram objetivos

menores baseados nas ações para que se aproxime do ápice do jogo, da peça, da cena,

do esquete. São estes objetivos e o superobjetivo que são responsáveis pela criação e

desenrolar das situações.

Só há uma coisa que pode seduzir nossa vontade criadora e

atraí-la para nós: um alvo atraente, um objetivo criador. O

objetivo é o aguçador da criatividade, sua força motriz. O

objetivo é a isca para as nossas emoções. Esse objetivo gera

surtos de desejos para os fins da aspiração criadora. Envia

mensagens internas que lógica e naturalmente se exprimem

por meio da ação. O objetivo faz pulsar a entidade viva do

papel. (STANISLAVSKI,2011,p.72)

Os objetivos podem ser de caráter interno (emocional) ou externo (que é visível

ao público) e é dos mesmos a responsabilidade de dar vida ao personagem, ao tipo, a

cena, ao jogo, à peça, à comédia popular. Durante as aulas, diversos jogos nos

5 STANISLAVSKI, C. apud DAGOSTINI.

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provavam isso, mas cito aqui o jogo em que três alunos deveriam entrar em cena, cada

um compondo um tipo, desses três dois tinham o objetivo de conquistar o terceiro.

Stanislávski ao escrever seu método o sistematiza, pois lhe incomodava o fato de

todas as outras áreas e artes terem um treinamento e técnicas para os seus artistas e o

teatro não. É, portanto, que a sua obra vasta e quase que de caráter didático, a fim de

preencher realmente essa lacuna. Nessa sistematização, o teórico passa pela

concentração6. Stanislávski ainda define concentração como um trabalho de observação.

E, retomando a comédia popular, lembra-se que essa tem sua origem na cultura

popular através da observação, percepção e análise de como se estabelece as relações e

os tipos pessoais. Proporcionando, assim, um vasto material para a criação da comédia

popular e a sua identificação pelo público.

O elemento concentração é fundamental e necessário para a

criação. Ele envolve a observação, a percepção, a

imaginação, a memória e a vontade. O desenvolvimento da

faculdade de observação e percepção exige uma mente

flexível e aberta, capaz de concentração absoluta, que

possibilite o domínio consciente e voluntário da atenção,

levando o ator a concentrar todo o seu aparato psicofísico

ativamente numa única direção, no objeto escolhido. A ação

de concentrar a atenção num objeto aguça a capacidade de

percepção e de observação e leva à essência das coisas.

Obriga a atenção a penetrar profundamente no objeto

observado, a avaliá-lo e captar a sua essência. Com um

esforço de vontade, o ator deve encontrar na vida, através da

observação, o essencial, o característico, deve captar tudo que

ocorre ao seu redor e eleger aquilo que é mais significativo,

interessante e típico. A observação da vida e de si mesmo

inclui um vasto trabalho sobre os cinco sentidos, que,

segundo K. Stanislávski, liberam o sexto sentido, a intuição e

a inspiração. O ator deve adquirir o hábito de dirigir sua

atenção a todas as manifestações da vida, desenvolver a

faculdade consciente de observação de tudo o que ocorre

dentro e fora dele. Essa observação não pode ser superficial,

mas o ator deve descobrir no objeto observado algo ainda não

percebido, os detalhes, aprofundando assim todas as

peculiaridades únicas do objeto em questão, sob os aspectos

da textura, cheiro, forma, cor, movimento, ritmo, etc.

(DAGOSTINI, 2007, p.62)

Essa observação consiste durante as aulas, que era orientada pela docente

Roberta Ninin, muitas vezes, durante os jogos, ela dizia em tom de brincadeira: “podem

olhar e copiar os colegas se quiserem”. No fundo, trabalhava-se a concentração através

da observação dos tipos presentes na sala, uma pesquisa dentro do espaço de pesquisa,

uma metapesquisa, se assim pode-se dizer. A docente, por meio de seu discurso,

propunha que fizéssemos o que tanto se defende dentro da sala de aula: a observação da

sociedade, a fim da representação pra proporcionar a identificação com os tipos.

6 O elemento concentração é fundamental e necessário para a criação. Ele envolve a observação, a

percepção, a imaginação, a memória e a vontade. O desenvolvimento da faculdade de observação e

percepção exige uma mente flexível e aberta, capaz de concentração absoluta, que possibilite o domínio

consciente e voluntário da atenção, levando o ator a concentrar todo o seu aparato psicofísico ativamente

numa única direção, no objeto escolhido. A ação de concentrar a atenção aguça a capacidade de

percepção e observação e leva à essência das coisas. (DAGOSTINE, 2007, p. 62)

- Ver Círculos de Atenção em A preparação do ator, Stanislávski.

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Era através da observação tanto dos colegas, quanto do nosso próprio corpo, que

se criava os corpos dilatados, extra cotidianos, os tipos que serviram de base em muitas

aulas e jogos para a pesquisa da comédia popular e do jogo cômico. Exemplo disso não

falta: teve-se o jogo de seduzir o colega com uma parte do corpo; o cortejo até a praça

central da cidade, no dia da aula com o Breno; os jogos em que existiam dois tipos

disputando um terceiro; o jogo em que se aumentava e comunicava, ao público, uma

característica sobre o colega; as cenas montadas com as acrobacias; a montagem do o

esquete para a conclusão da disciplina; entre outros. Tudo com um único objetivo: a

criação de um corpo disponível para a representação.

O meio consciente de dar corpo a um papel começa com a

criação intelectual e uma imagem exterior, com o auxílio da

imaginação, da visão, e ouvido interiores, e assim por diante.

O ator, com sua visão interior, procura visualizar o exterior, o

traje, o andar, os movimentos etc. da personagem que deve

interpretar. Mentalmente, procura amostras em sua memória.

Recorda a aparência de pessoas que conhece. De umas. Toma

de empréstimo certas qualidades; de outras, toma outras

qualidades. Faz a sua própria combinação e compõe a

imagem exterior que tem em mente.

Se, entretanto, não encontra em si mesmo nem em sua

memória o material de que precisa, terá, então, de procura-lo,

Como faz o pintor ou o escultor, ele terá de buscar um

modelo vivo, procurando em toda parte, na rua, no teatro, em

casa, ou nos lugares onde possa encontrar grupos de pessoas

de determinadas categorias – militares, burocratas,

comerciantes, aristocratas, camponeses etc.- conforme sua

necessidade. (STANISLAVSKI, 2011, p.130-131)

Assim, acredito que todos os artistas adquirem formas e processos com os quais

acreditam ser melhor para se trabalhar. O meu é esse. Tenho um bloqueio com a

comédia e, a forma que encontrei de suavizar isso e tornar prazeroso para se trabalhar é

acreditar na profunda relação que a mesma possui com Constantin Stanislávski. E isso

varia de artista para artista, como se fosse uma busca incansável pela sua personagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após essa breve exposição, é possível perceber que, ao se tratar de teatro por

mais divergente que algumas teorias e concepções estéticas aparentam ser elas sempre

podem ser complementares e caminhar juntas, aglutinando fatores para uma composição

mais orgânica e elaborada. Afinal, todos os apontamentos somam em um fato maior que

é o teatro, que proporciona uma fruição, apreciação e prazer tanto para quem o faz

quanto para quem o assisti.

O presente trabalho não pretendeu esgotar todas as possibilidades e formas de se

utilizar o método stanislavskiano no trabalho de preparação do ator cômico na comédia

popular, mas, sim, esboçar uma possibilidade para aqueles –que assim como eu-

possuem uma dificuldade maior com a comédia e sua encenação.

O fato é que dentro do fazer teatral, como é de conhecimento geral, não existem

as “receitinhas de bolo” e tudo se constrói na base da tentativa, da repetição e da

tentativa e repetição novamente, em um incansável e continuo processo de

(re)significação e (re)descobertas. Assim, cada artista é responsável e livre para escolher

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o caminho que lhe ajusta melhor, o qual lhe proporciona um maior desempenho,

envolvimento, entrega e prazer no seu ofício.

Eu escolhi o meu, embora taxado de antiquado e quadrado por muito de meus

colegas, acredito sim que Stanislávski me serve de base para qualquer trabalho (cômico,

trágico, pós-dramático, etc.) a ser realizado, simplesmente por eu acreditar que o teatro

tem que ser verdadeiro e partir do meu interior para assim alcançar o meu público.

Acredito que a atuação deva ser real e sentida, e não uma imitação em que se exclui a

organicidade, independentemente da concepção estética abordada.

Essa minha crença se da por um simples e efêmero – infelizmente - motivo:

somos todos humanos e tudo isso que vivemos passa. É certo o que nos espera no final.

E assim como defendia Nelson Rodrigues também defenderei: “Isso a que se chama

“vida” é o que se representa no palco, e não o que vivemos cá fora.”.

Por conseguinte, não preciso ver em um palco, na rua, em uma arena, em uma

caixa preta, ou em qualquer outro espaço cênico a vestimenta de mais personas, de mais

fingimentos e mais imitações. Quero ver no teatro o que me faz viva. Quero ver no

palco seres sensíveis, quero ver no teatro a fragilidade humana acima de tudo. Quero ver

no teatro o clown. Quero ver a vida no teatro. Quero viver no teatro. Quero ver

Constantin Stanislávski.

É hora de aprender através do bonito, da emoção... do

artístico – deixa eu dizer assim? É a hora de penetrar na vida

dos outros, daqueles personagens incríveis, incomuns,

enormes dos quais a gente já ouve falar faz tempo. É a hora

de olhar para a intimidade dos reis. É a hora de ficar frente a

frente com os eternos grandes medos do homem [...]. É a hora

de se ver no espelhado sim, mas não num espelho comum,

que esse a gente tem no guarda-roupa, mas num daqueles

espelhos que fazem a gente rir se vendo de uma forma

inesperada. É hora de rir. (SOFFREDINI apud NININ p.16)

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DAGOSTINI, Nair. O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para a

leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. 2007, 259 p. Tese

(Doutorado em Literatura Russa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

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STANISLÁVSKI E NÓS: PROBLEMAS DE RECEPÇÃO E ACULTURAÇÃO,

TRADUÇÃO, CONCEITO E NOÇÕES

A ATENÇÃO DO ESPECTADOR EM A PREPARAÇÃO DO ATOR DE

STANISLÁVSKI

Leonel Martins Carneiro1 (FAPESP; Regular); PPGAC; ECA; Universidade de

São Paulo

Resumo: Este trabalho faz uma revisão do livro A Preparação do Ator, no qual

Stanislávski aborda o conceito de atenção, problematizando a tradução brasileira nos

tópicos que correspondem a este assunto. Coloca-se em pauta a importância da atenção

para a estrutura desta obra, bem como as influências presentes na construção dos sentidos

da palavra e nos múltiplos pontos de vista que alude: do treinamento do ator à uma

preocupação com a condução do olhar do espectador. Para evidenciar as distorções do

conceito de atenção presentes na tradução brasileira deste livro (feita por Pontes de Paula

Lima), ela é confrontada com as edições italiana (traduzida por Elena Povoleto) e

espanhola (traduzida por Jorge Saura); sendo estas últimas realizadas diretamente do

original, em russo. Finalmente, discute-se as relações estabelecidas entre a atenção do

ator e do espectador.

Palavras-Chave: Atenção; Espectador; Stanislávski

O livro A preparação do Ator2 de Constantin Stanislávski é uma das obras

fundadoras da teoria e da prática do teatro contemporânea, seja pelo seu caráter

desbravador, como uma das primeiras obras a organizar e sistematizar o trabalho do ator,

pela sua inovação, ao mesclar conhecimento de diversas áreas como a psicologia e o yoga

ou por sua atualidade, influenciando e reinventando a cena em pleno século XXI.

Buscando rever a atualidade desta obra e a influência sobre a cena contemporânea,

propõe-se uma revisão de um dos seus conceitos mais fundamentais: a atenção.

Conforme já apontado anteriormente (CARNEIRO 2012), o conceito de atenção

na obra de Stanislávski ultrapassa o simples campo da proposição de exercícios de foco,

permeando toda obra. Apesar de negar as suas pretensões científicas na introdução do

livro3, ele não esconde sua fascinação pelas ciências que estudam a mente. Em sua

biblioteca podiam ser encontrados diversos autores do recém criado campo da psicologia,

com especial destaque para a obra de T. RIBOT (1889). É conhecida também a sua

relação com L. S. Vigotski tal como aponta o artigo de Edulcia de Barros, Robson

Camargo e Michel Rosa (2011). Em numerosas ocasiões Stanislávski refere-se, em seus

escritos, a obras de médicos, psicólogos e biólogos, hoje já esquecidos.

Por outro lado, acredita-se que o surgimento do pensamento científico no teatro,

que tem como marco a produção bibliográfica de Stanislávski, provém de uma

necessidade característica do fim do século XIX de revisar todos os conhecimentos

humanos a partir do olhar da ciência. Como aponta J. Crary (2001), este período foi

marcado pela relativização da objetividade do conhecimento empírico; a partir deste

período o mundo ocidental passa a atribuir certa parcialidade ao olhar humano. De certa

forma, Stanislávski retoma, sob outro ponto de vista a uma questão já levantada

anteriormente por Craig (2004) e Diderot (2005).

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Contexto e tradução

É necessária uma releitura crítica da tradução brasileira de A preparação do ator

que foi feita a partir da versão americana do livro, estabelecida por Elizabeth Reynolds

Hapgood, tendo em vista que a versão americana já contém em si uma leitura da obra de

Stanislávski que visa mais a adaptação do livro ao contexto americano do que a fidelidade

ao original em russo.

A tradução brasileira do livro apresenta a omissão de diversos parágrafos e

informações em relação a outras edições como a espanhola e a italiana. Em especial, no

que diz respeito a “atenção”, a diferença é gritante e se expressa na omissão de cerca de

10 páginas, em comparação com a tradução feita por Jorge Saura. Mesmo o subtítulo do

capítulo é diferente4, e nos dá outras pistas sobre o assunto que é tratado.

A prática também nos dá pistas acerca das diferentes leituras que a obra teve.

Enquanto no Brasil os conceitos centrais de um treinamento feito a partir de uma leitura

de Stanislávski são os dá memória emotiva e o da ação física, a atenção é, nos dias de

hoje, o primeiro tópico do ensino de teatro nas principais escolas Russas, como a

SPAGATI (Academia Estadual de Teatro de São Petersburgo) e a RATI-GITIS

(Academia Russa de Teatro), como nos aponta Farber (2008). Estas escolas abordam a

atenção no sentido de desenvolvê-la, para que no palco e na vida o ator possua uma maior

capacidade de concentração, criação e ação.

Para compreender este livro de Stanislávski é necessário voltar o olhar para como

estava sendo organizado o conhecimento em sua época. Uma das ciências que baseiam

seu pensamento, como já foi dito anteriormente, é a psicologia. Para os principais

pensadores da psicologia do início do século XX as funções (superiores) da mente, que

distinguem o ser humano dos demais seres vivos, eram organizadoras de todo o

pensamento consciente. Estas funções eram: atenção, memória e imaginação. É

importante ressaltar que para muitos dos principais psicólogos da época tais funções

trabalhavam de maneira integrada resultando em uma experiência mais, ou menos,

significativa.

A experiência a qual nos referimos é expressa já no título da obra analisada,

através do termo perejivánie, que é traduzida por Jorge Saura como “vivência”. A mesma

palavra aparece diversas vezes na obra de Vigotski, onde também costuma ser traduzida

por “vivência”. Propõe-se, no entanto, que o melhor termo para traduzir perejivánie é

“experiência”. Isso porque o conceito de experiência faz parte do sistema de pensamento

que inclui a atenção, memória e imaginação. Nesse sistema de pensamento a experiência

é condicionada e condicionante dos e pelos sentidos criados para a vida.

Tendo em vista tal sistema de pensamento, a atenção é colocada como primeiro

tópico, pois como postula Hugo Münsterberg, a atenção é a primeira e a principal função

interna que cria o significado do mundo externo para nós. Tudo que percebemos é

controlado pela relação entre a atenção e a desatenção. (MUNSTERBERG, 2004, P.31)

Ao reconhecer a atenção como elemento primordial do treinamento do ator,

Stanislávski introduz no teatro uma descoberta que havia sido feita por psicólogos como

Helmoltz5 e Münsterberg6 no início do século XX: que todo o mundo cognitivo deve

passar pela atenção para poder ganhar o nível do consciente. Para explicitar melhor o que

seria a atenção no teatro, o diretor Tórtsov formula uma explicação que parece copiada

de um livro de Hugo Münsterberg, ou de algum outro psicólogo de seu tempo:

Quanto mais chamativo for o objeto, mais atrairá a atenção. Não há um só

momento na vida de um homem em que sua atenção não se sinta atraída por

algum objeto. E quanto mais interessante for o objeto, maior será seu poder

sobre a atenção do artista. Para distraí-lo da plateia, deve-se introduzir

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habilmente um objeto interessante aqui, no palco, como a mãe distrai a criança

com um brinquedo. (STANISLÁVSKI, 2010, p.104 – nossa tradução)

Neste trecho demarca-se ao mesmo tempo sua visão de como a atenção do ator

age, bem como a postura que o diretor deve ter diante disto. Para Stanislávski o principal

problema que seu sistema busca abordar, no que se refere a atenção, é relativo ao ator que

deixa de concentrar-se em no estabelecimento de uma relação a partir do texto com o

espectador para cair em uma relação puramente narcisista. Para reforçar a referida ligação

entre os escritos de Stanislávski e a pesquisa da psicologia do início do século XX

transcreve-se abaixo um trecho do livro no qual Hugo Münsterberg analisa a atenção no

evento teatral: O foco da atenção é dado pelas coisas que percebemos. Tudo o que é

barulhento, brilhante e incomum atrai a atenção involuntária. Devemos voltar

nossa mente (atenção) para o lugar onde ocorre uma explosão, temos que ler o

anúncio luminoso que pisca. Certamente, o poder de motivação das percepções

impostas à atenção involuntária pode ter origem em nossas reações. Tudo o

que mexe com nossos instintos naturais, tudo o que provoca esperança, medo,

entusiasmo, indignação, ou qualquer outra emoção forte assume o controle da

atenção. [...] Seguramente, não faltam meios de canalizar a atenção

involuntária para pontos importantes no teatro. Para começar, o ator que fala

prende nossa atenção com mais força do que os que estão calados naquele

momento. [...] O ator que vai até o proscênio está imediatamente no primeiro

plano de nossa consciência. Aquele que levanta o braço enquanto os outros

estão parados ganha a atenção para si. Sobretudo, cada gesto, cada personagem

organiza e ritma à multiplicidade de impressões organizando-as em benefício

da mente. A ação rápida, a ação incomum, a ação repetida, a ação inesperada,

a ação de forte impacto exterior vai forçar nossa mente perturbando o

equilíbrio mental. (MUNSTERBERG, 2004, P. 32- 33- nossa tradução)

Diante do discurso de Münsterberg que expressava, de certa forma, uma

continuidade do discurso de William James7, Théodule Ribot8, Wilhelm Wundt9 e outros

psicólogos do início do século XX, percebe-se diversas aproximações entre os

vocabulários utilizados. Evidencia-se o conhecimento do encenador russo da pauta de

discussão da psicologia. Não se pode deixar de reparar na carga teórica e conceitual que

recai sobre termos que ele utiliza, tais como: subconsciente e atenção dirigida. Ainda que

num processo de treinamento pudesse haver uma referência à atenção enquanto uma

metáfora de trabalho, a ideia de uma atenção dirigida ou focalizada está diretamente

ligada aos conceitos desenvolvidos pela psicologia de seu tempo.

É um vestígio dessa influência a afirmação de Stanislávski de que a atenção

dirigida a um objeto desperta ainda mais a observação do ator. Deste modo a ação

entrelaçada com a atenção cria um forte vínculo com o objeto. (STANISLÁVSKI, 2010,

p.105). A partir desta afirmativa pode-se concluir que a atenção e a ação estão

entrelaçadas de modo definitivo no momento da apresentação tal como iria figurar na

prática de Stanislávski, anos mais tarde.

Com esta intervenção de Tórtsov [sobre a condução da atenção do ator],

Stanislávski salienta a natureza ativa da atenção cênica, ideia que ganhou força

na prática pedagógica de seus últimos anos e que foi desenvolvida por seus

discípulos. Se no princípio os exercícios sobre esta área tendiam a fixar a

atenção sobre um objeto durante um tempo mais ou menos prolongado ou a

ampliar e reduzir os círculos de atenção, com o passar do tempo a atenção se

converteu em parte integrante da ação, ao emanar da ação. (SAURA Apud

STANISLÁVSKI 2010, p.105 –nossa tradução)

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A afirmativa de Saura reforça a proposição de uma leitura da atenção e da ação

como elementos indissociáveis no processo de criação e de atuação para o encenador

russo.

Entre a atenção do ator e do espectador

É explicito que Stanislávski trata nesta obra da atenção do ator, mas e quanto a

atenção do espectador o que pode-se dizer?

Percebe-se ao longo de seu livro, em especial no capítulo 10, no qual é tratado o

tema da comunicação, que a finalidade do trabalho com a atenção do ator é maximizar a

efetividade da relação que este estabelece com o espectador durante a apresentação,

criando assim a possibilidade de se estabelecer uma comunicação efetiva entre o palco e

a plateia. Como nos demonstra Guerrieri, em sua introdução à edição italiana da obra,

Stanislávski deixou apenas fragmentos de seus escritos sobre o espectador, mas não é por

isso que ele é desconsiderado pelo seu método.

A presença do público (o seu campo magnético como dizia Jouvet) produz, em

um primeiro sentido, efeitos negativos sobre o ator: o hipnotiza, inibe sua

fantasia, ou, ao contrário, faz com que ele se exiba, narcisismo este que

interfere em sua atividade de intérprete e a desvia. Com uma série de exercícios

que trabalham a presença e que reforçam a capacidade de concentração, de

atenção, de ‘solidão em público’, combatendo a presença do público e

reforçando a sua presença de ator, Stanislávski ensina, em primeiro lugar, a

não se estar sob o domínio do público. [...] Faz parte desta concepção a

estratégia de abordagem indireta no confronto com o espectador: o dever do

ator é chegar ao público não por via direta, mas mediado pela personagem.

Assim a comunicação se dá em níveis diversos como o visual, o sonoro, e

também de subconsciente para subconsciente.

E aí chegamos ao segundo ponto. O público é o polo receptor da

comunicação teatral, o cátodo do fluído da corrente cênica, e neste sentido

integra e interpreta o evento cênico segundo certos processos mentais e

estruturas fantásticas, que o ator deve conhecer e deve levar em conta.

(GUERRIERI APUD STANISLÁVSKI, 2008, p.XXVII – nossa tradução)

Diante desta afirmação de Guerrieri, propõe-se que enquanto os capítulos 3, 4, 5

e 6 (que falam sucessivamente sobre a ação, a imaginação, a atenção e o relaxamento

muscular) estão preparando o ator para o encontro com o espectador, no sentido de torná-

lo capaz de manter a sua própria atenção em seu objetivo, em sua ação, em sua

imaginação e em seu corpo, os capítulos 10 e 11 (que versam, respectivamente, sobre a

comunicação e a adaptação) abordam do ponto de vista do intérprete o momento da

apresentação. Nestes capítulos mostra-se a importância do conhecimento do ator acerca

dos mecanismos de recepção do espectador. Explicita-se como a atenção do ator deve

agir neste momento para capturar e conduzir o espectador pela trama do espetáculo

mediado pela personagem.

Esta ação de comunicação do ator, consigo mesmo e com seu companheiro, gera

uma abertura sensorial e racional do espectador que vai captando involuntariamente as

palavras e ações dos interpretes (STANISLÁVSKI, 2010, p. 252). Esta “captação

involuntária” da qual Stanislávski fala pode ser compreendida como a ação da atenção

involuntária do espectador agindo sobre a peça.

Portanto o capítulo 10 trata, em resumo, de como o ator deve conhecer e estar

sensibilizado à atenção do espectador. Postula que ao manter a atenção voltada para seu

objetivo e, ao mesmo tempo, manter-se aberto para comunicar-se com as coisas e pessoas

ao seu redor, durante a apresentação do espetáculo, o ator permite ao público um estado

de prontidão e porosidade que libera sua atenção involuntária para agir sobre a peça.

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Diante desta análise é possível compreender que quando Stanislávski fala da

atenção do ator ele está levando em conta a possibilidade desta se comunicar com a

atenção do espectador. É como se uma atenção fosse capaz de conduzir a outra e, nesse

jogo de forças, o ator deveria ter o máximo de treino para poder conduzir a atenção do

espectador da melhor maneira possível, afim de obter eficácia em relação aos seus

objetivos.

Uma particularidade do capítulo 10 que fala sobre a comunicação do ator é o

emprego da palavra irradiação. Esta palavra é utilizada de forma provisória por

Stanislávski para designar a comunicação sem palavras, por um caminho invisível, como

uma transmissão de raios. Neste ponto pode-se inferir novamente que ele conhecia e

utilizava toda a discussão instaurada pela psicologia, pois como aponta Saura o termo

“irradiação”10 foi tomado por Stanislávski do livro La Psychologie de l’attention (1889)

de Ribot. (SAURA Apud STANISLÁVSKI, 2010, p.268) A irradiação seria utilizada no

sentido de afinar a atenção e a sensibilidade do intérprete para melhorar seu desempenho

espetacular.

A irradiação está diretamente ligada à atenção e figura-se como mais uma das

omissões/distorções de aspectos fundamentais da obra de Stanislávski feitas pela tradução

de Elizabeth Hapgood. Por não parecer um elemento importante da obra de Stanislávski

para a tradução americana, os treinamentos de irradiação foram deixados de lado pela

maioria de seus discípulos da escola americana e das por ela influenciadas.

O capítulo 11 fala mais especificamente sobre a adaptação que, nas palavras de

Stanislávski (2010, p. 280), pode ser descrita como os meios internos e externos com os

quais as pessoas se adaptam umas as outras para comunicar-se e ajudam-se, mutuamente,

a alcançar um objeto. A adaptação11 em cena é um recurso, uma estratégia que ajuda o

ator a atrair a atenção da pessoa com quem se deseja estar em contato ao mesmo tempo

que molda sua própria atenção a circunstância do presente.

Diante destes fatos seria possível dizer que, nesta obra, Stanislávski não estava

apenas preocupado em criar um bom ator, mas estava também interessado em criar uma

relação de troca com o espectador, uma experiência compartilhada. Ator e espectador

estavam reunidos não por um acaso, mas por um motivo comum; por um

compartilhamento de experiências.

A noção de comunicação que ele utiliza é anterior e muito mais ampla do que a

desenvolvida pela semiótica. Ele trabalha com a comunicação humana em um nível que,

para além dos significados, produz sentidos a partir de uma comunicação energética, de

uma troca, de irradiações. Para que esta comunicação aconteça é necessário que o ator e

o espectador adaptem suas atenções para disponibilizarem-se da melhor forma possível

para um processo conjunto e efetivo.

Está em Stanislávski uma discussão que toma conta, nos dias de hoje, de boa parte

das teorias que versam sobre a cena contemporânea: a questão do espectador. Analisando

a sua A preparação do ator é possível dizer que ele não considerava a relação entre ator

e espectador dividida em dois polos opostos e permanentes (o da produção e o da

recepção), mas como um acontecimento dinâmico, no qual o ator deveria assumir a

responsabilidade por conduzir o processo de forma a manter uma troca, em pleno

desenvolvimento, durante todo o espetáculo.

Pode-se dizer, diante disto, que o que a cena contemporânea traz é uma elevação

a máxima potência desta relação entre ator e espectador. Muitas vezes, na cena

contemporânea esta comunicação que estava a serviço de uma narrativa em Stanislávski

passa a ser, ela própria, a base para o teatro. Coloca-se com isto a proeminência de um

teatro de produção de experiências, seja para o ator ou para o espectador. Talvez o grande

diferencial destas experiências no teatro contemporâneo seja o tempo demandado para a

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criação de sentidos, que em diversos casos ultrapassa os limites temporais do

acontecimento cênico.

Parece ser um exercício fundamental, diante da cena contemporânea, rever

Stanislávski e retomá-lo, buscando este elo, que até então parecia perdido, entre o teatro

dos séculos XX e XXI.

Pesquisa Realizada com o Apoio da FAPESP

Bibliografia

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trabalho-criativo-do-ator-1932-rev-Iulia-VB-Passos Acessado em 13/07/2013.

1 Ator, diretor, e doutorando em artes cênicas pelo PPGAC da USP sob a orientação da Profª Drª Sílvia

Fernandes. É graduado em artes cênicas pela UNICAMP e mestre em Artes Cênicas pela USP.

2 Utiliza-se como base deste estudo a tradução espanhola da obra feita por Jorge Saura a partir do original

Russo. Esta tradução foi colocada em comparação com as traduções brasileira e italiana e mostrou-se a

mais completa e confiável, uma vez que não foi possível o acesso ao texto original em Russo.

3 Introdução encontrada na versão italiana, traduzida por Elena Povoleto.

4 Na versão Brasileira o subtítulo para o capítulo é “atenção” enquanto na versão espanhola, realizada por

Jorge Saura, se chama “la atención em la escena”. Neste segundo subtítulo é possível compreender melhor

a especificidade da atenção que Stanislávski trata.

5 Médico, filósofo e psicólogo alemão que foi um dos precursores dos estudos sobre a atenção.

6 Psicólogo alemão e professor na Universidade Harvard. Foi quem desenvolveu primeira teoria sobre o

filme ao aplicar seus conhecimentos sobre os processos mentais superiores sobre a temática da recepção da

cena (teatral e fílmica).

7 Psicólogo e filósofo estadunidense considerado o pai da psicologia moderna. Foi um dos principais

mentores de Hugo Münsterberg, sendo o responsável por trazê-lo para Harvard.

8 Psicólogo Francês que influenciou diretamente as teorias de Stanislávski sobre o ator. Destaca-se a

influência de seu livro “a psicologia da atenção” (de 1889), o primeiro dedicado exclusivamente ao assunto,

do qual Stanislávski empresta diversos termos empregados em sua obra.

9 Psicólogo, médico e filósofo alemão. É um dos pioneiros da psicologia experimental, tendo fundado o

primeiro laboratório de psicologia do mundo.

10 O conceito de irradiação foi desenvolvido de forma vertical pelo alunos de Stanislávski Michael Chekhov

(2010) em seu livro Para o ator.

11 Mais uma vez pode-se constatar a utilização de um termo fundamental para a ciência. A adaptação é o

fundamento da teoria da evolução das espécies desenvolvida por Charles Darwin (2009). Para Stanislávski

esta mesma adaptação é requisito essencial do bom ator.

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1

STANISLÁVSKI E NÓS: PROBLEMAS DE RECEPÇÃO E

ACULTURAÇÃO: TRADUÇÃO, CONCEITOS E NOÇÕES1.

STANISLAVSKI, DUNCAN E DALCROZE:

Dança e música nos fundamentos do "sistema" stanislavskiano.

Michel Mauch2

FAPESP.

ECA;USP.

Robson Corrêa de Camargo3

FAPEG.

EMAC;UFG.

Isadora Duncan (1877 – 1927), fundadora da dança moderna, e Èmile Jacques-Dalcroze

(1865 – 1950), são duas personalidades que estiveram em intenso contato e travaram importantes

diálogos com Constantin Stanislavski. O entendimento deste diálogo artístico no início da primeira

década do século vinte permite conhecer melhor a elaboração feita por Stanislavski no processo de

definição de seu "sistema". James Lee (2003) expõe que Dalcroze e seus ritmistas (rythmiciennes)

se apresentaram no Teatro de Arte de Moscou (TAM) em janeiro/fevereiro de 1912 e mostraram

uma metodologia que iniciava sua propagação na Rússia. Dalcroze também assistiu Tio Vania e a

montagem de Hamlet (de Craig/Stanislavski), encontrando, assim, um Stanislavski em pleno

processo de questionamento das técnicas de interpretação do ator frente às novas exigências

estéticas, como o teatro simbolista.

Mas esta não foi apenas uma visita, Nathan Thomas (2005) descreve que eurhythmics,

como originalmente se chama o método de Dalcroze, tornou-se parte do treinamento dos atores do

Primeiro Stúdio (1912) desenvolvido por Nina Alexandrovna, professora de dança formada em

ballet clássico e interessada na dança contemporânea. Segundo este autor, Ms. Alexandrovna

também foi responsável pela divulgação do método de Dalcroze em Moscou e São Petersburg. Ela

deu assistência à Stanislavski no uso das técnicas da rítmica, que contaram com a participação do

ator polonês Richard Boleslavsky (1889 – 1937), um dos importantes divulgadores do "sistema" nos

Estados Unidos.

Como bem o descreve Adriana Fernandes (2010), em seu artigo Dalcroze, a Música e o

Teatro - Fundamentos e Práticas Para o Ator Compositor, o envolvimento destas pessoas nesta

parte da vida de Stanislavski foi intenso, as aulas de rítmica eram dadas no foyer do teatro para todo

o elenco de Hamlet em 1911. Como se sabe, a base do sistema de Dalcroze, assim como o de

Duncan, é o movimento como organizador da ação do artista e da construção de seu conhecimento,

ou de suas técnicas. É a vivência corporal do ritmo e da experiência musical que constrói o trabalho

do artista. Stanislavski não só o conhecia. No entanto, como veremos, tecia algumas críticas à sua

metodologia.

Vejamos outras semelhanças ou diálogos entre Stanislavski e Dalcroze:

O gesto em si mesmo não é nada – seu pleno valor depende da emoção que o

inspira, e nenhuma forma de dança, não importa quão complexa na combinação de

atitudes corporais, pode ser mais que uma mera e insignificante diversão, até que se

complete com as emoções humanas em sua plenitude e profunda veracidade.

(DALCROZE apud FERNANDES, 2010, p. 07).

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2

Percebemos que elementos de ações físicas já eram plenamente vivenciados pelos atores

do TAM, ainda na fase dos primeiros esboços de construção do que será publicado como "sistema".

Portanto, as ações físicas, ao contrário do pensamento comum, não foram uma ‗evolução‘ tardia do

"sistema" stanislavskiano e faziam parte de sua construção (pelo menos já em 1911).

Dalcroze e Duncan. Duas personalidades que estiveram em contato e travaram

importantes diálogos metodológicos com Stanislavski, aparecem como ponto crucial deste artigo.

Muito mais que os nomes em si, queremos discutir, neste curto espaço, a simbologia dos conceitos,

das teorias e das metodologias que dialogaram, em determinada época, na construção do ―sistema‖

de Stanislavski. Sempre ratificando, que este ―sistema‖ sempre foi constantemente (re)criado,

(re)testado, (re)adaptado.

Para que se perceba esta questão nos escritos do diretor russo, partiremos de trechos

contidos em El trabajo del Actor sobre si Mismo en el Proceso Creador de la Encarnación,

contidas na tradução da Editora Quetzal que foi realizada diretamente dos originais em russo, por

Salomon Merener. Procuraremos apontar as omissões contidas nas traduções ao português

apresentadas pela Civilização Brasileira e vertidas por Pontes de Paula Lima, a partir das obras de

Elizabeth Reynolds Hapgood, editadas pela Theatre Arts Books4. Em foco estão o ―Capítulo IV —

Para Tornar Expressivo o Corpo‖ e o ―Capítulo V — Plasticidade do Movimento‖ de A Construção

da Personagem, junto ao capítulo ―II. Desarrollo de la Expresión Corporal‖, de El trabajo del Actor

sobre si Mismo en el Proceso Creador de la Encarnación, cuja tradução se apresenta como mais

fidedigna à escrita do autor. Este capítulo na obra portenha é subdividido em: ―1. Gimnasia,

acrobacia, danza, etc.‖ e ―2. Plasticidad de los Movimientos‖.

A SEDA E A PLUMA: Duncan, a Dança da Alegria!

Duncan tem presença marcante na história da dança e o entendimento de seu

pensamento também nos ajuda a conhecer os principais questionamentos que se apresentavam ao

movimento. Duncan, em My Life, descreve o erro no entendimento do deslocamento físico contido

no "ballet clássico":

A escola de ballet ensina aos alunos que esta mola ficava localizada no centro da

parte traseira da coluna vertebral. Deste eixo, diziam os mestres do ballet, braços,

pernas e tronco devem mover livremente, dando o resultado de um fantoche

articulado. Este método produz um artificial movimento mecânico, desmerecedor

da alma [...] (DUNCAN, 1927, p.75)5.

Ao analisar o movimento artificial encontrado no ballet clássico, Duncan (1927) aponta

o distanciamento da relação interior da exterior no trabalho do bailarino, levando-o a um

movimento artificial. Distancia-se assim o bailarino da ―divina expressão do espírito humano, por

meio do movimento do corpo‖ (DUNCAN, 1927, p.75). Portanto, Duncan lançava-se na busca pela

comunhão entre corpo e espírito como uma forma da alma ser expressa através da dança, procura

que também alimentava Stanislavski.

Stanislavski apresenta em sua obra o nome da dançarina, excluído da obra em

português. Percebam o excerto em espanhol e a análise apresentada pelo diretor, contido claramente

na publicação da Quetzal, em espanhol. Em seguida, observem a tradução da editora Civilização

Brasileira e sua omissão sobre a qualidade, por ele reconhecida, da movimentação apresentada por

Isadora Duncan:

En lo que respecta a las muñecas y los dedos de mano, no estoy tan convencido de

que deban recomendarse los métodos del ballet. No es de mi agrado el movimiento

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de muñecas de los bailarines de ballet. Me resultan amanerados, convencionales,

sentimentales; tiene más preciosismo que verdad y belleza. Las muñecas de

muchas bailarinas aparecen muertas, inmóviles, o sometidas a gran tensiones

musculares.

En este punto conviene que recuramos a la escuela de Isadora Duncan. Allí se

domina muy bien el movimiento de las muñecas. (STANISLAVSKI, 1997, p.39.

Grifos nossos, em negrito).

Já ao português:

Quanto aos pulsos e aos dedos das mãos não estou bem certo de que os métodos do

balé devam ser muito recomendados. Não gosto do modo dos dançarinos de balé

utilizarem os pulsos. É amaneirado, convencional, sentimental. Tem mais elegância

do que beleza. Muitas bailarinas dançam com pulsos sem vida ou muscularmente

tensos.

Há, entretanto uma coisa, na disciplina da dança clássica, que é útil ao maior

desenvolvimento do instrumental físico de vocês para a utilização plástica do seu

corpo, para a postura e o porte em geral (STANISLAVSKI, 1986, p.66).

Stanislavski demonstra, em espanhol, ser tão incisivo quanto Duncan ao apontar críticas

aos movimentos plásticos confeccionados pela beleza técnica ou certo preciosismo. Conheçamos

um pouco o como se estabeleceu a amizade entre estas duas figuras da arte do século XX.

Stanislavski (1981) descreve ter assistido a um espetáculo no qual Duncan se

apresentava. Primeiramente não teria encontrado nada de extraordinário em seus movimentos. Até

que, em certa cena, os movimentos dela transmitiram "tal organicidade" que o deixou extasiado.

Após esta apresentação, Stanislavski e Duncan estreitaram relações artísticas através de

vários diálogos e cartas, diminuindo as possíveis distâncias entre a visão dele, da plateia, e o

trabalho dela, no palco. Vejam nas palavras da dançarina como ela descreve seus inúmeros

encontros:

Como Stanislavski estava extremamente ocupado durante todo o dia em seu

teatro com os ensaios, ele tinha o hábito de vir me ver frequentemente após a

representação. Em seu livro ele diz sobre estas conversas: "Acho que devo

ter cansado Duncan com minhas perguntas." Não: ele não me cansava. Eu

estava explodindo de entusiasmo para transmitir as minhas ideias (DUNCAN,

1927, p.169-170)6.

Percebemos claramente como Stanislavski foi influenciado pelas procuras de Duncan no

seguinte episódio, relatado agora por Stanislavski (1981). Duncan é interrompida por várias pessoas

em seu camarim, momentos antes de sua apresentação. A reação que ela teve, ao pedir para com

que estas pessoas a deixassem em paz para preparar o espírito, pois se não tivesse este tempo seu

corpo não conseguiria dançar, levou Stanislavski a escrever:

Fue precisamente entonces, cuando yo andaba buscando esta clase de motor

creador, que cada actor ha de saber colocar en su alma antes de salir al escenario.

Al tratar de orientarme en esta cuestión, ponía toda mi atención observando a la

Duncan durante sus danzas, ensayos y búsquedas, cuando debido al sentimiento

que acababa de nascer de ella, cambiaba al principio la expresión del rostro, y

luego, con ojos brillantes, pasaba a revelar y a manifestar todo lo que acababa de

brotar de su alma. Resumiendo todas nuestras conversaciones fortuitas sobre el

arte, y comparando lo que ella decía con lo que yo mismo hacía, me di cuenta

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de que los dos estábamos buscando la misma cosa, aunque en distintas

expresiones del arte‖ (STANISLAVSKI, 1981, p. 350. Grifos em negrito nossos).

Duncan trazia questões profundas sobre a movimentação do artista, acreditava que a

mola propulsora da dança encontrava-se no plexo solar7, mas não apenas isto. Sua preocupação não

era apenas a do encontro de uma parte do corpo que controlasse ou organizasse as demais ao

dançar. Não era reorganização do movimento. Porém, uma procura da "expressão espiritual", de

que a energia ganhasse todo o corpo (interno e externo) e, que a representação máxima desta "luz

vibrante", aparecesse nos movimentos refletindo o espírito, ou sua visão. Como ela nos diz:

Passei longos dias e noites no estúdio buscando que a dança pode ser a expressão

divina do espírito humano por meio do movimento do corpo. Por horas eu

ficava quieta, minhas duas mãos cruzadas entre os meus seios, cobrindo o plexo

solar [...] Eu, pelo contrário, procurava a fonte da expressão espiritual, de onde flui

para os canais do corpo, cheios de luz vibrante, a força centrífuga refletora da

visão do espírito [...] (DUNCAN, 1927, p.75).

Lembremos que a necessidade de comunhão entre o exterior e o interior é um dos

fundamentos do trabalho do ator proposto por Stanislavski. Que, encontra alicerce nos preceitos da

dança moderna de Duncan e nas buscas do TAM, tido por muitos apenas como uma casa do

realismo e naturalismo. Nessa comunhão, afirma Stanislavski que Duncan:

[...] abalou os meus princípios. Desde a sua partida, tenho tentado descobrir

em minha própria arte as coisas que a senhora criou na sua. Isto é belo,

simples, como a própria natureza. Hoje vi a bela Duse repetir algo que eu já

sabia, algo que tenho visto uma centena de vezes, Duse não me fez esquecer

Duncan! (STANISLAVSKI apud TAKEDA, 2003, p. 317. Grifos em negrito

nossos)8.

Duncan fez com que Stanislavski procurasse rever e/ou aprofundar seus conceitos,

campear novos caminhos e novas alternativas (criativas e estéticas). Por isso, conjecturamos que

nada de hermético havia no fazer artístico por ele proposto e realizado. E as belas possibilidades

expressas na corporeidade de Duncan, apresentavam-se como um caminho.

Stanislavski (1981) persistia procurando novos elementos para o desenvolvimento do

trabalho com os atores, a criação de personagens e a estética apresentada em suas obras. Mesmo

com o sucesso obtido pelo TAM em 1908, onde ele reconhecia sinais de esgotamento. Stanislavski

demonstrava que o sucesso não devia acarretar numa hermetização de determinada proposta no

teatro, pois a arte tem que ser (re)inventada, (re)criada, (re)significada constantemente. Um

movimento artístico se torna passado e leva junto com ele as questões ideológicas e estéticas, na

medida em que a este não é proporcionado o frescor de novas ideias e novas soluções.

Stanislavski (1981), com a mesma visão inovadora que o levou a fundar o TAM, junto a

Vladimir I. Nimirovitch-Danchenko (1858 – 1943), dispõe-se para (re)encontrar o ‗novo na arte‘.

‗Novo‘ que vem acompanhado da percepção de inovações apresentadas pelas propostas das

correntes estéticas contemporâneas (simbolismo, futurismo, cubismo, surrealismo...). Como pode

ser visto neste diálogo com o pensamento de Duncan:

Apesar do grande sucesso que nosso teatro tem obtido e dos inúmeros admiradores

que o cercam, eu sempre tenho estado sozinho (exceto por minha esposa, que tem

me apoiado em meus momentos de dúvidas e de desapontamento). A senhora é a

primeira a dizer-me com poucas, simples e convincentes palavras o que é

importante e fundamental a respeito da arte que eu quero criar. Isso deu-me

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uma rajada fresca de energia quando eu estava por desistir de minha carreira

artística (STANISLAVSKI apud TAKEDA, 2003, p. 315. Grifos em negrito dos

autores).

Quando revisitamos a obra da editora Quetzal, percebemos que Stanislavski (2007) não

se refere somente a um exercício físico proposto por Duncan. No entanto, com as vibrações da vida

artística (interna e externa) da personagem e o como eram reverberadas, expressas na

movimentação livre e liberta do corpo proposto pela bailarina estadunidense. Stanislavski (2007)

refere-se a uma ―escola de Isadora Duncan‖, termo que está ausente na obra A Construção da

Personagem, da editora Civilização Brasileira. Ele reconhece o fluxo do movimento no corpo

dançante desta dançarina. Os pulsos que pulsam na ‗escola de Duncan‘, aos quais Stanislavski se

refere, estão embebidos de organicidade, para o ator e o bailarino. Não apresentam uma rigidez oca,

sem criatividade em contraponto aos mencionados pulsos frios do ballet.

Stanislavski (1981) também queria que Duncan compartilhasse suas descobertas com

outras pessoas, outros artistas. Duncan chega a escrever várias cartas neste período, tentando

conseguir um espaço onde pudesse viabilizar e materializar estas ideias. Em nota, Takeda (2003)

afirma que, já em 1907, Duncan procurava arrecadar recursos para uma fundação, onde seria

ensinada a dança através de movimentos com liberdade. Nesta época, inclusive, levantou-se a

possibilidade de Duncan trabalhar nas instalações do TAM. Ela comenta, assim, sobre as tentativas

incansáveis de Stanislavski:

[…] A única esperança para a minha escola na Rússia, uma escola para uma maior,

mais livre expressão humana, teria sido a partir dos esforços de Stanislavski. Mas,

embora ele tenha feito tudo ao seu alcance para me ajudar, ele não tinha os meios

para instalar-nos no seu grande Teatro de Arte, que era o que eu teria gostado [...]

(DUNCAN, 1927, p.215).

Anos depois, já em 1921, Duncan recebeu em Londres um telegrama do Governo

Soviético. Nele estava escrito ―somente o Governo Russo pode compreendê-la. Venha a nós:

vamos fazer a sua Escola‖ (DUNCAN, 1927, p. 358). Proposta que foi aceita por Duncan.

Não podemos esquecer que a obra que conhecemos em português, A Construção da

Personagem, bem como a edição norte-americana que a originou, cita uma única vez o nome de

Duncan, no mesmo ―Capítulo V — Plasticidade do Movimento‖, quando há apenas uma referência

aos modos de caminhar. Transcrevemo-la: ―No terceiro, conhecido como andar grego ou de Isadora

Duncan, os dedos são os primeiros a baixarem, depois, toda a sola até o calcanhar. O peso então

volta aos dedos numa espécie de movimento rolante‖ (STANISLAVSKI, 1986, p. 78).

Apesar da breve citação os conceitos teóricos e a prática foram omitidos, embora sejam

uma importante forma de compreender com maior precisão o caminho que o sistema

stanislavskiano ia adquirindo, a partir do contato dele com diferentes personalidades e inquietações.

DALCROZE: MÚSICA, MOVIMENTO E PEDAGOGIA

Se Isadora Duncan foi eliminada da obra brasileira A Construção da Personagem em

momentos cruciais, agora nos deparamos com a exclusão total de outro nome fundamental para a

compreensão da arte de Stanislavski no século XX, Èmile Jacques-Dalcroze, cujo nome real era

Émile Henri Jaques. Apresentemos inicialmente, um trecho contido na publicação da editora

Quetzal, em El trabajo del Actor sobre si Mismo en el Proceso Creador de la Encarnación:

Arkadi Nikoláievich estuvo en el clase de gimnasia rítmica y nos dijo:

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6

─ Paralelamente con nuestras prácticas de gimnasia rítmica con Dalcroze5

comenzamos hoy los ejercicios de movimientos plásticos, bajo la dirección de

Xenia Petrovna Sónova (STANISLAVSKI, 1997, p. 42. Grifo nosso em negrito).

Já a tradução de A Construção da Personagem, editora Civilização Brasileira, apenas

informa: ―PARALELAMENTE às nossas ginásticas rítmicas, iniciamos agora uma aula de

movimentos plásticos, dirigida por Mme. Sonova‖ (STANISLAVSKI, 1987, p. 71. Caixa alta da

obra). A nota de rodapé, na obra portenha, referente ao nome em negrito de Dalcroze será

esclarecida posteriormente.

Tal fragmento insere-se na estória apresentada por Stanislavski (como Tortsov), ao

dialogar com seus atores sobre a musculatura corporal e como esta pode ser afetada pelos sons e

ritmos, na preparação do trabalho de ator e na edificação da personagem.

Façamos uma pequena apresentação sobre as contribuições de Dalcroze para a música e

suas influências no ―sistema‖ stanislavskiano. Vamos perceber que esta eliminação, feita por

Hapgood, influenciou (e influencia) no entendimento parcial dos estudos sobre o "sistema",

principalmente no que diz respeito às relações de trabalho metodológico-artístico entre as duas das

personalidades em foco.

Os pensamentos inovadores de Dalcroze sobre a apreensão e a percepção musical,

envolvendo os vários sentidos humanos, engendram uma nova maneira de perceber a música, em

uma época onde o ―corpo belo e sadio [...] passa a ser a representação de uma superioridade não

somente estética como também moral‖ (BONFITTO, 2007, 10-11).

As inquietações e experimentações de Dalcroze se iniciaram no Conservatório de

Genebra. Iramar E. Rodrigues (s.d)9 mostra, na sua obra A Rítmica de: Emile Jaques Dalcroze. Uma

Educação por e para a Música, que Dalcroze percebeu as dificuldades dos seus jovens alunos em

compreender o ritmo nas aulas de solfejo (prática de ler ou cantar intervalos musicais, seguindo o

ritmo e a altura que estão escritos na partitura musical). Constatou que alguns dos alunos

progrediam na audição, mas não conseguiam manter a capacidade de identificar corretamente o som

e de conseguir ritmar as sucessões que possuíam durações desiguais.

A segunda observação, ainda segundo Rodrigues (s.d), reside na relação entre a

motilidade (capacidade de se mover espontaneamente) e o instinto auditivo. Quando os estudantes

escutavam uma música, seus corpos faziam contrações físicas involuntárias que impediam o

aprendizado adequado. Outro apontamento de Dalcroze era sobre a falta de coordenação motora

presente em algumas crianças, as quais percebiam o som e a relação deste com o tempo, mas

quando lhes era pedido para que reproduzissem esse som, na mesma duração temporal, o corpo,

através do aparelho vocal, não conseguia reproduzi-lo.

Segundo Rodrigues (s.d), as conclusões dalcrozeanas atribuem ao todo do corpo a

função orgânica da apreensão musical, e não somente a partes específicas, como o ouvido. Se antes

a aprendizagem sonora era feita com exercícios ligados à escuta de um som e a reprodução deste

ritmo através das mãos, Dalcroze passaria a propor seu desenvolvimento através de uma

consciência física total do corpo. Ou seja, a participação de todos os sentidos e movimentações na

compreensão musical.

Ele se baseava, também, no fato de que a arritmia na música está ligada a dificuldade de

recriar o ritmo no corpo humano e, assim, a harmonia verdadeiramente musical somente poderia ser

criada por aquele que contém um estado musical harmônico interior. Aqui então temos dois

conceitos fundamentais apresentados por Dalcroze que são fundamentais no "sistema"

stanslavskiano, organicidade e o equilíbrio entre o estado criativo interior com o estado criativo

exterior do ser humano.

Stanislavski (1986; 1997) igualmente, procurava este equilíbrio do ator com o seu

"estado interior". Muitas vezes em seus livros, o diretor russo apresenta o termo ―tempo-ritmo‖. Em

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7

A Construção da Personagem, ele dedica um capítulo inteiro ao assunto. Além deste capítulo, em

El Trabajo del Actor sobre si Mismo en el Proceso Creador de la Encarnación podemos ainda

contar com outras várias reflexões sobre o assunto, apresentadas nos subtítulos ―Sobre a

musicalidade da linguagem,‖ ―Do manuscrito ‗Leis da linguagem‘‖ ou ‖Sobre a perspectiva da

linguagem‖, contidos no ―Apêndice‖ desta obra. Entre as acepções ligadas ao ―tempo-ritmo‖,

Stanislavski (1997) apresenta que o ator deveria compreender a atmosfera da peça, a partir da

totalidade do corpo dele, para que o ritmo da personagem ao entrar em cena não fosse maior ou

menor do que a construção que esta necessitava.

Buscando solucionar as carências que percebeu nos estudantes de música, Dalcroze

criou trabalhos que envolviam, paulatinamente, o corpo e suas partes (braços, pernas, peito,

abdômen...). Também desenvolveu exercícios de solfejo, cujo fito era estimular o ―ouvido interior‖,

no qual o corpo aparece como uma ponte bem fixada entre os sons e o pensamento.

A aprendizagem da rítmica não é mais que uma preparação para os estudos

artísticos especializados e não consiste em uma arte em si mesma. É neste

sentido que os alunos são educados segundo uma série de exercícios que tem por

objetivo desenvolver e harmonizar as funções motoras e regular os

movimentos corporais no tempo e no espaço (DALCROZE apud RODRIGUES,

s.d, p.16. Grifos em negrito nossos).

A rítmica de Dalcroze não é uma arte, mas uma metodologia que contém em si este

meio, o que proporciona o desenvolvimento de trabalhos desta natureza num futuro. Proporciona

elementos para o seu desenvolvimento orgânico, para a consecução da organicidade interior/exterior

no trabalho do artista, fundamental para o ator. Desta maneira, as demais linguagens artísticas (e

não artísticas) podem estabelecer diálogos com esta rítmica para suas especificidades.

O interprete musical, como o ator, pode criar uma atmosfera que abrace todo o espaço e

desperte os sentidos do público, por meio da musicalidade ou de seus elementos, a respiração, os

movimentos, a fala, desenvolvidos de forma conjunta. Assim, a busca de Dalcroze objetivava um

melhor aprendizado e a procura por um caminho adequado para o gesto e, simultaneamente,

empregá-lo no espaço de forma integrada com a música e a musicalidade.

Entre 1910 e 1914, Dalcroze passa a difundir sua metodologia, gerando, rapidamente,

grande propagação pela Europa. Ele visitou vários países como a Rússia (passando por Moscou e

São Petersburgo).

Podemos notar a influência de seus pensamentos na edificação do ―sistema‖ de

Stanislavski. Assim pode-se entender que a exclusão do nome de Dalcroze, no Capítulo que trata a

―Plasticidade dos Movimentos‖, funciona como um empecilho no entendimento apropriado do

―sistema‖ stanislavskiano.

Carlos Alberto Silva, em sua dissertação Vozes, Música, Ação: Dalcroze em Cena.

Conexões Entre Rítmica e Encenação, aponta a falta de uma comprovação escrita para confirmar a

influência das teorias e práticas de Dalcroze na edificação do ―sistema‖. Esta lacuna o levou a

afirmar:

Até onde é possível verificar, Stanislavski não faz menção explícita ao contato

com os temas e os processos da Rítmica, contudo, pelo que se escreve em seus

livros, fica evidente que muito de seus procedimentos são bastante próximos

aos que vinham sendo propostos e disseminados por Dalcroze (SILVA, 2008, p.

77. Grifos em negritos nosso).

Silva (2008), pelo seu grande contato com a Rítmica10

, não tem dificuldades em fazer as

relações entre Stanislavski e Dalcroze em sua obra, uma vez que, primeiramente, identifica a

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8

presença de Dalcroze no ano de 1911, na Rússia; e também a publicação de um artigo, em 1912,

intitulado História do papel educador do ritmo11

. Em segundo lugar, ele consegue estabelecer

relações entre a forma que Stanislavski escrevia sobre as questões rítmicas, encontrando

aproximações quanto à forma que Dalcroze as entendia, dizendo que ―Stanislavski evocou o ritmo

quase como uma intuição humana, tal como Dalcroze defendia em Hellerau [...]‖ (SILVA, 2008,

p.78) e complementa dizendo que há

[...] uma similaridade de o movimento ser entendido apenas como corporal, visível,

sonoro, mas assumir todos os outros que se manifestam nas fendas destes, como o

movimento cognitivo, emocional, psíquico, espiritual, intelectual e sentimental,

ainda mais porque Stanislavski considerava o tempo-ritmo de movimento capaz de

despertar nossa faculdade criadora (SILVA, 2008, p. 78).

Ainda no que diz respeito aos laços entre Dalcroze e Stanislavski, a etnomusicóloga

Adriana Fernandes (2010), mostra-nos que a ―rítmica‖, naquela época, aparecia na Rússia como

uma espécie de teoria geral da relatividade12

artística, despertando a atenção de grande número de

artistas. Além disto, curiosamente, Dalcroze também teve a possibilidade de ver o trabalho de

Stanislavski, na peça Tio Vânia, do escritor Anton Tchékhov (1860 – 1904). Fernandes traz alguns

detalhes que merecem ser apontados:

Vários institutos de rítmica foram fundados em São Petersburgo, onde o irmão de

Appia, Theodore, ensinou euritmia. Nesta visita a São Petersburgo apresenta-se no

Teatro Mikhailovsky, no Instituto Smolny, para moças da nobreza (onde

Rachmaninov participa entusiasticamente) e no Conservatório. Já em Moscou os

ritmistas (rythmiciennes) tiveram a oportunidade de se apresentar no palco do

Teatro de Arte de Moscou em janeiro/fevereiro de 1912, onde se encontraram com

Stanislavski e Olga Knipper, viúva de Tchecov. Stanislavski convida Dalcroze e

sua equipe a assistirem Tio Vânia e a montagem de Craig de Hamlet. Dalcroze

inclusive escreve para Appia, posteriormente, dizendo que Craig teria ―roubado‖ as

idéias de Appia (FERNANDES, 2010, p. 05).

Esta influência de Dalcroze e as variadas apresentações ligadas aos grupos particulares,

como o TAM, reafirmam o grande interesse da classe artística russa pelas suas novidades

dalcrozeanas, que surgiam, e se espalhavam febrilmente. James William Lee, em Dalcroze by any

other name. Eurhythmics in Modern Theatre and Dance, indaga-se:

Esta influência pode ser particularmente bem discernida no trabalho que

subsequentemente criou o sistema de análises e ensino no desenvolvimento físico,

por exemplo, Jacques Copeau e Constantin Stanislavski no teatro, e Ted Shawn e

Rudolf Laban na dança. Em casos anteriores, a revista de Copeau conta os dias que

ele passou conversando com Dalcroze e frequentando suas aulas em Genebra. Em

seus escritos, Shawn faz várias diretas e corteses referências a Dalcroze e seus

excepcionais insights. Mas, o que há em Laban e Stanislavski? Há pontos

óbvios de coincidência entre seus trabalhos e Dalcroze, mas em suas grandes

obras, nem se encontra menção de contato com Dalcroze (LEE, 2003, p. 06.

Grifos nossos em negrito).

Em suas leituras sobre Stanislavski, Lee (2003) embasa-se nas obras da editora Theatre

Arts Books para a realização de seu trabalho, como podemos conferir na bibliografia apresentada.

Tais obras, como sabemos, são matrizes da tradução da editora Civilização Brasileira, usadas por

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9

Silva (2008)13

em sua dissertação. É este o principal motivo que não se consegue encontrar rastros

concretos de Dalcroze nas obras de Stanislavski.

Não existem, porque foram omitidos.

Fernandes (2010), embasada neste trabalho de Lee, mostra-nos que ―Stanislavski afirma

que queria ir a Hellerau, na Alemanha, conhecer mais de perto os métodos de Dalcroze. E

Stanislavski esteve realmente presente em Hellerau no festival de 1913 (FERNANDES, 2010, p.

05)‖. Entretanto, Sharon M. Carnicke (professora de estudos eslavos na Universidade do Sul da

Califórnia) também ajuda Lee a dissecar o problema. Carnicke cede a Lee documentos que

comprovam que Stanislavski aplicou o método de Dalcroze em seus atores no Teatro de Arte de

Moscou. Em tais informações se encontram os registros da realização das técnicas dalcrozeanas

anotados, seus dias e horários. Como descreve Lee:

[...] Carnick generosamente enviou seus escritos com várias referências de textos

da Rússia em sua posse que verificam data de início dos estudos de Dalcroze em

programas de trabalho de ator de Stanislavski. Eles ainda especificam a hora

do dia que as aulas foram realizadas (LEE, 2010, p. 112. Grifos, em negrito,

nossos).

Como curiosamente se vê, Dalcroze fez parte da edificação das ideias e pensamentos de

Stanislavski, assim como Isadora Duncan. As exclusões destes nomes também se apoiam no

preconceito que existe na obra do grande diretor russo, visto ainda hoje como um maçante método

de "trabalho de mesa" e não fruto das inquietações de um grande artista.

Ainda nos escritos da editora portenha, Quetzal, há uma informação importante

apresentada (1997, p.42) sobre o método Dalcroze e seu uso no TAM. Esta nota apresenta também

algumas críticas do diretor russo sobre o sistema de Dalcroze, críticas estas totalmente apoiadas na

sua constante procura:

[…] Su sistema de educación adquirió amplia difusión y fue estudiado por

Stanislavski. En los estudios dirigidos por durante las décadas de 1920 y 1930, la

enseñanza del sistema Dalcroze estaba a cargo de su hermano V.S. Aléxeiev.

Stanislavski no recomendaba a los actores el sistema Dalcroze, que estaba afectado

por cierto mecanicismo. Introdujo en él correcciones esenciales exigiendo una

justificación interior y la conciencia de cada movimiento, realizado al compás de la

música.

Agora, entre 1920 e 1930, podemos perceber claramente que Stanislavski estudou

reconhecidamente a ―rítmica‖ dalcrozeana, e ainda a criticou. Deste modo, podemos recordar que o

mestre russo dizia que ―[...] la fluidez exterior se funda en la sensación interior do movimiento de la

energía (STANISLAVSKI, 1997, p. 53)‖. Como se sabe Stanislavski expõe que para se conseguir

organicidade no movimento físico é necessário correspondê-lo interiormente.

Por conseguinte, percebemos que para Dalcroze os movimentos também necessitam da

sensibilidade, do intelecto e do ―espiritual‖ para serem ouvidos, percebidos e entendidos pelo

―ouvido interior‖, para que se possa criar a própria música e externá-la através da ―representação do

ritmo‖. Já Stanislavski procura de forma um pouco distinta a justificação ―interior‖ das ações físicas

das personagens, para não cair nos ―clichês‖ de interpretação ele afirma que deve surgir uma

corrente interior de energia que compassaria o tempo e o ritmo dos movimentos no espaço. Mas isto

será assunto a ser desenvolvido em outra ocasião. Finalizamos com a seguinte colocação de

Dalcroze:

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10

O gesto em si mesmo não é nada – seu pleno valor depende da emoção que o

inspira, e nenhuma forma de dança, não importa quão complexa na combinação de

atitudes corporais, pode ser mais que uma mera e insignificante diversão, até que se

complete com as emoções humanas em sua plenitude e profunda veracidade

(DALCROZE apud FERNANDES, 2010, p. 06).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DUNCAN, Isadora. My Life. New York: Horace Liveright, 1927.

FERNANDES, Adriana. Dalcroze, a Música e o Teatro. Fundamentos e Práticas Para o Ator

Compositor. Revista Fênix: Uberlândia. Acesso em 10 de dez. de 2010. Disponível em:

<http://www.revistafenix.pro.br/PDF24/Dossie_01_Adriana_Fernandes.pdf>.

LEE, James William. Dalcroze by any other Name. Eurhythmics in Modern Theatre and Dance.

2003. 195f. Dissertação (PhD em Teatro) – Texas Tech University, Texas, 2003.

MASETTI, Marcela. Danza Moderna y Posmoderna. Rosario: Serapis, 2010.

RODRIGUES, Iramar E. A Rítmica de: Emile Jaques Dalcroze. Uma Educação por e para a

Música. Goiânia: UFG, s.d.

SILVA, Carlos Alberto. Vozes, Música, Ação: Dalcroze em Cena. Conexões Entre Rítmica e

Encenação. 2008. 138f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Universidade de São Paulo, São

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TAKEDA, Cristiane Layher. O Cotidiano de uma Lenda. São Paulo: Perspectiva, 2003.

THOMAS, Nathan. Dalcroze Eurhythmics and the Theatre. In: Scene 4 – International Magazine

of Performing Arts and Media, may 2005. Disponível

em:<http://www.scene4.com/archivesqv6/may-2005/html/thomasmay05.html>. Acesso em: 10 jul.

de 2012.

1 Tema da Seção que foi apresentado o trabalho.

2 Mestrando em Artes Cênicas com bolsa FAPESP. O conteúdo deste artigo é o desenvolvimento de extenso trabalho

desenvolvido durante a graduação, sob orientação do Prof. Dr. Robson Corrêa de Camargo. Neste período, 2007-2010,

foram concedidas pelos órgãos UFG/CNPq três bolsas de Iniciação Científicas. 3 Professor da Universidade Federal da Goiás (UFG).

4 Em 1989, Paulo Bezerra traduz Minha Vida na Arte diretamente do russo, pela editora Civilização Brasileira.

5 Todas as traduções deste artigo são nossas.

6 Duncan cita Minha Vida na Arte, de Stanislavski.

7 Região que se localiza atrás do estômago e abaixo do diafragma.

8 Stanislavski se refere a atriz Eleonora Duse (1858 - 1924).

9 Professor do Instituto Dalcroze de Genebra, que tem visitado o Brasil inúmeras vezes divulgado-o.

10 Especialista em Rítmica pelo Instituto Rhythmikon de Munique/Alemanha, Kontakstudium na Escola Superior de

Música e Teatro de Sttutgart/Alemanha. 11

Seguimos a tradução dada pelo autor de Silva (2008). 12

Alusão à teoria de Albert Einstein (1879 – 1955) que, anedoticamente, também trabalha a relação espaço e tempo. 13

Em sua bibliografia, Silva (2008) usa as traduções da editora Civilização Brasileira.

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STANISLÁVSKI E NÓS: PROBLEMAS DE RECEPÇÃO E ACULTURAÇÃO:

TRADUÇÃO, CONCEITOS E NOÇÕES

REFLEXÕES ACERCA DO “TRABALHO DO ATOR SOBRE SI MESMO”

PROPOSTO POR K. STANISLÁVSKI A PARTIR DO ESTUDO DAS NOÇÕES

“PEREJIVÁNIE”, “VOPLOCHTCHÊNIE” E “VTORÁIA NATURA”

Michele Almeida Zaltron (Bolsa CAPES; Doutorado); Orientadora: Tatiana Motta

Lima; Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas; Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro; UNIRIO

As noções “perejivánie” e “voplochtchênie”, geralmente traduzidas para o

espanhol e para o português como “vivência” e “encarnação”, constituem pilares

fundamentais do ”sistema” stanislavskiano. Não por acaso, é na busca por compreender

e encontrar meios para o ator desenvolver em si mesmo os processos de criação da

“perejivánie” e da “voplochtchênie” que se baseiam os dois tomos da obra “O trabalho

do ator sobre si mesmo”, de Konstantin Stanislávski (1863-1938). A noção de “vtoráia

natura”, que pode ser traduzida como “segunda natureza”, possui intrínseca ligação com

o “trabalho sobre si mesmo” proposto por Stanislávski e, por consequência, com as

próprias noções “perejivánie” e “voplochtchênie”. Com este estudo, proponho, então,

refletir conjuntamente sobre essas noções essenciais na prática de Stanislávski, a partir

de sua obra e também pelo estudo da língua e da cultura russa. Desse modo, acredito na

possibilidade de enriquecer a compreensão sobre a obra do mestre russo – riqueza esta

que, muitas vezes, pela simples tradução por palavras equivalentes não nos é permitido

alcançar.

“O sistema de Stanislávski não pode ser entendido corretamente se não for

tomado em todo o conjunto dos elementos da vivência e da encarnação, unificados no

ato criador de forjar a imagem cênica.” 1

(KRISTI in STANISLÁVSKI, 1983, p.13)

“’Voplochtchênie’ e ‘perejivánie’ não estão separadas, estão entrelaçadas, e essa

é a união mais importante.” 2 (POKRÓVSKII in STANISLAVSKI, 1990, p.2)

Dentro do pensamento e da prática do “trabalho do ator sobre si mesmo”, os

processos de “perejivánie” e de “voplochtchênie” acontecem de modo conjunto,

interdependente no trabalho criativo do ator. Entender a noção de “perejivánie” como

inerente à noção de “voplochtchênie” nos aproxima dos ensinamentos de Stanislávski,

porque foi dessa forma que o “sistema” foi praticado, pesquisado e elaborado nos

estúdios do Teatro de Arte de Moscou.

Os escritos de Stanislávski exigem um olhar que considere a totalidade de suas

investigações, que compreendem revisões e transformações incessantes e, ao mesmo

tempo, preservam a unidade de seus propósitos éticos e artísticos. Por meio de sua obra

“O trabalho do ator sobre si mesmo”, que está dividida em dois tomos, Stanislávski

organizou e expôs os elementos que, segundo ele, estão ligados à natureza criativa do

homem e devem ser desenvolvidos pelo ator. O 1º Tomo da obra está dedicado ao

“processo da criação da perejivánie” e o 2º Tomo trata do “processo da criação da

voplochtchênie”.

“Perejivánie”3, geralmente traduzida como vivência, trata-se de um termo

complexo na língua russa, compreende um aspecto processual que toca profundamente

quem o sofre, seja o homem em determinados momentos de sua existência, seja o ator

em cena. “Voplochtchênie” pode ser traduzida como encarnação, personificação ou

corporificação.

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O prefixo “pere” confere à palavra “perejivánie” a ideia de movimento/processo,

de atravessar/transitar, como o “trans” em português. O radical “jiv” está relacionado

com o substantivo “jizn’”, que significa vida.

Assim, de acordo com os pesquisadores Bobrova Passos e Delari Júnior, “se

fôssemos recompor “pere” e “jivanie”, teríamos algo relativo a uma “transformação

vital”/“vida em transformação” ou “transição vital”/“vida em transição”, o que ainda

não constitui conceituação precisa ou tradução confortável” (DELARI; PASSOS, 2009,

p.9). O tradutor Diego Moschkovich aponta outra possibilidade para a compreensão de

“perejivánie” que, segundo ele, seria um verbo que pudesse significar “pôr a vida em

movimento” (In VSÉVOLOD, 2012, p.15). Entendimento que dialoga com as

possibilidades anteriores.

A preposição “v” acrescida da vogal de ligação “o”, presente em

“voplochtchênie” como prefixo, dá ideia de movimento para dentro, como “em”, “en”,

“in” em português. Nesse caso, o radical é “plot’” que na palavra “voplochtchênie” tem

o “t’” substituído pelo “ch”. “Plot’” significa carne. Complemento esse significado com

o adjetivo “plótnii” que pode ser traduzido como denso, espesso, encorpado4.

Visto isso, pode-se dizer que “encarnação” pode realmente ser uma tradução

satisfatória de “voplochtchênie” para o português, apenas chamo a atenção para o

sentido de densidade da carne existente nessa noção, de um processo que deve acontecer

na própria carne do ator. A esse entendimento se ligará fortemente a noção de “vtoráia

natura”, ou “segunda natureza” que será abordada mais adiante neste texto.

Ao tratar do “trabalho do ator sobre si mesmo” no “sistema” desenvolvido por

Stanislávski e documentado por ele em suas obras, é essencial considerar que as

traduções realizadas pelos norte-americanos no século passado foram responsáveis em

grande parte pela difusão da obra de Stanislávski mundo afora, sendo a fonte das

traduções disponíveis em português5.

Contudo, de acordo com Ruffini, “(...) não podemos dizer que conhecemos o

pensamento de Stanislávski por meio das edições norte-americanas” 6

(RUFFINI, 1993,

p.5). Um dos problemas citados pelo autor e que, de certa forma, acabou guiando essas

edições foi a expectativa que havia naquele meio teatral, naquela época, em busca da

“(...) utilização prática e imediata do ‘mito’ de Stanislávski”7 (IBIDEM). Associado a

isso, houve uma grande redução da obra original russa pela edição realizada nos EUA e

imprecisões no que diz respeito a muitas das terminologias adotadas nessas traduções.

Nas publicações norte-americanas e, consequentemente, brasileiras, a divisão da

obra “O trabalho do ator sobre si mesmo” em “processo criador da perejivánie” e em

“processo criador da voplochtchênie” foi acentuada, a ponto de sugerir que se trata de

duas obras distintas, o que é perceptível já nas traduções dos títulos que foram dados a

essas duas partes: “A preparação do ator” e “A construção da personagem”.

Na prática criativa do “sistema” stanislavskiano não há possibilidade de

separação no processo de desenvolvimento da “perejivánie” e da “voplochtchênie” no

trabalho do ator. Segundo nota de edição presente na publicação argentina “El trabajo

del actor sobre si mismo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador de la

encarnación”, para Stanislávski, “a assimilação prática dos elementos da vivência e da

encarnação se efetua simultaneamente”8 (In STANISLAVSKI, 1983, p.30). E a divisão

da obra “O trabalho do ator sobre si mesmo” em dois tomos, descrevendo um programa

escolar que no primeiro ano propõe o estudo dos elementos da vivência e no segundo

ano o estudo dos elementos da encarnação, é uma divisão convencional. Stanislávski

“estabelece [essa divisão] apenas para comodidade na exposição do material do

“sistema”, porém, de modo algum reflete sua prática pedagógica”9 (IBIDEM).

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De acordo com Kristi, em carta escrita em 1930 para Liubóv Gurevitch, parceira

de Stanislávski na edição de suas obras, Stanislávski havia decidido pela reunião de

“perejivánie” e “voplochtchênie” em um único livro, o “Trabalho do ator sobre si

mesmo”:

O livro “O trabalho sobre si mesmo” se divide em “Perejivánie” e em

“Voplochtchênie”. Inicialmente, pensei em unir a ambos em um só tomo. Depois, no estrangeiro, calculei as páginas e cheguei a

conclusão de que o texto ocuparia 1200 páginas impressas. Eu me

espantei e decidi fazer dois livros (“Perejivánie” e “Voplochtchênie”). Agora, depois de imensas reduções, parece que se torna novamente

possível fazer o segundo tomo10

, “O trabalho sobre si mesmo”, da

perejivánie e da voplochtchênie conjuntamente. 11

(STANISLÁVSKI

apud KRISTI in STANISLÁVSKI, 1989, p.383)

Stanislávski revelava, assim, o seu desejo de reunir os escritos de “perejivánie” e

de “voplochtchênie” em uma mesma obra desde o início da elaboração do “sistema”.

Sua obra esteve em permanente transformação, principalmente por conta da intrínseca

relação que manteve, ao longo dos anos, com as descobertas práticas do mestre russo.

Na passagem citada, devido às reduções sofridas no decorrer das mudanças,

Stanislávski chegou a pensar que seria realmente possível publicá-la em um só volume.

No entanto, ainda de acordo com Kristi, por fim, Stanislávski foi obrigado a

realizar a divisão em dois tomos, já que alguns elementos relacionados à

“voplochtchênie” ainda não estavam suficientemente desenvolvidos na escrita e a piora

na sua saúde o fez ter pressa na publicação do livro, trabalho que se dedicou até o fim

da vida.

Além disso, a crescente valorização da ação física no trabalho prático de

Stanislávski como elemento de confluência dos demais elementos do “sistema” o levou

a reformular o conteúdo escrito até então, relacionando-o com suas novas descobertas e

percepções a respeito do trabalho do ator. Talvez esse tenha sido o maior obstáculo que

Stanislávski enfrentou para a finalização de sua obra, a permanente reformulação da

escrita em função das descobertas práticas que, como grande pesquisador, nunca

permitiu cessar.

A ação autêntica, orgânica e orientada à finalidade do ator em cena; a

ação, entendida como um processo psicofísico único, se converte no

centro de todo o trabalho criador e pedagógico de Stanislávski. Situada antes em um mesmo plano com os demais elementos, a ação

passa a absorvê-los em sua totalidade.12

(KRISTI in

STANISLÁVSKI, 1980, p.26)

Entender a ação como “processo psicofísico único” é essencial para a

compreensão do “sistema” stanislavskiano. O processo criativo do ator se dá

conjuntamente, de corpo e mente. E para a plena criação e realização da ação pelo ator

em cena, Stanislávski defende a necessidade de um contínuo “trabalho sobre si mesmo”.

Não se pode transmitir, de maneira tão exata, com um corpo

despreparado a criação inconsciente da natureza, da mesma forma que

não é possível executar a Nona Sinfonia de Beethoven com instrumentos desafinados. Quanto maior o talento e mais sutil a

criação, mais aprimoramento e técnica o corpo requer.13

(STANISLÁVSKI, 1990, p.8)

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Era frequente a comparação, na obra de Stanislávski, do desenvolvimento que

deveria alcançar o aparato psicofísico do ator com instrumentos musicais de excelência

e a sua afinação. Que uma grande obra, como a Nona Sinfonia de Beethoven, deveria

encontrar um terreno preparado para alcançar a plenitude artística em sua realização.

No capítulo XIII – “Estado geral cênico”14

, formado de manuscritos destinados

por Stanislávski à obra sobre a “voplochtchênie”, encontra-se a seguinte afirmação do

mestre russo que busca trazer na imagem de uma orquestra a complexidade do aparato

de que dispõe o ator para a criação artística:

Os cantores cantam, os músicos afinam instrumentos, os artistas da

cena que se exercitem. Nosso instrumento criativo é mais complicado

que um violino. Nós temos os braços, as pernas, o corpo, a mímica, a voz, os desejos, os sentidos

15, a imaginação, a comunhão, a adaptação.

Não é brincadeira, toda uma orquestra! Uma orquestra, digo! Há o que

afinar! 16

(STANISLAVSKI, 1990, p.263)

Ao destacar a importância da afinação do instrumento de criação do ator,

Stanislávski se refere à necessidade do “trabalho sobre si mesmo”, de exercitar-se sobre

os elementos do “sistema”. O que, para o mestre russo, envolve uma atitude ética, de

trabalho e de disciplina que deve se dar ao longo da vida do artista, pois o ator é o seu

próprio instrumento de trabalho.

Sobre o trabalho com o “sistema”, Stanislávski esclarece:

O “sistema” observa-se em casa, na cena abandone tudo. Não se pode atuar com o “sistema”. Não há “sistema” algum. Existe a natureza. A

preocupação de toda a minha vida – como é possível chegar próximo

no tomo do que chamam “sistema”, ou seja, da natureza da criação.

Leis da arte – leis da natureza. (...) Um aspecto da técnica – obrigar o subconsciente a trabalhar. Segundo aspecto – a destreza de não

atrapalhar o subconsciente quando ele começa a trabalhar.17

(STANISLAVSKI, 1990, p.283)

Essa afirmação de Stanislávski deixa clara a sua visão sobre o papel de “trabalho

sobre si” exercido pelo “sistema”, como algo a aprimorar na própria natureza do ator, a

ponto de criar em si mesmo uma “segunda natureza”. Não há “sistema”, o que existe é a

natureza orgânica do ator diante da possibilidade de ser potencializada e sensibilizada

pelo esforço do “trabalho sobre si mesmo”.

A expressão “segunda natureza” (“vtoráia natura”) aparece em dois momentos

do primeiro tomo da obra “O trabalho do ator sobre si mesmo” (“Rabota aktera nad

soboi”), no capítulo II – “Arte da cena e ofício da cena” e no capítulo VI – “Liberdade

muscular”.

Para Stanislávski, a "segunda natureza" é um hábito adquirido, que tanto pode

ser positivo quanto negativo, impulso ou aprisionamento para a criação, para a

realização poética. Na obra referida, em um primeiro momento, no capítulo “Arte da

cena e ofício da cena”, a “segunda natureza” é apontada em seu aspecto negativo, como

a fixidez de um hábito que, aprendido ou instruído, ao ser repetido convencionalmente

pelos atores e transmitido de geração em geração, torna-se tradição do ofício.

Convém esclarecer que, nesse contexto, Stanislávski utiliza a expressão

“tradição do ofício” de forma negativa, de oposição à criação artística, isto é, como

mera reprodução ou repetição de convenções estabelecidas pelo ofício do ator de sua

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época. Cabe lembrar que no início das investigações e empreitadas artísticas de

Stanislávski, no fim do século XIX, clichês e estereótipos prevaleciam no teatro russo e

constituíam uma tradição fixa. Tradição esta que era reproduzida convencionalmente

pelos atores, salvo exceções tratadas por Stanislávski como geniais, de atores capazes de

sobrepor sua própria natureza criativa e instinto artístico a esses truques e

convencionalismos. Essa “tradição” era ensinada aos aspirantes do ofício de ator por

intermédio de seus professores, em geral, os mesmos atores profissionais impregnados

desses truques, estereótipos e convencionalismos, assim perpetuando-a no ambiente

teatral. Stanislávski lutou por um fazer teatral de descobertas incessantes e de criação

artística genuína, por isso encarava de modo negativo a dita “tradição do ofício”, por

sua cristalização em formas conhecidas/aprendidas de antemão pelo ator.

Em um segundo momento, no capítulo “Liberdade muscular”, a “segunda

natureza” aparece como um hábito a ser adquirido pelo ator por meio do alargamento de

sua percepção e do domínio de si. No sentido de que ao conseguir “controlar” os

músculos, libertando o corpo de tensões desnecessárias, é possível abrir espaço/tirar

barreiras para que a criação artística possa acontecer na realização de uma poética de si

mesmo.

Stanislávski ressalta os elementos do “sistema” como parte da natureza criativa

do homem/ator. Como foi visto, o mestre russo afirmava não ter inventado nada, apenas

observado a natureza e sistematizado elementos que poderiam ser exercitados,

assimilados e desenvolvidos pelo ator ao longo de sua vida, a fim de realizar

plenamente a sua criação artística.

O processo de absorver esse “sistema”, “para que ele penetre na carne e no

sangue do artista e se torne sua segunda natureza” 18 (STANISLÁVSKI, 1990, p.283) -

e, também, é possível acrescentar, entre em seu espírito - compreende o próprio

“trabalho do sobre si mesmo” na busca da potencialização e do aprimoramento dos

aspectos de “perejivánie” e de “voplochtchênie” de cada elemento do “sistema” na

totalidade de aparato psicofísico do ator.

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BIBLIOGRAFIA

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1 Tradução livre minha do espanhol: “El sistema de Stanislavski no puede ser entendido correctamente si

no se lo toma en todo el conjunto de los elementos de la vivencia y la encarnación, unificados en el acto

creador de forjar la imagen escénica.” (KRISTI in STANISLÁVSKI, 1983, p.13) 2 Tradução livre minha do original em russo: “’Воплощение’ и ‘переживание’ не разделены, они

взаимосвязаны, и это важнейшее единство.” (POKRÓVSKII in STANISLÁVSKI, 1990, p.2.) 3 Vide ZALTRON, 2012. 4 Vide VOINOVA; STARETS; VERKHUCHA; ZDITOVETSKI, 2003, p.428. 5 A única publicação da obra de Stanislávski realizada direto do russo para o português é a edição de

“Minha vida na arte”, realizada pela Civilização Brasileira, com tradução de Paulo Bezerra. 6 Tradução livre minha do espanhol: “(...) no podemos decir que conocemos el pensamiento de

Stanislavski sobre la base de las ediciones norteamericanas.” (RUFFINI, 1993, p.5) 7 Tradução livre minha do espanhol: “(...) utilización práctica e inmediata del ‘mito’ de Stanislavski.”

(IBIDEM). 8 Tradução livre minha do espanhol: “(...) la asimilación práctica de los elementos de la vivencia y la

encarnación se efectúa en forma simultánea (...).” (In STANISLÁVSKI, 1983, p.30) 9 Tradução livre minha do espanhol: “Lo establece solo para comodidad em la exposición del material del

‘sistema’, pero en modo alguno refleja su práctica pedagógica.” (Ibidem). 10 Aqui Stanislávski chama a obra “O trabalho do ator sobre si mesmo” de segundo tomo, referindo-se à

publicação de suas obras completas, em que “Minha vida na arte” é o primeiro tomo. 11 Tradução livre minha do original em russo: “Kнига “Работа над собой” распадается на

Переживание и Воплощение. Сначала я думал их соединить в один том. Потом, за границей,

подсчитал страницы, у меня вышло, что текст займет 1200 печатных страниц. Я было испугался и

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решил сделать две книги (“Переживание” и “Воплощение”). Теперь, после огромных сокращений,

как будто становится опять возможным сделать второй том, “Работу над собой”, из переживания и

воплощения вместе.” (STANISLÁVSKI apud KRISTI in STANISLÁVSKI, 1989, p.383) 12 Tradução livre minha do espanhol: “La acción auténtica, orgánica y orientada hacia un fin del actor em

la escena; la acción, entendida como un proceso psicofísico único, se convierte em el centro de toda la

labor creadora y pedagógica de Stanislavski. Situada antes en un mismo plano con los demás elementos,

llega ahora la acción a absorbelos en su totalidad.” (KRISTI in STANISLÁVSKI, 1980, p.26) 13 Tradução livre minha do original em russo: “Нельзя с неподготовленным телом передавать бессознательное творчество природы, так точно, как нельзя играть Девятую симфонию Бетховена

на расстроенных инструментах.Чем больше талант и тоньше творчество, тем больше разработки и

техники он требует.” (STANISLÁVSKI, 1990, p.8) 14 “Общее сценическое самочувствие” – “Óbschee stsenítcheskoe samotchúvstvie”. (STANISLÁVSKI,

1990, p.234) 15 Optei por traduzir a palavra “чувствования” (“tchuvstvovania”), plural nominativo de “чувство”

(“tchuvstvo”), por “sentido”, por entendê-la como a tradução mais adequada ao contexto. Mas também, é

possível encontrar os seguintes significados para “tchuvstvo”: sentido, sentimento, sensações. Como, por

exemplo, nos contextos: “органы чувств – órgãos dos sentidos (sensoriais); (...); Чувство боли sensação

de dor (dolorosa); (...); чувство радости sentimento de alegria.” (VOINOVA; STARETS;

VERKHUCHA; ZDITOVETSKI, 2003, p.702) 16 Tradução livre minha do original em russo: “Певцы распеваются, музыканты настраивают

инструменты, а артисты сцены пусть упражняются. Наш творческий инструмент посложнее, чем

скрипка. У нас и руки, и ноги, и тело, и мимика, и голос, и хотения, и чувствования, и

воображение, и общение, и приспособление. Шутка сказать, целый оркестр! Оркестр, говорю!

Есть что настраивать!” (STANISLÁVSKI, 1990, p.263) 17 Tradução livre minha do original em russo: “”Система” просматривается дома, а на сцене бросьте

все. “Систему” нельзя играть. Никакой “системы” нет. Есть природа. Забота всей моей жизни —

как можно ближе подойти к тому, что называют “системой”, то есть к природе творчества. Законы

искусства — законы природы. (...) Одна сторона техники — заставить работать подсознание.

Вторая — умение не мешать подсознанию, когда оно заработает.” (STANISLAVSKI, 1990, p.283) 18 Tradução livre minha do original em russo: “(...) чтобы она вошла в плоть и кровь артиста, стала

его второй натурой, (...).” (STANISLÁVSKI, 1990, p.283)

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STANISLAVSKI E NÓS: PROBLEMAS DE RECEPÇÃO E ACULTURAÇÃO: TRADUÇÃO, CONCEITOS E NOÇÕES

LIBERDADE E FIDELIDADE: A TAREFA DA TRADUTORA DE

KONSTANTIN STANISLAVSKY Autor: Vicente Mahfuz Joner; Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Brígida de Miranda; PPGT/CEART/UDESC.

Konstantin Stanislavsky (1863-1938) foi responsável por uma das mais influentes teorias de interpretação do moderno teatro ocidental. Mesmo após sua morte, perpetuou seu discurso e suas técnicas em todo o mundo por meio de seus discípulos, mas, principalmente, de seus livros, editados de maneiras diferentes na União Soviética e nos EUA. Seu Sistema se difundiu principalmente por meio das versões norte-americanas de seus livros, intituladas An actor prepares e Building a character, respectivamente publicadas no Brasil como A preparação do ator e A construção da personagem. Apenas o primeiro livro foi publicado antes da morte de Stanislavsky; suas obras posteriores foram publicadas postumamente, sem que seu autor pudesse participar do processo editorial. O projeto para sua próxima obra não foi terminado a tempo, contendo apenas esboços inacabados de texto. Mesmo assim, também foi editado e publicado nos Estados Unidos com o título de Creating a role (no Brasil, A Criação de um Papel).

Estas três obras foram traduzidas para a língua inglesa por Elizabeth Reynolds Hapgood (1894-1974), tradutora norte-americana que se tornou próxima de Stanislavsky em 1924, durante a excursão do Teatro de Arte de Moscou aos Estados Unidos. Hapgood foi sua principal auxiliar, responsável por traduzir suas obras da língua russa para a língua inglesa. Trabalhando como intérprete de Stanislavsky, Hapgood o auxiliou na edição e até mesmo na escrita de seus primeiros livros, publicados em inglês antes mesmo das versões originais em russo, por escolha do próprio Stanislavsky. A publicação em língua inglesa foi essencial para que se pudesse obter controle dos royalties internacionais, uma vez que a União Soviética não havia assinado o International Copyright Agreement (Acordo Internacional de Direitos Autorais)1. Entretanto, como Stanislavsky não possuía boa compreensão da língua inglesa, muitos autores questionam a imparcialidade das traduções em inglês. Para Sharon Marie Carnicke, é possível perceber problemas nas traduções de Hapgood mesmo sem ler o texto – bastaria olhar para sua extensão:

An Actor Prepares enumera 295 páginas com um tamanho de letra muito maior, criado a partir de uma cópia datilografada de aproximadamente 700 páginas. Mesmo tendo em conta variações de sintaxe, extensões de palavras, corpo de letra e as próprias revisões obsessivas de Stanislavsky, os números sugerem o quão drásticas são as diferenças entre as duas edições publicadas. A abreviação, exigida pela [editora] Theatre Arts Books, resultou numa versão em Inglês de cerca de metade do tamanho da russa2.

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Percebendo essa grande diferença em número de páginas, alguns estudiosos questionaram a autenticidade da obra de Stanislavsky na América, e as versões norte-americana e russa já tiveram seu conteúdo comparado entre si diversas vezes ao longo do século XX. Mais recentemente, muitos teóricos da tradução se manifestaram a respeito da importância de se respeitar o tamanho de uma tradução em relação à obra de origem. Em conferência gravada em Paris, Jacques Derrida expõe a necessidade de que a tradução seja quantitativamente equivalente ao original:

Nunca nenhuma tradução reduzirá essa diferença quantitativa, isto é, no sentido kantiano da palavra, estética, porque ela diz respeito às formas espaciais e temporais da sensibilidade. [...] Não se trata de contar o número dos signos, dos significantes e dos significados, mas de contar o número das palavras. [...] Dá-se por lei e por ideal, embora inacessível, traduzir não palavra a palavra, e certo, nem palavra por palavra, mas permanecer todavia o mais próximo possível da equivalência de uma palavra mediante uma palavra3.

A explanação de Derrida é citada por Umberto Eco para expor

diferenças de substância, quantitativas e qualitativas, entre alguns trechos de obras originais e suas respectivas traduções, a fim de demonstrar como algumas poucas palavras a mais ou a menos podem modificar até mesmo o sentido profundo de toda uma tradução4: “Somos instintivamente levados a considerar a adequação de uma tradução também em termos de relações quantitativas entre substâncias linguísticas”5. No caso de Stanislavsky e Hapgood, as diferenças de tamanho entre as obras originais e as traduções norte-americanas eram por demais evidentes e não tardou para que muitos questionamentos surgissem. Em 1954, ao analisar as traduções em inglês, Henry Schnitzler publicou um artigo que levantou sérias dúvidas sobre a qualidade do trabalho de Hapgood, destacando a ausência de cuidado editorial6. Após a análise de Schnitzler, a própria Editora Theatre Arts Books informou que não havia nada substancial que houvesse sido eliminado no processo de edição. Hapgood defende a si mesma na introdução de A Criação de um Papel: “Eu cumpri mais uma vez a tarefa que me foi confiada pelo próprio Stanislavski, de eliminar as repetições e cortar tudo que não tivesse sentido para atores não russos”7.

Mas, afinal, uma tradução deveria levar o leitor a compreender o universo linguístico e cultural do texto de origem ou, ao contrário, adaptar o texto original para torná-lo palatável ao leitor da língua de destino? Segundo Carnicke (2009), o principal problema nas traduções de Hapgood consiste em determinar o que de fato é redundante ou de menor sentido para a compreensão do Sistema pelo leitor norte-americano. Encontramos esse mesmo pensamento em A Tarefa do Tradutor, de Walter Benjamin: “o próprio conceito de um receptor ‘ideal’ é nefasto em quaisquer indagações de caráter estético, porque estas devem pressupor unicamente a existência e a essência do homem em geral”8. Benjamin afirma ainda:

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[...] daí deriva uma segunda característica da má tradução, que se pode definir, consequentemente, como uma transmissão inexata de um conteúdo inessencial. E assim é, sempre que a tradução se compromete a servir ao leitor. Mas se ela fosse destinada ao leitor, também o original o deveria ser. Se o original não existe em função do leitor, como poderíamos compreender a tradução a partir de uma relação dessa espécie?9

O ensaio A Tarefa do Tradutor é uma importante referência no

âmbito dos estudos teóricos sobre tradução, responsável por influenciar o pensamento tanto de teóricos da tradução quanto de especialistas da obra benjaminiana. Por meio de enunciados ora claros, ora enigmáticos, A Tarefa do Tradutor serviu de prefácio a um conjunto de traduções de poemas de Baudelaire, publicados em 192310. Para elucidar o que define a tarefa do tradutor, Benjamin distingue as características entre tradução e obra original:

Essa tarefa consiste em encontrar na língua para a qual se traduz a intenção a partir da qual o eco do original é nela despertado. Aqui está um traço que distingue tradução e obra poética, pois a intenção desta nunca se dirige à língua enquanto tal, à sua totalidade, mas única e imediatamente a determinados contextos de teor de linguagem. Mas a tradução não se vê como a obra literária, mergulhada, por assim dizer, no interior da mata da linguagem, mas vê-se fora dela, diante dela e, sem penetrá-la, chama o original para que adentre aquele único lugar, no qual, a cada vez, o eco é capaz de reproduzir na própria língua a ressonância de uma obra da língua estrangeira11.

Evidentemente foi outro o pensamento que guiou as traduções de

Hapgood. Ao cortar trechos específicos e reduzir outros para facilitar o entendimento do leitor americano, Hapgood adotou uma postura orientada ao leitor de destino, como diria Eco:

[...] uma tradução pode ser target ou source oriented, vale dizer que pode ser orientada para o texto fonte (de partida) ou para o texto (e para o leitor) de destino ou de chegada. Estes são termos atualmente em uso na teoria da tradução e parecem dizer respeito ao velho problema de saber se uma tradução deve levar os leitores à identificação com uma certa época e um certo ambiente cultural – aquele do texto original – ou se deve tornar a época e o ambiente acessíveis ao leitor da língua e da cultura de chegada12.

Cada forma de orientar a tradução possui inúmeros exemplos ao

longo da história – bem ou mal sucedidos. Para ilustrar ambas as possibilidades, Eco cita desde traduções bíblicas até a poesia de Dante Alighieri. Eco defende que o tradutor, na impossibilidade de dizer a mesma coisa em outra língua, trabalha para dizer quase a mesma coisa. Para isso, o tradutor deveria condensar os diversos conceitos presentes em tradutologia em uma única intenção: encontrar o sentido profundo, a intenção do texto de origem13. Sobre os múltiplos conceitos historicamente presentes em teorias da tradução, Benjamin cita os conceitos fidelidade e a liberdade:

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Fidelidade e liberdade – liberdade na reprodução do sentido e, a serviço dessa liberdade, fidelidade à palavra – são os velhos e tradicionais conceitos presentes em qualquer discussão sobre traduções. Eles parecem não mais servir para uma teoria que procura na tradução algo diferente da mera reprodução do sentido. É verdade que seu emprego tradicional vê esses conceitos sempre num dilema insolúvel. De fato, que aporte pode trazer a fidelidade para a reprodução do sentido? A fidelidade na tradução de cada palavra isolada quase nunca é capaz de reproduzir plenamente o sentido que ela possui no original. [...] as palavras carregam uma tonalidade afetiva [...] o quanto a fidelidade na reprodução da forma dificulta a reprodução do sentido é algo evidente14.

Benjamin cita a oposição liberdade-fidelidade como conceitos

antiquados, especialmente a fidelidade, quando interpretada historicamente como uma quase necessidade de se traduzir um texto de forma literal, palavra a palavra. Em outro ensaio, Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem, Benjamin confirma que “A tradução é a passagem de uma língua para outra por uma série contínua de metamorfoses. Séries contínuas de metamorfoses, e não regiões abstratas de igualdade e de similitude, é isso que a tradução percorre”15. Porém, Eco redime o conceito de fidelidade:

A fidelidade é, antes, a tendência a acreditar que a tradução é sempre possível se o texto fonte for interpretado com apaixonada cumplicidade, é o empenho em identificar aquilo que, para nós, é o sentido profundo do texto e é a capacidade de negociar a cada instante a solução que nos parece mais justa16.

Eco coloca estes e outros conceitos circulantes em tradutologia

sob o signo da negociação: “O tradutor deve negociar com o fantasma de um autor muitas vezes já falecido, com a presença invasiva do texto fonte, com a imagem ainda indeterminada do leitor para quem ele está traduzindo [...] e, às vezes, [...] deve negociar também com o editor”17 – como exemplificado nas traduções de Hapgood das obras de Stanislavsky.

Além de tradutora, Hapgood deteve os direitos autorais dos livros de Stanislavsky durante toda a sua vida – situação que só mudou a partir da década de 1990. Esta circunstância tornou as traduções de Hapgood praticamente obrigatórias no estudo de Stanislavsky ao longo de muito tempo, como únicas “originais” do ponto de vista legal18; suas traduções em língua inglesa foram utilizadas como base para novas traduções em outras línguas, inclusive a portuguesa, fazendo com que muitos artistas e pesquisadores utilizassem uma versão diluída dos escritos de Stanislavsky em seus estudos: as traduções das traduções19. Benjamin questiona a validade de uma tradução ser utilizada para uma segunda tradução em uma terceira língua:

Quanto mais elevada for a qualidade de uma obra, tanto mais ela permanecerá – mesmo no contato mais fugidio com o seu sentido – ainda traduzível. Isso vale, é claro, apenas para os

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originais. Traduções, ao contrário, revelam–se intraduzíveis – não por seu peso, mas devido à excessiva fugacidade com que o sentido a elas adere20.

A decisão de Stanislavsky de aprovar a tradução de Hapgood com

um “novo original” fez com que seu Sistema fosse rapidamente absorvido nos Estados Unidos, onde muitos artistas ansiavam por conhecê-lo. Porém, também é possível questionar o entendimento do Sistema pelos norte-americanos, devido aos problemas de tradução de algumas palavras-chave presentes nas obras originais. Enquanto algumas delas foram simplesmente cortadas do manuscrito original de Stanislavsky, outras não encontraram um termo em inglês que fosse adequado para traduzi-las, como no exemplo abaixo:

Não apenas a palavra, chuvstva, diz respeito igualmente aos cinco sentidos físicos e sensações emocionais, mas seu verbo, chuvstvovat, é notavelmente extenso nos seus possíveis significados: “sentir”, “ter a sensação”, “estar atento”, “entender” [...]. Infelizmente, o inglês, como o francês, não acomoda tantas variações; as associações física e emocional, implícitas simultaneamente em chuvstva, se perdem nas traduções para o inglês21.

Segundo Eco, traduções são sempre precedidas por uma

interpretação, e podemos perceber isso na citação acima. Diante de uma objetiva impossibilidade de reproduzir em inglês a ambiguidade do texto russo, Hapgood fez uma escolha pela qual evidentemente assume a responsabilidade. Escolheu como traduzir o termo chuvstva somente depois de interpretar o texto original, decidindo assim ocultar o enigma. Uma escolha, ou, como diz Eco, um quase. Benjamin estabelece relação semelhante quando diz que “É mais do que evidente que uma tradução, por melhor que seja, jamais poderá significar algo para o original. Entretanto, graças à traduzibilidade do original, a tradução se encontra com ele em íntima conexão”22.

Além das dificuldades naturais de tradução do idioma russo para o inglês, há outros obstáculos nas versões norte-americanas das obras de Stanislavsky. Ao optar por manter trechos específicos e excluir outros seguindo seu próprio critério e atendendo às necessidades da Editora responsável, Hapgood direcionou boa parte do entendimento da obra de Stanislavsky em quase todo o mundo. Segundo Carnicke, o capítulo final de A Preparação do Ator pode ter sofrido um dos cortes mais significativos no processo editorial:

[O texto russo] termina com uma passagem de cinco páginas na qual Tortsóv alerta seus estudantes de que eles ainda têm que adquirir um sistema holístico. Eles agora podem saber como induzir verdade nas circunstâncias dadas pela peça, eles agora podem entender memória emotiva e imaginação, eles podem ter encontrado a “importância da vida espiritual em nosso tipo de arte”, mas eles ainda precisam combinar esses elementos entre si, numa técnica psicofísica completa. [...] Ele corajosamente chama o conhecimento deles de “incompleto”. O corte desta passagem de A Preparação do Ator deu ao livro inglês um falso senso de completude, e metade da equação se manteve como

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um todo até a publicação de A Construção da Personagem, treze anos depois23.

Se levarmos em consideração as colocações de Benjamin e Eco,

poderíamos concluir que Hapgood possuía uma noção curiosa dos próprios deveres e exagerava em sua tentativa de deixar o leitor inglês moderno confortável. Na passagem apontada acima, se levarmos em consideração o comentário de Carnicke, pode-se perceber a ausência de interpretação do sentido profundo do texto; a tradutora não teria percebido que o texto original fazia o possível para estabelecer a importância de contínua e aprofundada pesquisa do ator, rumo a uma “técnica psicofísica completa”.

Eco lembra que o termo translatio, em latim, tem primeiramente vários sentidos diversos do atual: “mudança”, “transporte”, “passagem bancária de dinheiro”, “metáfora”. Somente a partir de Sêneca o termo passa a ser utilizado como a versão de uma língua para outra. Ainda, o termo traducere significava ‘conduzir além’24. Levou muito tempo até chegarmos às múltiplas possibilidades de emprego do termo “tradução” na atualidade. Como fenômeno social, histórico e até ideológico, a tradução assumiu muitos contornos e nunca teve apenas uma possibilidade. É curioso pensar que, da mesma forma, Stanislavsky nunca considerou sua obra como plenamente acabada; modificou, acrescentou de esclareceu seu discurso e suas técnicas até seus últimos dias de vida.

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NOTAS 1 CARNICKE, 2000, p. 14. 2 CARNICKE, 2009, p. 86: “An Actor Prepares numbers 295 pages of much larger typeface, set from a typescript of approximately 700 pages. Even allowing for variation in syntax, word length, typeface and Stanislavsky’s own obsessive revisions, the numbers suggest how drastic are the differences between the two published editions. The abridgement, demanded by Theatre Arts Books, resulted in an English version about one half as long as the Russian”. 3 DERRIDA, Jacques, apud ECO, Umberto, 2007, p. 309. 4 ECO, 2007, p. 299-351. 5 ECO, 2007, p. 309. 6 SCHNITZLER, Henry, 1954, p. 162. 7 STANISLAVSKI, 1995, p. 15-16. 8 BENJAMIN, 2011, p. 101. 9 BENJAMIN, 2011, p. 102. 10 LAGES, Susana K., 2007, p. 163. 11 BENJAMIN, 2011, p. 112. 12 ECO, 2007, p. 199. 13 ECO, 2007, p. 16-17. 14 BENJAMIN, 2011, p. 114. 15 BENJAMIN, 2011, p. 64. 16 ECO, 1997, p. 426. 17 ECO, 1997, p. 405. 18 CARNICKE, 2009, p. 82. 19 No Brasil, as traduções de Hapgood foram traduzidas para o português por Pontes de Paula Lima nas décadas de 1960 e 1970. Atualmente, suas tiragens continuam a ser produzidas pela editora Civilização Brasileira. 20 BENJAMIN, 2011, p. 118. 21 CARNICKE, 1998, p. 139: “Not only does the noun, chuvstva, apply equally to the five physical ‘senses’ and to emotional ‘feelings’, but its verb, chuvstvovat, is remarkably extensive in its possible meanings: ‘to feel’, ‘to have sensation’, ‘to be aware of’, ‘to understand’ […]. Unfortunately, English like French is less accommodating; the simultaneous physical and emotional associations implicit in chuvstva invariably get lost in English translations”. 22 BENJAMIN, 2011, p. 104. 23 CARNICKE, 1998, p. 143: “The Russian text of An Actor Works on Himself, Part I ends with a five page passage in which Tortsov cautions his students that they have yet to acquire a holistic system. They may now know how to induce belief in the given circumstances of the play, they may now understand affective memory and imagination, they may have encountered the ‘importance of the spiritual life in our kind of art’, but they have yet to meld these elements into a complete psychophysical technique. […] He boldly calls their knowledge ‘incomplete’. The deletion of this passage from An Actor Prepares gave the English book a false sense of completion and half the equation stood for the whole until the publication of Building A Character, thirteen years later”. 24 ECO, 2007, p. 275.

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STANISLÁVSKI E SEUS PROCEDIMENTOS: ENTRE PRÁTICA

PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO

ABORDAGENS STANISLAVSKIANAS NO GEPPAC-UFPEL1

Prof. Dr. Adriano Moraes de Oliveira2; UFPel.

Elias Pintanel de Oliveira3 (PRG-UFPel); UFPel

Introdução

O presente texto tem como foco dois processos de pesquisa em andamento no

GEPPAC (Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Processos Criativos em Artes Cênicas) da

UFPel (Universidade Federal de Pelotas) que tem como referência principal o método

de ações físicas a partir de Stanislavski.

O GEPPAC foi criado em 2012 e tem como principal objetivo o

desenvolvimento de estudos e pesquisas com teatro de grupo e poéticas teatrais na

região sul do Rio Grande do Sul (RS), Brasil. Desde sua criação o GEPPAC desenvolve

duas ações principais: a criação de experimentos poéticos a partir de poéticas teatrais

que dialogam com o método de ações físicas nas abordagens de Stanislavski e

Grotowski e um mapeamento das práticas criativo-formativas dos grupos teatrais em

atividade no extremo sul do RS.

A linha principal de concentração das pesquisas e estudos do GEPPAC é a de

poéticas teatrais contemporâneas e teatro de grupo. Integram o GEPPAC estudantes de

graduação, professores da rede pública de educação e técnicos colaboradores.

Experimento poético como método de pesquisa

O experimento poético é um trajeto de criação teatral amparado em duas

instâncias particulares: a primeira é a forma, isto é, um dado concreto que serve de guia

(um texto, um roteiro, um método); a segunda é a ação dos integrantes da pesquisa que

obedece a intimações de seus imaginários4. O experimento poético também pode ser um

método de pesquisa, pois é elaborado a partir de premissas objetivas. Em um

experimento poético os integrantes evidenciam seus repertórios imaginais na forma

como agem sobre e/ou a partir de uma forma dada.

A noção de experimento poético como método de pesquisa foi desenvolvida na

tese de doutorado intitulada “As intimações do imaginário e a forma-ação do

atorprofessor”, de Adriano Moraes de Oliveira, entre os anos de 2008 e 2011. Essa

noção foi construída a partir de uma explicação de R. Cieslak sobre a ação do ator numa

linha de ações (partitura, forma). Para Cieslak:

A partitura é como um copo de vidro no qual está uma vela

acesa. O vidro é sólido, está ali; você pode confiar. Contém e

guia a chama da vela. Porém, não é a chama. A chama é meu

processo interior de cada noite. A chama é o que ilumina a

partitura. Ilumina o que o espectador vê através da partitura. A

chama está viva. Assim como a chama da vela atrás do vidro se

move, flutua, se expande, se encolhe; quase apaga e volta a

brilhar intensamente, reage a cada sopro de vento, também

minha vida interior varia a cada noite, de momento em

momento... Começo, cada noite, sem antecipar nada. Esta é a

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coisa mais difícil de aprender. Não me preparo ensaiando. Não

digo: “na vez passada, esta cena era extraordinária, tratarei de

voltar a fazê-la”. Quero somente estar pronto para o que vier a

acontecer. E me sinto pronto para alçar o voo que poderá

acontecer se me sinto seguro na partitura, sei que também

quando não sinto quase nada o vidro não se romperá porque a

estrutura objetiva, trabalhada por meses, me ajudará. Quando

chega a ocasião em que posso arder, brilhar, viver, revelar –

então estou pronto porque não o antecipei. A partitura é a

mesma, porém cada coisa é distinta, porque eu sou distinto

(CIESLAK, R. In: Máscara, 1994, p. 22 – livre tradução).

O experimento poético enquanto pesquisa é composto tanto da forma (o vidro)

quando da ação (a chama). Partimos do pressuposto que atuamos desde a gênese da

criação, mas que essa gênese não acontece se não se estabelecer os limites adequados.

E, adequado aqui quer dizer, poético, como se faz. Como está observado em

OLIVEIRA,

o experimento poético é um método que se aproxima, de certo

modo, da palavra poética em sua matriz grega, isto é, a de poién,

que no grego refere-se ao fazer com domínio técnico

(OLIVEIRA, 2011, p. 43).

Há no experimento poético uma potência para uma dualidade de método de

pesquisa e de formação. Como método de pesquisa do outro, isto é, de grupo, age na

interação. Os espectadores são intimados a ler a obra e dependendo de seu repertório

evidencia elementos importantes para a pesquisa das práticas de grupos. Como método

de pesquisa de si configura-se como lugar de formação, pois os limites são dados pela

forma-referência selecionada de antemão.

O método de ações físicas como princípio de pesquisa

Em todos os experimentos poéticos desenvolvidos no GEPPAC o princípio de

pesquisa é pautado nas intimações dos imaginários de cada integrante envolvido. O

processo de evidenciação das intimações de cada integrante do grupo governa as

escolhas e os rumos de cada pesquisa. Contudo, a principal referência solicitada para o

desenvolvimento de experimentos poéticos é o método de ações físicas, particularmente

o desenvolvido no que se pode compreender pela poética teatral de Stanislavski.

Embora algumas intimações solicitem interlocuções com outras poéticas, todo o diálogo

se apoia no trajeto stanislavskiano.

Cabe ressaltar que o método que configuramos com a adoção desse princípio de

pesquisa e que, atualmente, denominamos experimento poético teve início antes mesmo

da criação do grupo de pesquisa. Já em 2007, quando um grupo de estudantes de artes

visuais fez o primeiro estudo e prática a partir de Stanislavski, o embrião era o método

de ações físicas. Naquela ocasião, denominado de exercício público teatral

“Stanislavskiana nº1” e tendo como referência literária o texto “A mais forte”5 de

Strindberg, o objetivo da encenação era o de explicitar como entendíamos o método de

ações físicas.

O trabalho com o método de ações físicas foi aprofundado durante alguns meses

e, em 2009, experimentamos a mesma pesquisa a partir do texto “As criadas”, de Jean

Genet. Nesse momento, ainda denominado de exercício público teatral, acrescentamos

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ao escopo das referências a noções de Grotowski sobre as ações físicas. O exercício que

foi denominado “CRIAS”, partiu de um estudo minucioso das poéticas de Stanislavski e

de Grotowski com o objetivo de aprimorar nosso entendimento sobre o método de ações

físicas como princípio de pesquisa.

Estes dois exemplos mostram o começo de nossas pesquisas com a poética de

Stanislavski e naturalmente seu aprofundamento com a solicitação da herança deixada

por Grotowski (importante leitor de Stanislavski e de seu método de ações físicas).

A experimentação de elementos da poética de Stanislavski como pesquisa de

campo

Na pesquisa em desenvolvimento com grupos de teatro da região sul do RS o

experimento poético serve de método de pesquisa. Os experimentos poéticos

desenvolvidos são exercícios práticos com os grupos e demonstrações de trabalho.

Tanto os exercícios quanto as demonstrações de trabalho realizadas servem de forma

referência para as entrevistas. Escolhemos exercícios simples com referência explícita

no método de ações físicas. Tanto o conhecimento quanto o desconhecimento desses

exercícios se tornam dados de pesquisa para compreendermos quais são as principais

práticas criativo-formativas presentes no extremo sul do RS.

A opção por pesquisar a partir de experimentação de elementos da poética de

Stanislavski foi realizada em função de adotarmos essa poética teatral como nossa

principal referência. Evidentemente não buscamos “ensinar” a poética de Stanislavski,

mas chamar a atenção de grupos de teatro da região sul do RS para a referência deixada

por Stanislavski. Interessa-nos particularmente os caminhos, as questões levantadas

naquele momento, mas, sobretudo, as possibilidades de atualização das respostas. Por

esse motivo lemos a herança de Stanislavski como um mito. Procedemos, portanto, com

uma “mitologização” da poética stanislavskiana.

A mitologização da poética de Stanislavski e a renovação do cânone

A necessidade da “mitologização” da poética de Stanislavski surgiu na pesquisa

de doutoramento “As intimações do imaginário e a forma-ação do atorprofessor” por

dois motivos principais: 1. Os textos de Stanislavski e de seus discípulos são

interpretações de um trajeto que, por ser antropológico no sentido durandiano6 do

termo, é uma narrativa que pode ser considerada mais ou menos próxima do contexto de

fato (o da época e da vida de Stanislavski); e, 2. Como o nosso interesse é fazer um

teatro vivo para o contexto brasileiro, mais particularmente o do sul do RS, a

“mitologização” possibilita a eleição de mitemas estruturantes que nos ampara na

estruturação da prática teatral.

A noção de “mitologização” parte do pressuposto de dois teóricos do campo do

imaginário. O primeiro é Cassirer e o segundo G. Steiner. Para o primeiro,

El mito es una de las más antiguas y grandes fuerzas de la

civilización humana. Está conectado intimamente com todas las

demás actividades humanas: es inseparable del lenguaje, de la

poesia, del arte y del más remoto pensamiento histórico. La

ciência misma tuvo que pasar por uma etapa mítica antes de

alcanzar la etapa lógica: la alquimia precedió a la química, la

astrología a la astronomía (CASSIRER, 1947, p. 30-31).

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Partindo dessa noção de Cassirer, isto é, de uma narrativa que antecede e

acompanha o racional, a “mitologização” de Stanislavski potencializa seus

ensinamentos e confere, inclusive, no âmbito do GEPPAC, uma atualização do cânone.

O procedimento garante uma liberdade de trabalho sem ferir as estruturas principais do

trabalho desenvolvido por Stanislavski na Rússia do final do século XIX e início do

século XX. Também, considerando a poética de Stanislavski como narrativa, nos

afastamos do debate que busca desvendar um a um os termos empregados no original

russo e suas inúmeras traduções.

O segundo pressuposto, o de Steiner, confere-nos certa autoridade no trabalho de

pesquisa e, particularmente, na “mitologização”, pois se apoia na relação entre arte e

ciência para demonstrar diferenças significativas entre os procedimentos e heranças de

uma e de outra. Segundo Steiner:

[...] Quase por definição, o cientista sabe que o amanhã vai estar à

frente do hoje. Um escolar do século XX sabe manipular

conceitos matemáticos e experimentais que eram inacessíveis para

um Galileu ou um Grauss. Para um cientista, a curva do tempo é

positiva. O humanista, inevitavelmente, olha para trás. O

repertório essencial de sua consciência, as bases de sua vida

cotidiana como acadêmico ou crítico, vem do passado. Uma

propensão natural o levará a acreditar, talvez em silêncio, que as

realizações do passado são mais brilhantes que as de sua própria

época (STEINER, 1991, p.146).

A questão da “mitologização”, considerados os dois pressupostos apresentados,

faz com que em um experimento poético se busque questões particulares e não gerais.

Interessa-nos pouco como trabalhava Stanislavski ou Grotowski, mas quais eram suas

questões fundamentais. A “mitologização” do método de ações físicas resume-se no

quadro abaixo:

“mitema” 01 “mitema” 02 “mitema” 03

Stanislavski Trabalho sobre si

mesmo

Aprendizagem em

grupo

Método de ações

físicas como

construção

Grotowski

Via negativa ou

busca sobre si

mesmo

Autopenetração ou

aprendizagem de si

em grupo

Método de ações

físicas como

desconstrução 7

Esses mitemas governaram, por sua vez, cada um dos experimentos poéticos

realizados no GEPPAC, mesmo que em alguns casos não tenha havido plena

consciência do que estava em jogo quando o trabalho era constituído a partir do método

de ações de Stanislavski ou de Grotowski “mitologizados”. De qualquer modo, a

“mitologização” é um uso livre e arbitrário do método de ações físicas de Stanislavski

deixado como herança. Talvez, mais apropriada seja a figura jurídica do pecúlio em vez

da herança. A diferença entre as duas é básica: a herança é natural; o pecúlio é um bem

que precisa ser solicitado.

A solicitação do pecúlio de Stanislavski

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Quando “mitologizamos” as poéticas de Stanislavski e de Grotowski, mais

especificamente no que concerne ao método de ações físicas, solicitamos o direito de

usar esses bens simbólicos deixados pelos mestres ao campo teatral do ocidente. O certo

é que essa solicitação não é natural.

A solicitação do pecúlio nos autoriza a utilizá-lo de modos bastante diversos e

esses modos de utilização do bem pode derivar para uma reinvenção do bem. Partimos

do princípio de que se trata de um valor simbólico e isso nos coloca uma dupla

responsabilidade. A primeira das responsabilidades é a de investigar os conteúdos do

bem solicitado. A segunda, mas não menos importante, é de cunho ético, pois se trata de

um bem entregue para o campo das artes cênicas.

Na primeira investida para adotar o pecúlio para si se faz fundamental um árduo

trabalho de compreensão das dimensões simbólicas do método de ações físicas. Para

tanto, cada integrante do GEPPAC assume o pecúlio da mesma forma: lendo,

interpretando e praticando as premissas do mestre. Esse processo faz com que cada

aluno se instale na condição de pesquisador e, portanto, busque reformular as questões

que instauraram o próprio método stanislavskiano. Essa reformulação do cânone leva

em consideração as particularidades de cada pesquisador, isto é, as intimações dos

imaginários pessoais de cada aluno e/ou grupo de pesquisa. A solicitação do pecúlio

significa de forma geral se assumir como artista-pesquisador considerando o contexto

particular como propulsor para as reformulações necessárias.

As questões éticas se fazem necessárias porque o pecúlio stanislavskiano é

assumido no grupo como um lugar privilegiado para pesquisar a si mesmo. Entendemos

que para um efetivo conhecimento de si é basilar um ambiente de liberdade. Essa

liberdade, no entanto, é limitada pelo próprio método de ações físicas e garantida pelo

rigor no envolvimento com a poética. É por isso que na tabela acima há três princípios

norteadores para cada “mitologização”. A forma adotada é liberada da poética

localizada na Rússia do passado, mas instituída em um novo limite que é o de ser

pesquisador de referências dramáticas num contexto pós-dramático.

Considerações finais

Procuramos nesse texto indicar como abordamos a poética de Stanislavski. O

que resta dizer, contudo, é que nosso trajeto de pesquisa é muito recente e que os

resultados estão longe de serem analisados de forma mais objetiva. A fragilidade de

nossa abordagem reside no fato de ocuparmos o duplo lugar de pesquisador e artista. De

um lado a objetividade da ciência, nossas acepções sobre a obra stanislavskiana, suas

possibilidades de atualização, nossa capacidade de leitura. De outro, nossa imersão

profunda nos “si mesmos”, tarefa difícil pela quantidade de contradições que são

reveladas em um intenso trabalho na tentativa de refazer o caminho de um dos maiores

artistas de teatro do ocidente.

Para finalizar é importante reiterar que nossas abordagens são moventes.

Entendemos que um pesquisador e um grupo de pesquisa são alavancados muito mais

pela dúvida do que pelas certezas. Talvez aqui esteja uma chave importante de nossa

abordagem: a figura mítica de Stanislavski no GEPPAC é a de um homem que faz

perguntas todos os dias para si mesmo na presença de seus companheiros.

Referências Bibliográficas

CASSIRER, Ernst. El mito del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1947.

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GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1992.

GROTOWSKI, Jerzy & FLASZEN, Ludwik. O Teatro Laboratório de Jerzy

Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva, 2007.

MÁSCARA – Cuaderno Iberoamericano de reflexión sobre escenología. Cieslak. Ano

IV, n°16. México: Escenología, 1994.

OLIVEIRA, Adriano Moraes de. As intimações do imaginário e a forma-ação do

atorprofessor: cartas sobre a reeducação do sensível. Pelotas: PPGE-

UFPel, 2011 – Tese de doutorado.

STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1984.

STANISLAVSKI, Constantin. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1989.

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2005

STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2006.

STEINER, George. No castelo do Barba Azul – algumas notas para a redefinição da

cultura. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

1 Apoio: CNPq 2 Professor Adjunto da UFPel; Lider do GEPPAC-UFPel: e-mail: [email protected] 3 Bolsista de IC; Graduando em Teatro-UFPel: e-mail: [email protected] 4 As intimações do imaginário são todas as imagens que compõem o repertório de ações de cada

integrante. Esse tema foi desenvolvido na tese de doutoramento “As intimações do imaginário e a forma-

ação do atorprofessor: cartas sobre a reeducação do sensível”. Pelotas: PPGE/UFPel, 2011. 5 O texto “A mais forte” explicita um diálogo entre duas atrizes em um café na véspera do natal. Uma das

atrizes detém a fala, enquanto a outra apenas ouve e reage ao que a primeira enuncia. No exercício

realizado na UFPel optou-se por compor a cena com quatro alunas-atrizes. Para criar unidade, o texto foi

dividido em quadros (unidades) e cada uma das alunas criou sua linha de ação. 6 A referência é a de Gilbert Durand. Para esse teórico o trajeto antropológico é constituído de todos

percursos pelos quais passa um indivíduo, incluindo aí os percursos anteriores a ele e que denominamos de herança cultural. 7 Esse quadro foi criado em 2010 durante a pesquisa de doutorado “As intimações do imaginário e a

forma-ação do atorprofessor”.

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STANISLÁVSKI E SEUS PROCEDIMENTOS: ENTRE PRÁTICA PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO

METÁFORAS DE TRABALHO NAS PRÁTICAS

PEDAGÓGICAS DE STANISLÁVSKI

Ana Caldas Lewinsohn (FAPESP; bolsa de doutorado); Orientador: Renato Ferracini; UNICAMP.

Debruço meu olhar de pesquisadora-atriz-professora em experiências de coletivos teatrais diversos para vasculhar ainda mais o território da prática do ator. A busca é pelo conhecimento intrínseco ao terreno da prática, por um saber intuitivo, que faz parte do cotidiano do universo da criação e que pode ser considerado legítimo do fazer. Por perceber que a teoria teatral pode ter uma relação ainda mais íntima com a sala de trabalho, a intenção dessa pesquisa é adentrar o universo da criação e da preparação do ator e observar essa realidade como um espaço de experimentação onde nascem conceitos e, dessa forma, utilizá-los para contribuir com a discussão sobre o corpo-em-arte.

A figura de quem conduz a prática (seja diretor, professor ou integrante do grupo), muitas vezes recorre à metáforas para provocar estados de intensos e potentes nos atores. Notamos, pela experiência própria da sala de trabalho e observação de outros grupos, o quanto essas provocações são metafóricas, ou seja, poucas vezes são estímulos que deveriam ser executados literalmente, como um comando objetivo e uma resposta única. As metáforas permitem abrir um leque amplo de possibilidades de expressão, estimulando assim, a capacidade de livre criação.

Chamemos essas metáforas inseridas no território da preparação do ator de metáforas de trabalho1. Estas seriam, então, sugestões de imagens, ações, dispositivos, exercícios e situações que impulsionam o ator a entrar em territórios de experimentação. De acordo com Lakoff e Johnson (2002), nosso sistema conceitual e cognitivo e o modo como organizamos nossas experiências é repleto de metáforas. Sendo assim, poderíamos arriscar dizer o quanto as metáforas fazem parte da nossa vida como um todo, não estando restritas apenas às figuras de linguagem, à literatura e à poesia.

Dessa forma, no contexto da preparação do ator, estamos nomeando de metáforas de trabalho a linguagem própria do ambiente da prática, sendo consideradas portanto um saber legítimo ao fazer teatral. Um saber do fazer. Delas podemos extrair um conhecimento que nasce da própria prática para potencializar a prática. Por ser enraizada no fazer e na experimentação, a metáfora de trabalho é atualizada a cada encontro. A observação deste conhecimento empírico contido nas metáforas de trabalhos gera perguntas que podem ser embriões de um pensamento a partir da prática.

Como gerar vida no trabalho do ator? Como manter o trabalho sempre vivo? Como recriá-lo e atualizá-lo em cada ensaio e cada apresentação? O que é “aquilo” que dá vida a uma performance? Diante dessas perguntas, já exaustivamente formuladas por pesquisadores e praticantes das Artes Cênicas, buscamos, no Projeto

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Temático “Memória(s) e Pequenas Percepções”, investigar o território do corpo-em-arte em seus diversos e complexos paradigmas. Desde março de 2010 o LUME vem desenvolvendo este projeto sob coordenação de Suzi Sperber e Renato Ferracini, com apoio da FAPESP e uma equipe de pesquisadores (pós-doutorado, doutorado, mestrado e iniciação científica).

O objetivo central é pesquisar a micropercepção e a memória por meio do estudo de conceitos e práticas para problematizar este campo de preparação do ator, localizado nas salas de trabalho. Para a realização deste projeto, a pesquisa foi divida em alguns sub-temas que se relacionam entre si e dialogam, todos eles, com o eixo central sobre micropercepções: visível e invisível; memória; treinamento; e metáforas de trabalho.

Todos os envolvidos pertencem ao ambiente da prática e abrigam em si uma vasta experiência de afetos, saberes e questionamentos pertencentes a esse universo. Dessa forma, é a partir dessa relação íntima com a práxis, vivenciada ao longo de anos, além da troca fértil com outros artistas e processos, que partimos para o desafio de falar sobre o invisível: forças que permeiam os espaços-entre-corpos e intra-corpos e são determinantes na organicidade da performance do ator.

A questão central é a construção-manutenção-atualização-recriação da presença do ator (performer ou bailarino). Uma questão antiga para o teatro. O Projeto Temático que desenvolvemos não tem a pretensão de resolvê-la, mas de pensá-la sob novos paradigmas, a partir de conceitos específicos, como de micropercepção, no contexto das problemáticas atuais.

A forma de responder a essa pergunta se difere em cada um dos pilares que compõem o Projeto Temático, já que o olhar é específico a partir do recorte dos temas, que se entrelaçam entre si, em inevitável diálogo. No caso desta pesquisa, como mencionado anteriormente, o foco está na língua interna que existe no território da prática, na forma de provocar estados de organicidade no ator na sala de trabalho. Ou seja, na forma de comunicação entre os atuantes, os diretores, ou professores, na linguagem (quase sempre verbal) utilizada especificamente na prática. Um olhar atento para as metáforas de trabalho presentes na criação – seja em ambientes pedagógicos ou na construção de espetáculos.

Nós, artistas pertencentes a esse universo da prática teatral, observamos que existe uma língua em comum desse ambiente da sala de trabalho, muitas vezes reconhecida e compartilhada entre diversas gerações, grupos e até etnias. Algumas metáforas de trabalho que nasceram na sala da prática, acabaram se tornando conceitos universalmente debatidos, como é o caso de organicidade, por exemplo (Grotowski, apud Flaszen, 2010). A rica potência de significados nunca estanques de certas metáforas de trabalho fazem com que elas perdurem no tempo, deixando de ser uma língua exclusivamente da prática para se tornarem, também, conceitos discutidos na teoria.

O que desejamos a partir dessa pesquisa é identificar e examinar essa potência intrínseca às metáforas de trabalho, que não precisariam jamais serem traduzidas ou descritas para que alcancem certo valor na Academia ou no pensamento sobre o corpo-em-arte, mas possam, elas mesmas, serem consideradas conceitos advindos da prática. As metáforas de trabalho, passam aqui a serem tratadas como conceitos de trabalho. A ideia não é estimular o dualismo entre teoria e prática, invertendo a

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hierarquia do pensamento teórico sobre o pensamento da prática, mas buscar de alguma forma friccionar os dois campos de conhecimento, tensionando as duas áreas que, ao tratarmos da sala de trabalho do ator, terminam sendo único.

Entretanto, não deixa de ser, ao mesmo tempo, uma busca de legitimar o conhecimento do fazer, colocando-o em igual proporção de valor teórico em uma pesquisa sobre o corpo-em-arte, para que outras formas de discussão possam vir à tona, em simbiose entre duas forças que pulsam no processo criativo do universo da arte. O intuito é uma criação na área acadêmica que deixe de ser apenas reflexão sobre o fazer, passando a ser, também, uma reflexão com o fazer. A partir da experiência da prática, reconhecer conceitos e debater questões. A língua da prática como um conhecimento em si.

A metáfora de trabalho, matéria da qual é feita a língua da prática, pretende ser um estímulo que potencialize estados vivos, orgânicos, auxiliando na criação e manutenção de presença. Grotowski, em suas pesquisas práticas, refletia sobre o que seria um estímulo eficaz:

Provavelmente não se pode dizer, de modo geral, que alguns estímulos sejam bons e outros não. (...) Um bom estímulo era tudo aquilo que nos jogava na ação com todos nós mesmos, ao contrário, um mau estímulo era aquele que nos dividia em consciência e corpo. (...) Era algo – independentemente do campo de que se tomava – que, se nos referíamos a ele, nos ajudava a agir na nossa inteireza. Não procurava-mos aplicar alguma definição verbal exata. Compreendemos que se tratava de um conhecimento empírico e que não pode ser idêntico ao conhecimento do cientista. Esse ponto se mostrou essencial porque até mesmo quem guiava o trabalho o fazia eficazmente só quando – também ele – agia por sua vez na interpenetração de consciente e inconsciente. Ao contrário, quando assumia uma atitude “científica” agia somente a sua consciência. (Grotowski In Flaszen e Pollastrelli, 2010:202).

Um bom estímulo, então, seria aquele que atuaria na não divisão do corpo e mente, de consciente e inconsciente, mas que buscasse uma inteireza. Assim, tanto quem provoca a prática por meio de dispositivos e metáforas de trabalho, como o ator que está em estado de experimentação, estão no caminho de uma unidade na qual nem a mente comanda o corpo nem o consciente conduz o inconsciente, mas há um fluxo veloz entre as partes, gerando presença.

Stanilslavski, no início do séc. XX, realizou inúmeras e intensas pesquisas sobre a arte do ator e sua preparação, sendo um dos pioneiros na realização do registro de suas observações e pensamentos com as práticas que realizava. Em seus livros podemos encontrar o caminho percorrido durante toda uma vida dedicada a investigação da arte teatral. A maneira peculiar como Stanislavski escrevia seus textos é, ainda hoje, inovadora, pois nos aproxima do ambiente da prática e da investigação, apontando seus percalços e problemáticas inerentes a esse território.

Em seus escritos, podemos notar o interesse por uma verdade cênica – orgânica -, que nasceria justamente de uma integração do consciente com o subconsciente, a partir de um estudo e observação da natureza humana. Na primeira fase de seu trabalho, Stanislavski acreditava que por meio de técnicas conscientes poderíamos ter contato com o subconsciente, de onde nasceriam os sentimentos:

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Só quando o ator sente que sua vida interior e exterior está fluindo natural e normalmente, nas circunstâncias que o envolvem, é que as fontes mais profundas do seu subconsciente se entreabrem de leve e delas chegam sentimentos que nem sempre podemos analisar. Durante um maior ou menor período de tempo, eles se apossam de nós, sempre que algum instinto interior os comanda. Como não entendemos esse poder soberano e não o podemos estudar, nós, atores, contentamo-nos em chamá-lo, simplesmente, natureza (Stanislavski, 2010:44).

As técnicas utilizadas por Stanislavski nessa fase estimulavam a imaginação, com dispositivos como o se e as circunstâncias dadas: “o se dá o empurrão na imaginação dormente, ao passo que as circunstâncias dadas constroem a base do próprio se” (idem, ibidem, p. 81). Nesse caso, a imaginação era trabalhada como um músculo, que deveria, assim como o treinamento corporal, ser exercitada constantemente. Stanislavski alertava, por isso, sobre adquirir o hábito de lutar contra a passividade e a inércia da imaginação.

Os recursos se e circunstâncias dadas eram praticados para criar o universo do personagem a ser trabalhado, sempre na direção de tornar essa imaginação corpórea, ganhando “carne”:

Deve sentir o desafio à ação, tanto física quanto intelectualmente, porque a imaginação, carecendo de substâncias ou corpo, é capaz de afetar, por reflexo, a nossa natureza física, fazendo-a agir (idem, ibidem: p. 103).

Notamos nas pesquisas de Stanislavski uma busca pela “natureza” das emoções e sentimentos humanos no trabalho dos atores a partir de exercícios que visavam, em última instância, uma integração dos aspectos interiores e exteriores, imaginativos e físicos, materializados na cena. De nada adiantaria os exercícios de imaginação bem realizados caso não tivessem como consequência a ação física. A forma como provocava e estimulava os atores surgia a partir de sua própria experiência prática e, nesse sentido, Stanislavski nomeava de um método “prático e não científico”, que poderia ser útil ou não às pessoas que compartilhavam dos seus ensinamentos.

O que estamos denominando de invisibilidade, ou seja, as forças atuantes no tempo e espaço, o virtual, isso que é impalpável porém perceptível e determinante na potência e vida do teatro, era já objeto de interesse à Stanislavski, nomeando, na época, de “raios”:

Que nome podemos dar a essa corrente invisível que usamos para nos comunicarmos uns com os outros? Algum dia esse fenômeno será objeto de pesquisas científicas. Por ora, vamos chamá-los raios. E agora vejamos o que se pode descobrir sobre eles pelo estudo e também anotando as nossas próprias sensações. Quando estamos em repouso, esse processo de irradiação mal se percebe. Mas em estado de alta tensão emocional esses raios, tanto os emitidos quanto os recebidos, ficam muito mais definidos e tangíveis. Pode ser que os cientistas tenham alguma explicação sobre a natureza desse processo invisível. Posso, apenas, descrever aquilo que eu mesmo sinto e como utilizo essas sensações na minha arte (idem, ibidem: 253-254).

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Podemos observar o caráter realmente investigativo com o qual Stanislavski se colocava diante de seus atores, sem impor verdades e se posicionando como alguém inquieto com sua prática, que foi, naturalmente, encontrando respostas diferentes em cada momento da vida, conforme sua pesquisa se desenvolvia. A pesquisa intuitiva que decorria a partir das experimentações levou Stanislavski a apontar, no início do séc. XX, questões que são ainda de extrema relevância para os paradigmas do trabalho do ator. Por esse motivo, resolvemos, no Projeto Temático mencionado acima, revisitar as principais obras de Stanislavski no intuito de indagar como, naquela época, já eram apontados princípios de discussões até hoje emergentes no teatro atual.

Bibliografia

FERRACINI, Renato. Ensaios de Atuação. São Paulo: Ed Perspectiva, 2013.

FLASZEN, Ludwik e POLLASTRELLI, Carla (org.). O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. Trad. de Berenice Raulino. São Paulo: Perspectiva: 2010.

LAKOFF, G. e JOHNSON, M. Metáforas da Vida Cotidiana. Trad. Grupo de Estudos da Indeterminação e da Metáfora (GEIM) e Vera Maluf. São Paulo: Editora PUC-SP, 2002.

OLIVEIRA, Erika Carolina Cunha Rizza de. Diálogos entre o Butô e a Dança Pessoal. Dissertação de Mestrado. Instituto de Artes, Unicamp, 2009.

STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do Ator. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

___________________. A Construção da Personagem. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

1 A nomenclatura de metáfora de trabalho foi concebida na pesquisa de Mestrado de Erika C. C. R. Oliveira (2009), também orientada por Renato Ferracini. Em sua dissertação “Diálogos entre o Butô e a Dança Pessoal”, Erika apresenta uma discussão entre as inúmeras metáforas de trabalho presentes no butô, principalmente em oficinas de Tadashi Endo e a dança pessoal, do LUME Teatro.

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STANISLÁVSKI E SEUS PROCEDIMENTOS: ENTRE PRÁTICA

PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO

A ACADEMIA DE MUSCULAÇÃO AFETIVA DO GRUPO TÁ NA RUA —

REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO DE AMIR HADDAD

Ana Maria Pacheco Carneiro/Ana Carneiro; IARTE; UFUi

Resumo:

Contribuir para reflexões que visam lançar novos olhares sobre as relações estabelecidas

por Stanislavski entre prática pedagógica e formação do ator e as diversas maneiras

como tais procedimentos se encontram imiscuídos em nossa prática atual de

professores/mestres-encenadores é o propósito principal desta comunicação. Para tanto,

serão feitos apontamentos e reflexões a partir dos escritos de Stanislavski (1968; 1970;

1974), bem como de textos apresentadas por Arão Santana (2000), Jorge Larrosa

Bondia (2002; 2006) e Marcos Bulhões Martins (2002), entre outros, que propiciem

estabelecer observações sobre o processo de trabalho do diretor Amir Haddad, que, por

determinados aspectos de seu trabalho e pelas qualidades que nele imprime, é

considerado um mestre por todos que com ele atuam.

Palavras-chave: Stanislavski; prática pedagógica; formação do ator; Amir Haddad

Introdução GRUPO DE NITERÓI - ANOTAÇÕES DE TRABALHO (1º caderno – agosto /78 a janeiro/79)

26/09/78

papo sobre o ator

Stanislawski (tem muito em comum com nosso trabalho)

Piscator – trabalhava na informação política de seus atores

Stanislawski – sistematização do trabalho do ator; representação do indivíduo

(imaginação —> ideológico)

Brecht – o indivíduo na sociedade (ação —> político)

Compreensão de que a diferença entre Stanislawski e Brecht é o político

As anotações acima são os únicos vestígios encontrados por mim no material

documental existente no acervo do Tá na Rua, que especifiquem com clareza e

obviedade a existência de alguma reflexão sobre as relações entre a pesquisa

desenvolvida por Amir e um grupo de atores (1974 a 1983)ii, e o pensamento de

Stanislavski. Em todas as demais anotações, sua obra é apenas citada no contexto de

alguma discussão e, em geral estabelecendo paralelos entre as propostas por ele

apresentadas e aquelas feitas por Brecht, mais próximas, a nosso ver, das buscas que o

grupo realizava.

Ao me debruçar sobre o trabalho da Tá na Rua em meu mestradoiii

, surpreendi-me com

as muitas conexões que estabeleci entre os procedimentos e as práticas apresentadas por

Stanislavski, e algumas propostas que desenvolvíamos ou mesmo o fazer cotidiano que

vivíamos no grupo. Naquele momento, esse fato me pareceu contraditório com o

discurso que pregávamos, mas não havia espaço para aprofundar essa questão.

Entretanto, a retomada de investigações (ainda em andamento) sobre o trabalho de Amir

Haddad, coordenador do grupo, me remeteu novamente a essas questões e ao

levantamento de algumas relações entre sua formação no teatro e os processos por ele

percorridos que desaguaram na formação do Tá na Rua.

A herança de Stanislavski

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A reflexão sobre o fazer cotidiano do ator, o estabelecimento de formas de treinamento,

de modos de ensinar e transmitir experiências — ou seja, o estabelecimento de ações

pedagógicas voltadas para a formação do ator — é, sem dúvida, a maior contribuição de

Stanislavski para a história do teatro no século XX, e se tornou o grande elemento

transformador do teatro, naquele momento. Uma transformação que se forjou então,

principalmente, nos espaços das escolas criadas pelos grandes mestres como

Meyerhold, Appia, Craig, Copeau, na formação de seus atores, nos grupamentos

culturais que se constituíram no entorno do teatro (CRUCIANI, 1995)

Apesar de abafada por longo período, quando eram mais evidentes as ações pontuais

que formavam aquilo que reconhecemos como o seu “método”, essa herança

pedagógica tem se tornado cada vez mais evidente, à medida que a estruturação de

cursos de teatro torna necessário discernir conceitos, definir ações e, principalmente,

reconhecer o vasto e diversificado campo de trabalho que ela abrange, de modo a

fundamentar epistemologicamente os caminhos do ensino de teatro.

Na verdade, “Pensar pedagogicamente o ensino da arte em suas especificidades”

(NECKEL, 2003, p.111) tem sido o grande nó da formação do professor de artes e,

dentre eles, o de teatro. É nesse sentido que Santana (2000, p.22) estabelece algumas

pontuações relacionadas às especificidades da formação do professor em artes que,

lidando com questões de uma formação que atua diretamente sobre o sensível,

necessitando proporcionar o desenvolvimento intelectual do aluno, tornando-o apto a

utilizar a linguagem teatral, tem ainda como tarefa a “tradução dessas funções no plano

didático-pedagógico”.

Um olhar mais atento sobre os caminhos percorridos por Amir Haddad no mundo do

teatro auxilia a compreendermos a relação aparentemente contraditória por ele

estabelecida com a pesquisa de Stanislavski — num movimento que podemos

reconhecer como de assimilação do pensamento pedagógico que a norteia e,

paralelamente, de rechaço ao seu “método” — e a forma como esta perpassou (e ainda

perpassa) o trabalho do Tá na Rua.

O contato de Amir com o mundo do teatro se dá nos idos de 1954 quando, ainda

estudante secundário, sai de Rancharia/SP, no interior do estado e se muda para São

Paulo. Aí, conhece o mundo sedutor do teatro paulista da década de ’50. Já aluno na

Faculdade de Direito, Amir tentou fazer o curso de ator da Escola de Arte Dramática de

São Paulo, e foi reprovado por Alfredo Mesquita. Mas foi na mesma faculdade que

encontrou José Celso Martinez Corrêa, intelectual começando a mostrar suas primeiras

peças, e Renato Borghi, que fazia teatro amador no colégio São Bento. Resolvidos a

fazer teatro, montaram Cândida, de Bernard Shaw, neste mesmo colégio. Amir, embora

sem nenhum conhecimento mais formal e/ou aprofundado sobre teatro, foi escolhido

para ser o diretor.

A partir desse espetáculo estruturam o grupo Oficina, no mesmo ano em que o Arena

estreia Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri: 1958. O grupo, entretanto,

não permaneceu unido muito tempo; questões relacionadas com a profissionalização e

com a aproximação de Zé Celso e de alguns atores das propostas apresentadas por

Augusto Boal nas reuniões organizadas pelo teatro de Arena, bastante marcadas pelos

conhecimentos que este obtivera nos Estados Unidos sobre o método de Stanislavski,

dividem o grupo e levam ao rompimento inevitável (Depoimentos VI, 1982)iv.

Pouco tempo depois (1962), Amir é convidado para implantar o Curso de Formação de

Ator do Serviço de Teatro da Universidade Federal do Pará/UFPA, como professor de

direção, juntamente com o ator Carlos Eugênio Marcondes de Moura (ator; professor de

dicção) e a coreógrafa Yolanda Amadei.

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A ida para Belém (1963) é transformadora; atua como um divisor de águas, ao provocar

mudanças radicais em seu pensamento sobre o teatro. Afastado da visão sedutora e

atraente do mundo do teatro que havia em São Paulo, começa a perceber que fazer

teatro em Belém era algo que clamava por um novo sentido para esse fazer, o que

proporciona a vivência de aspectos do teatro nunca suspeitados antes — aqueles da

formação do ator, e que diziam respeito à formação de um ator que não era o ator do

TBC, voltado para um determinado tipo de representação.

Como ele mesmo aponta, “Saí de SP e entrei numa realidade subdesenvolvida; já não

era mais apenas um conceito. [...] fui para a Amazônia [...] aqueles mangues, alagados,

aquelas casas, o Brasil começa a te bater na cabeça, no peito, começa a mudar [...]”

(Depoimentos VI, 1982, 27). Depara-se, assim, com novos impasses e novas questões:

que condições sociais havia para se fazer teatro ali? Que tipo de ator tinha para

trabalhar? Que repertório teatral poderia acionar naquela realidade? Ou seja, começa a

surgir um pensamento político relacionado ao fazer teatral.

É, portanto, esse período — sua permanência em Belém vai até 1965 — que oportuniza

a Amir Haddad viver o caminho da sabedoria: aprofundar, conhecer, refazer seu

conhecimento. “Acho que isso foi básico, porque me alimentou tanto, me deu tanta

força, que comecei a esquecer das coisas do espetáculo e a me preocupar com as

questões do ator. E com isso comecei também a resolver mais as questões do

espetáculo.” (Haddad, In CARNEIRO: 2000-2002)

Essa mudança de rumos abriu, definitivamente, um novo caminho para seu trabalho.

Além de revelar uma vocação muito grande para o ensino, que o torna reconhecido

como mestre, a atuação como professor em escolas de teatro, cursos e oficinas

possibilitou a Amir novas alternativas de sobrevivência no teatro, principalmente

durante o longo período em que esteve afastado das direções comerciais (1976 a 1983).

Paralelamente, levou-o a perceber nos grupos e outros espaços coletivos em que atua até

hoje, o espaço por excelência onde pode jogar suas novas idéias, experimentar, criar,

alimentar suas reflexões.

Outro fator contribuirá para a formação de Amir como diretor/professor de teatro, nesse

período passado em Belém: a participação como bolsista da Fundação Ford, para

estágio no Actors’Studio de Gene Franckel, sediado em Nova York, como aluno

visitante de todas as escolas de teatro dos Estados Unidos. Aí, além das aulas sobre

Stanislavski, entra em contato com todo o efervescente ambiente do teatro norte

americano, onde já haviam movimentos ligados ao teatro experimental, ao happening e

ao teatro em espaços abertos.

O conhecimento adquirido sobre o método de Stanislavski permeia suas ações, então;

mas será objeto, ele também, de grandes questionamentos:

Pegava os livros, lia Strasberg, pegava as coisas de Stanislavski, copiava lição e passava [...] Ao mesmo tempo, quando ia dirigir uma cena com eles, o

que lhes propunha não tinha a ver com que estava ensaiando. Provavelmente

eu não estava ensaiando ali nem o que o Strasberg fazia nem o que

Stanislavski fazia. Aquilo já era a codificação de uma coisa, perdida a vida,

perdido o processo, perdido o movimento. Transformado num método

esterilizador (Depoimentos VI, 1982, p.30).

É em relação a essas questões que Amir Haddad se refere, nessa mesma entrevista, ao

que nomeia de “herança”: o saber recebido e que não é investigado, tornando-se apenas

repetição, sem visão crítica. Para ele, só questionamos a herança no momento em que

entramos em contato com outros valores, com a realidade. E a realidade de Belém o

levou a questionar todos os seus valores em relação ao teatro.

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Ao sair de Belém, se estabeleceu no Rio de Janeiro, onde dirigiu o TUCA-Rio (1965-

1967) e, em seguida, se tornou professor no Conservatório de Teatro (1968-1973)v e,

paralelamente, participou do grupo A Comunidadevi.

Em 1974, premido por inquietações que diziam respeito tanto ao trabalho dos atores,

quanto à dramaturgia e aos modos de produção, Amir dirigiu o espetáculo Somma ou

Os melhores anos de nossas vidasvii

, no Rio de Janeiro — um espetáculo em que

pretendia fazer uma espécie de revisão de seu percurso no teatro, construído

coletivamente, composto por um roteiro de diversas cenas, algumas das quais de

espetáculos que ele havia dirigido ao longo de sua carreira.

Com uma linguagem de estrutura totalmente aberta, em que fragmentos/cenas de textos

eram apresentados (ou não) de acordo com a fluência do espetáculo, a cada dia e

misturando atores/público, espaço de representação/camarins, o espetáculo foi proibido

pela censura após quinze apresentações, por absoluta impossibilidade de controle, por

parte dos censores, sobre os acontecimentos que ali se davam.

A permanência de alguns atores junto a Amir Haddad, em busca de entendimentos mais

profundos sobre as razões que determinaram a interrupção do espetáculo, levou à

formação do Grupo de Niteróiviii

, raiz geradora do Tá na Rua (1980). Recluso em uma

sala do DCE da Universidade Federal Fluminense (UFF), o grupo de Niterói tinha como

meta a busca por um novo ator. Segundo Amir, as modificações que realizara na

estrutura dramática e espacial com a montagem de Somma o levaram a perceber que

havia coisas que ainda poderiam acontecer, “mas via que o ator não tinha recurso para

isso [...] Se eu quisesse saber o que fazer, eu tinha de procurar esse ator. [...] Foi o que

fez o Barba, o Grotowski, o Brecht, o Stanislavski, o Meyerhold, todos que fizeram

isso. Qual o ator para o espetáculo que eles queriam?” (Haddad, in SANTOS, 1995)

A pesquisa então realizada procurou estabelecer, pela busca do épico, uma linguagem

atorial que refletisse uma nova postura, outra visão de mundo. Todo um trabalho de

compreensão do texto foi desenvolvido, mas os atores mantinham grandes dificuldades

na sua expressividade — dificuldades que só se resolveram após a dissolução do Niterói

e a formação do Tá na Rua (1980), com o retorno do trabalho com as músicas,

semelhante ao que acontecia em Somma, “só que agora bem mais objetivad[o]. O

Somma era um espetáculo; a oficina é um exercício para buscar um ator; para

desenvolver um ator para um possível espetáculo” (IBIDEM). É este trabalho que passa

a constituir o que o grupo denomina de oficinas teatrais, que forma a sua Academia de

Musculação Afetiva.

Academia de Musculação Afetiva: rasto de uma herança

Observar o panorama acima exposto, em que a partir de alguns momentos pontuais se

delineia o caminho percorrido por Amir Haddad, me permite estabelecer alguns pontos

de reflexão sobre a questão aqui apresentada: a presença de propostas apresentadas por

Stanislavski no desenvolvimento dos trabalhos do Tá na Rua.

Primeiro, a necessidade de uma compreensão mais ampla da relação de Amir com

aquilo que ele designa como a “herança” – o método de Stanislavski.

Há uma história que Amir sempre conta, de como foi seu primeiro contato com as

escolas de samba, no Rio de Janeiro: convidado por alguns amigos, foi a um ensaio. Lá,

viu todos rindo, cantando, dançando, namorando, bebendo, mas não viu o ensaio.

Pensou que não tinha dado sorte; fora em um dia em que a escola não ensaiara. Voltou

outro dia, e a mesma coisa aconteceu: havia festa, alegria, encontros, cantos, afetos...

Mas não havia ensaio. Foi quando se deu conta de que aquele era o ensaio da escola; de

que aquela era a maneira própria de seus componentes se prepararem para o desfile: era

aquele encontro festivo que agregava o coletivo da escola; era aquele dançar infindo que

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fortalecia suas pernas para atravessarem a avenida; era o canto das letras que esquentava

suas gargantas e abria a sonoridade das vozes. Enfim, compreendeu os princípios que

norteavam aquele ensaio.

Essa pequena história, aliada à visão em perspectiva que a distância, agora, me permite

ter, me ajuda a levantar outra possibilidade de entendimento sobre a questão acima

exposta. Sempre que a contava, ele frisava: o que tem de ser compreendido ao nos

aproximarmos de um acontecimento, de um autor, é o princípio que rege a sua estrutura,

o seu pensamento. É essa compreensão que possibilita a assimilação daquele

conhecimento. É possível que ao se aproximar das propostas de Stanislavski, Amir

tenha rechaçado energicamente a possibilidade de se limitar a uma leitura convencional,

limitada à repetição de procedimentos, à aplicação de um “método” que lhe soava

estéril, sem vida, por lhe parecer ser apenas uma receita a ser seguida. Mas que, ao

mesmo tempo, tenha assimilado o pensamento de Stanislavski a partir dos princípios

que nele encontrou, utilizando-os à sua maneira, transformados de acordo com as

necessidades de seu trabalho.

Retomando as observações sobre o material documental existente no acervo do Tá na

Rua, outras anotações e também algumas imagens permitem detectar pistas dessa

assimilação, como por exemplo, a colocação de cartazes com palavras que sintetizavam

momentos pontuais do desenvolvimento do trabalho. Em anotação referente ao dia

29/01/79 encontramos: “Verossimilhança – levantando a realidade da história (texto);

dar verossimilhança, concretude à aventura da peça, através do que ela pode ser

compreensível.” Já em outra, de 18/05/79, vemos que “Expressão — é o consenso. Ter

o corpo mais ágil, mais leve, mais disponível e desbloqueado para expressar o

sentimento na ação.” (GRUPO DE NITERÓI, 1978/1979)

Talvez a evidência mais concreta dessa assimilação seja a constante presença dos

grupos na trajetória de Amir. Para ele, grupos são essenciais no contexto teatral e geram

outras contribuições significantes e, nesse sentido, afirma: “É importante para o país

estar ligado no fato de que os grupos movimentam tudo. Elencos não modificam o

teatro. O que modifica o teatro é a regularidade do trabalho e o desenvolvimento do

núcleo original. Foi assim com Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou, Brecht e o

Berliner Ensemble, Grotowski e seu Teatro-Laboratório, Barba e o Odin Theater [...].”

(PAPO TEATRAL, 1992, p. 6)

Mas a relação que se estabelece entre o trabalho de tempo-ritmo desenvolvido por

Stanislavski e as oficinas teatrais do Tá na Rua tem se colocado, para mim, como o

ponto mais rico a ser investigado.

Todo o Capítulo XI de A construção do personagem (Stanislavski, 1970, pp. 197-235) é

dedicado ao estudo do tempo-rítmo no movimento, a partir das diversas propostas que

Tórtsov propõe a seus alunos. De tudo que é aí exposto, o ponto em que venho me

detenho em minhas investigações se encontra principalmente nos exercícios e

explicações relacionadas com o tempo-ritmo, a memória e as emoções.

Stanislavski pontua claramente, pelas palavras do mestre e de seus alunos, não só a ação

contagiante que o tempo-ritmo provoca, como também a maneira como as batidas

compassadas despertam a memória das emoções, estimula a imaginação e, dessa forma,

sugere circunstâncias de ambientes e emoções a elas correspondentes (IBIDEM, 208-

209). Ele nos mostra ainda que há uma relação intensa que se estabelece entre tempo-

ritmo e circunstâncias dadas, a qual atua diretamente sobre nossa memória afetiva

(interior) e nossa memória visual (exterior). “Sob essa forma, o tempo-ritmo permanece

em nossa memória e pode ser utilizado para fins criadores” (IBIDEM, 211)

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Todas essas questões e reflexões remetem ao trabalho desenvolvido no interior das

oficinas teatrais do Tá na Rua, à medida que percebo linhas de confluência ligando as

ações e reflexões de um e outro lado.

As oficinas acontecem a partir de uma estrutura simples — espaço amplo, algum

material, como roupas, perucas, panos, máscaras... — e da disponibilidade dos atores

para o jogo teatral. Como base, “chão” para as improvisações, há apenas o estímulo

sonoro, geralmente por som amplificado ou instrumentos ao vivo.

Seu desenvolvimento se dá basicamente num determinado processo: as pessoas chegam,

e o material já está na sala, disposto de modo a ser visto e encontrado com facilidade:

máscaras, panos, roupas, perucas e outros objetos que favorecem a transformação;

material já usado, doado ao grupo e que constitui seu patrimônio. São cores, brilhos,

texturas que modificam os corpos, contribuem para a liberação dos sentimentos e

estabelecem um estado de teatro, de representação, em relação a tudo que ali acontece,

transformando em teatralidade/teatro os amores, as paixões, os ódios, os medos, a

violência e tudo o mais que ali aflora, criando assim a distância necessária para permitir

ao ator entrar em contato com o material emocional que o habita de forma lúdica,

prazerosa e transformadora; abrindo canais para o estabelecimento de uma relação

des-envolvida com os personagens.

Além de roupas e panos, que modificam os corpos, máscaras e véus transformam os

rostos e exercem significativo papel nesse processo de des-envolvimento do ator, pois

oferecendo-lhe a possibilidade de adquirir um “novo” rosto, ela lhe dá também

oportunidade de, sendo ainda ele, tornar-se um outro, representar um “novo” papel.

As pessoas usam o que querem e como querem, sem a preocupação de “vestir” um

personagem, isto é, não lhe atribuindo o sentido com que isso é quase sempre realizado

no teatro, ou seja, de auxiliar na composição do personagem, definindo-o pela aparência

de um caráter comportamental individual.

Há vários fatores que podem ser analisados nas oficinas, mas é a presença da música

nesse processo de trabalho, que interessa aprofundar, no momento. O que torna

necessário lançar um olhar mais atento sobre o papel que a música sempre ocupou no

trabalho de Amir Haddad.

Nas pesquisas por mim realizadas, até o momento, encontrei indícios de que a música já

era parte integrante do trabalho de Amir desde quando ele, recém-chegado no Rio de

Janeiro, dirige o TUCA-RIO, no período entre 1966-68, e encena O Coronel de

Macambira e Bumba meu boi, ambas de Joaquim Cardoso. Mas a utilização da música

como instrumento provocador no trabalho do ator surge, realmente, no período em que

ele trabalha como professor de interpretação no Conservatório de Teatro (1968-1973) e,

paralelamente, participa do grupo A Comunidade.

Já nessa época, suas aulas no conservatório são direcionadas pela busca do fluxo afetivo

do ator, do contato com seu mundo interior, sua criatividade. As roupas ficavam

disponíveis — os alunos vestiam o que quisessem — e as propostas de trabalho eram

sempre acompanhadas pela música. A partir de 1969, Amir consegue inclusive a

contratação de um sonoplasta — Geraldo Torres, que também exercia essa função no

grupo A Comunidade — para acompanhar suas aulas. A proposta era inserir

comentários musicais em exercícios de interpretação, procurando assim auxiliar o ator a

se descondicionar e se liberar dos compromissos emocionais com os clichês teatrais da

época.

A presença de Geraldo Torres nesse processo foi fundamental, à medida que ele

também tinha interesse em pesquisar a utilização da música na cena e as implicâncias

que isso teria para o trabalho do ator. Seu interesse tinha origem em experiência

vivenciada anteriormente, quando a inserção de comentários musicais em algumas

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cenas levou-o a perceber que o trabalho dos atores se modificava nesses momentos e

que tais comentários atuavam como se os tivesse possuído e possuído seus corpos e seus

gestos, tornando esses momentos mais teatrais e com uma qualidade cênica aparente

(TORRES, s/d).

Isso proporcionou a ambos uma parceria muito rica, à medida que o interesse pela

questão era comum e, desta forma, possibilitou o desenvolvimento de todo um processo

ao longo do qual a atuação da música no trabalho de formação e criação dos atores pode

ser modificado, aprofundado e reestruturado. As aulas passam então a ser quase que

totalmente musicadas, transformando o som no suporte sobre o qual o trabalho era

sustentado (IBIDEM).

Também em Somma a base que sustentava toda a movimentação era constituída pela

música, que soava quase ininterruptamente, silenciando apenas, quando necessário, nas

apresentações de cenas. Ela era o estímulo provocador que mantinha os atores em

estado de prontidão, de alerta para propor o jogo atoral que se desenrolava de forma

improvisada ou mesmo para participar de alguma cena proposta por outro ator ou pelo

público. Sua importância no espetáculo pode ser detectada pelo próprio espaço que os

equipamentos sonoros ocupavam, no centro do palco.

Era do imenso balcão ali localizado que o sonoplasta improvisava, ele também, “[...] a

trilha sonora que ora determinava, ora apoiava os acontecimentos, ora ajudava a

continuação de um fluxo, ora interrompia e propunha outro, sendo mais um elemento

construtor da cena, [...]” (REBELLO, 2005, p. 82). Para Trindade (2007) tal uso

estabelecia “um tratamento da música enquanto linguagem auto-expressiva, não

limitando seu uso a um simples pano-de-fundo para a expressão cênica, mas, ao

contrário, a exploração dinâmica dos seus múltiplos sentidos”. Assim, possibilitando

sua ação “como elemento integrador das distintas dimensões do espetáculo, a música

representou, talvez, a única fonte de segurança no aparente caos de Somma [...]”

(TRINDADE, 2007, p.52)

Quando, no período inicial da formação do Tá na Rua (1980), após o longo período de

recolhimento em Niterói, essa forma de trabalho com as músicas retorna, o que se dá é

uma verdadeira explosão da expressividade e criatividade dos atores do grupo. As

oficinas, aliadas ao aprofundamento político-social dos atores, às novas estruturas

conquistadas com o espaço da rua e o contato com um público popularix, se tornam a

resposta às questões de Amir relacionadas à formação do ator para o teatro que ele

queria fazer. Paralelamente, a participação constante de um grupo grande de pessoas —

atores e não atores — que passam a frequentar as oficinas e a percepção das conquistas

e aprendizado que elas adquirem, leva o grupo à descoberta de que aquela era a sua

forma de passagem de conhecimento e de treinamento de seus atores. Elas são, portanto,

“uma síntese de 30 anos quase, de trabalho nesse sentido” (Haddad, in SANTOS, 1995-

1996).

A função da música no trabalho das oficinas é a de estabelecer uma relação de total

integração entre seus participantes — função que é extremamente facilitada pelas

músicas rítmicas, na medida em que elas provocam o sentimento de pertencer a, dão

sensação de unidade. Além disso, valsas, músicas de filmes americanos, músicas

brasileiras (serestas, sambas, ritmos nordestinos), marchas, músicas de circo, todas se

entranham na memória coletiva e plena de sentimentos. Gravada ou ao vivo, cantada ou

instrumental, a música torna-se o verdadeiro “chão” sobre o qual os atores caminham

nas oficinas. Cada uma abre um canal de afeto, sugere climas, imagens ou mesmo cenas

inteiras. Um imaginário que aflora, e cuja concretização é vital para o desenvolvimento

dos processos intuitivos, para a distensão das tensões e para a liberação dos afetos.

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É no movimento dos ritmos que se sucedem, na dança teatral de seus corpos que os

atores passam a desenvolver uma relação orgânica com o espaço, experimentando e

aprendendo a reconhecer, pela diferença em seus sentimentos e pela realização cênica

de suas improvisações, os momentos em que esse espaço é harmonicamente ocupado;

descobrindo como as relações se mantêm em meio ao movimento contínuo de

proximidade e/ou afastamento físico entre atores e personagens; uma relação que se

revela na projeção das imagens poeticamente realizadas por corpos que expandem seu

espaço íntimo, tornando-se, cada um deles e todos ao mesmo tempo, o centro do espaço.

Por sua vez, o fator lúdico presente nas improvisações leva os atores à satisfação, ao

prazer de se expressar, e gera profundo envolvimento, orgânico, possibilitando a

aquisição de um saber que ocorre nos níveis físico, intelectual e intuitivo; colocando o

ator em intensa relação com tudo que o rodeia; levando-o ao contato com a realidade

por intermédio de todo o seu corpo; alargando seus canais de percepção, sua capacidade

criadora; e dando-lhe, assim, os meios necessários para experimentar, para explorar

novas propostas que enriqueçam seu jogo teatral, sua atuação.

É a maneira informal e coletiva que a música possibilita para o de estabelecimento do

jogo das improvisações, que oferece amplas condições para um aprendizado baseado na

experiência pessoal, tornando os atores mais conscientes de suas próprias possibilidades

e dificuldades, e transformando as oficinas em forma de trabalho capaz de gerar maior

grau de confiança e entrega entre os participantes do grupo — fatores relevantes para o

desenvolvimento de uma investigação em que experimentar o processo é mais

importante do que chegar a um resultado final — bem como para o fortalecimento desse

coletivo.

Roubine (1995, p.43-44), em consonância com o pensamento de Artaudx, pontua a

necessidade de um treinamento físico constante do ator, para tornar seu corpo apto ao

trabalho teatral, e resalva o fato de que para isso não basta, entretanto, a aquisição de

um virtuosismo físico: é preciso que esse treinamento abarque os aspectos subjetivos,

atuando como uma ginástica do imaginário e uma auto-análise.

É essa mesma consonância que orienta as preocupações de Amir em relação à formação

do ator e que, portanto, perpassa pelo trabalho desenvolvido nas oficinas teatrais do Tá

na Rua. É ainda essa mesma consonância que levou o grupo a nomear como Academia

de Musculação Afetiva os espaços de realização das oficinas.

Projecões possíveis

Embora alguns elos da cadeia estejam bastante aparentes, as investigações realizadas até

o momento ainda não permitem conclusões mais definidas sobre as questões indicadas.

A própria análise do material documental existente se encontra ainda em andamento.

Parte desse material é constituído por longas entrevistas de Amir, em que aspectos

importantes de seu pensamento se apresentam.

Também a observação analítica do material iconográfico disponível, principalmente dos

vídeos, poderá fornecer material valioso para a pesquisa dos acontecimentos que se dão

no interior das oficinas.

Assim, os caminhos da pesquisa se encontram apenas parcialmente projetados e, no

momento, apenas abrem espaço para indicar seu andamento.

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Bibliografia

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GRUPO DE NITERÓI - Anotações de Trabalho. (1º caderno – agosto/78 a

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Preta. Revista do Departamento de Artes Cênicas – ECA-USP, n. 2. São Paulo: 2002.

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REBELLO, Ângela. Somma ou Os melhores anos de nossas vidas: arqueologia de um

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ROUBINE, Jean-Jacques. A arte do ator. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

STANISLAVSKI, Constantin. A construção do personagem. Rio de Janeiro:

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SANTANA, Arão Paranaguá de. Teatro e formação de professores. São Luís:

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TRINDADE, Jussara. A pedagogia teatral do grupo Tá na Rua. Dissertação de

mestrado. Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de

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(Coleção Depoimentos, 6). pp. 9-46

PAPO TEATRAL, nov. 1992. Entrevista de Amir Haddad feita por Miguel Oniga. p.

6-7

i Apoio FAPEMIG/UFU ii Este período abrange o momento imediatamente após a censura do espetáculo Somma ou Os melhores

anos de nossas vidas (julho 1974), dirigido por Amir Haddad e apresentado no Teatro João Caetano, no

Rio de Janeiro, cuja censura provocou o afastamento de Amir do teatro empresarial e, paralelamente,

iniciou o período de pesquisa de linguagem que deu origem ao Grupo de Niterói, germe do futuro Tá na

Rua (1980). Estabeleço como data final o ano de 1983, por entender que até esse momento a pesquisa ainda se encontrava em andamento. iii Mestrado realizado no Centro de Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro, UNIRIO,

1994-1998, sob a orientação da Profª Drª Beti Rabetti. Dissertação: CARNEIRO, 1998. Como atriz

participante da pesquisa desde 1976, meu foco de investigação foi a contribuição que o espaço das ruas e

a linguagem cômica deram à linguagem desenvolvida pelo grupo.

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iv Embora a data de publicação seja a do ano de 1982, o depoimento de Amir para o SNT foi realizado em

08/09/1977. v Os antigos Conservatório Nacional de Teatro (CNT) — resultante do antigo Curso Prático de Teatro

(CPT), oferecido pelo Serviço Nacional de Teatro — e o Instituto de Música Villa-Lobos, antigo

Conservatório Nacional de Canto Orfeônico eram parte integrante da FEFIEG – Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara que, em 1975, passa a se chamar FEFIERJ, devido à união dos

Estados da Guanabara e Rio de Janeiro. Em 1979, sob a reitoria de Guilherme de Figueiredo, a FEFIERJ

passa a se chamar UNI-RIO (Universidade do Rio de Janeiro). Na década de 1970, o Conservatório de

Teatro e o Instituto Villa-Lobos ainda ocupavam o antigo e histórico prédio da UNE, localizado na Praia

do Flamengo 132, incendiado em 1964, um dia após o golpe militar, e demolido na década de 1980. vi O grupo A Comunidade (1968-1970) foi criado por Paulo Afonso Grisolli, Marcos Flaksman, Tite de

Lemos e Amir Haddad. Também fazia parte do coletivo o músico Aylton Escobar, o sonoplasta Geraldo

Torres, o cenógrafo Joel de Carvalho, Nelly Laport, que trabalhava com expressão corporal, e os atores

João Siqueira, Maria Esmeralda, Jacqueline Laurence, entre outros. O grupo tinha como proposta básica o

rompimento da relação espacial à italiana e dos princípios estéticos dela decorrentes; a recusa pela

profissionalização; a produção coletiva. Foi com este grupo que Amir dirigiu um dos espetáculos mais polêmicos da cena carioca naquele período: A Construção, texto de Altimar Pimentel (1969), em que já

estabeleceu o rompimento da tradicional relação público-ator, com o qual recebeu seu primeiro Prêmio

Molière. vii

Para maiores informações sobre este trabalho, ver REBELLO, Ângela. Somma ou Os melhores anos

de nossas vidas: arqueologia de um exercício teatral. Monografia de graduação. Departamento de Teoria

do Teatro. Curso de Bacharelado em Artes Cênicas. Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO. Rio de Janeiro, 2005. viii Do período inicial (dez. 1974) até seu final, são diversas as formações do Niterói. Do grupo de atores

oriundo de SOMMA, a maioria se afasta ainda nos inícios da pesquisa. Permanecem no grupo: Zeca

Ligiero e Duca Rodrigues (até 1976); Haylton Faria (até 1979) e Toninho Vasconcelos (até 1980). Há

também atores que não participaram do SOMMA, como Angela Rebello e Jana Castanheira, que

permanecem até 1977. Em 1976, ao grupo então existente juntam-se: Ana Carneiro, Artur Faria (ex-

alunos da Escola de Teatro da Fefierj) e Betina Waissman (aluna de Amir Haddad no curso Teatro

Brasileiro Contemporâneo, na Escola de Teatro Martins Pena, em jan. - fev.1976), que serão também integrantes do grupo TÁ NA RUA. A estes, se agregam ainda: Anderson aluno de Amir na Escola de

Teatro Martins Pena; permanece até 1977); Valéria Moreira (ex-aluna da Fefierj) e Carlos Cesar Galliez

(psicoterapeuta; trabalha no grupo como ator), que permanecem até o rompimento do Niterói (1980).

(CARNEIRO, 1998, p.223) ix Utilizo o termo popular, aqui, no sentido em que este era dado dentro do grupo Tá na Rua: um público

mais heterogêneo, no qual se encontram representadas, a princípio, diversas camadas da população. x Refiro-me aqui à afirmação de Artaud sobre a necessidade do ator desenvolver uma espécie de

musculatura afetiva, tornando-se um atleta do coração. Ver o capítulo “Um atletismo afetivo”, in

ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. Trad: Teixeira Coelho; 2ª ed.; São Paulo: Martins Fontes,

1999

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STANISLÁVSKI E SEUS PROCEDIMENTOS: ENTRE PRÁTICA

PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO

INTERFACES ARTÍSTICAS NA CRIAÇÃO TEATRAL: A PEDAGOGIA

STANISLÁVSKIANA

José Cleber Barbosa de Lima

Universidade Regional do Cariri (URCA)

1. Introdução

Este artigo tem como proposta refletir sobre a produção teatral do espetáculo “A instalação

sonora: o sonho de uma noite de luar” criado pelo Grupo de Teatro Locomotivo (de João Pessoa,

PB), que culminou em um debate com artistas e o público em geral sobre as possibilidades de

criação e possíveis interfaces da montagem cênica, sob a ótica da pedagogia Stanislávskiana e do

jogo teatral. O trabalho “O Sonho de Uma noite de Luar” do dramaturgo carioca Roberto Gomes

(1882-1922) - inicialmente chamado de instalação sonora- surgiu a partir da ideia de montar uma

adaptação do texto “Os padecimentos do jovem Werther” do escritor alemão Johann Wolfgang Von

Goethe (1749-1832). A ideia inicial foi criar uma experimentação teatral e fazer apresentações com

o intuito de dialogar com profissionais das artes cênicas.

O texto de Roberto Gomes, escritor nascido no século XIX e cuja obra recebe muita

influência da literatura francesa, trata da relação conflituosa entre a fantasia, memória e realidade do

jovem escritor Cristiano, ao reencontrar, depois de quinze anos, a “sempre amada” Edel, seu amor

de infância.

O espetáculo, nomeado pelo grupo de instalação sonora, dura 40 minutos e é uma mescla de

leitura dramática, instalação plástica e espetáculo teatral. A nossa ideia é conjugar várias linguagens

artísticas em prol da leitura para enriquecer a relação entre o público e o texto desse autor ainda não

conhecido do grande público, apesar de sua grande obra.

No processo de criação fizemos inúmeras leituras do citado texto e leituras de textos críticos

sobre a dramaturgia de Roberto Gomes. Em cena criamos cenas a partir de experimentos usados no

processo de montagem e pesquisamos sonoridades com objetos diversos, a exemplo de garrafas,

correntes e chaves.

O espetáculo foi concebido para um palco à italiana, mas a experiência de mostrá-lo em outros

locais, nos mostra que ele pode ser adaptado para outros tipos de espaços. Neste trabalho damos um

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enfoque maior às sonoridades que são colocadas em cena-tanto realizadas com objetos, quanto pelas

experiências vocais realizadas pelos atores.

O cenário foi concebido para que o público faça parte dele. O público fica sentado em “puffs”,

dando uma liberdade maior ao público de ora ver, ora ouvir as cenas que são distribuídas nos

espaços cênicos.

2. O processo criativo e pedagógico da cena

Para o processo de criação teatral, partimos por um longo caminho de pesquisa e análise da

obra que pretendíamos encenar. Com o estudo minucioso, direcionamos para os atores exercícios

corporais e vocais para a construção dos primeiros sentidos da personagem na sala de ensaio. Os

exercícios impulsionavam a reflexão dos atores a introduzir em suas falas uma espécie de melodia,

observando os sons produzidos pela garganta, pelo nariz, peito e outras caixas de resonâncias.

Assim, com as sonoridades evidenciamos a dicção, no qual o ator pudesse exprimir o pensamento

da dramaturgia corretamente no seu desenvolvimento da peça.

Em cada prática havia uma sistematização do trabalho corporal, partindo da realidade e

universo da obra dramática. O corpo bem treinado é a visão que remete a vida ao personagem,

verdade apurada e sentidos diversos para o espectador. Os gestos e os sentimentos devem vir

naturalmente do interior do ator. Se externalizando com os sentidos da personagem em sua ação

física. A ação parte de uma construção interna, uma construção exercitada e praticada. Para

Stanislavski:

Sem exercícios todos os músculos definham e reavivando as suas funções,

revigorando-os, chegamos a fazer novos movimentos, a experimentar novas

sensações, a criar possibilidades sutis de ação e expressão. Os exercícios

contribuem para tornar a nossa aparelhagem física mais móvel, flexível, expressiva

e até mais sensível. (1970, p.51)

Só com um intenso trabalho, o ator terá êxito em sua criação artística. Trabalhar o corpo é

trabalhar a alma para dar vida a novos contextos e a novas concepções da criação de um papel. Para

isso, é necessário o estudo, o treinamento e todas as informações coletadas artisticamente no dia a

dia, que são indispensáveis para a qualidade de um trabalho cênico. Dessa maneira,

vocês devem ler e ouvir tudo, todas as peças que puderem, críticas, comentários,

opiniões. Isso abastece e amplia o seu estoque de material criador. Mas ao mesmo

tempo têm que aprender a salvaguardar sua independência e afastar os

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preconceitos. Vocês devem formar opiniões próprias e não ir aceitando

irrefletidamente as opiniões alheias. Precisam aprender a ser livres. É uma arte

difícil, que só dominarão por meio do conhecimento e da experiência. Estes, por

sua vez, serão adquiridos não por meio de uma lei qualquer, mas por todo um

complexo de conhecimentos teóricos e trabalho prático no campo da técnica

artística, e principalmente pela reflexão pessoal, pela penetração nas essências, por

muitos anos de prática. (STANISLAVSKI, 1972, p. 117)

A indicação acima mostra o quanto o grande pedagogo da cena se preocupa com o pensar a

ação, de forma verdadeira nos palcos. Uma personagem bem construída existe previamente bem

antes de um diálogo, ela se constrói no antes e no depois e tem uma continuidade.

Os corpos dos atores do espetáculo “O sonho de uma noite de luar” se mostraram

interligados à expressão do teatro, traduziram suas emoções e devaneios por meio das cenas. Sobre

esta esfera, é comum inferir das “representações” do cotidiano dos participantes para a construção

das cenas em equipe. A devida carga se torna visível com o envolvimento perante a prática teatral.

Diante disso, Japiassu afirmará:

Mas é preciso ter em mente que cada sujeito, independente da idade que possa ter,

possui uma experiência pessoal, única, e habilidades específicas que só puderam se

desenvolver a partir das interações que lhe foram proporcionadas ao longo de sua

existência no mundo. Não se deve perder de vista a possibilidade do outro nos

ensinar alguma coisa, independentemente da idade ou da experiência que possua

em determinado campo do conhecimento. (1999, p. 61)

Nesta citação fica bem claro que a prática se constitui pela interação. E as experiências de

cada indivíduo, podem se voltar para o teatro para uma construção mais apurada da cena. No

processo do trabalho teatral, existe uma troca de conhecimentos, que os atorem adquirem ao longo

de suas vidas.

Segundo Cavassin:

Arte é forma de conhecimento, pois envolve a história, a sociedade, a vida. Não

está apenas ligada a idéia de prazer estético, contemplação passiva, mas ao

contrário, é dinâmica e representa trabalho, já que possui forças materiais e

produtivas que impulsionam as relações históricas e sociais e levam o homem à

compreensão de si mesmo e da sociedade. (2008, p. 11)

As expressões corporais estimularam reflexões e pensamentos dos atores na prática teatral.

Percebeu-se que a visualização dos corpos em cena ajudou a construir marcações na cena. As

marcações partem da necessidade da personagem construída, estruturação dos níveis estéticos na

cena. A partir desse mecanismo, os ensaios suscitavam esta inquietação. Para solucionar esta

situação, foi proposta uma observação mais detalhada dos corpos de quem estava em cena e sua

interação com outros atores.

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Ao observar o corpo do outro, os participantes começaram a mostrar uma desenvoltura no

palco diferenciada, já que os participantes eram submetidos a uma observação de caracterização

física. Na ação da cena, os observadores tiveram a preocupação de olhar também o espaço em que

acontecia a ação teatral.

O espaço determina o foco, a ação dramática e, sem dúvida, a memória na concepção de

uma estrutura. Desta maneira, o alicerce foi o nível de atenção empregado pelo ator, uma

observação que constituiria uma marcação. Entretanto, falta para estes atores estabelecer uma linha

cronológica, para dar coerência as suas ações corporais na cena.

A cena é constituída pelo jogo que o ator estabelece no espetáculo e interligam momentos

nos mais variados percursos. Nesse percurso, para contracenar com outros participantes, é

necessário ver as pessoas criando, interagindo com o corpo.

Constituíram os diálogos da cena e os atores ensaiaram para aprimorar suas falas. Na

marcação das cenas, existirá a memorização dos corpos que naturalmente chegara até a ação, nesta

perspectiva, os jogos teatrais mobilizam o corpo para uma visualidade da memória e é na memória

o ponto de fixação das marcas na cena.

3. A dinâmica ação/recepção no jogo da cena

De imediato, a dinâmica da encenação teatral é fonte do jogo que é proposto com a prática

teatral. Com o jogo, os atores criam relações e interação, participando ativamente da cena. É com

esta ação, que os jogos teatrais interferem na cena causando movimento. Para compreender melhor

as interferências que fazem os jogos teatrais na cena, acompanhamos os seis pilares abaixo:

1) Fisicalização - a capacidade de os jogadores tornarem visíveis para

observadores do jogo teatral, objetos, ações e os papéis por eles representados;

2) Espontaneidade - o relacionamento inter-ativo entre os jogadores sem

planejamento ou ensaio prévio de suas ações, ou seja, relações desenvolvidas a

partir das situações criadas exclusivamente dentro do jogo teatral;

3) Intuição - conhecimento que articula a sensorialidade corporal à esfera lógico-

cognitiva;

4) Platéia – Os observadores são entendidos como co-participantes do jogo teatral

e sua função os caracteriza como colaboradores ativos (inter-ativos) do processo de

construção de significação das ações representadas na área de jogo;

5) Transformação – Os jogadores (atuantes e observadores), ao instalarem o jogo

teatral, transformam a realidade: recriam-na cenicamente;

6) Jogo com regras - Os jogos teatrais são atividades lúdicas emolduradas por

regras explícitas. Neles, os participantes se revezam nos papéis de observadores e

de atuantes e zelam pela garantia do acordo coletivo que permite o

desenvolvimento de atividade com a linguagem teatral. (JAPIASSU, 1999, p.28)

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Os seis pilares mostrados acima, numa primeira instância, apresentam uma dinâmica. Nesta

ação, é colocada a fisicalização enquanto mote para dar luz, vida à representação no palco. Na

representação, é indispensável a leitura feita pelo espectador ao enxergar as devidas referências da

fisicalização que podem aduzir do corpo e dos objetos que compõem a estrutura cênica.

O segundo pilar fica nas entrelinhas da espontaneidade que, podem muito bem, indicar

momentos de improvisação para a composição da obra teatral. Nessa conjuntura a espontaneidade,

dá visibilidade a todas as aproximações e os distanciamentos que os jogadores fazem de suas

respectivas vidas. Operacionalizando, fatos de suas experiências, levando a uma estrutura

textual/corporal, fixada na cena.

A base seguinte retrata uma intuição para uma dinâmica, seja em qual esfera for. E na

dinâmica, emergindo ao extremo da cognição, indo por um domínio corporal atribuído à construção.

O quarto ponto mostra uma virtude diferenciada dos jogos dramáticos, por fazer o

espectador criar mentalmente, como forma de diálogo, complementação artística. Isso ocorre

porque, com a execução do jogo na cena, o participante espectador poderá aproveitar-se, desta

visão, e conceber um direcionamento mais eficaz daquela cena feita pelo jogador.

Já no quinto elemento, os espectadores e os jogadores contribuem entre si, através de

fragmentos de suas vivências no meio social, aperfeiçoando e inventando imagens cenicamente.

O último pilar é remetido às regras dos jogos teatrais. As regras são fios condutores entre os

participantes do jogo. Com o fortalecimento das normas, o jogo torna-se uma troca de experiência e

com a divisão de plateia e público, os jogos teatrais.

Nesta seara, os pilares dos jogos teatrais naturalmente induzem à dinâmica da ação e

recepção, constituídas pelas referências improvisadas entre o jogador e o espectador. Nesta visão, a

conexão entre ambos, facilita os diálogos de uma ação/recepção ou recepção/ação. Esta

ação/recepção, propiciada pelos jogos teatrais emitem para aos participantes uma construção

estética.

Para Pupo (2005, p. 70), “a intensidade do envolvimento nos jogos de apropriação tende a

mobilizar os participantes, apresentando repercussões diretas na densidade dos jogos teatrais que se

seguem”. Por esse caminho, a apropriação do Jogo, evidencia um maior desempenho nas

ações/recepções dos jogadores. Martins Afirma:

Vale salientar ainda o papel da platéia formada pelos próprios jogadores, no

percurso até o espetáculo. A avaliação é parte intrínseca ao jogo teatral.

Percebemos que a crítica da atuação e das soluções cênicas encontradas pelos

colegas incrementou a qualidade de jogo dos participantes. A discussão sobre as

opções estéticas de cada jogo ampliou a capacidade de improvisação individual.

(2003 p. 53)

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A informação verbal ou visual emitida pelo corpo do jogador que propõem uma ação, uma

dinâmica, tenderá a levar o espectador a construir uma ação também provida de dinâmica. Esses

dois tipos de dinâmicas são distintos e procedem de uma mesma ação. Só que a dinâmica/ação do

espectador, mostra o lado do pensamento, enquanto, ideia de criação. E na dinâmica/recepção, o

jogador, por meios corporais mostrará seus movimentos.

A dinâmica de ação e recepção, presentes nos jogos teatrais, constituem-se uma essência

para a criação teatral. Segundo Pupo (2005 p. 92), “um problema interessante de domínio do

significado dos signos teatrais acabava de se colocar. Da relação entre o jogo e a sua leitura pela

plateia nascia um aprendizado”.

Os vínculos entre a ação da plateia e jogador são, sem dúvida, nascentes para a estruturação

da cena. Por esse panorama, é indispensável a ação do jogador e a ação do espectador. Neste

segmento, Martins (2003 p. 42) dirá: “neste enfoque, o participante de experimentos de encenação

deve ser estimulado não apenas como ator, mas como co-autor da cena, pensador e crítico da

dramaturgia resultante do confronto do grupo com a literatura e outros estímulos cênicos”.

Ao finalizar os trabalhos fizemos uma temporada de 3 apresentações do espetáculo –depois de

6 meses de ensaio- no teatro Lima Penante. Às apresentações compareceram muitas pessoas de

outras áreas que não das artes cênicas. Essas pessoas foram convidadas a debater o espetáculo

depois da apresentação e nos deram muitas sugestões sobre como melhorar os procedimentos e

deram sua opinião sobre o trabalho do ator e o jogo da cena.

Depois deste primeiro momento de temporada do trabalho, partimos para uma pesquisa mais

aprofundada da criação sonora para serem introduzidas nas cenas. Essa pesquisa sonora, que gerou

uma trilha exclusiva para o espetáculo, foi feita pelos componentes do grupo. Nessa ótica, a

construção teatral Stanislávskiana é um riquíssimo processo pedagógico para o jogo na cena.

5. Referências

ASLAN, Odette. O ator no século XX. São Paulo: Perspectiva, 2010.

CAVASSIN, Juliana. Perspectivas para o teatro na educação como conhecimento e prática

pedagógica. Curitiba: FAP; 2008.

COSTA, Marta Morais da. A dramaturgia de Roberto Gomes: da casa fechada à abertura

modernista. Curitiba: UFPR, 2003.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

JAPIASSU, Ricardo Ottoni Vaz. Ensino do teatro nas séries iniciais da educação básica – a

formação de conceitos sociais no jogo teatral. 1999. Dissertação (Mestrado em Artes) –

Universidade de São Paulo, Escola de comunicação e Artes.

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PUPO, Maria Lúcia de Sousa Barros. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico – uma aventura

teatral. São Paulo: Perspectiva; 2005.

STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1972.

______. A construção da personagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

______. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

______. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

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TEMA: STANISLÁVSKI E SEUS PROCEDIMENTOS: ENTRE PRÁTICA PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO

TÍTULO: O TEATRO DO OPRIMIDO E A POPULARIZAÇÃO DO SISTEMA STANISLÁVSKI

José Marcos Batista de Moraes

(Mestrando em Literatura e Interculturalidade – UEPB e integrante do NET – Núcleo de Estudos Teatrais da UFCG)

Samantha Pollyana Messiades Pimentel

(Mestranda em Literatura e Interculturalidade – UEPB, e integrante do NET – Núcleo de Estudos Teatrais da UFCG)

RESUMO

Relaciona os métodos teatrais desenvolvidos pelo russo Constantin Stanislávski, conhecido como Sistema Stanislávski, e o Teatro do Oprimido, sistematizado pelo brasileiro Augusto Boal, com o objetivo de verificar pontos de relação entre eles, que fazem com que os jogos sistematizados por Boal se tornem um caminho mais direto para se alcançar alguns dos objetivos propostos por Stanislávski no conjunto da sua obra, como auxiliares do trabalho do ator sobre si mesmo.

Palavras-Chave: Stanislávski. Boal. Preparação do Ator. Teatro do Oprimido.

INTRODUÇÃO

Constantin Stanislávski e Augusto Boal são dois nomes importantes na história do

Teatro mundial. O primeiro foi o criador de um sistema de trabalho de interpretação

conhecido como Sistema Stanislávski. O segundo foi o criador do Teatro do Oprimido,

um método que entre outras coisas, visa democratizar os meios de produção teatral.

No Brasil, Augusto Boal teve um importante papel na divulgação do Sistema

Stanislávski, seja na realização do Laboratório de Interpretação do Teatro de Arena, seja

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na sistematização do arsenal de jogos e exercícios utilizados, nas reflexões sobre o

método publicadas em seus livros, e nas experiências práticas do Teatro do Oprimido

empreendidas em várias regiões do Brasil e do mundo.

Alguns dos jogos e exercícios presentes no livro “Jogos para Atores e não

Atores”, de autoria de Augusto Boal, podem ser um caminho mais popular, de mais

fácil entendimento e mais direto, para se alcançar alguns dos objetivos apresentados no

conjunto da obra de Stanislávski, composto pelas publicações, segundo tradução

portuguesa: “A Preparação do Ator”, “A construção da personagem” e a “A criação de

um papel”. Sendo os jogos propostos por Boal um meio facilitador do processo de

trabalho do ator sobre si mesmo.

O nosso trabalho objetiva através da comparação entre os métodos teatrais acima

citados, entender de que forma o Teatro do Oprimido se apropria do sistema criado por

Stanislávski, e como podemos perceber conexões entre aspectos do Sistema Stanislávski

e exercícios sistematizados por Boal, que fazem do segundo um caminho mais direto

para se alcançar alguns dos objetivos apontados pelo pensador russo.

O Sistema Stanislávski

Constantin Stanislavski nasceu na Rússia, em 1863. Dedicou-se ao teatro desde

cedo, fundando em 1897, com Vladimir Danchenko, o Teatro Popular de Arte,

posteriormente, Teatro de Arte de Moscou.

No conjunto de livros que reúne a sistematização das descobertas de Stanislávski,

quanto ao trabalho do ator sobre si mesmo, que foram fruto do acúmulo de experiências

e conhecimentos deste no seu trabalho prático como ator e diretor, podemos identificar

alguns grandes objetivos a serem perseguido pelo ator como meio de facilitar o seu

ofício. São eles: a identificação de objetivos e superobjetivos; os círculos de atenção; as

circunstâncias dadas; o monólogo interior, entre outras ferramentas que o pensador

russo aponta como facilitadoras do trabalho do ator. Segundo SEVERO e SILVA:

O Método ou Sistema, como Stanislavski preferia chamar, consiste em uma técnica para desenvolver a interpretação do ator de forma que esta seja uma criação orgânica e inteira. Contudo, Stanislavski (1996) defendia que seu sistema não equivalia a um estilo de representação e

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nem consistia numa receita, onde basta seguir seus passos para obter um resultado satisfatório. (2006, p.9).

Contudo, mesmo não sendo objetivo de Stanislávski criar uma receita que pudesse

ser aplicada conforme orientações predeterminadas, a apropriação prática de seu sistema

e também a seguimentação de seu pensamento em três publicações diferentes que

tiveram um tempo entre elas, bem como as traduções para outras línguas, acabaram por

muito tempo tornando seu sistema de trabalho como uma ferramenta enrijecida a ser

seguida pelo ator em seu trabalho de criação.

Todos são atores, inclusive os atores: o Teatro de Augusto Boal

O Teatro do Oprimido desenvolvido pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal, se

subdivide em diferentes formas de expressão são elas: Teatro Fórum, Teatro Imagem,

Teatro Invisível, Teatro Jornal e o Arco-Íris do Desejo. A forma mais amplamente

difundida e praticada pelo Brasil e pelo mundo é o Teatro Fórum, que busca encenar

casos de opressão e procurar alternativas para a sua superação, onde a platéia, chamada

de espect-atores segundo o pensamento de Boal, é convidada a entrar em cena e

apresentar cenicamente suas alternativas de solucionar o problema apresentado.

De acordo com Boal: “O Teatro do Oprimido é teatro na acepção mais arcaica da

palavra: todos os seres humanos são atores, porque agem, e espectadores, porque

observam. Somos todos espect-atores. O Teatro do Oprimido é uma forma de teatro,

entre todas as outras”. (2006, p.9).

Dentre os jogos e exercícios reunidos no livro “Jogos para atores e não-atores” de

autoria de Augusto Boal, temos a sua divisão nas seguintes categorias: ‘Sentir tudo que

se toca’, ‘Escutar tudo que se ouve’, ‘Ver tudo que se olha’ e “Ativando os vários

sentidos’. Como afirma Boal:

Na batalha do corpo contra o mundo, os sentidos sofrem, e começamos a sentir muito pouco daquilo que tocamos, a escutar muito pouco daquilo que ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos. Escutamos, sentimos e vemos segundo nossa especialidade. Os corpos se adaptam ao trabalho que devem realizar. Essa adaptação, por sua vez, leva a atrofia e à hipertrofia. Para que o corpo seja capaz de emitir e receber todas as mensagens possíveis, é preciso que seja re-

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harmonizado. Nesse sentido foi que escolhi exercícios e jogos focados na des-espacialização. (2006, p.89).

A proposta metodológica sistematizada por Augusto Boal é hoje praticada em

mais de 70 países, por grupos bem heterogêneos, sobretudo por grupos formados por

não-atores provenientes dos mais variados setores populares. O Teatro do Oprimido de

Augusto Boal é também utilizado na saúde mental.

Stanislávski e Boal: pontos de intersecção

Augusto Boal foi um dos principais responsáveis pela difusão do pensamento de

Stanislávski no Brasil, com a realização do Laboratório de Interpretação em 1956 com o

grupo ‘Teatro de Arena’. Como nos mostra Iná Camargo Costa em seu artigo intitulado

“O Momento Boal”, o contato de Boal com o pensamento Stanislavskiano foi mediado

pelo Actor’s Studio, responsável por uma apropriação do Sistema Stanislávski focado

na subjetividade. (COSTA, 2012).

Não queremos com isso dizer que a emoção não tenha um lugar importante no

pensamento de Stanislávski, seria no mínimo ingenuidade, mas apenas lembrar que seu

sistema não estava restrito a ela, como termina por fazer o Actor’s Studio em sua

abordagem.

Sobre a emoção Stanislávski vai dizer que: “No fundo de todo processo de

obtenção de material criador para o nosso trabalho jaz a emoção. Mas o sentimento não

substitui uma dose imensa de trabalho por parte do nosso intelecto”. (1999, p.127). Para

Augusto Boal: “[...] a emoção em si, desordenada e caótica, não vale nada. O importante

na emoção é o seu significado. Não podemos falar de emoção sem ração ou

inversamente, de razão sem emoção: uma é o caos, e a outra, matemática pura. (2006,

p.71).

Assim, nos dois teóricos encontramos caminhos para se alcançar a emoção por

meios racionais, por exercícios e um sistemático trabalho do ator sobre si mesmo. Neste

ponto, percebemos uma grande relação entre alguns dos objetivos apontados por

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Stanislávski e jogos propostos por Boal, que se tornam a nosso ver um caminho mais

direto, mais objetivamente delineado para alcançá-los.

Em específico, traçaremos a seguir alguns comparativos entre os dois autores,

especificando alguns dos exercícios e jogos do livro “Jogos para Atores e Não Atores”

de Augusto Boal, e relacionando-os ao pensamento de Stanislávski.

O primeiro dos exercícios que vamos especificar aqui é o ‘Interrogatório de

Hannover’, onde percebemos uma grande relação com a identificação de unidades e

objetivos que Stanislávski aponta nos seus estudos acerca do trabalho do ator sobre si

mesmo. Segundo o pensador russo, a separação do texto, para fins de melhor estudo e

entendimento, deve se dá em unidades de ação, e os objetivos em superobjetivo, que

corresponderia a resposta da pergunta: “O que impulsionou o autor deste texto a

escrevê-lo?”; e os objetivos de cada personagem no desenvolvimento geral do enredo, e

em cada unidade em particular.

No interrogatório de Hannover proposto por Boal, temos o personagem colocado a

frente do grupo que lhe faz perguntas sobre desejos, formas de pensar e objetivos do

mesmo, auxiliando o ator no entendimento e construção da sua personagem. Por

exemplo, tomemos uma cena de Teatro Fórum sobre violência doméstica, temos então o

ator que fará o papel do opressor que bate em sua mulher. Este ator através do

interrogatório de Hannover será entrevistado sobre os motivos que o levaram a agredir

sua mulher, se ele passou por alguma agressão na infância, qual o pensamento que ele

tem sobre a relação marido e mulher dentro de uma relação conjugal, e diversas outras

perguntas, que possam auxiliá-lo na construção e entendimento deste homem que agride

a mulher que ele irá interpretar em cena.

Assim, podemos traçar um paralelo com a identificação das unidades e objetivos

apontada por Stanislávski e o exercício proposto por Boal, onde o segundo se delineia

como uma maneira mais direta de atingir os objetivos propostos pelo pensador russo.

Outro dos exercícios que vamos especificar aqui se intitula “Quantos As”, que

funciona da seguinte maneira, segundo descrição de Boal no seu livro “Jogos para

Atores e não-atores”:

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Em círculo. Um ator vai até o centro e exprime um sentimento, sensação, emoção ou idéia, usando somente um dos sons da letra “a”, com todas as inflexões, movimentos ou gestos com que for capaz de se expressar. [...] Quando muitos já tiverem criado os seus próprios “as”, o diretor passa ás outras vogais (e, i, o, u), depois passa a palavras habitualmente usadas no dia-a-dia, depois a “sim” querendo dizer “sim”, a “sim” querendo dizer “não”, a “não” querendo dizer “não”, e a “não” querendo dizer “sim”, e finalmente pede que utilizem frases inteiras, [...]. (2006, p.141).

No seu livro “A construção da personagem”, Stanislávski no capítulo “Entonações

e Pausas” nos propõe que experimentemos pronunciar uma mesma frase mudando as

suas pausas, alterando assim a palavra a qual se dá mais intensidade, ou mesmo alterar a

sílaba acentuada das palavras, de forma a perceber como isso pode alterar o seu sentido.

Segundo nos propõe o autor russo: “A pausa lógica é passiva, formal, inerte; a

psicológica, inevitavelmente, transborda atividade e riquíssimo conteúdo interior. A

pausa lógica serve ao nosso cérebro, a psicológica aos nossos sentimentos”. (2001,

p.193).

Stanislávski afirma também que: “[...] o ouvinte não é afetado apenas pelos

pensamentos, impressões, imagens que se ligam às palavras, mas também pelas

tonalidades das palavras, as inflexões, os silêncios, que preenchem tudo o que as

palavras deixaram por exprimir.” (idem, p.197).

Dessa forma, o jogo do “Quantos As” proposto por Boal em seu arsenal de jogos e

exercícios do Teatro do Oprimido, se configura como uma ferramenta prática que pode

ser utilizada pelo ator para explorar as diversas entonações, pausas e inflexões de uma

mesma letra, sílaba, palavras, ou frases do cotidiano, ou mesmo do texto teatral com o

qual se está trabalhando para o processo de encenação.

E através do jogo dos “sim’s” que são na verdade “não’s” e vice-versa, podemos

perceber, como afirma Stanislávski, que são as inflexões que preenchem as palavras de

sentido, e não a palavra em si. Segundo afirmação do autor: “[...] a entonação dará a

palavra o colorido de várias tonalidades de sentimentos: acariciante, maldoso, irônico,

um toque de desdém respeito e assim diante”. (idem, p.224).

Outro dos exercícios sistematizados por Boal no qual podemos traçar pontos de

intersecção com o pensamento de Stanislávski é o “Troca Nomes”. O jogo funciona da

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seguinte forma: O grupo caminha pela sala e ao encontrar-se com outra pessoa, estas se

apresentam com um aperto de mãos e dizem os seus respectivos nomes. A partir de

então estas duas pessoas prosseguem a caminhar pela sala só que agora com os nomes

trocados, por exemplo, se me chamo ‘Mariana’ e me apresentei para ‘Jorge’, a partir de

então eu saio com o nome de ‘Jorge’ e ele com o de ‘Mariana’ e com esses nomes

prosseguimos a nos apresentar a outras pessoas, de modo que se troque de nome várias

vezes no decorrer do jogo, até o momento que eu cumprimente alguém que se apresente

com o meu nome, nesse momento então eu deixo o jogo. O objetivo é despertar a

atenção em ouvir o outro, uma vez que preciso escutar e apreender seu nome para

repassá-lo a pessoa seguinte a qual me apresentarei.

Nesse jogo, podemos trabalhar a faculdade do ator de ouvir com atenção o outro

ator com o qual está jogando em cena, como afirma Stanislávski: “Como é insensato,

quando um ator em cena, sem mesmo acabar de ouvir o que lhe estão dizendo ou

pedindo, sem deixar que um pensamento – mesmo importante – lhe seja plenamente

exposto, apressa-se em interromper a fala de seu comparsa”. (2001, p.162).

Como podemos perceber nos breves exemplos acima citados, o que Stanislávski

propõe como ideia, Boal sistematiza de forma mais prática e direta através de seus

exercícios e jogos para perseguir a realização dessas ideias de modo a facilitar o

trabalho do ator.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das ideias expostas no presente artigo, percebemos que Boal sofreu

grande influência do pensamento de Stanislávski, o que pode ser facilmente percebido

confrontando-se as literaturas desses dois teóricos teatrais. Os jogos e exercícios

sistematizados por Augusto Boal em seu arsenal de jogos do Teatro do Oprimido podem

ser utilizados em paralelo aos objetivos apresentados por Stanislávski quanto ao

trabalho do ator, sendo estes um caminho mais objetivo e de mais fácil aplicação para se

perseguir esses objetivos.

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Augusto Boal desenvolveu um método teatral com um foco de abordagem

claramente definido, o teatro político, trabalhando sobretudo com não-atores, talvez por

essa razão tenha empreendido uma forma mais direta de alcance desses objetivos

propostos por Stanislávski no conjunto de sua obra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008. COSTA, Iná Camargo Costa. O momento Boal. Disponível em: < http://institutoaugustoboal.files.wordpress.com/2012/07/o_momento_boa_inaccosta.pdf>. Acesso em: 20 de junho de 2013. STANLÁVSKI, Constantin. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. _____. A construção da personagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. _____. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. SEVERO, Lessandra Scherer; SILVA, Edinice Mei. Sistema Stanislávski: O processo criativo nas organizações. Disponível em: < http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=273520220002>. Acesso em: 12 de junho de 2013.

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STANISLÁVSKI E SEUS PROCEDIMENTOS: ENTRE PRÁTICA

PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO

O ENCENADOR-PEDAGOGO NA RODA DA TRUPE

Luiz Eduardo Rodrigues Gasperin; UFGD

Resumo: Este artigo realiza um estudo sobre a figura do encenador, a terminologia e a

função dada ao condutor de processo cênicos na contemporaneidade. Com este objetivo,

é avaliado o emprego do termo na historiografia teatral disponível desde o fim do século

XIX, em debate com o desenvolvimento de sua função artística, na orientação da

construção da estética do espetáculo, e pedagógica, na formação e experimentação dos

participantes envolvidos. Com base neste estudo preliminar, voltamos nosso olhar sobre

a prática da Trupe Arte e Vida, grupo localizado no interior do estado de Mato Grosso

do Sul formado por jovens atores. Analisaremos o processo de criação dos espetáculos e

a figura do Encenador e suas práticas pedagógicas.

Palavras-Chaves: Encenador –

O Encenador

O trabalho desenvolvido junto a Trupe Arte e Vida levam a destacar uma figura em

nossa pesquisa: o encenador, que é um dos responsáveis pela montagem cênica dos

espetáculos.

Ao trazer a palavra encenador para este artigo, nos vem à tona outra palavra que é

comumente utilizada para designar o condutor de um processo ou espetáculo: o diretor.

Ao destacar essas duas palavras, deparamo-nos com pesquisas relacionadas à função e

conceitos que as diferem durante toda a história do teatro. Partiremos inicialmente nesta

pesquisa como base o Dicionário do Teatro, escrito pelo francês Patrice Pavis. O

referido autor aponta um possível significado para as palavras diretor e encenador:

Diretor de Teatro – A figura do diretor de teatro, administrador, Intendant alemão ou artista encenador nomeado pelo governo contribui grandemente

não só para a gestão, mas também para a estética dos espetáculos. (PAVIS,

1999, p.100)

Encenador – Pessoa encarregada de montar uma peça, assumindo a

responsabilidade estética e organizacional do espetáculo, escolhendo os

atores, interpretando o texto, utilizando as possibilidades cênicas à sua

disposição. (PAVIS, 1999, p. 128)

Analisando os significados descritos por Pavis, levantamos dois termos que estão

envoltos em uma longa discussão na historiografia teatral, como afirma Robson

Haderchpek:

(...) as palavras diretor e encenador podem significar funções que apresentam

certa distinção. Alguns consideram que o primeiro cuida mais

especificamente da parte prática da encenação enquanto que o segundo se

dedica em princípios à concepção estética do mesmo. (HADERCHPEK,

2009, p.75)

O encenador, portanto, teria a característica de estar como um condutor, um

organizador, um provocador, um questionador, não só no âmbito do ator, mas de todo o

processo que envolve uma montagem artística; O texto, a iluminação, a sonoplastia; o

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cenário, a estética, pensando em todos os elementos da cena de forma mais conjunta em

detrimento de uma visão individualizada, o que não significa que um processo

coordenado por um encenador não se tenha pessoas específicas para cada função, pode-

se ter todas elas no trabalho, o que diferenciara é o olhar sobre a obra em sua totalidade

que se dá de uma maneira diferente.

Na apresentação do livro A linguagem da encenação teatral, de Jean-Jacques

Roubine, Yan Michalski parte para uma discussão do termo metteur em scène, que em

português a palavra que mais se aproxima dessa expressão seria nomear o responsável

pela encenação com encenador.

Na nossa linguagem corrente do teatro, mise em scène costuma ser direção, e

metteur em scène, diretor. Optei na grande maioria das vezes, pelos

vocábulos encenação e encenador, não só por estarem etimologicamente mais

próximos da expressão original, mas também por se aproximarem mais, a

meu ver, do sentido em que o autor emprega. A nossa direção, além de

possuir uma conotação potencialmente autoritária contrária ao espírito que prevalece na obra, refere-se mais de perto ao processo executivo de uma

realização teatral, enquanto a palavra encenação vejo implícito, com maior

força sugestiva, o resultado da elaboração criativa de uma linguagem

expressiva autônoma. (ROUBINE, 1998 apud MICHALSKI, p.13)

Este argumento levantado por Michalski revelando a proximidade da palavra

encenador com o termo francês e problematizando essa questão da rigidez do termo

diretor. Em nenhum momento o processo de criação e a condução do trabalho da Trupe

Arte e Vida ganha uma visão rígida, pelo contrário, uma das nossas prioridades é ser

maleáveis e perceptíveis às sensações e possibilidades apresentadas por cada individuo

do grupo durante seu processo de montagem. Para ampliar a noção conceitual que

ampara o termo encenador, pode-se trazer à tona as considerações de Walter Lima

Torres:

O encenador tenta dar conta de uma cena elaborada como espaço

propiciatório, onde se possa dar lugar ao trabalho mais autônomo dos atores e

promover uma experiência estética junto ao espectador sem ancorar

necessariamente esta experiência no compromisso de apresentar um texto

dramático. Não se está mais no âmbito do espaço representativo ou pré-

formatado das peças classificadas em sub-gêneros, nem tão pouco fixados

naquela decoração cênica que traduzia o meio exato onde evoluíam os tipos

sociais trabalhados pelos autores à maneira naturalista. A condição do espaço

é no caso do encenador completamente alterada, em nome da independência

em relação ao texto como princípio ordenador da representação. O texto

dramático não é necessariamente proibido, mas é certamente flexibilizado na sua relação de interdependência com a cena e a atuação. (TORRES, 2007,

p.118)

As palavras de Torres vem reforçar essa figura como um provocador, possibilitando

ao ator experimentar e criar seu próprio jogo em cena. O texto dramático é visto como

mais um instrumento para a criação da encenação, podendo ser usado ou não.

Continuando nosso estudo sobre o encenador data da transição de XIX ao XX, a

primeira assinatura de um encenador em uma montagem artística. Anterior se usavam

outros termos para esse trabalho como Didascalo, Meneur de jeu, autor-diretor, os

ensaiadores. Mas a partir de Antoine que se instaura a palavra encenador e se considera

esse termo como uma arte que acaba de nascer.

Convencionou-se considerar Antoine como o primeiro encenador, no sentido

moderno atribuído à palavra. Tal afirmação justifica-se pelo fato de que o

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nome de Antoine constitui a primeira assinatura que a história do espetáculo

teatral registrou (da mesma forma como se diz que Manet ou Cézanne

assinam os seus quadros). Mas também por que Antoine foi o primeiro a

sistematizar suas concepções, a teorizar a arte da encenação. (ROUBINE,

1998, p.23-24)

Antoine, ao conseguir estabelecer a encenação como teoria e sistematiza-la, abre os

caminhos para que outros encenadores possam fazer o mesmo. Com o passar do tempo

muito outros vão surgindo, mas um em especifico une sua produção ao processo de

ensino, estamos aqui tratando de Constantin Stanislávski. Neste âmbito a encenação

ganha um caráter formativo, não estava só se pensando em um produto, mas no

processo de construção dele.

O Encenador-Pedagogo

Estamos dialogando agora com dois conceitos: o encenador, como condutor e

provocador de uma montagem, e o pedagogo, profissional que proporciona a

aprendizagem do sujeito em diferentes fases do desenvolvimento humano. Eles são

observados de duas plataformas distintas que, unidas, alcançaram um grande potencial

na história do teatro. Um dos primeiros a realizar a fusão entre a encenação e a

pedagogia é Stanislávski. Segundo Marcos Bulhões Martins:

A pedagogia do teatro e a encenação, quando caminham juntas com o

enfoque da pesquisa, são responsáveis pelo avanço do teatro como ato

cultural e como linguagem artística. Sabemos que os principais avanços do

teatro ocidental foram consequência de processos que uniram investigação

artística e aprendizagem. (MARTINS, 2002, p. 241)

Pensando nessa abordagem, não dissociamos o processo de ensino-aprendizagem,

da prática artística. Seguindo nesse sentido, o pensamento de artista-docente criado por

Isabel Marques: “não abandonando suas possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem

também como função, e busca explícita, a educação em seu sentido amplo”

(MARQUES, 2001, p.112). Narciso Telles também traça sua interpretação sobre esse

assunto: [...] o conceito de artista-docente como uma prática educacional de integração

entre estes dois universos, colocados como distintos, tanto por artistas como

por educadores, mais integrados em sua práxis na construção de um trabalho

artístico-educativo. (TELLES, 2008, p.37)

Enquanto encenador da Trupe Arte e Vida, utilizei de uma prática artística e

educativa para o trabalho com esses não-atores, para juntos entendermos como se dá a

encenação que acontece na rua para um público que se encontra em passagem. Esta

discussão nos faz retornar a história de Stanislávski, pois ele cria uma metodologia para

seu trabalho. Ao longo de sua trajetória, Constantin Stanislávski cria um espaço para

desenvolver seu método e trabalhar sua pesquisa, tornando esse um marco para a

pedagogia do teatro. Um local de experimento e aprendizagem, convidando Meyerhold

para esse trabalho: Sabemos que no princípio do século XX, um dos marcos importantes para a

pedagogia do teatro no ocidente foi quando Stanislavski criou o Teatro-Estúdio, convidando Meyerhold para preparar os jovens atores. (MARTINS,

2002, p. 241)

Como encenador-pedagogo, Stanislávski cria uma prática e escreve sobre ela

posteriormente, para, assim, registrar seus procedimentos e difundir uma metodologia

por ele criada e experienciada com jovens atores, que se tornou uma revolução na

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época. No Brasil desde os catequizadores jesuítas, sempre esteve aliado o teatro a

pedagogia, provocando sempre uma renovação do teatro. Cada encenador tem

ressignificado práticas para auxiliar no processo de formação do ator.

A construção metodológica faz parte do trabalho do encenador, visto que para que

as ideias e propostas pensadas antes da sala de ensaio cheguem para os atores, é

necessário uma sistematização para que elas quando dita ao ator, fiquem claras para que

ele desenvolva o que foi proposto. Os mecanismos usados por cada encenador tem

características próprias e formas diferentes em grupos ou coletivos.

Nas ações realizadas pela Trupe Arte e Vida, em primeiro lugar está a formação,

um trabalho de ensino-aprendizagem para todos os integrantes; partindo de conceitos e

práticas teatrais, questionando sempre nosso objetivo e identificando nossa identidade

como grupo. Segundo as palavras de Carreira (2006): “está prática pedagógica vai além

do objetivo de ensinar técnicas teatrais, ela se articula como discurso que funda um

espaço ideológico e político.” (CARREIRA apud TELLES, 2008, p.33). O espaço que

se cria dentro desse coletivo de pessoas instiga certas discussões em torna da arte, da

sociedade, do mundo; neste falar e ouvir, o diálogo cria outros questionamentos em

torna da vida, a vida na arte, a arte que interfere na vida.

O transmitir para outro, neste caso, o encenador para os não-atores, traz para a

figura do encenador-pedagogo um estudo de seu pensamento, de formas, ações e a

criação de sua metodologia. Gerando desta maneira práticas artístico-pedagógicas.

Como afirma Veiga (1992) “A prática pedagógica é uma dimensão da prática social.”

(p.16)

O encenador-pedagogo deve conhecer sua equipe de trabalho, pois cada membro

apresenta uma característica, uma habilidade, alguns entraves. As dificuldades e

heterogeneidade vão reorganizar as ideias; o projeto artístico não pode se manter a

mercê do que foi pensado anteriormente, adaptando-se ao coletivo. Valorizando, assim,

o trabalho do encenador em seu caráter pedagógico que, ao perceber o meio em que está

inserido, usa do trabalho como provocador para trazer outras possibilidades para a cena

e reorganiza seu pensamento inicial para chegar o objetivo que deseja.

Para o ator, cada momento, cada novo trabalho é um novo conhecimento adquirido.

A Trupe em seus processos de montagens foi guiada para aprender com o outro e com o

espaço rua; Ambos, não-atores e o encenador, aprendem no convívio a arte teatral. As

soluções ou decisões são tomadas no coletivo, guiadas pelo olhar daquele que tem uma

visão total do espetáculo, mas que, em certas circunstâncias, sabe ouvir o grupo e levar

em consideração as várias vozes do processo, que se concretiza em cena, junto ao

espectador.

Para o encenador-pedagogo uma das muitas questões que envolvem o trabalho com

o ator é o espetáculo, hora do contato entre o material praticado e o público. Para esse

condutor, o que importa é o percurso, as práticas elaboradas, o ato criativo do coletivo,

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as técnicas que perpassaram o processo, a formação desses intérpretes, culminando em

um produto ou não.

A decisão do processo, na Trupe, acontece de forma orgânica e simultânea à

criação do espetáculo. O caminho percorrido é paralelo ao da montagem, possibilitando

durante o pensamento para a criação, um momento de estudo para o grupo e formação

para esses não-atores. Dessa maneira, o encenador-pedagogo se apropria dos indícios

que o coletivo levanta durante sua aprendizagem e utiliza-se dele para a produção de

experimentos, como em nosso caso, os espetáculos de Rua.

Considerações Finais: Encenador-Pedagogo e Maestro

O Estar à frente de um coletivo de atores e conduzir uma montagem cênica é se

guiar por questionamentos. Estar sempre de olho no todo e nos detalhes. Perceber

quando é hora de parar e recomeçar em outro caminho. Ter uma ligação com sua equipe

de trabalho; o maestro de todo o grupo. Se permitir ao erro, se reinventando para um

acerto.

Neste artigo investigo o encenador-pedagogo, no processo de montagem da Trupe

Arte e Vida. Nestas páginas pude abrir nosso trabalho para um partilha com o leitor, não

trazendo verdades absolutas, nem o conceito de certo ou errado, mas mostrando o olhar

de um provocador sobre seu próprio processo. Discutindo o termo encenador, trazendo

para dentro da roda do grupo para então poder falar dele em nossa realidade.

Abordar academicamente uma prática cênica desenvolvida por um grupo do interior

de Mato Grosso do Sul não é uma tarefa fácil. No entanto, vejo que é um momento

necessário e de extrema importância para mim, para a Trupe e para o teatro do MS. Este

se torna um registro, uma história que passa do verbo para o papel, não deixando que se

perca com o tempo.

Bibliografia

CARREIRA, André. Teatro de rua: (Brasil e Argentina nos anos 1960): uma

paixão no asfalto; tradução André Carreira – São Paulo: Aderaldo & Rothschild

Editores Ltda., 2007.

HADERCHPEK, Robson Carlos. A poética da direção teatral: o diretor-

pedagogo e a arte de conduzir processos – Campinas,SP: 2009.

MARTINS, Marcos A. Bulhões. Encenação em jogo: Espaço e Fragmentos de

textos como ponto de partida. Dissertação de mestrado, ECA/USP, 2001.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1999.

ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral, 1880-1980;

tradução e apresentação, Yan Michalski. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

1998.

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SANTOS, Maria Thaís Lima. O encenador como pedagogo. São Paulo, 2002.

Tese de Doutorado, USP.

TELLES, Narciso. Ensino do teatro: espaço e práticas – Porto Alegre: Editor

mediação, 2008.

TORRE, Walter Lima. O que é direção teatral? Urdimento, UDESC/Ceart, Vol.

1, nº 9, Dezembro, 2007.

VEIGA, Ilma Passos Alencastro. A prática pedagógica do professor de didática.

2. Ed. Campinas, Papirus, 1992.

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1  

TEMA: Stanislávski e seus procedimentos: entre Prática Pedagógica e formação.

TÍTULO: O Objetivo como operador teórico e prático no trabalho e na

formação do profissional de teatro. Luiz Otavio Carvalho Gonçalves de Souza. Universidade Federal de Minas Gerais.

O texto pretende destacar a operacionalidade do princípio stanislavskiano

denominado objetivo sobre a elaboração e execução de partituras atorais que se estruturam a partir da ação física. Ao se tratar de ação física, pressupõe-se que estão incluídos tanto o trabalho corporal quanto o vocal do ator no que diz respeito a atuação cênica1. Essa instrumentalização repercutirá na determinação e no dimensionamento dos parâmetros corporais e vocais, tais como tempo ritmo2 no movimento e na fala, intensidade3, duração4 temporal e direcionalidade5 espacial.

Além disso, essa reflexão propõe-se a sublinhar que o objetivo é um elemento fundamental e estruturante da ação física. O objetivo serve como um recurso para distinguir a ação física de uma simples atividade ou de um movimento, como teremos oportunidade de exemplificar mais adiante.

Após a discussão sobre a operacionalidade do objetivo e sua característica como elemento estruturante da ação física, será proposta uma fórmula. A importância dessa ferramenta é servir como um instrumento operacional de identificação e formulação de objetivos para cenas em estudo, bem como para o ator utilizar no seu exercício profissional, nos momentos em que ele necessitar compor as várias células de suas partituras de ação física.

Iniciemos nosso estudo com um trecho do “Capítulo 3 – Ação. O ‘se’. As ‘circunstâncias dadas’.” – do livro El trabajo del actor sobre sí mismo en el proceso creador de la vivencia, de Konstantin Stanislavski, traduzido diretamente do russo por Jorge Saura, 2003, para desenvolvermos o nosso raciocínio.

Tortsov6 entrou, olhou para todos nós com atenção e disse: Malolétkova, por favor, suba ao palco. A garota mostrou-se terrivelmente assustada. Lembrou-me um cachorrinho pelo

modo que se lançou a correr pelo chão encerado. Por fim, conseguimos pegá-la e levá-la até Tortsov que ria como uma criança. Ela cobria o rosto com as mãos e murmurava apressadamente:

Oh, queridos, não consigo! Tenho medo! Acalme-se. Vamos representar uma pequena obra. O argumento é disse

Tortsov, sem levar em consideração a agitação da garota : Levanta-se a cortina e você está sentada em cena. Sozinha. Fica sentada e nada mais... Depois, desce a cortina. Isso é tudo. Não se pode imaginar alguma coisa mais fácil, não é mesmo?

Malolétkova não respondeu nada. Então, Tortsov pegou-a pelo braço e, sem dizer uma palavra, levou-a para o palco...

------------------------------------------------------------------------------------------ Subiu a cortina. Malolétkova encontrava-se sentada no meio do palco, próxima ao

proscênio. Com receio de ver os espectadores, ela cobria seu rosto com as mãos. Houve um silêncio que fez com que todos esperassem alguma atitude extraordinária por parte de quem estava em cena. A pausa tinha um efeito dominador.

Provavelmente, Malolétkova percebeu e compreendeu que deveria fazer alguma coisa. Retirou cuidadosamente uma de suas mãos de seu rosto, depois a outra, e deixou a cabeça cair de modo que somente conseguíamos ver o início de sua nuca.

Outra pausa angustiante iniciou. Por fim, percebendo a expectativa de todos, a garota olhou para o público, mas

imediatamente virou-se, como se tivesse ficado cega pelas luzes. Depois, começou a mudar de posição, sentando-se de um modo, depois de outro, adotando poses

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absurdas, tombando para trás, inclinando-se para um lado e para o outro, puxando constantemente sua saia curta e olhando atentamente para alguma coisa no chão.

Finalmente, Tortsov sentou-se ao seu lado, deu um sinal e a cortina fechou. Fui rapidamente até o diretor e lhe pedi que repetisse o mesmo exercício comigo. Ele me colocou no meio do palco. Na verdade, eu não tinha medo. Não era um espetáculo real. Entretanto, sentia-me

incomodado, cheio de impulsos contraditórios, enquanto as sensações humanas que eu buscava em público exigiam o isolamento: uma parte de mim queria entreter os espectadores, enquanto outra parte me ordenava a não prestar atenção neles. Basta movimentar um braço ou uma perna para, de repente, perceber que estava retorcido. O resultado disso é uma pose, como se fosse para uma fotografia.

Estranho! Havia estado no palco somente uma vez. Enquanto não estava no palco, comportava-me naturalmente, mas quando subia, era mais fácil ficar de maneira afetada que simples. A mentira teatral parecia-me mais fácil que a verdade da natureza humana. Disseram-me que meu rosto expressava estupidez, culpa e súplica sucessivamente. Não sabia o quê fazer, para onde olhar. Tortsov não desistia, fazendo-me sofrer.

Depois, todos os alunos realizaram o mesmo exercício. Agora passemos para outra coisa – anunciou Arkadi Nikoláievich –. Mais tarde,

voltaremos a esse exercício e aprenderemos como se sentar em cena. Aprender a sentar-se simplesmente? – perguntamos -. Se isso foi o quê

fizemos... Não – respondeu firmemente Arkadi Nikoláievich -. Vocês não estiveram

sentados. E o quê deveríamos fazer? Para responder, levantou-se apressadamente e se dirigiu naturalmente ao palco.

Sentou-se pesadamente em uma cadeira, como se estivesse em sua casa. Nem fez e nem tentou fazer nada, mas sua simples atitude de estar sentado atraía nossa atenção. Queríamos ver e compreender o quê estava ocorrendo em seu interior. Sorriu e nós sorrimos também. Pareceu-nos pensativo e nós quisemos saber o quê se passava em sua cabeça naquele instante; começou a olhar para alguma coisa e nós sentimos o desejo de saber o quê atraía sua atenção. Tortsov não prestava a menor atenção em nós e, entretanto, sentíamos atraídos por ele. Qual era o segredo? Ele próprio nos revelou.

Tudo que se faz em cena deve ser feito em função de alguma coisa. Por isso, alguém quando se senta em cena, senta-se para uma finalidade e não simplesmente para exibir-se aos espectadores. Isso, porém, não é fácil e é preciso aprender.

Para que o senhor estava sentado? – perguntou Viuntsov. Para descansar-me de vocês e dos ensaios que acabamos de realizar no teatro.

(STANISLAVSKI, 2003, p. 51-53) (Tradução nossa).

Nos dois primeiros exercícios do trecho citado, o de Malolétkova e o do narrador, observamos uma série de movimentos aleatórios, sem propósitos definidos. Está nítido, pelas expressões do próprio texto, que aqueles que os realizam não sabem o quê fazer e para que fazer.

Reparemos, mais detalhadamente, os aspectos do exercício de Malolétkova. A garota:

mostrou-se terrivelmente assustada; cobria o rosto com as mãos; murmurava... não consigo! Tenho medo!; estava agitada; não respondeu nada (após a instrução do quê fazer em cena); com receio de ver os espectadores, cobria seu rosto com as mãos; criou um silêncio que fez com que todos esperassem uma atitude

extraordinária dela; percebeu e compreendeu que deveria fazer alguma coisa; retirou suas mãos do rosto; deixou sua cabeça cair; iniciou outra pausa angustiante; executou uma série de movimentos;

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olhou, virou-se, mudou de posição, sentou-se de um modo, depois de outro, adotou poses absurdas, tombou para trás, inclinou-se para um lado e para o outro, puxou constantemente sua saia curta, olhou atentamente para alguma coisa no chão.

Podemos verificar, a partir dos trechos destacados na lista acima, que os

movimentos realizados e as posturas assumidas pela garota são resultados: de estados de receio, por exemplo: ‘cobria seu rosto com as mãos... não

consigo! Tenho medo!’, etc.; de não saber o quê e para que fazer, por exemplo: ‘percebeu que deveria

fazer alguma coisa...’, mas não sabia o quê e para que, etc. Em outras palavras, a garota fazia movimentos e assumia posturas sem

propósitos, sem objetivos. Por isso, os fatos acima mencionados não possuem qualidades particulares de execução física como: tempo-ritmo, intensidade, duração e direcionalidade.

O mesmo tipo de constatação, ou seja, a ausência de propósitos, de objetivos, naquilo que faz, ocorre também no exercício que envolve o aluno-narrador do texto; apesar de Stanislavski, em diversas passagens de seus textos, insistir em que “tudo que se faz em cena deve ser feito em função de alguma coisa” (STANISLAVSKI, 2003, p. 53). Diz o narrador:

sentia-me incomodado, cheio de impulsos contraditórios; uma parte de mim queria entreter os espectadores, enquanto outra parte

me ordenava a não prestar atenção neles; Basta movimentar um braço ou uma perna para, de repente, perceber que

estava retorcido; O resultado é uma pose; quando subia, era mais fácil ficar de maneira afetada que simples; Não sabia o quê fazer, para onde olhar.

Atitudes hesitantes, contraditórias. Movimentos sem definições claras; portanto,

feitos ao acaso e, consequentemente, desorganizados. As qualidades corporais – intensidade, duração, tempo-ritmo e direções espaciais – não são determinadas.

Por fim, deparamo-nos com o terceiro momento do trecho acima citado, aquele em que Tortsov é interpelado por outro aluno que lhe pergunta: “ E o quê deveríamos fazer?”. Para responder seu discípulo, Tortsov decide ir à cena:

Sentou-se pesadamente em uma cadeira, como se estivesse em sua casa. Nem fez e nem tentou fazer nada, mas sua simples atitude de estar sentado atraía nossa atenção. Queríamos ver e compreender o quê estava ocorrendo em seu interior. Sorriu e nós sorrimos também. Pareceu-nos pensativo e nós quisemos saber o quê se passava em sua cabeça naquele instante; começou a olhar para alguma coisa e nós sentimos o desejo de saber o quê atraía sua atenção. Tortsov não prestava a menor atenção em nós e, entretanto, sentíamos atraídos por ele.

Destaquemos: Tortsov sentou-se pesadamente; sua simples atitude de estar sentado atraía nossa atenção; sorriu e nós sorrimos também; pareceu-nos pensativo e nós quisemos saber o quê se passava em sua

cabeça naquele instante;

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começou a olhar para alguma coisa e nós sentimos o desejo de saber o quê atraía sua atenção;

não prestava a menor atenção em nós e, entretanto, sentíamos atraídos por ele.

Atitudes e movimentos visíveis e definidos. Tortsov sentou-se com uma qualidade de peso e intensidade observável: pesadamente. O fato de estar sentado e atrair a atenção dos espectadores deve ter sido resultado de uma ação cuja duração foi longa o suficiente para que fosse observada e percebida. O mesmo deve ter acontecido com sua ação imóvel de ficar pensativo. Além disso, nesta reação de ficar pensativo, há a direcionalidade do olhar e do corpo que ajudaram a sugerir uma atitude observável de ocupar uma dimensão além do aqui e agora.

Tortsov, também, realizou alguns movimentos bem determinados: sorriu e olhou para alguma coisa. O sorrir, com certeza, em um tempo-ritmo mais rápido e com uma duração mais curta, pois houve uma reação definida dos espectadores imediatamente. Houve o olhar para alguma coisa. Esse ‘olhar para alguma coisa’ deve ter trabalhado com uma duração longa e uma direcionalidade espacial pouco definida, pois causou nos observadores uma curiosidade de saber o quê atraía a atenção de Tortsov.

Esses aspectos corporais de Tortsov demonstram-nos, então, qualidades físicas explícitas e delineadas com visibilidade de tempo-ritmo, intensidade, duração e direcionalidade espacial. Qualidades que estão ausentes nos movimentos e nos corpos de Malolétkova e do aluno-narrador. Por causa de tudo isso, podemos, finalmente, concluir que há uma intencionalidade naquilo que é feito e, consequentemente, afirmar que Tortsov sentou-se para realizar algum objetivo. Não conseguimos, ainda, reconhecer qual é, mas, intuímos que há algo passível de investigação em relação a esse conjunto de características por ele adotadas e visíveis para o espectador. Instigam nossa atenção investigativa de espectador por se constituírem com qualidades tão firmes, sólidas e observáveis.

Assim, quando questionado por Viuntsov, Tortsov confirma nossa suposição e, finalmente, esclarece-nos:

Tudo que se faz em cena deve ser feito em função de alguma coisa. Por isso, alguém quando se senta em cena, senta-se para uma finalidade e não simplesmente para exibir-se aos espectadores. Isso, porém, não é fácil e é preciso aprender. Para que o senhor estava sentado? – perguntou Viuntsov. Para descansar-me de vocês e dos ensaios que acabamos de realizar no teatro.

Havia, de fato, um para quê: sentar-se para descansar-se dos alunos e dos ensaios que acabaram de

realizar no teatro. Este objetivo – ‘para descansar-se dos alunos e dos ensaios que acabaram de

realizar no teatro’ – foi o componente responsável por dimensionar as qualidades corporais e os movimentos assumidos por Tortsov em sua ação de ‘sentar-se’. Por isso, o seu ato de sentar-se não se configurou em corpo e movimento de qualquer maneira, com quaisquer qualidades físicas; mas de acordo com a finalidade para a qual ele havia se sentado, ou seja, para descansar-se dos alunos e dos ensaios. Sua tradução corporal para tal finalidade configurou-se em um corpo pesado, sustentado em uma duração de repouso relativamente longa, com direcionalidades espaciais relaxadas e com um tempo-ritmo muito lento, próximo da imobilidade. Qualidades, provavelmente,

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diferentes às que ele assumiria caso seu objetivo fosse: para observar as cenas de seus alunos em um ensaio.

Por todas essas razões, sentar-se deixou de ser uma atividade, um movimento. O objetivo transformou esse sentar-se em ação física. Observe com clareza na seguinte fórmula:

sentar + se + para + descansar + se + dos alunos + ensaios [verbo + comp.] + [para + verbo + complemento(s)] {ação} + {objetivo}

Adicionemos a essa discussão mais algumas características importantes sobre o

objetivo. Ele é uma ferramenta do ator, para o seu trabalho de composição cênica. Stanislavski diz sempre que ‘tudo que se faz em cena deve ser em função de alguma coisa’; mas, não há registro textual em que ele diga que o espectador tem que saber dizer esse objetivo detalhadamente. Isso quer dizer que o espectador não tem a menor necessidade de identificar o objetivo do ator. Não é sua identificação que fará com que a ação física seja realmente construída e bem executada, nem é seu reconhecimento do objetivo que garantirá que a cena realmente vai acontecer bem sucedidamente. Mas, é a consciência clara e precisa do ator de seu objetivo; é a habilidade e a competência do ator em traduzir seu objetivo em qualidades corporais e vocais adequadas comunicativa e esteticamente à cena, que farão com que o resultado artístico cênico aconteça. O espectador, por fim, receberá o produto do trabalho atoral, sob a forte influência do objetivo, em forma de uma atuação informacional e sensorialmente eficiente, que o atravessará de alguma maneira artisticamente eficaz.

Para corroborar a conclusão de que sentar-se deixou de ser uma atividade, um movimento, e transformou-se em ação física, trazemos algumas palavras de Grotowski, em uma de suas conferências:

O que é preciso compreender imediatamente é o que as ações físicas não são. Por exemplo: não são atividades. [...] Mas uma atividade pode se transformar em uma ação física. Por exemplo, vocês me fazem uma pergunta que me deixa bastante sem graça (como normalmente acontece), então, vocês me fazem essa pergunta e eu tento ganhar tempo. Nessa situação, começo a preparar firmemente meu cachimbo. Agora minha atividade se torna uma ação física, porque se torna a minha arma: “Sim, estou realmente muito ocupado, preciso preparar meu cachimbo, limpá-lo, acendê-lo, depois disso tudo eu vou responder a vocês...”7

Em outra conferência8, Grotowski complementa dizendo que nem todo movimento é ação física. Entretanto, um movimento que é realizado envolvendo um ciclo de pequenas ações, isto é, um movimento que se constitui de uma complexidade de pequenos detalhes acionais realizados com qualidades específicas – como aquele sentar-se de Tortsov que acabamos de analisar –, transforma-se em ação física. Isso porque esse movimento torna-se uma arma, serve para alguma coisa específica.

Recuperando os exercícios de Malolétkova e do aluno-narrador, podemos, então, presumir que se eles tivessem usado seus corpos e realizado movimentos para atingirem um objetivo firmemente e solidamente (como uma arma), eles, também, teriam

criado um ciclo de pequenas ações;

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dimensionado suas qualidades corporais de acordo com as circunstâncias dadas e

conseguido, enfim, transformar suas atividades e seus movimentos em ações físicas.

Entretanto, o ato de Malolétkova sentar-se em cena não constituía uma arma,

estava totalmente sem serventia. A situação do aluno-narrador não era diferente; foi literalmente confessada como sendo sem propósito por meio de suas palavras: “Não sabia o quê fazer, para onde olhar.” Assim, não só se sentaram de qualquer modo, com qualquer ritmo, mas também se encontraram confusos e sem referências enquanto estiveram em cena.

Percebemos, nitidamente, que a função do objetivo é, então, delimitar e especificar a meta a ser atingida com a ação do verbo inicial – aquele que o ator de fato executa; no caso de Tortsov, esse verbo era o ‘sentar-se’. O objetivo, ‘para descansar-me de vocês e dos ensaios que acabamos de realizar no teatro’, orienta as características rítmicas, de intensidade e de percurso com que essa ação de ‘sentar-se’ deve ser moldada. Nessa função de vetorizar, o objetivo revela, inclusive, pequenas ações e/ou movimentos que devem ser adicionados a essa ação, a esse verbo principal, para que ela consiga plena e visivelmente atingir sua meta. Assim, concluímos que o objetivo serve para dimensionar os parâmetros corporais e vocais do ator na elaboração e execução da ação física através do verbo principal, além de se constituir como elemento caracterizador dessa ação física.

                                                            1  O  trecho  selecionado  para  estudo  neste  artigo  tem  o  trabalho  corporal  como  predominante. Entretanto, todo o raciocínio desenvolvido nessa análise adequa‐se também para o trabalho vocal em ação física. 2 O tempo que pode ser medido desde uma velocidade lenta até uma bem rápida. O ritmo traduzido em sensação interior promovida por esse tempo exterior e pelas circunstâncias dadas. 3 Grau de energia; algo realizado de uma maneira forte ou de uma maneira suave ou fraca. 4 Períodos de tempo mais prolongados ou mais curtos na realização de uma ação. 5 Pontos e/ou regiões do espaço para onde o corpo e/ou o olhar e/ou a voz se dirigem. Essas noções espaciais  localizam‐se nos planos alto, médio e baixo; nas  linhas horizontais e diagonais dos diversos planos espaciais. 6 Nessa versão, em espanhol, Stanislavski é referido como Tortsov e Arkadi Nikoláievich alternadamente. 7  Jerzy  Grotowski,  conferência  em  Santarcângelo,  Itália,  18  de  julho  de  1988,  não  publicada.  In: RICHARDS,  2012,  p.  85.  (Grifos,  em  negrito,  nossos). Outra  tradução,  também muito  esclarecedora, dessas palavras grotowskianas foi realizada por Luís Otávio Burnier em seu livro A arte de ator, 2001, p. 32 e 33: “Mas uma atividade pode se transformar em ação física. Por exemplo, se vocês me colocarem uma pergunta muito embaraçosa (e é quase sempre assim), eu tenho de ganhar tempo. Começo então a preparar meu  cachimbo de maneira muito  “sólida”. Neste momento vira ação  física, porque  isto me serve.” (Grifos nossos). 8 Jerzy Grotowski, conferência em Liège, Cirque Divers, Bélgica, 2 de janeiro de 1986, não publicada. In: RICHARDS, 2012, p. 86 e 87. 

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BIBLIOGRAFIA. BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas, SP:

Editora da Unicamp, 2001.

RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. Trad. do inglês: Patrícia Furtado de Mendonça. São Paulo: Perspectiva, 2012.

STANISLAVSKI, Konstantín. El trabajo del actor sobre sí mismo en el proceso creador de la vivencia. Traducción: Jorge Saura. Barcelona: Alba Editorial, 2003.

 

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STANISLÁVSKI E SEUS PROCEDIMENTOS: ENTRE PRÁTICA PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO

A ARTE DA OBSERVAÇÃO

Scarlett Siqueira do Valle; Universidade de Brasília

RESUMO Este artigo tem como objetivo a reflexão sobre uma ferramenta fundamental para a criação do papel, a observação. Stanislávski dizia que o ator deveria se preocupar em estudar o comportamento humano, pois era um dos seus instrumentos mais importante na arte do ator. Eugênio Kusnet, discípulo de Stanislávski, era um estudioso e observador da vida utilizava está técnica em conjunto com a imaginação ativa. Partindo do princípio que o ator deve exercitá-la constantemente no seu treinamento diário incorporá-la com ajuda da imaginação ativa e da improvisação em exercícios para a construção da personagem. O ator é conhecedor do ser humano como nenhum outro seria capaz, porque ele dará a vida a uma enorme variedade de personagens ao longo do seu trabalho, portanto a arte da observação será um coringa para sua preparação.

Palavras-chaves: Constantin Stanislávski; Eugênio Kusnet; Preparação do Ator; Observação; Construção da Personagem.

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O ESTUDO DA VIDA HUMANA

“Estudar os processos naturais que reagem à ação da vida real para depois transpor os conhecimentos adquiridos para o trabalho de teatro”. Constantin Stanislávski

Estudar as leis da vida, as ações físicas que afetam involuntariamente a conduta humana na qual despertam sensações e emoções. Este estudo parte da arte da observação.

Um ator deve treinar-se para observar tudo e a todos o tempo todo, depois anotar a suas observações e sensações no seu caderno como um detetive em busca da prova do crime ou do criminoso. Sobre a arte da observação do o Dr. Joseph Bell:

O escritor de Sherlock holmes, Dr. Arthur Conan Doyle havia sido médico antes de dedicar-se à literatura. Entre 1876 e 1881, estudou medicina na Universidade de Edimburgo (Escócia), onde conheceu Dr. Joseph Bell, que foi seu professor. O mestre precursor da medicina forense era capaz de deduções e observações que deixavam perplexos os jovens estudantes, ele conseguia dizer a nacionalidade e ocupação de um paciente apenas em observá-lo (detalhes como sotaque, roupas, calos e sujeira nas botas faziam a diferença).

“As ‘capacidades intuitivas’ do Dr. Bell ao lidar com seus pacientes eram, como seu discípulo, o Dr. Doyle, nos conta nas páginas da Strand Magazine, ‘simplesmente maravilhosas’. O caso numero 1 se destacaria. ‘Entendo’, disse Mr. Bell, ‘o senhor está sofrendo por causa da bebida. Chega a carregar um frasco no bolso interno de seu paletó.’ Outro caso chamaria a atenção. ‘Sapateiro, pelo que vejo’. Em seguida se viraria para os alunos e lhes mostraria que a parte de dentro do joelho das calças do homem estava gasta. Era ali que o homem pousava a pedra em que batia o couro – peculiaridade só encontrada entre sapateiros. Tudo isso me impressionou muito. Ele estava continuamente diante de mim – seus olhos vivos, penetrantes, nariz de águia, e traços marcantes. Sentava-se em sua cadeira com os dedos unidos – era muito hábil com as mãos – e apenas olhava para o homem ou mulher diante de si.” (DOYLE, 2010)

Sherlock holmes da vida real chamaria Dr. Bell, aquele que via numa multidão

de pessoas vestidas da mesma maneira e com comportamentos aparentemente iguais, traços peculiares como maneirismo hereditário, ocupação ou falta dela, educação, ambiente que esta pessoa vive e/ou estava, pequenas “marcas” que poderiam moldar o indivíduo deixando impressões para um olhar mais atento e observador. OBSERVAÇÃO NO PROCESSO CRIATIVO DO ATOR

Stanislávski dizia que o ator deveria se preocupar em estudar o

comportamento humano, pois era um dos seus instrumentos mais importante na arte do ator. Estas observações servirão como base para a criação do papel ou para seus exercícios de imaginação e improvisação.

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A observação é uma questão de prática e de exercício constante até que ela vire um hábito e sua atenção fique aguçada para tudo que passa ao seu redor. O ator que queira aprender essa prática deve começar observando sua própria área de conhecimento e convívio, por exemplo as pessoas que moram na sua casa ou no seu bairro, seus hábitos, a estrutura do corpo, dos gestos e como se comportam em certas situações. Anote todas estas observações e depois tente colocá-la na sua partitura corporal com ajuda da imaginação e da improvisação, faça outras anotações também desses exercícios e quando precisar compor uma personagem com características parecidas você terá um caminho para a construção.

Eugênio Kusnet era um observador nato, conta um dos seus discípulos que estava conversando com o mestre quando o mesmo olhando para janela disse: - A vizinha da frente não cuidou das plantas hoje, será que ela está doente? O discípulo disse: - Ela pode ter atrasado ou vai cuidar depois… Kusnet disse: - Não! Eu observo que todos os dias nessa mesma hora ela cuida das plantas… Ela deve estar doente!

O ator deve ter uma “macro-observação” no seu círculo de atenção, exemplo: Você esta num restaurante e observar toda a circulação, movimentação e a composição de todas as pessoas ou observando todo o quadro “A Escola de Atenas” do pintor Rafael Sanzio. Este pode ser um ótimo exercício de composição de cena tanto para um diretor quanto para o ator não se perder em pequeno detalhes e observar o todo. Mas o mesmo ator deve ter uma “micro-observação” no seu círculo de atenção, exemplo: Neste mesmo restaurante que você fez uma visão geral, comece com as mesas ao lado, o garçom arrumando a mesa até focar nos pequenos detalhes. Como exemplo, o garçom que está colocando os talheres na mesa, deixa uma faca cair no chão, olha discretamente para ver se alguém está olhando, depois pega do chão e coloca de volta na mesa que está vazia. No exercício do quadro “A Escola de Atenas” do pintor Rafael Sanzio que você observou todo, foque nos dois personagens do centro, o personagem mais velho de túnica vermelho e barbas brancas apontando para o céu e segurando o Timeu é o Platão e o personagem mais novo de túnica azul e com as mão para baixo e segurando a ética é Aristóteles.

A observação de pequenos detalhes é fundamental para o retoque final da construção de uma personagem, como por exemplo, segurar um cigarro (Uma madame segura o cigarro de uma forma totalmente diferente de uma presidiária). Para a observação de pequenos detalhes também é importante que o ator estude o comportamento humano e os códigos do corpo. Como por exemplo, quando uma pessoa está com a região do abdome (plexo solar) “fechado” e retrai o corpo para trás quer dizer que ela está fechada para você porém se a pessoa “abre” a região do abdome (plexo solar) e com a posição do corpo para frente quer dizer que esta pessoa está aberta para você. O corpo diz muito e o ator precisa saber identificar esses códigos e usá-los para preparação da personagem. FERRAMENTAS COMPLEMENTARES PARA A ARTE DA OBSERVAÇÃO

Stanislávski insistia constantemente que a observação era fundamental para a

imaginação do ator. “ – Aprendam a olhar a vida – aconselhava Kostantín Serguéyevich -. Olhar a vida é para o ator uma arte. Agora vocês vão aprender a ‘devorar conhecimento’” (KNEBEL, 2000 p.90)

É importante ressaltar que o ato de observar é apenas uma ferramenta

incompleta para a preparação e deve ser completada com outras ferramentas. Como

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por exemplo, “como se fosse” é uma ferramentas importantes do sistema Stanislávski e deve ser treinada diariamente pelo ator. O “se” é um condicionamento mágico, que quer dizer apenas o “como se fosse”. Há situações que ficam fora da experiência pessoal do ator, nesses casos ele trabalha com o “se” ou “como se fosse” como se já as tivesse experimentado. O “se” dá um empurrão na imaginação dormente, ao passo que as “circunstâncias dadas” constroem a base para o próprio “se”. E ambos ajudam a criar um estímulo interior. Para começar a agir “como se fosse” a personagem é necessário, em primeiro lugar, a máxima clareza que é obtida por meio das seguintes perguntas: Quem é a personagem? Quais são as suas características? Como ele é? Onde ele vive e para que vive? E o que ele quer? Há situações que ficam fora da experiência pessoal do ator, nestes casos ele deve trabalhar com esta ferramenta, o “como se fosse” para ajudá-lo a despertar a imaginação, ao passo que as circunstâncias dadas constroem a base para o próprio “como se fosse” que automaticamente desperta a vontade de agir. Depois de recorrer ao “como se fosse” e de se perguntar: Como eu estaria agindo nessas condições?” o ator irá procurar na visualização essa ação, podendo servir-se de exercícios para melhorar sua vivência. Um exercício interessante é observar uma pessoa que esta numa situação complicada, como uma mulher que está atrasada, mas ainda sentada fazendo tratamento no cabelo e maquiagem e você observa que ela recebe vários telefonemas possivelmente do marido ou dos filhos. Esta é uma situação real mas você pode utilizar todo este contexto e imaginar uma situação totalmente diferente ou uma história absurda, como se esta mulher não suporta-se mais o marido e foi fazer tratamento no cabelo e maquiagem naquele horário só para atrasá-lo na bodas de diamante dos pais dele. Quanto mais detalhes o ator colocar nessa imaginação mais rico será o exercício. Importante depois dessas observações anotadas o ator criar improvisações com ajuda da imaginação ativa.

Eugênio Kusnet escreveu esclarecendo o verdadeiro significado do termo “se eu fosse”:

“Nunca é demais insistir em esclarecer o verdadeiro significado de certos termos do Método. Stanislávski foi frequentemente acusado de procurar impor ao ator a aceitação total da realidade da vida do personagem, aquela mística metamorfose do ator em personagem. O próprio Bertolt Brecht fez essas acusações. Mas se isso fosse verdade, Stanislávski usaria seu Método o termo ‘EU SOU’ e não ‘SE EU FOSSE’. Esse condicional é muito significativo. Ele presume a aceitação simultânea da realidade – eu, o ator que sou, e do imaginário – o personagem que eu, o ator poderia ser”. (KUSNET, 1975 p.38).

A ferramenta mais importante para ser incorporada com a observação é a imaginação, pois será imprescindível para a construção da personagem. É uma espécie de coringa para o ator, mas ele só conseguirá dominar organicamente a técnica mediante vários anos de prática. Eugênio Kusnet, no livro “Ator e Método”, escreve que o exercício de visualização tem que fazer parte da vida inteira do ator, assim transcrito: “Esses exercícios devem transformar-se em ginástica diária de imaginação.” (KUSNET, 1975 p.45)

Existem dois tipos de imaginação: imaginação passiva e imaginação ativa. A imaginação passiva é quando o ator visualiza situações, lugares, pessoas, gostos, cheiros, entre outros, apenas sentado ou deitado, de modo que a imaginação só ocorra dentro da sua mente, deixando o seu corpo passivo. A imaginação ativa é aquela em

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que vê algumas situações, lugares, cheiros, gostos, pessoas, entre outros, mas começa a agir de forma ativa, com corpo e mente juntos. Nos livros de Stanislavski há uma série de sugestões para o desenvolvimento da imaginação por exercícios, para que o ator trabalhe e desenvolva-se por si próprio. Toda criação da imaginação do ator deve ser minuciosamente elaborada e sólida, erguida sobre uma base de fatos. Deve estar apto a responder a todas as perguntas (quando, onde, porque e como). Ela é usada continuamente: nada é “de verdade” no palco.

A imaginação é um dos fatores principais é um diferencial para a preparação dos atores no sistema de Stanislavski, porém em outros sistemas ela não é tão desenvolvida. Por meio dela podemos preparar e dirigir o ator em peças que não sejam o referencial do sistema como, por exemplo, as obras realistas ou surrealistas.

Kusnet cita um caso que leu num dos livros de Stanislavski sobre uma menina de 4-5 anos que iria fazer parte de uma cena em que um casal, em vias de se separar, discute os últimos detalhes da separação. Nesse momento sua filha, com uma boneca na mão entra e pergunta ao seu pai que remédio deve dar à sua “filhinha doente”. O pai aconselha uma aspirina e ela sai. Essa interferência da menina modifica tudo na vida do casal: eles se reconciliam.

“A menina que devia fazer esse papel chegou ao teatro em companhia de sua mãe, na hora do ensaio. O contra-regra, por falta de uma boneca, improvisou uma com um pedaço de lenha enrolado em seda vermelha e, ao entregá-lo à menina disse: ‘Essa aqui é sua filha, ela está doentinha’. Stanislavski conta que ‘ao receber a boneca tão grosseiramente improvisada, a menina a tomou nos braços com o mesmo cuidado com que só uma verdadeira mãe tomaria sua filha doente’. O contra-regra, indicando os dois atores em cena, continuou: ‘Aquele dois são teu pai e tua mãe’. Apesar da presença de sua mãe verdadeira, a menina não fez a mínima objeção e aceitou incontinente seus novos pais. ‘Vá lá’, disse o contra-regra, e ‘Diga ao seu pai que a sua filhinha está doente. Ele vai te aconselhar um remédio e aí você volta para cá’. A menina entrou em cena, puxou a manga do ator e disse: ‘Papai, ela está doente’. O ator respondeu de acordo com o texto: ‘Dê uma aspirina para ela’. Mas então, em vez de sair, a menina disse: ‘Não!’ O ator insistiu sorrindo: ‘Pode dar aspirina que é bom!’ Mas a menina disse confidencialmente: ‘Precisa fazer lavagem!’ Stanislavski foi obrigado a incluir isso no texto porque a menina não mudava a sua convicção de que sua filha estava com dor de barriga. Não é um exemplo maravilhoso de inspiração desses melhores atores do mundo, as crianças?” (KUSNET, 1975 p.10)

O uso do “se” é sempre utilizado com a Imaginação para despertar a vontade

de agir. Quando o ator vê coisas imaginárias, irreais, deixa de ver as coisas reais que estão diante dele, e vice-versa. Ewerton de Castro explica como a aplicação da visualização ou imaginação é utilizada num espetáculo, do manuseamento de objetos até na composição de cenários.

“Quando eu ainda tinha a escola de teatro, eu montei com bons ex-alunos da escola, um espetáculo que chamava “Nossa Pequena Cidade” que era

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uma adaptação que eu fiz da “Nossa Cidade” do Thornton Wilder e eu convidei alguns atores já “tarimbados” para se misturarem com esses novos que estavam começando e que ainda não tinham uma carreira profissional de teatro, para que eles trocassem experiências, (...) e eu ensaiei “Nossa Pequena Cidade” usando o meu método e era de um realismo, de um super, hiper-realismo, uma peça hiper-realista, sem cenário, sem objeto de cena, tudo feito na mímica (imaginação). O cenário, você anda pela casa, pela rua, não existe nada, é palco livre. A gente fazia isso na “Cozinha”, meu primeiro espetáculo profissional dirigido pelo Antunes Filho, que era uma imensa cozinha com trinta pessoas, trinta atores dentro da cozinha e só tinha as panelas, fogões, as pias, mas o alimento não existia, era pura imaginação e, por exemplo, eu tirava escama de peixe, cortava o peixe, tirava espinha de dentro, tudo sem peixe e fritava passava na farinha, todo mundo, cada um, eu tô falando do peixe porque (era) eu que cuidava da banca dos peixes. – Linguado, Solta o Badejo, Solta.... Você acredita tanto que se torna realidade!”(DO VALLE, 2008 p. 50)

Isso mostra que podemos manipular a visão física à nossa vontade e no sentido de transformá-la em visão interior, que Stanislávski chamou de visualização. Depois de construir a “circunstância proposta” e de utilizar o “se”, o ator vai procurar visualizar essa ação.

“A capacidade de usar a visualização é primordial na arte de teatro, pois ela equivale à capacidade de usar a sua imaginação, sem o que nenhuma arte existe. Por isso não e suficiente, compreender a mecânica da visualização e fazer algumas experiências próprias para constatar a validez desse elemento. Na realidade, os exercícios de visualização devem tornar-se parte integrante da vida inteira do ator, a começar pelos exercícios mais primitivos, e a terminar por complicadas ‘visões cósmicas’ dos personagens criados pelos dramaturgos geniais. Esses exercícios devem transformar-se em ginástica diária de imaginação. Sem ela o ator não poderá exercer a sua arte, como não poderá um dançarino, um cantor, um pianista, sem fazer exercícios diários de dança, vocalizes, solfejo, etc”. (KUSNET, 1975 p.45-46)

Conclui-se que este estudo possa ser utilizado para ajudar o ator no processo

da construção da sua personagem, incorporando a ferramenta da observação na sua prática diária. A arte da observação é um conhecimento específico que a maioria das pessoas gostariam de ter, além de ser uma habilidade essencial para os atores deve ser exercitada no seu cotidiano. O ator conhece o ser humano como nenhum outro seria capaz de conhecer, porque ele dará vida a uma enorme variedade de personagens, portanto a arte da observação será um coringa para seu trabalho.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. São Paulo: Ed. Zahar, 2010. DO VALLE, Scarlett S. — Método Stanislavski para teatro e audiovisual — Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Rádio e TV da Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo/SP. 2008. GORCHAKOV, Nikolai M. Stanislavski dirige (Stanislavski in reherseal: the final years). In: GORCHAKOV , Nikolai M.; TOPORKOV ,Vladimir O. Constantin Stanislavski – El proceso de dirección escénica: apuntes de ensayos. Ciudad de México: Escenología, A. C, 1998. KNÉBEL, Maria Osipovna. El último stanislavsky. Madrid: Ed Fundamentos, 1996. _______________. La palabra en la creación actoral. Madrid: Ed Fundamentos, 2000. _______________. Poética de la pedagogia teatral. México: Ed. Siglo Veintiuno, 1991. KUSNET, Eugênio. Ator e Método. Rio de Janeiro: Coleção Ensaios – MEC – Serviço Nacional de Teatro, 1975. _______________. Iniciação à Arte Dramática. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1968. STANISLAVSKI, Constantin. A Construção do Personagem. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2004. ________________. A Criação de um Papel. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2007. ________________. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2004. ________________. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso creador de la vivencia. Barcelona: Ed. Artes Escenicas, 2007. ________________. Manual do Ator. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001. ________________. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1989. ________________. Preparacion Del Actor. Buenos Aires: Ed. Psique, 1954. TAKEDA, Cristiane Layher. O cotidiano de uma lenda – Cartas do Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.

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STANISLAVSKI E SEUS PROCEDIMENTOS: ENTRE PRÁTICA PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO.

A VISUALIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE ANÁLISE ATIVA NO DESENVOLVIMENTO DA FALA CÊNICA

Vinícius Assunção Albricker (Universidade Federal de Minas Gerais)1

Nossa arte exige do ator que toda sua natureza intervenha ativamente, que se entregue de corpo e alma ao seu papel.

(Stanislavski)2

A reflexão proposta neste artigo parte da seguinte questão: quais procedimentos podem contribuir para o aprendizado da fala como uma ação cênica, como um tecido de imagens e sonoridades costurado por jogos de tensões dramáticas?

A fala como uma ação cênica é também uma ação física. A ação física, em sua concepção elementar, pode ser definida como uma reação que o ator desenvolve - em corpo, em voz e no espaço -, de acordo com as circunstâncias dadas, com objetivo, para causar transformações e para afetar o outro e a si mesmo sensorialmente.3

O mestre russo Konstantin Stanislavski propõe, com sua Análise Ativa, que o ator comece a estudar o texto sem a preocupação de dizer literalmente as palavras do autor, mas com o desafio de, utilizando suas próprias palavras, apropriar-se dos acontecimentos do conflito dramático. Assim, improvisar a partir de visualizações provocativas, sugestionadas, por exemplo, pelo espaço cênico e seus objetos, previamente organizados em função das circunstâncias dadas pelo texto, instigará o ator a falar com qualidades sonoras adequadas às metas comunicativas da cena. Dizer as verdadeiras palavras do texto será uma etapa posterior à da criação, pois para que estas soem vivas e orgânicas é preciso antes acender a imaginação e criar visualizações que atuem como chamariz, como iscas, para o sentimento.

A Análise Ativa compõe-se de estratégias para o jovem ator aprender o ofício na ação, sem que se anule a possibilidade também do exercício mental reflexivo: será necessário voltar ao texto para avaliar a relação entre as improvisações realizadas e o contexto da obra, entendendo a lógica entre seus acontecimentos; depois, volta-se à improvisação, agora revigorada por um melhor entendimento. O importante é que esse entendimento comece pelos sentidos, pela via sensorial do corpo.4

Essa reflexão pretende contribuir para a formação de um ator com consciência expandida5 no que se refere a uma fala cênica viva, repleta de sutilezas e matizes expressivos. Estudaremos abaixo como a visualização pode contribuir como elemento catalisador desse aprendizado.

No capítulo 4 - A imaginação, do livro O trabalho do ator sobre si mesmo no processo criador da vivência, de Stanislavski, há uma nota do tradutor espanhol Jorge Saura na qual sintetiza-se o significado e a função do conceito de visualização:

O termo "visualização" não expressa completamente a ideia do autor, pois se refere à reprodução imaginária de sensações não só visuais, mas auditivas, olfativas, gustativas e táteis. Ao falar de "película de visualizações", Stanislavski se refere à recordação ou à criação

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imaginária de uma série mais ou menos longa de sensações que podem unir-se argumentalmente e que devem estimular o comportamento do ator em uma determinada direção.6

Para uma compreensão mais aprofundada da visualização e de sua importância para a formação do ator, estudemos detalhadamente o trecho acima citado.

Na primeira afirmação, Saura afirma que a visualização se refere à reprodução imaginária de sensações visuais, auditivas, olfativas, gustativas e táteis. Essa definição condiz claramente com o pensamento de Stanislavski quando diz, por exemplo, que "falar é desenhar imagens visuais"7 e que, portanto, deve-se falar em cena "tanto aos ouvidos como aos olhos."8 Para o mestre russo, no teatro, as palavras devem despertar "sensações visuais, auditivas e de outros tipos, no ator, nos seus partenaires e através destes no espectador."9 E ainda, no capítulo 6, Fala Cênica, do livro O trabalho do ator sobre si mesmo no processo criador da encarnação, de Stanislavski, em nota do mesmo tradutor, nos é revelada uma anotação feita à mão pelo autor, em seu original: "Deve ser dito de uma vez por todas: as visualizações se combinam com representações auditivas, gustativas, táteis e de outros tipos."10 Para Stanislavski essa questão é fundamental na fala cênica, pois:

Uma palavra pode excitar nossos cinco sentidos. É suficiente recordar o título de uma obra musical, o nome de um pintor, de uma comida, do perfume preferido, etc., para evocar imagens auditivas e visuais, sabores, aromas e sensações táteis sugeridas pela palavra.11

Portanto, visualizar significa ver com todos os sentidos, ver com o engajamento de todo o corpo. Aqui vale alertar que movimento do corpo e movimento da voz formam uma unidade orgânica no sistema desenvolvido por Stanislavski. Em seus textos, convém entender a separação entre corpo e voz como uma estratégia didática para o treinamento de habilidades - corporais e vocais - indispensáveis ao exercício da profissão de ator. Podemos concluir de antemão, através do raciocínio de Stanislavski acerca da visualização, que a fala cênica compõe-se não somente de palavras de um texto dramático traduzidas exclusivamente pelo som da voz, mas faz-se necessário o empenho de todo o corpo para que essa fala seja uma ação autêntica, uma ação física.

A reprodução imaginária refere-se ao mágico "se", palavra que engendra suposições e que, para Stanislavski, é o início de toda criação artística. "A imaginação desenha o que na vida real é irrealizável"12. Esse irrealizável mobiliza o artista para uma criação ativa, profunda e transformadora.

A imaginação, através do "se", formula perguntas, tais como: QUEM? QUANDO? ONDE? POR QUÊ? PARA QUÊ? e COMO? Essas perguntas, bem como suas respostas, devem ser específicas, intimamente ligadas ao contexto da peça, pois "é inútil fantasiar 'em geral', sem um tema firmemente formulado."13 E ainda, essas perguntas precisam ser respondidas através da ação e não apenas mentalmente.

Seguindo, ainda, a explicação de Saura, nos é informado que uma película de visualizações é uma série de sensações criada pela imaginação, "que podem unir-se argumentalmente e que devem estimular o comportamento do ator em uma determinada direção."14

María Ósipovna Knébel, discípula de Stanislavski, escreveu o livro A Palavra na Criação Atoral, no qual há um capítulo intitulado Visualização. Nesse capítulo, a autora

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explica o que seu mestre entendia por aquilo que nomeou película cinematográfica do papel ou subtexto ilustrado:

Stanislavski propunha aos atores treinar as visualizações de momentos isolados do papel, acumular pouco a pouco essas visualizações, criar lógica e consequentemente uma "película do papel".15

Uma película de visualizações caracteriza-se, portanto, por uma série de ilustrações imaginárias articuladas consecutivamente e de acordo com uma lógica. Compreender a noção de consecutividade é fundamental para que o trabalho com as visualizações surta efeito e reverbere na qualidade da atuação. Uma imagem evocada pela imaginação do ator deve funcionar como propulsora da ação, a qual configura-se como uma reação a algum estímulo ou provocação do instante presente. Assim, após a reação (física, concreta, visível), a imagem já não é mais a mesma: ou sofre alguma transformação ou dá lugar a uma nova visualização. Dessa forma, podemos dizer que a imaginação do ator é, mais precisamente, uma imagem-em-ação, uma imagem a qual impele o ator à ação e que se renova e/ou se modifica a cada momento específico da cena. Nas palavras de Stanislavski, "necessitamos de uma imaginação ativa, não passiva"16, pois só imagens-em-ação podem estimular o comportamento do ator em uma determinada direção - em direção a uma meta comunicativa.

Outra questão fundamental é: deve haver lógica nessa sequência de visualizações, visto que estas podem unir-se argumentalmente. Isso significa que toda a criação do ator deve levar em conta os fundamentos do contexto ficcional. Stanislavski chama esse contexto de circunstâncias dadas, que são as invenções da imaginação do autor dramático concretizadas na escrita literária, somadas à "nossa ideia da obra como atores e diretores."17

Seguindo a lógica da Análise Ativa, um procedimento possível ao ator para iniciar o trabalho é: 1) selecionar um pequeno trecho do texto; 2) identificar os principais acontecimentos do trecho e, a partir destes, dispor objetos cênicos - se houver - no espaço; 3) ir à cena, ainda sem se utilizar da fala, e improvisar com esses objetos e com os outros atores - se houver - buscando sempre um jogo de reações, de provocação e resposta; 4) voltar ao texto para certificar se o que foi improvisado está de acordo a sua lógica, se as visualizações sugestionadas pela configuração do espaço cênico condizem às metas comunicativas do texto; 5) retornar à cena; 6) alternar consulta ao texto e improvisação cênica até que um jogo de reações de corpos em movimento no espaço se estabeleça com clareza e precisão; 7) utilizando-se de suas próprias palavras, se necessário, introduzir a fala na cena; 8) repetir a cena diversas vezes, sempre enriquecendo o jogo com novos detalhes das visualizações, e consultar o texto constantemente - até que este seja memorizado - apropriando-se cada vez mais de suas sutilezas comunicativas.

Decorrem duas considerações importantes sobre a sequência exposta acima:

I) aconselha-se não utilizar a fala na etapa 3 pois, nessa fase inicial, os atores tendem à verborragia, levando as improvisações a carecerem de relações de conflito entre os corpos em movimento no espaço cênico. Essas relações de conflito podem ser estabelecidas, por exemplo, através de jogos de tensão entre aproximações e afastamentos espaciais, e de variações de planos - verticais, horizontais e diagonais. Faz-se necessário, pois, uma escuta espacial dos corpos colocados em relação no e com o espaço. Já a verborragia conduz, geralmente, à autoescuta prejudicial, que bloqueia os

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sentidos do ator, tornando-o incapaz de reagir a estímulos. Sobre isso, Stanislavski alerta:

É inútil que se esforcem por escutar suas próprias vozes. A "autoescuta" é algo que está próximo à autoadmiração, ao exibicionismo. Não se trata de como vocês mesmos falam, mas de como os demais o escutam e percebem. A "autoescuta" é uma tarefa inadequada para o ator; muito mais importante e mais ativo é influir sobre os demais e transmitir-lhes as visualizações próprias.18

II) a fala é permitida na etapa 7 somente se necessária, pois o ator não deve se preocupar em tentar lembrar-se das palavras do autor, mas apenas enriquecer as suas visualizações e, consequentemente, seu jogo cênico com seus parceiros de cena, objetos e espaço. Se for essencial utilizar a fala, que seja para que o ator visualize como os demais recebem e percebem essa fala, e para que, parafraseando Stanislavski, "os tentáculos do espírito do ator possam sentir o espírito do interlocutor."19 Esses "tentáculos do espírito" devem ser para o ator uma potente visualização que o impele a uma real comunicação teatral; devem ser como uma verdadeira extensão do corpo, considerando a fala dentro da seguinte lógica tríplice proposta por Stanislavski:

(...) em primeiro lugar é preciso sondar o interlocutor, em segundo, obrigá-lo a perceber as suas visualizações, em terceiro, verificar a percepção do interlocutor. Para isso é preciso dar ao interlocutor tempo para ver aquilo que se lhe transmite.20

Nessa lógica, é interessante notar, o som da voz acontece somente no segundo momento da comunicação. No primeiro momento - "sondar o interlocutor" - e no terceiro momento - "verificar a percepção do interlocutor" - a voz não tem som. Mas quando não tem som, a voz tem ouvidos para escutar, para perceber o outro e "sentir com os tentáculos" suas provocações e motivações21.

A questão de "dar ao interlocutor tempo para ver aquilo que se lhe transmite" será abordada mais adiante, no momento em que será necessário falar das pausas lógicas e psicológicas. Por enquanto, prossigamos com foco na Análise Ativa e no mágico "se".

Stanislavski chama a atenção de seus atores sobre o que provavelmente teria acontecido caso o procedimento da Análise Ativa não fosse levado em conta:

(...) vocês teriam introduzido de modo violento em sua memória mecânica, nos músculos do aparato vocal, os sons das palavras e das frases do texto. Em tal caso, haveriam se diluído e desaparecido neles as ideias do discurso, e o texto teria existido à margem da tarefa e das ações.22

Dessa forma, durante a Análise Ativa de uma cena, a imaginação deve manter-se sempre ativa, elaborando questões e suposições que atuem como molas propulsoras da ação. No caso específico da fala, a elaboração de subtextos - os quais são camadas de significado presentes nas entrelinhas do texto - é fundamental para que o ator possa "(...) insinuar não sons de palavras, mas imagens, visualizações."23 Assim, através do subtexto ilustrado - que são visualizações -, as palavras ficam cheias de significado, ricas em nuances expressivas: a voz, como na pintura, ganha perspectiva e alimenta o jogo contrastivo de iluminar e escurecer, de esconder e revelar, de salientar e atenuar. Para Stanislavski, "poder-se-ia dizer que as palavras vem do autor e o subtexto, do

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artista. Se não fosse assim, o espectador não teria que ir ao teatro para ver o ator, mas ficaria em sua casa lendo a peça."24

Ainda sobre o mágico "se", existem diversas maneiras de utilizá-lo. Por exemplo, no trecho em que Stanislavski, representado pela personagem fictícia do diretor-pedagogo Tortsov, utiliza-se do "se" para provocar uma reação psicofísica em sua aluna fictícia Dímkova:

– Dímkova, beba esta água – ordenou Tortsov.

Ela aproximou o copo de seus lábios.

– Tem veneno – disse Tortsov detendo-a.

Dímkova ficou instintivamente paralisada.25

Notamos que à simples suposição ("se") de que aquela água poderia estar envenenada, Dímkova tem uma reação imediata de paralisar-se, interrompendo o movimento de levar o copo com água ao contato dos lábios. Outros alunos poderiam ter reações completamente diferentes, como largar o copo, ou emitir um som de espanto, como um berro. Essa reação dependerá da assimilação sensorial do aluno sobre a frase "Tem veneno", a qual é proferida por Tortzov com uma tarefa específica (deter Dímkova) e um objetivo específico (para criar uma visualização que promovesse uma reação em Dímkova). Assim, observamos que o "se" inventado pelo diretor e tornado visível e/ou audível numa ação objetivada - no caso do exemplo acima, concretizado numa ação comandada pela fala - pode provocar uma reação corporal e/ou vocal no aluno.

Podemos imaginar que o aluno, ao ouvir "Tem veneno", também pode visualizar coisas como, por exemplo, a água borbulhando num tom verde radioativo (sensação visual), ou um cheiro forte e desagradável (sensação olfativa), ou um gosto ácido e enjoativo (sensação gustativa), ou um peso elevado e penoso (sensação tátil), ou até um som de alarme de ataque nuclear (sensação auditiva). Assim, a partir dessa reprodução imaginária de sensações, o ator visualiza algo - fora de si, no espaço, nos objetos - que imprimirá à sua ação matizes expressivos como, por exemplo, no caso de Dímkova, a utilização da pausa corporal com uma certa duração e uma tonicidade muscular específica. Cada ator irá imprimir qualidades distintas para a mesma situação, pois a imaginação de cada um desencadeará visualizações diferentes.

Para Stanislavski, a lógica está na raiz do trabalho com a fala: "sempre comece o trabalho sobre a fala e a palavra com a divisão do texto em compassos, ou, em outras palavras, com a colocação de pausas lógicas"26. Estas constituem-se em silêncios curtos que demarcam onde termina uma ideia e começa outra, e tem as funções de "unir as palavras em grupos (ou compassos do discurso), e separar os grupos entre si."27 Em outras palavras, as pausas lógicas servem para entender a lógica de sentido encadeada pelas relações entre as palavras, orações e períodos. Este é um trabalho anterior ao das visualizações ilustradoras do subtexto, pois como um ator poderia desenhar com sua imaginação um subtexto, se não consegue compreender aquilo que já está escrito no texto?

Na Análise Ativa busca-se um entendimento cada vez mais aprofundado da obra. Não se trata, como dito anteriormente, de memorizar forçadamente as palavras do autor, mas sim de captar suas nuances de sentido e, a partir daí, desenhar suas

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visualizações. Essas visualizações sim serão decoradas, pois o ator deve esforçar-se por fazer seu interlocutor "ver o acontecimento tal e como eu [ator] vejo."28 Stanislavski diz: "O importante não é o resultado mesmo: não depende de você. O que importa é a aspiração de conseguir o objetivo, o que importa é (...) a tentativa de influir sobre [o outro, sobre o interlocutor]."29

Depois que o ator compreende as pausas lógicas do texto, surge a possibilidade de algumas dessas pausas transformarem-se em pausas psicológicas, indispensáveis à cena, pois para Stanislavski:

(...) a pausa psicológica dá vida à ideia, frase ou ao compasso, tratando de transmitir seu subtexto. Se sem a pausa lógica a fala é inculta, sem a pausa psicológica carece de vida. A pausa lógica é passiva, formal, sem dinamismo; a psicológica é inevitavelmente ativa, rica em conteúdo interior.30

Como já dito, enquanto não sabe o texto original de cor, o ator usa de suas próprias palavras ou realiza ações físicas ainda sem a fala. Na medida em que necessita voltar ao texto para se apropriar melhor dos acontecimentos e situações, das circunstâncias dadas, o texto original vai sendo memorizado. Para Stanislavski, esse procedimento evita que a fala cênica se torne algo banal após sua frequente repetição, pois a imaginação redesenha novos detalhes às visualizações, completando-as e tornando-as ainda mais vivas. Das visualizações surge, por exemplo, a possibilidade de uma pausa lógica se transformar numa pausa psicológica, enriquecendo a atuação com novas perspectivas e novas cores. "Consequentemente, as repetições não prejudicam, mas, ao contrário, beneficiam as visualizações e todo o subtexto ilustrado."31

É necessário aos atores que exercitem a imaginação como se fosse um músculo, um músculo tão ativo quanto o coração, o qual nos possibilita a vida, o movimento, a fala, a ação. Sem imaginação pareceria ser impossível criar o encanto, o sutil, o artístico, pois a fala do ator tenderia somente à mecanicidade fria. As imagens-em-ação, entendidas como visualizações, servem para alimentar o jogo, para tornar sensível e até para intensificar o conflito dramático.

Concluímos que não se pode imaginar algo fora de contexto, pois ao mínimo desvio da atenção do ator a magia da cena pode falhar. Através do trabalho com as visualizações, podemos vislumbrar uma fala cênica rica em nuances expressivas. Tal fala não está mais à mercê da intuição, da súbita inspiração artística, e não é mais propriedade exclusiva dos talentos: a arte de falar em cena é possível de ser aprendida e desenvolvida. O trabalho com as visualizações, articuladas na perspectiva da Análise Ativa, configura-se como um procedimento chave à formação de ator.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KNÉBEL, María Ósipovna. El Último Stanislavski: análisis activo de la obra y del papel. Trad. do russo de Jorge Saura. Madrid: Editorial Fundamentos, 2010.

___________. La Palabra en la Creación Actoral. Trad. do russo de Bibisharifa Jakimzianova y Jorge Saura. Madrid: Editorial Fundamentos, 2000.

MALETTA, Ernani de Castro. A formação do ator para uma atuação polifônica: princípios e práticas. (Tese de Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.

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RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. Trad. do inglês: Patrícia Furtado de Mendonça. São Paulo: Perspectiva, 2012.

STANISLAVSKI, Konstantín. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso creador de la encarnación. Trad., prólogo e notas de Jorge Saura. Barcelona: Alba Editorial, 2009.

___________. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso creador de la vivencia. Trad. e notas de Jorge Saura. Barcelona: Alba Editorial, 2003.

1 Bolsista CAPES-REUNI do Mestrado em Artes Cênicas: Teorias e Práticas, da UFMG; Orientador: Ernani de Castro Maletta. 2 STANISLAVSKI, 2003, p. 97. Todas as traduções da Língua Espanhola para a Língua Portuguesa são do autor deste artigo. 3 A definição de ação física é do Estúdio Fisções, grupo de pesquisa em formação de ator para a atuação cênica, coordenado pelo professor Luiz Otavio Carvalho, do qual participo como ator pesquisador. As referências para tal definição estão em Stanislavski, em toda sua obra, e em Thomas Richards, no livro "Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas". 4 KNÉBEL, 2010, passim. 5 ter "consciência expandida" significa não somente saber fazer, mas também saber como fazer. O ofício do ator exige a manutenção da atuação: uma fala que soou maravilhosa e impactante no dia da estreia deve soar com as mesmas qualidades - ou com ainda mais qualidades - até o último dia da temporada. 6 STANISLAVSKI, 2003, p. 95. Aspas do autor. 7 Id., 2009, p. 153. 8 Ibid., p. 153. 9 Ibid., p. 147. Itálico do autor. 10 Ibid., p. 159. 11 Ibid., p. 147. 12 Id., 2003, p. 85. 13 Ibid., p. 96. Aspas do autor. 14 Ibid., p. 95. Grifos meus. 15 KNÉBEL, 2000, p. 72. Aspas da autora. 16 STANISLAVSKI, 2003, p. 78. 17 Ibid., p. 67. 18 Id., 2009, p. 192. Aspas e itálico do autor. 19 STANISLAVSKI apud KNÉBEL, 2000, p. 92. 20 STANISLAVSKI apud KNÉBEL, 2000, p. 92. 21 Para complementar o raciocínio exposto neste parágrafo, cito Ernani Maletta: "Penso que a definição de voz humana deva, além do som produzido pela vibração das pregas vocais, obrigatoriamente incluir a manifestação de partes ou mesmo de todo o corpo humano - olhos, movimentos faciais, gestos e qualquer outro movimento ou possibilidade expressiva corpórea - que, como um todo, são imprescindíveis para expressar os pensamentos, os desejos, as necessidades e os pontos de vista do sujeito fonador. Dessa forma, a voz humana é o próprio ser humano integralmente se manifestando, por meio do som e/ou do movimento expressivo de seu corpo. Vale ainda observar que, de acordo com essa definição, muitas vezes a voz começa pela expressão do movimento do corpo, antes que qualquer - ou, até mesmo, nenhum - som seja produzido." (MALETTA, 2005, p. 12) (negritos do autor) 22 STANISLAVSKI apud KNÉBEL, 2000, p. 212. 23 STANISLAVSKI apud KNÉBEL, 2000, p. 82. 24 STANISLAVSKI, 2009, p. 147. 25 Id., 2003, p. 64. 26 Id., 2009, p. 165. 27 Ibid., p. 163. 28 STANISLAVSKI apud KNÉBEL, 2000, p. 76. 29 STANISLAVSKI, 2009, p. 155. 30 Ibid., p. 177. Itálicos do autor. 31 Ibid., p. 162.