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Ítalo Calvino em “ Mundo Escrito e Mundo Não Escrito” – 1983 “Enquanto espero que o mundo não escrito se esclareça a meus olhos, há sempre uma página escrita ao alcance da mão, na qual posso tornar a mergulhar; e é o que logo faço, com a maior satisfação: pelo menos ali, ainda que só consiga entender uma pequena parte do conjunto, posso cultivar a ilusão de estar mantendo tudo sob controle. Acho que na minha juventude as coisas também seguiam do mesmo modo, mas naquela época eu me iludia de que os mundos escrito e não escrito se iluminassem reciprocamente, de que as experiências de vida e as experiências de leitura fossem de algum modo complementares, e cada passo adiante em um campo correspondesse a um passo adiante no outro. Hoje posso afirmar que, no mundo escrito, conheço bem mais do que no passado: dentro dos livros a experiência é sempre possível, mas seu alcance não se estende para além da margem branca da página. Já o que acontece no mundo que me circunda jamais deixa de me surpreender, de me assustar, me desorientar. Assisti a muitas mudanças em minha vida, no vasto mundo, na sociedade, e também a muitas mudanças em mim; entretanto não consigo prever nada, nem para mim nem para as pessoas que conheço, e muito menos quanto ao futuro do gênero humano. Não saberia prever as futuras relações entre os sexos, entre as gerações, os desenvolvimentos futuros da sociedade, das cidades e das nações, que tipo de paz haverá ou que tipo de guerra, o que significará o dinheiro, quais objetos de uso cotidiano vão desaparecer e quais se usará, qual vai ser o futuro do mar, dos rios, dos animais, das plantas. Sei bem que compartilho esta ignorância com aqueles que, ao contrário, pretendem saber tudo: economistas, sociólogos, políticos; mas o fato de não estar só não me dá nenhum alívio. O que me pode dar algum alívio é o pensamento de que a literatura sempre compreendeu algo mais que as outras disciplinas, mas isso me faz lembrar que os antigos viam nas letras uma escola de sabedoria, e logo me apercebo de quanto, hoje, qualquer ideia de sabedoria é inalcançável”.

Ítalo Calvino - maravilhoso texto

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Ítalo Calvino em “ Mundo Escrito e Mundo Não Escrito” – 1983

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Ítalo Calvino em “ Mundo Escrito e Mundo Não Escrito” – 1983

“Enquanto espero que o mundo não escrito se esclareça a meus olhos, há sempre uma

página escrita ao alcance da mão, na qual posso tornar a mergulhar; e é o que logo faço,

com a maior satisfação: pelo menos ali, ainda que só consiga entender uma pequena parte

do conjunto, posso cultivar a ilusão de estar mantendo tudo sob controle.

Acho que na minha juventude as coisas também seguiam do mesmo modo, mas naquela

época eu me iludia de que os mundos escrito e não escrito se iluminassem reciprocamente,

de que as experiências de vida e as experiências de leitura fossem de algum modo

complementares, e cada passo adiante em um campo correspondesse a um passo adiante

no outro. Hoje posso afirmar que, no mundo escrito, conheço bem mais do que no

passado: dentro dos livros a experiência é sempre possível, mas seu alcance não se estende

para além da margem branca da página.

Já o que acontece no mundo que me circunda jamais deixa de me surpreender, de me

assustar, me desorientar. Assisti a muitas mudanças em minha vida, no vasto mundo, na

sociedade, e também a muitas mudanças em mim; entretanto não consigo prever nada,

nem para mim nem para as pessoas que conheço, e muito menos quanto ao futuro do

gênero humano. Não saberia prever as futuras relações entre os sexos, entre as gerações,

os desenvolvimentos futuros da sociedade, das cidades e das nações, que tipo de paz

haverá ou que tipo de guerra, o que significará o dinheiro, quais objetos de uso cotidiano

vão desaparecer e quais se usará, qual vai ser o futuro do mar, dos rios, dos animais, das

plantas. Sei bem que compartilho esta ignorância com aqueles que, ao contrário,

pretendem saber tudo: economistas, sociólogos, políticos; mas o fato de não estar só não

me dá nenhum alívio.

O que me pode dar algum alívio é o pensamento de que a literatura sempre compreendeu

algo mais que as outras disciplinas, mas isso me faz lembrar que os antigos viam nas

letras uma escola de sabedoria, e logo me apercebo de quanto, hoje, qualquer ideia de

sabedoria é inalcançável”.