46
Iuri M. Lotman Por uma teoria semiótica da cultura Extratos traduzidos por Fernanda Mourão Belo Horizonte FALE/UFMG 2007 Tradução de textos de Iuri M. Lotman a partir da tradução inglesa de Ann Shukman: Universe of the mind: a semiotic theory of culture. Introd. De Umberto Eco. Londres: I. B. Tauris Publishers, 1992, p. 11-35 e 246-280. Diretor da Faculdade de Letras Prof. Jacyntho José Lins Brandão Vice-Diretor Prof. Wander Emediato de Souza Comissão Editorial Eliana Lourenço de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Lucia Castello Branco Maria Cândida Trindade Costa de Seabra Maria Inês de Almeida Tradução Fernanda Mourão Editoração de texto e formatação Júnia Kelle Revisão de provas Júnia Kelle Michel Gannam Capa e projeto gráfico Mangá – Ilustração e Design Gráfico Endereço para correspondência: FALE/UFMG – Publicações Viva Voz Av. Antônio Carlos, 6627 – sala 3006 31270-901 – Belo Horizonte – MG Tel: (31) 3499-5158 e-mail: [email protected]

Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Autor fundamental da Semiótica Russa.

Citation preview

Page 1: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

Iuri M. Lotman

Por uma teoria semiótica da cultura

Extratos traduzidos por Fernanda Mourão

Belo Horizonte

FALE/UFMG

2007

Tradução de textos de Iuri M. Lotman a partir da tradução inglesa de Ann Shukman: Universe of the mind: a semiotic theory of culture. Introd. De Umberto Eco. Londres: I. B. Tauris Publishers, 1992, p. 11-35 e 246-280.

Diretor da Faculdade de Letras

Prof. Jacyntho José Lins Brandão

Vice-Diretor

Prof. Wander Emediato de Souza

Comissão Editorial

Eliana Lourenço de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Lucia Castello Branco Maria Cândida Trindade Costa de Seabra Maria Inês de Almeida

Tradução

Fernanda Mourão

Editoração de texto e formatação

Júnia Kelle

Revisão de provas

Júnia Kelle Michel Gannam

Capa e projeto gráfico

Mangá – Ilustração e Design Gráfico

Endereço para correspondência:

FALE/UFMG – Publicações Viva Voz Av. Antônio Carlos, 6627 – sala 3006 31270-901 – Belo Horizonte – MG Tel: (31) 3499-5158 e-mail: [email protected]

Page 2: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

3

Sumário

Prefácio . 5

As três funções do texto . 13

Autocomunicação: o “Eu” e o “Outro”como destinatários . 27

Uma alternativa: cultura sem letramento ou cultura antes da cultura? . 51

O papel dos símbolos tipológicos na história da cultura (contrato e auto-entrega como arquétipos culturais) . 64

Referências . 89

4

Page 3: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

5

Prefácio

O projeto para a criação de um cérebro pensante prenunciado por Goethe continua relevante nos dias de hoje. Na verdade, a cada novo avanço da ciência, esse projeto vem sendo fortalecido, ainda que em termos diferentes. Porém, uma barreira bastante real permanece em nosso caminho, isto é, a barreira do cérebro pensante que tentamos criar artificialmente. Lembrei-me de uma anedota em memória do escritor russo Andrei Bely. Seu pai, N. V. Bugaev, professor de matemática e presidente da Sociedade Moscovita de Matemática, presidiu uma reunião onde foi lido um trabalho sobre a inteligência dos animais.

Meu pai, que presidia a reunião, interrompeu o leitor para perguntar se ele sabia o que era inteligência; o leitor não sabia. Então meu pai começou a perguntar aos participantes frente a tamanha agitação: “Você sabe? Você?” Ninguém sabia. Então meu pai afirmou: “Já que ninguém sabe o que é inteligência, não podemos discutir sobre a inteligência dos animais. Declaro essa reunião concluída.”

Esse incidente ocorreu no início deste século, mas a situação foi radicalmente mudada. Evidentemente, a razão é que a atividade intelectual é considerada como qualidade única do homem, embora algo que é observado isoladamente e não é comparado com qualquer outra coisa não pode ser objeto da ciência. Nossa tarefa é, como foi mencionado, encontrar uma série de “objetos pensantes” para compará-los e deduzir a característica invariante da inteligência. O conceito “inteligência” possui diversos aspectos e não me sinto realmente competente para formular uma definição completa sobre ele. No entanto, a tarefa torna-se praticável se nos restringirmos ao seu aspecto semiótico.

Se definirmos a inteligência por esse ponto de vista, podemos reduzi-la às seguintes funções:

1. a transmissão de informações disponíveis (isto é, dos textos);

6

2. a criação de informações novas, isto é, dos textos que não são absolutamente deduzíveis de acordo com um conjunto de instruções proveniente das informações já existentes, mas que (em algum grau), de alguma forma, não são antecipadamente apresentadas;

3. memória, isto é, a capacidade de reter e reproduzir informações (textos).

O estudo do sistema de semiótica criado pela humanidade através de sua história cultural tem nos conduzido a uma descoberta inesperada de que essas funções são também características de objetos semióticos. Nos textos planejados para comunicar, a primeira função predomina, enquanto em textos artísticos, a função principal é a capacidade de gerar novas informações. Estabeleceu-se que a função mínima da estrutura semiótica consiste não somente na linguagem artificialmente isolada ou no texto naquela língua, mas também num par paralelo de linguagens mutuamente intraduzíveis que são, no entanto, conectadas por um “mecanismo” que é a tradução. Uma estrutura dupla como essa é o núcleo mínimo para a geração de novas mensagens e também a unidade mínima de um objeto semiótico como a cultura. Dessa forma, cultura é (como um mínimo) uma estrutura semiótica binária e que, ao mesmo tempo, funciona como uma unidade indissolúvel. Acompanhando essas linhas de pensamento, somos levados ao conceito da semiosfera e convencidos da importância do estudo da semiótica da cultura.

Além disso, não podemos definir objetos semióticos desse tipo como “estruturas pensantes”, já que eles cumprem a função de inteligência formulada que mencionamos acima. Não nos interessa o fato de que o funcionamento deles requer um interlocutor inteligente e a necessidade de recursos de um texto não o requer. Mesmo se uma inteligência humana absolutamente normal for completamente isolada da origem

Page 4: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

7

dos textos externos e de qualquer diálogo, ainda continua uma máquina normal, apesar de ainda não ter sido colocada em movimento. Ela não pode ser ligada por si mesma. Para que uma inteligência funcione, é necessário que haja uma outra inteligência. Vygotsky foi o primeiro a salientar: “Toda função mais importante é dividida entre duas pessoas, é um processo psicológico mútuo.” A inteligência é sempre um interlocutor.

Para nossa surpresa, observações sobre a assimetria bipolar do mecanismo semiótico têm sido comparadas através de pesquisas dentro da assimetria do largo hemisfério cerebral. A descoberta de mecanismos no aparelho do pensamento individual, que são funcionalmente isomórficos ao mecanismo semiótico da cultura, tem se tornado um vasto campo acessível ao estudo científico futuro. A questão da sobreposição entre semiótica da filologia e neurofisiologia tem surpreendido algumas pessoas, mas foi entusiasticamente sustentada pelo lingüista Roman Jakobson, que denominou aqueles que são hostis a essa aproximação de proponentes à “lingüística sem cérebro”. Na União Soviética, esses problemas têm sido ativamente perseguidos no laboratório neurofisiológico do recentemente falecido L. Ya Valonov (e seus colegas V. L. Deglin, T. V. Chernigovskaya, N. N. Nicolaenko e outros), e a partir do aspecto semiótico de V. V. Ivanov.

No entanto, essa questão nos direciona ainda mais ao problema científico geral, que é o da relação de simetria e assimetria, uma questão que, na época, interessou Louis Pasteur.

A idéia de que estruturas semióticas de “pensamento” necessitam de um impulso inicial de outra estrutura pensante, e os mecanismos texto-gerativos necessitam de um texto exterior para ajustá-los, lembra-nos, por um lado, que, nas assim chamadas reações auto-catalíticas, reações que têm o

8

objetivo de obter o produto final (ou acelerar um processo químico), o resultado final tem que estar já presente em alguma quantidade no início da reação. Por outro lado, essa questão fornece um paralelo de um problema até agora insolúvel do “início” da cultura e do “início” da vida. O biólogo V. L. Vernadsky recusou-se a responder a tais questões, declarando que é mais produtivo estudar as inter-relações das estruturas que são binárias, assimétricas e ao mesmo tempo unitárias. Essa é a direção que deveremos adotar.

De acordo com as três funções dos objetos semióticos esboçadas acima, este estudo é dividido em três partes.1 A Parte Um considera o mecanismo da geração significativa como resultado da reação da tensão mútua entre uma coisa reciprocamente intraduzível e ao mesmo tempo linguagens interprojetadas de forma mútua, como o convencional (discreto, verbal) e o icônico (contínuo, espacial). Isso corresponde ao ato mínimo da elaboração de uma nova mensagem. A Parte Dois é dedicada à semiosfera, que sincroniza o espaço semiótico que preenche as margens da cultura, sem a qual os sistemas semióticos separados não podem funcionar ou se formar. O conceito central da Parte Um é o texto, e da Parte Dois, a cultura. A Parte Três é dedicada às questões da memória, diacronia profunda e à história como mecanismo da atividade intelectual: centraliza-se na semiótica da história.

A união dessas três partes é feita para demonstrar o funcionamento do universo semiótico ou do mundo intelectual, no qual a humanidade e a sociedade humana são envolvidas e que está em constante interação com o mundo intelectual distinto dos seres humanos.

1 Neste trabalho não foram publicados textos das três partes citadas pelo autor, já que se trata de uma seleção de trechos a partir de sua obra Universe of the mind: a semiotic theory of culture.Tradução inglesa de Ann Shukman e introdução. de Umberto Eco. Londres: I. B. Tauris Publishers, 1992. [N.E.]

Page 5: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

9

Pré-Saussure

Durante as últimas décadas, a semiótica e o estruturalismo na União Soviética como no Ocidente têm passado por épocas completas de teste. É claro que as experiências foram diferentes. Na União Soviética, essas disciplinas tiveram que suportar um período de perseguições e ataques ideológicos, que foram seguidos por uma conspiração de silêncio ou semi-reconhecimento abatido de parte da ciência oficial.

No oeste, essas disciplinas passaram pelo teste do uso. Elas se tornaram uma paixão, tornando-se, em conseqüência, proibidas perante a ciência. Mas nem perseguição nem uso. Ambos, que parecem ser tão cruciais aos olhos da visão pública, têm efeito determinado no destino das idéias científicas. O fator decisivo é certamente a profundidade das idéias atuais que apresentam. Para se ter profundidade e significância nas idéias científicas, é determinada, em primeiro lugar, a capacidade de explicar e ordenar fatos que foram previamente dissipados e não explicados. Isso ocorre devido a sua capacidade de se combinarem com outras idéias científicas; e em segundo lugar a capacidade de revelar problemas que necessitam de soluções, especialmente nas áreas onde opiniões prematuras parecem não ser problema. Essa segunda característica é uma indicação da capacidade de se combinarem com as idéias científicas futuras. Em conseqüência, as idéias que têm vida científica longa são mais eficientes, pois preservam suas premissas iniciais apesar de serem transformações dinâmicas e se envolverem simultaneamente com o mundo que as cerca.

Quando falamos em semiótica hoje, no final do século XX, devemos ter em mente os seus três diferentes aspectos. Em primeiro lugar, semiótica é a disciplina científica esboçada por Ferdinand de Saussure. Esse é o domínio do

10

conhecimento cujo objeto é a esfera da comunicação semiótica: “É portanto possível conceituá-la como uma ciência que estuda o papel dos signos como parte da vida social. Ela fornecia parte da psicologia social e, conseqüentemente, da psicologia geral. Podemos chamá-la de semiologia.” A noção da linguagem como um dos sistemas semióticos poderia, segundo Saussure, ser encontrada na base de todas as ciências sociais:

Dessa forma, fácil seria não pensar somente sobre os problemas lingüísticos. Ao considerarmos os rituais, costumes, etc. como signos, será possível, supomos, observá-los sob nova perspectiva. A necessidade deles será sentida quando os considerarmos como fenômeno semiológico e os explicarmos nos termos das leis da semiologia.

No segundo aspecto, a semiótica é um método relevante da filologia para várias disciplinas, que é definido não pela natureza de seu objeto, mas pelos significados de sua análise. Deste ponto de vista, tudo é o mesmo objeto científico e deve ser estudado a partir dos pontos de vista semiótico e não-semiótico. A lingüística mesmo produz numerosos exemplos.

Finalmente, o terceiro aspecto da semiótica pode ser melhor definido como uma característica especial da psicologia científica do pesquisador, isto é, a forma como sua percepção cognitiva é composta. Exatamente como um diretor de filmes olhará o mundo ao seu redor, através de seus dedos que são usados para formar uma estrutura, e “cortar” esse mundo em pedaços separados da totalidade da visão, o pesquisador da semiótica tem o hábito tanto de transformar o mundo à sua volta quanto apresentar a estrutura semiótica. Tudo que o Rei Midas tocava com suas mãos de ouro transformava-se em ouro. Da mesma forma, tudo aquilo a que o pesquisador da semiótica volta sua atenção, torna-se, em suas mãos, produto da semiótica. Esse é o problema do

Page 6: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

11

efeito causado ao se descrever um objeto da maneira que discutiremos abaixo.

Juntos, esses três aspectos compõem o domínio da semiótica.

Se examinarmos o curso posterior da semiótica desde os últimos cinqüenta anos, quando agradecemos largamente os esforços de Roman Jakobson e também a direção geral no pensamento científico que fizeram com que a semiótica começasse a atrair a atenção científica difundida, podemos resumir suas direções principais pelas palavras “continuidade” e “dominação”. Ambas referem-se ao legado do formalismo russo e aos trabalhos de Bakhtin e Propp. Mas, acima de tudo, eles falaram a respeito do legado de Saussure com quem trabalhavam, mesmo após Jakobson os ter criticado e os contrastado com as idéias de C. S. Peirce, o que permanece em vigor como a pedra fundamental da semiótica.

No aspecto que estamos considerando, as seguintes idéias de Saussure são importantes:

1.a oposição língua [langue] e fala [parole] (ou código e texto);

2. a oposição sincronia e diacronia. Para Saussure, ambas as oposições eram fundamentais.

Língua, para ele é:

um sistema gramatical potencialmente existente em qualquer cérebro, ou mais exatamente nos cérebros de um grupo de indivíduos, pois a língua nunca é completa em somente um indivíduo, mas só existe perfeitamente em coletividade. Pela distinção entre a língua por si mesma e a fala, distinguimos ao mesmo tempo: 1. o que é social vindo do que é individual; 2. o que é essencial vindo daquilo que é subordinado ou mais ou menos acidental.

Partindo dessas premissas, Saussure formulou sua principal proposição sobre a linguagem, ambas no ato da fala e na ciência da lingüística:

12

1. Em meio à massa desigual de fatos envolvida na língua, ela destaca-se como uma entidade bem definida. É a parte social da língua, externa ao indivíduo que é enfraquecida ao mesmo tempo que é criada e modificada por ele mesmo. Existe somente em virtude de um tipo de contrato acertado entre os membros de uma comunidade. 2. Um sistema de linguagem, como distinto da fala, é um objeto que deve ser estudado de forma independente. Línguas mortas não são mais faladas, mas podemos perfeitamente nos familiarizarmos bem com suas estruturas lingüísticas. Uma ciência que estuda estrutura lingüística não é capaz somente de dispensar outros elementos da linguagem [neste caso: fàla! Yu M. J.], mas isso é possível apenas se os outros elementos forem mantidos separadamente.

Não menos fundamental foi a segunda das oposições acima mencionada. Para a sincronia, o fundamental é o que observamos como característica natural e a sincronia é a barreira da relação que compõe a essência da linguagem. A sincronia é homeostática, enquanto a diacronia é composta de uma série de infrações internas e externas em reação contra a qual a sincronia restabelece sua integridade: “A linguagem é um sistema cujas partes podem e devem ser estudadas em sua mutualidade sincrônica.”

As mudanças nunca tomam parte do sistema completo, mas somente em um ou outro de seus elementos. Elas só podem ser estudadas fora do sistema. Na perspectiva diacrônica, uma está lidando com o fenômeno que não tem conecção com o sistema lingüístico, ainda que os sistemas sejam afetados por elas. A linguagem é oposta a tudo que é acidental, instável e extra-sistemático. As línguas são mecanismos que continuam em funcionamento, apesar dos danos causados a elas.

Essas idéias não podem ser rejeitadas pela semiótica moderna. Rejeitá-las significaria derrubar suas bases. Mas, a partir desse fato, podemos observar quão profundas são as transformações que até as proposições fundamentais e todo o elenco da memória têm suportado na segunda metade do século XX.

Page 7: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

13

As três funções do texto

No sistema saussuriano de conceito que, por muito tempo, tem determinado o curso do pensamento semiótico, há uma clara preferência pelo estudo da linguagem que pela fala, e maior pelo código que pelo texto. A fala e sua hipóstase articulada e delimitada, o texto, é de interesse para o lingüista apenas como matéria-prima, como uma manifestação da estrutura lingüística. Tudo aquilo que é relevante na fala (ou no texto) é determinado na linguagem (ou código). Os elementos que ocorrem em um texto sem qualquer correspondência com o código não podem ser condutores de significados. Isso é o que Saussure quer dizer quando fala: “O lingüista deve adotar o estudo da estrutura lingüística como seu interesse principal, e referir todas as outras manifestações da linguagem a essa estrutura.” Adotar a estrutura lingüística como uma norma significa determiná-la como o ponto de referência científico para a definição do que é e o que não é essencial na atividade da linguagem. Naturalmente, tudo aquilo que não possuir correspondência na linguagem (código) quando a mensagem é decodificada é “removido”. Após o momento em que o metal da estrutura da linguagem é separado do minério da fala, resta somente o refugo. Isso era o que Saussure tinha em mente quando disse: “a ciência da linguagem pode agir sem a análise da fala”.

Porém, por trás dessa posição científica, encontra-se um complexo inteiro de hipóteses, idéias quase não científicas sobre a função da linguagem. Enquanto o lingüista teórico está interessado na estrutura lingüística extraída do texto, o receptor diário de informações está preocupado com o conteúdo da mensagem. Em ambos os casos, o texto é tratado como algo valioso, não em si mesmo, mas meramente

14

como um tipo de pacote do qual é extraído o objeto de interesse.

Para o receptor de uma mensagem, a seqüência a seguir parece mais lógica:

pensamento (conteúdo da mensagem) pensamento (conteúdo da mensagem)

o mecanismo de decodificação o mecanismo de decodificação da linguagem da mensagem

o texto

Deveríamos, é claro, estar atentos aos conselhos de Benveniste. Ele mostrou que, devido ao fato de desconhecermos as operações lingüísticas, nós as executamos, e devido ao fato de “podermos dizer tudo aquilo que desejamos”, há uma firme convicção de que

os processos de pensamento e fala são duas atividades totalmente diferentes que são combinados somente para os propósitos práticos da comunicação, mas cada um deles têm seu próprio campo e suas próprias possibilidades independentes. E, além disso, a linguagem oferece os propósitos e as formas para o que usualmente chamamos de “expressões de nossos pensamentos”.

Além disso:

Naturalmente, a linguagem, quando manifesta-se na fala, está habituada a expressar “o que queremos dizer”. Porém, o fenômeno que chamamos “o que queremos dizer”, ou “o que tínhamos em mente”, ou “nossa idéia”, ou o que quer que seja, esse fenômeno é o conteúdo do pensamento: é muito difícil defini-lo como uma essência independente sem o uso de “temos como intenção” ou “estrutura psicológica”, etc. Esse conteúdo somente adquire forma quando é expresso, e só desse modo. Isso é formulado pela linguagem e dentro da linguagem.

Podemos, no entanto, imaginar um sentido que continua invariante, embora grande parte do texto seja transformado. Podemos imaginar esse sentido como uma mensagem pré-

Page 8: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

15

textual concebida no texto. Essa é a premissa na qual o modelo do “texto-significado” é baseado (veja abaixo). Desse ponto de vista, pressupõe-se que, no caso ideal, o conteúdo informacional não muda tanto em qualidade quanto em quantidade: o receptor decodifica o texto e recebe a mensagem inicial. Mais uma vez o texto é considerado como um “pacote técnico” para a mensagem, que é o que interessa ao receptor.

Por trás desse quadro de funcionamento de um mecanismo semiótico, encontra-se a crença de que a função do mecanismo é a de transferir a mensagem adequadamente. O sistema funciona bem se a mensagem recebida pelo destinatário for totalmente idêntica àquela despachada pelo remetente, e funciona mal se houver diferenças entre os textos. Essas diferenças são classificadas como erro e existem mecanismos especiais na estrutura (redundância, por exemplo) para evitá-los.

Existem bons motivos para essa semelhança: ela aponta exclusivamente para a função essencial das estruturas semióticas. Mas devemos admitir que, se adotarmos essa função como única, ou mesmo como função básica, então estaremos nos defrontando com um número amplo de paradoxos.

Se adotarmos a adequação da transferência da mensagem como o critério básico na avaliação da eficiência dos sistemas semióticos, teremos que admitir que todas as estruturas lingüísticas que ocorrem naturalmente são inadequadamente construídas. Para uma mensagem razoavelmente complexa ser recebida com identificação absoluta, são necessárias condições que, em situações de ocorrência natural, são praticamente inobteníveis: destinatário e remetente devem possuir códigos equivalentes, ou seja: serem, de fato e semioticamente falando, uma

16

bifurcação de uma e mesma personalidade. Para um código, inclui-se não somente um certo conjunto binário de regras para codificar e decodificar uma mensagem, mas também uma hierarquia multidimensional. Da mesma forma, o fato de que ambos os participantes de uma comunicação usam a mesma língua nativa (inglês, russo, estoniano, etc.) não garante a identificação do código. Para que isso ocorra, deve haver também uma experiência lingüística em comum e uma dimensão de memória idêntica. E a isso deve ser adicionado um conhecimento da norma, da referência lingüística e das formalidades. Se então um deles considerar as tradições culturais (a memória semiótica da cultura) e o fator inevitável do aspecto individual com o qual essa tradição é revelada a um membro particular de um grupo, obviamente a coincidência de códigos entre o transmissor e o receptor será, na realidade, possível apenas em uma medida bastante relativa. Inevitavelmente, o resultado é que a identidade do receptor e do texto autêntico é relativa. Desse ponto de vista, parece realmente que a linguagem natural cumpre sua função inadequadamente. E a linguagem poética pior ainda.

No entanto, é evidente que, para uma garantia total da adequação entre o receptor e a mensagem recebida, deve haver uma linguagem artificial (simplificada) e comunicadores simplificados artificialmente: estes terão uma capacidade de memória estritamente limitada e toda bagagem cultural será removida da personalidade semiótica. O mecanismo criado dessa forma será capaz de servir somente a uma quantidade limitada de funções semióticas. O universalismo inerente à linguagem natural é, a princípio, estranho a ela.

Deveríamos, então, supor que esse modelo superficial é um modelo do que a linguagem poderia ser, um ideal do qual é distinguido somente pelas imperfeições que são o resultado natural das atividades irracionais da natureza? Modelos

Page 9: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

17

artificiais de linguagem, não a linguagem em si mas uma de suas funções — a habilidade de transmitir adequadamente uma mensagem; porque as estruturas semióticas, quando alcançam essa função de atingir a perfeição, perdem a capacidade de servir a outras funções que são inerentes à elas no estado natural.

Então, quais são essas funções? Antes de mais nada, temos a função criativa. Todo

sistema que satisfaz a extensão completa das possibilidades semióticas não apenas transmite somente mensagens feitas, mas também serve como um gerador de novas mensagens.

Mas o que é isso que estamos chamando de “novas mensagens”? Em primeiro lugar, vamos chegar a um acordo sobre o que estamos denominando. Não denominamos “novas mensagens” aquelas recebidas como resultado de simples transformações, isto é: mensagens que são frutos de transformações simétricas daquilo que é enviado (um texto emitido e obtido através de uma transformação contrária). Se a tradução do texto T1 da língua L1 para a língua L2 induz ao aparecimento do texto T2, de tal forma que a operação de uma tradução contrária resulte no texto de origem T1, então não consideramos o texto T2 como novo em relação ao texto T1. Assim, desse ponto de vista, a solução correta dos problemas matemáticos não cria novos textos. Podemos lembrar a observação de Wittgenstein de que, dentro da lógica, nada de novo pode ser dito.

O pólo oposto às linguagens artificiais são aqueles sistemas semióticos nos quais a função criativa é mais sólida. É óbvio que se o mais vulgar dos poemas é traduzido para outra língua (ou seja, para uma língua com outro sistema poético), a operação de uma tradução contrária não produzirá o texto de origem. O próprio fato de o poema poder ser traduzido por diferentes tradutores em diversos estilos

18

comprova o fato de que no lugar de uma correspondência precisa do texto T1 há, nesse caso, uma certa distância. Qualquer um dos textos t1, t2, t3 ... tn que preencha essa distância, pode ser uma interpretação possível do texto de origem. No lugar de uma correspondência precisa, existe uma das possíveis interpretações. No lugar de uma transformação simétrica, existe uma transformação assimétrica. No lugar da igualdade entre os elementos que compõem o T1 e o T2, existe uma equivalência convencional entre eles. Na tradução de uma poesia em francês para a língua russa, a tradução de cada verso de doze sílabas do francês para os versos iâmbicos sílabo-tônicos russos é uma convenção, o resultado de uma tradução aceitável. Contudo, em princípio é possível traduzir verso silábico francês para verso silábico russo. O tradutor é forçado a fazer uma escolha. Há uma indeterminância maior quando, por exemplo, um romance é transformado em um filme.

Devemos denominar o texto que é produzido nesses exemplos como um novo texto, e o ato de tradução que o cria como um ato criativo.

Podemos representar a transmissão adequada de um texto usando linguagem artificial através do seguinte diagrama:

Nesse caso, o transmissor e o receptor compartilham do mesmo código C.

O diagrama de representação da tradução artística demonstra que o transmissor e o receptor usam códigos diferentes: C1 e C2 que se sobrepõem, mas não são idênticos. Uma tradução inversa resultará não no texto de origem, mas

T1

C

T2

Page 10: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

19

T1

C1

C2

Cn

em um terceiro texto T3. Igualmente, o fecho para o processo atual da circulação das mensagens é o caso onde o emissor enfrenta não somente um código, mas um espaço múltiplo de códigos C1, C2, C3 ... Cn, e cada um deles é um complexo de construções hierárquicas capazes de gerar um conjunto de textos em grau equivalente que corresponda ao código do emissor. O relacionamento assimétrico e a constante necessidade de escolha fazem da tradução, nesse caso, um ato de produção de novas informações e exemplificam a função criativa tanto da linguagem quanto do texto.

Particularmente indicativa é a situação onde a diferença entre os códigos não é simples, mas mutuamente intraduzíveis (por exemplo, na tradução de um texto verbal em um texto icônico). A tradução é feita com a ajuda de um sistema convencional de equivalências aceitas naquela cultura em particular. Assim, por exemplo, quando se transmite um texto verbal por meio de um ilustrativo (por exemplo, a narração de um tema evangélico), o espaço do tema irá se sobrepor nos códigos, enquanto o espaço da linguagem e do estilo será apenas correlacionado convencionalmente dentro dos limites de uma tradução particular. A combinação de tradutibilidade-intradutibilidade (cada uma em diferentes graus) é o que determina a função criativa.

T2...

T2n

T2

20

Já que, neste caso, o significado não é somente um resíduo invariante, preservado durante o método de operações transformacionais, mas é também o que é alterado, podemos afirmar que há um acréscimo de significados no processo de tais transformações.

E há um outro ponto. Quando usamos linguagens artificiais (ou linguagens naturais e poéticas como linguagens artificiais, por exemplo, se transmitimos o conteúdo de um romance de Tolstoy através de uma pequena anotação do enredo), estamos isolando o significado da linguagem. Durante as operações complexas da significação gerativa, a linguagem é inseparável do contexto que ela expressa. Nesse último exemplo, preocupamo-nos não apenas com a mensagem em uma língua, mas também com uma mensagem relativa à língua, uma mensagem na qual o interesse é alterado para sua língua. Esse é o “ajuste para o código” que Roman Jakobson considerou como sendo a característica fundamental do texto literário.

Nesse caso, muitos fenômenos são paradoxalmente invertidos. Assim, por exemplo, quando salientamos a fidelidade da mensagem, o fato de a linguagem anteceder a mensagem escrita em si, e ser acessível a ambos os participantes no ato da comunicação parece tão natural que não é especialmente notado, mesmo nos casos complexos em que o receptor primeiramente percebe algumas indicações como em que códigos a mensagem está, para depois proceder a “leitura”. Quando os heróis do romance de Julio Verne, The Children of Captain Grant, tiraram os três fragmentos de um documento encontrados em uma garrafa, eles primeiro verificaram que um dos fragmentos era escrito em inglês, outro em alemão e o terceiro em francês, e só então começaram a trabalhar na reconstrução do sentido do documento dilacerado. Em outro caso, a ordem poderia ser

Page 11: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

21

oposta: primeiro o documento é adquirido e só depois sua linguagem é reconstruída. Essa ordem é absolutamente normal quando conseguimos um fragmento de uma cultura que está distante da nossa. Isso não acontece somente com textos verbais em línguas desconhecidas, mas também com relíquias de arte e cultura materiais separadas de seus contextos e cujas funções e significados devem ser reconstruídos pelos arqueólogos. Na história da arte, isso é particularmente comum uma vez que todo trabalho inovador de arte é sui generis um trabalho em linguagem desconhecida pelo público e que deve ser reconstruída e controlada pelos seus destinatários. Um destinatário é capaz desse tipo de “auto-instrução” porque, em primeiro lugar, em qualquer linguagem individualizada, embora extrema, nem tudo é individual: inevitavelmente, existem níveis comuns para ambos os participantes do ato da comunicação e que servem como base para a reconstrução. Em segundo lugar, o que é “individual” e novo inevitavelmente origina de alguma tradição a memória do que é atualizado no texto. E, finalmente, em terceiro lugar, a linguagem da arte é inevitavelmente heterogênea, mesmo que esteja longe de ser removida do pólo da metalinguagem e da linguagem artificial, ela deve, paradoxalmente, incluir elementos de auto-reflexividade, ou seja, estruturas metalingüísticas. A experiência da vanguarda européia proporciona provas convincentes de que a linguagem artística é a mais individualista, o ponto mais importante sobre a reflexão autoral na linguagem e na estrutura incluída nela. O texto, deliberadamente, transforma-se em uma lição de linguagem.

Assim, o espectro dos textos que preenchem o espaço da cultura pode ser representado como se esses textos estivessem dispostos paralelamente a um eixo, com um dos pólos formado pelas linguagens artificiais e o outro pela

22

linguagem artística. As outras linguagens são dispostas em pontos paralelos ao eixo, próximas a um ou outro pólo. No entanto, devemos ter em mente que os pólos desse eixo são uma abstração irrealizável nas atuais línguas, assim como é impossível a existência de uma linguagem artificial sem alguma sinonímia elementar e outros elementos “poéticos”. Assim, línguas com uma tendência perceptível rumo ao poetismo “puro” devem possuir tendências metalinguais.

Devemos também ter em mente que o ponto do texto no eixo acima mencionado é um ponto móvel. O leitor deve avaliar a correlação “poética” e “informacional” do texto de forma diferente da apresentada pelo autor. Quando Aseev escreveu:

Ya zapretil by “prodazhu ovsa i sena”… Ved’ eto pakhnet ubiistvom ottsa i syna [Eu deveria proibir “a venda de aveia e feno”... ’Você percebe que cheira a assassinato de pai e filho]

e quando em Pilnyak o camponês vem para a cidade e lê: “Kommutatory, akkumulyatory” [comutadores, acumuladores] como “Komu tatory, a komu lyatory” [alguns conseguem tadores, outros ladores], então é óbvio que o texto, que em ambos os casos, é um anúncio, no primeiro exemplo é escrito como um texto poético, e, no segundo, como se fosse um provérbio. Nas linhas de Aseev, o aspecto fonético está sendo erroneamente realçado e, na de Pilnyak, os aspectos sintagmáticos estão sendo decodificados de acordo com as leis da construção de provérbios.

A possibilidade da escolha de qualquer uma das opiniões para ser o ponto de referência na aproximação de um deles à linguagem tem conseqüências importantes. Na primeira opinião, o ponto de vista informacional (uso do "informacional” no sentido restrito) representa a linguagem como uma máquina para a transmissão de mensagens invariantes, e a linguagem poética é, então, considerada

Page 12: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

23

como trivial e, geralmente falando, um ângulo anormal desse sistema. De acordo com essa semelhança, a linguagem poética é vista meramente como uma linguagem natural com um revestimento de restrições e, conseqüentemente, uma capacidade informacional significativamente reduzida.

A outra opinião, no entanto, também é possível e tem sido demonstrada freqüentemente na lingüística. De acordo com essa visão, a função criativa é uma qualidade universal da linguagem e a linguagem poética é considerada como a manifestação mais típica da linguagem como tal. Desse ponto de vista, isso é exatamente o oposto dos modelos semióticos que, por conseguinte, são considerados como um ângulo trivial do espaço lingüístico.

A história da “discussão” entre aqueles dois talentosos lingüistas, Saussure e Jakobson, a esse respeito, é de interesse particular. Saussure observou claramente a primeira função como o princípio essencial da linguagem. Daí, a precisão de suas oposições, sua ênfase na significância universal do princípio da arbitrariedade na relação de significado e significante, e assim por diante. Por trás de Saussure, podemos perceber a cultura do século XIX com sua crença na ciência positivista, sua convicção de que o conhecimento é um benefício e a ignorância uma desgraça absoluta, seus anseios à literariedade universal, aos romances de Zola e dos Gouncourts. Jakobson foi sempre um homem de cultura de vanguarda, e seu primeiro trabalho, The Latest Russian Poetry. First Sketch (1921) foi, por assim dizer, o prólogo brilhante de toda sua carreira escolar. A linguagem de Khlebnikov, a linguagem dos Futuristas Russos, não foi uma anomalia para Jakobson, mas a realização mais consistente da estrutura da linguagem e um dos mais importantes incentivos para suas pesquisas fonológicas posteriores. De sua experiência no estudo da linguagem poética, resultou sua

24

sensibilidade pelo lado estético do sistema semiótico. Isso explica a intensidade de sua desaprovação quando atacou a posição central de Saussure, o princípio de arbitrariedade da conexão entre significante e significado no signo. (Veja Roman Jakobson, Quest for he Essence of Language). De fato, a linguagem do texto artístico adquire características secundárias do iconismo, que esclarece o problema da “intradutibilidade” da linguagem poética. No referido artigo, Jakobson faz uma análise extraordinária e sutil das características do iconismo inerentes na linguagem de uso diário, isto é, a presença do potencial artístico na linguagem em si. No início da década de 60, o Acadêmico Kolmogorov comprovou que não se pode escrever poesias em linguagem artificial, e Roman Jakobson comprovou convincentemente o iconismo potencial e, conseqüentemente, o aspecto artístico das linguagens naturais, confirmando dessa forma a idéia de Potebnya de que a esfera completa da linguagem pertence à arte.

A terceira função da linguagem é a função da memória. O texto é não somente o gerador de novos significados, mas também um condensador da memória cultural. Um texto tem a capacidade de preservar a memória de seus contextos prévios. Sem essa função, não poderia existir a ciência da história, já que a cultura das épocas precedentes (e falando de forma mais ampla, sua reprodução da vida) é, inevitavelmente, transmitida a nós em fragmentos. Se um texto permanece na consciência daquele que o percebe somente como ele mesmo, então o passado nos seria apresentado como um mosaico de fragmentos desconexos. Mas, para quem o percebe, um texto é sempre uma metonímia de um significado integral reconstruído, um sinal discreto de uma essência não discreta. A soma dos contextos, na qual um dado texto adquire interpretação e à qual está de

Page 13: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

25

certa forma incorporado, pode ser chamada memória do texto. Esse espaço-significado criado pelo texto ao redor de si mesmo faz parte da relação com a memória cultural (tradição) formada anteriormente na consciência da audiência. Como resultado, o texto adquire vida semiótica.

Toda cultura é constantemente bombardeada por textos casuais isolados que caem em cima dela como uma chuva de meteoritos. O que temos em mente não são os textos incluídos em uma tradição duradoura que tem influência na cultura, mas invasões isoladas e desruptoras. Esses textos podem ser resíduos de outras civilizações descobertas por acaso, textos trazidos por acaso de culturas remotas no tempo ou espaço. A menos que os textos tivessem sua própria memória e fossem capazes de criar uma aura semântica particular ao redor de si mesmos, todas essas invasões poderiam persistir como um conjunto de peças de museu separadas do processo cultural principal. Mas, de fato, esses são fatores importantes no estímulo da dinâmica cultural. Para um texto, ao contrário de um grão de trigo que contém dentro de si o programa de seu desenvolvimento futuro, nada é determinado definitivamente sem permitir mudanças. O interior, assim como a determinância ainda não finalizada de suas estruturas, fornecem um reservatório de dinamismo quando influenciados pelos contatos com novos contextos.

Existe outro aspecto para essa questão. É de se esperar que um texto que sobrevive através dos séculos se torne obsoleto e perca as informações contidas nele. Contudo, os textos que preservam sua atividade cultural demonstram uma capacidade de acumular informações, ou seja, uma capacidade de memória. Nos dias atuais, Hamlet não é somente uma peça de Shakespeare, mas é também a memória de todas as suas interpretações e, mais, é também a

26

memória de todos aqueles eventos históricos que ocorreram fora do texto, mas com os quais o texto de Shakespeare pode evocar associações. Podemos ter esquecido o que Shakespeare e seus espectadores conheciam, mas não podemos esquecer o que temos aprendido desde a época deles. E é isso que fornece ao texto novos significados.

Page 14: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

27

Autocomunicação: o “Eu”e o“Outro”como destinatários

Uma das premissas da culturologia moderna é que existe um elo orgânico entre cultura e comunicação. Uma conseqüência disto é que os modelos e termos tirados da teoria da comunicação estão sendo transferidos para a cultura. Aplicando o modelo básico de Roman Jakobson, consideramos possível estabelecer uma relação entre os sistemas da teoria da comunicação e um amplo leque de problemas no estudo da linguagem, da arte e, de uma maneira mais geral, da cultura. O conhecido modelo de Jakobson se apresenta da seguinte forma:

contexto

mensagem

emissor.............................destinatário

canal

código

Esse modelo único para situações comunicativas deu uma contribuição significativa para as ciências semióticas e muito trabalho de pesquisa tem sido feito a partir dele. Contudo, a aplicação automática de noções preconcebidas ao campo da cultura acarreta algumas dificuldades. Entre elas, destaca-se a seguinte: no mecanismo cultural, a comunicação é executada por pelo menos dois canais construídos de forma diferente.

Mais tarde, neste estudo, consideraremos como, em um único mecanismo cultural, devem estar presentes tanto o canal pictórico quanto o verbal, que podemos tratar como dois canais construídos diferentemente para a transmissão da informação. Contudo, ambos os canais podem ser descritos usando-se o modelo de Jakobson, e nesse aspecto eles são idênticos. Mas, se tomarmos a tarefa de construir um modelo

28

de cultura em um nível mais abstrato, podemos então identificar dois tipos de canais de comunicação, dos quais um pode ser descrito pelo modelo clássico do qual temos falado. Para isso, devemos primeiro identificar duas direções possíveis na transmissão da mensagem. A situação mais típica é a direção “eu-ele”, onde o “eu” é o sujeito da comunicação, o possuidor da informação, enquanto “ele” é o objeto, o destinatário. Neste exemplo, supõe-se que antes do ato de comunicação existia uma mensagem conhecida por “mim” e desconhecida por “ele”.

A predominância de comunicações deste tipo na cultura em que estamos costumava ofuscar a outra direção da transmissão da informação, uma direção que podemos descrever sistematicamente como a direção “eu-eu”. O caso do sujeito transmitindo uma mensagem para si mesmo, isto é, para uma pessoa que já a conhece, parece paradoxal. No entanto, isso ocorre com muita freqüência e tem um papel importante no sistema geral da cultura.

Quando falamos em comunicar uma mensagem pelo sistema “eu-eu” nós não estamos pensando principalmente naqueles casos em que o texto cumpre uma função mnemônica. Quando isso acontece, o “eu” outro, perceptivo, é funcionalmente equivalente a um terceiro indivíduo. A diferença vem do fato de que enquanto no sistema “eu-ele” a informação é transferida no espaço, no sistema “eu-eu” ela é transferida no tempo.

O que nos interessa é o caso onde a transferência da informação de “eu” para “eu” não está associada com um deslocamento no tempo, mas preenche uma outra função cultural, não-mnemônica. A comunicação de uma informação já conhecida para si mesmo efetua-se em todos os casos onde a qualidade da mensagem é aumentada. Quando, por exemplo, um jovem poeta lê seu poema impresso, a

Page 15: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

29

mensagem permanece textualmente a mesma do texto manuscrito. No entanto, sendo traduzido para outro sistema de signos gráficos que possuem outro grau de autoridade na cultura em questão, aquele poema adquire um valor suplementar. Casos análogos são aqueles onde a veracidade ou a falsidade de uma mensagem dependem se a mensagem é falada claramente em alta voz ou insinuada, se é falada ou escrita, manuscrita ou impressa, etc.

Mas a comunicação “eu-eu” acontece em inúmeros outros exemplos. Estes incluem casos onde uma pessoa se dirige a si mesma, por exemplo em anotações de diários, feitas não para se lembrar de certas coisas mas para elucidar o estado interior do escritor, algo que não seja possível fazer sem as anotações. Endereçar-se a si mesmo em textos, discursos, reflexões — este é um fato não apenas de psicologia, mas também de história da cultura.

No que se segue, tentaremos demonstrar que o lugar da autocomunicação no sistema da cultura é muito mais significativo do que se supõe comumente.

Mas como acontece esta estranha situação, em que uma mensagem transmitida através do sistema “eu-eu” não é totalmente redundante e adquire mesmo alguma nova informação suplementar?

No sistema “eu-ele” os elementos estruturais do modelo são variáveis (o emissor poderia ser trocado pelo destinatário), enquanto o código e a mensagem são invariáveis. A mensagem e a informação contida no código são constantes, enquanto o portador pode variar.

No sistema “eu-eu” o portador da informação permanece o mesmo, mas a mensagem é reformulada e adquire um novo significado durante o processo de comunicação. Esse é o resultado de se introduzir um outro código suplementar: a mensagem original é recodificada nos

30

elementos de sua estrutura e assim adquire traços de uma nova mensagem.

O diagrama para este tipo de comunicação é o que se segue:

contexto mudança de contexto

mensagem 1 mensagem 2 Eu �....................................................................... �Eu’

Código 1 Código 2

O sistema “eu-ele” nos permite apenas transmitir uma quantidade constante de informação, ao passo que o sistema “eu-eu” transforma a informação qualitativamente, o que leva a uma reestruturação do próprio “eu” real. No primeiro sistema, o emissor transmite uma mensagem para uma outra pessoa, o destinatário, mas permanece o mesmo ao longo do ato. No segundo sistema, enquanto se comunica consigo mesmo, o emissor reconstrói internamente sua essência, desde que a essência de uma personalidade possa ser pensada como um conjunto individual de códigos significantes, e este conjunto se transforme durante o ato de comunicação.

A transmissão de uma mensagem pelo canal “eu-eu” não é um processo que se encerra em si mesmo, já que é causado pela intrusão de códigos suplementares vindos de fora, e por estímulos internos que alteram a situação contextual.

Um típico exemplo disto é o efeito de sons ritmados (o tamborilar de rodas ou de música ritmada) sobre um monólogo interior. Existem numerosos textos literários que atribuem uma fantasia selvagem e vívida para o ritmo da marcha de um cavalo (“The Forest King” de Goethe, muitos poemas no “Lyrical Intermezzo” de Heine), para o balanço de um barco (“Dream at Sea” de Tyutchev) ou para os ritmos de

Page 16: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

31

uma estrada de ferro (a música “Journey Song” de Glinka para os versos de Kukol’nik).

A este respeito, analisemos “Dream at Sea” [sonho no Mar] de Tyutchev.

1. Mar e tempestade, ambos balançavam nosso barco; 2. Sonolento, entreguei-me totalmente ao capricho das ondas. 3. Havia dois infinitos em mim, 4. E eles começaram a brincar obstinadamente comigo. 5. À minha volta as rochas soavam como címbalos, 6. Os ventos respondiam e as ondas cantavam. 7. Ensudercido eu jazia no caos de sons, 8. Mas meu sonho se elevou sobre o caos de sons. 9. Dolorosamente brilhante, magicamente mudo, 10. Flutuava luminosamente pela escuridão sonora. 11. Nos raios do relâmpago difuso revelou seu mundo 12. A terra cresceu verde, e o ar brilhante, 13. Jardins–labirintos, palácios, colunas, 14. E as multidões silenciosas formigavam. 15. Reconheci muitas faces que não conhecia. 16. Vi animais maravilhosos, pássaros misteriosos, 17. Como Deus, andei sobre as alturas da criação, 18. E sob meus pés o mundo imóvel radiante. 19. Mas através dos meus sonhos, como os gritos de um mago, 20. Ouvi o trovão do redemoinho do mar, 21. E no domínio do silêncio de visões e sonhos 22.Irrompeu a espuma das ondas ruidosas.2

No momento, não estamos interessados nas idéias importantes para Tyutchev, sobre a justaposição ou contraste entre a vida interior de uma pessoa, de um lado, e o mar, de

2 Both the sea and the storm rocked our boat;/Drowsy I gave myself over entirely to the whim of the waves./There were two infinities in me;/ And they began wilfully to play with me./Around me the rocks sounded like cymbals./The winds answered and waves sang./Deafened I lay in the chaos of sounds,/But my dream rose up over the chaos of sound./Painfully brigth, magically dumb,/It wafted lightly over the sounding dark./ In the rays of sheet lightning in unfolded its world/The earth grew green, and air grew bright,/Labyrinth-gardens, palaces, columns,/ And the multitudes of the silent crowd swarmed./I recognized many faces I had not known./I saw marvellous beasts, mysterious birdes,/Like God, I trod over the heigthts of creation,/And the world immobile under my feet was radiant./But through all my dreams, like the howl of a wizard,/I heard the thunder of the sea’s whrilpool,/And into the silent domain of visions and dreams/Burst in the foam of the roaring waves.

32

outro (“Pensamento atrás de pensamento, onda atrás de onda”, “Existe música nas ondas do mar”).

O texto é evidentemente baseado em uma experiência real, a lembrança de uma tempestade que durou quatro dias em setembro de 1833, quando Tyutchev viajava pelo mar Adriático. Nosso interesse no poema se refere às suas evidências sobre a auto-observação psicológica do autor (certamente não se pode negar a legitimidade dessa abordagem, entre outras, para um texto).

O texto distingue dois componentes no estado interior da mente do autor: o sonho mudo e o barulho ritmado da tempestade. O último componente é marcado pela intrusão inesperada de versos anapésticos no texto anfibráquico (versos 4, 5, 7, 18).

4. I mnói svoevól’no igráli oné, 5. Vkrug menya kak kimvály, zvucháli skalý, 7. Ya v kháose zvúkóv lezhál oglushén, 18. I mir podo mnóyu nedvízhnyi siyál.

Os versos que falam do barulho da tempestade, e os dois versos simétricos iniciados com “mas”, que retratam a intrusão do sonho no barulho da tempestade ou do barulho da tempestade no sonho, são anapésticos. O verso que trata do tema filosófico do “abismo dual” (os “dois infinitos”), um tema encontrado em outros poemas de Tyutchev, é marcado como o único verso datílico do poema (verso 2).

O barulho da tempestade contra o pano de fundo do mundo sem som do sonho (“magicamente mudo”, as multidões “silenciosas”) é claramente enfatizado por uma abundância de traços fonéticos. Mas são precisamente esses sons ritmados e ensurdecedores que compõem o pano de fundo rítmico que serve para liberar o vôo do poeta e seus vívidos pensamentos.

Page 17: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

33

Tomando outro exemplo (do capítulo 8 de Eugene Onegin):

XXXVI 1. O que aconteceu? Embora seus olhos lessem, 2. seus pensamentos estavam em um ponto distante: 3. desejos e sonhos e pesares brotando 4. e fervilhando em sua alma mais íntima 5. Entre os versos do texto, como impresso, 6. os olhos da sua mente focalizavam o insinuado 7. Sentido de outros versos; intensa 8. era sua absorção nos sentidos 9. Lendas e tradições místicas, 10. extraídas de um passado vago, afetuoso, 11. sonhos de arremesso inconseqüente, 12. rumores e ameaças e premonições, 13. histórias longas e cheias de vida do país das maravilhas, 14. ou cartas nas mãos de uma jovem. 3

XXXVII 1. Então, gradualmente sob uma sensação, 2. e um pensamento, um entorpecimento sonolento se move; 3. diante de seus olhos, a imaginação 4. apresenta seu jogo de azar, e dá as cartas. 4

XXXVIII 9. Quem poderia melhor ter olhado o poeta, 10. no recanto em que se assentara sozinho 11. à ladeira fulgurante, e entoando 12. Idol mio ou Benedetta, 13. deixando cair nas chamas, distraído 14. um chinelo, ou uma revista? 5

3 What happened? Though his eyes were reading,/his thoughts were on a distant goal:/desires and dreams and griefs were breeding/and swarming in his inmost soul/Between the lines of text as printed,/his mind’s eye focused on the hinted/purport of other lines; intense/was his absorption in their sense./Legends, and mystical traditions,/drawn form a dim, warm-hearted past,/dreams of inconsequential cast,/rumours and threats and premonitions,/long, lively tales from wonderland,/or letters in a young girl’s hand.

4 Then gradually upon sensation,/and thought, a sleepy numbness steals;/before his eyes, imagination/brings out its faro pack, and deals.

5 Who could have looked the poet better,/as in the nook he’d sit alone/by blazing fireplace, and intone/Idol mio ou Benedetta,/and on the flames let fall unseen/a slipper, or a magazine?

34

Nesse exemplo temos três códigos externos, formadores de ritmo: o texto impresso, o bruxulcar do fogo e a melodia “entoada”. Muito tipicamente, o livro que Onegin está lendo não fornece uma mensagem: o herói o lê, contudo, sem perceber seu conteúdo (XXXVI, versos 1-2); o livro serve para estimular o fluxo de seus pensamentos. E ele o faz não pelo seu conteúdo, mas pelo seu automatismo mecânico da leitura. Onegin “lê sem ler”, assim como ele olha o fogo sem enxergá-lo, e cantarola sem saber o que está fazendo. Nenhuma destas séries rítmicas, percebidas através de diferentes órgãos do sentido, tem qualquer relação semântica direta com o “jogo do azar” da sua imaginação. Mas ele precisa destes ritmos de maneira que, com seus “olhos da mente”, ele possa ler “outros versos”. A intrusão do ritmo externo organiza e estimula o monólogo interior.

Um terceiro exemplo é o monge budista japonês contemplando um “jardim de pedras”. Este jardim é uma área de pedregulhos relativamente pequena, onde as pedras estão colocadas de acordo com um ritmo matemático elaborado. A contemplação de um modelo elaborado de pedras e pedregulhos tem intenção de evocar um clima propício à introspecção.

Essas várias séries rítmicas, variando de repetições musicais a ornamentações repetidas, são construídas de acordo com princípios sintagmáticos claramente expressos, mas não têm sentido semântico próprio: podemos tratá-las como códigos externos cujo efeito é reestruturar a comunicação verbal. Contudo, para o sistema funcionar, deve existir um confronto e uma interação entre dois princípios diferentes: uma mensagem em alguma linguagem semântica e a intrusão de um código suplementar, puramente sintagmático. Apenas quando estes princípios são combinados pode existir o

Page 18: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

35

sistema comunicativo que nós denominamos linguagem “eu-eu”.

Por isso, estabelecemos a existência de um canal especial de autocomunicação. Aliás, essa questão já foi pesquisada: Vygotsky apontou a existência de uma linguagem especial, voltada para a função comunicativa, que ele descreveu como “discurso interno”. Ele mostrou seus traços estruturais:

A diferença essencial entre discurso interno e externo é a ausência de verbalização. O discurso interno é mudo, sem voz. Este é o seu principal traço diferenciador. Mas a evolução do discurso egocêntrico tende a um aumento gradual dessa característica... O fato de que essa característica se desenvolve gradualmente, de que o discurso egocêntrico pode ser distinguido pela sua função e estrutura antes da verbalização, demonstra apenas o que tomamos como base de nossa hipótese sobre discurso interior, ou seja, que o discurso interior se desenvolve não pelo enfraquecimento externo de seu aspecto fônico, passando do discurso para o murmúrio e do murmúrio para o discurso silencioso, mas pela sua demarcação funcional e estrutural a partir do discurso externo; pois ele se move do discurso externo para o discurso egocêntrico, e do discurso egocêntrico para o discurso interior.

Tentemos descrever algumas das características do sistema autocomunicativo.

O primeiro traço que o distingue do sistema “eu-ele” é a redução das palavras nesta linguagem: elas tendem a se tornar signos de palavras, índices de signos. No caderno de prisão de Kyukhelbeker há uma passagem notável sobre esse tópico:

Observei algo estranho, algo que psicólogos e fisiologistas achariam curioso: tenho sonhado não com objetos, ou eventos, mas com alguns tipos de abreviações estranhas relacionadas a eles, como hieróglifos em relação a uma pintura, ou páginas de um livro em relação ao próprio livro. Pergunto-me se isso não é o resultado de existirem tão poucos objetos à minha volta, ou tão poucos eventos acontecendo comigo?

36

A tendência de as palavras se tornarem reduzidas na linguagem “eu-eu” deve ser vista nas abreviações de notas que usamos para nós mesmos. Na análise final, as palavras nessas notas se tornam índices que podem ser decifrados apenas se soubermos o que foi escrito. Comparam-se as descrições do Acadêmico Krachkovsy da antiga tradição escrita do Alcorão: “Scripto defectiv. A ausência não apenas de vogais curtas, mas também de longas, e de sinais diacríticos. Apenas pode ser lido quando o texto é conhecido de cor.” Um vívido exemplo deste tipo de comunicação se encontra na famosa cena de Anna Karenina quando Levin declara seu amor por Kitty; a cena é ainda mais interessante porque reproduz a proposta de Tolstoy à sua noiva Sofya Andreevna Bers:

“Aqui”, ele disse, e escreveu as letras iniciais: q, v, m, d, q, n, p, s – a, s, n, o, e? estas letras significavam: “Quando você me disse que não podia ser – aquilo significava nunca, ou então?”... “Eu sei o que é”, ela disse, corando. “O que é esta palavra?” ele perguntou, apontando o n que significava nunca. “Isso quer dizer nunca”, ela disse.

Em todos esses exemplos estamos preocupados como casos onde o leitor entende o texto apenas porque ele o conhece previamente (no livro de Tolstoy, Kitty e Levin já são, emocionalmente, um único ser; a fusão do remetente e do destinatário ocorre diante de nossos olhos).

As palavras-índice formadas como resultado desta redução têm uma tendência a iso-ritmicalidade. É uma característica da sintaxe desse tipo de recurso que não forma sentenças completas, mas tende a ser uma cadeia não-finalizada de repetições rítmicas.

A maioria dos exemplos que apresentamos aqui não são exemplos puros de comunicação “eu-eu”, mas soluções de

Page 19: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

37

compromisso que têm acontecido como resultado da deformação de um texto-linguístico normal sob a influência das leis desse tipo de comunicação. Aí, devemos distinguir dois tipos de autocomunicação: as que possuem uma função mnemônica e as que não possuem.

Um exemplo do primeiro tipo é a conhecida nota de Pushkin, escrita para o texto manuscrito do poema “Under the blue sky of your native land”:

Usl o s.m, 25 U o s. R.P. M. K. B: 24

Isto tem sido representado como: “Uslyshal o smerti Riznich 25 iyulya 1826 g.” “Uslyshal o smerti Ryleeva, Pestelya, Murav’eva, Kakhovskogo, Bestuzheva 24 iyulya 1826 g.” [Ciente da morte de Bestuzhev, a 24 de julho de 1826].

Essa nota tem claramente uma função mnemônica, embora não devamos esquecer outro fator: em vista das conecções incomuns entre significado e significante no sistema “eu-eu”, ela se presta à criptografia, já que é construída com a fórmula: “Deixe aqueles que entendem entenderem.” Quando um texto é encifrado, ele é, como regra, traduzido do sistema “eu-ele” para o sistema “eu-eu” (os membros de um grupo que usam uma cifra são neste exemplo vistos como um único “eu”, e em relação a eles, as pessoas das quais o texto deve ser dissimulado formam uma terceira pessoa composta). No texto de Pushkin é verdade que existe uma ação, obviamente inconsciente, que não é para ser explicada nem pela função mnemônica, nem pela natureza secreta da nota: na primeira linha as palavras estão abreviadas a um grupo de várias letras, enquanto na segunda linha as palavras estão abreviadas a uma única letra. Os índices tendem em direção a uma igualdade na extensão e em direção ao ritmo. Na primeira linha, desde que a preposição

38

[“o”-sobre] tende a elidir com o nome, dois grupos são formados [“usl” e “osm”], e estes grupos, dado o paralelismo fonológico entre “u” e “o” por um lado, e entre “l” e “m”, por outro, revelam uma organização não apenas rítmica, mas também fonológica. Na segunda linha, a necessidade conspiratória de abreviar os sobrenomes a apenas uma letra produz um outro ritmo interno, e todas as outras palavras são reduzidas ao mesmo grau. Seria bizarro e monstruoso supor que Pushkin construiu deliberadamente esta nota trágica com a intenção de dar a ela uma organização rítmica e fonológica – definitivamente este não é o ponto: as leis imanentes e inconscientes ativantes da autocomunicação revelam traços estruturais geralmente observados em textos poéticos.

Essas características se tornam ainda mais claras no próximo exemplo, que não possui função mnemônica nem conspiratória, e é um exemplo de autocomunicação em sua forma mais pura. Nós temos em mente as anotações inconscientes que Pushkin fez em processo de pensamento, provavelmente sem perceber.

Em 9 de maio de 1928, Pushkin escreveu o poema “Alas! The tongue of garrulous love”, dedicado a Anna Alekseevna Olenina, com quem esperava se casar. Lá encontramos a seguinte anotação:

etternna eninelo eninelo ettenna

e, próximo, a nota:

“Olenina Annette”

Acima de “Annette”, Pushkin escreveu “Pouchkine”. Não é difícil restabelecer a linha de pensamento de Pushkin: ele estava pensando em Annette Olenina como sua noiva e esposa (a nota “Pouchkine”). O texto é um anagrama (lido da

Page 20: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

39

direita para a esquerda) do nome e sobrenome de Annette, em quem ele estava pensando em francês.

O mecanismo desta nota é interessante. Primeiro, o nome, lido de trás para frente, se torna um índice convencional. A repetição então estabelece um ritmo, enquanto a transposição é uma destruição rítmica do ritmo. A natureza de tipo verso desta construção é óbvia.

O mecanismo de transmissão da informação pelo canal “eu-eu” pode ser encarado como se segue: uma mensagem em uma língua natural é introduzida, seguida por um código suplementar, de organização puramente formal. Este código suplementar tem uma construção sintagmática e ou é totalmente desprovido de valor semântico ou tende a sê-lo. Surge a tensão entre a mensagem original e o código secundário, e o efeito desta tensão é a tendência de interpretar os elementos semânticos do texto como se eles estivessem incluídos na construção sintagmática suplementar e tivessem adquirido, por meio desta interação, sentidos novos, relacionais. Apesar de o código secundário visar a liberação de elementos significantes primários dos seus valores semânticos normais, isto não acontece. Os valores semânticos normais permanecem, mas sentidos secundários são impostos a eles, os quais são o resultado do efeito de várias séries rítmicas sobre os elementos significantes. Mas esta não é a única coisa que transforma o sentido do texto. O crescimento das conecções sintagmáticas dentro da mensagem abafa as conecções semânticas principais, e a um certo nível de percepção, o texto pode se comportar como uma complexa mensagem a-semântica. Mas textos a-semânticos com um alto grau de organização sintagmática tendem a se tornar organizadores de nossas associações. Sentidos associativos são imputados a eles. Se, por exemplo, olharmos o desenho de um papel de parede, ou ouvirmos uma música abstrata, atribuiremos sentido aos elementos

40

desses textos. Quanto mais a organização sintática for acentuada, mais livre e associativa serão nossas conecções semânticas. Então o texto “eu-eu” tende a aumentar os significados individuais e a assumir a função de organizar as associações desordenadas que se acumulam na consciência individual. Ele reorganiza a personalidade envolvida na autocomunicação.

Assim, o texto carrega um triplo valor semântico: o valor principal geral linguístico-semântico; o valor semântico secundário, que surge da reorganização sintagmática do texto e da justaposição com os valores principais; e, em terceiro lugar, valores que surgem da introdução de associações extra-textuais na mensagem, estendendo-se do mais geral ao extremamente pessoal.

Deve ficar claro que o mecanismo que temos apresentado serve também para descrever os processos que se situam no cerne da criação poética.

Mas o princípio poético é uma coisa, e textos poéticos reais são outra. Identificar os últimos com mensagens “eu-eu” seria simplista. Um texto poético verdadeiro é transmitido através de dois canais simultaneamente (são exceções: textos experimentais, glossolalia, canções infantis sem sentido, zaum’, assim como textos em línguas que a audiência não entende). Um texto poético oscila entre os sentidos transmitidos pelo canal “eu-ele” e os formados no processo de autocomunicação. E o texto é percebido como “verso” ou “prosa” de acordo com a sua proximidade com cada fim do eixo ou do tipo de transmissão.

A orientação de um texto em direção a uma mensagem lingüística principal ou em direção a uma complexa reconstrução de sentidos e aumento de informação não significa por si só que o texto vai funcionar como poesia ou prosa; isso depende também de como o texto está

Page 21: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

41

relacionado com os modelos culturais desses conceitos em um dado período.

Nossa conclusão é que a comunicação humana pode ser construída através de dois modelos. No primeiro exemplo, estamos lidando com uma informação previamente dada, transmitida de uma pessoa para outra com um código que permanece constante durante o ato de comunicação. No segundo exemplo, lidamos com um aumento na informação, sua transformação, reformulação, e com a introdução não de novas mensagens, mas de novos códigos, e nesse caso o emissor e o destinatário estão contidos na mesma pessoa. No processo dessa autocomunicação, a pessoa real é regenerada e esse processo é conectado com uma grande variedade de funções culturais, que se estendem do sentido de existência individual, que em alguns tipos de cultura é essencial, à auto-descoberta e à auto-psicoterapia.

Diferentes tipos de estruturas formais podem funcionar como tais códigos. Quanto mais sua organização é a-semântica, melhor elas desempenham seu papel. Estruturas desse tipo incluem objetos espaciais como modelos ou padrões arquitetônicos que são feitos para ser observados, ou objetos temporais como a música.

A questão dos textos verbais é mais complicada. Já que na função autocomunicativa pode ser mascarada e se parecer com outros tipos de comunicação (por exemplo, uma oração pode ser pensada como uma mensagem para uma força poderosa externa ao invés de uma mensagem para si mesmo; uma segunda leitura de um texto familiar pode ser pensado como uma comunicação com o autor, etc.), o destinatário que recebe um texto verbal tem que decidir se o texto é um código ou uma mensagem. Isto vai depender amplamente da inclinação do emissor, já que um mesmo texto pode fazer

42

papel de texto e código, oscilando entre os dois pólos ou sendo os dois ao mesmo tempo.

Devemos diferenciar dois aspectos dessa questão: as características do texto que permitem a ele ser interpretado como código, e a maneira que o texto funciona para que seja corretamente usado.

Os sinais de que devemos tratar um texto não como uma mensagem comum, mas como um modelo de códigos, são as séries rítmicas, repetições, organizações suplementares do texto, ou seja, tudo o que é bastante supérfluo do ponto de vista da comunicação “eu-ele”. O ritmo não é um nível estrutural em línguas naturais. Note-se que enquanto a função poética da fonologia, da gramática e da sintaxe tem analogias nos correspondentes níveis não-literários do texto, tal analogia não existe para a métrica.

Os sistemas rítmico-métricos têm sua origem não no sistema “eu-ele”, mas no sistema “eu-eu”. O princípio amplamente usado da repetição no nível fonológico e também outros níveis da língua natural é uma invasão da autocomunicação em uma esfera da linguagem que é estranha a ela.

Funcionalmente falando, um texto é usado como código e não como mensagem quando ele não acrescenta nada à informação que já temos, mas quando ela transforma o auto-entendimento da pessoa que criou o texto e quando ela transfere mensagens preexistentes para um novo sistema de significados. Se a leitora N recebe a mensagem de que uma certa mulher chamada Anna Karenina se jogou debaixo de um trem por causa de um caso de amor infeliz, e se a leitora, ao invés de juntar esta informação ao que ela já sabe, chega à seguinte conclusão: “Anna Karenina sou eu”, e começa a mudar seu entendimento de si mesma, sua relação com as pessoas e talvez mesmo o seu comportamento, então ela está

Page 22: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

43

obviamente usando o livro não como uma mensagem como qualquer outra, mas como um tipo de código em seu próprio processo de autocomunicação.

Tatyana de Pushkin lê romances exatamente da seguinte forma:

X 1. Vendo a si mesma como criação- 2. Clarissa, Julie ou Delphina- 3. por escritores de sua admiração, 4. Tatyana, solitária heroína, 5. vagava pela floresta solitária, como um guarda-florestal, 6. procurou em seu livro, aquele texto do perigo, 7. e encontrou seus sonhos, seu fogo secreto, 8. o fruto do seu íntimo desejo; 9. ela suspirou, e em transe, co-optou 10. a alegria de outro, o seio de outro, 11. sussurrou de cor uma nota destinada 12. ao herói que ela tinha adotado. 13. Mas o nosso, o que quer que ele seja, 14. o nosso não era nenhum Gradison — não ele. 6

O texto do livro que Tatyana está lendo se converte em um modelo para a reinterpretação da realidade. Tatyana não tem dúvida que Onegin é um personagem romântico; a única coisa que ela não sabe é que papel dar a ele:

Kto ty, moi angel li khranitel’, Ili kovarnyi iskusitel’?

... Mas quem é você: o anjo guardião da tradição, ou algum agente vil da perdição enviado para seduzir?

6 Seeing herself as a creation –/Clarissa, Julie, or Delphine –/by writers of her admiration,/Tatyana, lonely heroine,/roamed the still forest like a ranger,/sought in her book, that text of danger,/and found her dreams, her secret fire,/the full fruit of heart’s desire;/she sighed, and in a trace co-opted/another’s joy, another’s breast,/whispered by heart a note addressed/to the hero that she adopted./But ours, whatever he might be,/ours was no Grandison – not he.

44

É bastante característico que a carta de Tatyana para Onegin admita duas partes: em seu esqueleto (os dois primeiros versos e o último), onde Tatyana escreve como uma jovem doente de amor por um proprietário de terras vizinho, ela naturalmente se dirige a ele pelo formal “vy”, mas na parte central, onde ela se imagina com ele em tramas românticas, ela usa o íntimo “ty”. Como Pushkin nos adverte, já que o original da carta foi escrito em francês, onde “vous” é usado nos dois casos, a forma de tratamento na parte central da carta é exatamente um sinal da natureza de livro, irreal, de tipo código deste texto.

É interessante que o Romantic Lensky também explique as pessoas (inclusive ele próprio) para si mesmo identificando-as com textos. Pushkin aqui usa demonstrativamente os mesmos clichês: spasitel’/khranitel’ [salvador/guardião] –rasvratitel’/iskusitel’ [sedutor/tentador]:

on myslit: “budu ei spasitel”. Ne poterplyu, chtob razvratitel” [ele murmura: “Olga é minha por salvação; Vou acabar com esse demônio da depravação.”]

Em todos esses exemplos os textos funcionam não como mensagem em uma língua particular (nem para Pushkin, nem para Tatyana ou Lensky), mas como códigos que concentram informações sobre o tipo real de linguagem.

Nossos exemplos são tomados da literatura, mas seria errado concluir que poesia é comunicação “eu-eu” em sua forma mais pura. O mesmo exemplo pode ser visto em uma forma mais consistente, não em arte, mas em textos de fundo moral ou religioso como em parábolas, em mitos e em provérbios. As repetições acharam seu lugar nos provérbios quando ainda não eram percebidas esteticamente, mas

Page 23: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

45

possuíam uma função mnemônica ou moralizante mais importante.

A repetição de certos elementos arquitetônicos no interior de uma igreja nos faz perceber a estrutura não como algo ligado às exigências técnicas de construção, mas, digamos, como um modelo do universo ou da personalidade humana. Exatamente porque o interior de uma igreja é um código e não um texto simplesmente, nós o percebemos não apenas esteticamente (somente um texto, não as regras de sua construção, pode ser percebido esteticamente), mas também de um modo religioso, filosófico, teológico ou de outra maneira não-artística.

A arte não nasce do sistema “eu-ele” nem do sistema “eu-eu”. Ela se utiliza dos dois sistemas e oscila no campo da tensão estrutural entre eles. O efeito estético surge quando o código é tomado por uma mensagem e a mensagem por código, isto é, quando um texto é passado de um sistema de comunicação para outro enquanto o público permanece consciente de ambos.

A natureza de textos artísticos como um fenômeno que oscila entre dois tipos de comunicação não impede o fato de certos gêneros serem apresentados de forma que se os percebam mais ou menos como mensagens ou códigos. Um poema lírico e um ensaio obviamente não são para ser relacionados com um ou outro sistema de comunicação da mesma forma. Mas além da orientação do gênero, em certos momentos, por causa de fatores históricos, sociais ou outros, a literatura em geral (e até a arte como um todo) pode ser caracterizada pela sua orientação em relação à autocomunicação. Um bom critério de trabalho para diagnosticar a orientação geral da literatura com respeito à mensagem é uma atitude negativa em relação a um texto padrão. Mas a literatura que é orientada em direção à

46

autocomunicação não vai apenas evitar textos-padrão, mas vai manifestar uma tendência de transformar estes textos em textos-padrão para identificar o que é “elevado”, “bom” e “verdadeiro” com o que é “estável”, “eterno”, isto é, com o modelo.

No entanto, distanciar-se de um pólo (e ainda levantar polêmicas conscientes sobre ele) não significa deixar sua influência estrutural. Por mais que um trabalho de literatura imite uma notícia de jornal, ele preserva um traço típico do texto autocomunicativo – sua qualidade de ser legível muitas vezes. Nós relemos mais naturalmente Guerra e Paz do que as fontes históricas usadas por Tolstoy. Ao mesmo tempo, por mais que um texto artístico verbal se empenhe, por razões de polêmica ou experimentação, em deixar de ser uma mensagem, ele não o consegue, como prova a história da arte.

Textos poéticos são formados evidentemente a partir de uma “troca” de estruturas: texto criado no sistema “eu-ele” funcionam como autocomunicação e vice-versa; textos se tornam códigos e códigos mensagens. Seguindo as leis da autocomunicação – a divisão do texto em segmentos rítmicos, a redução das palavras a índices, o enfraquecimento das conecções semânticas e a ênfase nas conexões sintagmáticas – o texto poético está em conflito com as leis da língua natural. E, contudo, nós o percebemos como o texto em uma língua natural, de outra forma ele não poderia existir ou preencher sua função comunicativa. Por outro lado, se a visão de que poesia é simplesmente mensagem em uma língua natural “levar a melhor”, nós perdemos o senso de sua especificidade. A alta capacidade modeladora da poesia está associada com a sua transformação de mensagem para código. O texto poético é um tipo de pêndulo que oscila entre

Page 24: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

47

os sistemas “eu-ele” e “eu-eu”. O ritmo surge do nível de sentido, e o sentido é formado do ritmo.

As leis de construção do texto artístico são, em grande medida, as leis de construção da cultura como um todo. Portanto, a própria cultura pode ser tratada tanto como a soma das mensagens enviadas por vários emissores (para cada um deles o destinatário é outro “ele”), quanto como uma mensagem transmitida por um “eu” coletivo da humanidade para ela mesma. Desse ponto de vista, a cultura humana é um vasto exemplo de autocomunicação.

A transmissão simultânea ao longo de dois canais de comunicação não é somente uma propriedade de textos artísticos, é também uma característica da cultura, se tomarmos cultura como uma mensagem única. Podemos então dividir as culturas entre aquelas onde predomina a mensagem transmitida pelo canal lingüístico geral “eu-eu”, e aquelas orientadas em direção à autocomunicação.

Já que a “mensagem 1” pode se constituir de amplas camadas de informação que de fato compõem a especificidade da personalidade, a reestruturação dessas camadas vai resultar na alteração da estrutura da personalidade. Devemos lembrar que se o esquema “eu-ele” implica transmissão de informação sem alteração no volume, o esquema “eu-eu” trabalha em relação ao aumento de informação (a “mensagem 2” não invalida a “mensagem 1”).

A cultura européia moderna é orientada conscientemente com relação à comunicação “eu-ele”. O consumidor cultural está na posição de um destinatário ideal, ele recebe informação de todos os lados. Pedro o Grande formulou claramente esta posição quando disse: “Sou um discípulo que exige ser ensinado.” The True Mirror of Youth aconselha os jovens a ver a educação como aquisição do

48

conhecimento, “desejando aprender com cada um, sem arrogância”. Devemos enfatizar que estamos falando de uma orientação, já que, no nível da realidade textual, toda cultura consiste de ambos os tipos de comunicação. Além do que, esta característica não é específica para a cultura moderna – ela pode ser vista em diferentes formas, em diferentes períodos. Escolhemos a cultura européia dos séculos XVIII e XIX porque esta cultura tem condicionado nossas idéias científicas normais e especialmente nossa identificação do ato de informação com a aquisição e a troca. Contudo, de forma alguma todos os casos conhecidos da história da cultura podem ser explicados a partir dessas posições.

Observe-se a situação paradoxal em que nos encontramos quando consideramos o estudo do folclore. Nós sabemos que o folclore tem fornecido a evidência mais firme para os paralelos estruturais com as línguas naturais, e que métodos lingüísticos têm sido aplicados ao folclore com grande sucesso. De fato, o pesquisador vai encontrar nesse campo um número definido de elementos no sistema e regras relativamente fáceis para sua combinação. Mas aqui nós devemos mostrar também uma profunda diferença: a língua fornece um sistema formal de expressão, mas o campo do conteúdo permanece, do ponto de vista da linguagem como tal, extremamente livre. O folclore, e especialmente formas suas assim como o conto mágico, torna ambas as esferas extremamente automatizadas. Mas isto é um paradoxo. Se o texto fosse de fato construído desta forma, ele seria totalmente redundante. E o mesmo poderia ser dito de outras formas de arte orientadas canonicamente, no cumprimento e não na violação de normas e regras.

A resposta está evidentemente no fato de que, se textos deste tipo têm um certo valor semântico desde o seu começo (a semântica do conto mágico evidentemente era uma função

Page 25: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

49

da sua relação com o ritual), esses valores eram subseqüentemente perdidos e os textos começavam a adquirir características de organizações puramente sintagmáticas. Enquanto no nível da língua natural eles obviamente têm valor semântico, no nível da cultura eles tendem à sintagmática pura, isto é, de textos, eles passam a “códigos 2”. Quando Lévi-Strauss falou da natureza musical do mito, ele tinha em mente a tendência de os mitos se tornarem puramente sintagmáticos, textos a-semânticos, não registros de eventos particulares, mas esquemas para a organização de mensagens.

Para que a cultura exista como um mecanismo organizador da personalidade coletiva com uma memória comum e uma consciência coletiva, deve estar presente um par de sistemas semióticos com a conseqüente possibilidade de tradução do texto.

Os sistemas comunicativos “eu-ele” e “eu-eu” formam justamente um par como aquele (a propósito, devemos dizer que uma lei aparentemente universal para culturas humanas é que um dos membros de qualquer par semiótico formador de cultura deve ser língua natural, ou incluir língua natural).

Culturas reais como textos artísticos são construídas no princípio de que o pêndulo oscila entre sistemas. Mas existirá uma tendência predominante para a cultura de ser orientada ou em direção à autocomunicação, ou em direção à aquisição de verdade exterior, na forma de mensagens. Essa tendência vai se evidenciar particularmente bem na imagem mitologizada que cada cultura cria como seu auto-retrato ideal. Esse modelo próprio tem uma influência nos textos da cultura mas não pode ser identificado com ela, sendo algumas vezes uma generalização de princípios estruturais dissimulados por trás de contradições textuais, e às vezes o oposto direto deles (no campo da tipologia cultural há o

50

conhecido fato de gramáticas que são, a princípio, inaplicáveis aos textos da língua que afirmam descrever).

As culturas, orientadas para a mensagem, são mais móveis e dinâmicas. Elas têm uma tendência a aumentar o número de textos ad infinitum, e incentivam um rápido aumento no conhecimento. A cultura européia do século XIX é um exemplo clássico disso. O avesso desse tipo de cultura é a nítida divisão da sociedade em transmissores e receptores, o aumento de uma tendência psicológica de adquirir verdade na forma de informação pré-embrulhada sobre os esforços mentais de outras pessoas, um aumento na passividade social daqueles que se encontram na posição de receptores de informação. Obviamente, um leitor de um romance europeu é mais passivo que um ouvinte de um conto de fadas que deve transformar a história padrão em um texto de sua própria consciência; um espectador de uma peça de teatro é mais passivo que um folião no carnaval. A tendência ao consumismo mental é um aspecto perigoso da cultura que é orientada assimetricamente em direção à aquisição de informação a partir do exterior.

As culturas orientadas em direção à autocomunicação são capazes de grande atividade, mas são freqüentemente muito menos dinâmicas do que a sociedade humana requer.

A experiência histórica tem mostrado que as culturas mais viáveis são aqueles sistemas onde a luta entre essas estruturas não tem resultado em uma vitória total para uma delas.

Mas temos ainda um longo caminho até sermos capazes de fazer qualquer previsão bem fundamentada sobre as estruturas favoráveis da cultura. Até lá, devemos entender e descrever seu mecanismo, ao menos em suas manifestações mais típicas.

Page 26: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

51

Uma alternativa: cultura sem letramento ou cultura antes da cultura?

Uma tentação de muitas pessoas interessadas na história e na tipologia de culturas e civilizações é dizer: “Isso nunca aconteceu, portanto, não pode acontecer” ou “Não sei nada sobre isso, então deve ser impossível”. Na verdade, isso significa que a parte cronológica, que podemos estudar graças aos documentos escritos que foram preservados, tão pequena em comparação com o total da história escrita e oral da humanidade, é tomada como norma para o processo histórico, e que a cultura desse curto período é o padrão para a cultura humana.

Vejamos um exemplo: toda a cultura conhecida por estudiosos europeus é baseada na escrita. Achamos difícil imaginar uma cultura iletrada desenvolvida e mesmo qualquer civilização iletrada desenvolvida (e, se conseguirmos, será somente evocando imagens familiares de culturas e civilizações que já conhecemos). Há não muito tempo, dois matemáticos bem conhecidos colocaram em evidência a idéia de que, já que o desenvolvimento global da escrita só se tornou possível com a invenção do papel, todo o período “pré-papel” da história da cultura é uma invenção a posteriori. Não nos interessa discutir essa idéia paradoxal, mas percebê-la como um exemplo claro da extrapolação de um olhar preconcebido, aplicado a regiões inexploradas: aquilo que é familiar é visto como a única coisa possível.

Civilizações desenvolvidas, com suas sociedades de classe, divisões de trabalho e altos níveis de serviços públicos e de construção e tecnologia irrigacional, são tão obviamente ligadas com a habilidade de escrever que as possibilidades alternativas têm sido rejeitadas a priori. Argumentando a partir dos muitos dados a nossa disposição, podemos dizer que o laço entre escrita e civilização é uma lei universal, não

52

fosse pelo misterioso fenômeno das civilizações pré-incas sul-americanas.

As evidências que os arqueólogos têm acumulado sobre essas civilizações formam um quadro surpreendente. Aí está uma série de civilizações que, sucedendo-se por milhares de anos, ergueram grandes edificações, criaram sistemas de irrigação, construíram cidades e grandes ídolos de pedra, desenvolveram habilidades em olaria, tecelagem, metalurgia e um complexo sistema de símbolos... e contudo, não deixaram qualquer traço de escrita. O paradoxo continua sem explicação. O argumento às vezes apresentado de que seus escritos foram destruídos por invasores, primeiro os incas e depois os espanhóis, não é convincente. Seus monumentos de pedra, aqueles de seus cemitérios, que não foram saqueados e estão ainda em perfeita condição, sua cerâmica e outros produtos certamente teriam deixado algum traço de escrita, se esta houvesse existido. Sabemos, por experiência histórica, que uma destruição a ponto de não deixar nenhum traço está fora do alcance de qualquer invasor. Portanto, temos de supor que eles não tinham escrita.

Sem nos restringirmos a priori a quaisquer noções sobre o que seja ou não possível, tentemos imaginar (já que este é o único caminho aberto) como teria sido essa civilização, se de fato ela existiu.

Escrever é uma forma de memorizar. Assim como a mente individual tem seus próprios mecanismos de memorização, a mente coletiva, que tem de registrar o que existe em comum, cria seus próprios mecanismos. Um desses mecanismos é a escrita. Mas será a escrita a única forma de memorização coletiva, ou mesmo a mais importante? Para responder essa pergunta, devemos supor que formas de memorização são derivadas do que as pessoas acham que

Page 27: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

53

deve ser lembrado, o que depende da estrutura e orientação daquela civilização.

Normalmente, supomos que a memória é para lembrar eventos excepcionais (aqueles que a memória coletiva guarda); e por eventos excepcionais entendemos eventos únicos ou eventos que ocorrem pela primeira vez, ou ainda aqueles que não deveriam ter acontecido, inesperados. Esses são os tipos de eventos registrados em crônicas e, hoje em dia, em jornais. Para o tipo de memória voltada para a memorização de ocorrências anômalas ou incomuns, a escrita é essencial. A cultura com esse tipo de memória multiplica constantemente o número de textos: suas leis são ampliadas com precedentes, seus atos legais registram eventos particulares — vendas, testamentos, acordos — e um juiz tem de lidar em cada caso com um incidente separado. A literatura é também submetida a essa tendência. Esse tipo de cultura encoraja o desenvolvimento de correspondência privada, memórias e diários, os quais também servem para registrar “eventos” e “incidentes”. A mente literata prestará atenção às relações de causa e efeito e às ações resultantes: o que é registrado não é a época do ano para semear, mas como foi a colheita em um determinado ano. Tudo isso leva a um aumento da preocupação com o tempo e o começo da idéia de história. Podemos dizer ainda que a história é um dos subprodutos do surgimento da escrita.

Mas vamos imaginar um outro tipo possível de memória que vise preservar informação sobre a ordem estabelecida, e não sobre suas violações, sobre suas leis e não sobre anomalias. Suponhamos, por exemplo, que, quando assistimos a uma competição esportiva, não estamos preocupados com quem venceu ou quais circunstâncias imprevistas estiveram presentes nesse evento, mas que nos concentramos em algo mais, ou seja, no registro para a

54

posteridade da informação sobre como e em que temporada a competição aconteceu. Aí o que precisamos não é de uma crônica ou de uma notícia de jornal, mas de um calendário ou de alguém que registre a ordem estabelecida, e de um ritual que permita tudo isso ser armazenado na memória coletiva.

A cultura que é orientada não em direção a um aumento na quantidade de textos, mas na reprodução repetida de textos estabelecidos de uma vez por todas, requer uma memória coletiva com composição diferente. A escrita não é necessária. Símbolos mnemônicos tomarão seu lugar, assim como símbolos naturais (tais como as árvores e pedras notáveis, as estrelas e os corpos celestes) e símbolos criados pelo homem: ídolos, túmulos, construções e rituais nos quais estes marcos e lugares sagrados são incluídos. A ritualização e sacralização da memória, que é típica de tais culturas, faz os observadores educados em tradições européias identificarem esses marcos com centros de cultos religiosos no sentido em que usamos o termo. Mas, concentrando a atenção na função sagrada desses lugares, que de fato existem, o observador terá uma tendência a não perceber suas outras funções, aquelas de regulamentação e controle; pois é nestes lugares que o símbolo mnemônico (sagrado) do rito aparece. No entanto, as atividades associadas com esses centros preservam a memória do coletivo daqueles feitos, idéias e emoções que correspondem àquele lugar. Portanto, sem conhecer os rituais e sem levar em conta o vasto número de signos do calendário e outros signos (por exemplo, o comprimento e o ângulo de uma sombra feita por uma árvore ou construção, a abundância ou a falta de folhas ou frutos em uma árvore sagrada em um determinado ano, etc.) nós não podemos identificar quais funções das construções foram preservadas. Devemos, além disso, ter em mente que a cultura escrita é orientada em direção ao passado, ao passo

Page 28: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

55

que a cultura oral é orientada em direção ao futuro. Predições, leituras de sorte e profecias têm uma grande parte nisso. Os marcos e lugares sagrados não são apenas locais onde os rituais que preservam a memória de leis e normas são representados, mas também locais de adivinhações e predições. Oferendas de sacrifício podem ser vistas como um tipo de experimento futurológico, já que elas sempre envolvem um apelo à divindade, no sentido de se obter assistência ao fazer uma escolha.

Estaríamos errados se supuséssemos que uma civilização desse tipo sofre de uma “carência de informação”, baseados no fato de que seus rituais e costumes parecem fazer com que todas as ações sejam pré-ordenadas pelo destino. Uma sociedade como essa simplesmente não pode existir. Membros de um “coletivo iletrado” constantemente se deparam com a necessidade de fazer uma escolha, mas suas opções são feitas sem referências à história ou a expectativas de causa e efeito, mas, como fazem muitos povos iletrados, consultando adivinhos e feiticeiros. Talvez nossa necessidade de consulta (a um médico, um advogado, uma pessoa mais velha) seja um vestígio dessa tradição. Esse tipo de tradição se opõe ao ideal de Kant que dita que a pessoa é capaz de tomar decisões sobre seus próprios atos e opiniões. Kant escreveu:

O Iluminismo é a emergência da humanidade de um estado de imaturidade onde se encontra por sua própria culpa. Imaturidade é a inabilidade de se usar a própria razão sem a orientação de outra pessoa... É tão fácil ser imaturo! Se eu tenho um livro que pensa por mim, se eu tenho um guia espiritual que age de acordo com a minha consciência, e um médico que me prescreve um regime particular, então não tenho nada com o que me preocupar.

A cultura sem escrita, com sua orientação em direção ao presságio, às adivinhações e aos oráculos, faz da escolha de comportamento algo impessoal. Assim, a pessoa ideal será

56

aquela capaz de entender e interpretar predições corretamente, não hesitando em lhes dar sentido, e aquela que age abertamente, sem esconder suas intenções. Em contraste, uma cultura orientada em direção à capacidade de uma pessoa de escolher sua própria estratégia de comportamento requer racionalidade, cuidado, circunspecção e discrição, já que cada evento é visto como “acontecendo pela primeira vez”. Turner cita um exemplo interessante em seu trabalho de adivinhação no meio de pessoas da África central e, em particular, dentre os Ndembu. A predição é feita sacudindo-se uma cesta contendo estatuetas especiais de ritual, e o resultado é lido pelas suas posições. Cada estatueta tem um certo significado simbólico e qualquer um deles que apareça por cima tem um significado especial. Turner escreve:

A segunda estatueta que devemos considerar é chamada Chamutang’a. Ela representa um homem sentado encolhido com o queixo nas mãos e os cotovelos nos joelhos. Chamutang’a significa uma pessoa irresoluta, variável ... Chamutang’a significa também “o homem que ninguém sabe como tratar”. Suas reações não são naturais. Caprichosamente, dizem, por vezes presenteia as pessoas, e por outras age de modo vil. Às vezes, ri exageradamente com os outros. Outras vezes se fecha em um silêncio sem motivo aparente. Ninguém pode adivinhar quando ficará nervoso, ou quando não ficará com raiva. Os Ndembu gostam de homens que tem comportamento previsível. Eles louvam a clareza e a consistência, e um homem que não pareça sincero pode bem ser um feiticeiro. O tema de que tudo o que é escondido provavelmente deve ser perigoso ou malévolo é mais uma vez exemplificado.

Todos os gestos principais da figura de Chamutang’a lembram aqueles de “O Pensador” de Rodin. O simbolismo do gesto de se segurar o queixo é tão bem conhecido que a estátua de Rodin não precisa de elucidação. Tudo isto é mais notável pela intenção do escultor de retratar o “primeiro” pensador: nem a testa nem a proporção da figura têm os traços do estereótipo de um intelectual — todo o significado

Page 29: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

57

está na pose. É interessante lembrar que estes mesmos estereótipos gestuais foram usados por Garrick para criar o “tipo Hamlet” (apenas com a diferença de que, estando de pé, sua posição torna todo o gesto mais eficaz):

Em profundo devaneio ele vem para o palco, o queixo apoiado na mão direita, o cotovelo sustentado pela esquerda, olhos baixos para o lado. Então, tirando a mão direita do queixo, mas, se me lembro, continuando a suportar o braço com a esquerda, ele pronuncia as palavras “Ser ou não ser?”

A representação de Garrick padronizou os gestos do tipo Hamlet por mais de mil anos nos palcos da Europa.

O que o Chamutang’a dos Ndembu, “O Pensador” de Rodin e Hamlet têm em comum? Os três são pessoas a ponto de tomarem uma decisão. Mas, para os Ndembu, o estado de escolher significa rejeitar costumes e um papel estabelecido por séculos. A idéia de escolha possui associações semânticas com a violação da ordem estabelecida, isto é, com a feitiçaria (já que os Ndembu atribuem tudo o que não é normal à feitiçaria), ou com características negativas do homem, tais como a duplicidade e a indecisão.

Mas presságios e predições que prenunciam o futuro têm a função de escolha para a experiência coletiva, deixando ao indivíduo a possibilidade de uma ação aberta e decisiva. Baratynsky escreveu:

Um lobo corre da floresta para o seu caminho. Circulando com seus pêlos eriçados. Ele profetizou vitória e, com ousadia Arremessou seus soldados contra o inimigo.

A sociedade fundada no costume e experiência coletiva inevitavelmente deve ter desenvolvido maneiras poderosas de vaticínio. Mas isso serve inevitavelmente para estimular a observância da natureza, especialmente das estrelas, e portanto, serve para estimular o conhecimento teórico. Algumas formas de geometria descritiva não estão de forma

58

alguma excluídas de culturas não-letradas como tais, e podem servir para complementar a poesia oral de calendários e da astronomia.

O mundo da memória oral é cheio de símbolos. Pode parecer paradoxal que a emergência da escrita, longe de complicar a estrutura semiótica da cultura, na verdade a simplificou. Os objetos materiais que representaram os símbolos mnemônicos sagrados são encontrados não em textos verbais, mas em textos rituais. E em relação a esses textos, eles preservam uma certa liberdade: sua existência material continua fora do ritual, ou eles podem ser incluídos em muitos rituais diferentes, o que lhes dá um significado múltiplo. Sua própria existência pressupõe uma massa envolvente de contos orais, lendas e canções associadas a eles. O resultado é que os laços sintáticos entre estes símbolos podem ser afrouxados em diferentes contextos. O texto verbal (em particular o texto escrito) é baseado em vínculos sintáticos. A cultura oral os enfraquece extremamente. É por isso que a cultura oral pode incluir um grande número de signos simbólicos de uma ordem inferior, que são como se fossem da margem da escrita, como amuletos, signos de propriedade, objetos de cálculo, signos de uma “letra” mnemônica, mas reduz extremamente a possibilidade de ajustá-las às cadeias sintático-gramaticais. Objetos capazes de realizar cálculos aritméticos bastante complexos não estão excluídos de tais culturas. Em culturas deste tipo, muitas vezes existem rápidos desenvolvimentos de signos mágicos que são usados em rituais e que usam figuras geométricas mais simples: o círculo, a cruz, linhas paralelas, o triângulo, etc., e as cores primárias. Estes signos não devem ser confundidos com hieróglifos ou letras alfabéticas; já que as últimas tendem a um certo valor semântico e adquirem seu significado apenas na cadeia sintagmática onde

Page 30: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

59

formam cadeias de signos; ao passo que os primeiros têm um significado não-específico, muitas vezes internamente contraditório, e adquirem sentidos específicos em relação a textos orais e rituais dos quais são signos mnemônicos. Podemos ver a diferença entre eles se compararmos a sentença (uma cadeia de símbolos lingüísticos) com um ornamento (uma cadeia de símbolos mágico-mnemônicos e rituais).

O desenvolvimento de ornamentação e a ausência de inscrições em esculturas e monumentos arquitetônicos também são característicos de culturas orais. Um hieróglifo, uma palavra escrita ou uma letra são fenômenos no pólo oposto a um ídolo, túmulo ou marco, e os dois grupos, em um certo sentido, mutuamente excludentes. Os primeiros indicam um significado, enquanto os segundos tornam possível a lembrança dele. Os primeiros são um texto ou parte de um texto, e um texto que possui uma natureza puramente semiótica; enquanto os últimos estão incluídos em um texto sincrético de ritual ou estão mnemonicamente conectados com textos orais que estão atados a lugar e tempo particulares.

A antítese entre a escrita e a escultura é bem retratada no episódio bíblico do confronto entre Moisés e Aarão, entre as tábuas de Moisés, que dariam às pessoas um novo mecanismo de memória cultural (“um testamento”), e a unidade sincretista do ídolo de Aarão e da dança ritual; que eram a forma antiga de preservar informação:

Moisés voltou-se e desceu a montanha com as duas tábuas do Testemunho em suas mãos. Tábuas inscritas nos dois lados, na frente e no verso. As tábuas eram o trabalho de Deus, e sua inscrição era a escrita de Deus, gravada nelas. Quando Josué ouviu as pessoas gritando, ele disse a Moisés:“Ouço o som de uma batalha no campo!” Mas Moisés respondeu: “Nenhuma canção de vitória tem esse som, nenhum lamento de derrota tem esse som, ouço sim coros de resposta!”

60

Então, na medida em que se aproximou do campo, viu o bezerro e os grupos dançando. Moisés teve um acesso de fúria. Ele atirou para baixo as tábuas que segurava, estilhaçando-as ao pé da montanha. Agarrou o bezerro que eles tinham feito e o queimou. (Êxodo 32, 15-20)

Sobre esse tópico, existe um material extremamente interessante em Phaedrus, diálogo de Platão. O trabalho, devotado a questões da arte da retórica, também se refere a problemas de memória. No exato começo do diálogo, Platão conduz Sócrates e Fedro para fora das muralhas da cidade de Atenas para mostrar aos seus leitores a conexão entre marcos, túmulos, montanhas e fontes com a memória coletiva que está encerrada nos mitos:

Fedro: Conte-me, Sócrates, não existe uma história de que Boreas raptou Oréstias de algum lugar às margens do Ilissos? Sócrates: Assim dizem. Fedro: Foi aqui, você acha? A água é deliciosamente fresca e clara, o lugar exato para meninas brincarem. Sócrates: Não, foi a um quarto de milha rio abaixo, onde se cruza para o templo de Agra; um altar a Boreas marca o ponto, acredito.

Posteriormente, Sócrates de repente sugere a seu companheiro uma idéia paradoxal sobre o prejuízo que a escrita pode trazer para a memória. Uma sociedade baseada na escrita parece ser, aos olhos de Sócrates, uma sociedade sem memória e anômala, enquanto uma sociedade sem escrita, que é uma sociedade normal, possui uma memória coletiva bem estabelecida. Sócrates conta a história do divino inventor Teuto, que apresentou a ciência ao rei do Egito:

Mas, a respeito da escrita, Teuto declarou: “Aqui está uma realização, meu senhor o Rei, que vai aperfeiçoar tanto a sabedoria quanto a memória dos egípcios. Descobri a receita certa para a memória e a sabedoria.” “Teuto, meu modelo de inventores,” respondeu o rei, “a descoberta de uma arte não é o melhor juiz do bem ou mal que caberá àqueles que a praticarem. Assim é neste caso: você, que é o pai da escrita, por afeição à sua cria, atribuiu a ela a função oposta à que ela tem. Aqueles que a adquirirem vão parar de exercitar suas memórias e se tornar esquecidos: vão confiar na escrita para trazer coisas à sua

Page 31: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

61

lembrança através de signos externos, ao invés de seus próprios recursos internos. O que você descobriu é uma receita para a recordação, não para a memória. E quanto à sabedoria, seus discípulos terão a reputação de tê-la, sem que isto seja verdade: eles receberão uma quantidade de informação sem a instrução adequada, e em conseqüência serão vistos como sábios, quando são, na maior parte, bastante ignorantes. E porque estão cheios do conceito de sabedoria ao invés da sabedoria real, eles se tornarão um fardo para a sociedade.”

A questão a notar é que o Sócrates de Platão não associa escrita a progresso cultural, mas à perda do alto nível atingido em uma cultura não-letrada.

Textos orais que giram em torno de ídolos e marcos são associados a um lugar e época particulares: um ídolo funciona — “vem à vida” em um sentido cultural, por assim dizer — em um certo tempo que, no ritual e pelo calendário, é “seu tempo”, e as lendas locais se tornam ligadas a ele. Conseqüentemente, a paisagem local é vivenciada de maneira bastante diferente em culturas letradas e não-letradas. Uma cultura letrada tende a olhar o mundo criado por Deus ou pela Natureza como um texto, e se empenha em ler a mensagem contida nele. Então, o significado a ser encontrado no texto escrito, se sagrado ou científico, é extrapolado do texto para a paisagem. Desse ponto de vista, o significado da Natureza é revelado apenas a uma pessoa “letrada”: essa pessoa procura leis na Natureza, não presságios; a crença em presságios é tratada como uma superstição; e o futuro é para ser determinado a partir do passado, e não a partir de leituras da sorte e predições.

Culturas não-letradas têm uma relação diferente com a paisagem. Já que uma paisagem, lugar sagrado ou ídolo está “incluído” no círculo cultural de ritual, sacrifício, leitura da sorte, canções e danças, e já que todas essas atividades são fixadas a certas datas do ano, os marcos, lugares sagrados e ídolos são associados à posições particulares das estrelas ou

62

do sol e da lua, ventos ou chuvas recorrentes, mudanças periódicas nos níveis das águas dos rios, etc. Esses fenômenos naturais são tomados como signos que lembram ou predizem. A mudança entre esses dois tipos de memória é simbolizada, por um lado, pelo arco-íris que Deus deu a Noé como um sinal e, por outro, pelas tábuas escritas que ele deu a Moisés.

A medicina “popular” e a medicina científica derivam desses dois tipos de consciência, a não-letrada e a letrada. Na aurora da era do positivismo eram necessárias a mente penetrante de Baratynsky e a capacidade de pensamento independente para ver, na superstição e em predições, não a mentira e o barbarismo, mas as relíquias de uma outra verdade vinda de um outro tipo de cultura:

Superstição! É uma relíquia De verdade antiga — o templo caiu E o descendente não pode distinguir a linguagem de suas ruínas.

É interessante que o poeta associe superstição a um templo, uma construção arquitetônica, e não a uma “lápide com uma inscrição em uma língua desconhecida”, como Pushkin fazia quando se referia a uma palavra incompreensível. A imagem de Baratynsky vem à mente quando se pensa sobre o significado perdido das construções arquitetônicas pré-incas do Peru antigo.

As passagens da Bíblia que citamos apresentam uma imagem familiar: culturas letradas e não-letradas são como dois estágios sucessivos, um mais elevado, outro mais baixo.

Mas, a partir do fato de que o desenvolvimento histórico seguiu esse caminho na Eurásia com a qual estamos familiarizados, temos o direito de concluir que este era o único caminho possível? A existência, por muitos milênios, de culturas não-letradas na América pré-colombiana é uma prova

Page 32: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

63

convincente de que tais civilizações são viáveis, os altos níveis culturais atingidos mostram seu potencial cultural. Para a escrita se tornar necessária, as condições históricas tiveram que ser desestabilizadas, as circunstâncias tiveram que se tornar imprevisíveis e dinâmicas, tiveram que existir contatos freqüentes e prolongados com outros grupos étnicos para que a necessidade de traduções semióticas fosse sentida. Existe uma diferença polar entre, por um lado, a região histórica que compreende os Bálcãs e o norte da África, o Oriente Próximo e o Oriente Médio e os mares Negro e Mediterrâneo e, por outro, o altiplano peruano, a região dos Andes e a faixa estreita da costa peruana. O primeiro tem sido um “cadinho” de grupos étnicos, a cena de freqüentes migrações e conflitos semióticos e culturais; enquanto o segundo tem sido por muito tempo uma área de isolamento, sem muitos contatos militares e comerciais com outras culturas; isso tem na verdade fornecido condições ideais para uma tradição cultural ininterrupta (e quando o isolamento foi quebrado, como regra isso significou o desaparecimento total de uma das antigas civilizações peruanas). Então, parece natural que a civilização letrada foi vitoriosa na primeira área e a não-letrada, na outra.

64

O papel dos símbolos tipológicos na história da cultura (contrato e auto-entrega como arquétipos culturais)

Entre os modelos sócio-culturais mais arcaicos, podemos identificar dois que são de particular interesse por suas transformações subseqüentes na história da cultura. Podemos denominá-los como o modelo mágico e o modelo religioso, sempre tendo em mente que esses termos são convenções aproximadas e que não estamos falando de culturas reais, mas sim de princípios tipológicos. A maior parte das religiões históricas do mundo combina ambos os elementos, e em algumas predomina o princípio mágico.

O sistema mágico de relações caracteriza-se por: 1. reciprocidade: os dois agentes envolvidos nessas relações são ativos (o mágico, por exemplo, executa certas ações, em resposta às quais o poder invocado executa outras). Na magia não há ações unilaterais, pois se um mágico, por ignorância, executa ações incorretas e conseqüentemente incapazes de invocar o poder em questão e ativá-lo, suas palavras e seus gestos não são considerados como ações no sistema da magia; 2. obrigatoriedade: significa que ações corretas executadas por uma das partes implicam ações obrigatórias e perfeitamente previsíveis da outra parte. Inúmeros textos testemunham o fato de que o mágico força o poder sobrenatural a aparecer e agir, mesmo a contragosto, embora o mágico detenha apenas parte desse poder; 3. equivalência: a relação entre as partes é como uma troca de valores equivalentes e pode ser comparada com uma troca de signos convencionais; 4. contratação: as duas partes envolvidas entabulam um tipo de contrato que pode assumir uma forma explícita (a conclusão de um acordo, a proferição de um juramento, a observância de condições, etc.), ou pode ser implícito. Um contrato, entretanto, implica também a

Page 33: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

65

possibilidade de ruptura, assim como na troca semiótica convencional há o potencial do engano e da desinformação.7 Daí a possibilidade de que o contrato seja interpretado de várias maneiras, cada parte se esforçando por colocar nas formulações explícitas do acordo um conteúdo que corresponda a seus propósitos.

Um ato religioso, por outro lado, baseia-se não numa troca, mas antes num ato incondicional de auto-entrega. Uma parte se entrega à outra sem estabelecer nenhuma condição, a não ser a de que a parte receptora seja reconhecida como o poder supremo.8 As relações desse tipo caracterizam-se por: 1. unilateralidade: são unidirecionais, na medida em que o indivíduo que se entrega busca proteção, apesar de não haver garantia de que sua ação será correspondida, e a ausência de resposta não pode ser motivo para romper as relações; 2. daí advém a ausência de obrigatoriedade na relação: uma parte entrega tudo, mas a outra pode ou não responder, pode recusar um ofertante valoroso e recompensar alguém sem valor (até mesmo alguém que não tenha lugar no sistema ou que o tenha violado); 3. não há princípio de equivalência: a relação impede a psicologia da troca e não admite nenhum condicionamento ou convenção em seus valores básicos. Dessa forma, os meios de comunicação não são signos, mas símbolos, cuja natureza impede a possibilidade de uma expressão alienada do conteúdo, e daí impedem também a possibilidade de engano ou interpretação; 4. conseqüentemente, as relações desse tipo não são como um contrato, mas como uma doação incondicional.

É preciso enfatizar que estamos lidando com um modelo da psicologia cultural desses tipos de relação. Na realidade, as

7REICHLER, Claude. La Diabolie, la Seduction, la Renardie, l'Ecriture. Paris : 1979.

8Preferimos poder a bondade, porque é possível cultuar, no sentido religioso, os poderes do demônio.

66

religiões nunca existiram sem algum grau de psicologia mágica: por exemplo, apesar de rejeitar a idéia de troca equivalente nas relações entre o homem e Deus na Terra, várias das religiões do mundo contêm a idéia da recompensa na vida após a morte decorrente de um sistema estabelecido de relações obrigatórias (isto é, relações condicionadas de modo não ambíguo e por isso justas) entre nossa vida terrena e a vida eterna.

Santo Agostinho sustentava um outro ponto de vista: acreditava que a salvação ou a condenação final não dependia da retidão humana, mas unicamente da vontade de Deus.

A religião oficial da Roma pagã nos últimos séculos de sua existência era uma religião mágica; por detrás de sua fachada pública, havia muitos cultos religiosos secretos. O sacrifício era a base das relações contratuais com os deuses, e o culto oficial do imperador assemelhava-se a um acordo legal com o Estado. Em função dos aspectos mágicos listados acima, a "religião" dos romanos de modo algum contradizia nem seu senso de legalidade, sofisticado e profundamente arraigado, nem a estrutura do Estado, inteiramente baseada na lei. Do ponto de vista dos romanos, o Cristianismo era um movimento fundamentalmente anti-Estado, na medida em que era uma religião no sentido exato do termo e conseqüentemente não levava em conta os sentimentos da legalidade formal ou dos direitos contratuais legais. E o abandono desta forma de consciência, para alguém da cultura romana, era uma negação da própria noção de Estado.

Os cultos pagãos da antiga Rússia eram claramente xamânicos, isto é, mágicos. O fato de a introdução do Cristianismo ter coincidido com a ascensão do estado de Kiev teve várias conseqüências importantes na área de nossas discussões. A resultante coexistência de duas fés [dvoeverie] proporcionou o desenvolvimento de dois modelos opostos de

Page 34: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

67

relações sociais. As relações entre o príncipe e suas tropas pessoais, que precisavam ser formalmente esclarecidas, tendiam ao princípio contratual. Esse modelo era o que mais adequadamente refletia o sistema feudal emergente, fundado no paternalismo e na vassalagem, e todo o sistema de direitos e deveres mútuos, e de etiqueta, no qual se apoiava a estrutura ideológica da sociedade cavalheiresca. A tradição do paganismo mágico russo tornou-se uma parte orgânica da nova ordem que emergia da síntese européia entre as instituições tribais dos povos bárbaros e a tradição legal romana; pois a tradição romana permanecera firmemente enraizada nas antigas cidades do império onde as comunidades faziam prevalecer seus próprios direitos, um complexo sistema de relações legais predominava, e havia uma abundância de juristas.

Entretanto, no Ocidente, a consciência contratual, originária da magia no passado remoto, existia disfarçada na autoridade da tradição do império romano e ocupava um espaço ao lado da autoridade religiosa; mas na antiga Rússia ela era sentida como essencialmente pagã. Essa atitude afetava o modo como a sociedade a avaliava. Na tradição ocidental, um contrato como esse era neutro do ponto de vista axiológico: podia ser feito com o demônio (veja-se a vida de São Teófilo, que vendeu a alma ao diabo e mais tarde a resgatou pelo arrependimento), mas também com os poderes da santidade e da bondade. No Florilégio de São Francisco encontra-se a conhecida história do acordo entre São Francisco e o lobo selvagem de Gubbio. Tendo acusado o lobo de comportar-se "como um vilão e o pior dos assassinos", não apenas devorando animais, mas também atacando pessoas feitas à imagem e semelhança de Deus, São Francisco concluiu: "Irmão Lobo, quero fazer as pazes entre você e eles [as pessoas de Gubbio]." São Francisco

68

propôs ao lobo uma troca justa: o lobo aceitaria desistir do mau caminho e os habitantes de Gubbio deixariam de caçá-lo e o supririam de alimento. “Você promete?” E o lobo inclinou a cabeça, num claro sinal de que concordava.9 O contrato estava concluído e ambas as partes o respeitaram até a morte do lobo.

Textos como esse não se encontram nem no folclore russo, nem na tradição literária medieval da antiga Rússia: um contrato só é possível com o demônio ou seus equivalentes pagãos (o contrato entre o camponês e o urso). Essa idéia, antes de mais nada, empresta um tom emocional a um contrato como esse – falta-lhe a aura de valor cultural. No modo de vida da nobreza ocidental, onde as relações com Deus e os santos podiam ser moldadas no padrão "suserano-vassalo" e sujeitadas a um ritual convencional, similar à iniciação, à nobreza e ao serviço à dama, o contrato e o ritual que o sela, o gestual, o pergaminho e o selo estão envoltos numa aura de santidade e obtêm autorização das alturas. Na antiga Rússia, um contrato era encarado como um negócio essencialmente humano ("humano" no sentido oposto a "divino"). A introdução da prática de beijar a cruz quando um contrato tem de ser ratificado é uma evidência de que sem essa autorização divina, incondicional e não contratual, ele não estaria suficientemente garantido. Em segundo lugar, sempre que se fazia um acordo com um poder satânico, respeitá-lo era considerado pecaminoso, enquanto que violá-lo significava salvar a alma de alguém. O convencionalismo da comunicação semiótica verbal é um fator importante nos tratos com essas forças, pois ambas as partes podem usar as palavras para enganar. A possibilidade de interpretar uma

9PASSERINI, G. L. (Ed.) I fioretti del glorioso messere Santo Francesco e de suoi frati. Florença: 1903. p. 58-62.

Page 35: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

69

palavra de diferentes maneiras (a casuística) servia muito mais ao desejo de enganar do que ao desejo de atingir o sentido verdadeiro (veja-se em Dostoevsky, "Um jurista tem uma consciência corrompida" [Ablakat – prodazhnaya sovest]). Outro exemplo está no episódio do conto folclórico "O Dragão e o Cigano",10 quando os dois combinam uma competição de assovios:

O dragão assoviou tão alto que caíram as folhas de todas as árvores. "Você assovia bem, meu amigo", disse o cigano, "mas eu assovio melhor. Ponha uma venda nos olhos, senão, quando eu assoviar, eles vão pular fora de sua cabeça!" O dragão acreditou nele, amarrou um pano em volta dos olhos e disse "Agora assovia!" O cigano pegou um porrete e com ele assoviou na cabeça do dragão.

O jogo de palavras que expõe o convencionalismo do signo e transforma o acordo num engano era possível quando se lidava com o Diabo, um dragão, um urso, mas impensável quando se lidava com Deus ou qualquer santo. Daniel o

10Número 149 em: AZADOVSKY, M. K. et al. (Ed.) Narodnye russkie skazki A. N. Afanas'eva [narrativas do folclore russo coletadas por A. N. Afanas'ev]. Moscou: 1936–9; na edição preparada por A. E. Gruzinsky (1897 e 1913–14) ele é o número 86. Se um contrato foi feito com um poder do demônio, o modo usual de sair dele é através do arrependimento (veja-se The Tale of Savva Grudtsyn). Um exemplo mais complexo pode ser encontrado no apócrifo de Adão: em um texto (de acordo com A. N. Pypin, ele vem de um manuscrito do Antigo Testamento, mas ele não fornece mais detalhes) Adão faz um contrato com o demônio em troca da cura de Eva e de Caim ("E o demônio disse: 'Dê-me uma lápide com a seguinte inscrição: 'Em vida, pertenci a Deus, mas na morte, a você.' ' " TIKHONRAVOV, N. Pamyati otrechennoi russkoi literatury [Monumentos da literatura russa não-canônica]. vol. I St. Petersburg: 1863. p. 16.) Entretanto, a melhor versão que se conhece da história, mais típica, apresenta Adão concluindo o contrato com o demônio, mas o enganando conscientemente. Depois de ser expulso do Paraíso, Adão arreia um boi e começa a arar a terra:

E o demônio chegou e disse: "Não vou deixá-lo trabalhar a terra, pois ela é minha, enquanto o céu e o paraíso pertencem a Deus... Assine uma declaração de que você é meu, e então você pode trabalhar minha terra." Adão disse: "A quem quer que a terra pertença, eu e meus filhos pertencemos a ele."

O autor explica, então, que Adão logrou o demônio porque sabia que a terra pertencia ao demônio apenas temporariamente, e que no futuro Cristo iria se encarnar ("o Senhor desceria à Terra e nasceria de uma virgem") e redimir a Terra e seus habitantes do demônio através de seu sangue. (TIKHONRAVOV, p. 4).

Na tradição da Europa Ocidental um contrato é neutro: ele pode ser bom ou mau, enquanto em sua variante cavalheiresca especificamente, com o culto do signo, cumprir a palavra é questão de honra. Há numerosas histórias de nobres que empenham sua palavra a Satanás (a lenda de Dom Juan é uma inversão dessa lenda: embora rompendo todos os preceitos morais e religiosos, ele cumpre a palavra dada à estátua do Comendador). Na tradição russa um contrato adquire "força" através de um objeto sagrado que garante que ele será cumprido. Um contrato sem essa autoridade do poder não-convencional da fé não tem "força". Assim, uma promessa feita a Satanás deve ser rompida.

70

Prisioneiro disse: "As mentiras são para o mundo, não para Deus; não se pode mentir para Ele, nem jogar com o sublime" (note-se que mentira [solgati] e jogo [igrati] estão equiparados).

Eis por que o sistema de relações estabelecido na sociedade medieval, um sistema de obrigações mútuas entre o poder supremo e os senhores feudais, logo veio a ser encarado de forma negativa. Daniel o Prisioneiro assegurava a seu príncipe que seus conselheiros eram servos infiéis e trariam sofrimento a seu senhor. Ele os contrastava com o ideal de lealdade: ele próprio não se envergonhava de ser comparado a um cão. O serviço baseado em contrato é mau serviço. Da mesma forma, Pedro o Grande escreveu uma carta agressiva ao Príncipe Boris Sheremetev, que era suspeito de manter uma simpatia secreta pelos antigos direitos dos nobres, na qual ele diz: "É como um criado que vendo seu senhor se afogar, não quer salvá-lo sem antes verificar se está previsto em seu contrato que ele deve tirá-lo da água."11 Compare-se o que Kurbatov escreveu a Pedro: "Desejo servi-lo verdadeiramente, meu soberano, e fielmente, como sirvo a Deus."12 A comparação entre o soberano e Deus não é acidental, mas, ao contrário, tem raízes profundas. Na Rússia, muito mais do que no Ocidente, a estrutura de poder centralizado baseava-se no modelo religioso. O modelo isomórfico está expresso no Householder's Manual [Manual do Chefe de Família/Domostroi]: Deus está no universo, o czar, em seu reino, e o pai, em sua família: aqui se encontram três graus da auto-entrega incondicional, que, em seus diferentes níveis, comparam-se ao sistema religioso de relações. A idéia

11Pis'ma i bumagi Petra Velikogo [Cartas e Escritos de Pedro o Grande], v. III, p. 265.

12SOLOV'EV, S. M. Istoriya Rossii s drevneishikh vremen [A História da Rússia desde os Tempos Mais Antigos], livro IV. St. Petersburg, col. 5.

Page 36: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

71

de "servir ao soberano" estava fundamentada na ausência de condições entre as partes: de uma parte, espera-se a auto-entrega total e incondicional, e da outra, o favor. Esse conceito de "servir" é derivado da psicologia dos fiadores nas terras do príncipe. Assim como o papel dos burocratas, que dependiam pessoalmente do príncipe, se ampliou e se transformou na burocracia de Estado, e, ao mesmo tempo, o papel da tropa remunerada do príncipe se expandiu, o que tinha sido a mentalidade da corte do príncipe tornou-se a mentalidade da classe servil. Os sentimentos religiosos foram transferidos para o soberano, e servir ao Estado tornou-se uma forma religiosa de servir. O mérito passou a ser determinado pelo favor: "Se não fosse por seu favor, onde eu estaria?" Vasily Gryaznoi, um nobre, membro da oprichnina, escreveu a Ivan o Terrível.

O conflito entre esses dois tipos de psicologia pode ser observado em todo o período da Idade Média russa. Enquanto a psicologia da troca e do contrato cultiva o signo, o ritual e a etiqueta, a mentalidade religiosa do Estado é paradoxalmente orientada a um só tempo para o simbolismo e a práxis. Mas isso não deve nos surpreender.

A cultura cavalheiresca era orientada para o signo. A fim de adquirir valor cultural no sistema, uma coisa devia se tornar um signo, isto é, devia ser purificada ao máximo de sua função prática e não-semiótica. Por essa razão, para um senhor feudal na antiga Rússia, a "honra" estava ligada à aquisição de uma boa porção do saque de guerra, ou de grande quantidade de víveres de seu soberano. Entretanto, uma vez obtidos, a lei da honra exigia que esses bens fossem usados de modo a diminuir ao máximo seu valor material, enfatizando dessa forma seu valor semiótico: "Eles começam a fazer pontes sobre os pântanos e locais lamacentos usando seus casacos, seus mantos, suas jaquetas de couro de

72

carneiro e todas as suas roupas polonesas [Polovtsian] bordadas.13 Um modelo de comportamento cavalheiresco pode ser encontrado na versão russa do poema épico The Exploit of Devgeny [a façanha de Devgeny] (traduzido do grego entre os séculos XI e XII): o guerreiro Devgeny decidiu tomar por esposa "a bela filha de Stratigos", cujos pretendentes eram sempre mortos por seu pai e seus irmãos. Quando chegou à corte de Stratigos, ele encontrou a moça sozinha, o pai e os irmãos estavam fora. Devgeny poderia facilmente tê-la raptado, mas ordenou a ela que ficasse em casa e informasse a seu pai sobre o rapto iminente. Stratigos recusou-se a acreditar nela. Então Devgeny irrompeu pelos portões, entrando até o pátio, e "começou a gritar muito alto, chamando Stratigos e seus filhos fortes para saírem e verem sua irmã sendo raptada" [grifos do autor]. Mesmo assim, Stratigos se recusou a acreditar que um guerreiro tivesse coragem suficiente para desafiá-lo a uma luta. Devgeny, tendo esperado três horas em vão, raptou sua noiva. O sucesso, no entanto, não trouxe alegria a Devgeny, porque "senti muita vergonha".14 Finalmente, ele conseguiu sua luta, derrotou o pai e os irmãos da moça e levou-os como prisioneiros, depois os libertou e mandou sua esposa para casa; então ele voltou novamente para cortejá-la e dessa vez conquistou sua noiva "com grande honra". A noiva, a luta, o casamento, todos esses elementos foram convertidos em signos de honra cavalheiresca e não têm valor em si mesmos, mas apenas em termos do significado a eles atribuído. A noiva é valorizada, não em si mesma, mas em função da dificuldade de consegui-la, e não tem valor sem a dificuldade. A luta é valorizada, não pela vitória enquanto tal, mas porque primeiro

13The song of Igor's Campaign, traduzida por Vladimir Nabokov, p. 37.

14KUZ'MINA, V. D. Devgenievo deyanie [A façanha de Devgeny]. Moscow: 1962. p. 149.

Page 37: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

73

ela foi vencida de acordo com certas regras, e segundo as circunstâncias eram particularmente difíceis. A morte e a derrota enquanto tentativas de atingir o impossível são mais altamente valorizadas do que a vitória e os ganhos práticos dela resultantes, especialmente se estes foram conquistados através do cálculo, da praticidade ou dos esforços militares de rotina. O efeito era mais altamente valorizado do que a eficácia. A aventura desesperada de Igor, que com seu pequeno bando tomou a cidade de Tmutarakan, inspira o autor de The Lay of Igor's Campaign [a balada da campanha de Igor] mais do que as ações modestas mas altamente efetivas das tropas unidas do príncipe russo em 1183–4. O cantor de The Song of Roland [a canção de Roland] compartilha dessas mesmas atitudes.

O aspecto semiótico do comportamento enfatiza o elemento de jogo: o objetivo de uma ação reside menos em seu resultado prático do que no uso correto da linguagem do comportamento. Na nobreza da Europa Ocidental, o torneio era o equivalente da batalha, enquanto que na Rússia a caçada tinha a função de um torneio na vida de um senhor feudal: como uma forma especial de jogo, ela condensava os valores semióticos do comportamento militar cavalheiresco. Eis por que Vladimir Monomakh listou suas expedições de caça ao lado de suas façanhas militares, como motivos de orgulho equivalentes.

O tipo oposto de comportamento exclui o convencionalismo: tende a rejeitar o jogo e a relatividade dos métodos semióticos e identifica a verdade com uma ausência de convencionalismo. O comportamento social não-convencionalizado pode ser de dois tipos: entre aqueles do topo da pirâmide social há uma tendência ao simbolismo no comportamento e em todo sistema semiótico, mas entre aqueles das camadas inferiores da sociedade há uma

74

tendência ao grau-zero da semioticidade, com a transposição do comportamento para a esfera puramente prática.

Saussure notou a diferença entre o signo convencional e o símbolo não-convencional no pensamento semiótico:

Porque é característica dos símbolos o fato de que eles nunca são totalmente arbitrários. Não há configurações vazias. Elas apresentam pelo menos um vestígio da conexão natural entre o sinal e sua significação. Por exemplo, nosso símbolo de justiça, a balança, dificilmente poderia ser substituído por uma biga.15

Do ponto de vista da consciência simbólica da Rússia medieval, o poder é dotado dos traços de santidade e verdade. Seu valor é absoluto, pois ele é a imagem do poder celeste e incorpora a verdade eterna. Os rituais que o envolvem são como os do Paraíso. Diante dele, o indivíduo não é uma parte do contrato, mas uma gota d'água no oceano. Entregando a ele as demandas individuais, nada se obtém em troca, exceto o direito à auto-entrega. Após a batalha de Poltava, Peter Shafirov escreveu de Istambul a Pedro o Grande, defendendo um ataque militar para expulsar Charles XII do território turco: "E mesmo se eles de fato descobrirem que os russos estão ao seu encalço, nada acontecerá, a não ser que eu estarei aqui, sofrendo."16 Diversas outras circunstâncias análogas podem ser citadas. O ponto chave é que a pessoa de mentalidade "convencional", quando diante da obrigação de pagar com a própria vida, via a morte como uma espécie de troca da vida pela glória: "Se um homem é morto no campo de batalha," disse Daniel Galitsky a suas tropas, "que assombro isso pode causar? Outros morreram inglores em casa, enquanto este morreu 15SAUSSURE, Ferdinand. Coursein general linguistics, tradução de Roy Harris. p. 68. Na tradução russa essa observação soa menos categórica [lit. "nunca são inteiramente convencionais" – uslovnyi]. A distinção entre signo e símbolo é questionada por Tzvetan Todorov no seu livro Théories du symbole. Paris: 1977. p. 9-11ss.

16SOLOV'EV, op. cit., col. 42.

Page 38: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

75

gloriosamente."17 Do ponto de vista oposto, em lugar da idéia de troca, tem-se a poesia da morte anônima, e a recompensa é o mergulho do eu no absoluto, do qual não se pode esperar nenhum retorno. Drácula não promete a glória a seus soldados, nem associa a morte em batalha à idéia de recompensa justa;18 ele apenas espera que eles morram sob suas ordens, incondicionalmente: "quem quer que deseje dedicar seu pensamento à morte, não o deixem vir lutar ao meu lado."19

Porque esse tipo de consciência social estendeu o sentido religioso ao Estado, a sociedade, conseqüentemente, teve de ceder toda semiose ao czar, que se tornou uma figura simbólica, uma espécie de ícone vivo."20 Aos outros membros da sociedade cabiam as condutas com um valor semiótico zero: tudo o que era pedido a eles era atividade prática (e tal tipo de atividade continuava a ser muito pouco valorizado. Por isso é que Ivan o Terrível referiu-se a seus companheiros como trabalhadores [stradniki], rebaixando-os assim ao nível dos servos do início da sociedade feudal, que não tinham nenhum espaço na semiótica da sociedade.) Dos súditos do czar esperava-se que realizassem serviços práticos, que tivessem resultados concretos. Se eles se inquietavam com o aspecto sócio-semiótico de suas vidas e de suas atividades, isso era visto como "indolência", "velhacaria" ou mesmo "traição". Houve uma mudança de atitude significativa no que diz respeito à caça: tendo sido uma questão de honra, a caça veio a ser vista como um passado vergonhoso, uma distração

17Polnoe sobranie russkikh letopisei. v. II, 2. ed., p. 822. [grifos meus, Yuri Lotman.]

18"A morte no campo de batalha é usualmente chamada 'julgamento'."

19Povest'o Drakule [O conto de Drácula]. Moscow, Leningrad: 1964. p. 127.

20Porque a autoridade do czar era simbólica e não semiótica, o jogo não era excluído de sua conduta. A propósito, o elemento do jogo na conduta de Ivan o Terrível era percebido ao mesmo tempo subjetiva e objetivamente como satânico.

76

dos assuntos do Estado (o soberano, entretanto, tinha o direito de caçar por prazer). Já no Tale of the Battle on the Pyana [história da Batalha no Pyana], a paixão pela caça do negligente comandante do exército é contrastada com o serviço militar ao Estado. Mais tarde, Ivan escreveu a Vasily Gryaznoi em termos similares, acusando-o de caçar em vez de lutar. Gryaznoi não fez objeção ao fato de ser descrito como um trabalhador (ele tinha escrito para o czar: "O Senhor, meu Czar, é como Deus: transforma em grandes as coisas pequenas"), mas tomou como ofensa esta última reprimenda e escreveu a Ivan dizendo que tinha sido ferido em batalha, a serviço de seu soberano, e não caçando.

O século XVIII trouxe mudanças de largo alcance em todo o sistema cultural russo. Mas esse novo estágio da consciência social e da semiótica da cultura foi uma transformação do que ocorria antes, não uma ruptura total. A mudança mais impressionante na área cultural e no modo de viver foi a mudança na ideologia oficial. O modelo estado-religioso não desapareceu, mas foi transformado de várias formas interessantes: no sistema de valores, o pico e a base mudaram de lugar. As atividades práticas foram elevadas da base para a posição mais elevada na hierarquia de valores. A vida foi des-simbolizada, e os símbolos do passado foram pisoteados e expostos ao ridículo. Os serviços práticos foram colocados nos píncaros. A poesia da habilidade, do conhecimento utilitário, das ações que não são signos nem símbolos, mas valores em si mesmas, contribuiu largamente para o espírito da reforma de Pedro e para as atividades científicas de Lomonosov. Osip Mandelshtam considera esse espírito como a verdadeira essência do século XVIII:

Page 39: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

77

Sou constantemente atraído por citações do ingênuo e sábio século XVIII; e aqui me lembro das linhas da famosa "Epistle on Glass" [Carta sobre o Gelo], de Lomonosov: "Pensa impropriamente sobre as coisas, Shuvalov, Quem valoriza o Gelo menos do que os Minerais." Por que esse patos, o elevado patos do utilitarismo, por que essa excitação íntima que estimula a meditação poética sobre o destino das habilidades industriais? Que contraste chocante com a brilhante e calorosa indiferença do pensamento científico do século XIX!21

Lomonosov, escrevendo a Pedro o Grande, destacou que, apesar de ter "nascido para o cetro, [ele] estendeu suas mãos para o trabalho".

O ideal do czar-trabalhador devia ser sempre imitado, de Simeon Polotsky (veja-se seu poema "Fazer" [Delati], no livro The Many-Flowered Garden [o Jardim Repleto de Flores]) ao "Stanzas" [estrofes], de Pushkin. Mas esse sistema invertido, apesar de diferir da forma anterior, também é semelhante a ela. O governo de Pedro não foi a incorporação de um símbolo, uma vez que ele representou em si mesmo a verdade final e, não tendo mais autoridade do que ele próprio, não foi representativo nem a imagem de qualquer outra coisa. Mas como o governo centralizado anterior a Pedro, ele exigia dos súditos sua fé e sua total fusão com ele. Os súditos se entregavam a ele. Formou-se uma religião secular do governo, e as "atividades práticas" deixaram então de fazer parte da experiência empírica extra-semiótica.

Houve uma mudança radical na importância relativa da semiótica do contrato na estrutura geral da cultura do período. Tendo sido quase totalmente destruída junto com toda a herança cultural da antiga Rússia medieval, a noção de contrato encontrou um suporte poderoso na influência cultural do Ocidente. Nos discursos de Feofan Prokopovich e de outros

21MANDEL'SHTAM, Osip. The nineteenth century. In: HARRIS, Jane Gary, ed. The complete critical prose and letters. Ann Arbor, 1979. p. 139.

78

propagandistas do partido de Pedro, as idéias políticas de Puffendorf e Hugo Grotius eram elaboradas através da tradição russa, apesar de curiosamente refratárias a ela. O poder do czar é visto como uma dádiva divina e justificado por referência a São Paulo (Epístola aos Efésios 6,5). Entretanto, ao assumir o poder, o czar entra num contrato implícito que o obriga a governar para o bem de seus súditos. Deixando de ser um símbolo, o czar é como que obrigado a servir a seus súditos praticamente como estes têm de servi-lo:

Se toda graduação provém de Deus... esse dito é muito necessário para nós e agradável para Deus, o próprio alto grau Dele exige que eu tenha o meu, você o seu e assim por diante, para todo o mundo. Se você é czar, deve governar, assegurando que não haja infelicidade entre o povo, que o governo seja justo e que a pátria esteja protegida contra os inimigos; se você é um senador, esteja atento aos seus deveres do mesmo modo. Além disso, você deve falar de forma simples, pesar tudo cuidadosamente, como sua vocação requer de você, e cumprir seu dever com energia.22

O sistema nacional de honras e graus que foi introduzido no século XVIII e que se sustentava no princípio da nobreza incondicional e inata baseada no sangue, era também fundado na noção de troca de mérito por signos. Em teoria, o princípio da equivalência deveria ser estritamente observado nessa troca, mas na prática ele era infringido. Os elaborados estatutos e o sistema de promoção por graus baseavam-se numa sucessão restrita à duração do serviço. Alguém que tivesse sido preterido numa recompensa podia, de acordo com os costumes e as leis da época, chamar a atenção para si e exigir o que lhe era devido, listando seus direitos: isso prova que, na consciência da época, a recompensa não era um favor extra-legal, mas uma troca de obrigações entre o governo e seus funcionários, regulamentada e estabelecida por lei.

22PROKOPOVICH, Feofan. Sochineniya [trabalhos]. Moscow, Leningrad: 1961. p. 98.

Page 40: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

79

O espírito contratual que permeava a cultura do século XVIII impôs às instituições tradicionais uma reavaliação (ou mesmo uma redefinição) de atitudes. Embora todos soubessem que a Rússia era uma autocracia e que fazia parte da ideologia oficial e da prática governamental reconhecer esse fato (como no uso oficial dos títulos), era considerado deselegante reconhecê-lo. Em sua "Instrução" [Nakaz], Catarina a Grande argumentava que a Rússia era uma monarquia, não uma autocracia, isto é, era governada por leis e não arbitrariamente. Alexandre I enfatizava repetidamente que a autocracia era uma infeliz necessidade que ele pessoalmente não aprovava. Para ele, como para Karamzin, a autocracia era um fato, não um ideal. A reavalização foi especialmente marcante na questão dos direitos da nobreza. Já em 1730, Kantemir, em sua segunda sátira, abordava os privilégios da nobreza como um pagamento adiantado concedido aos nobres pelos méritos de seus pais, que se dedicaram até a morte ao serviço pessoal ao Estado. Em escritores como Sumarokov, essa idéia se transformou em uma teoria da troca de serviços pessoais em retribuição às honras obtidas pelos méritos dos ancestrais. O nobre que deixasse de realizar esses serviços era considerado um impostor, que recebe e não dá nada em troca:

O título de nobreza flui em nosso sangue de geração a geração. Mas deixe-nos perguntar por que é assim conferida. Se a vida de meu avô foi dedicada à sociedade, A ele coube receber o pagamento, a mim, um adiantamento: E eu, ao receber esse adiantamento por mérito de outro, Não deveria deixar seus feitos nobres terminarem com ele... Como incentivo, recebi um bom adiantamento, É certo que eu tenha fartura sem que eu mesmo tenha trabalhado?23

Um processo oposto estava em curso, contra essas condições. Juntamente com as tendências a racionalizar a troca semiótica, a enfocar seu conteúdo, havia um fluxo contrário, um impulso irracional para enfatizar o sistema

23SUMAROKOV. Stikhotvoreniya [poesia]. [Leningrad]. 1935. p. 203.

80

sígnico como tal. Convenções, rituais e a arbitrariedade do signo, tudo isso era enfatizado. E a cultura fechada da nobreza, que se desenvolvia rapidamente, cultivava a etiqueta e a teatralização da vida. Estabeleceu-se uma semiótica da honra pessoal, e os duelos se tornaram freqüentes, como um ritual para satisfazer a honra ofendida.

O culto emergente do dândi teve lugar na associação convencional entre o conteúdo e a expressão dos signos em sua base. As pessoas passaram a exigir dicionários para explicar os significados das formas convencionais, em particular a linguagem do amor cortês. O Lexicon of Love [léxico do amor] de Drieux du Radier, que foi adaptado para o costume russo por A. V. Khrapovitsky, foi elaborado nos moldes de um dicionário normal (a palavra, um exemplo numa frase, depois o verbete):

Desassossego Estou sofrendo um desassossego mortal. Significa: “Estou obedecendo às regras aceitas e apresentando um aspecto semelhante ao meu ardor.”

Falar Se uma mulher bonita disser amavelmente: Você está falando bobagem, isso significa: “Embora eu queira muito um amante, estou com medo da sua tendência a ser indiscreto (...).” Lembre-se com quem está falando, ou Eu não entendo isso, e outras expressões como essas têm o mesmo significado.

Tormento Estou sofrendo um tormento intolerável normalmente significa: “Estou fingindo estar apaixonada, e, como você sempre vai ao teatro, pensa que as pessoas não estão apaixonadas a menos que sofram um tormento. Para agradá-lo, eu preciso usar essas palavras apaixonadas.” 24

24 DU RADIER, Dreux. Lyubovnyi leksikon [Léxico do amor]. Traduzido para o russo a partir do francês [Dictionnaire d’amour. The Hague: 1741.] por A. V. Khrapovitsky. 2. ed. 1779. p. 9, 18, 42.

Page 41: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

81

A linguagem das pintas precisava dos mesmos metatextos para ser compreendida:

Uma pinta de veludo (...) na fronte indica doença, uma pinta de tafetá no lado esquerdo da testa significa orgulho, debaixo de um dos cílios inferiores denota lágrimas, sobre o lábio superior, beijo, sobre o inferior, inclinação, e assim por diante. (...) A chave para esse código, como a de um ministro [isto é, um embaixador, um diplomata – Yuri Lotman] não é fixa; as palavras são arbritariamente selecionadas e trocadas, por razões de segurança.25

Havia a linguagem dos fãs. Os bailes de máscara eram populares, trazendo um elemento de relatividade, mesmo naquilo que pareceria uma oposição natural: os homens vestidos de mulher e as mulheres, de homem.26 Ao mesmo tempo, para a mentalidade popular o signo imotivado era identificado com o Demônio. Na literatura moralista o relativismo da cultura dândi era popularmente associado com o ateísmo e com o relativismo moral.

Seria um erro, entretanto, olhar a cultura dândi do século XVIII com os olhos de seus críticos e ver nela apenas uma feia anomalia social. Porque a consciência da autonomia do signo emergiu das profundezas dessa cultura, que veio a ser um estímulo importante na formação da cultura pessoal da época do Romantismo. Trediakovsky, em seu livro Voyage to the Island of Love [viagem à ilha do amor] (1730), marca o início dessa cultura, e Karamzin, em suas Letters of a Russian Traveller [cartas de um viajante russo] (1791-2), cerra a

25Lyubov, Knizhka zolotaya [amor, o livro de ouro], de GL[eb] Gr[omov]. St. Petersburg: 1798. p. 134-5.

26Veja-se a nota de Catarina a Grande [original em francês]: "Tive uma idéia muito divertida. Precisamos organizar um baile no Hermitage. (...) Vamos pedir às mulheres que venham en deshabillé e sem anquinhas e sem grandes perucas. (...) No salão teremos quatro saletas de roupas e máscaras de um lado e quatro saletas de roupas e máscaras do outro, um lado para os homens e o outro para as senhoras. (...) Nas saletas com as roupas de homens poremos um cartaz dizendo 'Vestiário para senhoras', e nas saletas com as roupas de senhoras, um cartaz dizendo 'Vestiário para cavalheiros'." (Sochineniya imp. Ekateriny II [Trabalhos da Imperatriz Catarina III]. St. Petersburg: 1907. v. XII, p. 659.

82

cortina sobre ela. Havia mais nessa cultura do que uma série de caricaturas que se encadeiam a partir de Korsakov, no livro The Negro of Peter the Great [o negro de Pedro o Grande], de Pushkin, a Slyunyai, no Trumf [trunfo], de Krylov.

Os tensos conflitos sociais do final do século XVIII provocaram outras mudanças na estrutura das linguagens da cultura. O elo íntimo entre o mundo dos signos e a estrutura da sociedade desacreditava o signo como tal aos olhos dos iluministas. Seguindo Voltaire, eles submetiam o que Pushkin chamava de "preconceitos da antiguidade" a uma crítica rigorosa, que na prática significava uma revisão do acervo inteiro das idéias semióticas acumuladas através dos séculos. Rousseau, ao expor a falsidade do mundo civilizado concluiu que ela é derivada do convencionalismo da ligação conteúdo-expressão na linguagem. A oposição que ele propunha entre o mundo, de um lado, e a entonação, a expressão gestual e facial, de outro, era de fato uma antítese entre o signo imotivado e motivado. Mas enquanto lutava pela liberação dos signos, Rousseau baseava seu ideal social no contrato social, isto é, na idéia da troca equivalente de valores entre as pessoas; mas isso é impossível sem os signos convencionais. Ao mesmo tempo que rejeitava a semiótica social, Rousseau queria manter seus resultados.

A ideologia maçônica se desenvolveu no pólo oposto. Os maçons eram contrários à teoria contratual da sociedade; contra ela, eles defendiam a idéia da auto-entrega a algum princípio absoluto (sua ordem, ou a humanidade ideal, ou Deus) e a fusão do eu com o absoluto sem pensar em recompensa. Mas, apesar de subjetivamente orientados para a Idade Média, eles permaneciam homens do século XVIII. Seus emblemas não eram símbolos medievais, mas uma linguagem secreta convencional para os iniciados, a qual, na

Page 42: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

83

escala semiótica, estava mais próxima da linguagem das pintas do que do simbolismo medieval.

Essas duas tentativas de escapar do convencionalismo lingüístico acabaram por falhar: o século XVIII acabou com dois extravagantes bailes de máscara, um "romano" na Paris revolucionária e um cavalheiresco na corte de Paulo I.

O destino das idéias de Rousseau na Rússia mostra a interação dos princípios contratual e não-contratual na cultura russa. As idéias dele exerceram influência na Rússia mais profundamente e por muito mais tempo do que na França. Os vários paradoxos inerentes às idéias do "cidadão de Genebra", puderam ser amplamente interpretados de acordo com a dinâmica interior da cultura russa. No século XVIII, Rousseau significava para o leitor russo o Discurso sobre as Ciências e as Artes (1750), La Nouvelle Héloise [Júlia ou a Nova Heloísa] (1761), Emile [Emílio] (1762), mas sobretudo Do Contrato Social (1762). A influência do último foi enorme, e as idéias das origens contratuais da sociedade estavam subjacentes a todo pensamento político do último terço do século XVIII. Radishchev, que era um seguidor de Helvetius, quando se volta para questões de Sociologia e Direito, imediatamente se torna um rousseauísta. Absolutamente contrário a Radishchev, o príncipe M. Shcherbatov, um aristocrata racionalista, também faz referência ao Contrato Social. Argumentando contra a Instrução de Catarina a Grande,27 ele escreveu:

27A "Instrução" era formalmente a instrução da imperatriz para os representantes da comissão da nova constituição (1767), mas de fato era uma declaração, amplamente divulgada, das idéias do Iluminismo sobre a monarquia. Catarina, ao redigir a Instrução, baseou-se amplamente (sua própria expressão era que ela as "roubou") nas idéias dos iluministas, em particular Montesquieu e Beccaria.

84

Rousseau diz que uma vez que os grandes governantes eram originalmente escolhidos pelos povos para assegurar seu bem-estar, então, ao criar o contrato com os governantes escolhidos, o povo, abrindo mão de seus direitos, não podia abrir mão de sua liberdade natural, uma vez que sem ela não pode haver bem-estar; e, continua o escritor, se houvesse um povo suficientemente descuidado para abrir mão de sua liberdade natural, deveria ser considerado louco, e assim o contrato seria invalidado.28

Essa tradução, no estilo pesado habitual de Shcherbatov, foi feita a partir da conhecida passagem do capítulo 4 (“Sobre a Escravidão”) do Contrato Social de Rousseau:

Dizer que um homem se entrega livremente é dizer algo absurdo e inconcebível; um ato como esse é nulo e é ilegítimo, a partir do simples fato de que aquele que o pratica está fora de si. Dizer o mesmo de um povo inteiro é supor um povo constituído de loucos; e a loucura não cria o direito.29

Shcherbatov estava tão seguro de que o contrato era a única forma de justificar a sociedade civil que ele omitiu completamente a oposição importante para Rousseau entre a idéia de troca de direitos entre indivíduo e sociedade, e a idéia de auto-entrega sem recompensa, a qual do ponto de vista de Rousseau era louca.

Para a geração dos dezembristas, Rousseau ainda era associado à idéia do contrato social, mas em meados do século XIX houve uma mudança interessante. Tolstoy, por exemplo, cujas idéias eram grandemente influenciadas por Rousseau e que em sua juventude levava um retrato de Rousseau no peito, atrás de uma cruz, recordava, na velhice, que conhecia todos os trabalhos de Rousseau, inclusive seus trabalhos musicais, quase de cor. Entretanto, as idéias do Contrato Social não deixaram nenhum traço em sua mente.

28SHCHERBATOV, M. M. Neizdannye sochineniya [trabalhos inéditos]. [Moscow]:1935. p. 23.

29ROUSSEAU, J. J. The social contract and discourses. Tradução de G. D. H. Cole. Revisado e comentado por J. H. Brumfitt and John C. Hall. Everyman classics, 1988. p. 186.

Page 43: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

85

Para Tolstoy, Rousseau era um contestador da civilização e da desigualdade, o autor de idéias pedagógicas, o inimigo da falsidade em todas as suas manifestações, o perseverante autor das Confissões. De outro ponto de vista, Dostoevsky era um apaixonado por Rousseau, atacando e denunciando-o com paixão e com uma espécie de respeito ciumento, e o que ele tinha em mente eram sempre as Confissões. A idéia de contrato era profundamente estranha ao modo de pensar de Dostoevsky e para ele a "auto-entrega sem recompensa" não era loucura, mas a norma para o comportamento religioso.

É interessante notar que a geração dos niilistas de 1860–70, que proclamava o materialismo e o ateísmo e rejeitava a idéia de auto-entrega à Verdade vinda de Deus, logo encontrou um outro objeto ao qual se entregar: a idéia deificada de Povo. Não surpreende que Máximo Gorki se referisse aos escritos dos Narodniks como "a escritura sagrada sobre o camponês".

Por outro lado, no pensamento popular sobre os direitos, as idéias de contrato e troca estavam intimamente ligadas à idéia de fraude, uma vez que se concebia uma das partes contratantes como o demônio ou seus substitutos: o mestre, um "alemão", a quem sempre se podia fazer um juramento sem compromisso. Isso explica por que o mercador, no folclore, está sempre colocado no papel de vilão. Mas pode-se acrescentar a essa percepção as inúmeras reclamações dos estrangeiros contra a desonestidade dos mercadores russos. Um exemplo pode ser extraído da carta de Joseph de Maitre ao príncipe Peter Kozlovsky:

86

Um estranho espírito de desonestidade e velhacaria circula em todas as veias do Estado. O roubo através de arma é mais raro entre vocês porque vocês são tão gentis quanto corajosos; mas o roubo por velhacaria é freqüente. Compre um diamante e ele terá uma imperfeição; compre um fósforo e ele não terá enxofre. Esse espírito, que pode ser encontrado em todos os canais da administração, causa um prejuízo imenso.30

Os estrangeiros, quando visitavam a Rússia, tendiam a acusar os mercadores russos de desonestidade e fraude. Embora paradoxalmente, a causa estava subjacente na atitude dos mercadores em relação ao contrato como tal: a oportunidade de fraudar um "estrangeiro" (e os contratos eram pensados como um modo de relacionar-se com estrangeiros) parecia ser tida como certa. A fraude nesse caso era como as trapaças no folclore do mercador trapaceiro. A atitude popular com relação aos acordos entre eles próprios era completamente diferente: a fraude era considerada um pecado grave, mas aí não era necessário um contrato, em seu lugar havia confiança. Uma luz fascinante é lançada sobre isso pelas memórias de um servo que viveu na primeira metade do século XIX, N. Shipov. Essa extraordinária história de vida conta de um servo que se tornou milionário e que pagava a seu senhor, o proprietário de terras Saltykov, uma quantia superior a 5.000 rublos por ano para quitar suas obrigações servis.31 Shipov era um homem de energia incansável e muitos dons. Sua história coloca-nos no mundo dos servos que eram mais ricos do que os proprietários das terras onde trabalhavam, e que tinham negócios e possuíam fábricas. Mas

30MAISTRE, Joseph. Lettres et opuscules inédits. Paris: 1851. v. I, p. 335.

31"Istoriya moei zhizni i moikh stranstvovanii. Rasskaz byvshego krepostnogo krestyanina Nikolaya Shipova (1802–1862)" [A história de minha vida e viagens. Contada pelo moldador Servo Nikolai Shipov (1801–1862)”]. In: KARPOV, V. N. Vospominaniya Nikolay Shipova. Istorya moei zhizni [as memórias de Nikolai Shipov, A história de minha vida]. 1933. p. 391. Para uma comparação, nos estados de A. P. Vorontsov, que estavam numa posição geográfica semelhante na mesma época, os camponeses pagavam em média 25–30 rublos por ano (INDOVA, E. I. Krepostnoe khozyaistvo v nachale XIX veka. Po materialam votchinnogo arkhiva Vorontsovykh [A economia servil no início do século XIX, a partir dos documentos do Arquivo Estadual de Vorontsovs]. Moscow: 1955. p. 88.

Page 44: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

87

a propriedade deles é a propriedade das pessoas que não têm direito à propriedade e que não têm garantias legais de qualquer espécie. Assim, todas essas operações financeiras tão consideráveis eram fundadas na confiança e não na salvaguarda da lei. Ainda que a qualquer momento o proprietário da terra pudesse tomar tudo ("Quem sabe? Tudo podia acontecer com um servo," era a observação melancólica de Shipov), todos os seus negócios, muitas vezes envolvendo milhares de rublos, eram realizados com base na confiança pessoal e com tranqüilidade. Certamente havia casos de fraude e de violação da confiança, mas eram severamente condenados como imorais. █

Para concluir, podemos observar como essa oposição tipológica, que varia de acordo com as condições do meio e da época, permanece ainda subjacente numa invariante. Como resultado disso, para se compreender o conteúdo real dessa categoria histórico-semiótica (nesse caso a noção de contrato), é necessário estudá-lo tanto do ponto de vista tipológico quanto histórico.

Muito recentemente, a oposição proposta por nós entre contrato e auto-entrega na cultura da antiga Rússia foi colocada em questão pelo medievalista Ya. S. Lur'e. Escreve ele:

Se esta observação tem alguma base, restringe-se à Rússia de Vladimir-Suzdal, a partir da segunda metade do século XIII. A partir do século XII a organização política de Novgorod, um dos estados mais importantes na antiga Rússia, caracterizou-se precisamente pelo princípio do contrato: o contrato, selado em ritual, entre o veche [assembléia popular] e a administração da cidade, por um lado, e os príncipes que eram convidados a ir a Novgorod, por outro.32

32LUR'YE, Ya. S. Russkie sovremenniki Vozrozhdeniya [os contemporâneos russos do Renascimento]. Leningrad: 1988. p. 27.

88

Essa objeção parece-me ser a melhor confirmação de minhas idéias. É claro, a república mercantil, membro da Hanseatic League [liga hanseática], onde até mesmo a alta classe feudal era formada pela aristocracia de comerciantes urbanos, tinha uma atitude com relação ao contrato diferente do resto da Rússia, e especialmente Vladimir-Suzdal, fora do qual se estendia o reinado de Moscou. É claro que estamos lidando com tendências tipológicas, que sempre, para usar a expressão de Hegel, "são compreendidas através da não-compreensão" e apontam para uma tendência e não para cem por cento dos fatos. Sem alguns elementos do contrato não pode existir sociedade. Mas o que nos interessa é outra coisa: como uma sociedade valoriza uma ou outra categoria? Que lugar ela atribui a essa categoria, na hierarquia de valores?

Page 45: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

89

Referências

AZADOVSKY, M. K. et al. (Ed.) Narodnye russkie skazki A. N. Afanas'eva. Moscow: 1936–9.

DU RADIER, Dreux. Lyubovnyi leksikon [Lexicon of Love]. Traduzido para o russo a partir do francês [Dictionnaire d’amour. The Hague: 1741.] por A. V. Khrapovitsky. 2. ed. 1779. p. 9, 18, 42.

GR[OMOV], GL[eb]. Lyubov, Knizhka zolotaya [Love. The Golden Book]. São Petersburgo: 1798. p. 134-5.

INDOVA, E. I. Krepostnoe khozyaistvo v nachale XIX veka. Po materialam votchinnogo arkhiva Vorontsovykh. Moscow: 1955. p. 88.

KARPOV, V. N. Vospominaniya Nikolay Shipova. Istorya moei zhizni. 1933. p. 391.

KUZ'MINA, V. D. Devgenievo deyanie. Moscow: 1962. p. 149.

LUR'YE, Ya. S. Russkie sovremenniki [Russian Contemporaries of the Renaissance]. Leningrad: 1988. p. 27.

MAISTRE, Joseph. Lettres et opuscules inédits. Paris: 1851. v. I, p. 335.

MANDEL'SHTAM, Osip. The nineteenth century. In: HARRIS, Jane Gary, ed. The complete critical prose and letters. Ann Arbor, 1979. p. 139.

PASSERINI, G. L. (Ed.) I fioretti del glorioso messere Santo Francesco e de suoi frati. Florença: 1903. p. 58-62.

Pis'ma i bumagi Petra Velikogo [Letters and Papers of Peter the great]. v. III, p. 265.

Povest'o Drakule [The Tale of Dracula]. Moscow, Leningrad: 1964. p. 127.

PROKOPOVICH, Feofan. Sochineniya [Works]. Moscow, Leningrad: 1961. p. 98.

REICHLER, Claude. La Diabolie, la Seduction, la Renardie, l'Ecriture. Paris : 1979.

ROUSSEAU, J. J. The social contract and discourses. Tradução de G. D. H. Cole. Revisado e comentado por J. H. Brumfitt e John C. Hall. Everyman classics, 1988. p. 186.

SAUSSURE, Ferdinand. Course in General Linguistics, tradução de Roy Harris. p. 68.

SHCHERBATOV, M. M. Neizdannye sochineniya [Unpublished Works]. [Moscow]: 1935. p. 23.

Sochineniya imp. Ekateriny II [Works of the Empress Catherine III]. São Petersburgo: 1907. v. XII, p. 659.

90

SOLOV'EV, S. M. Istoriya Rossii s drevneishikh vremen [The History of Russia form the Most Ancient Times], livro IV. St. Petersburg, col. 5.

SUMAROKOV. Stikhotvoreniya [Poetry]. [Leningrad] 1935. p. 203.

The song of Igor's Campaign, tradução de Vladimir Nabokov, p. 37.

TIKHONRAVOV, N. Pamyati otrechennoi russkoi. São Petersburgo: 1863. vol. I. p. 16.

TODOROV, Tzvetan. Théories du symbole. Paris: 1977. p. 9-11ss.

Page 46: Iuri Lotman_Por Uma Semiotica Da Cultura

91 92