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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
Violência, exclusão e isolamento: as produções literárias e o
leproso.
Leicy Francisca da Silva1
Narrativa, memória e a definição do lugar dos leprosos
Na análise da memória da lepra, consideramos que o passado se faz
contemporâneo do presente. Esta contemporaneidade se apresenta nas relações que se
estabelecem entre as duas temporalidades. Estas relações podem ser observadas nos
escritos literários e na operação historiográfica que constrói um passado que ausente ali
se reapresenta por meio do diálogo com os documentos, ou por meio dos rastros
deixados por esse mesmo passado.2 Nesse sentido, as produções literárias, percebidas
enquanto importantes documentos históricos para compreensão das relações sociais,
bem como dos aspectos subjetivos, podem nos auxiliar a pensar o lugar do leproso e a
reação social a esse grupo atingido pela doença em determinado momento histórico.
Em fins do século XIX, uma leitura de José de Alencar nos dá pista da
relação entre a sociedade, a doença e o doente. O autor expôs ao seu público de leitores
os descaminhos e desaventuras vividas por um doente na cidade do Recife. Expulso de
sua cidade “pela plebe irritada”, esse indivíduo havia se refugiado em Olinda, numa
casa abandonada, de onde o povo requereu “ao juiz que o pusesse (...) para fora”,
1 Doutora em História, professora na Universidade Estadual de Goiás. Email: [email protected].
Esse artigo é parte integrande da pesquisa: “O refúgio dos Rejeitados: Leprosário de Anápolis, a
filantropia e assistência aos leprosos”, Financiada pelo Programa de Bolsas de Incentivo ao Pesquisador
(BIP-UEG). 2 CHARTIER, Roger. El pasado en el presente: literatura, memória e história. In: Articultura: Revista de
História, Cultura e Arte, v. 8, n. 13. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de
História. 2006, pp. 7-20.
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porque “andava empestando a cidade”.3 Tal roteiro apresenta o medo de que os espaços
urbanos fossem “empestados” pelos miasmas advindos dos corpos corrompidos pela
doença, uma constante também na literatura política e médica durante o século XIX. Por
esse motivo, as administrações públicas construíram alguns abrigos para a acomodação
dos doentes de lepra no Brasil. Nesses estabelecimentos, normalmente subordinados ao
regimento das instituições caritativas, eles recebiam alimentos e pouca assistência no
que se refere ao cuidado da saúde. Esses eram construções que se situavam às margens
das cidades, afastadas dos espaços povoados, evitando o risco de infecção.
O caso do personagem Alencariano, “um pobre moço doente” de quem todos
fugiam “com medo da doença”, se contrapunha a outros “quantos” que em 1872
andavam “por aí com ele?”. A expressão “andar com ele” alude a estar na companhia de
lázaro ou leproso, em conclusão outros na mesma situação sanitária. O personagem em
questão “terminou afinal a imensa e cruel agonia de uma existência nunca vivida, mas
tão penada” ali nos arredores de Olinda; o que nos expõe que os demais teriam sido
expulsos dali. Durante esse período, esses indivíduos, após o afastamento dos espaços
habitados, refugiavam-se em leprosários ou mantinham a vida nômade, vagando em
grupos pelas estradas.4 Nos lazaretos, segundo os relatos médicos, eles tinham certa
liberdade de entrada e saída, pois a instituição era, muitas vezes, carente de
funcionários.
Nos escritos de José de Alencar, o isolamento e a violência aproximavam a
vida do doente claramente à morte. Tal proximidade não se expressa apenas na
descrição de um corpo que se definhava com a doença, mas também na indicação de um
3 ALENCAR, José. A alma do lázaro, 1872. 4 MONTEIRO, Yara Nogueira. Da maldição divina à exclusão social: um estudo da hanseníase em São
Paulo. 1995. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo,
1995.
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indivíduo cujo espírito era comparado, ainda vivo, à “alma penada”. Reproduz-se
literalmente a perda da humanidade de um ser que há muito não trocava “uma palavra
com um ser humano!”. A experiência do leproso é publicada pelo literato para que, lida,
purificasse as almas de leitores ávidos por aquelas imagens moralizadoras de uma
literatura possivelmente “retocada ao gosto da época”. Ela aludia a um doente que na
solidão de sua dor imaginava que se “fossem peçonha” suas palavras ele as “cuspiria”
sobre a “gente” que o escarnecia, porque dele não havia tido misericórdia. No mesmo
momento, se arrepende dos seus desejos de vingança ao constatar que os outros não
haviam lhe feito “nenhum mal”, pois não tinham culpa do castigo que sobre ele recaíra.
Essa percepção é próxima e pode ser somada à análise de identidade
narrativa, cara a Paul Ricoeur. Ricoeur apresenta por meio do conceito a capacidade do
sujeito de se ver representado por meio da leitura e da narrativa literária. Esse processo
dá-se por meio da apropriação, onde o conhecimento de si ocorre pela interpretação do
outro e do mundo: alteridade.5 Por meio da escrita literária e da leitura, o homem
interpreta a si e ao mundo. Nessas obras, os elementos fundamentais se expressam pela
capacidade de produzir e expressar as experiências coletivas (normalmente por meio de
uma linguagem metafórica). As representações do passado fazem o trânsito ou
circulação entre o mundo social e o espaço de reconstituição literária do mesmo.
Tal condição de dubiedade relativamente ao sentimento do doente para com
a sociedade era a mesma que podia ser percebida na relação da sociedade para com o
doente. Ele era tanto objeto de sua misericórdia, pois expunha a possibilidade de
conquista do perdão dos pecados por meio da caridade, quanto objeto de sua
repugnância, medo e violência, pois exprimia em seu corpo o castigo pelos pecados.
Para Françoise Bériac, o estigma da doença no corpo era percebido como a expressão
5 RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. – Campinas, SP; Editora da UNICAMP,
2007.
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do pecado, e o doente como um pecador punido, imagens essas advindas dos textos
bíblicos e reproduzidas e reforçadas pelo pensamento popular.6
O leproso, apresentado por Alencar, queixa-se da não aceitação de seu
trabalho, o que o colocava em condição de “inútil”, ao mesmo tempo em que não
recebia proteção do “rei”. Além de tudo era desrespeitado pelo povo que se admirava de
encontrar nele “ainda feições humanas”, pois, para todos, o lázaro “no terror que
infunde é fera; no asco que excita é verme”. A imagem da doença e do doente, que
lançava o indivíduo na solidão e desespero, e o situava na mesma condição de um
“virulento inseto [que] apenas destila veneno”, era decorrente do medo do
contágio/infecção, mas também da direta relação entre ele e as expressões do mal
advindo do pecado em seu corpo. A abjeção se apresentava naquela doença ainda maior
“que a peste; porque não só mata o corpo, como também a alma”, e alinhava o homem à
besta.
Nas obras literárias se apresentam as representações coletivas do passado.
Um passo inicial para a compreensão dessa capacidade é o entendimento do uso do
conceito de “energia social” de Greenblatt, Segundo O qual por meio da escrita literária
é possível expressar as percepções e experiências de seus leitores, bem como
transformá-las. O conceito de energia social apregoa a capacidade de certos autores e de
suas obras de expressarem a realidade social (a linguagem, os ritos e as práticas) que as
cerca, bem como de captar as expectativas, emoções, desejos, experiências e percepções
dos leitores transformando-os em criação estética. Essas energias captadas pelos autores
das obras retornam novamente ao mundo social, agora sob a forma das suas
apropriações por parte de seus leitores. A escrita literária nada mais seria que a
6 BÉRIAC, Françoise. Histoire des Lépreux au Moyen-Âge – Une Société d’exclus. Editions Imago, Paris,
1988.
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codificação estética dessa energia social.7 Eis como captamos nesse trabalho as imagens
construídas pela narrativa literária, e como ela recria por meio das palavras e dela
advêm determinados comportamentos sociais.
É assim que podemos perceber as transformações que ocorrem na
apresentação da imagem e do lugar do leproso na literatura produzida nas primeiras
décadas do século XX. Reforça Gondar: “não há poder político sem controle da
memória e do arquivo; e que a questão do esquecimento é política”.8 O processo de
institucionalização da lepra comportou dentro da política de constituição da memória o
embate entre a força da lembrança e a compulsão ao esquecimento. Nesse jogo de
forças, a vitória pode ser notada no nível institucional arquivística do lado do
esquecimento. Nesse embate, diferentes elementos podem ser considerados, bem como
diversos espaços de poder: as políticas de memória composta a partir do Estado e de
suas aspirações; o poder imanente às instituições e seu interesse na construção de um
discurso atraente ao seu processo de constituição identitária, enquanto grupo; o poder no
plano social ou de elaboração da identidade do doente de lepra, como sentencia
Laurinda Rosa Maciel uma identidade ferida ou traumática.9 Nesse sentido, não é nos
arquivos oficiais que encontramos respostas para algumas questões apresentadas no
quanto à reação popular aos doentes, elas podem ser encontradas nos textos literários.
Como explica Jô Gondar, as políticas de esquecimento decorrem de que
a própria sociedade deseja ocultar tudo aquilo que pode revelar seus
paradoxos, suas falhas, enfim, tudo aquilo que poderia comprometer
a imagem – a ficção – que ela pretende fornecer sobre si mesma.
7 CHARTIER, Roger, op. cit., 2006, pp. 7-20. 8 GONDAR, Jô. Lembrar e Esquecer: Desejo de Memória In COSTA, Icléia Thiesen Magalhães e
GONDAR, Jô (organizadoras). Memória e Espaço – Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 37. 9 MACIEL, Laurinda Rosa. A solução de um mal que é um flagelo: notas históricas sobre a hanseníase no
Brasil no século XX. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo; CARVALHO, Diana Maul (Org.). Uma
história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004.
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Assim, ela não apenas se ‘esquece’ destes elementos capazes de
revelar sua alteridade consigo própria, como também se esquece
deste esquecimento, e dos meios que utilizou ou utiliza para efetivá-
lo.10
Em Goiás no século XIX, o espaço previsto para os doentes de lepra era
aquele das margens das cidades que começavam a mostrar o crescimento da população
e da atividade produtiva. Esse era o caso da capital, a cidade de Goiás, e de Pirenópolis
que mereceram por parte do governo provincial a construção de abrigos para
atendimento a esse grupo. Ainda, pode-se citar os banhos nas águas de Caldas Novas,
Caldas Velhas e Lagoa de Piratininga,11 cujas águas, se afirmava, cicatrizavam as
úlceras, melhoravam as condições de saúde dos doentes, podendo, até mesmo, levá-los a
cura.
O século XX e o questionamento do espaço da doença na Literatura
Nas primeiras décadas do século XX em Goiás, a lepra enquanto
preocupação circundou o espaço da política sanitária, mas enquanto prática esteve
profundamente relacionada às instituições religiosas. Era principalmente por iniciativa
religiosa, que se faziam os cuidados para com os leprosos; em decorrência da
incurabilidade da doença, pouco além do cuidado material e espiritual para a
sobrevivência podia ser feito. O tratamento, nos hospitais, consistia em paliativos para
diminuição da dor e das consequências da doença. Foi durante a década de 1920 que se
iniciou a divulgação de discursos cujos principais fundamentos estavam marcados pela
medicina moderna, pela nova arquitetura sanitária, pelo modelo convencionalmente
10 GONDAR, Jô, op. cit. 2000, pp. 38, 200. 11 MORAES, Cristina de Cássia Pereira. As estratégias de purificação dos espaços na capital da
Província de Goiás. 1835-1843. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1995.
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definido como hospital-colônia cujo objetivo central era o isolamento da doença/doentes
para a contenção do crescimento do número de enfermos.12
Esses discursos expunham o novo no quanto ao modelo de medicina, de
arquitetura médica e de definição de políticas estatais para auxílio aos doentes; porém,
mantinham, por outro lado, elementos de representação social acerca da doença e do
doente, advindos dos séculos anteriores. No quanto às permanências, apresentavam a
repetição dos mitos sobre a moléstia e a agressividade do leproso em relação aos sãos, o
que gerava e incentivava o medo dando justificativa à necessidade da segregação. Os
escritos literários sobre a lepra e os leprosos exprimem principalmente esses elementos
representativos das permanências. Nesse processo se percebe uma construção de uma
imagem pejorativa do doente como maneira de explicar ou justificar a violência advinda
da polícia sanitária e das ações de profilaxia médica e sanitária, que seriam
posteriormente utilizadas. Dentro desse novo paradigma de atenção ao problema da
doença, a literatura mostra, no que concerne à relação entre sadios e doentes, uma
posição de violência justificada pela existência dessas novas instituições, único lugar
possível para aqueles enfermos.
De outro lado, podemos perceber que se no século XIX falávamos de
leprosos pobres repelidos dos espaços urbanos, porque insistiam em continuar vagando
pelas ruas e estradas, ou de outros tantos que segregavam-se em leprosários na fronteira
da cidade, expande-se, agora, o poder de exclusão já que a doença atira-os
“incondicional e miseravelmente, fora do convívio familiar e social”.13 Os filhos
recebiam dentro dessa nova política médico institucional e profilática um espaço
específico para que pudessem ser afastados dos pais doentes, os preventórios; já os
12 SILVA, Leicy Francisca da. “Eternos Órfãos da Saúde”: medicina, política e construção da lepra em
Goiás (1830-1962). Tese de doutorado – Universidade Federal de Goiás, 2013. 13 DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2ª edição, 1986.
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demais parentes e próximos, agora definidos como comunicantes, em decorrência do
nível do risco de se terem contaminado, deviam subordinar-se à obrigatoriedade de
exames constantes para confirmação de sua condição de saúde, tarefa a cargo dos
dispensários.
No entanto, tal política atrasava-se em algumas regiões. Em Goiás, por
exemplo, embora desde o início da década de 1930 já se desenvolvam discursos
afirmando a necessidade dessas instituições isoladoras, o hospital Colônia Santa Marta é
inaugurado apenas em 1943. Havia, no entanto, três pequenos abrigos, dois deles
inaugurados em 1929, o Leprosário Helena Bernard de Catalão e o Leprosário
Macaúbas na Ilha do Bananal; e um em 1934, o leprosário de Anápolis. No entanto,
essas instituições atendiam uma parcela ínfima da população doente. Assim, restava aos
demais isolar-se, por vezes em suas próprias residências por não possuírem assistência
médica e pelo medo dos olhares dos vizinhos.
Se para os doentes pobres a única alternativa era a exclusão, o abandono em
uma vida nômade; para aqueles com condições materiais, ainda se admitia o convívio
social. Nesses casos, o que ocorria era a negação da doença ou o autoisolamento
domiciliar. O primeiro caso ocorria mais comumente quando o isolamento compulsório
não havia ainda sido establecido e não havia no estado instituição competente para tal
finalidade. Situação idêntica à observada por Carlos Magalhães que, em 1919, comenta
em uma de suas cartas, a experiência na busca de um hotel em Roncador, cidade de
Goiás:
ao despertar pela manhã na única pensão do bairro residencial dos
graúdos, descobri que o hoteleiro estava atacado pelo mal de Hansen.
A cama e as paredes criavam os percevejos14, provável transmissor de
uma enfermidade que só respeita Nosso Senhor. Informado que havia
14 Em 1919, ano dessa correspondência, ocorria a discussão sobre a forma de contágio da lepra, se direta
de pessoa a pessoa ou se por meio de picadas de inseto, o que justifica o pensamento do missivista.
MAGALHÃES, Carlos Pereira de. Cartas de Goiás: no princípio do século XX, 2004.
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outra pensão na margem oposta, na rua das palhas e dos mocambos,
atravessei o rio à procura de recomendado barracão. Estava o hoteleiro
ausente, mas empregados seus, de caras patibulares, receberam-me.
No dia seguinte aparece o tal, faltavam-lhe várias falanges dos dedos,
lepra mais adiantada que no colega do bairro aristocrata.15
Mais tarde, já na década de 1930, percebe-se nos relatos literários uma maior
exigência em relação ao autoisolamento dos doentes como o que observou Paternostro.
Segundo ele, “Caso de lepra no sertão vive escondido. Não procuram médico por medo
da difamação e da possível perda de casamento das moças da família leprosa, etc. Não
se tratam e a doença se dissemina. Moças recém-casadas, como vi, apresentam sinais
clínicos da doença de Hansen”. 16 Em uma de suas visitas na região sudoeste de Goiás,
fora recebido por um rico fazendeiro de gado, com que almoçara, sua esposa, filhos e
empregada, “moradores daquela casa, não apareciam aos viajantes, porque
apresentavam lesões mutilantes de lepra”.17 Essa prática era comum, segundo seu relato,
em um estado cuja população doente era de, aproximadamente, dois mil indivíduos.18
Esses “vivem segregados no mato ou nas moradias das cidades”, assim “lá ninguém
arrepia os cabelos quando se diz que a família tal é de leprosos”.19
Se esta literatura anteriormente apresentada, escrita nas décadas de 1920 e
1930, não exprime uma violência ativa contra os doentes, não se nota o mesmo no conto
escrito em 1944 pelo regionalista Bernardo Élis (1915-1997). É preciso dizer que a sua
escrita se situa exatamente no momento de maior reforço da política de aprisionamento
15 MAGALHÃES, op. Cit, p. 39. 16 PATERNOSTRO, Júlio. Viagem ao Tocantins. São Paulo. Cia Ed. Nacional. 1945, p.309. 17 PATERNOSTRO, op. cit, 2004, p. 309. 18 Esses dados são tomados por aproximação já que o primeiro censo da lepra, segundo o Boletim
Nacional da Lepra, p. 54, indica para 1940 o total de 823 doentes, em 1941 o mesmo número, em 1942
sobe para 1154 chegando em 1945 no total de 1447. Esse censo apresenta números imprecisos, pois no
ano de 1943, por exemplo, os contadores teriam percorrido apenas 12 cidades (Balisa, Caiaponia,
Corumbá de Goiás, Jaraguá, Jataí, Mineiros, Paraúna, Pirenópolis, Rio Verde, Trindade, Ipameri e
Goiânia). 19 PATERNOSTRO, op. cit, 2004, p. 309.
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e isolamento de doentes por meio da polícia médica. O hospital-colônia goiano é
inaugurado em 1943, data a partir da qual várias diligências do serviço sanitário são
feitas pelas cidades do interior do estado à caça de doentes. Talvez por isso se explique
que em seu texto o autoisolamento não tenha sido suficiente para resguardar o doente da
violência do outro/sadio. Em seu conto “A Morfética”, publicado originalmente em
1944 no livro “Ermos e Gerais”, apresenta, segundo Ítalo Tronca, uma alegoria da
desumanização do leproso isolado em um espaço rural e bucólico no interior do estado.
O narrador apresenta personagens vampirescos e monstruosos “como se o leproso
necessitasse ferir, atacar os sãos, para vingar-se do mal que o acometera ou mesmo para
curar-se”. O conto “impressiona pela carga de preconceitos que parece conter em
relação às vítimas de lepra”. 20
Naquele cenário em que estava situado, o leproso se colocava distante dos
sãos, mas não deixava de apresentar perigo já que havia sempre o risco do encontro. Os
leprosos vivendo em um “ranchinho obscuro e humilde” em lugar ermo sofrem, no
relato de Bernardo Élis, grande violência após terem seu espaço invadido. O
protagonista adentra a cabana, come o alimento que encontra e adormece em uma rede
que ali estava posta. Desperta, no entanto, quando da chegada de “quatro espectros
vestidos de xadrez, apalermados ante a luz forte. Tinham crânio pelado e purulento.
Principiaram a conversar entre si. A voz saía fanhosa, fina, soprada pelo nariz. Uma voz
nojenta, leprosa [...]”. Nessa descrição do contato, afirma “braços invisíveis me
agarravam com raiva e bocas fedorentas me mordiam as pernas, o rosto, os braços”.21
Tais afirmações retomam os mitos toscamente reforçados de doentes que tinham como
lenitivo ao abandono e meio de vingança a tentativa de infectar os sãos.
20 TRONCA, Ítalo. História e Doença: a partitura oculta/a lepra em São Paulo 1904 a 1940. In
RIBEIRO, Renato Janine (org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 90. 21 ÉLIS, Bernardo. Ermos e Gerais apud TRONCA, Italo, op. cit., 2000, p. 89.
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Após empreender fuga, o personagem é perseguido por um desses
elementos. Para certificar-se do que havia visto e vivido, já que o enredo apresenta esse
contato como um pesadelo, retorna. E afirma “lá estava o animal nojento da morfética
caído de bruços”. A ira exprimida nas reações do protagonista mostra toda a carga de
preconceito social contra aquele grupo. Ao deparar-se com a mulher ainda no chão,
afirma “cuspiu-me um cuspo fedorento no rosto. Meu ímpeto foi de matá-la, mas reduzi
isso para um pontapé naquela fuça: - ‘e se saltasse mais poderidão na gente?”.22 Sua
conclusão expõe que à violência aliava-se o medo do outro.
A lepra tornou-se a partir de certo momento uma metáfora do feio, do pobre,
do podre. Susan Sontag explica que quando as enfermidades são compreendidas como
metáforas, são relacionadas com o espaço e com o tempo. Na lepra, são topográficas
suas representações, ela se “espalha”, se “prolifera”, se “extirpa”, se “difunde”. Alonga-
se geograficamente para o espaço visível, assim o espaço que ela toca é o espaço da
pobreza, destruído, enfeado. Em determinados momentos, os termos utilizados para
caracteriza-la, no conto de Bernardo Élis, são os mesmos que caracterizavam a região
(sertão). A doença era identificada pelo seu pertencimento a condições de insalubridade
e promiscuidade, tais elementos caracterizavam o indivíduo leproso, para com ele não
há condescendência, como há para com o tuberculoso.23
Não por acaso, a primeira luta política em relação à lepra foi no sentido de
transformá-la em “doença tropical”, localizando-a espacialmente numa região
empobrecida do globo. Mesmo que ela tenha sido um grave problema na Europa na
Idade Média, mesmo que ela se apresentasse em regiões específicas da Europa no
22 ÉLIS, Bernardo. Ermos e Gerais apud TRONCA, Italo, op. cit., 2000, p. 89. 23 SONTAG, Susan. Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. – São Paulo: Companhia das Letras,
2007, p. 20.
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século XIX, como no caso da Noruega, era como tropical que médicos e políticos a
queriam compreender.24
Literatura e subjetividade: A Reconstrução da Memória Ferida
O isolamento compulsório de doentes de lepra ocorreu no Brasil de 1924 até
1962. A partir de então, junto ao questionamento das políticas anteriormente
implementadas, difunde-se políticas de incentivo à inclusão social dos doentes de lepra.
No entanto, tal política esbarrava-se sempre no medo gerado por séculos de uma cultura
de violência e segregação, e no preconceito e temor advindos das políticas
isolacionistas. Assim sendo, mesmo a legislação e os discursos médicos afirmando a
cura da doença e a importância da constituição de políticas contra essas práticas, foi
apenas no final da década de 1980 e durante a década de 1990 que pudemos notar
respostas sociais mais contundentes em relação a essa questão.
Se durante as décadas de isolamento, escritas autobiográficas de isolados nos
dão dicas de sua relação para com aquela política, notamos agora o interesse de
intelectuais e literatos por histórias de vida de um mundo construído à parte, e que, em
decorrência da sua relação para com a violência social, estabeleceu parâmetros
diferenciados de falar de si e de constituir sua identidade.
Entretanto, a construção de narrativa histórica sobre práticas sociais
traumáticas apresenta o retorno à perspectiva do eu. Não o eu da auto referencialidade,
mas o eu da subjetividade como expressão ou reafirmação da busca pela veracidade na
história. Essa análise torna-se possível por meio da literalidade, é na narrativa que a
24 OBREGÓN TORRES, Diana. Batallas contra la lepra: estado, medicina y ciência en Colombia. –
Medellín: Banco de la República, Fondo Editorial Universidad EAFIT, 2002, pp.147-151.
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memória se apresenta. Como propõe Halbwachs, a memória individual está sujeita a
flutuações, a negociações, a interesses, a escolhas (conscientes e inconscientes), sendo
nesse sentido também compreendida como resultado de relações sociais que definiriam
o quadro daquilo que merece ser lembrado, guardado, definido como importante
reminiscência.25
No entroncamento dessas experiências, do rememorar, da construção
literária e das escolhas, situamos o livro “A vida é um engenho de passagens” de
Eguimar Chaveiro. Nele são apresentadas as lembranças dos egressos da Colônia Santa
Marta, testemunhos de vida de internados durante as décadas de 1940 a 1970,
reconstruídas poeticamente. Tais memórias são também caracterizadas pelo autor como
instrumento político de denúncia do esquecimento instituicional dos sujeitos atingidos
pelas politicas públicas. Na literatura, se exprime um posicionamento político através do
reclame pela visibilidade do problema especialmente no que concerne às permanências:
o preconceito, a autossegregação e o desconhecimento construtor de mitos.26 Sobre a
doença, um dos entrevistados afirma: “Ta vendo, fio, até hoje parece que eu não gosto
de falar nela, né? Isso ta marcado no meu silêncio... Esse silêncio que carrego de muitos
anos, décadas...”.27
Jô Gondar afirma que o próprio pensamento, ação fundamental no processo
de constituição da memória, “implica em esquecer, segregar, excluir”.28 Tal
esquecimento se impõe, mesmo que a distância temporal não seja marcante, talvez se
explique pela dificuldade de ressentir “É, fase difícil foi essa, né? No começo mesmo
que eu descobri, mais ou menos em Oitenta e Cinco, Oitenta e Seis por aí, não me
25 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004. 26 SILVA, Leicy Francisca da, op. cit, 2013.
27 CHAVEIRO, Eguimar Felício. A vida é um engenho de passagens. Goiânia: Deescubra, 2005, p. 60. 28 GONDAR, Jô, op. cit., 2000, p. 35.
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lembro, mas por aí”.29 Na constituição de um pensamento sobre a lepra, diversos
elementos foram esquecidos, segregados, excluídos, talvez como parte de um processo
de manipulação da memória como indica Paul Ricoeur.30
Se adotarmos essa afirmação para o tema em questão, podemos observar
que, em relação à lepra, muitos paradoxos e falhas relacionados aos elementos sociais
inseridos nesse processo histórico expressam o desejo pelo esquecimento e foram
efetivamente esquecidos. Nesse processo, sem dúvida, se inserem elementos de dor e de
traumas sociais que consubstanciam as memórias existentes sobre a questão,
impossíveis de partilhar. Como compreender e como apresentar ao outro a experiência
aniquiladora do afastamento dos entes amados?
A gente num passava pra lá e nem eles pra cá. Conversava por ... abria
um tantim assim ó. Aquele vidro separava nóis do mundo. Era a
fronteira do mundo. Apenas aquele vidro. Era. Pra lá tinha um salão e
nóis de cá, né? Agora abria um buraco só de uns três dedo assim pra
gente ficar conversando. Era um medo danado. Imagina o que nóis
pensava de nóis mesmo, e o que nóis conversava com nóis então? 31
Concluímos pela leitura de Paul Ricoeur e Jô Gondar que há de se chamar
atenção para o risco de um esquecimento traumático repetir-se enquanto ato sem a
devida consciência de sua relação com uma rememoração com o passado. É necessário
que se faça o trabalho de luto para que a memória ferida seja curada dando propensão à
possibilidade do perdão, exigência fundamental para a constituição de uma memória
feliz, como propõe Paul Ricoeur. Sentencia o mesmo autor que o esquecimento não é
inerte, assim como a memória ele se constitui como prática, como labor; é por essa
característica que estão subordinados à possibilidade do mau uso ou dos abusos.
29 CHAVEIRO, Eguimar Felício, op. cit, 2005, p. 94. 30 RICOEUR, Paul, op. cit., 2007. 31 CHAVEIRO, Eguimar Felício, op. cit., 2005, p. 83
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O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
No olhar retrospectivo dos doentes de lepra internados na colônia Santa
Marta, as permanências se mostram. Em suas narrativas, o exercício de recordação
mostra a cristalização na memória de ressentimentos e da absorção da imagem da
doença, da instituição segregadora e de sua própria imagem, seja por meio do olhar no
espelho ou apresentada pelos outros.
A notícia lá disse que ia chegando aqui, eles punha a gente pra andar
num corredor. (...). Passava certo lugar assim eles apertava um botão
na parede e a gente... derrubava a gente lá embaixo, encima do fogo e
o fogo queimava a gente e por baixo passava o rio e já levava as
cinzas, sabe?
[...]
Aí já foi começar outro sofrimento, certo? Por que Anápolis é um
lugar que os doente pede... anda a cavalo e sai de porta em porta
pedindo. Vira mendigo, aprendi a usá a doença pra ser coitado ...
[...]
Aqui nóis era vigiado. Nóis era pirigoso. Tinha. Tinha um guarda!
[...]
(...) no começo da Colônia, até em Noventa não tinha funcionário
sadio. Era só doente!32
Eles expressam suas leituras do reconhecimento da doença, do isolamento,
da experiência do preconceito, dos seus medos em relação ao outro (o sadio) e a si
mesmos, a afirmação da incurabilidade e do risco do contato, para depois comentar os
métodos de tratamento a que foram submetidos e, respondendo ao jogo entre passado e
presente, fazem a crítica ao uso de medicamentos que se mostraram inoperantes. Enfim,
falam do vivido: em todas essas experiências a violência é sugerida.
Então nóis é daquele tempo... a gente luta pra que seja cuidado, tenha
aqueles cuidado igualmente aqueles que ta no Hospital. Por que os
sequelado, eles usaro... o governo, o ministério usou eles pra
descobrir o remédio certo. Ce vê um tanto de remédio que nóis
32 CHAVEIRO, Eguimar Felício, op. cit., 2005, pp. 41/42, 46, 86 e 50.
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tomamos naquele tempo pra descobrir e num descobria! O bacilo,
quando pegava ele já saía morto. E ficou... toma um remédio, toma
outro. Tinha um ‘chamugros’ o cara quando entrava na sala, tomava
ele e quando saía, já saía cego! Nóis somos as cobaia daquele tempo!
(...). Agora nóis servimo de cobaia e eles abandonou nóis! Isso a
gente não aceita, sabe.33
A discussão sobre o dever da memória e em consequência os abusos de
memória traz à tona a perspectiva da subjetividade. O livro de Eguimar Felício Chaveiro
se situa dentro de uma análise onde o discurso subjetivo, ou a apresentação de uma
memória sensível, é o elemento indicador de veracidade ou de confiabilidade da
narrativa. Ele representa o objetivo de resguardo por meio da escrita memorialística e
poética, caracterizada pela individualidade e pela subjetividade da lembrança de doentes
de lepra que viveram a experiência da segregação.
Ao defender a tese de que a doença não é uma metáfora, Susan Sontag
afirma que, ao serem metaforizadas, as doenças são acrescidas de significados morais e
políticos. Como alargamento dessa prática, se apregoa aos indivíduos atingidos pela
doença real o peso da discriminação e do estigma. Ao utilizarmos as metáforas das
enfermidades como expressão do mal, os doentes são cruelmente atingidos.34 No
entanto, o desconhecimento da doença, seja de sua etiologia ou de sua cura, num
período em que se tem o pensamento corrente de que as doenças são curáveis, leva-as a
serem consideradas como um perigo secreto e traiçoeiro, cuja ação constante se faz no
sentido de roubar vidas. Assim sendo, esse tipo de doença, grupo no qual a lepra pode
ser inscrita, desperta nos outros, os sadios, pavores antiquados. É nesse sentido que a
33 CHAVEIRO, Eguimar Felício, op. cit., 2005, p. 54. 34 SONTAG, Susan, op. cit., 2007, p. 11.
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acepção do contágio em relação a essas doenças se enlarguece acima do que realmente
se apresenta.
O médico disse que era contagioso, mas depois acabô. Agora cabou.
Olha, até aqui tinha gente que tinha preconceito com nós. Doente
mesmo! Se desse um negócio prá nós aqui, que nós pegasse quando a
gente saía eles jogava no mato. Caindo os pedaço! Desse jeito...35
Sontag afirma que “qualquer enfermidade tida como um mistério e temida
de modo bastante incisivo será considerada moralmente, se não literalmente,
contagiosa”.36 A lepra era situada nos dois campos, percebida tanto moral quanto
literalmente contagiosa, por isso o efeito de contagiosidade é potencializado. Mesmo
que não letal e de difícil contágio, a lepra aterrorizava. Talvez porque atingisse e
desumanizasse de forma lenta e manifesta o que havia de mais visível e nobre: o rosto.
Levando a uma transformação orgânica e negativa, a denominada “face leonina”, o que
causava reações de repulsa e temor. A descoberta é sempre narrada como ponto de
descontinuidade, de assombramento com o outro (espelho),
Aí quando chegô naquela grotinha era onde a gente parava, né?
Parou!(...) Aí logo a porta abriu oiei aquele pessoal feio rapaz! Fiquei
doido e em silêncio perguntei a mim mesmo: Será que vou ficá feio
assim? (...) Logo pareceu um tal de Lúcio, abriu lá, já pegou minha
malinha e levou lá pra dentro e disse... Oiô se num tinha nenhuma
arma de fogo, uma faca qualquer. Logo fui compreendendo: muitos
podia querê se matá, aliás, quase todos pensava em morrê, acabá com
aquele sofrimento, dispidi de si mesmo... (...) ‘Leva ele pra cadeia!’
Aí eu falei: ‘O quê que eu fiz? Eu num fiz nada pra me levar pra
cadeia uái!... Era assim: morá no asilo, era morá na cadeia, isolado,
calado, ouvindo a doença bradá(...)37
35 CHAVEIRO, Eguimar Felício, op. cit., 2005, p. 77. 36 SONTAG, Susan, op. cit., 2007, p. 12. 37 CHAVEIRO, Eguimar Felício, op. cit., 2005, p. 45.
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Como lembra a autora, a doença, ao ser utilizada como metáfora, passa a
adjetivar aquilo que “é feio ou repugnante”; herança segundo ela da Idade Média
quando “a lepra, em seu auge, suscitou uma sensação de horror igualmente
desproporcional”.38 Tal sensação, fruto da violência da política de segregação e da
relação para com os outros, expande-se e se apropria do próprio exercício de
constituição da identidade individual. O medo advindo da relação com o outro (o sadio)
reflete-se enquanto elemento de constituição da imagem de si.
No caso da lepra, cabe ainda pensar a indagação proposta por Ítalo Tronca a
respeito da validade e do significado das políticas públicas de isolamento dos doentes e
de luta contra a endemia hansênica postas em prática em São Paulo, e no restante do
país, após a década de 1930. Isso porque a doença mantem-se apesar da violência da
política profilática e os doentes, possivelmente em decorrência das construções
advindas dessas politicas, ainda são em grande número. Para Tronca, a doença teria
criado um grupo de “prisioneiros do Castelo da Ciência”: médicos, enfermeiros,
religiosos e doentes. Ao questionar a afirmação de que o silêncio reina em relação à
doença, afirma que “o discurso do doente se elabora, portanto, no interior do próprio
discurso das relações do indivíduo com o social”. No entanto, após os anos de 1930,
quando se estabelece uma política antileprótica de grandes proporções e visibilidade no
país, a enfermidade se constitui enquanto um perigo desproporcional a sua significação
real. Assim se constituiu, em relação a ela, um amplo campo de renovação e propagação
do imaginário de medo advindo dos séculos anteriores. Nesse processo, a lepra se
38 SONTAG, Susan, op. cit., 2007, p. 53.
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amplia enquanto metáfora daquilo que os médicos desconhecem, e da mistura do seu
conhecimento às concepções profanas popularmente elaboradas.39
Em conclusão, podemos afirmar que as políticas para profilaxia da lepra
sofreram uma enorme transformação no Brasil a partir da década de 1920. Essas
mudanças estão diretamente relacionadas ao processo de definição do fenômeno
etiológico, bem como da estruturação de normas e instituições voltadas para a defesa da
saúde e isolamento dos doentes. No entanto, podemos perceber, quanto à concepção
popular da doença e na relação da sociedade para com o doente, algumas permanências
advindas da Idade Média e reforçadas por meio do ataque sofrido pelos doentes. Esse
violento confronto, em que o doente foi tomado como expressão da doença e como
objeto de medo e repulsa, se fez tanto por meio das políticas de contenção e isolamento
dos enfermos quanto por meio da construção de uma identidade individual negativa ou
deteriorada. Essas nuances, relativas às permanências na relação entre a sociedade sadia
e o leproso, são muito claramente expressas, absorvidas e reapresentadas por meio do
discurso literário.
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39 TRONCA, Ítalo. História e Doença: a partitura oculta/a lepra em São Paulo 1904 a 1940. In
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