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IVO Romance 1. A PALAVRA "ROMANCE" A palavra "romance" deve ter-se originado do provençalro m a n s , que deriva por sua vez da forma latina romanicus; ou teria vindo de romanice, que entrava na composição de romanice loqui ("falar românico", latim estropiado no contato com os povos conquistados por Roma), em oposição a latine loqui ("falar latino", a língua empregada na região do Lácio e arredores). O falar romance passou a designar, no curso da Idade Média, as línguas dos povos sob domínio romano, em lenta mas inexorável autonomização. Com o tempo, a expressão passou a indicar a linguagem do povo em contraste com a dos eruditos. Mais adiante, acabou rotulando as composições literárias de cunho popular, fol- clórico. E, como estas fossem de caráter imaginativo e fantasista, a expressão prestava-se para nomear narrativas em prosa e verso. No primeiro caso, situam-se os impropriamente chamados romances de cavalaria, de larga e intensa voga durante os séculos medievais. A mesma classificação se atribuía aos poemas narrativos em torno das proezas dos cavaleiros andantes, ou de temas amorosos, épicos, moralistas, satíricos, etc., como o Roman de la Rose e o Roman de Renatt, poemas franceses do século XII, de motivo respectivamente amoroso e satírico, mas ambos de intuito moralizante. Entretanto, foi na Espanha que mais se cultivou o romance em verso, tomando-se quase exclusiva fôrma literária espanhola. Recebiam 157 a designação de "romance", durante a Idade Média, composições curtas, de metros populares (o redondilho menor, de 5 sílabas, e o redondilho maior, de 7 sílabas), armadas sobre estruturas elementares, vazadas em linguagem desataviada e fluente. Com tal sentido, a palavra continuou a ser empregada em literatura espa- nhola. Narrativa de aventuras imaginárias e fantásticas, foi o sentido que ganhou dali por diante. No século XVII, o termo entrou a circular com a significação moderna. Em Língua portuguesa, sofreu análogas vicissitudes, desde significar "idioma vernáculo", como se pode ver em Os Lusíadas (X, 96, 97), até designar' 'histórias de imaginação e fantasia", e, por fim, ganhar o sentido atual.

IVO Romance

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IVO Romance 1. A PALAVRA "ROMANCE" A palavra "romance" deve ter-se originado do provençalro m a n s , que deriva por sua vez da forma latina romanicus; ou teria vindo de romanice, que entrava na composição de romanice loqui ("falar românico", latim estropiado no contato com os povos conquistados por Roma), em oposição a latine loqui ("falar latino", a língua empregada na região do Lácio e arredores).

O falar romance passou a designar, no curso da Idade Média, as línguas dos povos sob domínio romano, em lenta mas inexorável autonomização. Com o tempo, a expressão passou a indicar a linguagem do povo em contraste com a dos eruditos. Mais adiante, acabou rotulando as composições literárias de cunho popular, fol- clórico. E, como estas fossem de caráter imaginativo e fantasista, a expressão prestava-se para nomear narrativas em prosa e verso. No primeiro caso, situam-se os impropriamente chamados romances de

cavalaria, de larga e intensa voga durante os séculos medievais. A mesma classificação se atribuía aos

poemas narrativos em torno das proezas dos cavaleiros andantes, ou de temas amorosos, épicos, moralistas, satíricos, etc., como o Roman de la Rose e o Roman de Renatt, poemas franceses do século XII, de motivo respectivamente amoroso e satírico, mas ambos de intuito moralizante.

Entretanto, foi na Espanha que mais se cultivou o romance em verso, tomando-se quase exclusiva fôrma literária espanhola. Recebiam 157

a designação de "romance", durante a Idade Média, composições curtas, de metros populares (o redondilho menor, de 5 sílabas, e o redondilho maior, de 7 sílabas), armadas sobre estruturas elementares, vazadas em linguagem desataviada e fluente. Com tal sentido, a palavra continuou a ser empregada em literatura espa- nhola. Narrativa de aventuras imaginárias e fantásticas, foi o sentido que ganhou dali por diante. No século XVII, o termo entrou a circular com a significação moderna. Em Língua portuguesa, sofreu análogas vicissitudes, desde significar "idioma vernáculo", como se pode ver em Os Lusíadas (X, 96, 97), até designar' 'histórias de imaginação e fantasia", e, por fim, ganhar o sentido atual.

Mora a denotação literária, cumpre lembrar o sentido pejorativo adquirido pelo vocábulo "romance", correspondente a "descrição exagerada, fantasista". Ainda assinala a relação amorosa entre os sexos. Nesse caso, a palavra guarda uma atmosfera de segredo, de fruto proibido, identificável com o remoto sentido de narrativa de imaginação.

Noutras Línguas, que termo se emprega para designar o romance? Em Inglês,nove/. Os dicionários registram a formaro ma n ce, mas trata-se dum vocábulo utilizado apenas para narrativas fabulosas, como, por exemplo, as narrativas cavaleirescas: nesse caso, corresponde ao vernáculo' 'novela". Em francês, emprega-se

roman; a forma "romance", oriunda do espanhol, corresponde à romanza italiana, trecho de canto em torno

dum tema terno e comovedor; e designa modernamente, segundo registra o Petit Robert, a canção sentimental. Em italiano, corre a formaromanzo. Em alemão,Roman. Em espanhol, novela "equivale ao nosso romance".

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2. HISTÓRICO DO ROMANCE

A palavra "romance" remonta, pois, a vários séculos. Não assim a fôrma literária, em prosa, que veio a revestir. O romance surge, como o entendemos hoje em dia, nos meados do século XVIII: aparece com o Romantismo, revolução cultural originária da Escócia e da Prússia. O romance se coadunava perfeitamente com o novo espírito, implantado em conseqüência do desgaste das estruturas sócio-culturais trazidas pela Renascença. Às configurações de absolutismo até à época em voga (em política, O despotismo monárquico; em religião, o dogmatismo inquisitorial e jesuítico;

158 nas artes, a aceitação de um receituário baseado nos preceitos clássicos, sucedeu um clima de liberalismo, franqueador das comportas do sentimentalismo individualista.. Como decorrência, a epopéia, considerada, na linha da tradição aristotélica, a mais elevada expressão de

arte, cede lugar a uma fôrma burguesa: o romance. A demofilia que varre as mentes lúcidas e insatisfeitas da Europa do tempo, determina o aparecimento de uma literatura feita pelo, para e com o povo, especialmente a nova classe ascendente, a burguesia. Ora, nada mais natural que a prosa, "objetiva", descritiva e narrativa, viesse a ocupar o espaço da poesia épica. E esta, quando presente, se atenua a olhos vistos, pondo-se a serviço de aspirações demofílicas. A poesia populariza-se, abandonando o exclusivismo dos salões aristocráticos e as cortes amaneiradas. Com isso, o romance passa a representar o papel antes destinado à epopéia, e objetiva o mesmo alvo: constituir-se no espelho de um povo, a imagem fiel duma sociedade. E esse caráter lhe advinha de um fator: o de abarcar, como um organismo protéico, todas as formas e recursos literários. Mais adiante veremos como o romance assimilou as novas conquistas da sensibilidade, e pôde reduzi-las a um todo harmônico.

Servindo à burguesia em ascensão, com a revolução industrial inglesa, na segunda metade do século XVIII, o romance tornou-se o porta-voz de suas ambições, desejos, veleidades, e, ao mesmo tempo, ópio sedativo ou fuga da mesmice cotidiana. Entretendimento, ludo, passatempo duma classe que inventou o lema de que "tempo é dinheiro", o romance traduz o bem-estar e o conforto financeiro de pessoas que remuneram o trabalho do escritor no pressuposto de que a sua função consiste em deleitá-las. E deleitá-las oferecendo-lhes a própria existência, artificial e vazia, como espetáculo, mas sem que a reconheçam como sua, pois, a reconhecê-la, era sinal de haverem superado os limites da classe. Portanto, sem o saber, assistem ao espetáculo da própria vida como se fora alheia, estimulando desse modo uma fôrma literária que funcionava como o espelho em que se miravam, incapazes de perceber a ironia latente na imagem refletida.

Na verdade, o romance romântico estruturava-se em duas camadas: na primeira, oferecia-se uma imagem otimista, cor-de-rosa, formada do encontro entre duas personagens para realizar o desígnio maior segundo os preceitos em voga, o casamento; apresentava-se aos burgueses a imagem do que pretendiam ser, do que sonhavam ser, e não do que eram efetivamente, correspondente à que

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faziam de si próprios, mercê da inconsciência e parcialidade com que divisavam o mundo e os homens. Na outra camada, entranhava-se uma crítica ao sistema, algumas vezes sutil e implícita, quando não involuntária, outras vezes declarada e violenta: compare-se, por exemplo, a idealizada e idealista concepção alencariana do indígena com a visão "realista" de Bernardo Guimarães, expressa em O índio Afonso (1873).

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O romance aparece, pois, no século XVIII, na Inglaterra, identificado com a revolução romântica. A História de Tom Jones (1749), de Henry Fielding, tem sido considerada a obra introdutora do novo gosto,

embora comprometida ainda com a técnica da novela. Se alguma obra anterior merece referência como precursora do romance, é A Princesa de Cleves (1678), de Madame de Lafayette, não obstante o jogo das paixões e sentimentos, enquadrado no cenário da monarquia francesa do século XVII, faça lembrar a

tragédia clássica contemporânea, notadamente a de Corneille. Outras obras podiam ainda referir-se como embrião ou anúncio do romance, mas seria longo e fastidioso enumerá-las. Assim, apenas para citar as mais importantes, entre a Princesa de Cleves e A História de Tom Jones, na França surgiram Manon Lescaut (1731), do Abade Prévost, a Vida de Mariana (1741), de Marivaux, etc. Mais interesse ostentam os prenúncios do romance na Inglaterra:Pam ela (1740) e Clarissa Harlowe (1748), de Samuel Richardson, e

As Aventuras de Roderick Random (1748), de Tobias Smollet.

No século XIX, o romance domina em toda a linha, às vezes confundido com a novela ou dividindo com ela seu poder de influência. Cronologicamente, é Stendhal o primeiro grande representante do romance europeu oitocentista (O Vermelho e o Negro, 1830, A Cartuxa de Parma, 1839): conferiu-lhe dimensões psicológicas modernas. Balzac constitui, no entanto, o verdadeiro criador do romance moderno, graças à

Comédia Humana, escrita entre 1829 e 1850, amplo painel da sociedade burguesa do tempo, pintado a cores

entre indulgentes e críticas ou satíricas. Graças à engenhosidade do seu projeto imaginário, tornou-se o mestre de Flaubert, Zola, e outros, a ponto de dividir a história do romance em duas grandes épocas: antes- de-Balzac e depois-de-Balzac.

A Inglaterra comparece com ficcionistas de primeira água, como Dickens, Thackeray, George Eliot, Jane Austen, Charlotte Bronre, Thomas Hardy e outros. De todos, por suas qualidades especiais, ressaltam-se o primeiro e o último. Este, sobretudo, pela flagrância da análise da melancolia, do pessimismo em face da vida que 160 arrasta ao desespero e ao niilismo. SeuJudas, oO b s cu ro (1896) uma autêntica obra-prima em matéria de romance. Mas trata-se de romancistas e obras segundo um modelo defirúdo de arte: ao longo do século XIX

apesar da evolução e das diferenças visíveis, cultivava-se um romance-padrão, obediente aos moldes suscitados pela burguesia. Quando alguma mudança se operava, referia-se à técnica de composição; o mais, permanecia inalterado.

Nos fins do século XIX, a literatura russa, que antes vivia à margem do movimento geral de idéias na Europa, irrompe com Dostoievski, Tolstoi, Turguenieff, Gogol e outros. Tais prosadores, notadamente o primeiro, trouxeram uma problemática e um tipo de análise psicológica em profundidade até à data desconhecidos, aos quais se aliava o misticismo do povo eslavo, que conferia às narrativas uma imprevista densidade trágica. A novidade fascinou a

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Europa, e Dostoievski erigiu-se em mestre de uma das vertentes do romance moderno, o da prospecção psicológica.

Há que aguardar o aparecimento de Proust, nos começos do século, para que nova transformação ocorra no romance: À Procura do Tempo Perdido (1913), desrespeitando a coerência formal da narrativa tradicional, leva mais fundo a sondagem psicológica de Dostoievski, graças à descoberta da memória como faculdade que apreende o fluxo vital, e do tempo bergsoniano, como "duração" fora dos limites do relógio ou do encadeamento sucessivo dos fatos. Instala-se o caos narrativo, propõe-se uma harmonia insólita, composta dum tecido variegado de circunstâncias que a memória involuntária surpreende e trança ao sabor do inconsciente ou dos imponderáveis cotidianos. O romance, ou algo que se lhe pareça,- a técnica em rosácea de

À Procura do Tempo Perdidoimpede toda certeza classificatória e coloca um intrincado problema crítico,- o romance ganha horizontes imprevisíveis.

E de Proust nasce a revolução deflagrada no romance moderno. Gide, seu coetâneo, alarga as conquistas da sondagem interior com a "disponibilidade psicológica", que empresta não só às personagens, mas ao romance como um todo, um halo de verossimilhança existencial. Consiste no desaparecimento da noção de causa-e-efeito no comportamento da personagem, que age dum modo aqui e agora, e doutro modo mais adiante e em hora diferente, sempre disponível psicologicamente para o que der e vier. Não se pode

prever como agirá, porque nem ela o sabe, tampouco os leitores. A permanente improvisação conduz a intrigapara um aparente beco sem saída. O resultado é uma aproximação cada vez maior com a161

vida, anseio perene do romance desde o seu nascimento. Ou, se se preferir, um sequioso desejo de espelhar a vida transfundida em arte. E todos nós sabemos como não há lógica entre os acontecimentos que compõem o dia-a-dia. Só o esforço da razão, que organiza, ordena e classifica, é capaz de unidade. A vida, não. Assim, à proporção que se avizinha da vida, o romance perde terreno e identidade. Paradoxalmente, sua grande ambição- ser vida- é seu mal.

Narrando a vida do herói durante 24 horas, em Dublin, o suficiente para revelar a massa de angústia e de saber enciclopédico que desabam sobre o homem contemporâneo, oUlysses (1922), de James Joyce, contribuiu decisivamente para a metamorfose do romance. E, procurando abranger a totalidade do mundo consciente e inconsciente, introduziu-lhe o relativismo em sua forma extrema, a ponto de anular a idéia preconcebida de tempo e de espaço. O caos do mundo, Joyce transporta-o para o romance, numa linguagem rebelde às imposições normativas da gramática e da lógica; e, entregando-se às livres associações, desintegra a sintaxe tradicional e experimenta soluções inusitadas, simultaneamente com a criação de arrojados neologismos.

Com Huxley, a desintegração acentua-se. Para o autor doCon traponto (1928) e Admirável Mundo Novo (1932), não há, a rigor, dramas individuais, mas, sim, coletivos, resultantes da soma de transes

individuais e de crises da maioria, de cada um em particular. A angústia, amorosa, financeira, ideológica, etc., cresce quando alguém encontra outro em idêntica situação. A troca de problemas, ao invés de os diminuir, aumenta-os incomensuravelmente. Com o

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passar dos dias, a carga avoluma-se e o drama torna-se de todos. Daí o suicídio ou paliativos que, afinal, resultam no mesmo: a angústia e a desumanização do homem pela máquina e pela ausência de padrões fixos. Nesse sentido, o Contra ponto encerra a pintura da modernidade, em que o ser humano se vê numa encruzilhada. Reflexo dos dias atuais, a obra ainda revela a evolução do romance para uma constelação de dramas interinfluentes, à semelhança da vida. E, com isso, o romance emaranha-se ainda mais e assume o viés trágico que decorre de ser a epopéia dos tempos modernos.

De lá para cá, conta-se uma série de escritores notáveis, como Thomas Marm, Virgínia W oolf, FranzKafka, Hermarm Broch, Robert Musil, William Faulkner, JoOO Steinbeck e tantos outros. Nopós-guerra de 1939, o nouveau roman, de origem francesa, retomou162

I descobertas dos antecessores e ergueu-as ao nível de uma plataforma literária, 1 fazendo-nos pensar que a

identificação do romance com o Romantismo não se processou sem.. conseqüências. Uma delas, certamente a mais grave é a seguinte: a burguesia, ao desaparecer no futuro, levaria consigo o romance? é possível, mas também pode ser que se transforme noutra arte, ou numa forma paralela de expressão literária. O mesmo pode acontecer à atividade literária em geral. Sendo o romance a fôrma literária mais complexa nos dias que correm, sua diluição ou metamorfose, anunciada ou pretendida pelo nouveau roman, corresponderia ao fim da Literatura como a entendemos hoje. É o que se observou durante algum tempo, no fato de o conto, a novela, o romance e a poesia se desejarem ser não-conto, não-novela, não-poesia, ou melhor, antinovela, anti-romance e antipoesia.

Entenda-se, porém, que essa tendência para o "não" ou o "anti" equivale a uma reação espontânea contra a saturação operada nas fôrmas literárias cultivadas desde o Romantismo, significando declínio e empobrecimento das características fundamentais do conto, novela, romance, poesia, etc. A rebeldia traduz, ao fim de contas, um esforço por acabar com o mau romance, ou mau conto, etc., em nome da criação de romances, contos, etc., com base em sua genuína estrutura.

Em qualquer hipótese, não poucos críticos e ensaístas entraram a pensar no fim da Literatura ou no seu colapso enquanto expressão duma forma de cultura e de sociedade em transformação. Com isso, ou o romance desaparecerá como tal, ou sofrerá modificações que o adaptem aos padrões em formação. A técnica, acoroçoando o aperfeiçoamento da imagem visual e musical, através do cinema e da televisão, condiciona o aparecimento de formas inadequadas à linguagem escrita, capazes de acelerar o desprestígio da imagem

1 Segundo declarações de Allain Robbo-Grillet. um dos mentom; do nouveau roman, ao Joma! Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, de 23 de setembro de 1972, essa vertente moderna da prosa de ficção identifica-se, acima de tudo, por não ser "a pintura de uma sociedade e de um mundo em ordem. hnporta-lhe em primeiro lugar afirmar sua ruptura com os imperativos tradicionais do gênero narrativo. Ruptura que se caracteriza por uma série de recusas- a da noção clássica do personagem e do enredo como reveladores psicológicos;

desintegração da equivalência verossimilhança-verdade; destruição do tempo em proveito de

memória; substituição de um observador limitado em seus meios pelo romancista demiurgo e onisciente. Antes eles sabiam o que queriam dizer, hoje estamos à procura do que dizer. O

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romance do século XIX conhecia apenas o destino. No moderno apenas se conhece o momento instantâneo. Nada mais existindo além do presente...".

163 literária. O romance, graças ao papel que representa desde o Romantismo, é a fôrma literária que mais agudamente testemunha a metamorfose verificada nas atividades artísticas modernas.

Passemos ao exame da ficção romanesca, em vernáculo. Em Portugal, o romance aparece em meados do século XIX, acompanhando a tardia aceitação do gosto romântico, apesar da tentativa bem estruturada do poemaCamões (1825), de GarreU. Este, Herculano e outros cultivaram a narrativa histórica à Walter ScoU, ao passo que Camilo Castelo Branco, praticando a novela em suas diversas modalidades, e o romance da sátira naturalista, tornou-se a principal figura da prosa romântica, quiçá de todo o século XIX. Uma espécie de Balzac português, procurou retratar a sociedade do tempo em numerosas narrativas passionais, históricas, de mistério, etc. que fazem dele o maior polígrafo da Língua. A introdução do romance em Portugal deve-se a Júlio Dinis, mas a fôrma encontra em Eça de Queirós seu representante mais ilustre dentro do Realismo à Flaubert. Abel Botelho, Teixeira de Queirós, Júlio Lourenço Pinto e outros também se dedicaram ao romance nos fins do século XIX.

Graças àPres ença (1927-1940), com a narrativa introspectiva, ao Neo-Realismo (iniciado em 1940, com Gaibéus, de Alves RedoI), e às linhas de forças desenvolvidas após a revolução de 1974, surge uma plêiade de

bons ficcionistas, como Aquilino Ribeiro, José Régio, Alves Red01, José Rodrlgues Miguéis, /~~ustina BessaLuís, Vergílio Ferreira, Fernando Namora, José Cardoso Pires, Carlos de Oliveira, Lobo Antunes, José Saramago, Almeida Faria, Lídia Jorge, etc.

Também no Brasil o romance chegou tardiamente, e não raro mesclado de expedientes novelescos: só com Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha, 1844) começa de vez o seu cultivo entre nós, mas é com José de Alencar (OGuarani, 1857) que passa a ser largamente cultivado. Ligado a figurinos europeus (Dumas

Filho, ScoU, Sue, Balzac), ou a americanos (Fenimore Cooper), propunha-se a valorizar os temas nacionais (o indianismo, osemnismo, os temas históricos e urbanos). Com o Realismo, o romance vive um período de grandeza indiscutível, com Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa, Domingos Olímpio, Raul Pompéia, Coelho Neto e outros, mas ainda sob o influxo de correntes européias. Lima Barreto e Graça Aranha intentam, à luz das doutrinas simbolistas, nacionalizar ainda mais o romance. Mas é com o Modernismo que ele atinge sua maior altura observada até hoje.

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A partir de 1930, vêm surgindo alguns nomes de primeira categoria, dentro e fora das fronteiras do País: JorgeAmado, JoséLins do Rego, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Octávio de

Faria, Lúcio Carqoso, Clarice Lispector, José Geraldo Vieira, Cornélio Pena, Guimarães Rosa, Osman Lins, 3. CONCEITO E ESTRUTURA

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Vimos que o romance e a epopéia apresentam afinidades, decorrentes de procurarem edificar uma visão totalizante do Universo. Nos dias que correm, o primeiro substitui a segunda, mas trata-se de uma substituição recente: data de mais ou menos 200 anos, contemporaneamente ao advento do Romantismo, que lhe conferiu estrutura, função e sentido dentro das sociedades modernas.

A poesia épica tradicional, em vigência até o século XVIII, e que analisamos no volume desta obra destinado à Poesia, servia de espelho onde se refletiam as representações, anseios e aspirações dos povos, carentes de alimento para a sensibilidade e a imaginação: a contemplação da beleza heróica ofertava-lhes as respostas esperadas. Idêntica função desempenha o romance, ressalvadas as diferenças entre ambos, que nascem de ser outro o tempo e outros os valores e as estruturas sociais: o romance pode, mais do que o conto, a novela e a poesia (mesmo a de caráter épico, segundo o nosso entendimento da matéria), apresentar uma visão global do mundo. Sua faculdade essencial consiste em recriar a realidade: não a fotografa, recompõe-na; não demonstra ou reduplica, reconstrói o fluxo da existência com meios próprios, de acordo com uma con- cepção peculiar, única, original. Por ser o romance a recriação da realidade é que os ficcionistas se têm mostrado sensíveis ao tema da sociedade em decadência: quando tudo parece desmoronar é que mais se faz necessária a tarefa do romancista. Coletando os escombros numa unidade imaginária ou dando forma à procura de solução para a crise, o romance cumpre sua missão de restaurar o conhecimento e a fé. Em tempos amenos, aliena-se, tornando-se passatempo, ou atribui-se o papel de subversor da ordem, transformando-se em arma de combate e de ação social.

O poder demiúrgico do romancista resulta, primeiro que tudo, de utilizar com o máximo de liberdade os recursos da prosa de ficção: nenhuma coação lhe impede os movimentos, salvo a que 165

decocrer das leis que presidem a obra em processo. Não fique sem reparo que liberdade não se confunde com anarquia: o romancista obedece aos limites do universo da narrativa, seja qual for a magnitude do espaço abrangido e seja qual for a técnica empregada. A

verossimilhança interna, entendida como a coerência entre as partes constitutivas do romance, há de ser preservada: todo o complexo lingüístico que ali se engendra é determinado pelas premissas sobre que a narrativa se monta, nas quais se inclui o emprego de expedientes vedados às demais modalidades expressivas, como o andamento desacelerado da narrativa, o monólogo interior, etc.

Em segundo lugar, o romance encerra uma visão macroscópica da realidade, em que o narrador procura abarcar o máximo, em amplitude e profundidade, com as antenas da intuição, observação e fantasia. Seu anseio mais íntimo consiste em captar todas as formas do mundo, todas as facetas das coisas, todas as reverberações das trocas sociais: convicto de haver uma interação conduzindo os seres e os objetos, busca detectá-la e transfundi-la num palco imaginário. De onde convergir para o romance o produto das outras formas de conhecimento: a História, a Psicologia, a Filosofia, a Política, a Economia, as Artes, etc., colaboram para a reconstituição do mundo que se realiza na esfera romanesca. Daí que se possa encarar o romance do ponto de vista histórico, psicológico, filosófico, político, econômico, estético, etc. Mas o romance, microcosmos que é, caldeia, numa espécie de transmutação alquímica, os mananciais que para ele afluem; de onde o conteúdo psicológico do discurso literário não ser o mesmo que o da análise psicanalítica, nem o filosófico o dos textos platônicos, aristotélicos, etc. É já um saber enformado, refratado, pela linguagem propriamente literária, pela sistemática utilização da metáfora: é o saber modelado pela fantasia, transfigurado num contexto novo.

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Daí que o romancista possa devolver ao psicólogo, ao filósofo, etc., o saber recebido, oferecendo- lhes achegas para erguer suas específicas interpretações. É já lugar-comum admitir que os psicólogos têm muito que aprender com a leitura dos romances de Dostoievski. Tanto assim que um profissional nessa área chega a declarar que' 'muitos fizemos a estranha descoberta, quando estudantes universitários, que aprendíamos muito mais psicologia,- isto é, aprendíamos muito mais a respeito do homem e de sua experiência,- nos cursos de literatura que nos de psicologia(...) Da mesma forma, quando alguns estudantes me escrevem, dizendo que pretendem ser psicanalistas, e pedem conselho quanto aos cursos

que 166 devem fazer, digo-lhes que se formem em literatura e nas humanidades, e não em biologia, psicologia ou cursos médicos" . 2 Por outro lado, mun dividência macroscópica significa haver, na mente do ficcionista, ou melhor, no subsolo da obra produzida, uma ambição análoga à dos filósofos, ao menos dos que desenvolveram sua

reflexões antes dos fins do século XIX: englobar a variedade infinita do Universo, ou seja, do mundo concreto e do mundo dos conceitos, idéias e pensamentos, num sistema unificado.3 E nos textos dos romancistas, Balzac à frente, os historiadores podem colher farto material para traçar sua imagem do mundo inaugurado pela revolução romântica.

Mas, enquanto o romancista esgrime sua intuição e imaginação, com o propósito de elaborar os dados colhidos da realidade, o filósofo, o psicólogo, etc., empregam notadamente o intelecto, a razão. Em conseqüência, o romancista vê-se impedido de atingir seu alvo, ou atinge-o por meios oblíquos: apenas alcança argamassar umsentimento da globalidade do mundo. De onde o cenário romanesco flutuar a cada leitor e a cada leitura. Ainda outra resultante se observa: o grande romance, entendido como aquele que mais se avizinha do projeto englobante, alimenta-se menos de minúcias, de pequenos nadas individuais ou coletivos, do que dessa visão integral, macroscópica. Por isso, o drama das personagens assume caráter universal, decorrente que é de inquietudes perenes, como a condição humana, o sentido enigmático da vida, o ser e o não-ser, etc., ou de situações históricas universalizadas, como a fome, as catástrofes, a escravidão, a opressão, etc. Para configurarse e resistir à análise, o romance foge dos pormenores auto-suficientes: estes, para ganhar sentido e função no corpo da narrativa, precisam vincular-se à cosmovisão integral. Nesse caso, tornam-se indispensáveis. Em D. Casmurro, os detalhes relativos aos olhos da heroína, ao escoar do tempo, aos gestos dos protagonistas, etc., ostentam relevo semântico e dramático, imprescindível à interpretação da obra. Ao passo que a profusa descrição de personagens e ambientes em OCortiço objetiva tão-somente desenhar o pano de fundo para o conflito entre o sobrado e a morada coletiva, e, dentro de cada um desses tablados, das personagens entre si.

2 Rollo May, "The Significances of Symbols",in Rollo May (org.), Symbolism in Religion and Literature, New York, George Braziller, 1960, p. 13, apud Dante Moreira Leite, Psicologia e Literatura, 3" 00., S. Paulo, Editora Nacional, 1977, p. 9. 3 Ver, em A Criação Literária. Poesia, o capítulo referente às espécies poéticas. 167

Graças à elasticidade e amplitude, o romance constitui terreno ideal para se experimentarem novas técnicas expressivas: estas, desligadas do intento final do romancista- apresentar uma visão unitária e integral da realidade- acabam por transformar-se em exercício, ludismo, artificiosidade. Se lembrarmos que "artificioso" deriva do latimartificiosu, por sua vez

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articulado aartificiu, "artifício" (recurso engenhoso, habilidade, perspicácia), podemos entender por que razão se descortinam tantas divergências entre um romance de Zola, comoNana, e A Carne, de Júlio Ribeiro: ali, pretende-se que os componentes estéticos sirvam à tese exposta pelo autor; aqui, o artificioso se evidencia, não só na trama como ainda no traçado das figuras e das situações. Acontece que as duas obras seguem a mesma tendência de época que fazia do romance um espaço onde se realizavam experimentos, à semelhança do cientista no silêncio do laboratório. Ou, nas palavras de seu mestre e teórico, "o romance experimental(...) é simplesmente o processo verbal da experiência, que o romancista repete aos olhos do público. (...) Em uma palavra, devemos operar sobre os caracteres, sobre as paixões, sobre os fatos humanos e sociais, como o químico e o físico operam sobre os corpos brutos, como o fisiologista opera sobre os corpos vivos. O determinismo domina tudo.' '4

Da inserção desses autores no romance experimental derivam duas questões que merecem exame: o "compromisso" e o "entretendimento". A obra de arte se diz "compromissada", "engajada", .. dirigida", quando se põe a serviço de uma causa, doutrina, ideologia, sistema filosófico, político, religioso, científico. O romance, dadas suas características e sua estrutura totalizante, é um território fértil para o engajamento, como se pode ver, por exemplo, nas obras de ficção que Sartre congeminou para dar forma ao Existencialismo. Apenas suplantado pelo teatro como expressão de arte dirigida, o romance facilmente se transforma em arena de combate para doutrinas polêmicas ou antagônicas: nos anos 30, os conflitos ideológicos se refletiram, de maneira extremada, na produção dum Jorge Amado e dum Octávio de Faria: aquele, inspirou-se na luta de classes, enquanto o outro integrava o grupo de orientação católica.

Conquanto tenha alcançado larga difusão no pós-guerra de 39, como prática e também como teoria, a arte dirigida pode ser encontrada nos séculos anteriores, nem sempre com pigmentos filosóficosc 4 Émile Zela, Le ~man expérimental, 4& 00., Paris, Charpentier, 1880, pp. 8-16. 168

políticos ou religiosos. A sujeição dos escritores a um mecenas significava, até o século XVIII, a existência ,de peias coercitivas ao exercício da imaginação e do pensamento... Mas a coação, além de tácita e determinada pelas condições peculiares ao trabalho intelectual naqueles tempos, dizia mais respeito aogosto que àidéia ou aoideal, pois nesse particular ocorria não raro o inverso: é sabido quão influenciáveis eram os monarcas em suas doutrinas e planos políticos. A esse respeito, pense-se no impacto de O Príncipe (1513), de Maquiavel, sobre o comportamento de reis e imperadores ao longo dos séculos XVI a XVIII.

Em segundo lugar, e divisando o problema doutro ângulo, podemos dizer que a arte sempre foi engajada, na medida em que nela o autor insufla um pensamento e um sentimento que, embora pessoais, representariam os padrões de certa classe ou casta social em determinado momento. A cosmovisão impressa no texto pres- supõe uma adesão fortuita, num amplo sentido. Trata-se de engajamento espontâneo, destituído de intenção doutrinária. Quando ganha coloração política, filosófica ou religiosa, resulta de um compromisso involuntário, visto que a obra não foi elaborada com vistas à defesa de uma facção ideológica. Ao criá-la, o autor carreou para ela o produto de suas faculdades inventivas, abrangendo, sem o querer, a política, a filosofia, ou a religião. Por vezes, trata-se de insolúvel contradição, patente no antagonismo entre os apelos do consciente e as intuições sutis: a crítica tem considerado Balzac, oscilante entre o aristocratismo de superfície e a detecção da "verdadeira essência do progresso", exemplo dessa bipolaridade.5

Equacionado esse ponto, podemos retomar o conceito moderno e restrito de arte engajada. Um romancista engajado, por mais generosos que sejam seus intuitos, é sempre coartado em suas possibilidades criativas: ele impõe-se (ou é-lhe imposto) o caminho a seguir; a obra, erige-a

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com o fito de demonstrar; o esquema doutrinário, anterior à criação como verdade indiscutível, torna-se camisa-de-força, "implica a abdicação do livre exame, a submissão a um dogma, o reconhecimento de uma ortodoxia", no dizer de

André Gide, que pôs em circulação o binômio "literatura engajada" (littérature engagée).6 Em síntese: despojado de autonomia t ~ . 5 Georg Lukács, Ensaios sobre Literatura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 38. 6 André Gide,Joumal, Paris, Gallimard, 1949, p. 1175. Ver também, do mesmo autor, Littérature Engagée, 5& 00., Paris, Gallimard, 1950. 169

mental em favor de um credo aceito sem provas, engaja-se numa ideologia, subordinando-lhe o produto de sua criatividade: abrindo mão de sua liberdade de pensamento, submete-se passivo; nele, como se prostrado ante um pergaminho sagrado, "não é o sujeito que pensa, mas o Sistema por ele".7

Para os críticos favoráveis ao engajamento compulsório, o problema conexo fica de antemão resolvido: todo romance engajado será bom por princípio; e todo romance será julgado mau quando defender ideologias contrárias ou recusar-se ao alinhamento automático. Sucede que um romance não será bom ou mau por ser engajado (ou por não ser engajado), mas por ter, ou não, qualidades intrínsecas que autorizem tal juízo. Ao menos é o que se espera dos críticos independentes. Se assim não fosse, tombaríamos no reducionismo, de que não conseguem escapar críticos e leitores que, espelhando a submissão do autor aos artigos de fé, enaltecem os romances engajados em suas crenças políticas, filosóficas ou religiosas. Reverentes ao código onde a doutrina se plasmou, acabam sacralizando o romance, como se este adquirisse por osmose o caráter de verdade revelada que atribuem à ideologia. Ora, é de esperar que o crítico, ainda que inserido numa dada corrente de pensamento, tenha isenção, já que é crítico, para encarar a obra como artefato com leis próprias, e não como panfleto. Se o romance engajado realizar-se como obra de arte, tanto melhor para o autor e o crítico de análoga tendência ideológica. Mas não se deduza daí que todo romance engajado há de ser, enquanto romance, criticamente bom. É que, como lembra oportunamente o insuspeito Sartre, "na 'literatura engajada', oengajam ento não deve, em caso algum, fazer esquecer aliteratura (u.) nossa preocupação deve ser a de servir à literatura, infundindo-lhe sangue novo, da mesma forma que servir à coletividade, procurando dar-lhe a literatura que lhe convém".8

Focalizado como entretendimento, o romance constitui acima de tudo, nunca é demais insistir, uma história que se conta.9 Ao ler, prendemo-nos ao "e depois?~' que a narrativa suscita de trecho atrecho. As mais das vezes, é oque acontece, não ocomo acontece, que nos fascina, se buscamos na sucessão de episódios e situações 7 Foueault, numa entrevista,apud Vergílio Ferreira, U Qucstionação a Foueault e a Algwn Estruturalismo", prefácio a Miehcl Foucault, As Palavras e as Coisas, tr. portuguesa,

Lisboa, Portugália, 1968, p. XXI.8 Jcan-Paul Sartre, SitU.attons, lI, 2()& 00., Paris, Gallimard, 1948, p. 30.9 E. M. Forster, Aspecrs ofrhe Novel, New York, Harcourt, Braee, 1954. pp. 26 e ss.

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170 Ium divertimento que, desviando-nos a atenção da existência banal, nos faculta a sensação de euforia ou de apazi~amento. Claro, não é somente isso que o leitor procura no romance: quanto mais culto, mais espera que o romance mostre a outra faceta, a cosmovisão fecunda e diversa. O entretendimento se exibe no primeiro plano da narrativa; a estrutura subjacente se manifesta a uma leitura mais penetrante. A luz dessas camadas textuais, pode-se dizer que o romance pende numa escala em que um extremo é

ocupado pelo entretendimento e o outro, pelo engajamento. Em meio aos dois, inscreve-se a cosmovisão, a arte como forma de conhecimento. Ao assumir tal função, negando-se a ser mero passatempo, o romance enfrenta a sedução das ideologias, caracterizadas. pela conversão do saber num sistema fechado, num código de axiomas e dogmas, fundado na veleidade de tudo explicar e compreender. Quando o ficcionista, propondo- se a intervir na realidade que se espelha ou se recria em sua obra, cede ao canto de sereia e subordina o trabalho criativo a uma ideologia, o conhecimento se mumifica e o romance se torna engajado, quando não panfletário.

Sartre, tratando da "arte compromissada" em face do que denomina "arte de consumo", equivalente a "arte de entretendimento' ., desconsidera a fase intermediária, ou funde-a com a primeira. De qualquer modo, estabelece uma provocante e fértil distinção entre elas, apesar da ênfase na arte engajada. Para ele, "se é verdade que ter, fazer eser são categorias cardinais da realidade humana, pode-se dizer que a literatura de consumo se limita ao estudo das relações que unem oser aoter: a sensação é apresentada como prazer, o que é filosoficamente falso, e aquele que sabe melhor gozar como aquele que vive melhor. (...) Nós, ao contrário, temos

sido levados pelas circunstâncias a pôr em evidência as relações entre oser e ofazer da perspectiva de nossa situação histórica. (...) As obras que se inspiram em tais preocupações não podem visar ao prazer: elas irritam e inquietam, propõem-se como tarefas a cumprir, convidam a procuras sem fim, fazem assistir a experiências cujo resultado é incerto. Fruto de tormentos e de dúvidas, não saberiam ser prazer para o leitor, mas dúvidas e tormentos. Se soubermos enfrentá-las, não constituirão divertimento, mas obsessão. Não oferecerão o mundo 'para se ver', mas para se transforrmar."1O

10 Jean-Paul Sartre,op. cie., pp. 262-263. 171

Em suma, entreter é por certo uma das funções do romance, bem como de todo texto literário, mas não há de predominar sobre as demais sem correr o risco de perder densidade e significado. Por outro lado, evitará cair no extremo oposto, sob pena de obscurecerse ou intelectualizar-se. No primeiro caso estão, por exemplo, Alexandre Dumas e os folhetinistas românticos (Eugênio Sue, Perez Escrich, Xavier de Montépin e outros, mais novelistas que romancistas), as narrativas policiais e osbest- sellers digestivos da atualidade, que exploram o sexo, a violência e o charme de cenários deslumbrantes, em narrativas tão mais bem construidas quanto mais sem compromisso. No outro, Proust, Joyce, Thomas Marm, etc. Corresponde à diferença entre Bernardo Guimarães e Machado de Assis, ou Joaquim Manuel de Macedo e Graciliano Ramos, ou entre Afonso Arinos e Guimarães Rosa.

*** AçãoPassemos agora à estrutura do romance. O primeiro aspecto digno da nota refere-se à ação. Assim como a

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novela, o romance apresenta pluralidade dramática, uma série de dramas, conflitos ou células dramáticas. Em princípio, não há limite para os núcleos dramáticos que podem compor a ação dum romance. Ao ficcionista, cabe selecionar os que possuem a virtualidade de se organizar harmonicamente. E essa escolha é o grande obstáculo que se lhe depara, dado que infinitas possibilidades lhe são oferecidas ao simples golpe de vista lançado sobre os acontecimentos diários. A imaginação, com transfundi-los e transcendê-los, faz o resto, avultando ainda mais o número de caminhos revelados à sua intuição.

No decorrer destas observações iremos anotando que, paradoxalmente, o romance é mais limitado que a novela em matéria de volume de núcleos narrativos. Adiantemos apenas dois pormenores, por si sós elucidativos: 1) é impensável uma novela com dois núcleos dramáticos, ao passo que um romance comoA Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, passa-se em dois registros, constituindo as duas vertentes condutoras do romance, uma, a do presente da ação, a outra, a das reminiscências da narradora;

2) toda novela pode, em hipótese, continuar depois da última aventura, visto haver sempre uma possibilidade franqueada à imaginação do autor. O romance por sua vez,termina com a derradeira linha: enquanto este constitui, no seu todo, um espaço aberto, em comunicação

172 com a vida, numa continuidade que tende a borrar as diferenças de grau e sentido entre ambos, a novela descerra-se para si própria, numa linearidade introjetada,como se nada tivesse com a vida, onde as coisas acabam. . Compreende-se, assim, por que o romance não é ilimitado quanto às células dramáticas: seja qual for o

seu número, o autor as trata segundo a natureza de cada uma, dispondo-as em Níveis próprios. Ao findar a narrativa, mesmo os dramas secundários já terão sido resolvidos ou em vias de. Nada mais há que fazer com aquele material, salvo se se tratar dum mau romance. A novela orienta-se por diferente vetor: como todos os núcleos têm ou podem ter análoga intensidade e relevo, ao dar por encerrada a tarefa, o novelista ainda pode espichá-la indefinidamente, aproveitando as comportas deixadas em aberto.

No confronto entre a novela e o romance, verifica-se que a primeira ostenta estrutura fechada, ou aberta horizontalmente, uma vez que o ficcionista, ao acumular os episódios em sucessividade, patenteia uma única saída para a realidade exterior: o epílogo. As aventuras anteriores, cerram-se ao contato com o mundo exterior; e, cristalizando seu conteúdo, reduzem a complexidade existencial a conflitos definidos e transparentes: o jogo das ações não autoriza duplas interpretações, em razão de cada gesto guardar um sentido único. O "mistério" diz respeito mais a quem praticou a ação, ou quais possam ser suas conseqüências, do que ao significado delas.

Contrariamente, o romance exibe estrutura vertical, ou antes, em espiral, aberta em todas as direções para a realidade exterior, ainda que oclusa no desenlace. Não significa que o escritor possa agregar outras unidades dramáticas às que compõem o romance, mas que seu universo de símbolos carrega uma polivalência e um dinamismo semelhantes aos da realidade viva com a qual se comunica. Enquanto a novela petrifica o real, ou minimiza-lhe a diversidade, o romance procura fixá-lo como tal: o novelista recusa atentar para o caos do mundo, ao passo que o romancista molda-o no perímetro de sua ficção, respeitando-lhe a característica original.

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As Memórias de um Sargento de Milícias apresentam estrutura de novela: a narrativa finda quando o herói passa a sargento de milícias, deixando um largo caminho descerrado à imaginação do leitor; outro tanto se pode dizer dos demais núcleos dramáticos, cujos protagonistas ainda reservariam surpresas, pois levam uma vida que aborrece toda ordem e monotonia. OGuarani, embora salpicado com laivos de novela (o interesse no episódico, a cristalização

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das personagens, os "mistérios" pontilhando a narrativa, a inverossimilhança, o convencional, etc.), é um romance. Pelo desfecho, tem-se a certeza de que tudo acabou; qualquer que seja o destino dos heróis (morrer ou sobreviver, casar e ser felizes), não se altera a impressão de tudo o mais ser desimportante. Uma única fenda, constituída por Diogo de Mariz, que volta a aparecer em As Minas de Prata, não compromete a solidez estrutural da obra: a personagem ressurge noutro lugar, vivendo uma existência resolvida e apagada. O romancista o desloca da cena da catástrofe decerto por não acreditar que ali, ou noutra parte, sua presença mudasse o rumo das coisas.

Na novela, a multivocidade dramática caracteriza-se pela sucessividade. No romance, observa-se a simultaneidade dramática: as células dramáticas interligam-se solidariamente, ao mesmo tempo e, às vezes,

num único espaço. Os conflitos decorrem simultaneamente, como na vida real: ninguém consegue muito tempo ficar à margem do que se passa com o próximo e com o mundo inteiro, de forma tal que seu "caso" individual se articula a uma vasta malha de situações análogas. Na verdade, inexistem casos individuais, mas expressões pessoais de dramas coletivos, porque comuns a todos (como o da sobrevivência, o medo da morte), ou porque muitos sofrem o mesmo drama (causado, por exemplo, pela estafa mental nas cidades grandes, ou pela fome nas zonas de miséria). O romancista, ao eleger a porção de realidade que pretende analisar, procede como base nesse entrelaçamento dramático: reduz o campo de observação para melhor compreender, estribando-se na afinidade dos conflitos.

Assim, o drama de um intelectual descrente se oferece numa camada ou área própria, onde não caberia, por exemplo, o conflito dum adolescente em face do pai severo ou decadente. Enfocar uma família pequeno- burguesa em decomposição difere de examinar a tragédia de oitenta mineiros soterrados a dezenas de metros sob os

escombros duma galeria roída ao explodir uma carga de dinamite. Mesmo que, num caso ou noutro, os dramas envolvam outras pessoas, estas devem conectar-se às figuras principais da narrativa. Por isso, é lícito imaginar o conflito dos amigos da família em declínio, e o das esposas dos mineiros, supondo nuanças diversas e gradativas em todos eles. Tudo se passa, no romance, como uma pedra jogada na água, formando circulos concêntricos que se vão

esbatendo à proporção <I.ue se afastam do foco' gerador. Observe-se, porém, que outras pedras lançadas nas proximidades originam outros

círculos contíguos e parecidos. A cada pedra corresponderia um romance, e, ao conjunto, a totalidade da vida. Falta supor, apenas, que a vibração na superfície da água corresponde a igual movimento interno, para que a imagem se tórne completa.

Mas essa metáfora da pedra na água merece ainda ser observada doutro prisma: os círculos perdem força e consistência à medida que se distanciam do núcleo, do mesmo modo que, no romance, as situações dramáticas apresentam diferentes graus de importância, dependendo de

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estarem próximas ou distantes do centro irradiador. Nem podia ser doutra forma: o romancista não pode, sob risco de jamais pôr fim à obra, tratar todos os conflitos com idêntica atenção; mesmo porque seria inverossímil. Na vida, os conflitos possuem significação e intensidade diversas, independentemente da vontade de cada um. Resultado:o

romancista escolhe o drama capital, julgado o mais importante no contexto social, em dado momento

histórico, etc., e dele faz derivar os demais, ou a ele os aglutina, numa interdependência que respeita a proeminência do primeiro. E, por isso, confere-lhe maior atenção, reservando aos demais o espaço correspondente ao seu relevo no conjunto. Por outro lado, esse procedimento implica que a análise do drama principalilumina o entendimento dos secundários, ao da mesma forma estescolaboram para esclarecê-lo.

Daí que no romance, ao contrário da novela, se processe um nexo de reciprocidade entre personagem e ação, de modo que esta, em vez de revelar a identidade psicológica daquela, "exprime-a". Dir-se-ía que o romance exemplifica a teoria behaviorista, segundo a qual o psicólogo, repudiando a consciência, deve limitar-se à observação do comportamento e a estabelecer ilações a partir dele. A interação apontada varia conforme se trate de personagens secundárias ou principais e de acordo com o tipo de romance (como se verá mais adiante), mas está presente em todo o sistema romanesco.

O Primo Basílio é um exemplo típico de romance. O caráter experimental da narrativa realista e naturalista, composto segundo regras científicas e filosóficas, faz dele um protótipo do romance como foi entendido depois de Balzac e até Proust, quando o padrão balzaquiano começa a ser ultrapassado, o que não significa terem desaparecido os romancistas dessa estirpe, sobretudo nas literaturas vernáculas. O drama principal constitui-se em torno de banal história de adultério: Luísa, burguesa lisboeta cheia de ócios viciosos, entrega-se ao primo Basílio, durante a ausência do marido, para

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fugir ao tédio em que vegeta. Tudo corre manso até que Juliana, a criada, se apodera de cartas suas ao amante. E passa a exercer despótico domínio sobre Luísa, a ponto de os papéis se inverterem. A heroína adoece, volta o marido, sabe e perdoa, mas é tarde, Luísa morre. Aí o cerne do romance, o foco central.A sua volta, aden- sam-se outros dramas interconjugados: o de Juliana, arrebentando de ódio e despeito pela patroa; o de Sebastião, ex-namorado de Luísa, ainda embebido numa contemplação lírica e impotente; o do Conselheiro Acácio, amancebado com a empregada; o de Leopoldina, leviana e colecionadora de aventuras galantes; o de Emestinho, derramado poeta romântico; o de Dona Felicidade, Jorge, etc. Todos formam o pano de fundo social para o "caso" Luísa-Basílio. Não importa que Juliana, com a sua forte personalidade, imponha uma presença que ofusca a de Luísa, mas seu conflito mergulha na penumbra, como o dos demais, para destacar o da heroína. O entrelaçamento, contudo, é tal que a tragédia (no sentido originário de "sem saída nenhuma") da protagonista somente se explica pela incidência de dramas alheios, apontados como tributários. E vice-versa.

Entenda-se, porém, que este sistema nem é rígido, nem historicamente exclusivo. Casos há, depois de Proust, que podem denotar rompimento ou evolução: em OContraponto, coexistem situações dramáticas em pé de igualdade aparente, ocupando o mesmo nível espacial dentro da obra. A uma análise mais profunda, entretanto, percebe-se descompasso entre elas, resultante de umas serem principais e outras, secundárias.

Espaço***

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Espaço

Olugar dos acontecimentos vincula-se intimamente ao anterior: o romance caracteriza-se pela pluralidade geográfica. Demiurgo, o romancista assenhoreia-se do espaço em que transcorre a narrativa. Aqui também goza de liberdade integral, em tese; na prática, vê-se limitado pela escolha do tema e do modo como o desenrola. Num extremo, pode fazer que as personagens viajem constantemente, e noutro, que fiquem encerradas numa casa e mesmo num só cômodo. Dentro dessas fronteiras, caminha à vontade.

Entretanto, há que ponderar o seguinte: quanto mais desloca topograficamente as personagens, mais fica sujeito a fazer um exame \ 176 rápido e superficial do seu drama, sem o qual o romance não se organiza. E como o deslocamento físico

implica novas aventuras, o narrador corre o risco de prender-se mais ao anedótico que ao dramático. A história, nesse caso, ganha em vivacidade e dinamismo, e perde em concentração. O recurso, quando exacerbado, pode fazer da narrativa mais uma novela que um romance. A ficção romântica enquadra-se nesse tipo de composição, em que às aventuras

não raro o ficcionista concede mais atenção que à análise dos caracteres, análise essa que constitui o objetivo fundamental do romance. Nem mesmo numa obra da categoria deJean-Christophe (1904-1912), de Romain Rolland, falta uma nota de pitoresco episódico acompanhando o desenvolvimento da personalidade e do .. caso" do herói.

O contrário - reduzir ao mínimo o espaço físico para a circulação dos protagonistas- constitui também um risco, porquanto o conflito manifesta-se na ação e, ao mesmo tempo, provoca-a. Entenda-se poração inclusive

o diálogo, esfera ideal, como se sabe, para os conflitos deflagrarem. Contraindo-se o horizonte geográfico das personagens, urge propiciar condições para que os dramas irrompam. Não raro, nascem de causas exteriores àquela circunstância: o atrito estabelece-se entre o que as personagens trazem nas mentes, mais do que entre razões de momento. Aqui, a excessiva concentração dramática pode impelir o romance por um corredor monótono e frio, salvo se os participantes trouxerem dentro de si os germes de antagonismos mais sugestivos, em processo noutro lugar.

Exemplo de sábia solução é Le Diner en Ville, de Claude Mauriac: o casal Carnéjoux recebe para jantar, em Paris, a seis amigos de idade e talentos diversos. A narrativa dura o tempo exato da refeição. Enquanto dialogam protocolarmente, as personagens vão revelando sua personalidade e seu drama através dos pensa- mentos e associações que lhes habitam a memória; na verdade, o romancista procura examinar as relações entre a vida objetiva e a subjetiva. Se tudo fosse tão-somente o reconto do jantar, pouco interesse teria, exceto como exercício literário, mas o escritor desloca, pela sondagem no mundo interior de cada conviva, o ponto geográfico. E é graças a esse engenhoso mecanismo alternante de sístole e diástole que o romance se estrutura como tal. Certamente, reunir personagens à mesa travando um diálogo convencional e, portanto, incapaz de gerar conflitos enquanto durasse o jantar, acarretaria uma limitação romanesca. Todavia, alterando a unidade I "

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geográfica pelo recurso de vasculhar a intimidade de cada um, o narrador impede o malogro do romance. Mais ainda: consegue que o fato de estarem ali as personagens seja apenas um dos capítulos dum entrançado de dramas comuns entre elas. O jantar se torna, assim, o pretexto para aproximar pessoas, como de praxe desde os primórdios da história do romance, pelo expediente do sarau literário, do teatro, do turfe, do cassino, das reuniões mundanas, etc. O difícil estava em fazer o pretexto durar o romance todo sem empobrecer o

tonus dramático. Claude Mauriac triunfa pela mobilidade física efetuada no plano da subjetividade dos

protagonistas, como se, de fato, se encontrassem reiteradas vezes para comer ou para outro fim, e nessas ocasiões franqueassem ao romancista sua vida mental. Resultado: o jantar perde significado próprio, para se transformar na oportunidade geográfica (e temporal) em que ganham corpo e presença os dramas dos oito convivas. Com isso, escapa o narrador do perigo de encurtar até o nível máximo o espaço do romance.

Como se sabe, o romance surgiu identificado com a burguesia. Por isso, é urbana sua geografia. Constitui exceção o romance regionalista, ao menos quantitativamente (está claro que, em qualidade, o romance urbano ainda ocupa o primeiro lugar, como se pode observar em À Procura do Tempo Perdido, grande parte da

Comédia Humana, Ulysses,O Contraponto, etc.; mas este já é outro problema). A rigor, a problemática do

romance é citadina e só por contágio pode ser encontrada no campo. Além de razões sociológicas ou ideológicas (ser o romance a apologia ou crítica das estruturas burguesas), pode-se invocar uma de natureza técnica: a vida rural, porque uniforme, não condiciona as mudanças geográficas peculiares do romance. Cedo se esgotam as possibilidades do autor, e seu horizonte diminui ou se repete. Quando não, a variação do local físico pode conduzir a narrativa no rumo da novela: as peripécias acabam desempenhando papel de suma importância, em detrimento da análise.

Por aí se depreende que o espaço possui, no romance, relevância que desconhece na novela. Nesta, a ação é tudo; não importa o lugar onde se passam os episódios, senão eles próprios, porque poderiam ocorrer em qualquer lugar; o acontecimento desvincula-se da paisagem física. Esta, se aparece, é convencional, o que significa tanto poder ser uma como outra. Funciona como a natureza no teatro clássico: pano-de-fundo, quando não cenário suposto, inerte e alheio ao drama que à sua mente transcorre. No romance,

178 dá-se o contrário: o cenário avulta de importância, às vezes assumindo papel decisivo na configuração da personagem, como no ,

romance realista e naturalista. Luísa, de O Primo Basílio, vive numa casa de pesadas cortinas emolientes; um ar de modorra comunica-se a tudo, convidando à sesta espreguiçante e prolongada; uma penumbra viciosa estimula a devanear à rédea solta; tudo transpira requinte, "chic" sensual. Não estranha que, vivendo num ambiente assim, Luísa cedesse logo às falas de Basilio, que a arrancavam do tédio para a aventura e a fantasia. Ninguém considerará o cenário como o único fator atuante, mas tampouco deverá julgá-lo inócuo para o correto entendimento do perfil psicológico de Luísa. Uma verdadeira osmose se estabelece entre a personagem e o "meio", consoante as doutrinas deterministas em voga no tempo. Podemos tachá-las de exagerar

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o condicionamento geográfico, mas sem negar a verdade, parcial embora, da "lei" em que assentam, o homem como produto do "meio".

Fora do romance realista e naturalista, ainda se pode observar a interdependência da personagem e da geografia. Atente-se, por exemplo, emAngústia, de Graciliano Ramos. Escolhemos de propósito um romance introspectivo, pois a ficção nordestina regionalista se assemelha ao romance realista e naturalista. Em

Angústia, o cenário ocupa relevante posição: a casa em que vive Luís da Silva permitia ver os fundos da casa

de Mariana, numa vizinhança que originou as condições para tudo o mais. Não bastasse a circunstância geográfica propiciar o encontro amoroso das personagens, o narrador desce a minúcias (a chuva, poças d'água, etc.) a fim de compor, tão integralmente quanto possível, o cenário onde se desenrola a tragédia passional. A narrativa apresenta-se pontilhada de marcos geográficos, como balizas dum roteiro no interior da mata: o romancista procura levantar o mapa da situação com todos os pormenores, que sabe indispensáveis à compreensão dos protagonistas em cena.11

11 Para o estudo do espaço, ver Joseph Frank, "Spatial Form in Modem Literature", in The Wuiening Gyre: Crisis and Mastery in Modern Literature, New Brunswick, N. J., Rutgers University Press, 1963, pp.3-62 (Ir. francesa,Poétique, Paris, n° 10, 1972, pp. 244-266); "Spatial Form: Some Further Reflections", Critical lnquiry, The University of Chicago, vol. 5, n° 2, Winter 1978, pp. 275-290; Gabriel Zoran, "Towards a Theory of Spacc in Literaturc"

Poetics Todny, Tel Aviv University, vol. 5, n° 2, 1984, pp. 309-335 (com bibliografia). 179 Tempo*** Hans Meyerhoff, no seu livro acerca do tempo na Literatura, começa afirmando que o "tempo, como Kant e outros têm observado, é o modo mais característico de nossa experiência."12

Mas, que é o tempo? Para o exame do conto e da novela, não foi preciso colocar a questão, seja porque o tempo ali obedece quase sempre a um esquema único, o do calendário, seja porque entendíamos logo de que se tratava, ao menos como dado da experiência. Todavia, a complexidade do assunto é tal, quando se refere ao romance, que o problema se põe.

"Santo Agostinho, que foi o primeiro pensador a avançar uma genial teoria filosófica baseada inteiramente na experiência momentânea do tempo combinado com categorias psicológicas da memória e da expectação", transformou a questão num dilema célebre: "Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pergunta, eu não sei" 13

Desde o filósofo cristão até os nossos dias, o tempo constitui uma questão sempre em aberto. Aristóteles, naFísica (liv. IV) e Plotino, na 3&Enéad es, detiveram-se no exame do tempo, mas, na verdade "para os antigos (gregos) o tempo não tinha grande importância", pois" é o Cristianismo quem concede tanta importância ao tempo, apresentando ao homem o espetáculo de um tempo que se dirige, por assim dizer, ao seu próprio centro, o instante em que o infinito se tornou finito, ao encarnar-se o próprio Deus entre os homens" .14 Quando Bergson, já neste século, o considera um "dado imediato da consciência" não faz mais que buscar qualificá-lo ao invés de conceituá-lo, mas a afirmação tem feito sua carreira de convencer, informar e orientar. Como veremos, exercerá considerável influência no romance moderno. Entretanto, está fora de propósito cogitar neste livro do aspecto conceitual (filosófico e

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científico) do tempo: nas notas de rodapé a este tópico e na bibliografia final, o leitor encontrará indicação de obras que tratam do assunto.

s, a12 Hans Meyerboff, Tune in Uteratltre, Berkeley and Los Angeles, University oí California Prcss, 1960, p. 1. 13 Idem, ibidem, pp. 6, 8.As reflexões de Santo Agostinho acerca do tempo se encontram nasConf issões, liv. XI, §x-xxxi. 14 Jean Wabl, Introducción a la Filosofia, Ir. mexicana, México, Fendo de Cultura Económica, 1957, pp. 14 e 15. 180 Nosso alvo, no momento, é o romance, que suscita, como nenhuma outra forma de arte, o problema do tempo. ror quê? Porque o romancista, mais do que o dramaturgo, "é senhor do espaço e do tempo em que a própria vida

humana se realiza”. É assim que podemos acompanhar Henry Esmond ao longo de toda a sua vida e que Harnlet poucas horas passará conosco. Em um dia de leitura podemos viver anos e anos da existência das personagens de um romance. Nas poucas horas que dura uma tragédia, pouco mais viveremos que os derradeiros momentos do herói". 15

Por outras palavras: o romancista pode acompanhar as personagens desde o nascimento até a morte, detendo-se nos aspectos que julgar relevantes para a narrativa; abranger 8 ou 80 anos da vida de suas personagens, sem outra restrição que a imposta pela coerência interna da obra. Como verdadeiro demiurgo, cria personagens e o tempo de que necessitam para realizar-se e convencernos, à semelhança dos seres vivos. E arquiteta o tempo à sua maneira, com o objetivo de produzir humanidade no interior do romance. Essa liberdade na sugestão e utilização do tempo comporta uma gama complexa, que foge a todo esquematismo clarificador, e justifica o interesse que o problema desperta em críticos e leitores. Como retomaremos o assunto ao tratar dos vários tipos de tempo, fixemos por ora que o domínio do tempo longe está de significar facilidade para o romancista. Ao contrário, constitui-lhe a barreira mais difícil de ultrapassar.

É voz corrente entre os críticos que um romance, para ser bom, deve satisfazer a três requisitos fundamentais: 1) um enredo suficientemente rico, forte e convincente para manter no leitor a mesma pergunta aflita: "e agora? que vai acontecer? e depois?"; 2) personagens verossímeis à imagem e semelhança dos seres humanos, "gente" como nós, mas substancialmente diferentes porque "podem" existir e "parecem" existir sem jamais deixar esse mundo de potencialidade que é o romance em que "vivem" encarceradas e, se existissem como tais, de duas uma: ou as personagens deixariam de valer como tais por se tornarem "reais", pois não é a realidade cotidiana que se espelha na obra, ou a pessoa viva seria tão inverossímil que logo a diríamos' 'personagens de romance";

0tíia15 João Gaspar Simõe&, Ensaio sobre a Criação no Romance, Porto, Ed. Educação Nacional, 1944, p. 14. 181 3) reconstituição da natureza ou do espaço onde a história transcorre. O último requisito tem menos importância que os outros dois, porque, às vezes, pode estar ausente sem prejudicar o conjunto.

Restaria acrescentar a essas três categorias literárias a quarta dimensão posta em evidência em nossos dias: o tempo. O romancista cria enredo, personagens, espaço e tempo. Este, identificado com as personagens, é categoria fundamental: o caráter demiúrgico do romancista se exerce e se revela na criação do tempo, que é tudo ou impregna tudo na obra, ou é nada, impalpável como um "dado imediato da consciência". É o tempo, afinal de contas, que o

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romancista diligencia criar ou apreender, por meio dos outros componentes romanescos (a história, os protagonistas, a natureza), que seriam a sua concretização. Da mesma forma que o tempo histórico é marcado pelos "monumentos" (catedrais, palácios, esculturas, pinturas, estratos geológicos, etc.), assim também o tempo no romance se manifesta naqueles ingredientes, numa harmonia específica. Mas, por isso mesmo, ostenta um contorno complexo e dinâmico, em razão de oferecer uma série de ângulos e de possibilidades para o ficcionista.

Comecemos por sublinhar a existência de três modalidades

básicas de tempo:1) o histórico;2) o psicológico;3) o metafísico, ou mítico.

O primeiro obedece ao ritmo do relógio, consoante às mudanças regulares operadas no âmbito da Natureza e empiricamente perceptíveis: a alternância da noite e do dia, o fluxo-refluxo das marés, as estações, o movimento do sol, etc. Tempo social por excelência, na medida em que as múltiplas relações em sociedade (comerciais, industriais, domésticas, coletivas, etc.) se regem pelo calendário, faz crer numa regularidade fixa dos segmentos temporais, divididos ascendentemente de segundo ou fração até século ou milênio. Orientando a vida de convívio social, acabou por se transformar em autêntico mito, graças à mentalidade industrial centrada no aforismo "tempo é dinheiro". É com fundamento na cronologia que o homem" conhece" o passado da Humanidade, do mundo atual, de seu país, de sua cidade natal, de sua família e amigos, e dele próprio. Todos vivem segundo um sistema horário marcado pelo relógio, numa rigidez que não deixa de ter reflexos e conseqüências profundas na vida individual, pelos choques entre a coletividade e o "eu;profundo" de cadaum.

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A rigor, tais choques acontecem porque o tempo histórico freqüentemente não coincide com o psicológico: irreconciliáveis por natureza, somente se harmonizariam em condições difíceis de alcançar, visto que, progredindo a civilização tecnocrática, aumenta a distância entre ambos. É que o tempo psicológico se

opõe frontalmente ao outro: como o próprio adjetivo' 'psicológico" sugere, ainda na mais corriqueira de suas conotações, essa forma de tempo aborrece ou ignora a marcação do relógio. Tempo interior, imerso no labirinto mental de cada um, cronometrado pelas sensações, idéias, pensamentos, pelas vivências, em suma, que, como sabemos, não têm idade: pertence à experiência universal, repetida diariamente, saber que não significa nada, em última análise, afirmar que determinada sensação ocorreu há dez anos, vinte dias, etc. A consciência e as convenções impõem uma ordem externa aos fatos, obrigando-nos a rotulá-los com data marcada, quando sabemos que a verdadepsicológica, mesmo para nós próprios, é outra: tudo quanto sentimos, ficou arquivado num universo sem limites ou, quando muito, circular. E as sensações vão-se acumulando sem cronologia: todas presentes, todas de hoje, bastando o ato de recordá-las para o confirmar. E se as rememoramos numa ordem é ainda em nome de pressupostos exteriores, subordinados à consciência social. O vulgar embaralhamento das lembranças serve de prova paraesse mecanismo da memória,

infenso à cronologia histórica. Portanto, trata-se de um tempo subjetivo, oposto ao outro, objetivo, e por isso variável de indivíduo para indivíduo. Todos sabemos, depois dos trabalhos de Bergson (Matéria e Memória, 1897, A Evolução

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Criadora,1906, Duração e Simultaneidade, 1922), que variamos continuamente, ainda quando o tempo

objetivo se mantenha inalterado na aparência. Nesse caso, a indagação de Machado de Assis, no fecho de um soneto- "Mudou o Natal ou mudei eu?" só tem uma explicação: surpreende com flagrância o sentimento de metamorfose que todo ser vivo experimenta ininterruptamente, como um rio perene a correr, diante do mesmo espetáculo. Admitido que o Natal, historicamente, isto é, como espetáculo comemorativo do nascimento de Cristo, organizado com base nos mesmos ingredientes externos (a árvore, o presépio, etc.), tenha permanecido tal e qual,

só resta que o homem tenha mudado. E se o Natal mudou, mudou também o "eu" do poeta; inclusive o Natal mudoup o rq u e mudou o "eu" do poeta: como o "eu" é um fluxo permanente, nada se mantém inalterável à sua volta, mesmo o que pudesse permanecer imutável: um monumento de pedra, um poema, uma rua, etc. É o

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que nos acontece quase todos os dias: sempre que voltamos ao lugar da infância, reassistimos aos filmes da primeira adolescência, revisitamos a escola das primeiras letras, reencontramos um amigo de infância, relemos o poema que outrora nos fascinou- é fatal a decepção: já não somos os mesmos, e enxergamos tudo com os olhos de hoje. A velha sensação, que era de nós próprios diante do objeto, desapareceu, para dar lugar a outra, de insatisfação, porque mudamos radicalmente, num processo incessante até a morte.

O tempo psicológico, varia, pois, em cada um de nós e de um para outro. Também sabemos, por experiência própria, que duas pessoassentem de modo diverso o mesmo objeto, e por isso guardam dele impressões por vezes opostas. Uma delas tem reação pronta, imediata, como se desprovida de maior sensibilidade, enquanto a outra contempla e "sofre", quem sabe sem perceber o alcance do fato que vivencia. A marca será diferente para cada uma, porque seu tempo interior segue ritmos específicos. Para Proust, sua avó morreu de fato decorridos muitos anos após o desenlace.

Fora da Literatura sabe-se que pessoas envelhecem anos em poucos meses de prisão ou de qualquer sofrimento moral; mudam

às vezes, da noite para o dia, adiantam-se no tempo futuro interior, enquanto outras podem permanecer com fisionomia juvenil anos a fio. "Envelhece quem quer", parece uma indiscutível verdade popular, significando que uns se antecipam no tempo psicológico e o organismo acaba por refleti-lo, enquanto outros envelhecem de modo imperceptível, como se vivessem devagar.

Daí "o dilema posto pela aparente irreconciliabilidade do tempo na experiência (o tempo psicológico) e o tempo na natureza (o tempo histórico): os elementos irreconciliáveis contidos nessas duas dimensões temporais constituem, a nosso ver, a principal razão para as divergentes interpretações filosóficas do tempo. Tais interpretações são invariavelmente condicionadas pelo fato de que tratam (ou procuram tratar), seja do tempo na experiência, seja do tempo na natureza.' '16 Mais ainda: tais divergências apenas confirmam a magnitude do problema e justificam que o tempo se tenha tornado um tema corriqueiro e predominante na literatura contemporânea. "17 Por último, explicam a complexidade do emprego do tempo no romance, em evolução desde o seu despontar até os nossos dias.

16 Hans Meyemoff", fJp. cit., p. 9. 17 Idem, ibidem, I\ 3. 184

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otempo metafísico, ou Mítico, é o tempo do ser. Acima ou fora do tempo histórico ou dotempo psicológico, embora possa neles inserir-se ou por meio deles revelar-se,. é' o tempo ontológico por excelência, anterior à História e à Consciência, identificado com o Cosmos ou a Natureza. Tempo coletivo, transindividual, tempo da Humanidade quando era um só corpo fundido às coisas do Mundo, tempo reversíve

em circularidade perene, tempo primordial, originário, sempre idêntico, tempo dos arquétipos (Jung), concretizado na recorrência dos ritos e das festas sagradas, quando se torna presente para o homem desejoso de retomar contato com o momento das origens; tempo sagrado, eterno, sem começo nem fim. 18

Dele nos falam os relatos Míticos dos povos que continuam imersos, graças à sua cosmologia mágica, numtempo que sempre volta, inesgotável e idêntico, e dele temos uma idéia quando percebemos que as personagens de romance flutuam, sem o saber, num tempo que não se confunde com a sua história ou a sua psicologia. Revelado sempre que um gesto adquire, pela ressurgência, fisionomia litúrgica, o tempo Mítico tornou-se obsessão nas estéticas simbolista e pós-simbolista: o teatro lírico, ou a poesia dramática, dum Maeterlinck ou dum Pessoa, decorrem numa dimensão de tempo que pressupõe o mito ou o sagrado; o romance sinfônico de Thomas Marm, ou a cosmovisão medievo-cavaleiresca dum Guimarães Rosa, expressa na identidade sertão = mundo, são outros exemplos da instauração do tempo Mítico no espaço literário.19

Tempo-espaço Tempo e espaço são, como se observa, categorias fundamentais do discurso romanesco. Durante um longo

período, a crítica literária, refletindo uma tendência generalizada neste século, dedicou-se com mais afinco à primeira. Até que, de uns anos para cá, o espaço começasse a atrair os estudiosos. Mesmo porque, como tem ensinado a teoria da relatividade, de Einstein, uma categoria pressupõe

18 Georges Gusdorf,Mito yMeta fisica, Ir. argentina, Buenos Aires, Nova, 1960, pp. 66 e ss.; Mircea Eliade, Le Sacri et te Profane, Paris, Gallimard, 1971, pp. 60 e ss.

19As três dimensões do tempo referem-se ao tempo da ação ou da narrativa. Para o leitor interessado no tempo da escrita e no tempo da leitura, sugerimos o estudo de Roland Bourneuf e Réal Ouel1et, O Universo do Romance, Ir. port., Coimbm, Almedina, 1976, pp. 169-198, e ainda a bibliografia, às páginas 314-315.

185 a outra: a noção de tempo implica a de espaço, e vice-versa, todo espaço se vincula ao tempo que nele transcorre. A co-relação dessas categorias induziu à criação de um vocábulo composto, "tempo-espaço", ou chronotopos, que registra a indissolubilidade dos termos, considerando o tempo a quarta dimensão do espaço,

sem perda de suas características específicas. Estendendo-se para as ciências naturais, ochronotopos não tardou a ser absorvido pelos estudos estéticos, e depois literários, onde assume caráter simultaneamente formalista e de conteúdo. Devem-se a Mikhail Bakhtin as incursões pioneiras nessa área, em escrito de 1937- 1938, revisto e ampliado em 1973, a fim de integrar livro de 1975, chamando a atenção para a relevância do

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chronotopos para o estudo da novela e do romance. 20

Um exemplo dessa relevância pode ser colhido, como demonstra o teórico russo, nochronotopos da estrada: desde a Antiguidade clássica, representada peloSatyricon, de Petrônio, ou O Asno de Ouro, de Apuleio, até a nan-ativa histórica de Walter ScoU e outros, passando pela novela de cavalaria, a novela picaresca e o romance de aprendizagem(Bildungsroman ),- o motivo da estrada desempenha papel capital na economia e na semântica do relato ficcional.Inocência, de Taunay, inscreve-se nessa tradição: o desenlace trágico, "a hora e vez", como diria Guimarães Rosa, em que o herói tomba, assassinado pelo rival, OCOITe na estrada para Santana do Parnaíba,chronotopos da situação amorosa iITemissível, vivida por Cirino e Inocência, uma espécie de Romeu e Julieta do sertão.

Outrochronotopos significativo é o do salão-sala de visita, freqüente na ficção oitocentista, romântica ou realista, como se pode ver na obra de Stendhal e Balzac, ou, em vernáculo, de Joaquim Manuel de Macedo, Alencar, Júlio Dinis, Eça de Queirós, Machado de Assis, dentre outros. "É lá - diz Mikhail Bakhtin que as reputações políticas, comerciais, sociais e literárias são criadas e destruídas, as can-eiras iniciam e fracassam, estão em jogo os destinos da alta política e das altas finanças, decide-se o sucesso ou

20 Mikhail Bakhtin, Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance), Ir. bras., S. Paulo, UNESPfHucitec, 1988, pp. 211 e ss. Ver também fragmentos publicados em PTL: A Joumalfor Descriptive Poetics and Theory of Literature, Amsterdam, vol. 3, n' 3, 1978, pp. 493-528. Para uma visão algo divergente doch ronotopos, ou seja, "definido pela integração das categorias do espaço e do tempo como movimento e mudança", consulte-se Gabriel Zoran,

op. cito E..plfra uma interpretação filosófica do chronotopos, ver I. F. Askin, O Problema do Tempo, Ir. bras., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969, pp. 110 e SS. 186 I I I I I I I ) I I

o revés de um projeto de lei, de um livro, de um ministro ou de uma cortesã-cantora; nela estão representadas, de forma bem completa (e reunidas num único lugar e num único tempo) as gradações da nova hierarquia social; finalmente, revela-se em formas visíveis e concretas o poder onipresente do novo dono da vida- o dinheiro". É nochronotopos, acrescenta ele, que "os nós do enredo são feitos e desfeitos. Pode-se dizer

francamente que a eles pertence o significado principal gerador do enredo". 21 o Romance de Tempo Histórico*** Dividindo, a largos traços, a história do romance em dois grandes períodos, teríamos:

1) dos começos, no século XVIII, com História de Tom Jones, de Henry Fielding, até Proust; esteperíodo, por sua vez, subdivide-seem duas fases limitadas por Balzac;2) de Proust aos nossos dias.O primeiro período é marcado pelo romance de tempo histórico; o segundo, pelo de tempo psicológico.

Se analisássemos demoradamente a primeira categoria de romance no que diz respeito ao emprego do fator tempo, teríamos de lembrar a existência de expedientes vários que, contudo, não alteram o processo utilizado. Claro, desde o romance considerado iniciador da fôrma até a ficção realista e naturalista observa-se constante evolução, que também se processa nas

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literaturas de Língua Portuguesa. A evolução deu-se no sentido de alcançar o tempo psicológico, certamente por corresponder mais de perto à natureza do relato ficcional. Com avanços e recuos, é o que se nota desde o romance romântico, na feição balzaquiana e stendhaliana, até o proustiano, passando pelo flaubertiano, zolaiano e dostoievskiano: uma escalada progressiva na direção do romance de tempo psicológico. E "hoje o movimento no sentido de maior aprofundamento psicológico em ficção chegou ao extremo limite: mas sempre houve uma progressão nesse sentido desde os mais remotos tempos do romance. Essa é talvez a única linha de progressão que de todo pode ser traçada. Os inventos técnicos da moderna ficção, as mudanças de convenção, a maior aproximação entre os símbolos

21 Idem, ibidem, pp. 352, 355. 187 de comunicação e os processos que eles simbolizam, a redução da importância do enredo- estas são resultantes secundárias da principal qualidade do aprofundamento psicológico.' '22

Todavia, além das marchas e contramarchas observadas ao longo do século XIX, mercê do influxo da novela e da conjuntura histórica, não desapareceu o romance de tempo histórico. Compreendendo, pois, que temos em mãos uma vasta rede de malhas trançadas segundo figurinos diferentes, formando zonas de repulsão ou de atração, já podemos tentar um esboço desse tipo de romance, que ainda hoje faz a delícia dos devoradores de ficção.

Antes de tudo, o tempo é linear, horizontal, "objetivo", matemático, visível ao leitor mais desprevenido: este' 'vê" a história

desenrolar-se à sua frente, obediente a uma cronologia definida. Mesmo quando tudo se inicia num ano incerto, 18..., percebe-se que não passa de truque: tudo quanto preenche a história submete-se à marcação do calendário, mais importante que a vaguidade inicial, além de anulá-la com a harmoniosa correlação temporal entre os acontecimentos que ponteiam a narrativa. Não raro, o romancista indica, no apropósito da história, as datas em que os fatos se sucedem, como a enfatizar a coerência cronológica da narrativa. E ainda quando ausentes essas balizas, o texto se incumbe de fornecer os dados para a orientação do leitor, que acompanha o relato romanesco ordenado segundo a cadência do relógio. Ainda quando o romancista, especialmente romântico, pretende cercar a história de certa vaguidade, lá está o tempo do relógio, fora da

personagem, a nortear a intriga. E assim será, até o aparecimento do romance psicológico que, incidindo sobre o exame profundo da personagem, desvendará outra dimensão do tempo. Senhora, de Alencar, é um exemplo útil, entre outros que poderiam ser lembrados, pertencentes à

mesma época e seguidores de igual figurino literário. No primeiro capítulo, que tem cinco páginas na edição de que nos estamos valendo,23 o romancista procede a uma síntese do passado da personagem, visando a introduzir o drama, que se desenrolará dali por diante, e a outros fins contíguos (descrever a personagem, compor o suspense e dar otonus à narrativa). Embora vagos, os indícios temporais dizem respeito à cronologia histórica:

22 A. A. Mendilow,..Time and lhe Novel, London, Petcr Nevill, 1952, p. 202. 23 José de Alenca.f.Senhora, 4& 00., São Paulo, Melhoramentos, s. d. 188 I I I I I I I I I ) I ) ) I I

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Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. Tinha ela dezoito anos quando aparecera a primeira vez em sociedade.I Uma noite, no cassino, a .' .E é só: para os fins que tinha em mira o ficcionista, dispensamse maiores informações, visto as páginas iniciais constituírem uma espécie de chamariz e prólogo à narrativa. Começa, no entanto, o segundo capítulo, e logo à entrada colhemos a seguinte pormenorização cronológica, ainda e sempre de caráter histórico: Seriam nove horas do dia. Um sol ardente de março esbate-se nas venezianas que vestem as sacadas de uma sala, nas Laranjeiras. Mais adiante, apesar do retrato ensimesmado de Aurélia: Aurélia concentra-se de todo dentro de si; ninguém ao ver essa gentil menina, na aparência tão calma e tranqüila, acreditaria que nesse momento ela agita e resolve o problema de sua existência; e prepara-se para sacrificar irremediavelmente todo o seu futuro. o romancista fala do seu futuro como entidade fora dela. Não bastasse o pormenor temporal externo, somos informados de que, segundos depois (embora o ficcionista não os refira), Aurélia correu a vista surpresa pelo aposento; e interrogou uma miniatura de relógio presa à cintura por uma cadeia de ouro fosco.

A citação vale como índice do processo usado pelo autor na composição da história, e de um modo de vida atento às mudanças no mostrador do relógio: a classe social a que Aurélia pertencia, a burguesia, assenhoreara-se do tempo, tomando-o bem comportado, linear e inflexível. No diálogo que Aurélia trava com D. Firmina, ficamos sabendo de outros fatos assinalados no tempo, em obediência ao mesmo modelo e ao mesmo sistema de vida:

Ora, ontem, quando serviram a ceia pouco faltava para tocar matinas em Santa Teresa. Se a primeira quadrilha começou com o toque do AragãoLu24 Ainda nesse capítulo, terminado o diálogo, inteiramo-nos de que Não teriam decorrido cinco minutos quando ouvia D. Firmina (u.) 24 Idem, ibidem, pp. 14, 15, 16. 189 o capítulo seguinte (Ill) inicia-se pela indefectível notação temporal: Era a hora do almoço. As duas senhoras puseram-se à mesa.

Se bem observarmos, a abertura do II capítulo está no presente do indicativo, ao passo que o preâmbulo a tudo o mais, no pretérito perfeito. É provável que Alencar tenha agido sem premeditação. Todavia, a mudança de tempo verbal tem razão de ser: as páginas introdutórias vinculam-se ao passado, digamos, remoto. Terminadas, a narrativa começa, como se fosse presente, ao menos na mente do romancista, mas a continuidade fê-lo voltar para o passado, ondedesejava situar e situou, premeditadamente, a narrativa.

Esse lapso, afinal de contas, revela aspectos importantes da técnica narrativa, seja em relação à época do Romantismo, seja à evolução do ficcionista. Quanto ao primeiro aspecto, cabe dizer que o romance romântico urbano procurava ser atual e "realista", refletir a sociedade do tempo mais do que esta desejava ser, do que no que era em verdade. A identificação do romance com o ideário romântico justifica-o: o primeiro constituía um porta-voz do segundo. Para tanto, o caráter presente se tomava pedra de toque: a burguesia oitocentista carioca via suas veleidades morais e afetivas espelhadas nos romances.

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Tal processo de presentificação sugeria que o autor interviesse no desenrolar das cenas, como alguém que as acompanhasse de perto e com muito interesse. Alencar tirou logo a mão, mas não de todo; o disfarce lá continua, como veremos a seguir. Observe-se, de passagem, que a intromissão do escritor no curso da narrativa é freqüente em nossa ficção romântica: quase nenhum escapou de tal vezo, em virtude do condicionamento cultural e do egocentrismo em voga. O modo da intromissão é que varia, conforme o resultado alcançado: algumas vezes, Macedo, e mesmo Alencar, falseiam suas entradas, porque alheias ao fluxo narrativo, mas Manuel Antônio de Almeida as transformou num rico e saltitante expediente novelesco, em nome do artifício jornalístico de escrever as Memórias de um Sargento de Milícias ao correr da pena, semana a semana. Por fim, o processo perdurou em Machado de Assis, cujas intervenções funcionam como as do anterior, acrescidas do ar irônico e zombeteiro herdado de Lawrence Steme e Camilo Castelo Branco.

Essas intromissões significavam que o ficcionista desejava falar diretamente ao leitor, contar-lhe uma história sem fingir , 190

o contrário mais do que era preciso. Para tanto, o narrador podia manter o disfarce do pretérito ou do imperfeito, a fim de conferir unidade de tratamento à história. O resultado é que suas aparições em cena pareciam justificar-se pela harmonia que alcànçava entre o corpo da narrativa e os elementos estranhos. É fácil mostrar como o disfarce não resiste ao menor raciocínio, revelando que, afinal de contas, a narrativa toda corresponde a uma intromissão do escritor. Noutros termos: a ficção romântica espicaça tendência individualista do autor; este, querendo ser realista no tocante às personagens e

situações, acaba por se confessar esteticamente, através da narrativa. A indistinção das personagens

românticas se explica por constituírem um prolongamento das imagens criadas pela fantasia do escritor, ou daquilo que, nele, é volição, insatisfação ou pulsão do inconsciente: atividade literária de compensação, no sentido freudiano do termo. Todas são, em última análise, o autor, como Flaubert dizia de Ema Bovary: "c'est moi!". Prolongamento sentimental, confessional, longe, portanto, do realismo preconizado, salvo nas exterioridades, vestimentas, gestos, convenções, paisagens. Adentro delas, todavia, desliza um rio emocional e conceptivo que é o do romancista, transfundido nas personagens. Estas, não é demais repetir, também se identificam pela transferência de recalques, anseios, incertezas, etc., enfim da vida mental do escritor.

Por isso, quando Alencar interrompe o Ímpeto de narrar no presente e faz a história voltar ao passado, pareceu-lhe que o recurso enganaria o leitor ávido de saber o que iria acontecer com Aurélia. Decerto percebeu que só cairiam no logro os leitores habituais de suas narrativas, preocupados com a linearidade dos acontecimentos, com o enredo e nada mais. Na verdade, o emprego reiterado do pretérito ou do imperfeito constitui pobre e frágil disfarce: "o imperfeito de tantos romances não significa que o romancista está no futuro de sua personagem, mas simplesmente que ele não é essa personagem, que no-la

mostra".25 Noutros termos; lançando mão do presente, o ficcionista (sobretudo o romântico) teme trair-se, patenteando a carga confessional posta na

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história; o imperfeito permite-lhe a ilusão de crer-se afastado, fora da história, que se passaria com terceiros. Embora sabendo-os seusalter-ego, iludir-se-ia com a máscara do tempo e da pessoa verbal, crente que o leitor o acompanharia no embuste.

25 Jean Pouillon, Temps et Roman, 4" M., Paris, Gallimard, 1946, p. 163. 191

Na realidade, trata-se de presente, como é, ou deve ser, todo romance de tempo histórico. Parece haver antinomia entre o caráter histórico (que pressupõe o passado) e o presente (em curso). Pela análise, vemos que se trata duma contradição aparente. "Que é, pois, contar uma história segundo a ordem cronológica? É contar o passado quando ele foi presente e esperar que o futuro se torne presente para falar dele". Ao mesmo tempo, é preciso atentar para o fato de que só o passado é real; o futuro ainda não existe e o presente só existe tomando-se passado". Explica-se desse modo que "a cronologia romanesca é apreendida do interior, nos presentes sucessivos que a constituem tal qual foi vivida":26 éumpresente namemória epara o ficcionista, enquanto pode serpassado no conteúdo das lembranças. O passado é presente, como memória. Ao menos, é presente a substância vital, as experiências, os impulsos da vontade, etc., mas, ao projetá-la nas personagens, o ficcionista vê-se compelido a remetê-la ao passado, para fugir à identificação entre o mundo de sua memória e as personagens.

Daí o recurso da distorção dramática, na invenção da terceira pessoa, e da distorção temporal, no esbatimento da história em um passado fingidamente remoto. O presente, obrigando ao emprego da primeira pessoa, revelaria o conteúdo psicológico que o escritor deseja apenas simbolizar por meio duma história acontecida fora dele. Por outro lado, "descrever o presente por si próprio possui ainda outra significação. É explicar o que acontece ao indivíduo por sua própria psicologia e não pela simples sucessão exterior das situações onde se encontra lançado".27 Isso implicaria, no caso do ficcionista romântico, uma confissão, gerando a criação dum nãoromance, diário íntimo, poema em prosa ou equivalente.

Iracema aí está para provar, com seu caráter de prosa poética, ou romance-poema, que o risco existia, e

Alencar não correu do desafio. Inpossibilitado de criar personagens à maneira dos seres vivos, o romântico minimiza-lhes a psicologia (por ser esta reflexo da sua, o que significava empobrecimento ou inautenticidade), e coloca-as em situações que em nada lhes afeta a matriz interior, imutável ou esquemática, desde o momento em que é projeção da mente do romancista. Por que tal fenômeno? É ainda Jean Pouillon quem nos auxilia a enquadrar corretamente o problema, ao dizer

26 Idem, ibidem. pp.l~. 167. 27 Idem, ibidem, p. {70. 192

que "a compreensão dum indivíduo não consiste na necessidade de seqüências privilegiadas de ações ou de sentimentos para o apreender mas, ao contrário, em reconhecê-lo pór toda parte e sem ter necessidade de petrificá-lo de antemão ou de referir um passado que seria considerado mais significativo que o presente" .28 A cronologia do romance romântico prova à saciedade esse caráter petrificante, passadista (em relação à personagem) e situacional, de que resulta a indefectível pobreza psicológica. Alenear, lúcido em tantas coisa, é-o também nesse particular. Logo à entrada do capítulo VIII da 3ª parte deSenhora, topamos com outra interferência sua no fluxo da narrativa, de fundamental importância para o assunto que vimos analisando. Diz ele:

Como porém o narrador não foi dotado com a lucidez precisa para o estudo dos fenômenos psicológicos, limita-se a referir

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o que sabe, deixando à sagacidade de cada um atinar com a verdadeira causa de impulsos tão encontrados [no procedimento de Aurélia].

Todavia, a reflexão ainda pode ser interpretada como truque narrativo; o estudo aprofundado da caracterologia das personagens- julgando que ele o pudesse realizar- acabaria desviando o rumo da intriga. Trata- se, com efeito, de uma desculpa para a falha que ele próprio se apressa em apontar, antecipando-se aos leitores. Em todo caso, traduz uma consciência artesanal viva na evolução literária de Alencar, servindo de apoio ao juízo positivo dos contemporâneos e dos pósteros. Ao longo deSenhora, apenas em outros três momentos faz ele uso do presente, um dos quais correspondendo a uma digressão acerca da valsa,29 sem alterar um mínimo o caráter pretérito da narrativa. Pouco mais, pouco menos, a análise que fizemos para o tempo histórico emSenhora serve para o romance romântico em geral.

"O conceito do tempo no materialismo científico do século XIX vai refletir-se nos romances experimentais naturalistas- o tempo científico, que não é o tempo da vida, mas sim um 'tempoesquema', duração morta". 30 Tal concepção de tempo não se opõe

! ~I

28 Idem, ibidem, p. 171.29 José de Alenear, op. cit., pp. 288-289.30 Dirce Cortes Riedel, O Tempo no R011lllnce Macllfldiano, Rio de Janeiro, São José,

1959, pp. 16-17. 193

à que vigorava no Romantismo; ao contrário, alarga-a e precisa-a, dando-lhe o rigorismo imposto pelas ciências. O pensamento tainiano, filtrando-lhe os resultados e aplicando-os li estética, admite que a obra de arte esteja submetida a três fatores determinantes: 1) a herança, 2) o ambiente, 3) o momento. No caso presente, interessa-nos o último, que se refere ao tempo. Por meio dele, Taine postula que, em determinada circunstância temporal ou histórica, as forças do ambiente e da herança despertam com ÚDpeto agressivo: as cargas genéticas negativas de uma personagem, postas em contato com certo ambiente, hão de explodir, em dado momento, como um imperativo categórico, superior a qualquer outra força. O tempo torna-se matemático, cristalizado, como uma entidade concretafora das personagens: as frações temporais aglutinam- se segundo uma ordem rígida, a que os indivíduos se subordinam cegamente.

Entenda-se aqui o tempo como categoria estática ou, ao menos, regular, a ponto de todas as ações humanas terem seu tempo marcado pelo relógio e, portanto, levando a crer que fosse possível assinalar os minutos em que uma cena transcorre, ou o instante em

que os fatos acontecem. O tempo torna-se parâmetro das ações humanas: como uma régua, por meio dele medimos ou avaliamos as criaturas no seu processo vital, convictos de que elas e o tempo se ligam como entidades concretas. Quer dizer: outras escalas haveria, mas o determinista as despreza em troca dessa dimensão geométrica em que as coisas parecem transcorrer.

O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, corresponde a um flagrante exemplo de romance afeto às

características do Naturalismo, dentre as quais sobreleva o emprego do tempo. Para o romancista, a variada ação das personagens obedece a uma cronologia inflexível e exterior a

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elas. Mais ainda: o tempo acabará constituindo obsessão, como veremos mais adiante, ao examinar o comportamento de Piedade.

Os dois primeiros capítulos correspondem à introdução, em que o ficcionista situa o conflito e a geografia das drama tis persorme. O tempo é mero, mas imprescindível, ponto de referência: sabemos que os fatos ocorreram por ter ficado na memória a notação cronológica indispensável para colocá-los em ordem e conferir-lhes verossimilhança (o tempo seria uma espécie de prova de que os acontecimentos se passaram realmente como são lembrados). Por isso, Aluísio ponteia as páginas iniciais do romance com datas e notações por vezes precisas, mas sempre fora das personagens:

194 "dos treze aos vinte e cinco anos", "daí em diante", "um ano depois", "justamente por essa ocasião", "uma bela noite", "daí a um mês", "daí a alguns meses", "durante..dois anos", "à noite

e aos domingos", "por essa época", "seus dias eram consumidos do seguinte modo: acordava às oito da manhã, lavava-se mesmo no quarto com uma toalha molhada em espírito de vinho; depois ia ler os jornais para a sala de jantar, à espera do almoço; almoçava e saía, tomava o bonde e ia direitinho para uma charutaria da Rua do Ouvidor, onde costumava ficar assentado até às horas do jantar, entretido a dizer mal das pessoas que passavam lá fora, defronte dele".

O corpo da narrativa tem início no capítulo terceiro, com uma observação cronológica: "eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas

alinhadas".31 O acelerado das páginas iniciais cede lugar a um andamento cronológico pausado, lento, a que a referência temporal da abertura serve de claro indício. Como se a narrativa, antes no passado remoto, viesse para o presente, ou um passado próximo. E agora, até o fim, jamais se interromperão os signos do tempo, a servir de baliza para os acontecimentos. Escusa de mencioná-los todos: uns poucos bastam para que nos certifiquemos de que o ficcionista se esforça por conhecer com rigor a cronologia da história passada no cortiço. Para tanto, detém-se em minúcias que denunciam a importância do tempo como fator determinante. Noutras palavras: o romancista desce a frações de tempo, como no encalço de surpreender a relação íntima entre elas e os acontecimentos; tudo se passa como se, alterada a circunstância de tempo, tudo mudasse para o personagem. Não esqueçamos que é essa interdependência que a ficção realista e naturalista- baseada nas idéias científicas em moda nos fins do século XIX- procurava revelar e demonstrar. Acompanhemos algumas páginas do romance, respigando as notações mais evidentes: "meia hora depois", "meio-dia em ponto. O sol estava a pino", "No dia seguinte, com

efeito, ali pelas sete da manhã, quando o cortiço fervia, para tomarem conta da casinha alugada na véspera", "três horas depois", "aos domingos", "Jerônimo acordava todos os dias às quatro horas da manhã", "Jerônimo só voltava à casa ao decair da noite", "Depois, até às horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele

tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a 31 Aluíso Azevedo, OCor tiço, 9" ed., Rio de Janeiro, Briguiet, 1943, pp. 36,41. 195 mulher, dedilhar os fados de sua terra", .. Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril", 32 e assim por diante até o desfecho do romance.

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Esse rigorismo cronológico não significa uniformidade das notações temporais. Ao contrário, implica uma hierarquia cronológica obediente ao pulsar dramático da história. As variações da temperatura emocional das cenas correspondem mudanças das referências temporais. O processo lembra o universo cinematográfico: as cenas podem estar afastadas (no tempo e no espaço) ou próximas, incluindo as nuanças intermediárias; o diafragma óptico abre-se ou fecha-se conforme a distância do objeto a focalizar, determinando as alterações concomitantes no plano do tempo. Dessa forma, quanto mais distante a cena, mais vaga é a .marcação cronológica; quanto mais próxima, mais rigorosa. No primeiro caso, o romancista socorre-se de expressões imprecisas, como" daí a meses", "daí a semanas", que respeitam a temporalidade sem defini-la. No segundo caso, o escritor detém-se, na pintura da cena, devidamente marcando-lhe o progresso no tempo. Como uma câmara cinematográfica que atraísse as personagens para seguidosclose -ups, a narrativa toma-se mais lenta, embora a cena transcorra em frenético dinamismo dramático. É que a lentidão decorre da minuciosa mar

cação do tempo como dimensãofora das personagens, nãod e n t ro : tudo acontece em dois planos paralelos, o da ação e o do tempo, mas de modo que o primeiro dependa do segundo. Dois episódios ilustram à perfeição esse procedimento rigorista: o do aparecimento da mulher em Pombinha e o do assassínio de Firmo. Rastreemos-lhes a cronologia. No primeiro episódio, sabemos que: Às onze parao meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu desassossego entre as apertadas paredes do número 15, que, mau grado os protestos da velha, saiu a dar uma volta por detrás do cortiço, à sombra dos bambus e das mangueiras. Assim começa a cena, que termina minutos depois: A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre, as doze badaladas do meio-dia. O sol vitorioso, estava a pino e, por entre a copagem negra(..,). 32 Idem, ibid~m, pp. 66, 72. 196 Aqui, a precisão cronológica como que determina o processo em que Pombinha ingressa na adolescência. (\náloga relação se nota no outro episódio: . Iam-se assim os dias, e assim mais três meses se passaram depois da noite da navalhadao Ao cair da noite, Jerônimo foi, como ficara combinado, à venda do Pepéo - Obrigado! respondeu o cavouqueiro, erguendo-seo Bem, não

nos deixemos ficar aqui toda a noite; mãos à obra! São quase oito horas.- Que horas são? perguntou Pataca, olhando quase de olhos fechados o relógio da parede. Oito e meia.Passava já de onze horas.A uma hora da madrugada o dono do café pô-los fora.

Como se vê, o crime ocorreu entre oito e meia e onze horas, com precisão matemática. E a tal ponto o romancista se debruça sobre o tempo que transfere a preocupação para as personagens, ou descobre o quanto estão dependentes do relógio. Mesmo bêbados, os assassinos de Firmo se interessam pelas horas e as reconhecem sem maior dificuldade, porque as situam num plano fora deles, imutável mesmo quando os aparelhos pudessem diferir por vários motivos, desde o simples desarranjo até marcarem latitudes ou

longitudes específicas

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Flagrante exemplo disso é a cena imediata às da morte de Firmo. Vive-a Piedade, mulher de Jerônimo, rival do mulato e mandante do crime. Vejamos a cronologia do episódio: A essas horas Piedade de Jesus esperava pelo marido. Ouvira, assentada impaciente, à porta de sua casa, darem oito horas, oito e meia, nove e meia. """"""""""0"0""'0"0"0"'0""""0"00"0"""""0'''''''''''''''''''00''''0"0""""""""rt'''00''0 Dez horas! valha-nos Nosso Senhor Jesus Cristo!

Não é incrível que a pobre mulher, tomada de tamanha aflição, ainda quisesse saber as horas, como se isso lhe minorasse o sofrimento? Mas é precisamente o que ocorre: o tormento lhe vem do tempo, mas do tempofora dela. De qualquer modo, o tempo apontado pelo narrador para situar as cenas, e o tempo da personagem submetem-se ao mesmo rigor positivista. As notas seguintes de sua angustiante vigília confirmam-no:

O desejo impaciente de saber que horas eram punha-a doida. 0"0""""""0''''''''''''''0''''''''''''''''''''0''''''0''''''''''''''0'''''''''''''''''0'''''''0''00''0''""""" As cinco horas levantou-se de novo com um salto. 197

Era uma preguiçosa madrugada de agosto. (...) O cortiço acordava com o remancho das segundas-feiras.Tanto assim que, às onze horas, mal apercebeu que Piedade (...)O sol descamba para o ocaso (...).33

Essa obsessão pelo tempo marcado com precisão distancia-se do tempo romântico, mas está longe de percebê-lo como "duração", emboraO Cor ti ç o seja de1890, numa altura em que Bergson iniciava os estudos acerca da matéria(O ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência é de 1889).

Por motivos que não vêm ao caso, o romance de tempo histórico manteve-se entre nós com muita força, após a instalação da revolução modernista de 1922. A maioria dos ficcionistas se enquadrou nesse tipo, destacadamente os que compõem o chamado' 'romance de 30", como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Raquel

de Queirós, Jorge Amado. Deste último, escolheu-se Gabriela, Cravo e Canela (1958) como exemplo. A narrativa, longae palpitante, inicia-se com uma nota cronológica. Naquele ano de 1925, quando floresceu o ichlio da mulata Gabriela e do árabe Nacib (...). J.4 o tom da narrativa revela-se imediatamente por essa referência: até o fim, é uma história linear, sujeita à

ordem do relógio. Nas páginas seguintes, colhem-se outras referências temporais, sempre exteriores às personagens: "naquele ano"; "alguns dias após"; "naquela manhã", "ainda quase noite, às quatro da manhã", "procurava enxergar as horas no patacão colocado ao lado da cama: seis horas da manhã e ele chegara por volta das quatro"; "há mais de quatro anos"; "o jantar do dia seguinte"; "dormir até as dez horas"; "nos diasde

sol, invariavelmente, às dez horas"; "naquele dia"; "certa noite"; e vai por aí fora. As notações, no geral vagas,

mesmo quando acusam a hora certa em que estala alguma ocorrência, são exteriores e casuais: o romancista constrói a história segundo a horizontalidade do calendário, mas sem rigidez. Tudo

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se passa em 1925, em Ilhéus: o restante 'é mais ou menos vago, posto que subordinado ao tempo histórico. Por que o vago?

33 Idem, ibidem, pP:.175, 178,200,209,211,215,219,225,227,228,232,233. Os grifos são nossos. 34 Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela, 41 00., São Paulo, Martins, 1960, p. 26. 198 o Duas razões explicariam o procedimento do ficcionista: 1A) trata-se de um romance linear modefilo, diferente, pois, do

linear romântico ou realista, cujas características foram anteriormente mencionadas. O tempo, emGabriela, percebe-se na ação, como se bastasse narrar os acontecimentos para ver que fluem no tempo: cronologia da ação, de forma que o fato e o tempo que o mesmo leva para se efetivar constituíssem uma unidade perfeita. O tempo histórico somente compareceria param a rca r uma ação, e esta, por sua vez, pressuporia um lapso temporal para configurarse. Assim se compreende, antes de tudo, a vaguidade das notações de tempo no relato do idílio entre Gabriela e Nacib. Serve de exemplo o episódio da atracação do navio da Costeira,3S Sabemos ser dia porque há pouco o narrador nos comunicava que Nacib acordara, após uma noite de pândega, e "pela janela entrava a manhã alegre ~', e, ao fim, já arribada a embarcação, ficamos sabendo que "apesar da hora matinal, uma pequena multidão acompanhava os penosos trabalhos de desencalhe do navio", Portanto, uma vaga manhã, como tantas iguais, mas "vemos" o tempo que o navio leva para atracar no cais de Ilhéus, e se o autor não se interessa pela referência exata em horas e em minutos, é porque não faz diferença, para a ação, que se desenrola aos nossos olhos e num tempo mais "visto" que suposto. Quando a narrativa chega ao clímax

- os amores de Gabriela e Nacib -, algum rigor quanto ao tempo, exterior, começa a observar-se, mas é quase como se não valesse. Às tantas, Nacib pensa (ou o narrador o diz como se a personagem o pensasse) o seguinte: le~

'n~s ~(l, Três meses e dezoito dias tardara o engenheiro a chegar, fazia exatamente o mesmo tempo que contratara Gabriela. ez leral na ia

Observe-se: de tal forma o herói vive preso às mudanças do calendário que o tempo só passou para ele: para o leitor, tanto faz que fossem três meses ou um dia: a narrativa não mostra a evolução (interna) operada em Nacib; limita-se a informar "como se iniciou a confusão de sentimentos do árabe Nacib", que, transcende o tempo histórico, Afinal de contas, a exatidão na contagem dos dias é dispensável, como evidencia o tom vago retomado imediatamente depois: "nessa tarde", Para o leitor, soa como uma tarde

35 Idem, ibidem, pp. 54-66. 199 qualquer, decorrido um incerto lapso de tempo. E, daí por diante, recorrem expressões indeterminadas: "mais ou menos uma semana depois"; "Lutara contra aquelas palavras dias e dias, a pensar na hora da sesta", etc. E só em duas ocasiões dramáticas, por sinal nucleares, é que a notação volta à discutível precisão: a primeira, quando a "senhora Saad envolveu-se em política";

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Marcou oito horas. Foi ver no relógio da sala, conversavam na cozinha: -As nove passadas. a segunda, quando surpreende Gabriela e Tonico em flagrante delito: No outro dia foi cedo para o bar. Pouco antes das duas da tarde, Tonico surgiu, bebeu seu amargo, achou que Nacib estava de mau humor. - Aborrecimentos em casa? - Não. Tudo bem. Contou no relógio quinze minutos após a salda de Tonico: Tirou o revólver da gaveta, meteu na cinta, dirigiu-se para casa.36

Como se o narrador fotografasse a modorrenta Ilhéus de 1925, o tempo histórico é o senhor todo poderoso, mas permanece o mesmo, invariavelmente: é indiferente que o ato seja praticado em janeiro ou dezembro, à tarde ou de noite. Exatamente como acontece ainda hoje nas cidades do interior do Brasil, submersas na rotina espessa e bocejante dum tempo parado para sempre e não se sabe onde, caracterizado por uma irritante monotonia. Quase caberia afirmar uma perpétua ausência do tempo, tão iguais são as horas, os dias e os meses, tão igual a si mesmo é o próprio tempo, inalteravelmente. Assim se explica queGabriela, sendo uma narrativa de tempo histórico, nem por isso se esmera em sua nítida e rigorosa marcação: em qualquer tempo duma cidadezinha interiorana a fabulação transcorreria do mesmo modo, visto acompanhar a passagem das horas fora dos protagonistas. Seja como for, tratase duma noção moderna de tempo linear, estreitamente ligado aos atos e fatos narrados;

21&) a segunda razão para explicar a vaguidade temporal deGabriela conduz-nos mais a dentro da narrativa e ajuda-nos inclusive 36 Idem, ibidem,W. 52. 66.210. 211. 349. 391. O grifo é nosso. 200

a julgá-la com objetividade. Na edição que estamos compulsando, o texto esparrama-se por 453 páginas, formando quatro grandes capítulos, subdivididos em duas parts. A primeira parte constitui uma longa e transbordante introdução ao caso amoroso de Gabriela e Nacib, com 197 páginas. O autor, percebendo a desarmonia do conjunto, subintitula a narrativa deCrônica de uma cidade do interior, mas o

expediente não resolve o problema, uma vez que o fulcro da obra corresponde aos amores entre a mulata e o brasileiro (nascido na Síria), a tal ponto que

Ninguém, no entanto, fala desse ano, da safra de 1925 à de 1926, como o ano do amor de Nacib e Gabriela e, mesmo quando se referem às peripécias do romance, não se dão conta de como, mais do que qualquer outro acontecimento, foi a história dessa doida paixão o centro de toda a vida da cidade naquele tempo, quando o impetuoso progresso e as novidades da civilização transformavam a fisionomia de Ilhéus.37

Como se vê, o próprio narrador confessa a importância do idílio amoroso para a cidade e para o relato ficcional. Mas dele se afasta, em favor daquilo que se transforma no subtítulo da obra. Daí a extensa preparação panorâmica, feita da história e da vida da cidadezinha, para o caso entre as personagens centrais. Ainda mais: na segunda parte- que tem como núcleo a razão mesma da narrativa- continuas digressões estorvam o

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desenrolar, porquanto dizem respeito à gente da cidade, e só por tabela interessariam à compreensão do conflito entre Gabriela e Nacib. Como explicar? Jorge Amado tinha em mãos um farto material, que daria para um

ciclo de romances ou novelas, mas achou que valia a pena aproveitá-lo numa única obra. Em segundo lugar: o caso amoroso central não daria um romance; o tempo da ação e a intriga são muito circunscritos para engendrar uma história com a complexidade inerente ao romance. Acabou sendo o episódio capital da obra, masepisódio, suficiente apenas como matéria de um conto, e não mais.

Para o que nos interessa no momento, o minucioso exórdio e os constantes desvios da ação é que determinaram a inconstância da ordenação temporal, porque extravasam da intriga principal: a introdução, as extrapolações e a trama carecem de uma vinculação

37 Idem, ibidem, p. 30. 201

temporal harmoniosa. Ao contrário: a narrativa deriva do presente para o passado, emflashbac ks suscitados por personagens e circunstâncias, mas tendo como cenário exclusivo o burgo de Ilhéus. Falta-lhes um nexo de causalidade, de necessidade, de veracidade dramática. O resultado só pode ser a flacidez da notação temporal, abrindo fendas que convidaram o narrador a empreender sucessivas evasões, com vistas a estender a história e abarcar o contexto sóciohistórico de Ilhéus. Em suma, a crônica da fogosa paixão entre Gabriela e Nacib estrutura-se horizontalmente, segundo o compasso do relógio ou dos dias, embora não raro o tempo escoe à nossa frente, identificado com a ação e com os minutos dispendidos na leitura das cenas.

o Romance de Tempo Psicológico

Como vimos, ao tempo na natureza", ou histórico, opõe-se o tempo na experiência", ou psicológico. Hans Meyerhoff lembra que "o tempo em literatura é le temps humain, a consciência do tempo como parte do vagobac kground da experiência, ou como integrante da textura das vidas humanas". Por isso, "o tempo assim definido é privativo, pessoal, subjetivo ou, como geralmente se diz, psicológico". 38

Embora desde oEclesiastes e Heráclito ("Não nos banhamos duas vezes nas mesmas águas", pois "tudo flui, tudo passa" continuamente: o rio permanece o mesmo, mas a água em que nos banhamos já não é a mesma), a idéia de fluxo ininterrupto, de vira-ser permanente, tenha sido tema constante de poetas e filósofos, é com Bergson que ganha corpo uma teoria filosófica do tempo. Para o pensador francês, tempo é duração: experimentamos o tempo como uma realidade subjetiva que escorre permanentemente, transformando-se a cada momento, num ritmo incessante, múltiplo e heterogêneo. Tempo interior e da nossa memória, refratário à medida, avançando em ondas superpostas no psiquismo de cada um, ao contrário do tempo objetivo, ou matemático, que é mensurável, linear, obediente a uma ordem causal.

Enquanto memória, o tempo na experiência corresponde à memória involuntária, "repositório ou reservatório de registros, 38 Hans MeyerhQff, op. cit., pp. 4-5. 202 ~I I I I I I I I I I I I II ) ) I I I

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traços e inscrições de acontecimentos passados análogos aos registros preservados nos estratos geológicos';.39 Contrária à memória voluntária, que recorda o que manda I!- vontade e a necessidade, a memória involuntária pressupõe um tempo descontínuo, a duração em que a noção de passado-presente desaparece de todo. Na realidade, a memória age como um presente no momento em que traz à consciência seus registros e traços, e o tempo acaba sendo um eterno presente que dura, em perene devir: o passado só existe quando presentificado pela memória, e o futuro ainda não existe.

Entretanto, pode-se distinguir o presente-presente e o presente-passado: o primeiro seria apreendido como "dado imediato àconsciência", como "tempo vivo", formado duma cadeia ilimitada de associações dinâmicas provocadas pela cor, som, movimento, perfume, etc., ao passo que o outro é formado pelas camadas da memória, por sua vez resultantes dum "tempo vivo" passado, que se recobra por meio de associações. Noutros termos: a consciência recebe um profuso impacto da realidade, ao mesmo tempo que, por descarga

associativa, desenterra o passado impresso na memória e torna-o presente, ou melhor, atribui-lhe existência, uma vez que antes disso constitui apenas um presente potencial, inerte e desconhecido para a consciência. Ainda que todas as experiências se imprimam na memória duma forma ou doutra, é pelas associações que vêm à tona, se presentificam e assumem contorno de objetos reais para o indivíduo: antes de refluir para a consciência, parecem traços geológicos profundos à espera duma escavação que, efetuada por associacionismo involuntário, ou contraponto, as atinja e as revele.

Com isso, compreende-se que "os modernos ficcionistas psicológicos são constantes no seu intuito de cortar cerce as abstrações intelectualizadas que nosso cérebro interpõe entre nós e a realidade, apreendendo nossas imediatas impressões de vida num jacto, antes que nossos conceitos possam transformá-las(...), isto significa, com efeito, que o único tempo com sentido para tais romancistas é o presente". A explicação está em que "a essência do drama em ficção reside na criação de um sentimento de um presente fictivo que se move para frente". E o passado só aparece quando "se torna parte do presente", mas" o acontecimento passado, no momento

39 Idem, ibidem, p. 20. 203 de sua ocorrência, não é o mesmo que aquele recordado mais tarde. Alguma coisa mudou - a personagem; e a coisa lembrada é portanto diferente".40

Por outro lado, há que distinguir dois Níveis mentais: o verbal e o preverbal.41 O romance de tempo psicológico42 se identificaria pela exploração do fluxo-da-consciência, isto é, "a exploração das camadas preverbais da consciência com o propósito fundamental de revelar o ser

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psíquico das personagens". 43 E se basearia, ainda, na sondagem das reminiscências, fixadas na memória e reelaboradas na consciência por mecanismos associativos.

Como se observa, trata-se do tempo psicológico experimentado pela personagem, não como dimensão da narrativa: esta, pode passar-se num vasto lapso de tempo, correspondente à vida inteira da personagem, ou numas poucas horas. Entretanto, "a área do tempo dos romances psicológicos é comumente restrita a um curto período, ou a um número de curtos períodos de variado intervalo". 44 Via de regra, o tempo da narrativa difere do tempo da personagem.Ulysses constitui exceção, inclusive pelo grau de coerência atingi- da: James Joyce procurou apreender o fluxo mental e a ação de uma personagem no espaço dum dia, fazendo que as duas formas de tempo coincidissem completamente. É que "a teoria daduração levou a uma nova concepção de enredo e estrutura. Sugeria o progressivo encurtamento da duração ficcional coberta pelo romance, simultaneamente à expansão da duração psicológica das personagens. Toda a vida num só dia, toda a vida num momento, eis a meta que os romancistas se propuseram". 45 Uma terceira coisa é o tempo gasto pelo leitor para acompanhar a narrativa: em duas horas, pode conhecer anos da personagem, ou eventos transcorridos

40 A. A. Mendilow, op. eir., pp. 131, 217-218, 219. 41 Robcrt Humpl=y, Srream ofConseiousness in rhe Modero Novel, &rkcley- Los Angeles, UniVCISity of Califomia Prnss, 1962, p. 3. 42 Talvez valesse a pena distinguir "romance de tempo psicológico" de "romance psicológico", visto que há romances de tempo histórico voltados para a aruílisc psicológica, como os de Flaubcrt, Dostoiévski, Tolstoi. Equivaleria à distinção enlm . 'romance psicológico"

e "romance introspcctivo", que explora o tempo psicológico e suas conseqüências, em matéria de técnica expressiva, bem como em matéria de realidade captada. O romance de tempo psicológico pode ainda ser denominado "romance do fluxo da consciência", "romance do monólogo silencioso e interior", ou "romance analítico moderno" (Lcon Edcl, The

Modero Psyehologieal Novel, New York, The Universal Library. 1964, p. lI). 43 Robcrt Humpl=y, op. eU., p. 4. 44 A. A. Mendilow, op. eU., p. 218. 45 Idem, ibidem,p

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I I b1- I li [. .) ] f) I> I 1- A j DS I S ))II) em semanas ou meses. Para nós, só interessa o tempo da personagem e o da narrativa, fundidos ou não.

O tempo em literatura, sobretudo na prosa de ficção, tornou-se o "tempo - obsessão do século vinte''''46 Embora obsessão dos nossos dias, depois que Bergson, na filosofia, e Proust, na ficção, lhe conferiram primordial papel, data dos fins do século XIX a consciência de sua importância literária. Henry James, escritor anglo-norte-americano, mais conhecido por suas teorias acerca da "arte do romance" do que por suas obras, no prefácio de Roderick Hudson

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(1876), já se referia à "eterna questão-do-tempo para o ficcionista". Entretanto, a expressão' 'fluxo da consciência" (stream of consciousness) foi cunhada por seu irmão, William James, nos Princípios de Psicologia (The Principles of Psychology), publicados em 1890.

Nas literaturas vernáculas, o tempo-obsessão é de conquista recente: em Portugal, tirante experiências da geração presencista e do romance dum Vergílio Ferreira, dum José Cardoso Pires, duma Agustina Bessa-Luís, e outros poucos, o mais da ficção continua preso às narrativas de tempo histórico. No mesmo passo, se não pior, porque inexistentes, estão os estudos técnicos acerca do tempo em ficção. Entre nós, as coisas já correm um pouco melhor: Machado de Assis projeta em seus contos e romances essa obsessão pelo tempo, certamente bebida no romance inglês, em Flaubert, na Bíblia, e fruto de suas pessoais reflexões. Depois dele, e passando pelos experimentos de Adelino Magalhães, é com Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Osman Lins, dentre outros, que o tempoobsessão se torna presente, simultaneamente com estudos críticos que focalizam o tempo em Machado de Assis ou a intervenção da memória no regionalismo nordestino.

Machado de Assis ocupa lugar à parte na evolução da nossa literatura por uma série de razões, dentre as quais a atenção conferida ao tempo como dimensão romanesca. Nas obras da fase romântica, o tempo da narrativa e das personagens é ainda o histórico, mas já se vislumbram observações que deixam entrever um ficcionista interessado no tempo em si, e, depois, no tempo como ingrediente dos romances: num caso e noutro, percebe-se a intromissão do tempo psicológico, ao menos em seus aspectos superficiais. "O tempo andava com o passo do costume, mas à ansiedade

46 Idem, ibidem, p. 12. 205 do mancebo afigurava-se mais longo...", lembra Machado num trecho deHelena.47 Mais de uma vez, no curso dos quatro primeiros romances, o narrador se detém a refletir acerca da disparidade entre o tempo que "andava com o passo do costume", vale dizer,

o tempo do relógio, e o tempo psicológico, duração emocional. Machado é um romancista obcecado pelo tempo, em busca da criação (da imagem) do tempo, ideal de todo ficcionista consciente: e entre as duas fases de sua carreira não há senão diferenças de grau e profundeza no exame do tempo e das personagens em que o mesmo se efetiva. É o tempo, ou melhor, a noção psicológica do tempo em cada um, que faz Estácio, herói de

Helena, diferente de Rubião ou de Bentinho.

Com efeito, as Memórias Póstumas de Brás Cubas testemunham um ficcionista debruçado obsessivamente sobre a problemática do tempo - do tempo-memória - a começar do título de dois de seus romances (aquele e o Memorial de Aires) e do caráter rememorativo de D. Casmurro. Numerosas, freqüentes, as alusões ao tempo dentro desses cinco romances, feitas pelo narrador e pelas personagens, e complexo o tratamento do tempo na narrativa e nas personagens. Por tudo isso, e por outras características que não

vêm ao caso, Machado de Assis é um romancista' 'moderno" , precursor em matéria de tempo-obsessão. Porque não cabe aqui rastrear os problemas abertos pelo tempo machadiano, e porque há uma bibliografia a respeito, a análise da estrutura de D. Casmurro tentará ao menos oferecer uma amostra de sua amplitude.

Quando a narrativa começa, estamos no presente atual do narrador, presente mais ou menos vago: "Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central

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um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu" .48 Mas, como se nota, já é um presente-passado, ainda que próximo. Mal chegamos ao fim do capítulo, denominado "Do título", percebemos que do presente não se trata, ou não se tratará. Entrando o capítulo seguinte, "Do livro", conhecemos das razões por que Dom Casmurro o escreveu. Em meio à explanação do narrador, somos informados de pormenores importantes para o entendimento do que se vai ler e para a dilucidação dos pontos obscuros: "Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a

47 Machado deAssis..Hekna, São Paulo, Cultrix, 1960, p. 65. 48Idem, D.Casmutrô, São Paulo, Cultrix, 1960, p. 23. 206 casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe omesmo aspecto e economia daquela

outra, que desapareceu". E mais adiante: "Enfim agora, como outrora, há' aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa". Nota-se que o narrador pretende proustianamente recuperar o tempo perdido, desde a recriação da paisagem física onde sua vida decorreu até a da atmosfera que nela reinava. À semelhança do que acontece reiteradasvezes ao longo da narrativa, o romancista- adotando a técnica de pseudo-autor - se adianta ao nosso juízo e esclarece lucidamente o que deseja realizar: "O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência". Como se não bastasse declará-lo, o narrador acrescenta a sensação obrigatória em tais circunstâncias, a de que procurava o impossível, visto que o tempo flui irreversivelmente: "Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui". E sem transição chega ao ponto nevrálgico de suas reflexões:

"Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo".

Observe-se o final: "mas falto eu mesmo e esta lacuna é tudo". Com efeito, o narrador toma consciência de que ele é que se transformou, e por mais que faça para reconstruir o tempo perdido, apenas alcança um arremedo, porquanto a peça principal, que é ele, já não é a mesma. E não é a mesma porque o tempo fluiu e tudo alterou, irrecuperavelmente. "Mudou o Natal ou mudei eu?", indaga Machado no seu soneto, certo de que, se a festividade

mudou, mais ainda mudou ele.

Voltando ao pseudo-autor, depreende-se que a percepção da mudança do próprio "eu" implica a percepção dum tempo esvaído para sempre e independente do relógio: ele pode reaver as marcas externas do tempo (a casa, etc) , não as psicológicas, pois essas, condicionadas que estão a perpétua metamorfose, se negam a retornar. O seu tempo é o interior, o tempo da duração emocional, incomensurável e em permanente devir; por isso confessa: "uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim". Então por que o livro? O narrador responde que o escreveu para acabar com a monotonia e porque" os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contassealguns. Talvez a

narração me desse a ilusão(...)". Mas por onde !. 207

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começar? Diz o narrador: "Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu".49 Há quantos anos? o narrador não nos diz, e na verdade tanto faz, para quem o tempo constitui agora um todo que se vai recompor à medida que ele assenta' 'a mão para alguma obra de maior tomo", e que

o livro se abre aos nossos olhos. Escrevendo, relembrando, o narrador revive em plenitude o tempo perdido, como se antes sua vida fosse estéril e vazia: tornando presente o passado, o pseudo-autor experimenta-o como novo e de novo, recria-o, e torna-se um ser vivente, para si próprio e para o leitor.

Tudo se passa como se, buscando recuperar o tempo perdido, Dom Casmurro vivesse realmente pela primeira vez: sua existência era apenas a lembrança do passado, mas, enquanto não a transpunha no papel, era como se estivesse no limbo. Rememorando, o narrador passa a existir para si e para nós, ao deparar no fluxo da memória com recantos e sensações que havia perdido. No final, ele se via inteiro no livro escrito, imobilizado num tempo interior que era, à uma, sua razão de viver e de entediar-se da vida: no primeiro caso, porque remoia uma obsessão, no segundo, porque sua casa desaparecera e sua vida se esvaziara. Pelo mergulho na memória, o narrador volta ao passado e a uma existência que jamais teve, porque a vida lembrada é outra, diferente da vida vivida: o que ele, afinal, recupera é osentimento impresso inconsciente por sua vida pregressa, e não os fatos. Estes, como sempre, pouco ou nada lhe importarão, mesmo porque não pode ter certeza deles: os acontecimentos desaparecem, e só fica sua ressonância na memória. E se essa ressonância é umarep res en ta çã o , umslmbolo, ainda é preciso

juntar que se trata duma deformação: quando o narrador se lembra, hoje, agrega o seu estado psicológico atual às reminiscências. No final, não se recupera o tempo, mas a sua impressão na

memória, embora deformada. Outro caminho não há para quem se recorda: a transmissão (escrita ou oral) dum fato enquanto ocorre é ainda uma forma de transmutação, pois sempre se transmitedepois, em razão de a nossa mente operar um afastamento temporal do fato, tornando-o passado, para poder comunicá-lo. De qualquer modo, o narrador só possui, como evidência do pretérito, as imagens estocadas na memória: desenterrá-las significa-lhe entrar a viver como nunca antes, mesmo quando experimentara as sensações que acompanharam

49 Idem, ibide11{, pp. 24, 25, 26. 208 os acontecimentos passados. É o que faz Dom Casmurro, abandonando o tempo do calendário, e imergindo num passado logo tomado presente à memória e ao leitor, um témpo-duração.

A partir do terceiro capítulo, põe-se o narrador a contar sua história. O mais natural seria que o fizesse linearmente, obedecendo ao princípio clássico do começo, meio e fim, portanto, num andamento marcado pelo tempo do calendário. Mas não é o que acontece: à primeira vista, tem-se a impressão de que a história se desenvolve em linha reta; entretanto, quando atentamos para o plano interno da narrativa, percebemos que a progressão se opera em ondas e não em linha, em quadros justapostos e não encadeados. Com efeito, as tomadas cinematográficas que formam o romance desrespeitam a noção de causalidade, que preside à compo- sição do romance de tempo histórico. Sendo baseada na memória, a fabulação se constrói por acúmulo de cenas mais ou menos ao sabor do acaso, em que o "antes" e o "depois" dizem mais respeito à ordem de colocação dentro do romance que à ordem temporal dos acontecimentos. Essa técnica, que recebe o nome de

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time-shifi (mudança de tempo), consiste em o "escritor não descrever ou sumariar para o leitor eventos

ocorridos nos intervalos entre as cenas". Por isso' 'toda ação é apresentada como acontecendo; nada é referido como tendo acontecido", e "o livro consiste quase exclusivamente de cenas ou ocorrências, apresentadas sem introdução ou referência à sua relação cronológica com as precedentes ou subseqüentes cenas. Este é o verdadeirotime -shifi, que enfatiza o efeito de todas as partes como um presente, não como relacionadas ao passado ou ao futuro". 50

Desse modo procede o narrador a partir do terceiro capítulo: sem transição, o pseudo-autor nos diz o seguinte: "Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta".51 Não nos impressionemos com a forma verbal pretérita: tudo é presente, para o narrador e para o leitor. Mas como o primeiro pretende dar a impressão de que relata sucessos do passado, acaba optando pelo correspondente tempo de verbo. Diga-se de passagem que somente no romance moderno se emprega o presente verbal para designar uma ação que se desenrola à frente do leitor enquanto vai acontecendo, não como tendo acontecido. Machado de Assis nos oferece também a ilusão de que os fatos se passam à

MI 50 A. A. Mcndilow, op. cit., p. 182. ~I 209 medida que a leitura progride: nesse caso, o emprego do pretérito não tem maior significado, visto que o leitor imediatamente acede à presentividade dos acontecimentos e esquece o tempo verbal escolhido pelo ficcionista para os referir. Nem deve desconcertar que ele nos informe logo à entrada do capítulo que" o ano era de 1857"; trata-se duma irrelevante notação cronológica, pois tanto os fatos poderiam dar-se naquele ano como

antes ou depois, que não fariam a menor diferença na memória de Dom Casmurro.

E como a ação pouco interessa em tal gênero de romance, nesse mesmo capítulo ficamos sabendo o essencial dela: que D. Glória sonha com ver Bentinho de batina, e que ele e Capitu andam "em segredinhos, sempre juntos". Daí para a frente, até o epílogo, os capítulos vão-se aglutinando segundo a técnica dotime -

shifi. Os capítulos seguintes servem ao romancista para "situar" as demais personagens, numa seqüência imposta pela memória, e não por qualquer razão de natureza lógica ou de precedência moral ou

social no conjunto dos acontecimentos, que integram o romance: logo de entrada, o agregado, José Dias, que "amava os superlativos"; depois, Tio Cosme, que "era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos"; e D. Glória, mãe do narrador, "ainda bonita e moça", embora contasse "quarenta e dois anos de idade". Como se depreende dessas referências, e mais facilmente ainda da leitura das páginas relacionadas com essas personagens, o narrador lembra-se delas com muita clareza de pormenores. Na verdade, formam uma espécie de cenário humano à história entre Capitu e Bentinho, e porque cenário, o narrador dele se recorda com mais agudeza que de tudo que lhe povoa as reminiscências. Tanto é assim que, à semelhança de outras circunstâncias, o romancista se incumbe de afirmá-lo luminosamente logo depois que termina a digressão: "Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos". Por que insiste em repisar "aquela tarde"? Ele nos responde: "Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia...". 52 Mas, como a imagem o leva a falar de ópera ("A vida é uma ópera"), esta lembra-lhe

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51 Machado de ASsis, D. Casmurro, p. 27. 52 Idem, ibidem, p. 35. 210

wn amigo italiano; o narrador mergulha no passado, e como isso recorda uma história que o amigo contava p~ ilustrar sua afirmação de que" a vida é uma ópera", lá vai..ele resumir a história, completamente longe da tarde de novembro.

Rememorando por ondas e por associacionismo múltiplo e dinâmico, o narrador se afasta do fio das coisas que visa a relatar e deriva para acontecimentos colaterais, ligados ou não às lembranças centrais. Na verdade, recordar é um ato quase integral, na medida em que passamos em revista não só acontecimentos passados mas outros em derredor e correlatos, ao mesmo tempo que as associações do presente atual do narrador desenterram fatos" esquecidos" e nem sempre diretamente vinculados à lembrança dos fatos principais. Assim se explica que sejam momentos, e não uma continuidade, o que a memória capta, e estejam entrelaçados por motivos superiores à vontade de quem lembra e conta, em obediência a uma espécie de lógica pré-psicológica: não é tudo que a memória traz à superfície; ao contrário, seleciona, separa, distingue e classifica, como a buscar uma ordem sem a qual seria o caos, a anarquia, à maneira da linguagem automática dos surrealistas.

A seleção se faz por mecanismo próprio da memória, como se quisesse defender-se contra o delírio ou o destrambelhamento, ou reservar-se dum esvaziamento total. Pela escolha, a memória permite ao romancista invadir determinado setor de reminiscências, que compõem a atmosfera que se deseja exprimir: e elas, por mais alógicas que pareçam, viriam acorrentadas por um parentesco íntimo, dado pela atmosfera comwn em que despontaram e se fixaram na memória individual. Como se o romancista entrasse em transe, a seleção é realizada pela memória, não por ele; caso contrário, o reagrupamento das lembranças, por parte do ficcionista, "em determinado padrão, seria destruir-lhes a qualidade essencial".S3 Realmente, ele despoja-se das coerções e limitações impostas pela consciência para se entregar à libertação do inconsciente por meio da memória associativa, de molde a se transformar num veículo através do qual as reminiscências encontram sua expressão ideal.

Por isso, 1) dá-nos "a impressão de que todas as partes da história se desenrolam, simultaneamente, cada qual com seu próprio andamento e em sua própria direção";54 e 2) estabelece-se uma S3 A. A. Mcndilow, op. cit., p. 211. S4 Idem, ibidem, p. 177. 211 ~contínua troca entre elas, graças ao fato de se corresponderem na memória do ficcionista, e, ainda,

intercâmbio entre o passado lembrado e o presente atual e consciente do narrador. Este último gênero de permuta entre os planos narrativos se patenteia claramente nos passos em que o ficcionista se intromete na história para fazer uma reflexão, dar uma informação de "hoje" ou glosar a lembrança: o brevíssimo capítulo X constitui um comentário à teoria de que" a vida é uma ópera".

E quando se abre o capítulo seguinte, imaginamos erradamente que agora a história vai começar: ao contrário, num outroflash back, o romancista narra uma "história velha; [que] datava de dezesseis anos", para

justificar as lágrimas de D. Glória. E assim outro capítulo se escoa, no processo de imagem-puxa-imagem, lembrança-puxa-lembrança, em leque. Nos vários planos que se articulam, um deles é o da vida interior da personagem no plano da lembrança: Bentinho, quando se dá conta de estar amando Capitu, põe-se a sonhar, fora do tempo, entregue ao seu fluxo emocional, "no

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ar". O êxtase dura o capítulo XIII, cortado por uma voz que o transporta à realidade na entrada do capítulo seguinte: "De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:- Capitu!" Daí por

diante, o vaivém repete-se até o fim, com a ressalva de ir decrescendo à medida que o narrador se aproxima do presente: o tempo, contudo, é o psicológico, estampa-se nas personagens, identifica-se com elas,é elas, enquanto as digressões são contínuas: Prima Justina (capítulo XVI), o Imperador (capítulo XXIX), os olhos de Capitu, etc. No derradeiro, o ficcionista lembra que "ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu",etc.ss Em meio a notações cronológicas desimportantes e recorrentes sempre que o acontecimento é externo e marginal aos protagonistas, surgem observações acerca do tempo- duração ou, ao menos, psicológico.

O narrador remontara até o ano de 1857, mas não dissera a partir de quando, até que no capítulo XXXVIII lá vem a informação precisa: quarenta anos. Portanto, o narrador se coloca em 1897. Já vimos que o tempo decorrido em tão grande hiato não é marcado por peripécias, episódios ou equivalentes, mas por "situações", "atmosferas", lembranças de sentimentos, embora tudo confluindo para explicar o destino casmurro do protagonista-narrador: de todas

55 Macbado'<lc Assis, D. CasmU"O, p. 77. 212 aas situações remotas, ele recorda-se de duas, - das relações com Capitu e da ida ao seminário,- pois delas nasceram toda a alegria e todo o infortúnio que experimentou na vida. Por isso, poucas

coisas rememora com clareza, sobretudo quando se referem a essas duas situações: "Creio que os olhos que lhe deitei... (...) Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente". 56

Em se tratando de Capitu, percebe-se que as suas lembranças se embaralham, se esfumam, não só porque ela sempre fora "oblíqua e dissimulada", como porque a memória não alcança reconstituir nitidamente todos os lances entre os protagonistas, sem comprometer ainda mais a verdade dos fatos. Machado de Assis sur- preende, por intermédio do herói, o caráter vago e difuso da memória, cujo conteúdo chega deformado à consciência do narrador.As dúvidas que acabarão assaltando o leitor e o crítico (houve adultério?, etc.) resultam precisamente desses dois fatores: primeiro, o caráter dissimulado de Capitu, segundo, o fato de ser um romance de memórias anti-históricas, em que a reconstituição do passado, ao contrário das narrativas históricas, se processa independentemente de documentos. O narrador carrega em si o único registro que possuímos dos acontecimentos mencionados no romance: não bastasse a fisionomia subjetiva do registro, constituindo o "narrador suspeito", de que fala Wayne Broth, ainda se deve levar em conta que é por meio da memória, por natureza deformante, que o passado vem à tona.

Por isso, trata-se de um romance de memórias, mas com a aplicação exata dessa faculdade, diametralmente oposto ao romance histórico, que se atém à cronologia linear do relógio e à veracidade dos documentos. Em D. Casmurro, o registro das horas flutua

porque obediente ao ritmo emocional do narrador; e sendo imprecisa a notação temporal, tudo que lhe está intimamente relacionado (o caráter das personagens, a certeza das reações, etc.) também acaba caindo no vago e no incerto. Assim se explica que o narrador

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entrasse" em transe" muitas vezes e deixasse de saber como as coisas haviam ocorrido: claro, ao reconstituir suas reações, o narrador igualmente revela sua personalidade oculta e a incapacidade medular de entender Capitu e de poder atualizar com mais nitidez

56 Idem, ibidem, pp. 94 e 96. 213 certos acontecimentos. Não raro, ao mesmo tempo que lhe atestam a fragilidade como homem e

personagem, suas reações acabam por nos garantir que pouco, afinal, ficamos sabendo da vida de ambos: parece que Machado de Assis fizera-o de propósito, e, para realizá-lo, socorreu-se da memória duma personagem como Bentinho. Atente-se para o seguinte trecho, onde se estampa flagrantemente o grau atingido pela impossível relação entre os protagonistas: falam linguagens diferentes, inconciliáveis como a água e o vinho:

Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mim, e não querendo interrogá-la novamente, entrei a cogitar donde me viriam pancadas, e por quê, e também por que é que seria preso, e quem é que havia d

prender. Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas instituições sociais me envolviam no seu mistério, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir até às dimensões normais, e dar-lhes o movimento do costume. Capitu tomou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graça, bateu-me na cara, sorrindo, e disse:

- Medroso! - Eu? Mas... S7

A tal ponto Machado consegue anotar o fluir ondulante do tempo (e, portanto, dos caracteres) que surpreende um instante sintomático nas relações amorosas das duas personagens quando crianças, fase em que começ~ a experimentar um sentimento ambíguo em relação à passagem dos dias:

As andorinhas vinham agora em sentido contrário, ou não seriam as mesmas. Nós é que éramos os mesmos; ali ficamos, somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades.s8

Observe-se: a afirmação contida em "nós é que éramos os mesmos"- de natureza física, material, em oposição às andorinhas, que poderiam ser as mesmas, fisicamente, ou não,- colide com a notação emocional que se lhe segue, reveladora de que os dois púberes já intuíam a mudança permanente do tempo, fundindo

57 Idem, ibidem,-p: 97. 58 Idem, ibidem, p. 103. 214 presente, passado e futuro num só presente contínuo, inclusive começando a ter "saudades do futuro" , ao modo de Camilo Pessanha. "Meses depois fui para o seminário d~S. José", confidencia

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nos Bentinho. Mas quantos meses? Na verdade, pouco importa, e o ficcionista sabe disso quando não se preocupa com a marcação rigorosa do tempo, e nem poderia fazê-lo em sã consciência, visto escrever um romance de memória: "Vou esgarçando isto com reticências, para dar uma idéia das minhas idéias, que eram assim difusas e confusas; com certeza não dou nada", pois "há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa memória. A vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter a memória fraca seja exatamente não me acudir agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta".59 Aliás, diga-se de passagem, essa fraqueza da memória, que serve como tema ao capítulo LIX, corresponde à aguda consciência que Machado tinha de seus objetivos de romancista: naquele capítulo expõe sua teoria do bom romance ao mesmo tempo que vai escrevendo um, tudo à semelhança dos grandes criadores modernos que refletem acerca do que criam e nos fornecem no próprio corpo da obra o produto de suas reflexões. Embora longa a citação, vale a pena transcrevê-la como índice duma lucidez criativa de rara amplitude em nossa evolução literária:

m t t

Não, não, minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias. A que passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costmnes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com as das que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com suas águas, as suas árvores, o seus altares, e os generais sacam das espadas

as as )S ile IS O 59 Idem, ibidem, pp. 105, 118, 119. 215 que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista. É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.60

Por isso, o tempo vai pingando sem que o narrador precise fazer maiores notações que aquelas referentes a uma certa ordenação exterior dos fatos, mas perfeitamente dispensáveis, visto que tanto faz, no plano da memória, que se tenha passado um momento, um dia ou uma semana. Identificado com as personagens, é nelas que o tempo se mostra em progresso permanente:

Na verdade, Capitu ia crescendo às carreiras, as formas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente, a mesma

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cousa. Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até à cabeça.61 Quanto tempo se esvaiu na história narrada em D. Casmurro? Não sabemos com certeza: só sabemos que

se passaram noventa capítulos, praticamente dois terços do romance, e o narrador volta a dizer que transcorreram quarenta anos, agora entre a morte de seu amigo Manduca e o seu tempo-presente. Por quê? Engano ou confusão da memória, ou porque o ano de 1857 "nunca se me apagou do espírito". Desse modo, a "célebre tarde de novembro" tornouse-lhe eixo de obsessivas reminiscências duma mesma época: sua memória gira num círculo vicioso em torno dos acontecimentos relacionados com aquela data, ponto de partida de todo o seu trágico futuro. Tanto é assim que outros sete capítulos se esgotam até que Bentinho saia do seminário no fim do ano. Quantos anos tinha? "Tinha então pouco mais de dezessete..." Percebendo a desproporção, o narrador acrescenta: "Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase no fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo".

Dezessete anos? Teria entrado com dezesseis no seminário: para narrar o capítulo da vocação religiosa, o romancista estende-se até o capítulo 97 exatamente porque sua duração emocional 60 Idem, ibidem, P.P.# 119-120. 61 Idem, ibidem, pp. 153-154. 216 é maior do que os meses em que Bentinho sofre no seminário. O inverso dar-se-á agora, não só porque menor importante para a memória do narrador como porque é um trecho funesto que se vai seguir: a memória se incumbe de esquecê-lo em favor da suprema obsessão. Capitu-menina e o seminário: Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fin. E mais adiante: Venceu a razão; fui-me aos estudos. Passei os dezoito anos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dous era bacharel em Direito.

Cinco anos voaram e o pseudo-autor resume-os friamente num curto capítulo, o 98. E num galope, inclusive consciente por parte do narrador, os acontecimentos seacu mula m, a preparar o segundo momento do dramade Capitu e Bentinho:

Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março, por sinal que chovia.62 Mas a obsessão machadiana pelo tempo, sobretudo o tempoduração, logo se patenteia no fio de sucessos triviais e irrelevantes, não só em si como no conjunto da história: Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escritas. O pêndulo iria de um lado para outro, mas nenhum sinal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca. Era lua-de-mel, mas . 'Capitu estava um tanto impaciente por descer", dar "sinais exteriores do novo estado". Assim, "tudo corria bem. Ao fim de dous anos de casado, salvo o desgosto grande de não ter um filho, tudo corria bem". O aceleramento prossegue, o tempo vai consumindo inexoravelmente tudo, e o

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ficcionista não se detém: o tempo emocional é que lhe interessa. De repente, num tempo que não pode precisar, o narrador entraa referira amizade entre ele e Capitue Escobar eSancha, o segredo 62 Idem, ibidem, pp. 162, 172-173, 177. 217

das dez libras entre sua mulher e o seu amigo, e o nascimento de um filho: agora a narrativa volta a desenvolver-se com ritmo menos apressado, embora, como sempre, o romancista não se demore em observações supérfluas, para ir diretamente ao ponto:

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, não era aínda gerado; quando acabou era cristão e católico. Este outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequiel, um rapagão bonito, com os seus olhos claros, já inquietos, como se quisessem namorar todas as moças da vizinhança, ou quase todas.

Rápido o nascimento e o crescimento do filho, mas "o resto come-me ainda muitos capítulos; há vidas que os têm menos, e fazem-se ainda assim completas e acabadas". Compreende-se: a duração emocional correspondente aos anos posteriores à primeira infância é mais densa e intensa que a dos cinco anos transcorridos na vida de Ezequiel. Por isso, a narrativa escorre em câmara-lenta, espicha-se, retardada e quase intemporal, e quando se trata dum episódio marginal à ação que vai progredindo lenta mas inflexivelmente, o romancista escreve um capítulo" contado depressa", o 111. Até que começam as imitações de Ezequiel, depois a noite em que Bentinho vai ao teatro sem Capitu e ao voltar encontra Escobar "à porta do corredor". Agora, o tempo do romance estaca, e dura desmedidamente, imerso num fluxo interminável, vago, em que apenas ganha corpo um acontecimento, a morte de Escobar: "estávamos em março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o ano".

É que graças ao acontecimento, Bentinho surpreende em Capitu uma comprometedora reação perante o defunto: o delito toma-se estampado no rosto da heroína, num instante que o narrador não esqueceu jamais. Por isso, "o que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, por ser tão miúdo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizê-lo sem falha nem canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nosso temporais eram agora contínuos e terríveis". O tempo emocional, agora, varia conforme as oscilações de

Bentinho, até que uma idéia fixa se lhe insinua no cérebro; o narrador lembra: "Era noite, e não pude dormir, por mais que a

sacudisse de mim. Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando cuidava não ser mais que uma ou duas horas". 63 Como sempre, é a duração que conta para Machado e, conseqüentemente, para o narrador: vencido pela idéia da morte, Bentinho compra uma substância na farmácia e caminha em visita à casa de

sua mãe, onde passa "uma hora de paz". O raciocínio que se segue 218 I ] )

é imediato: "Cheguei a abrir mão do projeto. Que era preciso para viver?" E Bentinho responde, saudoso de se mesmo e do tempo que se esvaía: "Nunca mais deixar aquela casa, ou prender aquela hora em mim mesmo...". Num fim-de-semana, que se estira na cabeça de Bentinho e ocupa os capítulos 133 a 140, decide-se a situação entre ambos. O resto, já agora irrelevante, e à guisa de apêndice, se narra em breves e rápidas palavras: "Pegamos em nós e fomos para a Europa. (...) tornei ao Brasil (...) Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e sequidão". O tempo, agora não importa e nele Bentinho

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não se demora, pois não deixa marcas em sua memória e em suas emoções. O narrador lembra que realizou várias viagens à Europa, simulando encontrar-se com Capitu e o filho, mas foge de circunstanciá-las, visto serem psicologicamente vazias. Assim, nessa invariável sucessão de dias sempre iguais, os anos correm verti- ginosamente: havendo pouco que narrar, uma vez que o tempo se fizera igual e indistinto depois da separação, o narrador volta ao ponto de partida, ao seu presente-atual. Terá conseguido recuperar o tempo perdido, aspiração que presidiu à narrativa do seu passado? O resultado é melancólico:

Tenho-me feitoes q u ecer. Moro longe e saio pouco. Não é que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do EngenhoNovo, conquanto reproduza a de Matacavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de reflexão que de sentimento.

O regresso no tempo, vinculando-se àquela casa, obrigava-o a reproduzi-las, mas faltava dar a explicação: agora é o momento azado para fazê-lo: Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A

pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo irpara lá, fiz primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal a aroeirae a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabiam de mim. A casuarlna era a mesma que eu deixaraao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar deponto de interrogação; naturalmentepasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum

63 Idem, ibidem, pp. 179, 180-181, 184, 189,206,216,218. 219

pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a SUSSITAR alguma cousa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica. Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução por explicações que dei ao arquiteto, segundo contei em tempo.64

o tempo, sobretudo o psicológico, havia cruzado irreversivelmente por Bentinho: na verdade, ele é que mudara, não a casa e o que nela havia. Alterada substancialmente sua cosmovisão, tudo já não lhe parecia o mesmo.

Terminado o esforço de ligar "as duas pontas da vida", os acontecimentos mais recentes não interessam nada, porque na sua memória deslizaram para a zona das lembranças secundárias e históricas, isto é, destituídas de maior relevo psicológico: Capitu, "creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça". Ezequiel, já homem, vem visitar Bentinho no Engenho Novo. "Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar", e "parecia haver-me deixado na véspera, evocava a meninice, cenas e palavras, a ida para o colégio...". Assim, transcorrem seis meses, e Ezequiel parte para uma viagem científica àGrécia, ao Egito e à Palestina, e onze meses depois, friamente referidos, Ezequiel "morreu de uma febre tifóide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém". E então Bentinho, preso à memória, pergunta porque nenhuma de suas amigas de hoje, "caprichos de pouca dura", lhe "fez esquecer

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a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada".65 Seu tempo mental está irremediavelmente ligado a Capitu, para sempre.

Perto do Coração Selvagem (1944), primeiro romance de Clarice Lispector, exemplifica flagrantemente a

aplicação do tempo psicológico em ficção. Aliás, seus outros romances (OLu stre, 1946, A Cidade Sitiado., 1949, Maçã no Escuro, 1962, A Paixão Segundo G.H., 1964, Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, 1969) revelam igual tendência. Na verdade, a autora representa na atualidade literária brasileira (e mesmo portuguesa) a ficcionista do tempo por excelência: para ela, a preocupação capital do romance

64 Idem, ibidem" pp. 218, 226, 229. 65 Idem, ibidem. pp. 230-231, 232, 233. 220

(e do conto) reside no criar o tempo, criá-lo aglutinado às personagens. Por isso correspondem suas narrativasa reconstruções do mundo não em termos de espaço mas de tempo, como se,captando o fluxo temporal, pudessem surpreender a face oculta dos

seres e da paisagem circundante. Para comprová-lo, basta proceder à análise do tempo em Perto do Coração Selvagem: a tal ponto o tempo e a estrutura do romance formam uma só unidade que se torna impraticável perquirir um sem levar em conta o outro.

A escritora dividiu a narrativa em duas partes: a primeira, composta quase exclusivamente de instantâneos em torno de Joana, a personagem central, explora o tempo psicológico em várias de suas metamorfoses. Já na segunda parte, em conseqüência de seu caráter narrativo (e narrativo só em relação à parte anterior, mas não em relação ao romance linear, de tempo histórico), o tempo adquire ordenação e concretização, que ignora na outra. O andamento dramático, agora transferido para o conflito amoroso entre Joana, Lídia e Otávio, determina a sucessão horizontal do tempo.

Por outro lado, utilizam-se dois planos dinâmicos no transcurso da história: o do presente e o do passado da personagem. O processo para trazer o passado à superfície é o do associacionismo involuntário: cenas do presente e do passado se alternam conforme o próprio fluxo da vida diária e das lembranças despertas por associação. De passagem, vale acentuar que essa técnica rememorativa se afigura mais verossímil que a da busca integral do passado (à Proust e à Machado), a qual opera como se fosse possível à personagem deter o tempo-presente a fim de permitir-se viver a sondagem exclusiva do passado, ou como se pudesse desligar-se do presente, passar-lhe uma esponja, para imergir no passado e vivê-lo em lugar do presente. Assim, a estrutura de Perto do Coração Selvagem lembra um quebra-cabeça: as peças vão-se justapondo não pela

sucessão mas pela adequação no tempo, adequação essa devida a múltiplas e dinâmicas associações. A narrativa avança, e recua continuamente, em especial na primeira parte, até o ponto

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onde todo o passado anterior ao caso passional em foco é trazido à luz. Desse modo, o passado e o presente caminham em ondas concêntricas, até que o primeiro se esgote, e o segundo se transforme no passado mais próximo da ação que se desenrola a partir da segunda parte.

Polifônica, portanto, a estrutura de Perto do Coração Selvagem. Quanto ao ritmo com que se armam os episódios e com que se desenvolve a vida interior das personagens, obedece ao determi 221

nismo, como uma história que se passasse totabnente em pleno reino da duração: o tempo matemático dissipa- se ou empalidece. Quando não, fica patente que constituem duas estanques dimensões temporais: a narradora, ou a personagem, tem consciência de que o tempo emocional jamais corresponde às horas marcadas pelos ponteiros do relógio. E essa consciência mais de uma vez aflora àsuperfície das reflexões ou das sensações. Assim,

se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os ponteiros do relógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo. Ou senão, o mesmo quando não lhe doía nada, se ficava defronte do relógio espiando, o que ela não estava sentindo também era maior que os minutos contados no relógio. Agora, quando acontece uma alegria ou uma raiva, corria para o relógio e observava os segundo em vão.

Outras vezes, sendo a discrepância de sentido inverso, a emoção permanece aquém do tempo histórico: A fazenda também existia naquele mesmo instante e naquele mesmo instante o ponteiro do relógio ia adiante, enquanto a sensação perplexa via-se ultrapassada pelo relógio.! Dentro de si sentiu de novo acumular-se o tempo vivido. Ou, então, trata-se do tempo emocional em si, alheio a comparações explícitas com o relógio: Muitos anos de sua existência gastou-os à janela, olhando as coisas que passavam e as paradas. Mas na verdade não enxergava tanto quanto ouvia dentro de si a vida. Até que, enfim, nasce a indagação acerca do fluir irremediável das horas: Quanto tempo? Por que Joana tinha consciência, como de uma música longínqua, de que tudo continuava a existir e os gritos não eram setas isoladas, mas fimdiam-se no que existia. ........................................................................................................................

Os dois mergulharam em silêncio solitário e calmo. Passaram-se anos talvez. Tudo era límpido como uma estrela eterna e eles pairavam tão quietos que podiam sentir o tempo futuro rolando lúcido dentro de seus corpos com a espessura do longo passado que instante por instante acabavam de viver.66

66 Claricc Lispector, p'erto