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Ivulgacão ou cultura ? Das críticas feitas à nossa Revista, duas há que merecem um breve comen- tário: a do «Diário de Lisboa» (assin. João Gaspar Simões), e a de «Portu- cale», do Porto. «Diário de Lisboa». — Há na local do sr. Dr. João Gaspar Simões as se- guintes duas frases: «esta revista [«Sín- tese»] inclina-se mais para a vulgarisa- ção que para a cultura» e «tal divulgação [das ideias de Freud] está feita em ter- mos bastante còmesinhos». A primeira das frases resulta do con- ceito de cultura que António Sérgio expôs no nosso primeiro número, e que o Dr. Gaspar Simões admite inteira- mente. Ora, o conceito de António Sérgio, para quem a cultura «é uma ginástica espiritual, um trabalho do es- pírito sobre si próprio», é um conceito muito limitado, limitado à ideia de cul- tura em st mesmo, e somente a um as- pecto desta ideia, qual seja o aspecto transcendental, digamos, puramente teó- rico, quási metafísico, da cultura. Se aquela noção de António Sérgio preten- desse ser uma noção concreta, se pre- tendesse abranger a ideia cultura na sua totalidade, a cultura deixaria de ser uma coisa concreta. Equivale tal con- ceito a dizer-se, por exemplo, que «o homem é espírito», quando, na reali- dade, o homem é espírito e matéria, indissoluvelmente ligados no homem enquanto homem vivo e real, e condi- cionados um ao outro. Não há homem vivo e real sem matéria que o nutra e lhe corpo. Da mesma forma, não há cultura (coisa viva e real) sem maté- ria que a nutra. Adoptando este para- lelo, o corpo seria uma parte da cul- tura, a soma de conhecimentos adqui- ridos ; o espírito seria a faculdade ela- boradora desses conhecimentos, a crí- tica. Cultura é a soma dos dois. Mesmo que, sofismando, se tome a parte pelo todo, se confunda cultura e crítica, é evidente que não há crítica sem uma matéria criticável. E que assim, dado o facto X, a introduzir entre nós, antes da crítica é preciso descrever o facto. Um conceito assim tão limitado, como o de António Sérgio, o de Gaspar Simões, o de tantos outros, levar-nos-ia a posi- ções por vezes muito falsas (e na ver- dade, é o que sucede a cada passo). De facto, «imaginemos uma teoria A que negue a validade e a legitimidade de processos do pensamento tradicional. Como criticar esta teona? Utilisando o pensamento tradicional? Não. O único processo seria trenscender a teo- ria posta, e depois criticá-la. Mas par- tir daquilo que ela precisamente nega, para a criticar, é uma posição impossí- vel. No entanto, é o que, realmente, em parte sucede. Ora, nestas círcuns-

Ivulgacão ou cultura - dspace.uevora.ptntese AI, N3, 1939_04.pdf · tica. Cultura é a soma dos dois. Mesmo que, sofismando, se tome a parte pelo todo, se confunda cultura e crítica,

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Ivulgacão ou cultura ? Das críticas feitas à nossa Revista,

duas há que merecem um breve comen­tário: a do «Diário de Lisboa» (assin. João Gaspar Simões), e a de «Portu-cale», do Porto.

«Diário de Lisboa». — Há na local do sr. Dr. João Gaspar Simões as se­guintes duas frases: «esta revista [«Sín­tese»] inclina-se mais para a vulgarisa-ção que para a cultura» e «tal divulgação [das ideias de Freud] está feita em ter­mos bastante còmesinhos».

A primeira das frases resulta do con­ceito de cultura que António Sérgio expôs no nosso primeiro número, e que o Dr. Gaspar Simões admite inteira­mente. Ora, o conceito de António Sérgio, para quem a cultura «é uma ginástica espiritual, um trabalho do es­pírito sobre si próprio», é um conceito muito limitado, limitado à ideia de cul­tura em st mesmo, e somente a um as­pecto desta ideia, qual seja o aspecto transcendental, digamos, puramente teó­rico, quási metafísico, da cultura. Se aquela noção de António Sérgio preten­desse ser uma noção concreta, se pre­tendesse abranger a ideia cultura na sua totalidade, a cultura deixaria de ser uma coisa concreta. Equivale tal con­ceito a dizer-se, por exemplo, que «o homem é espírito», quando, na reali­dade, o homem é espírito e matéria,

indissoluvelmente ligados no homem enquanto homem vivo e real, e condi­cionados um ao outro. Não há homem vivo e real sem matéria que o nutra e lhe dê corpo. Da mesma forma, não há cultura (coisa viva e real) sem maté­ria que a nutra. Adoptando este para­lelo, o corpo seria uma parte da cul­tura, a soma de conhecimentos adqui­ridos ; o espírito seria a faculdade ela­boradora desses conhecimentos, a crí­tica. Cultura é a soma dos dois. Mesmo que, sofismando, se tome a parte pelo todo, se confunda cultura e crítica, é evidente que não há crítica sem uma matéria criticável. E que assim, dado o facto X, a introduzir entre nós, antes da crítica é preciso descrever o facto.

Um conceito assim tão limitado, como o de António Sérgio, o de Gaspar Simões, o de tantos outros, levar-nos-ia a posi­ções por vezes muito falsas (e na ver­dade, é o que sucede a cada passo). De facto, «imaginemos uma teoria A que negue a validade e a legitimidade de processos do pensamento tradicional. Como criticar esta teona? Utilisando o pensamento tradicional? Não. O único processo seria trenscender a teo­ria posta, e depois criticá-la. Mas par­tir daquilo que ela precisamente nega, para a criticar, é uma posição impossí­vel. No entanto, é o que, realmente, em parte sucede. Ora, nestas círcuns-