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IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

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Page 1: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

IWGP - Revigta do

Ingtituto Wigt6rico e GeogTaacutefico de Pirgtcicicaba

Ano XIV - 2007 - ~krneTo LI

==================================~~ Cumprindo a lei municipal n c 60

de 18 de DeZembrc de IQ74 edita ovoiume

Rev(~do nO [4 rJo ano 2007

Apoioi

PreFeibJpo do [V]unidpio de ~iTacicabo e

SecTetcrriCl de Aseacuteiacuteo Cultuml

Coprlght 2007 Il--1GP Todos oS direito reservacJos ao Ii-IGP Impresso no Brmiacutel prinled in Brmil

Nossa Capai

Vista da do Porto

ACltrVoi -=elacirco

DoaJota Ano fvlala fj)lleccedil A~(meln Arte do Capai -Jel~o ()liacuteveir dos Santos

I55N 0103948-2

REVISTA DO INSTITUTO HISTOacuteRICO

INSTITUTO HISTOacuteRICO E lHGPGEOGRAacuteFICO DE PIRACiCABA E GEOGRAacuteFICO DE

DIRETORIA PIRACICABA12006 bull 2008)

Presldenteacute PAULO CELSO BASSETTI SUMAacuteRIO

Vice-Presidente HALDUMONT NOBRE FERRAZ Apresentaccedilatildeo ______________________ 7

i Secretario SERMO DORIZOTIO Memocircria histoacuteria em busca do mundo possival do

2a Secretatilderfa EngenhoUsina Monle Alegre Piracicaba MYRIA MACHADO BOTELHO Neide Marcondes _____________________ 9

1~ Tesolt~elro

FRANCISCO DE A F DE MELLO Quando a fedentiacutena ganho foros de cidadania

2Raimundo Donalo do Prado Ribeiro ______________ 17

Q Tesoureiro FLAVIO RIZZOLO

Nas paacuteginas envelhecidas da Gazeta de Piracicaba o Coleacutegio Orador Piracicabano e a constituIccedilatildeo de seu curriacuteculo no findar do seacuteculo XIX

JOAtildeO UMBERTO NASSIF Edivilson Cardoso Rafaela 35

Diretor do AcclVo

MARLYTHEREZlNH~GPERECIN As origens dos Institutos Histoacutericos e Geograacuteficos no Brasil 10 Suplente Lucy Desjardins Romani __________________ 45

RENATO LEME FERRARI

As ongens da imagem do caipira 2(1 Suplente CEclLlO ELIAS NETTO Luiz Francisco Albuquerque de MiI-nda____________ 51

3 Suplente GILBERTO JUacuteLIO P1ATTQ

Conselho Fiscal 1 ANTONIO ROBERTO D1EHL jlllllllllllllllllilllllllillllililllllllllllll1lilill1IIiII1IIII1IIII1IlII1II1II1III1IIII1III1IIIII1IIIIII1III1II1III1III1IIlII1IIlII1IIIlII1IIlI1iI 2deg CEZAacuteRIO DE C FERRARI Coordenaccedilatildeo Editorial Isabel C DeGaspari 3deg ANfONO H C COCENZA

Diagramaccedilatildeo Jelzo Oliacuteveira dos Santos Suplente Conselho Fiscal Fotos Arquivo do IHGP

ELIAS SALUM Agradecimentos Odila A Franccediloso Rodrigues de Souza JOSEcircANTONIO R DE CM1ARGO Aos Colaboradores Vitor Pires Vencovsky

WALDEtAR ROMANO Luiz Francisco A de Miranda

EDITORACcedilAtildeO E IMPRESSAtildeO GraacutefICa e Editora Oegaspari INSTITUTO HISTOacuteRICO E GEOGRAFICO DE PIRACICABA R Baratildeo de Piradcamiacuterim 1926 CNPJ 508538780001-48foneFax (19) 3433-6748

Rua do Rosaacuterio 781 CEPo 13400-180 Piacuteracicaba-SP - Brasil13416middot150 _ Piracicaba-SP E-mail grnrcadegasparilerracompr Telefone (19) 3434-8811

E-maU ihgpihgporgbr Sita wwwihgporgbr

V Votorantim ICelulose e Papel

PRESENTE RESPONSAacuteVEL FUTURO SUSTENTADO

Impresso em papel coucheacute Starmax 90 91m2

da Votorantim Celulose e Papel - VCP Papel produzido com florestas plantadas de eucalipto

Preservando matas nativas em harmonia com o meio ambiente

Ativiocircaagravees ocirco IHGP em 2007 Quarel1ta a110S ocirce ativiocircaocirce

Em 2007 o lnstilUto Hlsoacuteriacuteco e Geogratildefiacuteco de Piracicaba sob a presidecircncla de Paulo CeLso Basseniacute continuou o trabalho de ofga~ nizaccedilatildeo e idenlificaccedilf30 de seu acervo em especial dos jornais Gazett1 de Piracicaba 3 Jmn21 de Piryic3ba Para tal foi imp8t1an(o a inteishyvenccedilatildeo de est8giacircrios do Curso de Histoacuteria da Unimep Esse trabaltio sera fundamental parti o reinicio d8 digiiaHzaccedilatildeo dos exemplares mais antigos dos dOIs jornais Realizamos tambeacutem o levantamento patrimoshynial do Insliluto provemos algumas reformas em nossas salas e insshytalamos dois computadores em nosSa biblioteca ambos conectados agrave internet que potlern ser utilizados peles pesquisadores

O lHGP apoiou a publicRCcedilatildeo de obras de grande imporlacircncia para a cultura e fi hkl6ria da cidade de Piracicaba Destacamos o lanccedilamento do romance hisloacuterico Enconlro das aguocircs de Marly Therezinha Germano Perdn ediccedilatildeo comemorativa aos 240 anos de fundaccedilatildeo de Piracicaba em parceria com fi Prefeitura MunicipalSecretaria da Accedilatildeo Cultural

O ano representOU o marcO de entrada do Instituo no ITHJndo da rede mundial de computadores com o anccedilamento de nosso sUe (JWwiacutehgporgbr) que disponibiliza uma grande quantidade de inforshymaccedilotildees e docuIl1Emlos a respeito de Piracicaba e regiatildeo O site contem a relaccedilatildeo de publicaccedilotildees do IHGP (livros revislas) e uma exposiccedilatildeo virtual de fotos de Piracicaba

Quanto acirc Revista inrornlamos que olJtivernos o ISSN (lnternatioshynal S1andard Serial Number) junto ao Centro Brasileiro do lSSN do Institushyto Brasileiro de Ciecircncia e Tecnologia - 8ICT Sendo assim nosso perioacutedishyco estaacute agora Indexado ilternadonalrnente como revista c1enlinca

Por fim lembmmos que em 2D07 Q lHGP comemora quashyrenla ocircnos j~ iteacutenda Coslariacute8Hlos ele m8niacutef~s1Ar rossa gratidatildeo e recoflnecUumln3lil(1 )l )(( 8qlGles que conlribllfDnl [fllB sua rnanushyterccedili3oq SBlJ drgtA1hilvlrPBnio comp dire(ln~s OI ~OH10 colRb0nlrlores e assodadm Sern Pi par1idpaccedilBo (ieses Flbnegado$ a histoacuteria de Pishyracicaba talvez natildeo 1u(j~sse ser conhecida

A Diretoria

Memoacuteria Histoacuteria Em Busca 00 Munoo

posslvel 00 Engenhousina Monte Alegre Piracicaba

Neide Marcondes1

RESUMO

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a proprie~ dade rurar piracicabana a antiga Fazenda e depois EligenhoUsiacutena Monte Alegre O ressaltar que estamos em novos tempos estaacute deshymonstrado na desativaccedilatildeo descaracterizaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de parte da propriedade Na aquarela do seacuteculo XIX do artista Miguel Dutra o Miguelzinho denominada A Fazenda na margem esquerda do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 pode-se vishysualizar neste documento iconograacutefico o cenaacuterio de um mundo real que permite rever monumentos e enlorno demonstrando um passado revisitado para um mundo possiacutevel que pode ser resgatado

Palavras-chaves Propriedade Rural Monumento EngenhoUsina Monte Alegre

Patrimoacutenio Passado Revisitado Mundo Possivel

agrave procura do Engenho

Era uma tarde nublada do ano de 2003 quando entatildeo solitaacuteria retomei ao siacutetio da entatildeo Usina Mon~ te Alegre Nada se via bruma e nevoeiro rodeavam a propriedade Mas acaso ali estariam os antigos edi ficioslruinas Adentrei a estrada naquele momento recordando-me de Iatka - O Castelo como cllegar agraves antigas construccedilotildees que laacute natildeo mais se avislavam do bevedere com parapeitos de ferro trabalhado como as tinha vsitado e documentado em 1979 A sensa~ ccedilatildeo de procura parece ter sido a mesma da persona~ gem K assim como a anguacutestia de encontrar aquela cena a degenerada e desfeita que em outros tempos de vida e esplendor eu registrara

1 Professora Livre Docente

e Titular de Histoacuteria e Teoria

da Arte dfl UNESP

Com consciecircncia do passado e visatildeo clara das decisotildees toshymadas satildeo percebidas as mais significativas estruturas no tempo no espaccedilo e na cultura Nem sempre o acervo histoacuterico-artistico recebe interpretaccedilatildeo significativa no meio da populaccedilatildeo que o utiliza eacute raro grupos sociais respeitarem o trabalho acumulado que se encontra numa vila construiacuteda em outros tempos no casa rio e nos espaccedilos das propriedades rurais

A histoacuteria da arquitetura paulista natildeo tem a ressonacircncia da pershynambucana da baiana ou da mineira De modo geral pode-se mesmo notar que a arquitetura rural paulista mereceu de poucos estudiosos uma anaacutelise mais rigorosa e sistemaacutetica Eno setor da arquitetura rushyral desde a mais simples construccedilatildeo secundaacuteria do programa de uma propriedade ateacute as casas-sede que se impotildee a lradicionalidade da construccedilatildeo paulista O monumento eacute inseparaacutevel do meio onde se enshycontra Estudaacute-lo no espaccedilo em que estaacute inserido e analisar a significashyccedilatildeo cultural que adquiriu no decorrer do tempo eacute relacionar arquitetura com o contexto global da cultura

Uma estrutura econocircmica fundamentalmente agraacuteria desenshyvolveu tipos caracteriacutesticos de propriedade rural em diferentes regiotildees do Brasil Essa estrutura inicialmente ligada ao escravismo e depois ao trabalho do colono conferiu ao fazendeiro do centro-oeste paulista caracteriacutesticas definidas

O interesse pelo tema levou-me a um estudo acadecircmico hisshytoacuterico da arquitetura rural sua urbanizaccedilatildeo e trabalho cuja abordagem estaacute contida no tema Fazendas Engenhos e Usinas Piracicaba seacuteshyculo XIX que estaacute documentado e analisado visando aacute publicaccedilatildeo de um livro

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a propriedade rural piracicaba na a antiga fazenda e depois o Engenho Monte Alegre

Cumpre destacar que os engenhos-usinas de Satildeo Paulo foram divididos segundo sua operaccedilatildeo e rendimento Entre os chamados de dupla pressatildeo seca e de maior rendimento foram considerados o Enshygenho Central de Piracicaba o de Monte Alegre o Indaiaacute o da Vila Raffard e o de Lorena

Monte Alegre desenvolveu-se pouco a pouco como engenho usina improvisado com aparelhos das engenhocas mais duas moshyendas Foi comprado dos herdeiros da Fazenda do Marquecircs de Monshyte Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartoacuterio do 1deg Oficio de Piracicaba Registro de Imoacuteveis) em 1887 o Engenho jaacute produzia de 8000 a 10000 arrobas de accediluacutecar

Em 1819 a propriedade do Marquecircs de Monte Alegre Luiz Antocircnio de Souza Barros situada agrave margem esquerda do rio Piracishycaba e aproximadamente a seis quilocircmetros do centro da cidade foi avaliada em 10822$160 contendo toda a vasta terra 24 escravos casa de engenho casa de purgar enzalas monjolo otaria para teshylhas alambique trecircs caldeiras de whe duas rocas dois novilhos dois bois (Piracicaba Antiga volVI sid)

A sociedade formada por Indaleacutecio de Camargo Penteado e Joaquim Rodrigues do Amaral em 1889 com um empreacutestimo bancaacuteshyrio remodela o antigo Engenho Pertenciam entatildeo ao Engenho num

lolal de 2228 hectares 856 hectares de mala 500 hectares plantados de cana 622 hectares prontos para plantar

Para o transporte de cana de fazendas ateacute O Engenho exisshytiam alguns quilocircmetros de estrada de ferro com uma locomotiva e alguns vagotildees A maior parte da cana chegava em grandes carros puxados por seis mulas carregando perto de 1500 quilos do vegetal Monte Alegre era um engenho pequeno em relaccedilatildeo agrave grande extensatildeo de plantaccedilotildees de cana e dos compromissos com os fornecedores

Em 1890 a usina reuacutene as atividades agriacutecolas e industriais forma o seu latifuacutendio aplicando meacutetodos agriacutecolas tradicionais e crianshydo no colono a consciecircncia de fornecedores de cana

Aparece o tipo socIal empreendedor e dominador O usineiro que nada tem a ver com a figura do senhor de engenho ou a do dono de fazenda O usineiro eacute homem da cidade industrial represenfane da burguesia urbana No caso dos engenhos~usinas as famiacutelias trabalhashydoras em sua maiona italianas eram integradas por colonos pagos por peso de cana entregue a administraccedilatildeo natildeo se preocupava com o sisshytema pelo qual eles cultivavam a terra A utilizaccedilatildeo de colonos era uma imposiccedilatildeo do proacuteprio estaacutegio de desenvolvimento da lavoura cana vieira paulista num periacuteodo no qual a mecanizaccedilatildeo agriacutecola era incipiente e mantinha trabalhadores fIXOS nas empresas duranle lodo o ano

Em 1901 a Monle Alegre possuia duas moendas horizontais a vapor trecircs caldeiras geradoras de vapor uma chamineacute de tijolo dois fillros para caldo e xarope duas bombas de ar para os mesmos resshyfriadeiras para massa cozida seis turbinas Five-Uttle uma moenda para accediluacutecar dois alambiques oficina para reparaccedilotildees estrada de fershyro bitola 60 em uma locomotiva e alguns vagotildees

Na terceira deacutecada do seacuteculo XX em 1938 a accedilatildeo do empreshysaacuterio Pedro Morgantl consegue novamente juntar as antigas proprle~ dades que pertenceram ao Senador Vergueiro e ao Brigadeiro luiacutez Antocircnio de Souza em anos da primeira metade do seacuteculo XIX (Elias Netto 2003)

A Usina Monte Alegre ainda no seacuteculo XX (1965) era uma coshymunidade rural organizada com aproximadamente 1709 moradores da proacutepria Usina e 1169 provenientes de outras fazendas do municiacuteshypio Foi formado o bairro de Monte Alegre que contava com condiccedilotildees comunitaacuterias de educaccedilatildeo sauacutede e lazer

Os moradores de Monte Alegre dispunham de pequenas cashysas onde se abrigaram os antigos colonos de casas receacutem constru~ idas de armazeacutens padaria farmaacutecia barbearia torrefaccedilatildeo de cafeacute bar cinema e ateacute mesmo pensatildeo

O Grupo Escolar Marquecircs de Monte Alegre foi inaugurado no dia 7 de fevereiro de 1927 Foi conslruida em 1936 a Capela em homenagem a Satildeo Pedro e em 1937 no alto da colina a Igreja SM Pedro que acompanhava o mesmo estilo da Igreja de Satildeo Frediano de Lucca (Elias Netto 2003 p241) A pintura da Igreja ficou a cargo do entatildeo chamado pintor de paredes Anlocircnio VolpL O artista leve o auxilio de dois pedreiros da Usina

Em 1953 eacute implantada no local uma faacutebrica de papel e celushylose

o impeacuterio Morgantl no entanto entra em decadecircncia Os novos proprietaacuterios em 1981 satildeo da famiacutelia Silva Gordo

(Refinaria Paulista) A partir de 1982 a Usina jaacute incorporada agrave Induacutestria de Pashy

pei Simatildeo SA passa a negociar com a Volorantim Celulose e Papel (VCP) da famiacutelia Ermiacuterio de Moraes Satildeo novos tempos (Elias Netto 2003 p242)

Sim satildeo novos tempos tempos de reflexatildeo que me levaram nesla primeira deacutecada do seacuteculo XXI ii volta do estudo e registro da documentaccedilatildeo da majestosa propriedade rural - Fazenda Engenho Usina Monte Alegre

Aprocura dos edifiacutecios fabris encontrej~os plenamente desashytivados descaracterizados o espaccedilo do comeacutercio farmaacutecia empoacuterio estatildeo em processo de deterioraccedilatildeo

Foi mantida a urbanizaccedilatildeo central com o preacutedio da Escola a casa do Administrador e no alto da colina a Igreja e algumas casas de moradia Assim estaacute hoje o Bairro Monte Alegre mutaccedilotildees e deslruishyccedilotildees arquiteiocircniacutecas e urbaniacutesticas satildeo o sinal dos tempos

Esta reflexatildeo levou~me a investigar a documentaccedilatildeo iconograacuteshyfica e visitar o cataacutelogo de aquarelas do seacuteculo XIX de Miguel Arcanjo Benicio de Assunccedilatildeo Dutra o Miguelzinho calaacutelogo jaacute publicado pelo Museu de Arte de Satildeo Paulo em 1981 com texto de Selembrino Petri

A documentaccedilatildeo iconograacutefica em aquarelas do artista ficou muito tempo no esquecimento mas deixou registrados aspectos da cidade de Satildeo Paulo e do interior paulista do seacuteculo XIX

Miguelzinho nasceu em lIu a 15 de agosto de 1810 e faleceu em Piracicaba a 22 de abril de 1875 Durante 30 anos trabalhou em Piracicaba como ourives pintor escultor muacutesico organista Seu fanashytismo era dedicar-se agrave caridade ao proacuteximo

O aacutelbum Miguel Dura o polieacutedrico arlisa paulista conta com aquarelas que retratam a vida citadina e rural fazendas vilas em estishylo plaacutestico com a poeticidade quase de um naif Entre as de Piracicashyba apresentarepresenta Fazenda na margem esquerda domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 uma aquarela sobre papel medindo 274 em por 445 em

Em cores claras azuis cinzas seacutepia Dcre e branco aacutervores um tanto surrealistas rodeiam a Fazenda com casa~sede casas de colonos paacutetio com sino cercas e estaacutebulos com animais de grande porte Cena piloresca de uma fazenda envolvida por um entorno de rio plantaccedilotildees e montanhas

O programa rural e o partido arquitetotildenico paulista no seacuteculo XIX na regiatildeo de Piracicaba interpretados no texto que daraacute origem a livro sofreram transformaccedilotildees A agroinduacutestria conferiu novas forshymas aos espaccedilos e foi fator determinante na formaccedilatildeo do programa das propriedades As mudanccedilas soacutecio-culturais interferiram e mesmo desativaram o sistema e meios construtivos assim como a funccedilatildeo dos espaccedilos e as soluccedilotildees plaacutesticas das moradas

O cenaacuterio atual exigiacuteu mudanccedilas e transformaccedilotildees no meio ambiente e percebe-se que a memoacuteria regional hIstoacuterica e iconogracircfi~

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

FONTES E REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Arquivo do Estado de Satildeo Paulo AESP

Arquivo Municipal de Satildeo Paulo AMSP

Cacircmara Municipal de Piracicaba CMP

Oficios Diversos 00

Correspondecircncia Oficial CO

Revisla do Arquivo Municipal de Satildeo Paulo RAMSP

Revista Brasileira de Geografia RBG

Revista do Patrimocircnio Histocircriacuteco Artiacutestico Nacional RPHAM

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 2: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

REVISTA DO INSTITUTO HISTOacuteRICO

INSTITUTO HISTOacuteRICO E lHGPGEOGRAacuteFICO DE PIRACiCABA E GEOGRAacuteFICO DE

DIRETORIA PIRACICABA12006 bull 2008)

Presldenteacute PAULO CELSO BASSETTI SUMAacuteRIO

Vice-Presidente HALDUMONT NOBRE FERRAZ Apresentaccedilatildeo ______________________ 7

i Secretario SERMO DORIZOTIO Memocircria histoacuteria em busca do mundo possival do

2a Secretatilderfa EngenhoUsina Monle Alegre Piracicaba MYRIA MACHADO BOTELHO Neide Marcondes _____________________ 9

1~ Tesolt~elro

FRANCISCO DE A F DE MELLO Quando a fedentiacutena ganho foros de cidadania

2Raimundo Donalo do Prado Ribeiro ______________ 17

Q Tesoureiro FLAVIO RIZZOLO

Nas paacuteginas envelhecidas da Gazeta de Piracicaba o Coleacutegio Orador Piracicabano e a constituIccedilatildeo de seu curriacuteculo no findar do seacuteculo XIX

JOAtildeO UMBERTO NASSIF Edivilson Cardoso Rafaela 35

Diretor do AcclVo

MARLYTHEREZlNH~GPERECIN As origens dos Institutos Histoacutericos e Geograacuteficos no Brasil 10 Suplente Lucy Desjardins Romani __________________ 45

RENATO LEME FERRARI

As ongens da imagem do caipira 2(1 Suplente CEclLlO ELIAS NETTO Luiz Francisco Albuquerque de MiI-nda____________ 51

3 Suplente GILBERTO JUacuteLIO P1ATTQ

Conselho Fiscal 1 ANTONIO ROBERTO D1EHL jlllllllllllllllllilllllllillllililllllllllllll1lilill1IIiII1IIII1IIII1IlII1II1II1III1IIII1III1IIIII1IIIIII1III1II1III1III1IIlII1IIlII1IIIlII1IIlI1iI 2deg CEZAacuteRIO DE C FERRARI Coordenaccedilatildeo Editorial Isabel C DeGaspari 3deg ANfONO H C COCENZA

Diagramaccedilatildeo Jelzo Oliacuteveira dos Santos Suplente Conselho Fiscal Fotos Arquivo do IHGP

ELIAS SALUM Agradecimentos Odila A Franccediloso Rodrigues de Souza JOSEcircANTONIO R DE CM1ARGO Aos Colaboradores Vitor Pires Vencovsky

WALDEtAR ROMANO Luiz Francisco A de Miranda

EDITORACcedilAtildeO E IMPRESSAtildeO GraacutefICa e Editora Oegaspari INSTITUTO HISTOacuteRICO E GEOGRAFICO DE PIRACICABA R Baratildeo de Piradcamiacuterim 1926 CNPJ 508538780001-48foneFax (19) 3433-6748

Rua do Rosaacuterio 781 CEPo 13400-180 Piacuteracicaba-SP - Brasil13416middot150 _ Piracicaba-SP E-mail grnrcadegasparilerracompr Telefone (19) 3434-8811

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Ativiocircaagravees ocirco IHGP em 2007 Quarel1ta a110S ocirce ativiocircaocirce

Em 2007 o lnstilUto Hlsoacuteriacuteco e Geogratildefiacuteco de Piracicaba sob a presidecircncla de Paulo CeLso Basseniacute continuou o trabalho de ofga~ nizaccedilatildeo e idenlificaccedilf30 de seu acervo em especial dos jornais Gazett1 de Piracicaba 3 Jmn21 de Piryic3ba Para tal foi imp8t1an(o a inteishyvenccedilatildeo de est8giacircrios do Curso de Histoacuteria da Unimep Esse trabaltio sera fundamental parti o reinicio d8 digiiaHzaccedilatildeo dos exemplares mais antigos dos dOIs jornais Realizamos tambeacutem o levantamento patrimoshynial do Insliluto provemos algumas reformas em nossas salas e insshytalamos dois computadores em nosSa biblioteca ambos conectados agrave internet que potlern ser utilizados peles pesquisadores

O lHGP apoiou a publicRCcedilatildeo de obras de grande imporlacircncia para a cultura e fi hkl6ria da cidade de Piracicaba Destacamos o lanccedilamento do romance hisloacuterico Enconlro das aguocircs de Marly Therezinha Germano Perdn ediccedilatildeo comemorativa aos 240 anos de fundaccedilatildeo de Piracicaba em parceria com fi Prefeitura MunicipalSecretaria da Accedilatildeo Cultural

O ano representOU o marcO de entrada do Instituo no ITHJndo da rede mundial de computadores com o anccedilamento de nosso sUe (JWwiacutehgporgbr) que disponibiliza uma grande quantidade de inforshymaccedilotildees e docuIl1Emlos a respeito de Piracicaba e regiatildeo O site contem a relaccedilatildeo de publicaccedilotildees do IHGP (livros revislas) e uma exposiccedilatildeo virtual de fotos de Piracicaba

Quanto acirc Revista inrornlamos que olJtivernos o ISSN (lnternatioshynal S1andard Serial Number) junto ao Centro Brasileiro do lSSN do Institushyto Brasileiro de Ciecircncia e Tecnologia - 8ICT Sendo assim nosso perioacutedishyco estaacute agora Indexado ilternadonalrnente como revista c1enlinca

Por fim lembmmos que em 2D07 Q lHGP comemora quashyrenla ocircnos j~ iteacutenda Coslariacute8Hlos ele m8niacutef~s1Ar rossa gratidatildeo e recoflnecUumln3lil(1 )l )(( 8qlGles que conlribllfDnl [fllB sua rnanushyterccedili3oq SBlJ drgtA1hilvlrPBnio comp dire(ln~s OI ~OH10 colRb0nlrlores e assodadm Sern Pi par1idpaccedilBo (ieses Flbnegado$ a histoacuteria de Pishyracicaba talvez natildeo 1u(j~sse ser conhecida

A Diretoria

Memoacuteria Histoacuteria Em Busca 00 Munoo

posslvel 00 Engenhousina Monte Alegre Piracicaba

Neide Marcondes1

RESUMO

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a proprie~ dade rurar piracicabana a antiga Fazenda e depois EligenhoUsiacutena Monte Alegre O ressaltar que estamos em novos tempos estaacute deshymonstrado na desativaccedilatildeo descaracterizaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de parte da propriedade Na aquarela do seacuteculo XIX do artista Miguel Dutra o Miguelzinho denominada A Fazenda na margem esquerda do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 pode-se vishysualizar neste documento iconograacutefico o cenaacuterio de um mundo real que permite rever monumentos e enlorno demonstrando um passado revisitado para um mundo possiacutevel que pode ser resgatado

Palavras-chaves Propriedade Rural Monumento EngenhoUsina Monte Alegre

Patrimoacutenio Passado Revisitado Mundo Possivel

agrave procura do Engenho

Era uma tarde nublada do ano de 2003 quando entatildeo solitaacuteria retomei ao siacutetio da entatildeo Usina Mon~ te Alegre Nada se via bruma e nevoeiro rodeavam a propriedade Mas acaso ali estariam os antigos edi ficioslruinas Adentrei a estrada naquele momento recordando-me de Iatka - O Castelo como cllegar agraves antigas construccedilotildees que laacute natildeo mais se avislavam do bevedere com parapeitos de ferro trabalhado como as tinha vsitado e documentado em 1979 A sensa~ ccedilatildeo de procura parece ter sido a mesma da persona~ gem K assim como a anguacutestia de encontrar aquela cena a degenerada e desfeita que em outros tempos de vida e esplendor eu registrara

1 Professora Livre Docente

e Titular de Histoacuteria e Teoria

da Arte dfl UNESP

Com consciecircncia do passado e visatildeo clara das decisotildees toshymadas satildeo percebidas as mais significativas estruturas no tempo no espaccedilo e na cultura Nem sempre o acervo histoacuterico-artistico recebe interpretaccedilatildeo significativa no meio da populaccedilatildeo que o utiliza eacute raro grupos sociais respeitarem o trabalho acumulado que se encontra numa vila construiacuteda em outros tempos no casa rio e nos espaccedilos das propriedades rurais

A histoacuteria da arquitetura paulista natildeo tem a ressonacircncia da pershynambucana da baiana ou da mineira De modo geral pode-se mesmo notar que a arquitetura rural paulista mereceu de poucos estudiosos uma anaacutelise mais rigorosa e sistemaacutetica Eno setor da arquitetura rushyral desde a mais simples construccedilatildeo secundaacuteria do programa de uma propriedade ateacute as casas-sede que se impotildee a lradicionalidade da construccedilatildeo paulista O monumento eacute inseparaacutevel do meio onde se enshycontra Estudaacute-lo no espaccedilo em que estaacute inserido e analisar a significashyccedilatildeo cultural que adquiriu no decorrer do tempo eacute relacionar arquitetura com o contexto global da cultura

Uma estrutura econocircmica fundamentalmente agraacuteria desenshyvolveu tipos caracteriacutesticos de propriedade rural em diferentes regiotildees do Brasil Essa estrutura inicialmente ligada ao escravismo e depois ao trabalho do colono conferiu ao fazendeiro do centro-oeste paulista caracteriacutesticas definidas

O interesse pelo tema levou-me a um estudo acadecircmico hisshytoacuterico da arquitetura rural sua urbanizaccedilatildeo e trabalho cuja abordagem estaacute contida no tema Fazendas Engenhos e Usinas Piracicaba seacuteshyculo XIX que estaacute documentado e analisado visando aacute publicaccedilatildeo de um livro

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a propriedade rural piracicaba na a antiga fazenda e depois o Engenho Monte Alegre

Cumpre destacar que os engenhos-usinas de Satildeo Paulo foram divididos segundo sua operaccedilatildeo e rendimento Entre os chamados de dupla pressatildeo seca e de maior rendimento foram considerados o Enshygenho Central de Piracicaba o de Monte Alegre o Indaiaacute o da Vila Raffard e o de Lorena

Monte Alegre desenvolveu-se pouco a pouco como engenho usina improvisado com aparelhos das engenhocas mais duas moshyendas Foi comprado dos herdeiros da Fazenda do Marquecircs de Monshyte Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartoacuterio do 1deg Oficio de Piracicaba Registro de Imoacuteveis) em 1887 o Engenho jaacute produzia de 8000 a 10000 arrobas de accediluacutecar

Em 1819 a propriedade do Marquecircs de Monte Alegre Luiz Antocircnio de Souza Barros situada agrave margem esquerda do rio Piracishycaba e aproximadamente a seis quilocircmetros do centro da cidade foi avaliada em 10822$160 contendo toda a vasta terra 24 escravos casa de engenho casa de purgar enzalas monjolo otaria para teshylhas alambique trecircs caldeiras de whe duas rocas dois novilhos dois bois (Piracicaba Antiga volVI sid)

A sociedade formada por Indaleacutecio de Camargo Penteado e Joaquim Rodrigues do Amaral em 1889 com um empreacutestimo bancaacuteshyrio remodela o antigo Engenho Pertenciam entatildeo ao Engenho num

lolal de 2228 hectares 856 hectares de mala 500 hectares plantados de cana 622 hectares prontos para plantar

Para o transporte de cana de fazendas ateacute O Engenho exisshytiam alguns quilocircmetros de estrada de ferro com uma locomotiva e alguns vagotildees A maior parte da cana chegava em grandes carros puxados por seis mulas carregando perto de 1500 quilos do vegetal Monte Alegre era um engenho pequeno em relaccedilatildeo agrave grande extensatildeo de plantaccedilotildees de cana e dos compromissos com os fornecedores

Em 1890 a usina reuacutene as atividades agriacutecolas e industriais forma o seu latifuacutendio aplicando meacutetodos agriacutecolas tradicionais e crianshydo no colono a consciecircncia de fornecedores de cana

Aparece o tipo socIal empreendedor e dominador O usineiro que nada tem a ver com a figura do senhor de engenho ou a do dono de fazenda O usineiro eacute homem da cidade industrial represenfane da burguesia urbana No caso dos engenhos~usinas as famiacutelias trabalhashydoras em sua maiona italianas eram integradas por colonos pagos por peso de cana entregue a administraccedilatildeo natildeo se preocupava com o sisshytema pelo qual eles cultivavam a terra A utilizaccedilatildeo de colonos era uma imposiccedilatildeo do proacuteprio estaacutegio de desenvolvimento da lavoura cana vieira paulista num periacuteodo no qual a mecanizaccedilatildeo agriacutecola era incipiente e mantinha trabalhadores fIXOS nas empresas duranle lodo o ano

Em 1901 a Monle Alegre possuia duas moendas horizontais a vapor trecircs caldeiras geradoras de vapor uma chamineacute de tijolo dois fillros para caldo e xarope duas bombas de ar para os mesmos resshyfriadeiras para massa cozida seis turbinas Five-Uttle uma moenda para accediluacutecar dois alambiques oficina para reparaccedilotildees estrada de fershyro bitola 60 em uma locomotiva e alguns vagotildees

Na terceira deacutecada do seacuteculo XX em 1938 a accedilatildeo do empreshysaacuterio Pedro Morgantl consegue novamente juntar as antigas proprle~ dades que pertenceram ao Senador Vergueiro e ao Brigadeiro luiacutez Antocircnio de Souza em anos da primeira metade do seacuteculo XIX (Elias Netto 2003)

A Usina Monte Alegre ainda no seacuteculo XX (1965) era uma coshymunidade rural organizada com aproximadamente 1709 moradores da proacutepria Usina e 1169 provenientes de outras fazendas do municiacuteshypio Foi formado o bairro de Monte Alegre que contava com condiccedilotildees comunitaacuterias de educaccedilatildeo sauacutede e lazer

Os moradores de Monte Alegre dispunham de pequenas cashysas onde se abrigaram os antigos colonos de casas receacutem constru~ idas de armazeacutens padaria farmaacutecia barbearia torrefaccedilatildeo de cafeacute bar cinema e ateacute mesmo pensatildeo

O Grupo Escolar Marquecircs de Monte Alegre foi inaugurado no dia 7 de fevereiro de 1927 Foi conslruida em 1936 a Capela em homenagem a Satildeo Pedro e em 1937 no alto da colina a Igreja SM Pedro que acompanhava o mesmo estilo da Igreja de Satildeo Frediano de Lucca (Elias Netto 2003 p241) A pintura da Igreja ficou a cargo do entatildeo chamado pintor de paredes Anlocircnio VolpL O artista leve o auxilio de dois pedreiros da Usina

Em 1953 eacute implantada no local uma faacutebrica de papel e celushylose

o impeacuterio Morgantl no entanto entra em decadecircncia Os novos proprietaacuterios em 1981 satildeo da famiacutelia Silva Gordo

(Refinaria Paulista) A partir de 1982 a Usina jaacute incorporada agrave Induacutestria de Pashy

pei Simatildeo SA passa a negociar com a Volorantim Celulose e Papel (VCP) da famiacutelia Ermiacuterio de Moraes Satildeo novos tempos (Elias Netto 2003 p242)

Sim satildeo novos tempos tempos de reflexatildeo que me levaram nesla primeira deacutecada do seacuteculo XXI ii volta do estudo e registro da documentaccedilatildeo da majestosa propriedade rural - Fazenda Engenho Usina Monte Alegre

Aprocura dos edifiacutecios fabris encontrej~os plenamente desashytivados descaracterizados o espaccedilo do comeacutercio farmaacutecia empoacuterio estatildeo em processo de deterioraccedilatildeo

Foi mantida a urbanizaccedilatildeo central com o preacutedio da Escola a casa do Administrador e no alto da colina a Igreja e algumas casas de moradia Assim estaacute hoje o Bairro Monte Alegre mutaccedilotildees e deslruishyccedilotildees arquiteiocircniacutecas e urbaniacutesticas satildeo o sinal dos tempos

Esta reflexatildeo levou~me a investigar a documentaccedilatildeo iconograacuteshyfica e visitar o cataacutelogo de aquarelas do seacuteculo XIX de Miguel Arcanjo Benicio de Assunccedilatildeo Dutra o Miguelzinho calaacutelogo jaacute publicado pelo Museu de Arte de Satildeo Paulo em 1981 com texto de Selembrino Petri

A documentaccedilatildeo iconograacutefica em aquarelas do artista ficou muito tempo no esquecimento mas deixou registrados aspectos da cidade de Satildeo Paulo e do interior paulista do seacuteculo XIX

Miguelzinho nasceu em lIu a 15 de agosto de 1810 e faleceu em Piracicaba a 22 de abril de 1875 Durante 30 anos trabalhou em Piracicaba como ourives pintor escultor muacutesico organista Seu fanashytismo era dedicar-se agrave caridade ao proacuteximo

O aacutelbum Miguel Dura o polieacutedrico arlisa paulista conta com aquarelas que retratam a vida citadina e rural fazendas vilas em estishylo plaacutestico com a poeticidade quase de um naif Entre as de Piracicashyba apresentarepresenta Fazenda na margem esquerda domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 uma aquarela sobre papel medindo 274 em por 445 em

Em cores claras azuis cinzas seacutepia Dcre e branco aacutervores um tanto surrealistas rodeiam a Fazenda com casa~sede casas de colonos paacutetio com sino cercas e estaacutebulos com animais de grande porte Cena piloresca de uma fazenda envolvida por um entorno de rio plantaccedilotildees e montanhas

O programa rural e o partido arquitetotildenico paulista no seacuteculo XIX na regiatildeo de Piracicaba interpretados no texto que daraacute origem a livro sofreram transformaccedilotildees A agroinduacutestria conferiu novas forshymas aos espaccedilos e foi fator determinante na formaccedilatildeo do programa das propriedades As mudanccedilas soacutecio-culturais interferiram e mesmo desativaram o sistema e meios construtivos assim como a funccedilatildeo dos espaccedilos e as soluccedilotildees plaacutesticas das moradas

O cenaacuterio atual exigiacuteu mudanccedilas e transformaccedilotildees no meio ambiente e percebe-se que a memoacuteria regional hIstoacuterica e iconogracircfi~

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 3: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

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Ativiocircaagravees ocirco IHGP em 2007 Quarel1ta a110S ocirce ativiocircaocirce

Em 2007 o lnstilUto Hlsoacuteriacuteco e Geogratildefiacuteco de Piracicaba sob a presidecircncla de Paulo CeLso Basseniacute continuou o trabalho de ofga~ nizaccedilatildeo e idenlificaccedilf30 de seu acervo em especial dos jornais Gazett1 de Piracicaba 3 Jmn21 de Piryic3ba Para tal foi imp8t1an(o a inteishyvenccedilatildeo de est8giacircrios do Curso de Histoacuteria da Unimep Esse trabaltio sera fundamental parti o reinicio d8 digiiaHzaccedilatildeo dos exemplares mais antigos dos dOIs jornais Realizamos tambeacutem o levantamento patrimoshynial do Insliluto provemos algumas reformas em nossas salas e insshytalamos dois computadores em nosSa biblioteca ambos conectados agrave internet que potlern ser utilizados peles pesquisadores

O lHGP apoiou a publicRCcedilatildeo de obras de grande imporlacircncia para a cultura e fi hkl6ria da cidade de Piracicaba Destacamos o lanccedilamento do romance hisloacuterico Enconlro das aguocircs de Marly Therezinha Germano Perdn ediccedilatildeo comemorativa aos 240 anos de fundaccedilatildeo de Piracicaba em parceria com fi Prefeitura MunicipalSecretaria da Accedilatildeo Cultural

O ano representOU o marcO de entrada do Instituo no ITHJndo da rede mundial de computadores com o anccedilamento de nosso sUe (JWwiacutehgporgbr) que disponibiliza uma grande quantidade de inforshymaccedilotildees e docuIl1Emlos a respeito de Piracicaba e regiatildeo O site contem a relaccedilatildeo de publicaccedilotildees do IHGP (livros revislas) e uma exposiccedilatildeo virtual de fotos de Piracicaba

Quanto acirc Revista inrornlamos que olJtivernos o ISSN (lnternatioshynal S1andard Serial Number) junto ao Centro Brasileiro do lSSN do Institushyto Brasileiro de Ciecircncia e Tecnologia - 8ICT Sendo assim nosso perioacutedishyco estaacute agora Indexado ilternadonalrnente como revista c1enlinca

Por fim lembmmos que em 2D07 Q lHGP comemora quashyrenla ocircnos j~ iteacutenda Coslariacute8Hlos ele m8niacutef~s1Ar rossa gratidatildeo e recoflnecUumln3lil(1 )l )(( 8qlGles que conlribllfDnl [fllB sua rnanushyterccedili3oq SBlJ drgtA1hilvlrPBnio comp dire(ln~s OI ~OH10 colRb0nlrlores e assodadm Sern Pi par1idpaccedilBo (ieses Flbnegado$ a histoacuteria de Pishyracicaba talvez natildeo 1u(j~sse ser conhecida

A Diretoria

Memoacuteria Histoacuteria Em Busca 00 Munoo

posslvel 00 Engenhousina Monte Alegre Piracicaba

Neide Marcondes1

RESUMO

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a proprie~ dade rurar piracicabana a antiga Fazenda e depois EligenhoUsiacutena Monte Alegre O ressaltar que estamos em novos tempos estaacute deshymonstrado na desativaccedilatildeo descaracterizaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de parte da propriedade Na aquarela do seacuteculo XIX do artista Miguel Dutra o Miguelzinho denominada A Fazenda na margem esquerda do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 pode-se vishysualizar neste documento iconograacutefico o cenaacuterio de um mundo real que permite rever monumentos e enlorno demonstrando um passado revisitado para um mundo possiacutevel que pode ser resgatado

Palavras-chaves Propriedade Rural Monumento EngenhoUsina Monte Alegre

Patrimoacutenio Passado Revisitado Mundo Possivel

agrave procura do Engenho

Era uma tarde nublada do ano de 2003 quando entatildeo solitaacuteria retomei ao siacutetio da entatildeo Usina Mon~ te Alegre Nada se via bruma e nevoeiro rodeavam a propriedade Mas acaso ali estariam os antigos edi ficioslruinas Adentrei a estrada naquele momento recordando-me de Iatka - O Castelo como cllegar agraves antigas construccedilotildees que laacute natildeo mais se avislavam do bevedere com parapeitos de ferro trabalhado como as tinha vsitado e documentado em 1979 A sensa~ ccedilatildeo de procura parece ter sido a mesma da persona~ gem K assim como a anguacutestia de encontrar aquela cena a degenerada e desfeita que em outros tempos de vida e esplendor eu registrara

1 Professora Livre Docente

e Titular de Histoacuteria e Teoria

da Arte dfl UNESP

Com consciecircncia do passado e visatildeo clara das decisotildees toshymadas satildeo percebidas as mais significativas estruturas no tempo no espaccedilo e na cultura Nem sempre o acervo histoacuterico-artistico recebe interpretaccedilatildeo significativa no meio da populaccedilatildeo que o utiliza eacute raro grupos sociais respeitarem o trabalho acumulado que se encontra numa vila construiacuteda em outros tempos no casa rio e nos espaccedilos das propriedades rurais

A histoacuteria da arquitetura paulista natildeo tem a ressonacircncia da pershynambucana da baiana ou da mineira De modo geral pode-se mesmo notar que a arquitetura rural paulista mereceu de poucos estudiosos uma anaacutelise mais rigorosa e sistemaacutetica Eno setor da arquitetura rushyral desde a mais simples construccedilatildeo secundaacuteria do programa de uma propriedade ateacute as casas-sede que se impotildee a lradicionalidade da construccedilatildeo paulista O monumento eacute inseparaacutevel do meio onde se enshycontra Estudaacute-lo no espaccedilo em que estaacute inserido e analisar a significashyccedilatildeo cultural que adquiriu no decorrer do tempo eacute relacionar arquitetura com o contexto global da cultura

Uma estrutura econocircmica fundamentalmente agraacuteria desenshyvolveu tipos caracteriacutesticos de propriedade rural em diferentes regiotildees do Brasil Essa estrutura inicialmente ligada ao escravismo e depois ao trabalho do colono conferiu ao fazendeiro do centro-oeste paulista caracteriacutesticas definidas

O interesse pelo tema levou-me a um estudo acadecircmico hisshytoacuterico da arquitetura rural sua urbanizaccedilatildeo e trabalho cuja abordagem estaacute contida no tema Fazendas Engenhos e Usinas Piracicaba seacuteshyculo XIX que estaacute documentado e analisado visando aacute publicaccedilatildeo de um livro

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a propriedade rural piracicaba na a antiga fazenda e depois o Engenho Monte Alegre

Cumpre destacar que os engenhos-usinas de Satildeo Paulo foram divididos segundo sua operaccedilatildeo e rendimento Entre os chamados de dupla pressatildeo seca e de maior rendimento foram considerados o Enshygenho Central de Piracicaba o de Monte Alegre o Indaiaacute o da Vila Raffard e o de Lorena

Monte Alegre desenvolveu-se pouco a pouco como engenho usina improvisado com aparelhos das engenhocas mais duas moshyendas Foi comprado dos herdeiros da Fazenda do Marquecircs de Monshyte Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartoacuterio do 1deg Oficio de Piracicaba Registro de Imoacuteveis) em 1887 o Engenho jaacute produzia de 8000 a 10000 arrobas de accediluacutecar

Em 1819 a propriedade do Marquecircs de Monte Alegre Luiz Antocircnio de Souza Barros situada agrave margem esquerda do rio Piracishycaba e aproximadamente a seis quilocircmetros do centro da cidade foi avaliada em 10822$160 contendo toda a vasta terra 24 escravos casa de engenho casa de purgar enzalas monjolo otaria para teshylhas alambique trecircs caldeiras de whe duas rocas dois novilhos dois bois (Piracicaba Antiga volVI sid)

A sociedade formada por Indaleacutecio de Camargo Penteado e Joaquim Rodrigues do Amaral em 1889 com um empreacutestimo bancaacuteshyrio remodela o antigo Engenho Pertenciam entatildeo ao Engenho num

lolal de 2228 hectares 856 hectares de mala 500 hectares plantados de cana 622 hectares prontos para plantar

Para o transporte de cana de fazendas ateacute O Engenho exisshytiam alguns quilocircmetros de estrada de ferro com uma locomotiva e alguns vagotildees A maior parte da cana chegava em grandes carros puxados por seis mulas carregando perto de 1500 quilos do vegetal Monte Alegre era um engenho pequeno em relaccedilatildeo agrave grande extensatildeo de plantaccedilotildees de cana e dos compromissos com os fornecedores

Em 1890 a usina reuacutene as atividades agriacutecolas e industriais forma o seu latifuacutendio aplicando meacutetodos agriacutecolas tradicionais e crianshydo no colono a consciecircncia de fornecedores de cana

Aparece o tipo socIal empreendedor e dominador O usineiro que nada tem a ver com a figura do senhor de engenho ou a do dono de fazenda O usineiro eacute homem da cidade industrial represenfane da burguesia urbana No caso dos engenhos~usinas as famiacutelias trabalhashydoras em sua maiona italianas eram integradas por colonos pagos por peso de cana entregue a administraccedilatildeo natildeo se preocupava com o sisshytema pelo qual eles cultivavam a terra A utilizaccedilatildeo de colonos era uma imposiccedilatildeo do proacuteprio estaacutegio de desenvolvimento da lavoura cana vieira paulista num periacuteodo no qual a mecanizaccedilatildeo agriacutecola era incipiente e mantinha trabalhadores fIXOS nas empresas duranle lodo o ano

Em 1901 a Monle Alegre possuia duas moendas horizontais a vapor trecircs caldeiras geradoras de vapor uma chamineacute de tijolo dois fillros para caldo e xarope duas bombas de ar para os mesmos resshyfriadeiras para massa cozida seis turbinas Five-Uttle uma moenda para accediluacutecar dois alambiques oficina para reparaccedilotildees estrada de fershyro bitola 60 em uma locomotiva e alguns vagotildees

Na terceira deacutecada do seacuteculo XX em 1938 a accedilatildeo do empreshysaacuterio Pedro Morgantl consegue novamente juntar as antigas proprle~ dades que pertenceram ao Senador Vergueiro e ao Brigadeiro luiacutez Antocircnio de Souza em anos da primeira metade do seacuteculo XIX (Elias Netto 2003)

A Usina Monte Alegre ainda no seacuteculo XX (1965) era uma coshymunidade rural organizada com aproximadamente 1709 moradores da proacutepria Usina e 1169 provenientes de outras fazendas do municiacuteshypio Foi formado o bairro de Monte Alegre que contava com condiccedilotildees comunitaacuterias de educaccedilatildeo sauacutede e lazer

Os moradores de Monte Alegre dispunham de pequenas cashysas onde se abrigaram os antigos colonos de casas receacutem constru~ idas de armazeacutens padaria farmaacutecia barbearia torrefaccedilatildeo de cafeacute bar cinema e ateacute mesmo pensatildeo

O Grupo Escolar Marquecircs de Monte Alegre foi inaugurado no dia 7 de fevereiro de 1927 Foi conslruida em 1936 a Capela em homenagem a Satildeo Pedro e em 1937 no alto da colina a Igreja SM Pedro que acompanhava o mesmo estilo da Igreja de Satildeo Frediano de Lucca (Elias Netto 2003 p241) A pintura da Igreja ficou a cargo do entatildeo chamado pintor de paredes Anlocircnio VolpL O artista leve o auxilio de dois pedreiros da Usina

Em 1953 eacute implantada no local uma faacutebrica de papel e celushylose

o impeacuterio Morgantl no entanto entra em decadecircncia Os novos proprietaacuterios em 1981 satildeo da famiacutelia Silva Gordo

(Refinaria Paulista) A partir de 1982 a Usina jaacute incorporada agrave Induacutestria de Pashy

pei Simatildeo SA passa a negociar com a Volorantim Celulose e Papel (VCP) da famiacutelia Ermiacuterio de Moraes Satildeo novos tempos (Elias Netto 2003 p242)

Sim satildeo novos tempos tempos de reflexatildeo que me levaram nesla primeira deacutecada do seacuteculo XXI ii volta do estudo e registro da documentaccedilatildeo da majestosa propriedade rural - Fazenda Engenho Usina Monte Alegre

Aprocura dos edifiacutecios fabris encontrej~os plenamente desashytivados descaracterizados o espaccedilo do comeacutercio farmaacutecia empoacuterio estatildeo em processo de deterioraccedilatildeo

Foi mantida a urbanizaccedilatildeo central com o preacutedio da Escola a casa do Administrador e no alto da colina a Igreja e algumas casas de moradia Assim estaacute hoje o Bairro Monte Alegre mutaccedilotildees e deslruishyccedilotildees arquiteiocircniacutecas e urbaniacutesticas satildeo o sinal dos tempos

Esta reflexatildeo levou~me a investigar a documentaccedilatildeo iconograacuteshyfica e visitar o cataacutelogo de aquarelas do seacuteculo XIX de Miguel Arcanjo Benicio de Assunccedilatildeo Dutra o Miguelzinho calaacutelogo jaacute publicado pelo Museu de Arte de Satildeo Paulo em 1981 com texto de Selembrino Petri

A documentaccedilatildeo iconograacutefica em aquarelas do artista ficou muito tempo no esquecimento mas deixou registrados aspectos da cidade de Satildeo Paulo e do interior paulista do seacuteculo XIX

Miguelzinho nasceu em lIu a 15 de agosto de 1810 e faleceu em Piracicaba a 22 de abril de 1875 Durante 30 anos trabalhou em Piracicaba como ourives pintor escultor muacutesico organista Seu fanashytismo era dedicar-se agrave caridade ao proacuteximo

O aacutelbum Miguel Dura o polieacutedrico arlisa paulista conta com aquarelas que retratam a vida citadina e rural fazendas vilas em estishylo plaacutestico com a poeticidade quase de um naif Entre as de Piracicashyba apresentarepresenta Fazenda na margem esquerda domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 uma aquarela sobre papel medindo 274 em por 445 em

Em cores claras azuis cinzas seacutepia Dcre e branco aacutervores um tanto surrealistas rodeiam a Fazenda com casa~sede casas de colonos paacutetio com sino cercas e estaacutebulos com animais de grande porte Cena piloresca de uma fazenda envolvida por um entorno de rio plantaccedilotildees e montanhas

O programa rural e o partido arquitetotildenico paulista no seacuteculo XIX na regiatildeo de Piracicaba interpretados no texto que daraacute origem a livro sofreram transformaccedilotildees A agroinduacutestria conferiu novas forshymas aos espaccedilos e foi fator determinante na formaccedilatildeo do programa das propriedades As mudanccedilas soacutecio-culturais interferiram e mesmo desativaram o sistema e meios construtivos assim como a funccedilatildeo dos espaccedilos e as soluccedilotildees plaacutesticas das moradas

O cenaacuterio atual exigiacuteu mudanccedilas e transformaccedilotildees no meio ambiente e percebe-se que a memoacuteria regional hIstoacuterica e iconogracircfi~

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

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chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

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8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 4: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Ativiocircaagravees ocirco IHGP em 2007 Quarel1ta a110S ocirce ativiocircaocirce

Em 2007 o lnstilUto Hlsoacuteriacuteco e Geogratildefiacuteco de Piracicaba sob a presidecircncla de Paulo CeLso Basseniacute continuou o trabalho de ofga~ nizaccedilatildeo e idenlificaccedilf30 de seu acervo em especial dos jornais Gazett1 de Piracicaba 3 Jmn21 de Piryic3ba Para tal foi imp8t1an(o a inteishyvenccedilatildeo de est8giacircrios do Curso de Histoacuteria da Unimep Esse trabaltio sera fundamental parti o reinicio d8 digiiaHzaccedilatildeo dos exemplares mais antigos dos dOIs jornais Realizamos tambeacutem o levantamento patrimoshynial do Insliluto provemos algumas reformas em nossas salas e insshytalamos dois computadores em nosSa biblioteca ambos conectados agrave internet que potlern ser utilizados peles pesquisadores

O lHGP apoiou a publicRCcedilatildeo de obras de grande imporlacircncia para a cultura e fi hkl6ria da cidade de Piracicaba Destacamos o lanccedilamento do romance hisloacuterico Enconlro das aguocircs de Marly Therezinha Germano Perdn ediccedilatildeo comemorativa aos 240 anos de fundaccedilatildeo de Piracicaba em parceria com fi Prefeitura MunicipalSecretaria da Accedilatildeo Cultural

O ano representOU o marcO de entrada do Instituo no ITHJndo da rede mundial de computadores com o anccedilamento de nosso sUe (JWwiacutehgporgbr) que disponibiliza uma grande quantidade de inforshymaccedilotildees e docuIl1Emlos a respeito de Piracicaba e regiatildeo O site contem a relaccedilatildeo de publicaccedilotildees do IHGP (livros revislas) e uma exposiccedilatildeo virtual de fotos de Piracicaba

Quanto acirc Revista inrornlamos que olJtivernos o ISSN (lnternatioshynal S1andard Serial Number) junto ao Centro Brasileiro do lSSN do Institushyto Brasileiro de Ciecircncia e Tecnologia - 8ICT Sendo assim nosso perioacutedishyco estaacute agora Indexado ilternadonalrnente como revista c1enlinca

Por fim lembmmos que em 2D07 Q lHGP comemora quashyrenla ocircnos j~ iteacutenda Coslariacute8Hlos ele m8niacutef~s1Ar rossa gratidatildeo e recoflnecUumln3lil(1 )l )(( 8qlGles que conlribllfDnl [fllB sua rnanushyterccedili3oq SBlJ drgtA1hilvlrPBnio comp dire(ln~s OI ~OH10 colRb0nlrlores e assodadm Sern Pi par1idpaccedilBo (ieses Flbnegado$ a histoacuteria de Pishyracicaba talvez natildeo 1u(j~sse ser conhecida

A Diretoria

Memoacuteria Histoacuteria Em Busca 00 Munoo

posslvel 00 Engenhousina Monte Alegre Piracicaba

Neide Marcondes1

RESUMO

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a proprie~ dade rurar piracicabana a antiga Fazenda e depois EligenhoUsiacutena Monte Alegre O ressaltar que estamos em novos tempos estaacute deshymonstrado na desativaccedilatildeo descaracterizaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de parte da propriedade Na aquarela do seacuteculo XIX do artista Miguel Dutra o Miguelzinho denominada A Fazenda na margem esquerda do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 pode-se vishysualizar neste documento iconograacutefico o cenaacuterio de um mundo real que permite rever monumentos e enlorno demonstrando um passado revisitado para um mundo possiacutevel que pode ser resgatado

Palavras-chaves Propriedade Rural Monumento EngenhoUsina Monte Alegre

Patrimoacutenio Passado Revisitado Mundo Possivel

agrave procura do Engenho

Era uma tarde nublada do ano de 2003 quando entatildeo solitaacuteria retomei ao siacutetio da entatildeo Usina Mon~ te Alegre Nada se via bruma e nevoeiro rodeavam a propriedade Mas acaso ali estariam os antigos edi ficioslruinas Adentrei a estrada naquele momento recordando-me de Iatka - O Castelo como cllegar agraves antigas construccedilotildees que laacute natildeo mais se avislavam do bevedere com parapeitos de ferro trabalhado como as tinha vsitado e documentado em 1979 A sensa~ ccedilatildeo de procura parece ter sido a mesma da persona~ gem K assim como a anguacutestia de encontrar aquela cena a degenerada e desfeita que em outros tempos de vida e esplendor eu registrara

1 Professora Livre Docente

e Titular de Histoacuteria e Teoria

da Arte dfl UNESP

Com consciecircncia do passado e visatildeo clara das decisotildees toshymadas satildeo percebidas as mais significativas estruturas no tempo no espaccedilo e na cultura Nem sempre o acervo histoacuterico-artistico recebe interpretaccedilatildeo significativa no meio da populaccedilatildeo que o utiliza eacute raro grupos sociais respeitarem o trabalho acumulado que se encontra numa vila construiacuteda em outros tempos no casa rio e nos espaccedilos das propriedades rurais

A histoacuteria da arquitetura paulista natildeo tem a ressonacircncia da pershynambucana da baiana ou da mineira De modo geral pode-se mesmo notar que a arquitetura rural paulista mereceu de poucos estudiosos uma anaacutelise mais rigorosa e sistemaacutetica Eno setor da arquitetura rushyral desde a mais simples construccedilatildeo secundaacuteria do programa de uma propriedade ateacute as casas-sede que se impotildee a lradicionalidade da construccedilatildeo paulista O monumento eacute inseparaacutevel do meio onde se enshycontra Estudaacute-lo no espaccedilo em que estaacute inserido e analisar a significashyccedilatildeo cultural que adquiriu no decorrer do tempo eacute relacionar arquitetura com o contexto global da cultura

Uma estrutura econocircmica fundamentalmente agraacuteria desenshyvolveu tipos caracteriacutesticos de propriedade rural em diferentes regiotildees do Brasil Essa estrutura inicialmente ligada ao escravismo e depois ao trabalho do colono conferiu ao fazendeiro do centro-oeste paulista caracteriacutesticas definidas

O interesse pelo tema levou-me a um estudo acadecircmico hisshytoacuterico da arquitetura rural sua urbanizaccedilatildeo e trabalho cuja abordagem estaacute contida no tema Fazendas Engenhos e Usinas Piracicaba seacuteshyculo XIX que estaacute documentado e analisado visando aacute publicaccedilatildeo de um livro

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a propriedade rural piracicaba na a antiga fazenda e depois o Engenho Monte Alegre

Cumpre destacar que os engenhos-usinas de Satildeo Paulo foram divididos segundo sua operaccedilatildeo e rendimento Entre os chamados de dupla pressatildeo seca e de maior rendimento foram considerados o Enshygenho Central de Piracicaba o de Monte Alegre o Indaiaacute o da Vila Raffard e o de Lorena

Monte Alegre desenvolveu-se pouco a pouco como engenho usina improvisado com aparelhos das engenhocas mais duas moshyendas Foi comprado dos herdeiros da Fazenda do Marquecircs de Monshyte Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartoacuterio do 1deg Oficio de Piracicaba Registro de Imoacuteveis) em 1887 o Engenho jaacute produzia de 8000 a 10000 arrobas de accediluacutecar

Em 1819 a propriedade do Marquecircs de Monte Alegre Luiz Antocircnio de Souza Barros situada agrave margem esquerda do rio Piracishycaba e aproximadamente a seis quilocircmetros do centro da cidade foi avaliada em 10822$160 contendo toda a vasta terra 24 escravos casa de engenho casa de purgar enzalas monjolo otaria para teshylhas alambique trecircs caldeiras de whe duas rocas dois novilhos dois bois (Piracicaba Antiga volVI sid)

A sociedade formada por Indaleacutecio de Camargo Penteado e Joaquim Rodrigues do Amaral em 1889 com um empreacutestimo bancaacuteshyrio remodela o antigo Engenho Pertenciam entatildeo ao Engenho num

lolal de 2228 hectares 856 hectares de mala 500 hectares plantados de cana 622 hectares prontos para plantar

Para o transporte de cana de fazendas ateacute O Engenho exisshytiam alguns quilocircmetros de estrada de ferro com uma locomotiva e alguns vagotildees A maior parte da cana chegava em grandes carros puxados por seis mulas carregando perto de 1500 quilos do vegetal Monte Alegre era um engenho pequeno em relaccedilatildeo agrave grande extensatildeo de plantaccedilotildees de cana e dos compromissos com os fornecedores

Em 1890 a usina reuacutene as atividades agriacutecolas e industriais forma o seu latifuacutendio aplicando meacutetodos agriacutecolas tradicionais e crianshydo no colono a consciecircncia de fornecedores de cana

Aparece o tipo socIal empreendedor e dominador O usineiro que nada tem a ver com a figura do senhor de engenho ou a do dono de fazenda O usineiro eacute homem da cidade industrial represenfane da burguesia urbana No caso dos engenhos~usinas as famiacutelias trabalhashydoras em sua maiona italianas eram integradas por colonos pagos por peso de cana entregue a administraccedilatildeo natildeo se preocupava com o sisshytema pelo qual eles cultivavam a terra A utilizaccedilatildeo de colonos era uma imposiccedilatildeo do proacuteprio estaacutegio de desenvolvimento da lavoura cana vieira paulista num periacuteodo no qual a mecanizaccedilatildeo agriacutecola era incipiente e mantinha trabalhadores fIXOS nas empresas duranle lodo o ano

Em 1901 a Monle Alegre possuia duas moendas horizontais a vapor trecircs caldeiras geradoras de vapor uma chamineacute de tijolo dois fillros para caldo e xarope duas bombas de ar para os mesmos resshyfriadeiras para massa cozida seis turbinas Five-Uttle uma moenda para accediluacutecar dois alambiques oficina para reparaccedilotildees estrada de fershyro bitola 60 em uma locomotiva e alguns vagotildees

Na terceira deacutecada do seacuteculo XX em 1938 a accedilatildeo do empreshysaacuterio Pedro Morgantl consegue novamente juntar as antigas proprle~ dades que pertenceram ao Senador Vergueiro e ao Brigadeiro luiacutez Antocircnio de Souza em anos da primeira metade do seacuteculo XIX (Elias Netto 2003)

A Usina Monte Alegre ainda no seacuteculo XX (1965) era uma coshymunidade rural organizada com aproximadamente 1709 moradores da proacutepria Usina e 1169 provenientes de outras fazendas do municiacuteshypio Foi formado o bairro de Monte Alegre que contava com condiccedilotildees comunitaacuterias de educaccedilatildeo sauacutede e lazer

Os moradores de Monte Alegre dispunham de pequenas cashysas onde se abrigaram os antigos colonos de casas receacutem constru~ idas de armazeacutens padaria farmaacutecia barbearia torrefaccedilatildeo de cafeacute bar cinema e ateacute mesmo pensatildeo

O Grupo Escolar Marquecircs de Monte Alegre foi inaugurado no dia 7 de fevereiro de 1927 Foi conslruida em 1936 a Capela em homenagem a Satildeo Pedro e em 1937 no alto da colina a Igreja SM Pedro que acompanhava o mesmo estilo da Igreja de Satildeo Frediano de Lucca (Elias Netto 2003 p241) A pintura da Igreja ficou a cargo do entatildeo chamado pintor de paredes Anlocircnio VolpL O artista leve o auxilio de dois pedreiros da Usina

Em 1953 eacute implantada no local uma faacutebrica de papel e celushylose

o impeacuterio Morgantl no entanto entra em decadecircncia Os novos proprietaacuterios em 1981 satildeo da famiacutelia Silva Gordo

(Refinaria Paulista) A partir de 1982 a Usina jaacute incorporada agrave Induacutestria de Pashy

pei Simatildeo SA passa a negociar com a Volorantim Celulose e Papel (VCP) da famiacutelia Ermiacuterio de Moraes Satildeo novos tempos (Elias Netto 2003 p242)

Sim satildeo novos tempos tempos de reflexatildeo que me levaram nesla primeira deacutecada do seacuteculo XXI ii volta do estudo e registro da documentaccedilatildeo da majestosa propriedade rural - Fazenda Engenho Usina Monte Alegre

Aprocura dos edifiacutecios fabris encontrej~os plenamente desashytivados descaracterizados o espaccedilo do comeacutercio farmaacutecia empoacuterio estatildeo em processo de deterioraccedilatildeo

Foi mantida a urbanizaccedilatildeo central com o preacutedio da Escola a casa do Administrador e no alto da colina a Igreja e algumas casas de moradia Assim estaacute hoje o Bairro Monte Alegre mutaccedilotildees e deslruishyccedilotildees arquiteiocircniacutecas e urbaniacutesticas satildeo o sinal dos tempos

Esta reflexatildeo levou~me a investigar a documentaccedilatildeo iconograacuteshyfica e visitar o cataacutelogo de aquarelas do seacuteculo XIX de Miguel Arcanjo Benicio de Assunccedilatildeo Dutra o Miguelzinho calaacutelogo jaacute publicado pelo Museu de Arte de Satildeo Paulo em 1981 com texto de Selembrino Petri

A documentaccedilatildeo iconograacutefica em aquarelas do artista ficou muito tempo no esquecimento mas deixou registrados aspectos da cidade de Satildeo Paulo e do interior paulista do seacuteculo XIX

Miguelzinho nasceu em lIu a 15 de agosto de 1810 e faleceu em Piracicaba a 22 de abril de 1875 Durante 30 anos trabalhou em Piracicaba como ourives pintor escultor muacutesico organista Seu fanashytismo era dedicar-se agrave caridade ao proacuteximo

O aacutelbum Miguel Dura o polieacutedrico arlisa paulista conta com aquarelas que retratam a vida citadina e rural fazendas vilas em estishylo plaacutestico com a poeticidade quase de um naif Entre as de Piracicashyba apresentarepresenta Fazenda na margem esquerda domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 uma aquarela sobre papel medindo 274 em por 445 em

Em cores claras azuis cinzas seacutepia Dcre e branco aacutervores um tanto surrealistas rodeiam a Fazenda com casa~sede casas de colonos paacutetio com sino cercas e estaacutebulos com animais de grande porte Cena piloresca de uma fazenda envolvida por um entorno de rio plantaccedilotildees e montanhas

O programa rural e o partido arquitetotildenico paulista no seacuteculo XIX na regiatildeo de Piracicaba interpretados no texto que daraacute origem a livro sofreram transformaccedilotildees A agroinduacutestria conferiu novas forshymas aos espaccedilos e foi fator determinante na formaccedilatildeo do programa das propriedades As mudanccedilas soacutecio-culturais interferiram e mesmo desativaram o sistema e meios construtivos assim como a funccedilatildeo dos espaccedilos e as soluccedilotildees plaacutesticas das moradas

O cenaacuterio atual exigiacuteu mudanccedilas e transformaccedilotildees no meio ambiente e percebe-se que a memoacuteria regional hIstoacuterica e iconogracircfi~

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

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2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 5: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Memoacuteria Histoacuteria Em Busca 00 Munoo

posslvel 00 Engenhousina Monte Alegre Piracicaba

Neide Marcondes1

RESUMO

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a proprie~ dade rurar piracicabana a antiga Fazenda e depois EligenhoUsiacutena Monte Alegre O ressaltar que estamos em novos tempos estaacute deshymonstrado na desativaccedilatildeo descaracterizaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de parte da propriedade Na aquarela do seacuteculo XIX do artista Miguel Dutra o Miguelzinho denominada A Fazenda na margem esquerda do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 pode-se vishysualizar neste documento iconograacutefico o cenaacuterio de um mundo real que permite rever monumentos e enlorno demonstrando um passado revisitado para um mundo possiacutevel que pode ser resgatado

Palavras-chaves Propriedade Rural Monumento EngenhoUsina Monte Alegre

Patrimoacutenio Passado Revisitado Mundo Possivel

agrave procura do Engenho

Era uma tarde nublada do ano de 2003 quando entatildeo solitaacuteria retomei ao siacutetio da entatildeo Usina Mon~ te Alegre Nada se via bruma e nevoeiro rodeavam a propriedade Mas acaso ali estariam os antigos edi ficioslruinas Adentrei a estrada naquele momento recordando-me de Iatka - O Castelo como cllegar agraves antigas construccedilotildees que laacute natildeo mais se avislavam do bevedere com parapeitos de ferro trabalhado como as tinha vsitado e documentado em 1979 A sensa~ ccedilatildeo de procura parece ter sido a mesma da persona~ gem K assim como a anguacutestia de encontrar aquela cena a degenerada e desfeita que em outros tempos de vida e esplendor eu registrara

1 Professora Livre Docente

e Titular de Histoacuteria e Teoria

da Arte dfl UNESP

Com consciecircncia do passado e visatildeo clara das decisotildees toshymadas satildeo percebidas as mais significativas estruturas no tempo no espaccedilo e na cultura Nem sempre o acervo histoacuterico-artistico recebe interpretaccedilatildeo significativa no meio da populaccedilatildeo que o utiliza eacute raro grupos sociais respeitarem o trabalho acumulado que se encontra numa vila construiacuteda em outros tempos no casa rio e nos espaccedilos das propriedades rurais

A histoacuteria da arquitetura paulista natildeo tem a ressonacircncia da pershynambucana da baiana ou da mineira De modo geral pode-se mesmo notar que a arquitetura rural paulista mereceu de poucos estudiosos uma anaacutelise mais rigorosa e sistemaacutetica Eno setor da arquitetura rushyral desde a mais simples construccedilatildeo secundaacuteria do programa de uma propriedade ateacute as casas-sede que se impotildee a lradicionalidade da construccedilatildeo paulista O monumento eacute inseparaacutevel do meio onde se enshycontra Estudaacute-lo no espaccedilo em que estaacute inserido e analisar a significashyccedilatildeo cultural que adquiriu no decorrer do tempo eacute relacionar arquitetura com o contexto global da cultura

Uma estrutura econocircmica fundamentalmente agraacuteria desenshyvolveu tipos caracteriacutesticos de propriedade rural em diferentes regiotildees do Brasil Essa estrutura inicialmente ligada ao escravismo e depois ao trabalho do colono conferiu ao fazendeiro do centro-oeste paulista caracteriacutesticas definidas

O interesse pelo tema levou-me a um estudo acadecircmico hisshytoacuterico da arquitetura rural sua urbanizaccedilatildeo e trabalho cuja abordagem estaacute contida no tema Fazendas Engenhos e Usinas Piracicaba seacuteshyculo XIX que estaacute documentado e analisado visando aacute publicaccedilatildeo de um livro

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a propriedade rural piracicaba na a antiga fazenda e depois o Engenho Monte Alegre

Cumpre destacar que os engenhos-usinas de Satildeo Paulo foram divididos segundo sua operaccedilatildeo e rendimento Entre os chamados de dupla pressatildeo seca e de maior rendimento foram considerados o Enshygenho Central de Piracicaba o de Monte Alegre o Indaiaacute o da Vila Raffard e o de Lorena

Monte Alegre desenvolveu-se pouco a pouco como engenho usina improvisado com aparelhos das engenhocas mais duas moshyendas Foi comprado dos herdeiros da Fazenda do Marquecircs de Monshyte Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartoacuterio do 1deg Oficio de Piracicaba Registro de Imoacuteveis) em 1887 o Engenho jaacute produzia de 8000 a 10000 arrobas de accediluacutecar

Em 1819 a propriedade do Marquecircs de Monte Alegre Luiz Antocircnio de Souza Barros situada agrave margem esquerda do rio Piracishycaba e aproximadamente a seis quilocircmetros do centro da cidade foi avaliada em 10822$160 contendo toda a vasta terra 24 escravos casa de engenho casa de purgar enzalas monjolo otaria para teshylhas alambique trecircs caldeiras de whe duas rocas dois novilhos dois bois (Piracicaba Antiga volVI sid)

A sociedade formada por Indaleacutecio de Camargo Penteado e Joaquim Rodrigues do Amaral em 1889 com um empreacutestimo bancaacuteshyrio remodela o antigo Engenho Pertenciam entatildeo ao Engenho num

lolal de 2228 hectares 856 hectares de mala 500 hectares plantados de cana 622 hectares prontos para plantar

Para o transporte de cana de fazendas ateacute O Engenho exisshytiam alguns quilocircmetros de estrada de ferro com uma locomotiva e alguns vagotildees A maior parte da cana chegava em grandes carros puxados por seis mulas carregando perto de 1500 quilos do vegetal Monte Alegre era um engenho pequeno em relaccedilatildeo agrave grande extensatildeo de plantaccedilotildees de cana e dos compromissos com os fornecedores

Em 1890 a usina reuacutene as atividades agriacutecolas e industriais forma o seu latifuacutendio aplicando meacutetodos agriacutecolas tradicionais e crianshydo no colono a consciecircncia de fornecedores de cana

Aparece o tipo socIal empreendedor e dominador O usineiro que nada tem a ver com a figura do senhor de engenho ou a do dono de fazenda O usineiro eacute homem da cidade industrial represenfane da burguesia urbana No caso dos engenhos~usinas as famiacutelias trabalhashydoras em sua maiona italianas eram integradas por colonos pagos por peso de cana entregue a administraccedilatildeo natildeo se preocupava com o sisshytema pelo qual eles cultivavam a terra A utilizaccedilatildeo de colonos era uma imposiccedilatildeo do proacuteprio estaacutegio de desenvolvimento da lavoura cana vieira paulista num periacuteodo no qual a mecanizaccedilatildeo agriacutecola era incipiente e mantinha trabalhadores fIXOS nas empresas duranle lodo o ano

Em 1901 a Monle Alegre possuia duas moendas horizontais a vapor trecircs caldeiras geradoras de vapor uma chamineacute de tijolo dois fillros para caldo e xarope duas bombas de ar para os mesmos resshyfriadeiras para massa cozida seis turbinas Five-Uttle uma moenda para accediluacutecar dois alambiques oficina para reparaccedilotildees estrada de fershyro bitola 60 em uma locomotiva e alguns vagotildees

Na terceira deacutecada do seacuteculo XX em 1938 a accedilatildeo do empreshysaacuterio Pedro Morgantl consegue novamente juntar as antigas proprle~ dades que pertenceram ao Senador Vergueiro e ao Brigadeiro luiacutez Antocircnio de Souza em anos da primeira metade do seacuteculo XIX (Elias Netto 2003)

A Usina Monte Alegre ainda no seacuteculo XX (1965) era uma coshymunidade rural organizada com aproximadamente 1709 moradores da proacutepria Usina e 1169 provenientes de outras fazendas do municiacuteshypio Foi formado o bairro de Monte Alegre que contava com condiccedilotildees comunitaacuterias de educaccedilatildeo sauacutede e lazer

Os moradores de Monte Alegre dispunham de pequenas cashysas onde se abrigaram os antigos colonos de casas receacutem constru~ idas de armazeacutens padaria farmaacutecia barbearia torrefaccedilatildeo de cafeacute bar cinema e ateacute mesmo pensatildeo

O Grupo Escolar Marquecircs de Monte Alegre foi inaugurado no dia 7 de fevereiro de 1927 Foi conslruida em 1936 a Capela em homenagem a Satildeo Pedro e em 1937 no alto da colina a Igreja SM Pedro que acompanhava o mesmo estilo da Igreja de Satildeo Frediano de Lucca (Elias Netto 2003 p241) A pintura da Igreja ficou a cargo do entatildeo chamado pintor de paredes Anlocircnio VolpL O artista leve o auxilio de dois pedreiros da Usina

Em 1953 eacute implantada no local uma faacutebrica de papel e celushylose

o impeacuterio Morgantl no entanto entra em decadecircncia Os novos proprietaacuterios em 1981 satildeo da famiacutelia Silva Gordo

(Refinaria Paulista) A partir de 1982 a Usina jaacute incorporada agrave Induacutestria de Pashy

pei Simatildeo SA passa a negociar com a Volorantim Celulose e Papel (VCP) da famiacutelia Ermiacuterio de Moraes Satildeo novos tempos (Elias Netto 2003 p242)

Sim satildeo novos tempos tempos de reflexatildeo que me levaram nesla primeira deacutecada do seacuteculo XXI ii volta do estudo e registro da documentaccedilatildeo da majestosa propriedade rural - Fazenda Engenho Usina Monte Alegre

Aprocura dos edifiacutecios fabris encontrej~os plenamente desashytivados descaracterizados o espaccedilo do comeacutercio farmaacutecia empoacuterio estatildeo em processo de deterioraccedilatildeo

Foi mantida a urbanizaccedilatildeo central com o preacutedio da Escola a casa do Administrador e no alto da colina a Igreja e algumas casas de moradia Assim estaacute hoje o Bairro Monte Alegre mutaccedilotildees e deslruishyccedilotildees arquiteiocircniacutecas e urbaniacutesticas satildeo o sinal dos tempos

Esta reflexatildeo levou~me a investigar a documentaccedilatildeo iconograacuteshyfica e visitar o cataacutelogo de aquarelas do seacuteculo XIX de Miguel Arcanjo Benicio de Assunccedilatildeo Dutra o Miguelzinho calaacutelogo jaacute publicado pelo Museu de Arte de Satildeo Paulo em 1981 com texto de Selembrino Petri

A documentaccedilatildeo iconograacutefica em aquarelas do artista ficou muito tempo no esquecimento mas deixou registrados aspectos da cidade de Satildeo Paulo e do interior paulista do seacuteculo XIX

Miguelzinho nasceu em lIu a 15 de agosto de 1810 e faleceu em Piracicaba a 22 de abril de 1875 Durante 30 anos trabalhou em Piracicaba como ourives pintor escultor muacutesico organista Seu fanashytismo era dedicar-se agrave caridade ao proacuteximo

O aacutelbum Miguel Dura o polieacutedrico arlisa paulista conta com aquarelas que retratam a vida citadina e rural fazendas vilas em estishylo plaacutestico com a poeticidade quase de um naif Entre as de Piracicashyba apresentarepresenta Fazenda na margem esquerda domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 uma aquarela sobre papel medindo 274 em por 445 em

Em cores claras azuis cinzas seacutepia Dcre e branco aacutervores um tanto surrealistas rodeiam a Fazenda com casa~sede casas de colonos paacutetio com sino cercas e estaacutebulos com animais de grande porte Cena piloresca de uma fazenda envolvida por um entorno de rio plantaccedilotildees e montanhas

O programa rural e o partido arquitetotildenico paulista no seacuteculo XIX na regiatildeo de Piracicaba interpretados no texto que daraacute origem a livro sofreram transformaccedilotildees A agroinduacutestria conferiu novas forshymas aos espaccedilos e foi fator determinante na formaccedilatildeo do programa das propriedades As mudanccedilas soacutecio-culturais interferiram e mesmo desativaram o sistema e meios construtivos assim como a funccedilatildeo dos espaccedilos e as soluccedilotildees plaacutesticas das moradas

O cenaacuterio atual exigiacuteu mudanccedilas e transformaccedilotildees no meio ambiente e percebe-se que a memoacuteria regional hIstoacuterica e iconogracircfi~

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

BIBLIOGRAFIA

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 6: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Com consciecircncia do passado e visatildeo clara das decisotildees toshymadas satildeo percebidas as mais significativas estruturas no tempo no espaccedilo e na cultura Nem sempre o acervo histoacuterico-artistico recebe interpretaccedilatildeo significativa no meio da populaccedilatildeo que o utiliza eacute raro grupos sociais respeitarem o trabalho acumulado que se encontra numa vila construiacuteda em outros tempos no casa rio e nos espaccedilos das propriedades rurais

A histoacuteria da arquitetura paulista natildeo tem a ressonacircncia da pershynambucana da baiana ou da mineira De modo geral pode-se mesmo notar que a arquitetura rural paulista mereceu de poucos estudiosos uma anaacutelise mais rigorosa e sistemaacutetica Eno setor da arquitetura rushyral desde a mais simples construccedilatildeo secundaacuteria do programa de uma propriedade ateacute as casas-sede que se impotildee a lradicionalidade da construccedilatildeo paulista O monumento eacute inseparaacutevel do meio onde se enshycontra Estudaacute-lo no espaccedilo em que estaacute inserido e analisar a significashyccedilatildeo cultural que adquiriu no decorrer do tempo eacute relacionar arquitetura com o contexto global da cultura

Uma estrutura econocircmica fundamentalmente agraacuteria desenshyvolveu tipos caracteriacutesticos de propriedade rural em diferentes regiotildees do Brasil Essa estrutura inicialmente ligada ao escravismo e depois ao trabalho do colono conferiu ao fazendeiro do centro-oeste paulista caracteriacutesticas definidas

O interesse pelo tema levou-me a um estudo acadecircmico hisshytoacuterico da arquitetura rural sua urbanizaccedilatildeo e trabalho cuja abordagem estaacute contida no tema Fazendas Engenhos e Usinas Piracicaba seacuteshyculo XIX que estaacute documentado e analisado visando aacute publicaccedilatildeo de um livro

Nesta presente anaacutelisememoacuteria estaacute em questatildeo a propriedade rural piracicaba na a antiga fazenda e depois o Engenho Monte Alegre

Cumpre destacar que os engenhos-usinas de Satildeo Paulo foram divididos segundo sua operaccedilatildeo e rendimento Entre os chamados de dupla pressatildeo seca e de maior rendimento foram considerados o Enshygenho Central de Piracicaba o de Monte Alegre o Indaiaacute o da Vila Raffard e o de Lorena

Monte Alegre desenvolveu-se pouco a pouco como engenho usina improvisado com aparelhos das engenhocas mais duas moshyendas Foi comprado dos herdeiros da Fazenda do Marquecircs de Monshyte Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartoacuterio do 1deg Oficio de Piracicaba Registro de Imoacuteveis) em 1887 o Engenho jaacute produzia de 8000 a 10000 arrobas de accediluacutecar

Em 1819 a propriedade do Marquecircs de Monte Alegre Luiz Antocircnio de Souza Barros situada agrave margem esquerda do rio Piracishycaba e aproximadamente a seis quilocircmetros do centro da cidade foi avaliada em 10822$160 contendo toda a vasta terra 24 escravos casa de engenho casa de purgar enzalas monjolo otaria para teshylhas alambique trecircs caldeiras de whe duas rocas dois novilhos dois bois (Piracicaba Antiga volVI sid)

A sociedade formada por Indaleacutecio de Camargo Penteado e Joaquim Rodrigues do Amaral em 1889 com um empreacutestimo bancaacuteshyrio remodela o antigo Engenho Pertenciam entatildeo ao Engenho num

lolal de 2228 hectares 856 hectares de mala 500 hectares plantados de cana 622 hectares prontos para plantar

Para o transporte de cana de fazendas ateacute O Engenho exisshytiam alguns quilocircmetros de estrada de ferro com uma locomotiva e alguns vagotildees A maior parte da cana chegava em grandes carros puxados por seis mulas carregando perto de 1500 quilos do vegetal Monte Alegre era um engenho pequeno em relaccedilatildeo agrave grande extensatildeo de plantaccedilotildees de cana e dos compromissos com os fornecedores

Em 1890 a usina reuacutene as atividades agriacutecolas e industriais forma o seu latifuacutendio aplicando meacutetodos agriacutecolas tradicionais e crianshydo no colono a consciecircncia de fornecedores de cana

Aparece o tipo socIal empreendedor e dominador O usineiro que nada tem a ver com a figura do senhor de engenho ou a do dono de fazenda O usineiro eacute homem da cidade industrial represenfane da burguesia urbana No caso dos engenhos~usinas as famiacutelias trabalhashydoras em sua maiona italianas eram integradas por colonos pagos por peso de cana entregue a administraccedilatildeo natildeo se preocupava com o sisshytema pelo qual eles cultivavam a terra A utilizaccedilatildeo de colonos era uma imposiccedilatildeo do proacuteprio estaacutegio de desenvolvimento da lavoura cana vieira paulista num periacuteodo no qual a mecanizaccedilatildeo agriacutecola era incipiente e mantinha trabalhadores fIXOS nas empresas duranle lodo o ano

Em 1901 a Monle Alegre possuia duas moendas horizontais a vapor trecircs caldeiras geradoras de vapor uma chamineacute de tijolo dois fillros para caldo e xarope duas bombas de ar para os mesmos resshyfriadeiras para massa cozida seis turbinas Five-Uttle uma moenda para accediluacutecar dois alambiques oficina para reparaccedilotildees estrada de fershyro bitola 60 em uma locomotiva e alguns vagotildees

Na terceira deacutecada do seacuteculo XX em 1938 a accedilatildeo do empreshysaacuterio Pedro Morgantl consegue novamente juntar as antigas proprle~ dades que pertenceram ao Senador Vergueiro e ao Brigadeiro luiacutez Antocircnio de Souza em anos da primeira metade do seacuteculo XIX (Elias Netto 2003)

A Usina Monte Alegre ainda no seacuteculo XX (1965) era uma coshymunidade rural organizada com aproximadamente 1709 moradores da proacutepria Usina e 1169 provenientes de outras fazendas do municiacuteshypio Foi formado o bairro de Monte Alegre que contava com condiccedilotildees comunitaacuterias de educaccedilatildeo sauacutede e lazer

Os moradores de Monte Alegre dispunham de pequenas cashysas onde se abrigaram os antigos colonos de casas receacutem constru~ idas de armazeacutens padaria farmaacutecia barbearia torrefaccedilatildeo de cafeacute bar cinema e ateacute mesmo pensatildeo

O Grupo Escolar Marquecircs de Monte Alegre foi inaugurado no dia 7 de fevereiro de 1927 Foi conslruida em 1936 a Capela em homenagem a Satildeo Pedro e em 1937 no alto da colina a Igreja SM Pedro que acompanhava o mesmo estilo da Igreja de Satildeo Frediano de Lucca (Elias Netto 2003 p241) A pintura da Igreja ficou a cargo do entatildeo chamado pintor de paredes Anlocircnio VolpL O artista leve o auxilio de dois pedreiros da Usina

Em 1953 eacute implantada no local uma faacutebrica de papel e celushylose

o impeacuterio Morgantl no entanto entra em decadecircncia Os novos proprietaacuterios em 1981 satildeo da famiacutelia Silva Gordo

(Refinaria Paulista) A partir de 1982 a Usina jaacute incorporada agrave Induacutestria de Pashy

pei Simatildeo SA passa a negociar com a Volorantim Celulose e Papel (VCP) da famiacutelia Ermiacuterio de Moraes Satildeo novos tempos (Elias Netto 2003 p242)

Sim satildeo novos tempos tempos de reflexatildeo que me levaram nesla primeira deacutecada do seacuteculo XXI ii volta do estudo e registro da documentaccedilatildeo da majestosa propriedade rural - Fazenda Engenho Usina Monte Alegre

Aprocura dos edifiacutecios fabris encontrej~os plenamente desashytivados descaracterizados o espaccedilo do comeacutercio farmaacutecia empoacuterio estatildeo em processo de deterioraccedilatildeo

Foi mantida a urbanizaccedilatildeo central com o preacutedio da Escola a casa do Administrador e no alto da colina a Igreja e algumas casas de moradia Assim estaacute hoje o Bairro Monte Alegre mutaccedilotildees e deslruishyccedilotildees arquiteiocircniacutecas e urbaniacutesticas satildeo o sinal dos tempos

Esta reflexatildeo levou~me a investigar a documentaccedilatildeo iconograacuteshyfica e visitar o cataacutelogo de aquarelas do seacuteculo XIX de Miguel Arcanjo Benicio de Assunccedilatildeo Dutra o Miguelzinho calaacutelogo jaacute publicado pelo Museu de Arte de Satildeo Paulo em 1981 com texto de Selembrino Petri

A documentaccedilatildeo iconograacutefica em aquarelas do artista ficou muito tempo no esquecimento mas deixou registrados aspectos da cidade de Satildeo Paulo e do interior paulista do seacuteculo XIX

Miguelzinho nasceu em lIu a 15 de agosto de 1810 e faleceu em Piracicaba a 22 de abril de 1875 Durante 30 anos trabalhou em Piracicaba como ourives pintor escultor muacutesico organista Seu fanashytismo era dedicar-se agrave caridade ao proacuteximo

O aacutelbum Miguel Dura o polieacutedrico arlisa paulista conta com aquarelas que retratam a vida citadina e rural fazendas vilas em estishylo plaacutestico com a poeticidade quase de um naif Entre as de Piracicashyba apresentarepresenta Fazenda na margem esquerda domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 uma aquarela sobre papel medindo 274 em por 445 em

Em cores claras azuis cinzas seacutepia Dcre e branco aacutervores um tanto surrealistas rodeiam a Fazenda com casa~sede casas de colonos paacutetio com sino cercas e estaacutebulos com animais de grande porte Cena piloresca de uma fazenda envolvida por um entorno de rio plantaccedilotildees e montanhas

O programa rural e o partido arquitetotildenico paulista no seacuteculo XIX na regiatildeo de Piracicaba interpretados no texto que daraacute origem a livro sofreram transformaccedilotildees A agroinduacutestria conferiu novas forshymas aos espaccedilos e foi fator determinante na formaccedilatildeo do programa das propriedades As mudanccedilas soacutecio-culturais interferiram e mesmo desativaram o sistema e meios construtivos assim como a funccedilatildeo dos espaccedilos e as soluccedilotildees plaacutesticas das moradas

O cenaacuterio atual exigiacuteu mudanccedilas e transformaccedilotildees no meio ambiente e percebe-se que a memoacuteria regional hIstoacuterica e iconogracircfi~

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 7: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

lolal de 2228 hectares 856 hectares de mala 500 hectares plantados de cana 622 hectares prontos para plantar

Para o transporte de cana de fazendas ateacute O Engenho exisshytiam alguns quilocircmetros de estrada de ferro com uma locomotiva e alguns vagotildees A maior parte da cana chegava em grandes carros puxados por seis mulas carregando perto de 1500 quilos do vegetal Monte Alegre era um engenho pequeno em relaccedilatildeo agrave grande extensatildeo de plantaccedilotildees de cana e dos compromissos com os fornecedores

Em 1890 a usina reuacutene as atividades agriacutecolas e industriais forma o seu latifuacutendio aplicando meacutetodos agriacutecolas tradicionais e crianshydo no colono a consciecircncia de fornecedores de cana

Aparece o tipo socIal empreendedor e dominador O usineiro que nada tem a ver com a figura do senhor de engenho ou a do dono de fazenda O usineiro eacute homem da cidade industrial represenfane da burguesia urbana No caso dos engenhos~usinas as famiacutelias trabalhashydoras em sua maiona italianas eram integradas por colonos pagos por peso de cana entregue a administraccedilatildeo natildeo se preocupava com o sisshytema pelo qual eles cultivavam a terra A utilizaccedilatildeo de colonos era uma imposiccedilatildeo do proacuteprio estaacutegio de desenvolvimento da lavoura cana vieira paulista num periacuteodo no qual a mecanizaccedilatildeo agriacutecola era incipiente e mantinha trabalhadores fIXOS nas empresas duranle lodo o ano

Em 1901 a Monle Alegre possuia duas moendas horizontais a vapor trecircs caldeiras geradoras de vapor uma chamineacute de tijolo dois fillros para caldo e xarope duas bombas de ar para os mesmos resshyfriadeiras para massa cozida seis turbinas Five-Uttle uma moenda para accediluacutecar dois alambiques oficina para reparaccedilotildees estrada de fershyro bitola 60 em uma locomotiva e alguns vagotildees

Na terceira deacutecada do seacuteculo XX em 1938 a accedilatildeo do empreshysaacuterio Pedro Morgantl consegue novamente juntar as antigas proprle~ dades que pertenceram ao Senador Vergueiro e ao Brigadeiro luiacutez Antocircnio de Souza em anos da primeira metade do seacuteculo XIX (Elias Netto 2003)

A Usina Monte Alegre ainda no seacuteculo XX (1965) era uma coshymunidade rural organizada com aproximadamente 1709 moradores da proacutepria Usina e 1169 provenientes de outras fazendas do municiacuteshypio Foi formado o bairro de Monte Alegre que contava com condiccedilotildees comunitaacuterias de educaccedilatildeo sauacutede e lazer

Os moradores de Monte Alegre dispunham de pequenas cashysas onde se abrigaram os antigos colonos de casas receacutem constru~ idas de armazeacutens padaria farmaacutecia barbearia torrefaccedilatildeo de cafeacute bar cinema e ateacute mesmo pensatildeo

O Grupo Escolar Marquecircs de Monte Alegre foi inaugurado no dia 7 de fevereiro de 1927 Foi conslruida em 1936 a Capela em homenagem a Satildeo Pedro e em 1937 no alto da colina a Igreja SM Pedro que acompanhava o mesmo estilo da Igreja de Satildeo Frediano de Lucca (Elias Netto 2003 p241) A pintura da Igreja ficou a cargo do entatildeo chamado pintor de paredes Anlocircnio VolpL O artista leve o auxilio de dois pedreiros da Usina

Em 1953 eacute implantada no local uma faacutebrica de papel e celushylose

o impeacuterio Morgantl no entanto entra em decadecircncia Os novos proprietaacuterios em 1981 satildeo da famiacutelia Silva Gordo

(Refinaria Paulista) A partir de 1982 a Usina jaacute incorporada agrave Induacutestria de Pashy

pei Simatildeo SA passa a negociar com a Volorantim Celulose e Papel (VCP) da famiacutelia Ermiacuterio de Moraes Satildeo novos tempos (Elias Netto 2003 p242)

Sim satildeo novos tempos tempos de reflexatildeo que me levaram nesla primeira deacutecada do seacuteculo XXI ii volta do estudo e registro da documentaccedilatildeo da majestosa propriedade rural - Fazenda Engenho Usina Monte Alegre

Aprocura dos edifiacutecios fabris encontrej~os plenamente desashytivados descaracterizados o espaccedilo do comeacutercio farmaacutecia empoacuterio estatildeo em processo de deterioraccedilatildeo

Foi mantida a urbanizaccedilatildeo central com o preacutedio da Escola a casa do Administrador e no alto da colina a Igreja e algumas casas de moradia Assim estaacute hoje o Bairro Monte Alegre mutaccedilotildees e deslruishyccedilotildees arquiteiocircniacutecas e urbaniacutesticas satildeo o sinal dos tempos

Esta reflexatildeo levou~me a investigar a documentaccedilatildeo iconograacuteshyfica e visitar o cataacutelogo de aquarelas do seacuteculo XIX de Miguel Arcanjo Benicio de Assunccedilatildeo Dutra o Miguelzinho calaacutelogo jaacute publicado pelo Museu de Arte de Satildeo Paulo em 1981 com texto de Selembrino Petri

A documentaccedilatildeo iconograacutefica em aquarelas do artista ficou muito tempo no esquecimento mas deixou registrados aspectos da cidade de Satildeo Paulo e do interior paulista do seacuteculo XIX

Miguelzinho nasceu em lIu a 15 de agosto de 1810 e faleceu em Piracicaba a 22 de abril de 1875 Durante 30 anos trabalhou em Piracicaba como ourives pintor escultor muacutesico organista Seu fanashytismo era dedicar-se agrave caridade ao proacuteximo

O aacutelbum Miguel Dura o polieacutedrico arlisa paulista conta com aquarelas que retratam a vida citadina e rural fazendas vilas em estishylo plaacutestico com a poeticidade quase de um naif Entre as de Piracicashyba apresentarepresenta Fazenda na margem esquerda domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 uma aquarela sobre papel medindo 274 em por 445 em

Em cores claras azuis cinzas seacutepia Dcre e branco aacutervores um tanto surrealistas rodeiam a Fazenda com casa~sede casas de colonos paacutetio com sino cercas e estaacutebulos com animais de grande porte Cena piloresca de uma fazenda envolvida por um entorno de rio plantaccedilotildees e montanhas

O programa rural e o partido arquitetotildenico paulista no seacuteculo XIX na regiatildeo de Piracicaba interpretados no texto que daraacute origem a livro sofreram transformaccedilotildees A agroinduacutestria conferiu novas forshymas aos espaccedilos e foi fator determinante na formaccedilatildeo do programa das propriedades As mudanccedilas soacutecio-culturais interferiram e mesmo desativaram o sistema e meios construtivos assim como a funccedilatildeo dos espaccedilos e as soluccedilotildees plaacutesticas das moradas

O cenaacuterio atual exigiacuteu mudanccedilas e transformaccedilotildees no meio ambiente e percebe-se que a memoacuteria regional hIstoacuterica e iconogracircfi~

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

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7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 8: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

o impeacuterio Morgantl no entanto entra em decadecircncia Os novos proprietaacuterios em 1981 satildeo da famiacutelia Silva Gordo

(Refinaria Paulista) A partir de 1982 a Usina jaacute incorporada agrave Induacutestria de Pashy

pei Simatildeo SA passa a negociar com a Volorantim Celulose e Papel (VCP) da famiacutelia Ermiacuterio de Moraes Satildeo novos tempos (Elias Netto 2003 p242)

Sim satildeo novos tempos tempos de reflexatildeo que me levaram nesla primeira deacutecada do seacuteculo XXI ii volta do estudo e registro da documentaccedilatildeo da majestosa propriedade rural - Fazenda Engenho Usina Monte Alegre

Aprocura dos edifiacutecios fabris encontrej~os plenamente desashytivados descaracterizados o espaccedilo do comeacutercio farmaacutecia empoacuterio estatildeo em processo de deterioraccedilatildeo

Foi mantida a urbanizaccedilatildeo central com o preacutedio da Escola a casa do Administrador e no alto da colina a Igreja e algumas casas de moradia Assim estaacute hoje o Bairro Monte Alegre mutaccedilotildees e deslruishyccedilotildees arquiteiocircniacutecas e urbaniacutesticas satildeo o sinal dos tempos

Esta reflexatildeo levou~me a investigar a documentaccedilatildeo iconograacuteshyfica e visitar o cataacutelogo de aquarelas do seacuteculo XIX de Miguel Arcanjo Benicio de Assunccedilatildeo Dutra o Miguelzinho calaacutelogo jaacute publicado pelo Museu de Arte de Satildeo Paulo em 1981 com texto de Selembrino Petri

A documentaccedilatildeo iconograacutefica em aquarelas do artista ficou muito tempo no esquecimento mas deixou registrados aspectos da cidade de Satildeo Paulo e do interior paulista do seacuteculo XIX

Miguelzinho nasceu em lIu a 15 de agosto de 1810 e faleceu em Piracicaba a 22 de abril de 1875 Durante 30 anos trabalhou em Piracicaba como ourives pintor escultor muacutesico organista Seu fanashytismo era dedicar-se agrave caridade ao proacuteximo

O aacutelbum Miguel Dura o polieacutedrico arlisa paulista conta com aquarelas que retratam a vida citadina e rural fazendas vilas em estishylo plaacutestico com a poeticidade quase de um naif Entre as de Piracicashyba apresentarepresenta Fazenda na margem esquerda domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 uma aquarela sobre papel medindo 274 em por 445 em

Em cores claras azuis cinzas seacutepia Dcre e branco aacutervores um tanto surrealistas rodeiam a Fazenda com casa~sede casas de colonos paacutetio com sino cercas e estaacutebulos com animais de grande porte Cena piloresca de uma fazenda envolvida por um entorno de rio plantaccedilotildees e montanhas

O programa rural e o partido arquitetotildenico paulista no seacuteculo XIX na regiatildeo de Piracicaba interpretados no texto que daraacute origem a livro sofreram transformaccedilotildees A agroinduacutestria conferiu novas forshymas aos espaccedilos e foi fator determinante na formaccedilatildeo do programa das propriedades As mudanccedilas soacutecio-culturais interferiram e mesmo desativaram o sistema e meios construtivos assim como a funccedilatildeo dos espaccedilos e as soluccedilotildees plaacutesticas das moradas

O cenaacuterio atual exigiacuteu mudanccedilas e transformaccedilotildees no meio ambiente e percebe-se que a memoacuteria regional hIstoacuterica e iconogracircfi~

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 9: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

ca tende a mais uma inscriccedilatildeo aqui jazem as formas de um passado recente

Especialmente referente agrave Usina Monte Alegre hoje nestes tempos hiper modernos totalmente descaracterizada e deslruiacuteda no seu aspecto fabril e destituida da sua primitiva funccedilatildeo eacute significativo adentrar para a abordagem da loacutegica modal e levar o othar pensamenshyto e a interpretaccedilatildeo na obra de Miguelzlnho como aquele

Ax =mundo realgt Fazenda na margem do rio Piracicaba domiacutenio do Visconde de Monte Alegre 1845 (legenda do proacuteprio Miguel Dutra)

e constituir Ay =mundo possivet que permite rever monumentos os

que restam os que estatildeo conservados em documentos de arquivos e propocircem um mundo de emoccedilotildees que permite recompor ambientes caracteriacutesticas de mundos destruiacutedos formas arquitetocircnicas dos espa~ ccedilos dos costumes e parte de tudo que condiz organizar os aspectos da vida de um passado pronto para ser revisilado e reconstituiacutedo a memoacuteria de um Mundo Reat aquele mundo do passado para um mundo a ser possiacutevel Mundo do Futuro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 10: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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p ~50-51 uumlrJ TO t rJJ0S lJ 2

2) fpIIT-HII tlf11 viamiddot gem j )ilVil(Iacuteq lt10

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 11: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

NEME M ~Piracicaba no seacuteculo XVIII RAMSP ano IV 45133shy186 mar1938

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Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 12: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Quarroo a Feocircentina Ganba Foros ocirce Ciocircaocircania

Raimundo Donato do Prado Ribeiro

RESUMO

o artigo aborda o processo de criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saushydade em Piracicaba no seacuteculo XIX destacando as representaccedilotildees dos saberes higiecircnicos presentes na documentaccedilatildeo e fontes do periacuteodo Intenta ainda articular esse evento com os debates mais gerais eXIsshytentes no Brasil desse periacuteodo

Palavras~chave

Representaccedilotildees Saberes Higiecircnicos Piracicaba

o titulo deste artigo remete agrave manifestaccedilatildeo do vereador Franshycisco Ferraz de Arruda em discurso na Cacircmara ao indignar-se com os registros freqUentes e preocupantes relativos aos maus cheiros do cemiteacuterio ateacute entatildeo existente na regiatildeo central da entatildeo Vila Nova Constituiccedilagraveo que atraiam catildees e corvos em demasia Corria o ano de 1855

Essa frase evidencia de imediato a associaccedilatildeo dessa preocu~ paccedilatildeo com os debates postos pelos saberes higienistas que ganham corpo no decurso do seacuteculo XIX tambeacutem nesse local Ainda que o cemiteacuterio seja um objeto de estudos pouco visitado quando se trata de investigaccedilotildees acerca das concepccedilotildees de cidade produzidas no seacuteculo XIX temos que nesse espaccedilo operam-se mudanccedilas significativas nas relaccedilotildees dos vivos com os mortos Essas propostas de intervenccedilotildees no espaccedilo mais do que afastar os mortos pensaram e responderam agraves demandas da cidade moderna e aos dlferentes desafios que ela trazia Ainda que esses saberes apresentassem os remeacutedios para uma cidade sadia natildeo tinham nenhuma teoria sobre as doenccedilas

A indignaccedilatildeo expressa pelo vereador Ferraz de Arruda traduz em certa medida a investida higiecircnica na regulamentaccedilatildeo dos espaccedilos da cidade e a revelada associaccedilatildeo com uma dada ideacuteia de civi~izaccedilatildeo pautada na razatildeo da ordem da moral da limpeza e da sauacutede como principios puacuteblicos Vendo no espaccedilo sagrado do morto o vetor de conshy

1 Pwfessor do Curso de Histoacuteria da UN1MEP e Doushytorem Ciecircncias Sociais pela PUC-SP

2 1) de AgoSlO de 1767 data da Povoaccedilatildeo de Piramiddot cicaba Em 1774 elevada a categoria de Freguesia Em 31 de OUlubro de 1821 data a criaccedilatildeo eacuteo Municipiacuteo com a denominaccedilatildeo -de VIla Nova Constituiccedilatildeo visando o novo nome homenagcaf e ~perpelua( a memoacuterilt da Conslilviccedilatildeo portugueslt no enanto a instalaccedilatildeo do mu~ nicfpio deu-se apenas em 10 de Agosto de 1$22 A Lei Provincial de 24 de Abril de 1856 eleva a Vila atilde categoshyria de cidade com o nome de Constiluiccedilatildeo nome este

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 13: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

que permaneceu alecirc 19 de abri de 1877 quando aacute Lei n 21 da Assembleacuteia Provin~ dai alterou novamee para Piracicaba Anteriormente a Lei n 61 d-e 20 de Abril de 1866 havia aucrado o nome da Comarca de Constitujmiddot ccedilatildeo para Comarca de Pitamiddot dcaba

3 GUERRA Leo ~O mau cheiro do cemiteacuterio 06 de maio de 1855~ ln Jornal de Piradcaba 101051981

4 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute um festa Ritos Fuumlnebres e revolta poputar no Brasil do seacuteculo Xix 31 Reimpressatildeo Sacirco Paulo eia das lelras 1999 p 24

5 Ver FOUCAULT Mj~

chel 0 Nascimento da Medicina Social In M1croshyfisiacuteca do Poder Orgarizamiddot ccedilatildeO e Tradu~ de Roberto Mac1ado 13 ediccedilao Rio de Janeiro Graal 1998 e REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuacutenebres e revolta popular no Brasil do seacuteculo XIX 3- Relm~

pressatildeo Satildeo Paulo Cia das Letras 1999 respecushyvamen~e

laminaccedilatildeo do ar atraveacutes dos miasmas o saber higiecircnico propunha uma reordenaccedilatildeo da relaccedilatildeo com a vida civilizando espaccedilos e costumes Transferindo os mortos do meio dos VIvos destinandoUumls a cemiteacuteriacuteos extramuros civilizava-se os haacutebitos dessacralizava-se a morte e edushycava-se os sentidos

A remoccedilatildeo dos cemiteacuterios justificada pelos higienislas como um dos fatores primordiais para a manutenccedilatildeo da vida nas cidades sofreraacute uma seacuterie de manifestaccedilotildees por parte da populaccedilatildeo citadina Reivindicando ou resistindo ao discurso higiecircnico o que se visualiza eacute um novo enquadramento espacial das ciacutedades e a higiacuteeniacutezaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos finais do seacuteculo XVIII e iniacutecios dos XIX como poshydemos observar em Reis

Os funerais de oulrora e em particular os enterros nas Igrejas revelam enorme preocupaccedilatildeo de nossos antepassados com seus proacuteprios cadaacuteveres e os cashydaacuteveres de seus mortos Por razotildees diferentes os meacutedicos J se preocupavam com o mesmo objeto Eles viam os enterros dentro dos templos e mesmo denlro da cidade aleacutem de outros costumes funeraacuteshyrios como altamente prejudiciais agrave sauacutede dos vivos Monos e vivos deviam ficar separados A novidade vinha da Europa e foi divulgada no Brasil indepenshydente por meio de uma campanha que fazia da opishyniatildeo dos higienistas o testemunho da civilizaccedilatildeo ] Os legisladores seguiram os doutores procurando reordenar o espaccedilo ocupado pelo molto na sociacutee~ dade estabelecendo uma nova geografia urbana da relaccedilatildeo entre mortos e vivos4bull

Se a fala do nosso vereador em meados do seacuteculo XIX respalshyda por um lado a preocupaccedilatildeo com a sauacutede puacuteblica e exlerna preocushypaccedilatildeo com o suposto vetor da ameaccedila por outro lado apenas para registrar encontramos verdadeiros levantes em outros momentos j anshyteriores a esse seacuteculo reativos acirc poliacuteticas de diacutesciacutepliacutenar e ordenar os enterramentos Satildeo exemplos a proposta o fechamento e remoccedilatildeo do CimiMre das lnnocents nos finais do seacuteculo XVIII em Paris na Franccedila e tambeacutem na Bahia de 1836 no episoacutedio conhecido por Cemiterada ainda que outras questotildees tambeacutem tangenciassem tal revoltagt

A criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicaba natildeo produziu situaccedilotildees violentas como as experiecircncias mencionadas anteriormente mas inseriu~se no interior dos debates que vinculavam uma nova sen~ siacutebiliacutedade em relaccedilatildeo ao espaccedilo puacuteblico como ensejo de civilizaccedilatildeo e progresso

O registro da preocupada indignaccedilatildeo do nosso vereador aponshyta apenas uma das facetas do processo de criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Pois essa questatildeo natildeo era nova naquela casa como registra a Ata da Cacircmara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 quanto atilde preocushypaccedilatildeo com a criaccedilatildeo de um novo cemiteacuterio para a cidade

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 14: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

De 1829 a 1855 satildeo alguns bons anos e oulros mais pela frenshyte aleacute a criaccedilatildeo do cemiteacuterio da Saudade Levar-se-agrave quase cinquumlenla anos para a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade Se a leitura deste fato dirigiacuter~se para aleacutem das questotildees burocraacuteticas pOdemos inferir a exiacutes~ tecircncia de resistecircncra em relaccedilatildeo agrave presenccedila de cemiteacuterios lntramuros bem como agrave remoccedilatildeo ou acirc criaccedilatildeo de cemiteacuterios extra~muros A partir destes movimentos mais gerais que presentificam a criaccedilatildeo ou recriaM ccedilatildeo das cidades buscamos o processo de inserccedilatildeo desses embates na lrajetoacuteria que leva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade de Piracicamiddot ba de 1829 quando mencionado o espaccedilo cemiteacuterio pela primeira vez enquanto defeito- presenle no interior da Vila Nova da Constituiccedilatildeomiddot a sua inauguraccedilatildeo em 1872

Para a historiadora Theodoro podemos identificar no Brasil do seacuteculo XVlII uma tentativa do Estado em intervir mesmo que lentashymente na organizaccedilatildeo da cidade ou seja identifica que nos dois prishymeiros seacuteculos da histoacuteria do Brasil a constiluiccedil3o das vilas deu-se em funccedilatildeo de interesses privados e as mudanccedilas em curso naquele seacutecushylo engendraram uma nova organizaccedilatildeo urbana e o Estado instituiu-se como gestor dos interesses publicos Momento em que foi criada uma seacuterie de lugares puacuteblicos (largos praccedilas ruas etc) onde nas patavras de Janice Theodoro os colonos iacuteratildeo exercitar-se para se tornarem hoshymens civilizados - policiados como se dizia no seacuteculo XVIII - capashyzes de viver na urbe Neste sentido nos finais do seacuteculo XVII1 e iniacutecios do XIX as Cacircmaras baseadas na formulaccedilatildeo de Posturas passam a organizar nonnatizar e padronizar criteacuterios quanto a urbanfzaccedilaacuteo fundamentadas na ideacuteia de que os problemas da coletividade cabem ao Estado resolver administrando o espaccedilo da cidade

A criaccedilatildeo de um novo Cemiteacuterio que guardasse respeito agraves noshyvas normas ciacuteviacuteliacutezadoras natildeo foi a uacutenica preocupaccedilatildeo daquele momenshyto com a sauacutede puacuteblica Podemos ainda encontrar relatos bastante sjg~ nificativos desses impasses e intervenccedilotildees postos pela diferenciaccedilatildeo e ordenaccedilatildeo dos corpos no interior da cidade e que deveriam nortear o conviacutevio citadino Como exemplo citamos as intervenccedilotildees dessa Cacircshymara procurando assegurar atraveacutes da normatizaccedilatildeo com penalizashyccedilotildees o uso de vacina (pus vaciacuteniacuteco) pela populaccedilatildeo regulamentar a limpeza das ruas retirar animais do melo dos homens administrar o fiuxo do mercado dentre outras accedilotildees

Nessa perspectiva a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio da Saudade em Pishyracicaba nos possiacutebilita conhecer uma das possiacuteveis e pouco trabalha~ da formas de apropriaccedilatildeo dos saberes higiecircnicos A investida higiecircnishyca na regulamentaccedilatildeo dos cemiteacuterios reafirma o projeto de uma cidade que deveria nortear-se peja razatildeo da ordem e da limpeza colocandoshyas como questotildees de interesse puacuteblico isto eacute caberaacute ao Estado atrashyveacutes de legislaccedilotildees arbitrar os espaccedilos dos vivos e dos mortos

Os embates em torno da criaccedilatildeo desse Cemiteacuterio apenas inimiddot ciaram~se em 1829 mas fOI necessaacuterio quase meio seacuteculo para de falo a cidade dispor de um cemiteacuterio extramuros A remoccedilatildeo dos cemishyteacuterios estava diretamente ligada aacute linha de pensamento dos pensadoshyres e meacutedicos do seacuteculo XVIII como Lamarck e Eacutetienne SaintmiddotHillaire defensores da ideacuteia de que o meio ambiente era considerado ores

6 THEODORO Janlce T ~Rituais Urbanos In Memoacuteshyna 1979 pp 44~57

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

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4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 15: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

7 MACHADO Roberto Machado el alli Danaccedilacirco da Norma Medicina Social e Constiluiccedilacirco da PSIGula~ tTla 110 Brasil Rio de Janei~ ro Graal 1978

8 GUERRA Leacuteo ~Samiddot

nilacircnos de Antigamente 28 de setembro de 188fr In Jomal de Piraclcaba

ponsaacutevel principal pela sauacutede do corpo social e ao mesmo tempo de cada individuo dai as estrateacutegias de circulaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo

As propostas de cemiteacuterios extramuros conforme apresentado por Roberto Machado et alii estatildeo presentes noS discursos meacutedicos desde 1798 nas legislaccedilotildees e Posturas do Estado na Carta Reacutegia de 1801 - que proibe o enterro nas igrejas e ordena a construccedilatildeo de cemiteacuterios - na Portaria do Imperador de 1825 - que identifica insashylubridade nas formas de sepuUamento que eram de uso no Rio e no Coacutedigo de Posturas da Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro sendo que ela natildeo apenas faz indicaccedilotildees sobre cemiteacuterios e enterros mas procura normatizaacute-los com a exigecircncia de atestado de oacutebito o estabeshylecimento de profundidade da cova proibiccedilatildeo de cemiteacuterios nas igrejas e conventos etc

Os documentos da Cacircmara da Vila de Constituiccedilatildeo seratildeo posteriormente trabalhados mas podemos adiantar que uma seacuterie de entraves ocorreram para o prolelamento da criaccedilatildeo do cemiteacuterio extrashymuros Se em 1829 iniciam-se os debates apenas em 1857 a Cacircmara aprovou a transferecircncia dos sepultamentos para alem-muros da cidashyde iniciando-se sua construccedilatildeo em fevereiro de 1858 mas a jnaugu~ raccedilatildeo socirc se deu em 1872 Ao buscar legislar sobre os cemiteacuterios o Estado mais do que publicizar a questatildeo da fedentina dos cemiteacuterios a transrorma em foro de cidadania

Os relatos das atas e correspondecircncias da Cacircmara das Posshyturas e dos viajantes possibilitam-nos captar o olhar do outro sobre a cidade que nem sempre corresponde ao olhar de seus habitantes Nem por isso a preocupaccedilatildeo de uma cidade estruturada na ordem preacute~condiccedilatildeo para o progresso da cidade--organiacutesmo deixa de estar presente na apologia da cidade asseacuteptica A emergecircncia dessa proshyduccedilatildeo afirmando ou contrariando preocupava~se sobremaneira em natildeo macular a civilizaccedilatildeo Afinal fedentina doenccedilas e martos desoshycupados natildeo combinavam nem um pouco com a iacutedeacuteia de progresso Neste sentido os cemiteacuterios traziam a fedentina as doenccedilas e exibia a improdutividade dos mortos tornando desprovida de razatildeo suas preshysenccedilas entre os vivos

Aleacutem de problemas com o cemiteacuterto no interior da cidade Pirashycicaba viveu no seacuteculo XIX sempre na eminecircnda de um grande surto epidecircmiacuteco Carente de uma seacuterie de aparelhos higiecircnicos a cidade viveu a ansiedade de ser identificada com a civilizaccedilatildeo e ao mesmo tempo com praacuteticas tidas como baacuterbaras muitas habitaccedilotildees sem bashynheiros que obrigavam praacuteticas no miacutenimo curiosas como o transporte das defecaccedilocirces produzidas no presidia em barril destapado levado por um faxineiro atraveacutes da cidade afim de ser despejado no riacho Itapeshyva sem agua canalizada esgoto coleta de lixo etcll

Elevada a condiccedilatildeo de Vila em 1821 a Freguesia de Piracishycaba com o nome de Vila Nova da Constituiccedilatildeo natildeo ficou alheia aacute questatildeo dos cemiteacuterios no interior do espaccedilo urbano

O primeiro cemiteacuterio de Piracicaba encontrava-se na margem diacutereita do rio e deve ter servido para o enterramento dos pioneiros da cidade Supostamente o cemiteacuterio funcionou ateacute 1830 quando a majo~ ria da populaccedilatildeo transfenu-se para o lado esquerdo do rio passando

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 16: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

servir de referecircncia aos sepultamentos a Matriz da Vila Tanio Vitti~ quanto Guerra1amp identificaram a existecircnda de um cemileacuterio onde hoje [ocaliza~se a praccedila Tibiriccedileacute e a Escola Morais Barros que conforme veremos eacute para onde se dirigem as ingerecircncias puacuteblicas e os atritos com a Igreja local no processo de constituiccedilatildeo do Cemiteacuterio publico da Saudade Um outro privativo da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte fundada por Miguel Arcanjo 8enicio Dutra considerado o preferido da elite piracicabana funcionou ateacute a deacutecada de 1870 e posshyteriormente foi ocupado pelo Educandaacuterio das Irmatildes de Satildeo Joseacute

Apesar da centralizaccedilatildeo do poder decisoacuterio no Brasil no seacuteculo XIX podemos identificar nas Cacircmaras de Vereadores das cidades os embates postos pelo crescente componente hiacutegtecircnico Se natildeo repre~ sentativos em termos classistas consideramos que nos vaacuterios emba~ tes e nas pautas levadas agrave Cacircmara Municfpal de Piracicaba estiveram presenUficadas as diversas representaccedilotildees em lorno da higiacuteenizaccedilatildeo ou as reaccedilotildees agrave ela haja vista a insistecircncia em relaccedilatildeo agraves medidas que disciplinassem a vacinaccedilatildeo junto agrave populaccedilatildeo a insisteacutenciacutea com a prolbiccedilatildeo dos enlerramenlos no interior da Igreja e mesmo com a natildeo observacircncia de cuidados em relaccedilatildeo ao cemiteacuterio entre outras

Coube portanto no caso das cidades agraves Cacircmaras por meio de Posturas legislarem administrarem e fazerem cumprir as medidas da Presidecircncia da Proviacutencia No enlanlo a forccedila da lei ou do Estado natildeo foi suficiente para o cumprimento de determinadas decisotildees EnshyIre as tensotildees verificadas talvez a que se refere aacutes relaccedilotildees da Igreja ou setores desla com o Poder Puacuteblico eacute a que mais explicita no deshycorrer da trajetoacuteria da criaccedilatildeo do Cemiteacuterio puacuteblico a diluiccedilatildeo do papel das instituiccedilotildees religiosas nas decisotildees no iacutenterior da cidade

Como defeito da Vila a questatildeo do cemiteacuterio assim aparece em ata de 05 de marccedilo de 1829 e como estrateacutegia observada em 5ilushyaccedilotildees de temas considerados difiacuteceis a diacutescussaacuteo eacute adiada

O Senhor Machado propos mais sobre o dereito do semiacutelerio dentro do sentro da Villa entrou em discuccedilao e ficou adiado para a seguinte sessatildeo 12

Retomando na sessatildeo segu[nte a cautela predomina o que era defeito da Vila passa a ser considerado defeilo do inlerior da Igreshyja momento tambeacutem em que os interesses se confundem natildeo se sashybendo pelos envolvidos o que compete a quem

entrou em cegunda discuccedilatildeo o parecer do senhor Machado sobre a mudanccedila do Cemilerio fora do recinshyto da Viii digo do recinto do Tomplo o Senhor Correa propos que se devia offjeiar ao Revdo Vigario para a combinaccedilatildeo do lugar o Senhor Machado acrescentou mais que se officiasse ao FafJriqueiro pedindo hum calculo razoave do dinheiacutero cobrado a Fabrica foi aprovado l

9 Ver VITII Gulherme MANUAL DE HISTOacuteRIA prRACICABANA Pilaciacutecamiddot ba Jomal de Piraclcaba 1966 1EMOR1AS DE UM ARQUIVO DOCUMENTOS SOBRE OS CEMITEacuteRIOS QUE EXISTIRAM EM PI~

RACICABA E OUTROS ASSUNTOS Mimeobull sd PIRACICABA A NOIVA DA COLINA PIRACICABA Alois Hi75 sU8slDIOS A HISTOacuteRIA DE PIRACIshyCABA CORRESPOND~N elA OFICIAL DA CAcircMARA

1829-1839) Piracicaba Simiddot bliacuteoteca Municipal de Piracl caba sd SUBslDIOS Agrave HISTOacuteRIA DE PIRACICAshyBA CORRESPOND~NshyCIA OFICIAL DA CAMARA MUNICIPAL DE PIRAClmiddot CABA NO PERloDO DE 1855 A 1871 Piracicaba Biblioteca Municipal de Pimiddot radcaba 1966

10 Ver artiacutegos de GUERshyRA Leo na coluna ~A Seshymana na Histoacuteria publicada fiO Jornal de Piracicaba enmiddot tre 1980 e 1985~

11 Registramos em sesshysatildeo extraordinaacuteria conforshyme ala de 14 de Novembro de 1858 a ~criaccedilatildeoK de outro cemiteacuterio destinado a Irmandade de Sao Beneshydito por meio da divisa0 do

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 17: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

terreno ja em uso para os sepultamentos da cldade designando parte deste a Irmandade Sobre as Irman~ dades da Soa Morte e a de Satildeo Benedito encontram~

se esparsas referecircncias nas publicaccedilotildees locais Quanto a Ifmandade da Santa Casa de Miseric6rdia existem documentaccedilotildees bem mais elaboradas e uma doClshymentaccedilatildeo no local a ser investigada Refereacutendas a Irmandades ver tambecircm SILVEIRA Ignaacutecio riOrendo da Primeiro CentenMo da Santa Casa de Misericoacuterdia de Piracicaba 1854-1954 CAMBIAGHI Oswaldo Medicina em Piracicaba ConL-ibuiCcedillt1io aacute sua histoacuteria e Almanailt de Piracicaba para o Anno da 1900

12 Ata da Sessatildeo Ordina~ ria da Camara Municipal de 04 de marccedilo de 1829 fls 3 verso p 5

13 Ata da SessM Orclina~ ria da Camara Municipal de 05 de Marccedilo de 1829 fls 4 verso p 7

14 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de OS de Marccedilo de 1829 11s 5 p8

o poder puacuteblico poderia e deveria legislar as questotildees relashycionadas ao espaccedilo urbano procedendo a medidas higiecircnicas No enshylanlo eacute a Igreja quem deve ser consultada quando o assunlo satildeo os mortos Sem a incumbecircncia de registros documentais o poder puacuteblico nos parece fragilizar-se frente a uma instituiccedilatildeo que natildeo soacute retinha as almas mas lambeacutem a protildepriacutea memoacuteria da cidade enquanto guardiatilde da documentaccedilatildeo dos VIVos e dos mortos jaacute que a mesma era responshysavel por lais registros

A constataccedilatildeo de que os cemiteacuterios internos agrave Igreja tratavamshyse de um defeito que deveria ser consertado provocou reaccedilotildees na sessatildeo de 06 de maio de 1829 quando evidencia-se a preocupaccedilatildeo em natildeo se misturar os atribuiacuteos do Estado com os da Igreja diante do pedido do SL Machado que foi apontado por oulro membro daquela casa Sr Correa como inconveniente

que hera de parecer em natildeo fazer tal omcio porisso que natildeo hera da atribuiccedilatildeo da Gamara tomar conshytas do Fabriqueiro e que s6 devia cumprir com a Lei e natildeo exercer assim foi deliberado mais huma Coshymiccedilatildeo para escolher o lugar de matildeos dadas com o reverendo Vigario e foi nomeado o senhor Albano e senhor Silva 14bull

Nas praacuteticas colidia nas na cidade de Piracicaba eslas lenshysotildees entre o sagrado e Q cientiacutefico deveriam suscitar uma seacuterie de conflitos e temores em relaccedilatildeo a ambos afinal em quem acreditar jaacute que do ponto de vista de apresentar evidecircncias dos seus argumentos ambos o faziam muito bem

Em nome do interesse publico multas e penas foram apllca~ das caracterizando-se o infrator natildeo acirc medida da lei mas a da proacutepria sociedade Eacute a luta do Indiviacuteduo contra uma dada ideacuteia de coletividade evidenciada no cotidiano assim se justifica a vacinaccedilatildeo o branquea~ mento das casas entre outras Operam-se vigilacircncias sobre a cidade bem como sobre aqueles encarregados de cumpri~las

Sem uma Postura da Cacircmara Municipal que tratasse da quesshytatildeo dos cemiteacuterios jaacute que havia legislaccedilotildees especificas tanto da Presi~ decircncia de Satildeo Paulo quanto Reacutegia a questatildeo do cemiteacuterio retornou agrave Cacircmara com a definiccedilatildeo de um terreno contiacuteguo agrave Matriz mas ainda persistiram questotildees ligadas agrave competecircncia da Cacircmara para adminisshytrar tal empreendimento que envolvia natildeo soacute custos mas tambeacutem a gestatildeo da area que conforme jaacute registrado natildeo era considerada atrishybuto da Cacircmara

Em sessatildeo de 17 de outubro de 1831 leu-se correspondecircncia relativa agrave 01deg de Julho do Presidente da Provinda que recomendava para a Cacircmara a conservaccedilatildeo das estradas bem como a mudanccedila do cemileacuterio para fora do recinto dos Templos A documentaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos reafinnava o acircmbilo higiecircnico do problema cemileacuteshyrios e estradas nada mais eram do que aparelhos urbanos e como tal deveriam ser tralados Em resposta a Cacircmara manda que se olficie

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 18: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

ao Reverendo Vigaacuterio expondo a recomendaccedilatildeo e a pressa do Gover~ no em relaccedilatildeo agrave medida visando coibir tal praacutetica

Em 12 de janeiro de 1832 algumas duacutevidas iniciais satildeo reshysolvidas decidindo-se que as despesas para a mudanccedila do cemiteacuterio ficariam a cargo do Municipio e o novo lugar deveria ser escolhido de comum acordo com o Vigaacuterio e representantes da Cacircmara A resposta da Comissatildeo composta por Joseacute Alvarez de Castro Elias de Almeida Prado e Pedro Leme de Oliveira encarregada de tratar da remoccedilatildeo apresenta o seguinte parecer com o aceite da Cacircmara

A Comissatildeo encarregada de faser a escolha do lugar para a mudanccedila do Cimiterio foi de parecer que se des~ presasse o lugar jaacute asignaado por ser muito contiguo a Matriz e em pouco tempo ficaria dentro do Povoado o que heacute contrario ao espirito da Lei que por atlender a salubridade do Pais manda tirar o Cemiteacuterio do Recinshyto das Matrises que se plante o Cimiterio [ ] Foi aseishyto o parecer da Comissatildeo do Cimiterio e a vista delle rezolveu-se que o Fiscal fique encarregado para sem perda de tempo ir com o Arruador fase rem a mediccedilatildeo no lugar denominado pela Comissatildeo 15

Os procedimentos da Cacircmara revelaram restriccedilotildees em relashyccedilatildeo agrave possibilidade da existecircncia de cemiteacuterio intrarnuros da cidade planejando-se que caso tivesse que ter um novo enterramento para os mortos deveriam ser assegurados os preceitos de salubridade mantendo-se o meio livre das pestilecircncias produzidas pelos mortos determinando seu lugar na geografia da cidade e os lugares na sua geografia interna

Em 30 de abril de 1832 a questatildeo foi retomada novamente com um relatoacuterio do Fiscal que recomendava a roccedilada do cemiteacuterio mostrava certa incompreensatildeo pelo fato de natildeo se ler mudado o cemishyteacuterio e continuar-se a enterrar os mortos junto agrave Matriz e determinava que uma vez ocorrida a roccedilada do terreno designado se iniciassem os enterramentos

Na verdade a questatildeo desse terreno exige uma dose de pacishyecircncia por parte do leitor como exigiu do pesquisador pois a questatildeo eacute minimizada se encarada apenas tendo em vista o roccedilar O que ocorre eacute que a Igreja natildeo abre matildeo de suas almas utilizando~se deste artifiacutecio para protelar a ocupaccedilatildeo do terreno designado pela Cacircmara aleacutem de externar um valor em relaccedilatildeo ao proacuteprio cemiteacuterio Aleacutem da Igreja que resistia ao novo espaccedilo havia por parte da Cacircmara procedimentos na mesma direccedilatildeo embora se utilizando de recomendaccedilotildees da Presidecircnshycia da Proviacutencia instaurando comissotildees e definindo espaccedilos na cidade Percebemos que o espirito estava muito proacuteximo do laissez-faire

Vejamos o fato de 02 de Dezembro de 1833 a presidecircncia da Cacircmara solicita providecircncias do fiscal no sentido de assegurar portatildeo com chave na Ponte provavelmente sobre o Rio Piracicaba para que se cobrasse pedaacutegio A soluccedilatildeo partiu do proacuteprio presidente que sushy

15 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 14 de Janeiro de 1832 fls 28 p 30

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 19: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

16 Ata da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Municipal de 13 de Novembro de 1836 Livro 5 fls 12 pp 11-13

17 Ala da Sessatildeo Ordinashyria da Camara Munlcipal de 09 de Janeiro de 1837 Uvro 5 fls 12 pp 11-13

geriu a retirada do portatildeo existente no que deveria ser o cemiteacuterio e o transferisse para a Ponte em funccedilatildeo daquele espaccedilo estar desocupashydo e ser inadequado para tal funccedilatildeo

Conforme ata de 13 de novembro de 1836 foram formadas duas comissotildees que apresentaram os seguintes relatos

A comsccedilatildeo hncJo ver hum lugar para formar o Cimteshyrio encontra dois lugares proporcionados porem o que paresse eer mais comado eacute no fim da Rua que segue no Patiacuteo a par a Igreja_ Constm 13 de 9bro de 1836 -Manoel Joze de Franccedila Vigano Encomendado --- Theshyolomio Jaze de Mello A Comisccedilatildeo encarregada indo examinar o lugar mais proacuteprio para o Cimieno acha que no tim da Rua do Bairro Afio unido ao outro Cimiterio projetado estaacute mais proprio em razccedilo de eer plaino o lushygar e natildeo ler Cabeceira de Agoa Constm 13 de 9bro de 1836 Francisco de Camargo Penteado

Colocados em votaccedilatildeo na Cacircmara os pareceres houve emshypate retornando novamente a questatildeo em 27 de novembro quando a situaccedilatildeo foi de empate novamente Em relaccedilatildeo aos pareceres poshydemos identificar que no primeiro a proposta fere os principias postos de salubridade - a o uacutenico criteacuterio utilizado eacute o da comodidade - muito pouco para se coroear em risco a populaccedilatildeo da cidade atraveacutes da presenccedila natildeo soacute do cemiteacuterio iacutentramuros mas tambeacutem conjugado agrave Igreja No segundo parecer podemos constatar o respeito a alguns criteacuterios que buscaram cuidados na escolha do terreno levando-se em consideraccedilatildeo sua geografia no contexto da cidade e seu afastamento de possiacuteveis nascentes de aacutegua que poderiam se tornar veiacuteculos de contaminaccedilatildeo

A situaccedilatildeo de impasse ficou para o ano seguinte Com as alteraccedilotildees na composiccedilatildeo da Cacircmara para o ano de 1837 a questatildeo reaparece em 09 de janeiro daquele anoj atraveacutes da indicaccedilatildeo do veshyreador Joatildeo Carlos da Cunha

Proponho que se ponha em ixecuccedilatildeo os pareceres adiados sobre o estabelecimento de Cemiterio fora do recinto do Templo pois que eacute um objecto este dos que mais este Municipio necessita ver quanto antes decfdishydoU

A questatildeo do Cemiteacuterio sempre retoma acirc Cacircmara mas natildeo se kata de retomar as discussotildees acumuladas sobre o problema A indeshyfiniccedilatildeo quanto a um novo lugar e agrave conservaccedilatildeo do espaccedilo eXistente para os enterramentos contribuiacute para o protelamento de conflitos com setores da Igreja

Em 11 de novembro de 1837 O vereador Ignaclo Joseacute de Si-queira

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

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4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 20: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

indicou que se oficie ao Prefeito para que iacutenforme qual o andamento do Cemiterio foi aprovado [ J indicou que se de providecircncias a mais se natildeo enterrarem corN

pos dentro da Igreja resulta algum lucro a mesma Igreja o mal que cauza euroi maior que ese lucro foi aproshyvado e deliberado que se oficie ao Reverendo Vigario para que mais natildeo consinta o enlerramento de corpos dentro da Igreja

A fala do vereador d1rige~se no sentido de afacar os sepulta~ mentos no interior da Igreja e uma vez que o terreno designado atendia agraves reivindicaccedilotildees do Vigaacuterio ou seja aquele a par da Igreja caberia agrave Cacircmara providenciar medidas nO sentido de sua ocupaccedilecirco

Aliadas agrave morosidade da Cacircmara e agraves estrateacutegias da Igreja que concordava com parte do jogo politico mas assumia as responsashybilidades designadas pela Cacircmara tais medidas natildeo eram tomadas os cadaacuteveres continuaram se dirigindo para o interior da Igreja e ao espaccedilo externo contiacuteguo aacute matriacutez os defuntos dos escravos e pobres

Os que vemos por um bom tempo na documentaccedilatildeo satildeo ver~ dadeiros buracos negros sobre a questatildeo De vez em quando algueacutem lembra que O Cemiteacuterio eacute algo a ser ainda resolvido ou que medidas natildeo foram tomadas para sua recuperaccedilatildeo como a soflcitaccedilatildeo de vershybas para reformas etc t como se o poder puacuteblico natildeo conseguisse impor medidas a si mesmo e acirc Igreja Apoacutes 1837 deparamo-nos com ausecircncia de atas relativas ao periacuteodo e uma ausecircncia dessa questatildeo nos documentos encontrados o que nos dizeres de ViUi a paz dos mortos desceu sobre o assuntolil

O assunto retoma quatro anos apoacutes j em outubro de 1841 e depois em 1845 repetindo-se novamente a ladainha das proVidecircncias para a limpeza do terreno Ou seja havia um terreno designado soacute que o mesmo encontrava-se ao abandono a morosidade da Cacircmara era tamanha que nem deliberar sobre a questatildeo conseguia

O Sr Caldeira indicou que se achando o Simitario desta Viacutella em iotal abandono existindo tatildeo somente o terreno em abeno por isso que era de parecer que esta Camara desse providencia afim de se fazer dito Simiterio Discushylido e posto a votaccedilatildeo licou adiado

Algumas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas pela Cacircma ra mas nenhuma com referecircncia expliacutecita ao Cemiteacuterio propriamente dito como as apreciadas em 12 de janeiro de 1847 que legislavam desde a comercializaccedilatildeo de gecircneros ali menti cios ateacute acirc andar nu no rio Piracicaba mas de acordo com 0$ documentos em relaccedilatildeo agraves Posshyturas anteriores assistimos uma ampliaCcedilatildeo da inserccedilao do discurso higiecircnico em termos das relaccedilotildees e das praacuteticas sociais

Em sessatildeo extraordinaacuteria de 24 de agosto de 1847 o veshyreador Theotonio Joseacute de Mello manifesta preocupaccedilatildeo com as condiccedilotildees do Cemiteacuterio em liSO pela populaccedilatildeo apresentando um relato aterrorizante

18 Ata da Sessatildeo Ordlna~ lia oacutea Camara Municipal de 11 de Novembro de 1837 Livro 5 Os 47 pp 46-49

19 VITTI Guilherme Meshymoacutetiasde um Arquivo Docu~ mantos sobre os CemiteacuteriOS Que existiram em Piracicaba e outros assuntos Mmeo Piracicaba soacute p7

20 Ata da Sessatildeo Ordlmiddot naria De 28 de Outubro de 1845 Livro 7 1s 84 pp 6970

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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p ~50-51 uumlrJ TO t rJJ0S lJ 2

2) fpIIT-HII tlf11 viamiddot gem j )ilVil(Iacuteq lt10

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SAtildeo PCJk 1)1BSi 9~7 I(m lt$redol O ltapiacutehb ~ dophm5Q PSFl~

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 21: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

21 Ala da Seccedilatildeo Extraorshydinaria de 24 de Agosto de 1847 Ljyro 7 fls 143IYerso pp 133-134

22 Ata da Seccedilatildeo Ordinashyria de 09 de junho de 1848 LiYro 8 fls 18IYerso pp 20-21

23 Ala da Secccedilatildeo Extrashyordinaria de 29 de Abril de 1849 Ljyro 8 fls 59 pp 63-64

indicou que vendo na semana vio um catildeo devorando hum cada ver e altendendo ao dever de humanidade e de religiatildeo que se das providencias a tal respeito por meio de huma subscnccedilatildeo e elle indicante prompto estaacute a concorrer com sua quota 21

Ocorre que anos apoacutes a cena descrita novamente Theotonio Joseacute de Melo volta agrave tribuna observando dessa vez que natildeo se trata mais de reformas mas de uma solicitaccedilatildeo de um outro cemiteacuterio e mais que se defina normas de sepultamentos Assim eacute relatada a sua manifestaccedilatildeo

indicou que por varias vezes tem trazido ao seo coshynhecimento da Camara a necessidade de hum Simishyterio e tem passado pelo desgosto de saber que se tem enterrado os corpos mal o que ecirc desumanidade e como o cofre lem dinheiro eacute de parecer que se faccedila hum Simiterio O senhor Mello concorda com a indicashyccedilatildeo mas como a Camara natildeo pode gastar quantia que exceda sua alccedilada ecirc de parecer que se pessa aulhorishylaccedilatildeo o Governo [ ] Posto a votaccedilatildeo passou na forma da indicaccedilatildeo do senhor Mello 22

Novas Posturas satildeo apresentadas e aprovadas em 11 de jashyneiro de 1849 mas nenhuma se refere especificamente ao cemiteacuterio a natildeo ser a formaccedilatildeo de uma comissatildeo para subscriccedilatildeo do parecer da Comissatildeo anterior encarregada do Cemiteacuterio

Parece-nos em alguns momentos que a Cacircmara vive a fazer comissotildees para outras comissotildees que por sua vez se encarregam de outras comissotildees e quando chega o momento de alguma decisatildeo esta eacute encaminhada ao Govemo da Provincia inoperacircncia e centralishyzaccedilatildeo males satildeo

Em 20 de abril de 1849 a Cacircmara noliacutefica a liberaccedilatildeo de vershybas para os gastos com o Cemiteacuterio no entanto mantinham-se os cemiteacuterios no interior da cidade e tambeacutem passa o poder puacuteblico a responder pelos cadaacuteveres de indigentes

O senhor presidente declarou que tem contratado o fecho do simiterio pela quantia de 500$ portanshyto traz ao conhecimento da Camara para sua ulteshyrior decisatildeo foi deliberado que o senhor presidente podia fexar o ajuste O senhor presidente ponderou mais que a ocaziatildeo eacute boa para se fazer hum simishyterio atraz da Matriz ficou addiado para se tratar do plano O senhor presidente ponderou que lhe consta que appareceo hum corpo e natildeo havia quem inteshyressasse e que pedia a umanidade que a custa da Camara se desse sepultura a esses infelizes quanshydo por ventura tornem a apparecer 23

o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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o cemiteacuterio no centro da Vila deixou de aparecer como preocu~ paccedilatildeo ou risco de contaacutegio as criticas se dirigem mais aos sepulfamerrshytos internos aacute Igreja Como registrado eacutem novembro de 1849 quando o Presiacutedente da Cacircmara vereador Francisco Ferraz de Carvalho apre~ sentou um discurso em que era pedida novamente a proibiccedilatildeo geral de sepulturas na Matriz o que se traduzia na natildeo observacircncia dos preceitos puacuteblicos e da inoperatildencia da Cacircmara em fazer cumprir essa decisatildeo

Podemos observar que a remoccedilatildeo do cemiteacuterio passou por dois momentos um em que se pede a sua remoccedilatildeo para a periferia do espaccedilo urbano independente de sua localizaccedilatildeo dentro da Igreja ou fora dela no outro repudia~se o cemiteacuterio dentro das Igrejas sem no entanto colocar restriccedilotildees em tecirc~lo no interior da cidade Aleacutem disto algumas medidas deveriam ser tomadas seguindo os preceitos postos pela higienizaccedilatildeo como assegurar a plantaccedilatildeo de aacutervores no cemiteacuteshyrio solicitada em setembro de 1850 na Cacircmara

O cemiteacuterio ao lado da Matriz comeccedilou a funcionar no entanto as reparaccedilotildees e reclamaccedilotildees eram Interminaacuteveis haja vista o periodo registrado nas atas de 1852 a 1859 no qual tambeacutem encontramos evishydecircncias de que os enterros internos ao espaccedilo da Igreja deixaram de ser pracirctiacuteca usual uma vez que encontramos um pedido oficial por parte da Igreja que concerne agrave autorizaccedilatildeo para sepultamento do Vigaacuterio quando este morresse Pedido impensado algumas deacutecadas passashydas jaacute que a Igreja simplesmente sepultaria sem a devida solicitaccedilatildeo que foi inclusive deferida Isto aponta a nosso ver uma alteraccedilatildeo no jogo politico envolvendo os sepultamentos embora a Igreja continushyasse se recusando a aceitar o cemiteacuterio dentro das regras postas peto poder puacuteblico

Em 1854 o cemiteacuterio volta a pautar as discussotildees na Cacircmara mas agora em funccedilatildeo de protestos de moradores petas condiccedilotildees do cemiteacuterio em uso na cidade Essa manifestaccedilatildeo dos moradores gerou o seguinte pronunciamento em sessatildeo extraordinaacuteria no dia 15 de abri

fndiacutecou o Snr Oliveira que queixando-se os morashydores da banda do Semiterio que aliacute exala hum afito peslirem pedia que se desse providencias a resperto posto em discussatildeo foi dellberado que se officiasse ao Fiscal para que mandasse mais bem enterrados os cashydeveres 24

No entanto essa medida natildeo foi sufrciente para equacionar o pleito dos moradores Em 06 de Maio de 1855 a incidecircncia dos probleshymas comeccedilou a extrapolar o campo da limpeza do cemiteacuterio estando a exigir um caraacuteter mais funcional e disciplinado por parte do Sacrisshylatildeo que deveria zelar pelas funccedilotildees religiosas inerentes ao seu cargo mas tambeacutem assegurar o cumprfmento de normas disciacutepliacutenares nos enlerramenlos Inclusive uma comissatildeo encarregada de viacutesloriar os reparos no cemiteacuterio registra que as sepulturas natildeo satildeo socadas como tambeacutem natildeo se haacute ferramentas para tal5

Apoacutes lais constataccedilotildees medidas satildeo tomadas No entanto os abusos em relaccedilatildeo aos sepultamentos continuam a ocorrer Se por um

24 Ala da Sessatildeo Extrashyordinaria de 15 de Abril de 1854 Livro 9 fls 37 pp 51-52

25 Ata da Sessatildeo Extramiddot ordinaacuteria aos 06 de Maio de 1855 Livro 9 fls 64 v pp 83-85 e Ordinaacuteria de 12 de Julho de 1855 Livro 9 fls 69 V pp 89~90

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 23: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

26 ~Oflcio de 09 de Outu~ bro de 1855 aacute Assembleacuteia Pfovinclal~ apud VITII Guilherme Memoacuterias de um ArquIvo Documentos sobre os Cemiteacuterios que existiram em Piracicaba e outros as~ suntos Mimeo Piracicaba sld p13

lado eram de responsabilidade da Igreja tais praacuteticas por oulro cabia agrave Catildemara legislar e inlerceder sobre a questatildeo como ocorreu em 15 de julho de 1855 quando a Cacircmara solicitou manifestaccedilatildeo oficial ao vigaacuteshyrio sobre o abuso nos sepultamentos e impocircs uma multa ao Sacristatildeo por natildeo cumprir seu papel de garantir as normas de sepultamenlo

Em 1855 a cidade sofreu com uma epidemia de variacuteola le~ vando a Cacircmara a designar uma Comissatildeo para garantlr a salubridade puacuteblica bem como garantir ao povo os preceitos higiecircnicos Natildeo sabe mos se a epidemia foi a causa no entanto em oficio de 09 de outubro de 1855 foram encaminhados agrave Assembleacuteia Provincial artigos de Posshyturas relativas ao cemiteacuterio visando sua aprovaccedilatildeo definitiva ao que nos consta foram as primeiras investidas municipais serias relativas a normatizaccedilatildeo dos enterramentos e das atribuiccedilotildees do Sacristatildeo

Artigo 8deg As sepulturas para enterramento dos corpos no cemi~ lerio leratildeo nove palmos de fundo e quatro de boca para as pessoas adultas e para as crianccedilas seis palshymos de fundo e trecircs de boca sendo umas e outras feitas de modo que os corpos ou caixotildees em que eles forem assentem perfeitamente na superfiacutecie da terra

Artigo 9deg O SacrIstatildeo seraacute obrigado a assistir por si ou por pesshysoa que comiacutessiona agrave abertura daquelas sepulturas bem como ao enterramento dos corpos que seratildeo bem socados percebendo pelo seu trabalho ( ) que pagaratildeo as pessoas que o dito enterramento manda~ rem fazer bull M

Em 13 de outubro de 1855 novamente o cemiteacuterio volta agrave baila na Cacircmara o discurso natildeo eacute mais duacutebio definindo-se-objetivamente por meio de Posturas que o Poder Puacuteblico deve garantir o espaccedilo dos mortos e a observacircncia de praacuteticas salubres para a cidade

As Posturas em questatildeo criam uma seacuterie de taxaccedilotildees na proshyduccedilatildeo e comercializaccedilatildeo de vaacuterios produtos visando a arrecadaccedilatildeo de fundos para a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio As taxaccedilotildees satildeo criadas tendo por referencial o cumprimento de certas exigecircncias higiecircnicas na comercializaccedilatildeo de determinados produtos Visam tambeacutem discishyplinar atraveacutes de puniccedilotildees os nao cumpridores de praacutelicas higiecircnicas que vatildeo desde o abate de gadO ate a conservaccedilatildeo e branqueamento das frentes das casas

Essas Posturas satildeo iminentemente de ordem higiecircnica f ou seja o cemiteacuterio passa a uma categoria de espaccedilo de contaacutegio ateacute entatildeo restrito soacute agravequele localizado no interior da Igreja O que se obshyserva eacute que essas medidas de arrecadaccedilatildeo visando a conservaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo surtiram muito efeito o cemiteacuterio continuava mais caido que os mortos que nele habitavam natildeo havendo nunca verbas messhymo com as Posturas que as asseguravam Muito provavelmente elas foram destinadas aos vivos

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 24: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Uma nova comissatildeo entre as inuacutemeras que foram criadas inicia um trabalho visando a remoccedilatildeo definitiva do cemiteacuterfo apresen~ ando seu resultado em 15 de abril de 1857 considera o Bairro Alio como o maiacutes propiacutecio Deliberado pela Cacircmara suas obras deveriam iniciar-se em 1858

Neste interim ocorre mudanccedila na composiccedilatildeo da Cacircmara A questatildeo reaparece com a nova Cacircmara em 14 de novembro de 1858 com a convocaccedilatildeo de uma sessatildeo extraordinaria pelo seu Presidente Satvador de Ramos Correa para tratar da remoccedilatildeo do cemiteacuterio O resultado natildeo poderia ser mais desalentador

dice que achava melhor fazerwse o mesmo Semiteshyrio no lugar velho repartindo~se o mesmo foi esta inmiddot dicaccedilatildeo aprovada ficando a cargo do Snr Presidente fazendo-se de parede de matildeo com alicerces de pedras esteios de madeiras de Lei alura e tudo mais desta obra a cargo do mesmo Snr Presidente mandandoshyse outra sim promover a cobranccedila dos que asiacutegnaratildeo uma subscriccedilatildeo para uma CapeIa dentro do mesmo Semiterio ficando o restante deste terreno para um Semialio da Irmandade de S Benedito

Sendo esta a proposta aprovada mais uma vez adiacuteou-se a transferecircncia do cem[teacuterio para o Bairro Alto No entanto a Cacircmara natildeo teve nenhum problema em sessatildeo de 22 de janeiro de 1860 em atender requerimento dos alematildees protestantes moradores em Pira~ cicaba de um terreno para cemiteacuterio jaacute que seus mortos natildeo eram admitidos nos cemiteacuterios da cidade conforme legislado pelo Poder puacutemiddot blico que somente permitia almas cristatildes catoacutelicas O pedidO nacirco soacute foi deferido como ficou determinado o Bairro Alto para tal localizaccedilatildeo

O antigo cemiteacuterio continua motivo de atritos entre a Cacircmara e O Sacristatildeo que vive a cobrar por emolumentos que natildeo se cumprem e limpezas que natildeo ocorrem Aleacute mesmo a Irmandade de Satildeo Benedito foi advertida de que perderia sua exclusividade em enterramentos na parte que lhe cabIa no cemiteacuterio caso natildeo deg limpasse

Nas correspondecircncias expedidas e recebidas pela Cacircmara podemos observar uma seacuterie de movimentos no sentido de passar o controle sobre os registros civis para0 poder puacuteblico seja regulando os registros dos casamentos nascimentos e oacutebitos daqueles que professhysavam outras religiotildees que natildeo a oficial seja criando criteacuterios para o exercicio da medicina

ParecBwnos que as condiccedilotildees do cemiteacuterio natildeo melhoraram A sItuaccedilatildeo vai se tornando insustentaacutevel como podemos observar no regisiro de 20 de abril de 1870

Para o Cemiacuteterio Publico sinto O estado de mina em que se acha o acluallenho encommendado os tl)oos conforme os contratos que com esle passo as suas mijas que devera estar prompto ateacute o fim de marccedilo

~1 Ata da Secccedilatildeo Egttrashyordinana de 14 de novemmiddot bro de 1858 Livraacute 9 Os 161 p 219

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

BIBLIOGRAFIA

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 25: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

28 Acta da Sessatildeo exmiddot lraordinaacuteria aos 20 de abril de 1870 sob a presidecircncia do Dr Euaacutelio Livro XII rs 151

29 Correspondecircncia da Secretaria da Camara Mal da Cidade da Constm a Presidecircncia da Provincia aos 22 de Fevereiro de 1871~ n VITTJ Guilherme Subsidios a Histoacuteria de Pio racicaba Correspondecircncia Oficial da Cagravemara Municipal decirc Piracicaba no periacuteodo de 1855 a 1871 Piracicaba Bishyblioteca Municipal de Piracfmiddot caba 1966 pp 402-403

proacuteximo futuro Estando jaacute escolhida a localidade para o cimiterio julgo de maior urgeacutenciacutea a sua construccedilatildeo e natildeo tendo a Camara possibilidade de realizaacutemiddotlo por outra forma deveraacute pedir a Assembleia Provincial para contrahir um empreacutestimo u

Essa decisatildeo implicava a primeira vista o fim dos cemiteacuterios no intenor da ciacutedade e a mudanccedila da administraccedilatildeo Natildeo se retiraria do padre o dIreito de benzer o novo cemiteacuterio a ser construido mas a administraccedilatildeo dos registros e do ordenamento geogragravef1co caberia ao Poder Puacuteblico zelador dos interesses puacuteblicos

Talvez contribuindo para o apressamenlo de soluccedilotildees que leshyvassem acirc construccedilatildeo do cemiteacuterio estava a eminecircncia da epidemia de variola que assolava as cidades da regiatildeo e pelos documentos puacute~ blicos a luta contra a epidemia acabava se estabelecendo a partir do criteacuterio de civilizaccedilatildeo ou seja a cidade civiliacutezar-se-ia pelas tecnologias cientiacuteficas que dispusesse e natildeo pela crenccedila em Deus O temor desse mal que rondava a regiatildeo talvez pudesse explicar a correspondecircncia oficial de abril de 1871 da Cacircmara Municipal agrave Presidecircncia da Provinmiddot cia em que a siacuteluaccedilatildeo sanitacircria da cidade eacute assim apresentada

Taes satildeo entre esse melhoramentos a edificaccedilatildeo de novo cemiteacuteno publico por estar o acual colomiddot cado quasE no centro da cidade e em ruinas lendo seus muros em parte desabado o estabelecimento de meios que possam abastecer permanentemente a populaccedilatildeo de agoa potavel por que as fontes que existem no centro da cidade secam durante a maior parte do ano e o rio alem de estar distante de granshyde parte da povoaccedilatildeo oferece quasi sempre agoa imbebivel pejas suas impurezas [] torna-se mais tarde talvez a principal fonte de miasmas paludosos (incompreensiacutevel na coacutepial grifo nosso) que inshyfecam seus abilantes o calccedilamento das tias onde em tempos chuvosos formam-se verdadeiros chacos que tomammiddotse l fontes de exalaccedilotildees peslilenciaes alem de dificultarem o transito [ esta Camara julga de seu dever emprehender satisfazer ao menos duas mais momentosas a edificaccedilt10 do Cemiterio publimiddot co e o estabelecimento de meios para o abastecimenshyto de agoa potavel nesta cidade iacute pouca utilidade teriam para conservar o cemilerio actual e [ ] sem de modo algum atenuar os sofrimentos da populaccedilatildeo nos tempos de seca pela fafta de agoa e remediar os males que provem da conservaccedilatildeo de um cemiterio no centro de uma populaccedilatildeo crescente 9

Decldindo~se pela urgecircncia da construccedilatildeo e com o lugar ja esshycolhido o Bairro Alto quase dois anos depois eacute inaugurado o Cemiteacutemiddot rio que viria a ser conhecido como o da Saudade

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

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4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 26: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

o CemiteacutelIacuteo da Saudade conforme definido pela Cacircmara deveria comeccedilar suas funccedilotildees humanitaacuterias a partir de dezembro de 1872Encontramos duas informaccedilotildees relacionadas aos emolumentos Quanto ao primeiro sepultamento encontramos duas referecircncias uma que indica ser o cadacircver de uma receacutem nascida filha de uma tal Esshytrella do Norte em maio de 1872 e outra que informa ser de Gershytrudes escrava de Antonio Joseacute da Conceiccedilatildeo Juacutenior viuacuteva preta de 46 anos de Idade vitima de moleacutestia ignorada31 Registro importante menos pelas possiacuteveiacutes contradiccedilotildees e mais por expor uma sociedade de desigualdades sociais e discriminatoacuterias que destituiacuteH os escraVos de passado pela negaccedilatildeo de seus paiacutes e pela reafirmaccedilatildeo de suas condiccedilotildees sociais na presente

Os cemiteacuterios no interior das cidades natildeo coadunavam com a perspectiva que buscava uma ordem no meio e nas reJaccedilotildees seja pelo espaccedilo ocioso que representava seja peja ideacuteia improduliacuteva que os mortos e a morte traziam Criando os cemiteacuterios extramuros as dda~ des moralizavam a morte e os mortos

Pudemos no decorrer desta exposiccedilatildeo atentar para uma seacuterie de indicios no que tange a algumas concepccedilotildees que costumeiramenshyte satildeo relacionadas ao repubticanismo como as vaacuterias investidas na tentativa de se publicizar os cemiteacuterios e assumir o controle dos regisshytros civis entre outras Parece-nos que o regime poliacutetico monarquia ou repuacuteblica natildeo deva Ser mtnimizado jatilde que as suas estruturas satildeo diacuteferenciadas e engendram concepccedilotildees no cotidiano e nas praacuteticas sociais No entanto parece-nos ainda que existem algumas questotildees que satildeo de um tempo e a ele natildeo escapam O regime monaacuterquico natildeo ficou imune agraves tensotildees trazidas pelas ideacuteias liberais e que pressionashyram por alteraccedilotildees na organizaccedilatildeo e na formulaccedilatildeo de uma ideacuteia de cidade Segundo Reis

o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilizaccedilatildeo contra a barbaacuterie da cultura de efiacutete contra a cultura popular de uma nova cultura pretensamente europeacuteia e branca contra uma definida como atrasada colonial e mesticcedila A ideacuteia era fazer das instituiccedilotildees liberais um mecanismo eficiente de intervenccedilotildees nos costumes do povo sem abandonar uma longa radishyccedilatildeo de dominaccedilatildeo patemalista A instituiccedilatildeo liberal estrateacutegiacutecamenle melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Municiacutepio [ JA criaccedilatildeo de cemiteacuterios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades Os mortos ou pelo menos seus corpos eram sem ceshyrimocircnia associados a aacuteguas infectas imuacutendices e corshyrupccedilatildeo do af~2

No Brasil a decreteccedilatildeo da Repuacuteblica seria mais um fator no conjunto de transformaccedilotildees que ocorreram nos finais do seacuteculo XIX que dinamizaram a investida higlecircnica no paIs Mesmo assim parece~ nos complicado procurar entender a higienizaccedilatildeo ou mesmo a laicizashyccedilatildeo dos cemiteacuterios por exemplo soacute a partir da Repuacuteblica

30 Ephemerides de Maio de 1872 In A1manak de Piradcaba para o ano de 1900 pA7

31 GUERRA Leacuteo -A cashypftulo dos cemiteacuterios 11 de junho de 18$4 In Jornal de Piracicaba 171061984

32 REIS Joatildeo Joseacute A morte eacute uma festa Ritos Fuumlnebres e revolta popular nO Brasil do seacuteculo XIX 3~ Reimpressatildeo $secto Paulo ela das Lelras 1999 pp 275-279

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 27: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

33 Os Livros de Registros de Concessotildees e Seputa~ mentos de Piracicaba cons~ latam que a criaccedilatildeo daquele cemitecircrio natildeo troue imeshydiatamente a normatizaccedilatildeo efetiva das praticas funeraacuteshyrias ao discurso medico Veshyrificamos na documenlaccedilatildeo de 1872 a 1932 um processhyso moroso de construccedilatildeo de uma classificaccedilatildeo meacutedica nos registros burocraacuteticos ti9ados acirc morte No periacuteodo anterior a 1932 natildeo vemos a assepsia presenle do morrer dos dias aluais Que nos impede ale de sabershymos do que se morre como exemplo quem morreria hoje de lombrigas dentada de cobra facadas repentishyna etc Na luta da morte contra a vida as pessoas se tornavam habitantes da ~cidade dos pocircs juntos~ em funccedilatildeo do wsucesso da caushysa da morte

Na Repuacuteblica essas posiccedilotildees seriam bastante fortalecidas ocorrendo maior acumulaccedilatildeo de poder de decisotildees por parte dos hishygienistas E a despeito das resistecircncias agrave vacinaccedilatildeo das lutas contra a remoccedilatildeo e desalojamento dos corticcedilos etc bull comeccedilaram a se conshyfigurar mudanccedilas de atitudes em relaccedilatildeo agrave higienizaccedilatildeo provocando menos estranheza em relaccedilatildeo aos seus preceitos e mais estranheza agravequeles que se negavam a admiacutetiacuter sua ingerecircncia no cotidiano de suas vidas Mas comeccedilam esboccedilar~se tambeacutem outras lutas que iacutencorposhyrando preceitos higiecircnicos reiviacutendicaram melhores condiccedilotildees de vida

Parece~nos que ao se colocar a remoccedilatildeo dos cemiteacuterios in~ tramuros da cidade no limiar dos finais do seacuteculo XIX a queslatildeo hishygiecircnica como justificativa parece menos uma higienizaccedilatildeo do meio como a posta nos finais do seacuteculo XVIII e mais uma higienizaccedilao das atitudes e dos corpos

Parece-nos portanto que vincular exclusivamente a criaccedilatildeo do Cemiteacuterio em 1872 aos saberes higiecircnicos como estes se colocashyvam no seacuteculo XVIII eacute perdermos de vista a proacutepria historicidade da constituiccedilatildeo desses saberes Registros burocraacutetiacutecos como os Livros de Registros de Concessotildees e de Sepullamentos iniciados em 1872 e pesquisados ateacute 1991 vatildeo apresentando paulatinamente expresshysotildees que indicam a operacionalizaccedilatildeo que ocorre com a inserccedilatildeo do discurso higiecircnico na dimensatildeo da cidade dando-se uma apropriaccedilatildeo do cemiteacuterio natildeo soacute como recinto onde se enterra e guarda os mortos campo-santo cidade dos peacutes-juntos etc mas que imprime significado higiecircnico e moral junto ao espaccedilo urbano que tambeacutem passa a signishyficar um lugar de memoacuteria

O cemiteacuterio natildeo responderia apenas agraves expectativas higiecircnishycas mas instituiu-se tambeacutem como espaccedilo de cultuaccedilao que acreshyditamos ser de valores morais mais do que religiosos ao contrario dos cemiteacuterios administrados pelo clero catoacutelico O culto aos mortos eacute estimulado em tenmos dos supostos valores morais que tinham em vida iacutenstituindo-se assim uma exiacutestecircncia idealizada dos mortos com caraacuteter puacuteblico ciacutevico

O cemiteacuterio institut-se natildeo apenas como moradia dos morshytos mas tambeacutem como lugar de uma possiacutevel perpetuaccedilatildeo ou messhymo de suporte da memoacuteria O abandono assistido nos cemiteacuterios no passado natildeo nos parece apenas resultado de mero relapso mas guardava a concepccedilatildeo de um mundo mais simples onde bastava estar morto para ser enterrado Devemos esclarecer no entanto que natildeo entendemos que os cemiteacuterios passaram a ter uma rlashyccedilao tranquumlila com os higienistas muito pelo contraacuterio uma seacuterie de decretos eacute instituida visando administrar a questatildeo principalmente apoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica

Os higienistas obviamente acreditavam naquilo que propushynham de que uma vez assegurada a prevenccedilatildeo eviacutetavam-se as doshyenccedilas E quando natildeo as evitavam por forccedila das ciacutercunstancias estashybeleciacuteam~se outros inimigos No entanto com possiacuteveis diferenccedilas os higienistas lambeacutem estavam voltados para os indiviacuteduos vistos como objetos de intelVenccedilatildeo meacutedica

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

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2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 28: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Nos finais do seacuteculo XIX os cemiteacuterios tendem a destacar a transferecircncia das condiccedilotildees sociais da cidade para o mundo dos mor tos Grandes monumentos satildeo erigidos pelas familias mais abastashydas estimulando a produccedilatildeo de uma arte funeratilderia onde incluiacutemos os epitaacutefios as fotografias tentativas de se eternizarem na memoacuteria dos vivos a num certo sentido estabelecer as diferenccedilas sociais dos que foram e dos que ficaram

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 29: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Nas paacuteginas envefheciotildeas otildea Gazeta otildee piracicaba

O Coleacutegio piracicabano e a constituiccedilatildeo otildee seu curriacutecufo no

finotildear otildeo seacuteculo XIX

Edivilson Cardoso Rafaeta1

RESUMO

Aberto especialmente para atender filhas de uma sociedade republicana e urbana em gestaccedilatildeo o Coleacutegio Piracicabano instituiccedilatildeo confessional metodista teve sua primeira aula ministrada em 13 de setembro de 1881 Dir[gido no periacuteodo pela missionaacuteria e educadora Martha Watts auferiu nas notas e artigos veiculados em jornais locais o prestigio de instituiccedilatildeo escolar moderna dotada de um ensino inoshyvador Nesse artigo apresentamos alguns dados sobre a constituiccedilatildeo do curriculo da escola resgatados por meio de anaacutelise cultural (Burke 2000 Chartier 1995) da Gazela de Piracicaba perioacutedico que compotildee o acervo do Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP) e das missivas de Martha Walts reunidas na obra Evangelizar e Civilishyzar(Mesquita 2001) Como foi possivel verificar a consliluiccedilatildeo desse curriacuteculo moderno e inovador era em certa medida resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constituiacuteam no bojo da con A

vivecircncia entre os diversos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais politi~ co e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Palavraschave Curriculo Coleacutegio Piracicaba no Martha WaUs Educaccedilatildeo Feshy

miacutenina

Aberto em 13 de setembro de 1881 pela missionaacuteria e educashydora metodista Martha Hile Walls o Coleacutegio Piracicabano tinha como Um de seus principias fundantes educar as filhas de uma eli1e republi M

cana local oferecendo um ensino diversificado e visando entre outras cOisas possiblliacutetar que o metodismo ganhasse adeptos e defensores por meio do ensino ministrado em seu Interior

Sua abertura se deu num longo movimento que durou mais de um terccedilo de seacuteculo sendo (rulo da conexatildeo de uma seacutede de interesM

1 Mestrando da Facul~ dadO de Educaccedilatildeo da Unjo camp junto ao Grupo Me~ moacuteria Hist61ia e Educaccedilatildeo onde desenvolve pesquisa sobre os desdobramentos da educaccedilatildeo feminina ml~

nistrada pela educadora esmiddot laduniacutedense Martha WaUs na Caleacutegio Piracicabano na cidade de PlraclcaMSP A pesquisa desenvolvida sob a oriertaccedilatildeo da Profa Ora Heloisa Helena Pimenta Rocha conta ccedilom financiamiddot mento do CNPq

ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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ses de diversas personagens que ao confluiacuterem num intento comum possibilitaram a abertura de um coleacutegio para meninas na cidade de Piracicaba em fins do seacuteculo XIX Esse processo se iniciou nas primeishyras deacutecadas do oitocentos quando em 1830 a tgreja Metodista do sul dos Estados Unidos enviou seus primeiros missionaacuterios agraves terras brashysileiras A missatildeo enfrentou uma seacuterie de problemas e acabou sendo encerrada em 1835 quando os missionaacuterios retornaram ao seu paiacutes de origem (GOLDMAN 1972)

Em meados do seacuteculo XIX no periacuteodo que envolve a Guerra de Secessatildeo grupos estadunidenses deixaram os EUA e se instalashyram em vaacuterias colotildenias situadas nas provincias brasileiras ateacute que se concentraram na regiatildeo de Santa Barbara OOeste devido a fatores como a qualidade da terra o facil escoamento dos produtos a proximishydade das linhas feacuterreas que cortavam a regiatildeo e o baixo preccedilo das tershyras Esses imigrantes fizeram tentativas de conservar a cultura de seu pais de origem Sendo muitos deles protestantes e maccedilons acabaram por fundar a primeira igreja metodista no Brasil (1871) e a primeira loja maccedilocircnica da regiatildeo (Washington Lodge) em 1874 Possivelmente foi nesses ambientes que os imigrantes estadunidenses estabeleceram contatos que posteriormente colaboraram na abertura do Coleacutegio Pishyracicabano (DAWSEY 2005)

A presenccedila de missionarios presbiterianos que em 1870 deshycidiram abrir um coleacutegio para atender os filhos de uma elite situada na regiatildeo de Campinas foi igualmente importante para a abertura do Piracicabano Esses agentes desejavam aproximar-se da elite campishyneira e desse modo encontrar apoio para a difusatildeo de seus preceitos religiosos O ecircxito alcanccedilado por esses missionarios na abertura do coleacutegio fez com que J J Ransom missionaacuterio metodista enviado ao Brasil em 1876 passasse a olhar a abertura de um coleacutegio como a melhor estrateacutegia de divulgaccedilatildeo do metodismo em territoacuterio brasileiro (HILSDORF BARBANTI 1977 e 1986)

~ nesse momento que o apoio de elites republicanas da reshygiatildeo de Piracicaba (especialmente os irmatildeos - advogados e maccedilons - Prudente e Manoel de Moraes Barros prestadores de serviccedilos aos colonos norte-americanos de Santa Baacuterbara) desejosas de mudanccedilas no cenaacuterio politico brasileiro e aspirantes de uma educaccedilatildeo diferenciashyda daquela vigente durante o Impeacuterio vatildeo oferecer auxilio para que o coleacutegio metodista seja instalado na cidade Se por um lado os missioshynaacuterios metodistas desejavam um meio de aproximaccedilatildeo das elites brashysileiras por outro essas elites progressistas e republicanas desejavam um coleacutegio com um ensino diferenciado daquele oferecido ateacute entatildeo no qual pudessem educar seus filhos

Em meio a todo esse contexto eacute que o Coleacutegio Piracicabano pocircde ser fundado ao findar de 1881 sob a direccedilatildeo de Martha Watts Muitos dos elos de ligaccedilatildeo estabelecidos entre os sujeitos envolvidos foram fruto dos cenaacuterios por onde essas personagens transitavam tenshydo como pano de fundo a questatildeo poliacutetica efervescente na qual vaacuterias lideranccedilas se articularam para potilder fim ao regime monaacuterquico brasileiro Entendemos que todo esse panorama possibilita vislumbrar de um modo mais abrangente um leque de questotildees (poliacuteticas econocircmicas

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 31: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

sociais e culturais) que foram postas em movimento e se aproximaram para a efetivaccedilatildeo de um projeto

Entre latim e zoologia o curriacuteculo do Coleacutegio Piacuteracicabano

Em 14 de fevereiro de 1883 por ocasiatildeo da festa de lanccedilamento da pedra fundamental do preacutedio do Coleacutegio Piracicabano realizada dias antes a Gazeta de Piracicaba publicou alguns dos discursos que foram lidos pelos oradores ao longo da celebraccedilatildeo Dentre eles a composiccedilatildeo de Maria Escobar primeira aluna do coleacutegio eacute modelar Num discurshyso centrado na defesa da educaccedilatildeo feminina apresenta diligentemente sua posiccedilatildeo favoraacutevel acirc disseminaccedilatildeo dessa praacutetica educativa na socie~ dada da eacutepoca (GP 140211883 p 1) Sua escrita denota traccedilos de um conhecimento inlelectual e ainda chama a atenccedilatildeo pelo fato de ter discursado diante de uma plateacuteia ilustre e ao lado de oradores imporshytantes como os politicos Manoel de Moraes Barros Rangel Pestana o reverendo JJ Ranson e outros (GP 140211883 p 1)

A apresentaccedilatildeo puacuteblica de uma das alunas do coleacutegio duranshyte uma festividade na qual participou uma gama variada de figuras de destaque local na eacutepoca coloca-nos importantes questotildees Afinal como estava estruturado o currfculo do coleacutegio de modo que possibishylitasse a uma de suas alunas discursar em uma cerImocircnia puacuteblica2 Em que medida essa estruturaccedilao era fruto de experiecircncias educacioshynais vividas peios seus organizadores em instituiccedilotildees de ensino norteshyamericanas Que outras questotildees internas e externas atuavam como delimitadoras das estrateacutegias de organizaccedilatildeo e difusatildeo dos saberes escolares Quais dispositivos regulavam as relaccedilotildees de dependecircncia que atuavam como delimitadoras no processo de configuraccedilatildeo do coshyleacutegio (CARVALHO 2001 VINCENT LAHIRE 2001)

Na tentativa de responder algumas das inquiriccedilotildees acima o jornal Gazeta de Piracicaba e as cartas escritas por Martha WaUs opeshyram como importantes meios de informaccedilatildeo na busca da constituiccedilatildeo do curriculo oferecido pelo Piracicabano

Em meados de 1882 a Gazela fez circular uma pequena nola relatando os exames que se efetuaram em 15 de junho Nela podeshymos verificar algumas das mateacuterias que foram ensinadas ao longo do periacuteodo de aulas que antecedeu os exames

Assistimos anteontem aos exames que se efetuaram neste coleacutegio O progresso das alunas a boa ordem o meacutetodo de ensino e as mais qualidades que satildeo fundamentos dos coleacutegios mais proacuteprios para espalhar a educaccedilatildeo e soacutelida instruccedilatildeo na nossa sociedade patentearam-se aos ouviacutentes Sentimos em natildeo poder apontar o que mais atraiu nos~ sa atenccedilatildeo Falta-nos o tempo visto esta folha achar-se em ponto de ser impressa

2 Num beHssirno trabashylho sobre a moralidade e a modemidade nas deacutecadas iniciais do seacuteculo XX SU8 ann Caulfield ao investigar caSOs que envolviam con~

cepCcedilOtildees a respeiacuteto da h0shynestidade sexual no Brasil do perlodo destaca como as mulheres eram regidas socialmente por uma moshyralidade comum a qual cerceaVa sua lida em muimiddot tos sentidos denlre eles a reslriccedilatildeo ao espaccedilo domeacutes~ lico pois o espaccedilo puacuteblico era Ildo como circunscrito ao primado masculino (Cf CalJlfield2000)

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 32: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

3 Ecirc importante ressaltar que embora o coleacutegio fos~ se voltado especialmente agrave educaccedilatildeo feminina funcioshynando corno internatoextershynato para meninas tambeacutem recebia ~meninos bem commiddot portados ateacute 14 anos~ no fegime de ex1emato (GP 0110211895 p 2)

4 A Gazela de Piracicaba veiculou a publicidade de 14 a 26011883 sempre na seccedilatildeo de anuacutencios loca~ lizada em geral na paacutegina 4 Importa lembrar que ( jomal circulava nesse pe~ rlodo aacutes quartas sextas e domingos natildeo havendo dias sanlmcados~ o que significa que () anuacutencio fOI publicado em cinco ediccedilotildees sucessivas do jornal (GP janeirol1883

Resumiremos pois dizendo que os Exerciacutecios de AIshygebra Anmiddottmeacutetiacuteca as poesias Portuguesas Francesas e Inglesas recitadas por inteligentes meninas satisfishyzeram plenamente aos espectadores e deram provas evidentes da habilidade e ilustraccedilatildeo das professoras (G P 17061 B82 p 2)

Aacutelgebra aritmeacutetica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs Esshysas satildeo algumas das mateacuterias que foram apresentadas nos exames do coleacutegio no final do primeiro semestre de 1882 Embora natildeo fomeccedila deshytalhes o redator da nota jornaliacutestica refere-se tambeacutem agrave boa ordem e ao meacutetodo de ensino

Numa das cartas enviadas por Martha Watts agrave Junta de Mulheshyres entretanto esse exame eacute apresentado detalhadamente Ela descreve COmO o mesmo foi preparado e a surpresa com que professores e alunos receberam a notida pois as crianccedilas nUnca haviam viSlo coisa alguma a respeito de exames escritos e por isso se perguntavam como seria Acrescenta ainda que os professores que natildeo estavam acostumados a [seu] modo de correccedilatildeo e organizaccedilatildeo das provas acabaram tomando o trabalho com entusiasmo (MESQUITA 2001 p 46)

Muitos dados sobre o trabalho pedagoacutegico desenvolvido no coleacutegio foram descritos por Manha Watts especialmente as disciplinas ensinadas Suas palavrasmanifestam um tom de satisfaccedilatildeo quanto aos resultados o que era de se esperar uma vez que por meio de suas carshytas ela oferecia informaccedilotildees agrave Sociedade de Mulheres mantenedora da instituiccedilatildeo Na realidade o que fazia era uma espeacutecie de prestaccedilatildeo de contas Sendo assim deveria evidentemente demonstrar entusiasmo e satisfaccedilatildeo com o trabalho que era ainda inicial Embora natildeo estejamos tentando desabonar os resultados dos exames com esse apontamento natildeo se pode deixar de considerar o contexto de produccedilatildeo dessa fonte e os objetivos que orientaram a sua produccedilatildeo

Contudo ecirc possivel relirar de seu relato indiacutecios sobre a instrushyccedilatildeo ministrada no coleacutegio As mateacuterias ciladas pelo redator da noticia anteriormente apresentada satildeo confirmadas pela carta aacutelgebra aritmeacuteshytica poesias em portuguecircs francecircs inglecircs A essas satildeo acrescentadas outras como alematildeo botacircnica e muacutesica Natildeo se mendona qualquer mateacuteria voltada aos bons modos das alunas embora essa fosse uma preocupaccedilatildeo que certamente a acompanhava pois faz menccedilatildeo ao comportamento modesto virginal digno aleacutem da doccedilura e dilishygecircncia de algumas de suas alunas (MESQUITA 2001 p 46)

O relato da cerimocircnia do exame faz desfilar diante do leitor o rot de mateacuterias ensinadas bem como algumas das mateacuterias que visavam a transmissatildeo dos conteuacutedos e a formaccedilatildeo moral das alunas Encerrando modos distintos de abordagem a professora se refere agrave organizaccedilatildeo das aulas expondo uma a uma as disciplinas que compushynham o curriacuteculo do coleacutegio Mas eacute em uma propaganda do Piracicabashyno veiculada em cinco ediccedilotildees da Gazeta no inicio de 1883 que uma lista completa das mateacuterias ensinadas no coleacutegio ganha corpo

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 33: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Gazea de Piracicaba 14 a 280111883 p 4 Dmensotildees da Paacutegina Inteira Largura 1944 x Altura 2592 (Pixel) - Arquivo IHGP

Conforme consta no anuacutencio o curriacuteculo do coleacutegio contava com o ensino de cinco IInguas (portuguecircs francecircs latim inglecircs e aleshymatildeo) aleacutem de aritmeacutetica aacutelgebra geometria asiacuteronomra cosmografia I geografia histoacuteria universal histoacuteria paacutetria histoacuteria sagrada literatura ciecircncias naturais desenho muacutesica e trabalhos de agulha Quando a Gazeta relatou os exames do segundo semestre de aulas do coleacutegio em 28 de dezembro de 1883 outras mateacuterias que natildeo constavam na propaganda veiculada no iniacutecio desse ano foram referidas pelo redator Eram elas fiacutesica quiacutemica ginaacutestica e anatomia Possivelmente as mashyteacuterias quiacutemica e fiacutesica natildeo constavam do anuacutencio porque sob o titulo de ciecircncias naturais incluiacuteam-se botacircnica fisica quiacutem~ca zoologia e mineralogia as quais eram ministradas por meio de espeacutecimes de uma coleccedilatildeo organizada pela Pro Rennolle (MESQUITA 1992 p 193)

O ensino de ciecircncias naturais recebia uma forte ecircnfase em toshydos os cursos De acordo com Hilsdorf Barbani (1977) a preocupaccedilatildeo com o ensino das ciecircncias exalas e naturais foi um dos elementos que desde cedo caracterizaram o Coleacutegio Piraciacutecabano corno um coleacutegio renovado em relaccedilatildeo aos demais de sua eacutepoca Essa autora ressalta que sendo um coleacutegio voltado a educaccedilatildeo feminina o Piracicabano

justapunha nos seus programas de estudos regulares disciplinas tradicionalmente afeitas a escolas de meshyninas fado a lado com mateacuterias cientiacuteficas que nem mesmo os melhores coleacutegios particulares masculinos de seu tempo ousavam apresentar (p 172)

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 34: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

o Externato de Joseacute M de Franccedila Junior publicava com certa frequumlecircncia anunshycios de seu coleacutegio Curioshysamente no ano de 1882 o coleacutegio mudou de endereccedilo por duas vezes No periodo de 15 de junho a 8 de agosto os anuncios infonnavam que o extemato havia kmudado da casa de D Antonia Freire para a Rua do Comeacutercio~ A partir de 25 de outubro as notas pubhcitacircrias infonnashyvam que o extemato mudashyra-se da Rua dOacute Comeacutercio para a Rua das Flores ndeg 30~(GP 15061882 p 2 e 25101882 p 3) Em 1884 juntamente com o professor Augusto Castanho Joseacute M de Franccedila Junior abriu um novo externato Os alunos teriam aulas com os dois professores de middotPortuguecircs Francecircs Aritmeacutetica Geoshymetria Histoacuteria Geografia Quimica e Fisica e as aulas seriam ministradas na casa do professor Augusto Castashynho (GP 21051884 p 3)

Louro (2001) ressalta que seria uma simplificaccedilatildeo grosseira compreender a educaccedilatildeo das meninas e dos meninos como processos uacutenicos (p 444) Para aleacutem da questatildeo do gecircnero outros mecanismos tambeacutem influenciavam na determinaccedilatildeo das formas de educaccedilatildeo utilishyzadas As divisotildees de classe etnia e raccedila tinham um importante papel nesse processo Por exemplo as crianccedilas negras e os descendentes de indigenas natildeo eram aceitos em escolas ou classes isoladas Quanto aos imigrantes em geral acabavam estudando em escolas organizashydas pelos proacuteprios grupos dotadas de praacuteticas educativas diferentes

No entanto para as filhas de grupos privilegiados o aprendiacutezashydo da escrita da leiacutetura e das noccedilotildees baacutesicas de matemaacutetica eram em geral complementados pelo ensino do francecircs e do piano Aleacutem desshytes os trabalhos de agulha (bordados rendas) as habilidades culinashyrias e o mando dos criados tambeacutem eram ministrados as moccedilas Com o curriacuteculo pensado dessa forma as moccedilas poderiacuteam tornar-se uma companhia agradavel para o homem e estariam plenamente preparashydas para o dominio dos afazeres do lar (LOURO 2001 p 445-446)

Nesse contexto podemos observar uma certa distinccedilatildeo no curriacuteculo do Piracicaba no uma vez que ateacute mesmo os alunos do curso priacutemaacuteriacuteo recebiam aulas de ciecircncias naturais valorizando-se a expeshyriecircncia do aluno que estudava plantas animais e objetos fazendo as suas proacuteprias investigaccedilotildees enquanto a professora os dirigia e guiava ensinado-lhes os termos corretos para exprimir as ideacuteias por si mesmo adquiridas (HILSDORF BARBANTI 1977 MESQUITA 1993)

A comparaccedilatildeo com coleacutegios particulares existentes na cidade no periacuteodo pode oferecer elementos para a compreensatildeo da especifishycidade do ensino ministrado no Piradcabano No coleacutegio S Sophia por exemplo que funcionava na cidade desde 1874 tambeacutem destinado a educaccedilatildeo feminina o ensino era dividido em 1 a e 23 classes e enquanshyto os alunos da 11 classe tinham aulas de primeiras letras gramaacutetica portuguesa aritmeacutetica elementar liccedilotildees de causas e catecismo os da 23 recebiam aulas de portuguecircs francecircs alematildeo geografia aacutelgebra histoacuteria universal paacutetria e sagrada piano e canto desenho e prendas domeacutesticas (GP 03091883 p 2) Aleacutem disso havia as aulas para o sexo feminino da Sra Eulaacutelia Pinto de Barros e as aulas do Sr Franshycisco J Miguel Contudo sobre essas escolas natildeo circulou na Gazeta de Piracicaba nenhum informe publicitaacuterio que pudesse trazer inforshymaccedilotildees sobre as mateacuterias ensinadas O fato de estarem organizadas apenas como externatos e a ausecircncia de informes publicitaacuterios pode significar que se tratavam de coleacutegios modestos

Quando comparado aos coleacutegios particulares masculinos a distinccedilatildeo do curriacuteculo do Piracicabano se manteacutem No externato masshyculino de Joseacute M de Franccedila Junior os meninos tinham aulas de portushyguecircs francecircs aritmeacutetica e geografia de acordo com os anuacutencios que o mesmo veiculava na Gazetas

Na realidade o curriacuteculo variado e distinto do Piracicabano frente aos demais coleacutegios da cidade pode ser compreendido por uma seacuterie de fatores que somados resultam na configuraccedilatildeo final que o mesmo recebera

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

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4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 35: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

Primeiramente o coleacutegio fora montado e dirigido por missionaacuteshyrios e professores estadunidenses com experfecircnda educacional em seu pars de origem que de algum modo tentavam aplicar aos edushycandos brasileiros praacuteticas pedagoacutegicas que lhes eram cuacutemuns( Em marccedilo de 1889 Watls declara que sua escola estava bem organizada contudo haviacutea muitas classes o que a obrigava possuir mais professhysoras do que seria exigido se as crianccedilas tivessem aproximadamente a mesma idade E conclui Lembro~me de ter oUenta e um alunos aos meus cuidados na Escola Publica de Louisvil[e e natildeo achava mulshyto me orgulhava do nuacutemero - mas elas formavam uma uacutenica turmaN

(MESQUITA 2001 p 89) Como as palavras da educadora demonsshytram ela tentava aplicar no coleacutegio sob sua direccedilatildeo praacuteticas de orgashynizaccedilatildeo escolar que estava habltuada a utilizar em seu paiacutes de origem Certamente a formaccedilatildeo do curriacuteculo do Plracicabano tambeacutem sofria intervenccedilotildees dessa vivecircncia

Quanto ao ensino de varias liacutenguas como inglecircs f francecircs aleshymatildeo latim aleacutem do portuguecircs novamente podemos notar a accedilatildeo de tendecircncias internas e externas aluando no processo de configuraccedilatildeo de produccedilatildeo desses saberes O Coleacutegio Piacuteracicabano recebia filhos de imigrantes no seu quadro de alunos e era comum a eacutepoca o desejo desses grupos em conservar parte de sua cultura7 bull Desse modo as aulas de inglecircs e alematildeo tinham um intuito que excedia ao simples oferecimento de variadas liacutenguas visto que essa era tambem uma neshycessidade que se impunha externamente peto perfil de parte de sua clientela constituiacuteda por filhos desses imigrantes

Em janeiro de 1882 ainda nos estaacutegios iniciais da escola Marshytha Watts relata em uma de suas missivas a necessidade de receber o apoio de garotas receacutem formadas nos EUA especialmente aquelas com habilidade em muacutesica francecircs e pintura para a auxiliarem no tra~ balho afim de suprir as exigecircncias de [seus] clientes E enfatiza que as pessoas aqui [Piracicaba] estimam o talento mais do que os estudos praacuteticos e para alcanccedilaacute-los devo lhes dar o que desejam (MESQUIshyTA 2001 p 41) Suas palavras oferecem um bom exemplo de como na formaccedilatildeo do curriacuteculo do coleacutegio uma seacuterie de fatores entrava em accedilatildeo regulando os processos de configuraccedilatildeo e difusatildeo desses coshynhecimentos Assim os processos de produccedilatildeo dessa escola estavam em certa medida regulados por dispositivos que norteavam sua consshytituiccedilatildeo seja pela demanda imposta pelas exigecircncias da clienteta seja pela formaccedilatildeo dos organizadores da instituiccedilatildeo (CARVALHO 1998)

Mesquita (1992) obselVa outro fator importante De acordo com a autora o Piracicabano pocircde construir um curriculo diversificado porque os cursos para mulheres natildeo eram vollados para o ingresso nas academias como os dos coleacutegios masculiacutenos uma vez que a enshytrada em tais instituiccedilotildees era um privilegio exclusivo dos homens ateacute o final do Impeacuterio Sem a necessidade de atrelamento dos currlculos das escolas femiacuteniacutenas ao preparo para cursos superiores LIma diversidade maior de disciplinas podia ser incluiacuteda de modo que acabou por se privilegiar a formaccedilatildeo pessoal e profissional da mulher (p 194)

Por fim esse curriacuteculo variado voltado para um ensino cien~ Hfico e composto por Um amplo rol de disciplinas claacutessicas insere-se

~ Martha WaUs era proshyfessora na Escola Puacuteblica de Loulsvllle antes de yir ao Brasil Assim como ela boa parte do corpo docente do coleacutego era coMstituido por pessoas yindas dos EUA A professora Rennotle era franceSa e antes de ser contratada para mInistrar aulas no Plracicabano Jaacute tinha dado aulas em outros coeacuteglos na capital paulisshyta (Cf MesqUita 2001 De Luca amp De Luca 2003)

1 Para yeriicar alguns dos alunos que foram mallicuJa~ dos no Coleacutego iracjccedilaba~ no ver HUsdorf Sartl8nli 1977 p 162

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 36: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

ainda na loacutegica do processo de renovaccedilatildeo dos programas da escola primaacuteria no Brasil engendrado a partir de 1870 como parte de uma preocupaccedilatildeo com a modernizaccedilatildeo educacional do pais em relaccedilatildeo ao contexto intemacional O decorrer do seacuteculo XIX foi marcado por um intenso debate sobre a questatildeo poliacutetica da educaccedilatildeo e dos melhores meios para efetivaacute-Ia elegendo-se a organizaccedilatildeo da escola como fator de progresso mudanccedila sodal e modernizaccedilatildeo Era preciso uma nova forma escolar para formar um homem novo Nesse contexto eacute que se inserem as iniciativas de introduccedilatildeo de novas disciplinas nos progra~ mas de ensino especialmente ciecircncias desenho e educaccedilatildeo fisiacuteca justificando-se a introduccedilatildeo desses conleuacutedos com a alegaccedilatildeo de que contribuiliam para a modemizaccedilatildeo do paiacutes (SOUZA 2000 p 15)

Aleacutem desses conleuacutedos oulros como a ginaacutestica a muacutesica e o canto os valores morais e cfvicos o desenho a escrituraccedilatildeo mershycantil o sistema de pesos e medidas as noccedilotildees de horticultura e arshyboricultura os trabalhos manuais a hiacutegiacuteene a puericultura a econoshymia domeacutestica entre outros tambeacutem passaram a compor O curriculo das escolas especialmente das instituiccedilotildees particulares No que se refere especialmente ao ensino de ginaacutestica esse era visto como um agente de prevenccedilatildeo dos habitos perigosos da infacircncia meio de consshytituiccedilatildeo de corpos saudaacuteveis fortes e vigorosos instrumento contra a degeneraccedilatildeo da raccedila accedilatildeo disciplinar moralizadora dos Mbitos e costumes responsaacutevel pelo cuftivo de varares civicos e patrioacuteticos imshyprescindiacuteveis agrave defesa da naccedilatildeo (SOUZA 2000 p 16-17) Igualmente necessaacuterio era o enstno da muacutesica e do canto capazes de dulcificar os costumes e fortalecer os valores ciacutevicos demonstrando seu caraacuteter moral e uUlilaacuterio

No processo de formaccedilatildeo no qual o curriacuteculo do Piracicashybano se constituiu o que podemos observar satildeo as relaCcedilOtildees que interna e externamente operavam os mecanismos de engendramen~ lo dos saberes a serem veicutados pela instituiccedilatildeo Nesse processhyso de configuraccedilatildeo dificuldades e conflitos permearam as relaccedilaacutees ateacute darem sentido a uma organizaccedilatildeo que de acordo com as fontes pesquisadas sobrepunha-se agrave estruluraccedilatildeo curricular dos coleacutegios locais oferecendo uma gama de ensino que certamente podia se identificar mais facilmente com sua clientela pois buscava atender a certas especificidades (como o ensino de algumas liacutenguas por exemM

pio) que essa almejava Desse modo eacute possiacutevel compreender em certa medida a

constituiccedilatildeo desse curriacuteculo como resultado das relaccedilotildees culturais de dependecircncia que se constiacutetufam no bojo da convivecircncia entre os diver~ sos agentes que compunham o coleacutegio sejam os organizadores os alunos os paiacutes ou mesmo os referenciais poliacutetico e pedagoacutegico que estavam em circulaccedilatildeo nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX Tal obsershyvaccedilatildeo nos permite compreender que mesmo as unidades escolares particulares num momento histoacuterico em que as poliacuteticas educacionais natildeo conseguiam exercer uma centralizaccedilatildeo e um controle sistemaacuteticos da organizaccedilatildeo escolar estavam sujeitas a regras impessoais capazes de cercear e ateacute mesmo alterar principios pedagoacutegicos ambicionados por seus organizadores

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 37: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

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Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 38: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

VINCENT G LAHIRE B (orgs) (2001) Sobre a Histoacuteria e a Teoria da Forma Escolar In Educaccedilatildeo em Revista Belo Horimiddot zonte n 33 junho

Perioacutedico Jornal Gazeta de Piracicaba Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Piracicaba (IHGP)

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 39: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

As origens aos institutos bistoacutericos egeograacuteficos no Brasil

Lucy Desjardlns Romani

RESUMO

Com o retorno de D Pedro I acirc Portugal deixando o trono para seu filho o Brasil enfrentou uma forte instabilidade poliacutetica com movi~ mentos separatisas em diversas regiotildees Trata~se do contexto de fun~ daccedilatildeo do Insliacutetuto Histoacuterico e Geogragraveflco Brasileiro (IHGB) objetivando contribuir para a integralidade poliacutetica do pais Assim uma das princishypais tarefas da instituiccedilatildeo era garantiacuter uma identjdade agrave naccedilatildeo brasishyleira_ Para isso era preciso coletar documenlos relevantes agrave histocircria do paiacutes e crtar instituiccedilotildees regionais que seguiriam Q modelo do IHGB Desde o iniacutecio o IHGB procurou manter contato com instituiccedilotildees intershynacionais Em suas publicaccedilotildees nota~se a tentativa de compreender o papel civilizador alribuido aos portugueses enquanto indiacutegenas e africanos eram vistos como entraves ao progresso O projeto historiomiddot graacutefico do Instituto pretendia portanto apontar as possibilidades de desenvolvimento do Brasil e de sua participaccedilatildeo no mundo civiacutelizado

Palavraschave IHGB Histoacuteria do Brasil Civilizaccedilatildeo

No Inicio do seacuteculo XIX o Brasil havia experimentadO o proshycesso de emancipaccedilatildeo e em consequumlecircncia disto procurava-se a Je~ gitimaccedilatildeo do poder estabelecido apoacutes a Independecircncia Poreacutem este poder se viu ameaccedilado com o retorno de D Pedro I agrave Portugal Em 1831 o imperador deixou o Brasil transferindo a coroa para seu filho entatildeo sem idade suficiente para assumir o trono Assim se iniciava o chamado Periodo Regencial no qual a responsabilidade pelo governo do paiacutes se encontrava nas matildeos dos regentes Tal situaccedilatildeo gerou desshyconten1anV7nlo e levantes em algumas proviacutencias

Durante a regecircncia de Feij6 que defendia o nrn da escravIdatildeo e admiliacutea a lndependecircnca do Rio Grande do Sul reivindicada pela Revoluccedilatildeo Farroupiacutenla vacircrias lideranccedilas politicas reconheceram a nelaquo cessidade de centralizaccedilatildeo estatal Nesse quadro emergia um grupo de poHtlcos moderados que recusava o absolutismo e a lusofobia dos

1 Gaduada em Histoacuteria pela UNIMEP

3

2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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2) fpIIT-HII tlf11 viamiddot gem j )ilVil(Iacuteq lt10

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 40: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

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2 CALLAR1 Claacuteudia Regishyna middotOs Instiulos Histoacutericos - do parcnato de Q Peurodro II acirc construccedilatildeo dQ Tiradenshytes~ In Revisla Brasifeira de Hist6ria v 21 n~ 40 Satildeo Paulo 2001 p fpl

SANCHEZ Edney Chrislian Thomeacute Reisla do institulo Histoacuterico e Geograacuteshyfico Brasileko um peri6dico na cidade letrada brasieira do seacutewo XiX 2003 L 28 Diacutessertaccedilatildeo - nsjjuuuml de Estudos da Linglagem UI14 versdade Esadal de Cammiddot pinas Campinas 2003

4 ibidem 29middot30

5 Ibidem t 31

uacuteltimos anos do Primeiro Reinado e ao mesmo tempo afastava-se do liacuteberaliacutesmo radical e do republ1caniacutesmo Consideravam a monarquia constitucional como a melhor salda para o Estado brasileiro pois as~ segurarIa a ordem frente agrave ameaccedila do caos Os moderados consegui~ ram antecipar a maioridade de D Pedro 11 na tentativa de cenlralizar O poder politico em torno da sua figura

No contexto descrito acima foi fundado em 1838 o Instituto Histoacuterico e Geograacutefico Brasileiro (IHGB) cuja preocupaccedilatildeo principal era manter a integralidade poliacutetica do pais Criado a partir de uma proposta veiculada no interior da Sociedade Auxiiadora da Induacutestria Nacional (SAIN) apresentada por Raimundo Joseacute da Cunha Matlos e Januaacuterio da Cunha Barbosa no final de 1838 o IHGB iniciou suas atividades no mesmo ano na capital do Impeacuterio Seus estatutos definiram Os obje~

livos dos trabalhos a coleta e publicaccedilatildeo de documentos relevantes para a histoacuteria do Brasil e o incentivo inclusive no ensino puacuteblico aos estudos de natureza histoacuterica Aleacutem disso o tHGB pretendia manter relaccedilotildees com instituiccedilotildees congeacuteneres tanto nacionaiacutes como inlerna~ danaIs As nacionais constituiacuteram uma rede institucional cujo objetivo seria recolher dados sobre as diacuteferentes regiacuteotildees do paiacutes cabendo ao IHGB o papel de centralizar armazenar e organizar o material obtido O Instituto procurava manter contatos iacutentemaciacuteonaiacutes especialmente na Europa Vale destacar que em 1889 o nuacutemero de instituiccedilotildees esshytrangeiras que mantinham correspondecircncia com o JHG8 suplantava o de jnslltuiacuteccedilocirces nacionais Eram 136 instituiccedilotildees estrangeiras com destaque para o Institut Histolique de Paris (IHP) que lhe servira de modelo contra 97 brasileiras

Foi inportante o papel do IHP na criaccedilatildeo do IHGB Fundado em 1834 por Eugene Monglave O IHP foi sem duacutevida um modelo para o IHGB Contava com vacircrios brasileiros entre seus membros entre eles Jamraacuterio da Cunha Barbosa e Raimundo Joseacute da Cunha Mattos fundadores do Instituto brasileiro aleacutem de Joseacute Feliciano Fernandes Pinheiro primeiro preSidente deste uacuteltimo A ideacuteia de correspondecircncia entre as insutuiccedilotildees foi proposta logo no primeiro estatuto do Inslituto brasileiro Pensava-se fazer do IHP uma espeacutecie de avalista do IHGB no plano internacional Aleacutem disso o Instituto parisiense foi respon~ sacircvel petos primeiros contatos do IHGB com outras instituiccedilotildees eushyropeacuteias Mongave alem de louvarmiddot8 iniciativa de criaccedilatildeo da entidade brasileira afirmou que sua Revista 113via sido bem recebida na Europa Considerado um entusiasta das coisas do Brasil Mongfave manteve correspondecircncia com o Insttluto brasiacuteleiacutero

Ou1ro objetivo presente logo nos primeiros estatutos foi o de produzir uma revista trimestral na qual se publicada aleacutem das atas e trabalhos do Instituto as memoacuterias de seus membros e noticias ou extratos de obras publicadas pelas outras sociedades estrangeiras ou nacionaiss A publicaccedilatildeo da revista do Instituto representava segundo Sanchez o coroamento de seus esforccedilos em reunir e armazenar doshycumentos e fontes his1oacutencas No que se refere aacute preocupaccedil~o com o ensino a proposta do IHG8 era de preparar os filhos das elites para o desempenho de funccedilotildees dentro do quadro administrativo do Estado No mesmo contexto fund3-se em 1037 () Coleacutegio Pejw 11 que tamshy

bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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bem mantinha relaccedilotildees estreitas com o monarca e era financiado pelo Estado Muitos de seus professores eram membros do IHGB

Aleacutem desses objetivos explicitamente apresentados em seus estatutos os documentos sobre a fundaccedilatildeo do IHGB demonstram segundo Wehliacuteng a busca de outros ftris o esclarecimento da so~ ciedade peio desenvolvimento da cultura literaacuteria levando a um aprishymoramento das relaccedilotildees sociais o aperfeiccediloamento da administraccedilatildeo puacuteblica com a formaccedilecirco de melhores quadros funcionais e o exerciacutecio mais aperfeiccediloado de cargos eletivos

Independente da SAIN desde o inicio o IHGB definiu em seus estatutos o nuacutemero de cinquumlenta membros ordinaacuterios e um nuacutemero ilimitado de soacutecios nacionais e estrangeiros aleacutem de soacutecios de honra No que se refere ao acesso a estes postos a escolha dos membros natildeo obedecia a criteacuterios relacionados ao meacuterito de suas produccedilotildees As relaccedilotildees pessoais imprescindiacuteveis em uma sociedade de corte eram mais valorizadas O ingresso no Instituto acontecia por meio da indica~ ccedilatildeo de outros membros que reconheciam a capacidade intelectual dos seus pares Ta criteacuterio era caracteristico da academia de l1po ilustrado e divergia do que comeccedilava a ocorrer na Europa onde o processo de escrita e disciplinarizaccedilatildeo da histoacuteria se efetuava no espaccedilo universitaacute~ rio Aleacutem disso outro falor que por veZeS deixava o meacuterito em segundo plano era a forte vinculaccedilatildeo com o Estad07 Neste ponto destacamos o perlil dos fundadores do Insliluto em sua grande maioria desempeshynhavam funccedilotildees no aparelho estatal sendo magistrados milUares e burocratas O fato da produccedilatildeo historiograacutefrca ser conduzida por essas elites letradas no inferior de uma instituiccedilatildeo que conservava o modelo das academias do seacuteculo XVIII a caracterizava segundo Guimaratildees como uma produccedilatildeo de influecircncia ilustrada A grande presenccedila de literatos eacute mais um fator a se destacar poiacutes na primeira metade do seacuteshycuro XIX a histoacuteria no Brasil ainda se encontrava inserida num campo literagravelIacuteo mais amplo isto eacute ainda fazia parte do mundo das letras Na Idade Meacutedia e no inicio da Era Moderna por exemplo a fronteira entre histoacuteria e ficccedilatildeo era extremamente aberta e difiacutecil de ser localizada O que classificariacuteamos como ficccedilatildeo podia ser definido como hisloacuteria por muitos teitores medievaisP Poreacutem a partir do fim do seacuteculo XVIU o diletante paulatinamente se distanciava do cientista tornando cada vez mais visiacuteveis os contornos de eacutereas de pesquisa cientes de sua aushytonomia No decorrer do seacuteculo XIX quando a histoacuteria comeccedilava a se constituir como ciecircncia quando se passou a falar de profissionalizaccedilatildeo e especializaccedilatildeo do historiador a desvincutaccedilatildeo pocircde ser observada mais claramente10

Todavia no principio do IHGB a diferenccedila entre literato e historiador apenas se iniacuteciava

Aleacutem da marcante participaccedilatildeo da elite letrada nas produccedilotildees do IHGB destacamos tambeacutem a presenccedila constante de D Pedro 11 Desde sua fundaccedilatildeo o Instituto se colocou sob a proteccedilatildeo do imperashydor o que represenlaria ajuda financeira crescente a cada ano cheshygando a 75 de seu orccedilamento A partir do final da deacutecada de 1840 D Pedro II se fez cada vez mais presente na instituiccedilatildeo passando a frequumlentar com maior assiduidade as reunilles D Pedro II interessoushyse pessoalmente pelo IHGB tendo presidido um total de 506 sessotildees

6 WEHLHtlG mo A inshyvenccedilatildeo da Hisloacuteria Rio de Janeiro UniversidadeGama FHhoUFF 1994 p156

7 GUIMARAtildeES Manomiddot el Luiacutes Salgado Naccedilatildeo e Civillzaccedilatildeo nos Trotildepicomiddots O Instituto HIstoacuterico e Geoshygraacutefico Brasileiro e I) Projeto de uma Hisloacuteria Naionat In Estudos Histoacutericos n1 1988 p11

8 Ibidem p11

9 BURIltE PeieJ As fronteiras instaacuteveiacutes entre Histoacuteria e Ficccedilacirco~ In Ge M

neros do fronwir8 - Cruzashymentos en1re o Hisfoacutenco e o UcrtJrio Silo Paulo Xamatilde 1997 p 109

10 LEPENIES WoiL middotmiddotInshyiroduccedilatildeo In As Tres CUmiddot fUras Satildeo Paulo Edusp 1996 pp 11~12

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 42: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

11 SCHWARCZ Ulia Morilz As Barbas do Immiddot perador - D Pedro 11 um monarca nos troacutepicos Satildeo Paulo Companhia das LeshyIras 1999 p127

12 GUIMARAtildeES ~Naccedilagraveo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

13 WEHLlNG Amo Esshytado Histocircna Memocircria Varnhagen e a construccedilatildeo da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 pAS

14 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo e Civilizaccedilatildeo ~ p 13

se ausentando apenas em caso de viagem Tal fato torna-se mais releshyvante quando comparado a pequena participaccedilatildeo do monarca na Cacircshymara onde soacute aparecia no comeccedilo e final do ano para abrir e fechar os trabalhos 11 bull A marcante presenccedila do imperador demonstra a granshyde importacircncia da instituiccedilatildeo no processo de manutenccedilatildeo da unidade poliacutetica e no projeto de constituiccedilatildeo da naccedilatildeo brasileira A partir de 1850 o IHGB priorizou a produccedilatildeo de trabalhos ineacuteditos nos campos da histoacuteria geografia e etnologia relegando para segundo plano a tashyrefa ateacute entatildeo prioritaacuteria de coleta e armazenamento de documentos Paralelamente a admissatildeo ao Instituto embora ainda permeada pelas relaccedilotildees pessoais foi cada vez mais determinada pelo meacuterito e pela produccedilatildeo historiografica dos candidatos no momento em que se coshymeccedilava a definir com maior clareza a separaccedilatildeo entre a histoacuteria e as outras formas literarias No que se refere agrave relaccedilatildeo entre histoacuteria e liteshyratura foi a temaacutetica indiacutegena que teve um papel determinante na defishyniccedilatildeo dos dois campos Entre eles travou-se um acirrado debate sobre a transformaccedilatildeo do indiacutegena em siacutembolo e representante da naciomiddot nalidade brasileira Nesse aspecto destaca-se a posiccedilatildeo tomada por Varnhagen em oposiccedilatildeo ao indianismo de Gonccedilalves Dias que vincushylava o indigena como expressatildeo da brasilidade o que para Varnhagen significava uma ideacuteia subversiva12 bull Enquanto a literatura muitas vezes representava o iacutendio de forma idealizada Varnhagen pretendia detershyse na investigaccedilatildeo empirica no domiacutenio das teacutecnicas de anaacutelise docushymental1l almejando desmistificar a figura romacircntica do selvagem

Em meados do seacuteculo XIX a histoacuteria jaacute tinha assumido o papel de contribuir para as decisotildees de natureza poliacutetica Cabia ao historiashydor orientar as realizaccedilotildees de seus contemporacircneos isto eacute a histoacuteria aparecia como um instrumento capaz de ajudar a definir o futuro pois possibilitava segundo muitos intelectuais do periodo a compreensatildeo do presente a partir do passado Novamente pode-se observar a influshyecircncia no IHGB das academias ilustradas dos seacuteculos XVII e XVIII nas quais a ideacuteia de progresso foi desenvolvida A tiacutetulo de exemplo desshytaca-se a valorizaccedilatildeo no decorrer do seacuteculo XIX dos estudos etnograacuteshyficas arqueoloacutegicos e linguumlisticos em especial os relativos aos indiacutegeshynas que procuravam estabelecer uma linha evolutiva por meio da qual ficaria assinalada sua inferioridade em relaccedilatildeo aacute civilizaccedilatildeo europeacuteia o que capacitaria ao investigador da histoacuteria brasileira a recuperar a cadeia civilizadora demonstrando a inevitabilidade da presenccedila branshyca como forma de assegurar a plena civilizaccedilatildeo14 A ligaccedilatildeo da hiacutestoacuteshyria aacute ideacuteia de progresso demonstra a relaccedilatildeo das produccedilotildees do IHGB com a concepccedilatildeo de histoacuteria que amadurecia no decorrer do periacuteodo A partir de entatildeo o conhecimento histoacuterico deveria passar a ser comshyprovado empiricamente e os historiadores buscariam provas objetivas e impessoais do desenvolvimento civilizatoacuterio guardando distacircncia e garantindo a imparcialidade Essa concepccedilatildeo pode ser observada nas viagens exploratoacuterias financiadas pelo Instituto nos estudos etnograacuteshyficas e na procura de fontes primaacuterias consideradas imprescindiacuteveis agrave histoacuteria No Instituto a preocupaccedilatildeo com a documentaccedilatildeo evidenshycia-se na publicaccedilatildeo em especial nos primeiros anos da Revista de

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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p ~50-51 uumlrJ TO t rJJ0S lJ 2

2) fpIIT-HII tlf11 viamiddot gem j )ilVil(Iacuteq lt10

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 43: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

grande nuacutemero de relatos de viagens e relatoacuterios oficiais produzidos desde o periodo colonial

Outro aspecto dessa concepccedilatildeo de hist6ria que emergia na Europa era a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo da nacionalidade Como alguns paiacuteses europeus o Brasil tambeacutem passava por um processo de estabelecimento do Estado Nacional ameaccedilado por forccedilas sepashyratistas O projeto de pensar a histoacuteria brasileira foi sistematizado a partir dessa perspectiva Delineava-se a tarefa de traccedilar um perfil para a Naccedilatildeo brasileira capaz de lhe garantir identidade proacutepria Externa~ mente essa identidade assiacutenaiaria o lugar do Brasil no conjunto mais amplo de paises civilizados e definiria o outro~ em relaccedilatildeo ao pais Nesse sentido o projeto nacional apresentado pelo IHGB natildeo se defishynia em oposiacuteccedilatildeo agrave antiga metroacutepole Ao contraacuterio procurava apresen~ tar a nova Naccedilatildeo como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela colonizaccedilatildeo portuguesats Por outro lado a pretendida identidade na~ canal foi importante no sentido de legmmar o poder monaacuterquico que era apresentado como um modero poliacutetico diferenle e mais estaacutevel que o das repuacuteblicas latino-americanas A Naccedilatildeo brasileira portanto era entendida pelo IHGB como representante da ordem civilizada no Novo Mundo enquanto as repuacuteblicas vizinhas apareciam como representashyccedilotildees da barbaacuterie e do caos Ao mesmo tempo internamente o papel civilizador atribuiacutedo aos portugueses justificou a exclusatildeo ou a posishyccedilatildeo subalterna daqueles que natildeo seriam os p0l1adores dessa noccedilatildeo de ciacuteviliacutezaccedilacirco1b

Dessa forma o conceito de Naccedilatildeo operado eacute restrito aos europeus iacutendios e negros sendo considerados um problema para sua constituiccedilatildeo Reconhecia~se a dificuldade de integrar na sociedade brasileira homens marcados pelo trabalho escravo ou pela vida sel~ vagem Assim a preocupaccedilatildeo com o desvendamento da gecircnese da Naccedilatildeo brasileira mobilizou os letrados do tHGB Isto pode ser ilustrado peta texto do alematildeo Carl F P von Martius escrito para um concurso proposto pelO Instituto com o objetivo de indicar a melhor maneira de escrever a histoacuteria do BrasilH MarUus apontou o pape das trecircs raccedilas no processo de formaccedilatildeo do pais processo peculiar pois era marcado pela mescla entre elas1ll Primeiramente valorizou os estudos relativos aos indigenas na perspectiva de integraacute-ros agrave Naccedilatildeo Num segundo momento o autor destacou o papel civilizador do branco portuguecircs resgatando a importacircnCia dos bandeirantes e das ordens religiosas na tarefa desbravadora Jaacute o elemento negro obteve pouca atenccedilatildeo de Martius o que Guimaratildees aponta Como reflexo de uma tendecircncia no modelo de produccedilatildeo da histoacuteria nacional a visatildeo do elemento negro como fator de impedimento ao processo de civiliacutezaccedilatildeo19

Assim a leitura da histoacuteria empreendida peto Instituto Histoacuterishyco e Geograacutefico Brasileiro apresentava dois objetivos principais eluci~ dar a gecircnese da Naccedilatildeo brasileira compreendecirc~ia a parlir dos conceitos de clviacuteliacutezaccedilatildeo e progresso dos seacuteculos XVIII e XiX Dessa forma seu projeto historiacuteograacuteflco pretendia levantar os elementos fundamentais da identidade nacional e apontar as possibiacutelidades de desenvolvimento e de participaccedilatildeo 110 mundo civilizado

15 Ibidem p7

16 Ibidem p 15

17 MARTlUS Carl F P von ~Como se deve escreshyver a Hisloacuteria do Brasl In O Estado de Direito entre os autoacutectones do Brasil Belo Horizonte Editora Itatiaia Uda Edusp (Coleccedilacirco Reshyconquista do Brasil58) pp 85~107 - texto escrito em 1843 e publicado na Revista do lHOS v6 n24 de 1845

18 Ibidem p87

19 GUIMARAtildeES ~Naccedilatildeo eClvdizaccedilatildeo ~ p 19

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 44: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

As Origens (la Imagem (lo Caipira

Luiz Francisco Albuquerque e Miranda

RESUMO

o lexto discute as representaccedilotildees dos caipiras do sudeste do pais presenles nos relatos de Viagem de Auguste de Sainl-Hilaire Carl F P voo Marlius e Johann B von Spix Aleacutem de investigar os viajanshytes procura~se indicar como suas representaccedilotildees (oram assimiladas ao longo do seacuteculo XIX e no inicio do seacuteculo XX reperculiram nas obras da literatura regionalista que aborda as populaccedilotildees rurais do inlerior de Satildeo Paulo Assim eacute possivel sugerir uma certa continuidade entre as imagens presentes nos reJatos de vlagem e as figuraccedilotildees do caipira da literatura regiacuteonallsta

Palavras-chave Caipiras Viajantes Interior paulista Civilizaccedilatildeo

Piracicaba como outras cidades do interior paulista tem sua identidade fortemente relacionada com a imagem do caipira Mas afiM nal como podemos definir o caipira A resposta parece facirccil pensa~ mos imediatamente nos indiviacuteduos retralados por Almeida Juacutenior ou no Jeca Tatu de Monteiro Lobalo Outras figuras poderiam ser lembradas sem dificuldade os personagens dos filmes de Mazzaropi o Chico Bento dos quadrinhos de Mauriacuteciacuteo de Sousa ou mesmo o Nhotilde Quim siacutembolo Inesqueciacutevel do XV de Novembro criado por Edson Ronlani A induacutestria cultural apropriou~se mullo bem das representaccedilotildees que esses artistas produziram Ainda que todas elas natildeo sejam idecircnticas caracterizam cada uma a seu modo O homem de um mundo ruacutestico simples distante da ordem urbana e industrial Um homem que fala errado a muitas vezes encontra-se em conflito com as manifestashyccedilotildees do progresso

Este texto natildeo foi escrito para mostrar que essa imagem tradishyciona estaacute equivocada Todavia pretendo indicar como ela comeccedilou a ser concebida no princiacutepio do seacuteculo XIX A figura do caipira natildeo eacute um simples dado de realidade e ainda que natildeo seja uma menlira tratashyse de um produlo cultural que representa as populaccedilotildees marginais da

1 Professor do Curso de HUi6ria da UNIMEP e doushytor em Filosofia pela UNI~ CAMPo

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

21 srH1 -lILCJFE -0shy

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p ~50-51 uumlrJ TO t rJJ0S lJ 2

2) fpIIT-HII tlf11 viamiddot gem j )ilVil(Iacuteq lt10

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 45: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

2 SAINT-HlLAIRE Aushyguste de Viagem pelas proshylIinciacuteas do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo Horizonshyte Uatiaia 2000 p 5 O reshyferido middotPfefaacutecio~ foi escrito em 1830

Ameacuterica Portuguesa a partir de um determinado ponto de vista Ela como veremos a seguir foi proposta por intelectuais convencidos da superioridade da civilizaccedilatildeo europecirciacutea e prontos a defender sua implanshytaccedilatildeo nos sertotildees do Brasil 10 curioso que essa imagem depreciativa tenha se transformado em simbolo idenlitatilderio de boa parte dos paulisshyta Analisemos entatildeo os primeIros discursos a respeito dos caipiras

Nos relatos dos viajantes europeus do iniacutecio do seacuteculo XIX as formas de agir e pensar das populaccedilotildees do interior da Ameacuterica Portushyguesa muitas vezes foram apresentadas como entraves para o avanccedilo do processo civilizador Depois da abertura dos portos brasileiros em 1808 em decorrecircncia da chegada da familia real ao Rio de Janeiro foram freqUentes as viagens de cientistas comerciantes e artistas eushyropeus Analiso aqui os trabalhos de trecircs viajantes o francecircs Auguste de Saint-Hilaire e os alematildees Carl F von Martius e Johann B von Spix Todos eram naturalistas e observaram a Ameacuterica Por1uguesa a serviccedilo de academias de ciecircncia de seus paiacuteses de origem O primeiro visitou o centro-sul do Brasil entre 1816 e 1822 e escreveu a respeito das provincias de Minas Gerais Rio de Janeiro Espirito Santo Satildeo Paulo Goiaacutes Santa Catarina e Rio Grande do Sul Os alematildees percorreram juntos de 1817 a 1820 uma vasta aacuterea de Satildeo Paulo ao Amazonas Conveacutem salientar que neste trabalho meu interesse liacutemiacuteta-se aacutes desshycriccedilotildees das antigas proviacutencias de Satildeo Paulo Minas Gerais e Goiaacutes aacutereas de inserccedilecirco da chamada cultura caipira

No middotPrefaacutecio da Viagem pelas provlncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais o botacircnico Auguste de Saint-Hilaire referindo-se aacute Independecircncia da Brasil insere um raacutepido comentaacuterio que resume sua percepccedilatildeo das populaccedilotildees do interior do paiS

Mas eacute preciso dizer apesar da fefiz revoluccedilagraveo a cujos primoacuterdios assisti e que permite conceber para o fushyluro dos brasileiros lagraveo belas esperanccedilas natildeo deve ler havido grandes mudanccedilas no inlerior do pais FalshyIam os elementos para reformas raacutepidas em reglaacutees de populaccedilatildeo tatildeo pouco densa e ignorllncia ainda latildeo profilnda

Nas linhas acima1 nota-se o contraste entre os brasileiros que participaram da bela revoluccedilatildeo - a Independecircncia - e os habitantes do interior estagnados alheios agraves reformas raacutepidas e caracterizados como ignorantes que habitam os confins do pais O texto do viajanshyte francecircs esboccedila jaacute no inicio do seacuteculo XIX a ideacuteia de uma naccedilatildeo cindida de um lado o Brasil litoracircneo dinacircmico e capaz de grandes realizaccedilotildees e de outro o interior rude e pouco afeito a mudanccedilas sigshynificativas

Trata-se de uma imagem decisiva para as interpretaccedilotildees posshyteriores da realidade brasileiacutera Mesmo despertando interesse o hoshymem do sertatildeo muitas vezes eacute definido como uma espeacutecie de primitivo exemplificando nosso atraso em comparaccedilatildeo agrave Europa e aos Estashydos Unidos Ele habita uma aacuterea semi-deserta das regiotildees tropicais da Ameacuterica do Sul aacuterea caracteriacutezada pelo clima quente pela natureza

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

desses indiviacuteduos ~LJe fvlofleifl) lcJe(n 0stntlci) limi1r ri Je~f lf~tl

erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

Page 46: IWGP - IHGP | Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba€¦ · te Alegre e de parte da sesmaria de Carlos Bartholomeu de Arruda (Cartório do 1° Oficio de Piracicaba. Registro

exuberante e pela vastidatildeo do territoacuterio ainda inexplorado Vejamos uma passagem na qual os naturalistas alematildees Spix e l1artius comenshytam os habitantes do norte da provinda de Minas Gerais

o acolhimento por loda parte neste ser1~o natildeo era menos hospitaleiro do que nas outras terras de Minas poreacutem quatildeo diferentes nos pareceram os habitantes destas regiotildees solitaacuterias em confronto com os sociaacuteshyveis e cultos cidadatildeos de Vila Rica de Satildeo Joatildeo dEI Rei etc ( ) O sertanejo eacute criatu da natureza sem instruccedilatildeo sem exigecircncias de costumes simples e ru~ des I) A solidatildeo e a falta de ocupaccedilatildeo espiriluSlJ armiddot rastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sexual no qual incitado pelo seu temperamento insashyciaacutevel li peta cafor do clima goza com tequiacutente J

Notapse mais uma vez O anuacutenciacuteo da dicotomia enlre os rudes moradores do interior e os habitantes das capitais e cidades iacutempor~ tantes Segundo os naturalistas alematildees a solidatildeo ou a pobreza das relaccedilotildees sociais explicam em grande medida a inferioridade do l1o~ mem do sertatildeo lnteragindo com poucos indiviacuteduos ele eacute apenas uma criatura da natureza pois como os animais e as plantas eacute incapaz de modificar significativamente o meio que habita Sua vida espiritual natildeo transcende as manifestaccedilotildees mais primitivas do ser humano como o desejo sexuaL Assim ele ocupa~se no magraveximo com distraccedilotildees gros~ seiras como o jogo de cartas ou entrega~se agrave embriaguez A resirtla sociabilidade dessas populaccedilOes do interior eacute pensada como um seacuterio limite para o desenvolvimento de suas facufdades intelectuais Vivendo a parte do Estado e da economia de mercado os caipiras produzem apenas o estritamente necessaacuterio para a sobrevivecircncia Assim sua vida espiritual eacute mesquinha eseus recursos materiais miseraacuteveis O cashylor tambeacutem parece acentuar a primazia dos impulsos corporais sobre o intelecto ajudando a manter o embotamento mental do interiorano Ele pode ser hospitaleiro e prestativo por vezes demonstra aguccedilada per~ cepccedilatildeo dos elementos naturais que o cerca - manifesta por exemplo um domiacutenio peneito das plantas medicinais de sua terra4 - mas para os viajantes alematildees a sociabilidade restrita e os fatores ambientais limitam degprogresso de suas faculdades e seu conhecimento resumeshyse agraves singelas informaccedilotildees que lhe satildeo uacuteteis na vida cotidiana

Aleacutem de ser considerado ignorante e pouco sociavel o hoshymem do interior na percepccedilatildeo dos viajantes dificilmente acompanha o progresso da civilizaccedilatildeo europeacuteia em funccedilatildeo de sua origem eacutetnica paiacutes eacute descendente de indigenas ou africanos Para Martius o euroshypeu domina de modo tanto somaacutetico como psiacutequico as demais raccedilas superando-as no desenvolvimento da moraltdade do espiacuterito livre independente Indios etiacuteopes e os mesUccedilos de ambas as mccedilas deshymonstram secreta limidez diante do branco e por vezes a simples presenccedila deste os amedrontaS Assim os primeiros soacute podem acom~ panhar o progresso quando dirigidos pelo segundo

3 SPIX Johaon 8 00 e MARTIUS Garl F von Vhmiddot gem peJo Brasil Satildeo Paushylo Ediccedilotildees rhhoramershylos 1976 v 11 p 66 (grifo meu)

4 SPIX Johaol B on e MARTIUS Gari F 00 Viashygem pelo Brasil Satildeo Paulo Ediccedilotildees Melhoramentos 2 ediccedilatildeo sd v1 p171-172

5 fbid I J 174-175

6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

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ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

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EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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6 r-AARTIUS Carl F p von O estado do direito enw

Ire os autoacutectonos do Brasiacute( Belo Horizonte itatiaia Satildeo Paulo Ed da UniVersidade de Satildeo Paulo 1982 p S7~ 88 Sobre a questatildeo racial em Martius cf Lisboa Kashyren M A Nova Atlaacutenfida de Spiacutex e Martfus Satildeo Paulo HucitedFapesp 1991 p 134-199

7 SA1NT-HILAIRE Au~ guste de Viagem a provlnshycia de Saacuteo Paulo Satildeo Paushylo Ed da Universidade da Satildeo Paulo Livraria Martins 1972 p 95-95 grifo meu Os europeus satildeo definidos como ~raccedila caucaacutesica

B Cf ibid pp 220 e 251

9 Ibid p 249 Sohre a sushyperioridade do mUlato frenle ao mameluco d tambeacutem ibid p 261

10 Cf ibfd p171

Os viajantes acreditam que a origem racial limita o acircmbito da accedilatildeo histoacuterica dos natildeo-europeus Em uComo se deve escrever a histoacuteria do Brasil- artigo publicado na Revista trimestral do IHGB em 1845 Martius defende que cada uma das trecircs raccedilas constitutivas da populaccedilatildeo brasileira tem um papel no movimento histoacuterico do pais Entretanlo o portuguecircs conquistador e senhor se apresenta como o mais poderoso e essencIal motor do desenvolvimento brasileiro A mescla de raccedilas ecirc decisiva para o Brasil maso sangue portuguecircs em um poderoso rio deveraacute absorver os pequenos confluentes das raccedilas iacutendia e etiocircpicaG Nota~se que a tese da necessidade de branquear o Brasil comeccedila a se delinear

Saiacutent-Hilaire por sua vez ao percorrer o interior paulista tamshybeacutem esboccedila uma imagem depreciativa dos mesticcedilos Descrevendo uma experieacutenda em um rancho na regiatildeo de Araraquara ele lamenta a estupidez dos homens pobres da provincia de Sao Paulo

Enquanto descrevia e examinava as plantas aproxi~ mau-se um homem do rancho permanecendo vaacuterias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra Desshyde Vila Boa ateacute Rio das Pedras tinha eu tido quiccedilaacute cem exemplos dessa estuacutepida indolecircncia Esses homens embrutecidos pela ignoraacutencia pela preguiccedila pela falta de convivecircncia com seus semelhantesj e talvez por excessos veneacutereos prematuros natildeo pensam vegetam como aacuteryorest como as elVas dos campos () Grande nuacutemero de homens mulheres e crianccedilas desde logo rodeou-me ( ) A primeira vista a maioria deles pashyrecia ser conslilulda por genle branca mas a largura de suas faces e proeminecircncia dos ossos das mesmas traiam para logo o sanque indigena que lhes corria nas veias mesclado com o da raccedila caucaacutesc8 r

Repele-se a ideacuteia de que o isolamento e a ignoracircncia produshyzem a indolecircncia dos caipiras Poreacutem o viajante insinua que o sangue iacutendigena tambeacutem determina o caraacuteter desses homens Em outras pas~ sagens Saint-Hilaire repete a mesma formulaccedilatildeo mu110s indiviacuteduos do interior paulista parecem brancos mas na verdade satildeo descendentes de iacutendios e europeus8bull Trata~segt segundo o viajante de uma mistura problemaacutetica produzindo indiviacuteduos inferiores a outros mesUccedilos os mamelucos relativamente agrave inteliacutegecircncia estatildeo muito abaixo dos mu~ latos e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais civilizada da proviacutencia de Minas Gerais) Caracteriacutestica do sertatildeo a miscigenaccedilatildeo entre o colonizador e o nativo aparece como heranccedila nefasta dificultando o avanccedilo civiacutelizatocircrio Como indicam as passa~ gens acima para Sainl~Hilaire a presenccedila de africanos e mulatos natildeo ecirc o maior empeciacuterho para a superaccedilatildeo do estado de [gnoracircnca e apatia observaacuteveis no interior do Brasil O caipira apresentando alguns dos caracteres da raccedila americana e um ar simploacuterio e acanhadolC mais do que qualquer outro brasileiro manifesta uma estuacutepida indolecircnciacutea refrataacuteria aos padrotildees da vida ciacutevlliacutezada suas casas satildeo sujas e peshy

quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

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ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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quenas usa roupas primitivas eacute notaacutevel a miseacuteria dos povoamentos e seu comportamento eacute apacirctlcoi1 Assim a imagem do homem que vegeta exprime de modo sinteacutetico a imobiacutelidade e as limites intelectuais atribuidos ao mesticcedilo caipira

Essa figuraccedilatildeo eacute produto apenas dos preconceitos dos viajanshytes europeus Por outro lado ateacute que ponto ela repercule na cultura brasileira e orienta accedilocirces destinadas a superar a rusUcidade do ser~ tatildeo

Responder essas perguntas eacute mais difiacutecil do que parece Posshysivelmente a imagem dos mesticcedilos de origem indigena estacirc articulada ao debate a respejto da suposta debliacutedade do Iomem americano inshytroduzido pelos textos de De PauVl e outros ilustrados do seacutecuto XVIII Antonello Gerbi aponta os principais problemas dessa produccedilatildeo na anacirclise da realidade americana por demasiadas vezes o exemplo solilacircrio foi generalizado como regra universal e dados verdadeiros se hipostasiaram em juizos de valores com indevida quafificaccedil~o pejorativa reafirmando a antHese esquemaacuteliacuteca e tradicional - formushylado no Renascimento - entre o Novo e o Velho MundolZ Em um texto muito liacutedo na eacutepoca as RecherIJes pl1iiacuteosOpJlfques sur (os Ameacutericains de 1768 De Pauw um cleacuterigo alematildeo levou ao extremo a difamaccedilatildeo Para ele os nativos da Ameacuterica odiavam as leis da sociedade e os obslaacuteculos da educaccedilatildeo viacutevendo cada um por si sem se ajudarem reciprocamente em um estado de indolecircncia de ineacutercia13 Criticado por vaacuterios autores ele sustentou sua posiccedilatildeo com firmeza No verbete Ameacuterica escrito para o Suppleacutement agrave IEncycopedie de 1776 (natildeo confundir com a Encyclopediacutee editada por Didero e DAlembert) De Pauw reafirmou que os americanos eram estuacutepidos inertes indolenshytes fisicamente deacutebeis dispersos de qualquer forma incapazes de progresso ciacutevilizatoacuteriacuteo14 Mesmo os descendenles de europeus teriam degenerado ao atravessarem o Atlacircntlco

Entretanto natildeo basta salientar o tradicional preconceito da cul~ tura europeacuteia dianle dos povos do Novo Mundo O proacuteprio Saint-Hilaire oferece pistas de que a representaccedilatildeo depreciativa do caipira eacute anleshyrior aos relatos de viagem Atentemos para mais uma passagem de Viagem agrave proviacutencia de Satildeo Paulo

Nenhuma diacuteficuldade h8 em distinguir os habitantes da cidade de Satildeo Paulo dos das localidades vizinhas Estes uacuteflimos quando percorrem a cidade usam calshyccedilas de tecido de algodatildeo e um chapeacuteu cinzento sem~ pre envolvidos no indispensaacutevel ponchQ por mais for uuml

te que seja o calo Denotam seus traccedilos alguns dos caracteres da raccedila americana seu andar eacute pesado e tecircm um ar simplocircrio e acanhado Pelos mesmos tecircm os habitantes da cidade pouqufssima consideraccedilatildeo) designandowos pela acunha injuriosa de caipiras pa~ lavra derivada provavelmente do lermo corupra pelo qual os antigos habitantes do paiacutes designavam democirc~ I1OS malfazejos existenfes nas florestas_ 15

11 Esse quadro aJ)arece em quase todas as descrishyccedilotildees de Soacuteint-Hilaire de poshyVQ(dQs de beiacutera de estrada do interior de Satildeo Paulo

12 Cf GEReI AniacuteoneUo o Novo Mundo - Histoacuteria rie uma poeacutemica (1750-1900) Sagraveo Paul Companhia das Lelras 1996 p 16-17

13Ibid p 56-57

14 fbid p 91

15 SAINTmiddotHILAIRE via~

gem a proviacutencia de Satildeo Paulo p 171 (grifos do aushytor)

16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

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erradarnente dado (orno co Gd[W-J r qf3~ isiiJrll

ora-se novam~nle a representaccedilatildeo 18fjecircHiacuteV3 drs dssc8ndelll$ d(~ in dios caracterislica dos teX~QS dos viajantes do s~1JIc XIX Pires ae final de suas Unhas a respeHo dos caboclos insirPJ3 a possibilidade de ~salvaacutemiddotlos por meio da escola e da convivecircncia CJIll (J lnUldo jrrba~

no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

EstmnguacuteiQS ~m wuuml rtrJryia iCfW bull Remesctgttaccedil(es do lpl11ielo_ IS7(iacute1iacute2a Sb P2llO O+nla)hJlefFrsp 1998 f 23- e 3~1middot3

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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16 Nacirco pretendo discutir aqui se as refereacutenciacuteas etishymoloacutegicas de Saln-Hilaire estatildeo corretas O que imshyporta ecirc a utilizaccedilatildeo dessas referecircncias pois inserem o homem do interior no jogo de imagens aponlado acishyma

17 CL PRATT Mary LeushyIse Os oJhos do impeacuterio Bauru Edusc 1990 p 234

1S lOBATO Uontero Urupecircs Satildeo Paulo 8ramiddot slliense 1969 p 279-280 (grifo meu

Para o viajante francecircs na pequena Satildeo Paulo do inicio do seacuteshyculo XIX eacute faacutecil identificar o caipIra as roupas quase ridiacuteculas e o comshyportamento tiacutemido o denunciam Satildeo Paulo ainda natildeo eacute uma metroacutepole industrial mas o caipira jaacute aparece como homem slmples e acanhashydo diante do mundo urbano Novamente anuncia-se a cisatildeo entre o Brasil das capitais e o Brasil do intertO( Mais uma vez o observador frisa a descendecircncia indiacutegena dos Interioranos Agora poreacutem o autor evidencia que os paulistanos tambeacutem consideram o caipiacutera iacutenferior a alcunha injuriosa pela qual ele eacute definido o aproxima da monstruoshysidade demoniacuteaca e do mundo selvagem das flO(estasHi

bull Os proacuteprios brasileiros - no caso os paulistanos - apresentam o homem do interior como um ser estranho e despreziacutevel indicando a cisatildeo entre os dois Brasis Sainl-Hilaire em certa medida reproduz essa imagem Assim podemos notar a complexidade das representaccediloacutees aqui discutidas Me parece arriscado afirmar que os viajantes europeus apenas retoshymam o debate a respeito da inferioridade do homem americano vindo da Europa Em vista da passagem acima eacute razoaacutevel pensar que os obM servadores estrangeiros interagem com as imagens produzidas pelos paulistanos e em alguma medida a experiecircncia destes uacuteltimos orienta os relatos de viagem Sugiro que os informantes brasileiros ajudam a moldar as representaccedilotildees depreciativas dos europeus Como lembra Mary L Pralt relalos de viagem lecircm uma dimensatildeo heterogloacutessica aleacutem da sensibilidade e observaccedilatildeo do viajanle eles manifestam reshypresentaccedilotildees e conhecimentos que adveacutem uda interaccedilatildeo e experiecircncia usualmente dirigida e gerenciada pelos viajados11 A elite brasileira com quem os viajantes dialogam e oblecircm Informaccedilotildees elabora a figura do calpira como homem atrasado e inrerior merecedor de pouquissi M

ma consideraccedilatildeo t possivel notar que parte das imagens discutidas acima cheshy

gam ao seacuteculo XX A leitura de alguns esclitores do inicio do periodo republicano sugere uma continuidade na figuraccedilatildeo de caipiras e sertashynejos Enlre eles destaca-se Monteiro Lobato Seu personagem Jeca Tatu eacute bem conhecido Entretanto vale observar as semelhanccedilas enshytre o quadro traccedilado em Urupecircs e as descriccedilotildees de Sainl-Hilaire

Porque a verdade nua manda dizer que entre as rashyccedilas de variado matiz formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e aborigine de tabuinha no beiccedilo uma existe a veaetar de c6coras incapaz de evotuccedilatildeo impenetraacutevel ao progresso Feia e sorna nada potildee de peacute ( ) Nada o esperta Nenhuma ferroDada o potildee de peacute Soshycial como individuatmente em todos os atos da vida Jeca antes de agir acocora-se 1S

A imagem do homem que vegeta sem iniciativa em um meio natural luxuriante capaz de lhe oferecer todos os recursos para sua sObrev(vecircncla aproxima Saint-Hiacutelaire e Lobato Nos dois autores a metaacutefora da ineacutercia vegetal caracteriza a indolecircncia do capira Ele encontra-se inserido entre a selvageria - o aboriacutegine - fi a dvUizaccedilatildeo

- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

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Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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- o estrangeiro Assim imagens recorrentes nos textos cios viajantes do periacuteodo da Independecircncia satildeo repetidas no inicio da Repuumlblica Apaacutetico incapaz de utilizar plenamente suas energias fiacutesicas e f8culshydades mentais o caipira de Lobao a SanH~H1a[te constituI um proshyblema para o progresso nacional e permanece apartado da historia do pais19bull

A imobilidade e a apatia dos caipiras aparec-enl mesmo nos detalhes das caracterizaccedilotildees dos dois autores Quando reunidos os homens do interior de Satildeo Paulo natildeo cantam (Lobato completa natildeo cantam senatildeo rezas luacutegubres)2deg Eles natildeo consertam os telhados de suas peacutessimas casas e a chuva cai dentro das mesmasl Saiacuten-Hishylaire afirma que eles desconheciam tudo o que ocorria pelo mundo podendo falar apenas dos objetos que os cercam) Para Lobato o Jeca natildeo 1em sequer a noccedilatildeo do pais em que VIV871 Outros e~emplos poderiam ser lembrados mas esses fatilde satildeo suficienles para inrHcocircr a continuidade a que me referi

Natildeo me parece inteiramente convincente o argLrmeno de que Sainl-Hi[aire e Lobato tr0lccedilafll retraios tatildeo parecidos ocircepois d obsershyvarem um mundo caipira prati(all1ente tnalre(o 8(iacute lonoo cio seacuteccedilub XIX A aacuterea de observaccedilacirco ele ambos o interior paulista foi profunda mente transformada pelo crescimento da plOduccedilaacuteo cafeeira e accedilllca reira aleacutem da presenccedila cada vez JYl8is intensa do trabalho escravo Eacute razoaacutevel pensar que os homens livres pobres mantecircm mesmo cnnl esse processo uma posiccedilatildeo marginal preservando vagraverios aspectos de seu modo de vida lradiciacuteonalH De qualquer forma haacute uma signishyficativa mudanccedila de contexto e eacute pouco provaacutevel a exisecircncia de I Im

mundo caipira absolutamente estaacutetico sem histoacuteria tJo PIais S8int Hilaire e Lobaio coincidem em muitos aspectos nota-se a repeticcedilatildeJ de me1acircforas - a ineacutercia vegetal do~ caipiras por exemplo - o mesmo diagnostico depreclatlvo das manifestaccedilotildees culturais interioranas - o caso da muacutesica eacute particularmente expressivo -- e o mesmo desalento ao tratar do futuro dos mesticcedilos pobres do serlatildeo Um seacuteculo rlerois as imagens e interpretaccedilotildees dos viajantes de alguma forma continuam presentes nos textos dos autores do Brasil moderno

Conveacutem alertar que no inicio do seacuteculo XX a[ecirc autores preshyocupados com o resgate da cultura do homem do interior evidenciam a permanecircncia de certas representaccedilotildees Comeacutefio Pires procurando rebater a imagem depreciativa de lobato pro poacutes urna lipoogla racial do caipira O branco (o rnelhor de todos) o mulato e o negro par3rem capazes de adaptaccedilatildeo ao progresso e em condiccedilotildees r~JVoravejs po~ dem contribuir para o desenvo[viacutenlento nacional ~flas os ccedilaboclos descendentes dir~tos dos bugres satildeo preuroguiccedilr)Siacute)S j1lhQCr)s demiddot leixados sujos e -rfnln f)p filllil$ fi0 [)~lJs-(r~l r~tgtmiddot Pifgts hi llD

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no matiza portanto a determinaccedilatildeo IBdal Natilde0 tBn1f) BSpBCcedilO pala

19 r-(ra um m1lj$~ da figurR d~l Jeca Tatu nas obra~ de Lc~)ato d NflshyR iAeacutercia R S Eslranmiddot deiTO em SUe PIi)PW ~0rra

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20 SOacute IQ1-HUtII1E Viu_ gem prJvnrn diJ 5lt10 Pmiddot7it( p 250 tlt)FtgtlO Uilf-s fi ~9 i

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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26 Para uma anacircJise da ipologia de Pires cf NAmiddot XARA Estrangeiro em sua proacutepria ferra D 122middot130

discutir como eacute complexa e ambiacutegua a maneira como o autor diacutes~ute a aproximaccedilatildeo do caipira com o mundo urbano~industria12( De qual~ quer modo mesmo considerando as oscilaccedilotildees do escrUor eacute aceilagravevel apontar as teses de Conversas ao peacute~do~fogo como mais um eco das opiniotildees dos naturalistas do seacuteculo XIX a respeito do mameluco

Pelo menos ateacute bem pouco tempo o Brasil parece natildeo ler sido pensado sem o sertatildeo e seus homens A maneiacutera de representar o homem do interior do pais natildeo me parece apenas uma estrateacutegia consciente de dominaccedilatildeo a serviccedilo de um grupo social especifico Ela migra de um diacutescurso para outro ~ utilizada sem duacutevida pelos que pretendem submeter os caipiras ao avanccedilo da civiUzaccedilatildeo ou seja atilde economia de mercado e ao aparelho estatal Mas tambeacutem seraacute reto~ mada pelos que buscam preservar sua cultura diante das forccedilas deshymolidoras do progresso O debate a respello da prcduccedilatildeo da imagem do caipira abarca um vasto campo de referecircncias passivel de aproshypriaccedilotildees diversas e por vezes contraditoacuterias A histoacuteria da utilizaccedilatildeo dessas referecircncias possivelmente oferece a oportunidade de pensar a proacutepria constltuiccedilatildeo dos projetos de desenvolvimento nacional pois o caipira e seu mundo satildeo sempre compreendidos corno o oposto do Brasil moderno fazendo com que a dicotomia interlorlJitoraJ observaacuteshyvel em Saint~Hilaire seja continuamente reinterpretada

Nos dias de hoje ao transformar o caipira em simbolo identiacuteshytaacuterio de cidades proacutesperas e industrializadas os paulistas natildeo estatildeo confessando certo incocircmodo ou talvez insatisfaccedilatildeo com o progresso que Saint-Hilaire e Lobato tanto desejaram

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