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i U NIVERSIDADE DE L ISBOA I NSTITUTO DE C IÊNCIAS S OCIAIS J UVENTUDE , F AMÍLIA E A UTONOMIA Entre a norma social e os processos de individuação Lia Pappámikail Ribeiro d’Almeida Tese orientada pelo Prof. Doutor José Machado Pais Doutoramento em Ciências Sociais Especialidade: Sociologia Geral 2009

J FAMÍLIA E AUTONOMIA - Repositório da Universidade de ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/319/1/21209_ulsd057815_td.pdf · i UNIVERSIDADE DE LISBOA INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

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    UNIVERSIDADE DE L ISBOA

    INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS

    JUVENTUDE , FAMLIA E AUTONOMIA

    Entre a norma social e os processos de individuao

    Lia Pappmikail Ribeiro dAlmeida

    Tese orientada pelo Prof. Doutor Jos Machado Pais

    Doutoramento em Cincias Sociais

    Especialidade: Sociologia Geral

    2009

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    Agradecimentos

    Levar um projecto de doutoramento a bom porto , em grande medida, um trajecto individual e solitrio. Espera-nos uma navegao seguramente mais agitada e turbulenta porm, se no se puder contar, ao longo da viagem, com o incondicional apoio de pessoas e instituies. A todos eles so devidos, por essa razo, os meus mais sinceros agradecimentos.

    No plano institucional, uma especial referncia devida Fundao de Cincia e Tecnologia que financiou atravs de uma bolsa de doutoramento este projecto, permitindo que a ele me pudesse dedicar durante quatro anos. Ao Instituto de Cincias Sociais estendo o agradecimento, por me acolher e apoiar (a mim e pesquisa), e por me ter permitido beneficiar das condies de excelncia para a investigao e debate cientfico que pautam a sua actividade acadmica. Ao Observatrio Permanente de Escolas, estou particularmente grata pelos vvidos debates e discusses e pelo ambiente fraterno que se criou entre os colegas do grupo de seminrios do OPE a quem hoje dedico um forte sentimento de amizade e com quem muito tenho aprendido.

    No plano estritamente pessoal, congratulo-me pela extensa lista de pessoas que me vem mente quando penso nas pessoas que me acompanham desde sempre e a quem gostava de agradecer individualmente. Se a alguns bastou-lhes estar presentes, como sempre, outros, por circunstncias e conjunturas diversas, acompanharam este desafio mais de perto, escutando-me, partilhando angstias, fazendo leituras crticas, sugerindo bibliografias, relativizando medos e anseios.

    minha famlia, me, av e irms, sobrinhos e cunhado, por cada um sua maneira constituir um exemplo de coragem, dignidade e perseverana, que muito me orgulha e inspira. Sofia, especialmente, e porque alm de irm colega, agradeo o apoio incondicional que s uma irm pode dar e a serenidade e confiana que transmite em todas as esferas da minha vida.

    A todos os meus colegas do ICS (investigadores e tcnicos), especialmente os do quarto piso (como a Vanessa e a Alice, entre outros), pela cumplicidade forjada no quotidiano de trabalho. Um agradecimento muito especial e sentido aos amigos que por l fui fazendo e que se tornaram ncoras fundamentais na minha vida. Ao Vtor Ferreira tudo o que me deu a aprender, cientifica e humanamente. A ele e ao Pedro Alcntara da Silva devo tambm, alis, doses regulares de nimo, cozinhado em momentos de cumplicidade e descontraco onde reina sempre o bom humor e a ironia. Ctia, o mais recente elemento do grupo, devo a disponibilidade constante, manifestao de um corao maior, e o enorme favor de ter traduzido o resumo da dissertao e de se ter empenhado na reviso atenta de parte deste manuscrito, alcanando gralhas e lapsos que os meus olhos j no eram capazes de ver. J Sofia Aboim une-me uma dvida de amizade e gratido, por me ter ajudado a abrir horizontes intelectuais e por sempre se ter disposto, generosa como s

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    ela, a escutar desabafos e a ajudar-me a encontrar solues para os bloqueios vrios que a escrita conheceu.

    Ainda no ICS, Maria Manuel Vieira, coordenadora do OPE, agradeo especialmente a companhia, a boleia e o apoio numa decisiva incurso no terreno em Fevereiro de 2006 e tudo o se seguiu. Karin Wall agradeo o carinho, preocupao e ateno que me dedicou, e as vrias oportunidades que me ofereceu de trabalhar com ela, enriquecendo a minha experincia acadmica com outros temas e horizontes.

    Fora do ICS, do outro lado do Atlntico, a Melissa, e do lado de c, a Ana Isabel e o Manelinho, a Guida e o Z Mrio, a Alice e o Pedro, a Sofia e o Lus, a Camila, o Bruno, a Jussara foram alguns dos ns fundamentais de uma rede de afectos que deram mais cor aos tempos livres, fornecendo energia vital para os tempos do trabalho. Filipa, uma justa homenagem pelas cumplicidades forjadas a par e passo (literalmente), pelas discusses infindas sobre todos os assuntos e pelas pontes que estabelecemos entre os nossos objectos. Patrcia cuja perspiccia e inteligncia nunca pra de me surpreender, agradeo (para alm de tudo o resto que nada tem a ver com este trabalho) ter-se dedicado reviso do manuscrito, melhorando-o com sugestes certeiras.

    Ao meu orientador, Doutor Jos Machado Pais quero agradecer, em primeiro lugar, a oportunidade que me deu em 2001 para ingressar numa carreira de investigao. Tenho procurado honr-la dando o meu melhor. Em segundo, e sobretudo, por me ter empurrado, com uma mestria incomparvel, para fora da minha zona de conforto em todas os momentos da pesquisa (e da escrita), fazendo constantes interpelaes (e provocaes), espicaando-me com o seu sagaz esprito crtico, forando-me, enfim, a pensar mais e melhor em todas e cada uma das palavras que fui escrevendo.

    Aos meus entrevistados, o maior dos agradecimentos pela generosidade com que acederam a partilhar um pouco das suas vidas. Devo-lhes afinal a existncia da matria-prima que me permitiu trabalhar e compor esta narrativa.

    Agradeo, por fim, ao Antnio todo o amor, dedicao e pacincia (em doses iguais), a compreenso e partilha quotidiana, e o trazer signficado ao esforo que tudo isto representou.

    Ao Loureno, inesgotvel fonte de inspirao, dedico esta dissertao. Ansiei-lhe o fim como se de uma gravidez se tratasse: com ansiedade, expectativa e alguma angstia. Foram muitos os dias em que, embalada na escrita, via o fim cada vez mais prximo. Ento olhava o relgio e constatava j ter chegado a hora de o ir buscar. E l ia sentir-lhe os abraos do reencontro e as saudades de um dia separados. Olhando para trs, vejo que completei este enorme desafio sem nunca ter ido busc-lo tarde, sem nunca abdicar da sua presena ao final do dia, sem nunca pr o filho de papel frente do filho de carne e osso. E o facto que acabei (mal ou bem, melhor ou pior) mesmo assim. No , na verdade, ter acabado que me deixa mais feliz, ter conseguido (ou feito questo de) que a vida continuasse com as prioridades no seu devido lugar.

    Aos meus rapazes agradeo, pois, por me lembrarem a cada instante daquilo que verdadeiramente importante na vida.

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    Resumo

    Nesta pesquisa discutiu-se, atravs do estudo de jovens adolescentes e suas famlias, a relao que o valor da autonomia tem com os processos de individuao, aferindo as lgicas sociais atravs das quais os sujeitos reportam norma. Esta emergiu como plural nos seus sentidos, pois compsita de elementos mais racionais, que remetem para a integrao (social e grupal), e mais expressivos, que evocam a autenticidade (de modos de ser e de estar).

    Justificou-se, em primeiro lugar, a centralidade da autonomia na paisagem tica e cultural da contemporaneidade, ensaiando uma genealogia conceptual, por via da recolha de contributos da Filosofia e da histria. Ao situar a autonomia no vrtice dos dilemas fundamentais da modernidade, explanou-se como estes se reflectem na construo paradigmtica da Teoria Social, em geral, e na forma como a Sociologia tem abordado o indivduo, em particular.

    A adolescncia e juventude emergiram, pois, como um perodo do ciclo de vida particularmente denso e intenso de abertura ao mundo, em que simultaneamente se expandem as relaes sociais e os territrios de existncia num processo complexo de aquisio de liberdades e independncias. Um processo em que participam, ainda assim, os contextos econmicos, culturais e sociais em que vivem os jovens. nessa medida que a adolescncia surge como um fenmeno simultaneamente individual, familiar e social. Com efeito, so mltiplos os desafios e provas que ao longo do percurso enfrentam os sujeitos, o que imprime um carcter probatrio s suas performances, donde resultam hesitaes, dvidas e vulnerabilidades. Ao mesmo tempo que crescem e amadurecem, procuram, pois, (ou -lhes oferecido um espao para) acomodar a autonomia que vo construindo, no sistema de relaes familiares, relativamente estvel at ento. Ao reivindicar um novo estatuto e encetando um percurso de desafiliao relativa, os sujeitos interpelam a famlia cuja aco orientada pela dupla injuno de proteger e emancipar, forando recomposio e transformao das relaes, o que torna a adolescncia um perodo igualmente desafiante para os progenitores.

    Estes constituem os principais traos que resultaram da anlise da forma como o valor da autonomia se inscreve nas culturas familiares, aferindo traos de transformao social e cultural; da forma como os jovens adquirem ou conquistam mais liberdade de aco e circulao, por um lado, e mais independncia instrumental e financeira, por outro; e dos trilhos que os jovens percorrem para constituir, expressivamente no espao domstico e relacional, universos privados e ntimos.

    Palavras-Chave: Famlia, Juventude, Adolescncia, Identidade, Autonomia

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    Abstract

    In this research through the study of young teenagers and their families, the relationship that the value of autonomy has with the processes of individualization was discussed, by assessing the social logics through which individuals report to the norm. This emerged as plural in its different meanings, composed of more rational elements, related to integration (group and social), and more expressive ones that evoke authenticity (ways of being and doing).

    First, the centrality of autonomy within the ethic and cultural background of contemporary societies was justified; drawing on a conceptual genealogy which gathered contributes of history and philosophy. By placing autonomy at the vertex of the fundamental dilemmas of modernity, it was explained how these reflect a paradigmatic construction of Social Theory, in general, and the way Sociology has been portraying the individual, in particular.

    Adolescence and youth emerged, thus, as a period of the life cycle particularly dense and intense of openness to the world, where social relations and territories of existence expand simultaneously in a complex process of gaining freedoms and independences. This is a process that involves, nevertheless, the economic, cultural and social contexts in which young people live in. It is in this vein that adolescence is simultaneously an individual, social and family phenomenon. In fact, multiple are the challenges and proofs that individuals face throughout this path, which give a probational character to their performances, resulting in hesitations, doubts and vulnerabilities.

    As they grow up and mature, they seek (or are provided with space for) to accommodate the autonomy they are creating, within the system of family relations, which has been relatively stable until then. While claiming a new status and setting up a trajectory of relative disaffiliation, individuals interpellate the family whose action is directed by the dual injunction of protect and emancipate, which forces the recomposition and transformation of relations, making adolescence a period equally challenging for parents too.

    These constitute the main outlines that resulted from the analysis of how the value of autonomy is inscribed in family cultures, assessing characteristics of social and cultural transformation; the way young people get or conquer more freedom of action and movement, on the one hand, and more instrumental and financial independence, on the other; and the routes that young people go through to constitute - expressively within the domestic and relational space - private and intimate universes.

    Keywords: Family, Youth, Adolescence, Identity, Autonomy

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    Ser, parecer Entre o desejo de ser e o receio de parecer o tormento da hora cindida Na desordem do sangue a aventura de sermos ns restitui-nos ao ser que fazemos de conta que somos Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Ed. Caminho, 1999

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    NDICE

    Agradecimentos ....................................................................................................................... iii Resumo ...................................................................................................................................... v Abstract ................................................................................................................................... vii Introduo ................................................................................................................................. 1 PARTE I A autonomia na paisagem tica contempornea: da genealogia terica de um conceito definio de um objecto de pesquisa .................................................................................. 11

    CAPITULO 1 Autonomia, Indivduo e Modernidade: em busca das razes filosficas da noo de sujeito ....................................................................................................................................... 14

    Apresentao ........................................................................................................ 15

    1.1 Autonomia no projecto moderno: entre o indivduo e o bem comum ............ 18

    1.2 Desafiando os paradoxos da autonomia: o sujeito filosfico em anlise ....... 24

    Razo e reflexividade, primeiro. ....................................................................... 24

    Controlo, responsabilidade e respeito, entretanto. ............................................ 27

    Autenticidade, Identificao e Identidade, por fim. ......................................... 29

    CAPTULO 2 Modernidade, autonomia e Cincias Sociais: das questes ticas s respostas cientficas ................................................................................................................................. 37

    Apresentao ........................................................................................................ 39

    2.1 O sujeito nas narrativas do nosso tempo: o comprometimento esquecido das

    Cincias Sociais? ................................................................................................... 40

    2.2 Modernidade e cdigos binrios: divergncias paradigmticas ..................... 44

    CAPTULO 3 A fabricao do Indivduo na Sociologia:49 (mais) variaes sobre o tema da autonomia ................................................................................................................................ 49

  • xii

    Apresentao ........................................................................................................ 51

    3.1 O indivduo socializado .................................................................................. 53

    3.2 O indivduo actuante: entre o racional e o relacional ..................................... 63

    O Indivduo Racional ....................................................................................... 65

    O Indivduo Relacional .................................................................................... 69

    3.3 Ultrapassando antagonismos: reflexes em torno de uma viso dialgica de

    indivduo ............................................................................................................... 84

    CAPTULO 4 Modernidade, famlia e indivduo em devir: (re)definindo conceitos, lanando pistas ... 91

    Apresentao ........................................................................................................ 93

    4.1. Algumas notas sobre importantes mudanas sociais que afecta(ra)m a famlia

    e as relaes de filiao ......................................................................................... 93

    4.2 Entre fase da vida e categoria social? Das perspectivas sobre a juventude s

    experincias dos jovens ....................................................................................... 106

    4.3 O problema das transies juvenis para a vida adulta e o seu contributo para a

    clarificao e definio dos conceitos: distinguindo autonomia, liberdade e

    independncia ...................................................................................................... 114

    4.4 Do corpo que cresce e da autonomia que se constri: um (novo) olhar sobre o

    processo de individuao .................................................................................... 123

    CAPTULO 5 Objecto, Metodologia e procedimentos: um percurso reflexivo ...................................... 131

    5.1 Objecto e objectivos: trilhos, questes e reflexes ...................................... 133

    5.2 Desenho da pesquisa e trabalho de campo: opes metodolgicas, definio

    de procedimentos e sua aplicao ....................................................................... 139

    5.3 Da anlise dos dados composio de uma narrativa ................................. 151

    PARTE II Juventude, autonomia e famlia: iluminando o processo de construo de si ................ 159 CAPTULO 1 Culturas familiares e objectivos educativos: continuidades e mudanas ........................ 163

  • xiii

    Apresentao ...................................................................................................... 165

    1.1 Patrimnios normativos e lgicas de transmisso: objectivos de ser, ter e

    fazer ..................................................................................................................... 170

    O importante era ir estando feliz: liberdade, autonomia e identidade ........ 171

    Do Respeito pelos outros: pluralidade de sentidos e de orientaes .............. 176

    Do ser e do ter: ambivalncias em torno do materialismo.............................. 188

    Conforto material e mobilidade social: entre aspiraes e estratgias ........... 193

    Esforo e trabalho: entre o sacrifcio e o mrito ............................................. 198

    1.2 Do filho que fui, ao pai que sou: continuidades e mudanas na sociedade

    portuguesa ........................................................................................................... 202

    A experincia da ausncia: entre a privao e a solido ................................. 205

    A experincia da distncia: afectos, comunicao e afinidades ..................... 208

    ramos sempre muitos: a experincia do convvio, da festa e da rua ......... 216

    Concluindo ..................................................................................................... 220

    CAPTULO 2 Efeitos de luz?: liberdade de circulao e aco e reformulao do estatuto na famlia a partir da anlise das interaces ...................................................................................... 225

    Apresentao ...................................................................................................... 226

    2.1. Dos percursos que se trilham durante o dia: uma primeira abordagem s

    lgicas de aco individuais e aos seus efeitos no processo de individuao em

    termos de liberdade e independncia................................................................... 234

    Exercitando competncias: estratgias e prticas educativas em anlise ....... 236

    Gesto do quotidiano e controlo distncia: confiana ou crena? ............... 240

    Banalizao e rotinizao: a fixao de novas fronteiras aos territrios de

    liberdade diurna .............................................................................................. 243

    Lgicas de aco parental e filial: diferentes perfis de interaco, diferentes

    resultados? ...................................................................................................... 247

    2.2 Sair noite: o pomo da discrdia e a turbulenta transformao da relao de

    foras no sistema de gesto dos tempos e espaos de vida juvenis ..................... 257

    As divergncias fundamentais ........................................................................ 262

    Da semelhana nos argumentos e nas razes diferena nos resultados:

    retomando a anlise das lgicas de aco e os perfis de interaco ............... 268

  • xiv

    A via do ajustamento e do compromisso: construindo estratgias de controlo e

    vigilncia ........................................................................................................ 288

    Para l dos consensos: estratgias para contornar e transgredir regras e limites

    ........................................................................................................................ 312

    Concluindo ..................................................................................................... 317

    CAPTULO 3 O valor que o dinheiro tem: reequacionando a (in)dependncia juvenil na sua relao com a liberdade de aco e circulao ................................................................................ 327

    Apresentao ...................................................................................................... 329

    3.1 Gesto das trocas financeiras: dois modelos, vrias interpretaes ............. 340

    A aprendizagem da responsabilidade: o dinheiro como territrio educativo . 341

    A afirmao ritual da dependncia no quotidiano: indiferena ou controlo? . 350

    3.2. Trabalho, independncia e liberdade: transies estatutrias e aco parental

    ............................................................................................................................. 367

    Concluindo ..................................................................................................... 377

    CAPTULO 4 O meu quarto sou eu?: territrios partilhados, universos privados e identidades em construo ............................................................................................................................. 385

    Apresentao ........................................................................................................ 387

    4.1 Fazer parte: dinmicas familiares, partilhas e construo de um espao

    individual ............................................................................................................ 396

    Partilhar o quarto: gnero, idade e intimidade relacional ............................... 398

    O meu quarto na casa deles: da gesto dos espaos gesto das relaes .. 403

    Privacidade, universo ntimo e reformulao das relaes ............................ 426

    4.2 Estar parte: subjectividades, narrativas e autenticidade em construo .... 439

    O quarto como espao para a reorganizao reflexiva de si? ......................... 440

    O meu quarto sou eu?: uma anlise aos objectos mais significativos ............ 445

    Concluindo ......................................................................................................... 459

    CONCLUSES FINAIS: do valor social da autonomia e a sua expresso nos processos de individuao .................................................................................................... 467

  • xv

    Uma autonomia compsita e plural: dos ideais experincia, um fluxo de tenses

    e paradoxos (i)resolveis? ................................................................................... 468

    Adolescncia, individuao e famlia em transformao: interpelao dos sujeitos

    e construo da autonomia .................................................................................. 475

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 491

    ANEXO 1 ............................................................................................................................... 505 Snteses biogrficas dos casos .............................................................................................. 507

  • 1

    Introduo

    Nesta pesquisa estudaram-se jovens adolescentes em processo de construo de si.

    Para o efeito seguiu-se o fio condutor da autonomia. E a noo de autonomia surgiu na

    pesquisa por dois caminhos distintos, cujas interligaes se desejaram ver melhor

    explicadas. Por um lado, perceber como uma norma social interpretada e acolhida pelos

    indivduos. Por outro, aferir os processos atravs dos quais autonomia se constri e

    concretiza (ou no), constituindo-se como um dos eixos centrais do percurso de construo

    identitria. Em suma, averiguar como se articula um paradigma normativo, onde a

    autonomia parece ocupar um lugar de destaque, com os processos concretos (mesmo que

    inacabados) de emancipao individual.

    Sendo uma problemtica transversal ao ciclo de vida, concentrou-se o olhar numa

    fase em particular a adolescncia na medida em que esta constitui um perodo

    particularmente intenso em experincias relacionadas com a construo da autonomia, a

    conquista de liberdade e a aquisio de independncia. Porqu? Em virtude dos sujeitos

    estarem imersos num processo de abertura ao mundo, pleno de desafios e transformaes

    fsicas, psicolgicas e sociais, em que se interpelam a si e aos outros. Com efeito,

    investigar esta etapa da vida pode contribuir para a compreenso dos modos como num

    espao relacional, como a famlia, se cruzam e confrontam em diferentes contextos

    sociais e culturais, experincias de construo da autonomia e de transformao das

    relaes. Ou seja, medida que (para alm de tudo o resto) os jovens reclamam um novo

    estatuto na famlia, que se constituiu, por esta razo, a principal plataforma de observao

    dos processos individuao, ainda que se reconhea a existncia e a importncia de muitos

    outros territrios de socializao e interaco (a escola, os grupos de pares, os media, etc.).

  • INTRODUO

    2

    A formulao problemtica do objecto no surgiu, claro est, de gerao espontnea

    mas antes de um percurso por vezes cronolgico (episdios que se sucedem), por vezes

    lgico (reflexes que se organizam). Na verdade, o processo de construo de objectos de

    investigao sociolgica tambm pode obedecer velha mxima de Lavoisier: nada se

    cria, nada se perde, tudo se transforma. Ou seja, os objectos no se inventam, antes esto

    por a, nos trilhos do quotidiano, espera de ser interpelados (Pais 2002, 247-261).

    Essencialmente, as inquietaes que motivaram o desejo de estudar a autonomia

    juvenil numa nova perspectiva surgiram de pistas soltas resultantes dum percurso de

    pesquisa sobre juventude (Pappmikail 2004, 2005, Pappmikail e Pais 2004). Constatou-

    se a dada altura, analisando os testemunhos de jovens entrevistados para uma pesquisa

    sobre apoio familiar nas transies da escola para o mercado de trabalho, a afirmao

    recorrente da autonomia1 de escolhas e decises como um trao importante de afirmao

    de si, pelo que a centralidade que a autonomia tinha nos discursos constitua um caminho

    que deveria ser explorado mais aprofundadamente. Mais, falando sobre o seu quotidiano

    actual, a maioria situava no passado um perodo tenso ou mesmo turbulento na relao

    com a famlia, de fixao de limites e regras de convivncia, mas sobretudo um perodo

    fundamental para nela forjar um novo estatuto, mais igualitrio face aos progenitores.

    Restava pois saber, que lgicas e processos sociais subjaziam a esse percurso. Por outro

    lado, outra importante questo continuava por responder de forma satisfatria: porque

    que, apesar de objectivas situaes de dependncia e influncia familiar (instrumental e

    afectiva), a maioria dos jovens reivindicava uma condio de autonomia na gesto da sua

    vida, sublinhando o facto de, ao mesmo tempo, serem responsveis pelas suas aces?

    A autonomia reivindicada nos discursos parecia assumir um carcter mais retrico

    do que prtico, como alis defendem alguns autores nas suas pesquisas sobre jovens

    contemporneos (Thomson et al. 2002). Ou seja, emergia um paradoxo que faz com que

    muitos jovens contemporneos possam ter a sensao de ser autnomos, sem terem

    autonomia de facto. Mais do que tomar esta dualidade como um pressuposto, adensou-se

    sobretudo a ideia de que se lidava com uma noo, no mnimo, paradoxal, ao condensar

    vrios sentidos. Estariam afinal em jogo no um, mas vrios conceitos relacionados

    associados a uma s palavra?

    1 Desde logo um reparo: poca da realizao da referida pesquisa o uso do termo autonomia pode ter sido precipitado, carecendo, em abono da verdade, da aturada clarificao conceptual que aqui se defende ser necessria.

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    3

    Levando na bagagem estas inquietaes e uma reviso breve de literatura, lanou-se

    a pesquisa sem mais demora: entrevistas a jovens rondando o limiar da maioridade e a pelo

    menos um dos progenitores. As suas caractersticas socioeconmicas de origem eram

    diversificadas, sendo que a maioria estudava ainda. Seguindo o conselho de Kaufmann

    (1996, 36), optou-se deliberadamente por partir para o terreno sem um aprofundamento

    bibliogrfico demasiado estruturado para que os aportes tericos no contaminassem o

    olhar e as perguntas colocadas, ocultando a novidade e a surpresa com a confirmao

    emprica de postulados tericos. Importa, pois, ressalvar o facto de muitos dos

    questionamentos tericos, que na primeira parte se exploram, terem sido suscitados e

    desenvolvidos, na verdade, no contacto com a empiria, ou seja, atravs das tenses e

    inquietaes surgidas da anlise dos testemunhos que se recolheram (vide captulo 5, Parte

    I para mais explicaes sobre o percurso de investigao). Foi, em suma, o somatrio de

    todas estas questes, que serviu de ponto de partida para o percurso de indagao terica

    que pretende contextualizar a problemtica da autonomia nas sociedades contemporneas.

    A questo capital era, no entanto, a autonomia. E como estudar um conceito cujo

    contedo no sequer consensual? Mais, como operacionalizar um conceito to complexo,

    sem explorar criticamente a sua j longa histria, negligenciado o papel fundamental que

    desempenhou no desenvolvimento das sociedades ocidentais? Recorrendo terminologia

    usada por Wagner (2001) h questes de pesquisa que so inescapveis, se se pretende

    aprofundar um determinado tema. Procurar solues para aqueles dilemas implicados na

    tarefa de procurar definir a autonomia enquanto valor e enquanto processo - representou

    um esforo de indagao que conduziu a pesquisa, no s s origens da prpria disciplina

    de Sociologia (atravs da genealogia do conceito), como a um dos fundamentos

    normativos das sociedades contemporneas ocidentais: a noo de indivduo emancipado,

    isto , livre, autnomo e independente2.

    Em suma, mobilizar o conceito de autonomia revelou-se desde cedo particularmente

    complexo, pelo facto de ser um vocbulo que se multiplica numa srie de sentidos:

    polticos (a cidadania implica a autonomia dos sujeitos); ticos (devemos ser autnomos ou

    2 Perguntar-se- nesta altura o leitor como foi possvel alargar a escala da discusso (da aparente retrica de autonomia juvenil aos fundamentos das sociedades ocidentais) ao ponto de se estar j a fazer referncia a aspectos polticos, histricos e filosficos da noo de autonomia, quando apenas se pretende estudar jovens e respectivas famlias. Na verdade, o interesse num dado objecto, observado nas suas manifestaes empricas mais simples e prosaicas, no deve representar desinteresse pelas questes tericas que, de forma mais ou menos subtil, os trespassam. Imps-se portanto como tarefa desta pesquisa no s avanar com interpretaes para os contedos empricos da autonomia, mas tambm explorar o porqu de a pensarmos como pensamos.

  • INTRODUO

    4

    a autonomia a plena realizao da individualidade), comportamentais (ter autonomia),

    identitrios (ser autnomo), processuais (tornar-se autnomo).

    Tambm verdade que se trata de uma palavra banalizada tanto no seu uso

    quotidiano, como no vocabulrio das Cincias Sociais, onde autonomia surge

    frequentemente ora como causa, ora como consequncia de fenmenos, como

    manifestao ou como explicao de comportamentos, como indicador ou como dimenso

    de anlise, sem muitas vezes se dar conta de qual concepo de autonomia est a ser

    mobilizada. , na realidade, uma das armadilhas mais frequentes das Cincias Sociais:

    longe de qualquer definio pura, o vocabulrio conceptual constitudo de palavras

    que, para alm dos usos mltiplos no quotidiano, carregam uma histria que lhes atribui

    significados que so, na sua gnese pelo menos, normativos.

    , ainda assim, possvel afirmar que na literatura cientfica contempornea a noo

    de autonomia surge presidindo a um universo semntico povoado de conceitos com

    sentidos prximos, o que resulta em serem muitas vezes tomados como sinnimos. Seno

    veja-se: autonomia surge por vezes como equivalente de liberdade, mas tambm de auto-

    regulao ou de soberania; associada dignidade, integridade, individualidade,

    independncia, responsabilidade e ao auto-conhecimento; vista como uma qualidade

    que se relaciona com a assertividade, reflexo crtica, libertao dos compromissos,

    ausncia de coaco externa e conhecimento de si; uma caracterstica atribuvel s

    aces, s crenas, s razes para agir, s regras, s vontades de outros, aos pensamentos e

    aos princpios (Dworkin 2001, 6).

    Na verdade, circulam muitas concepes para um s conceito, como justamente

    reconhece Dworkin (2001, 9), referindo-se importncia de se proceder sua clarificao.

    Recorrer etimologia da palavra, exerccio fundamental para a clarificao conceptual,

    no se revela, neste caso, suficiente. Autonomia significa literalmente dar lei (nomos) ao

    prprio (auto), o que apontando direces semnticas e o seu sentido geral, no d conta

    nem da importncia e alcance do conceito, nem do seu lugar como norma social, nem

    tampouco das caractersticas especficas que permitem (ou no) considerar algum

    autnomo.

    A autonomia, no obstante os mltiplos significados a ela atribudos, surge assim no

    centro dum tringulo cujos vrtices representam importantes debates nas Cincias Sociais:

    a individualizao (tempo histrico), individuao (tempo biogrfico) e a identidade

    (tempo subjectivo). Uma triangulao vital para abordar o conceito. Reconhec-lo no

    significa, contudo, que nos satisfaamos com uma mera referncia s teses da

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    5

    individualizao, pois trata-se de um processo socio-histrico de tal modo complexo que

    merece um exame mais detalhado. Christman (2003) lembra, justamente, que a

    autonomia est, na verdade, no vortex3 da complexa discusso acerca da modernidade, e

    este um debate que tem interessado uma mirade de tericos sociais (Alexander 1995,

    Corcuff et al. 2005, Kaufmann 2008, Taylor 1989, 2004, Turner 1990, Wagner 2001,

    Wagner 2002 [1994], s para citar alguns dos mais relevantes).

    A centralidade da autonomia deve-se, de acordo com Wagner (2001, 4), a partir da

    tese de Castoriadis (1975), ao facto da autonomia, a par da racionalidade que permite ao

    ser humano controlar a sua relao consigo prprio e com a natureza, se constiturem como

    a dupla significao do imaginrio da modernidade. Muito para alm de um conceito

    operativo que refere processos empricos, a autonomia est, pois, na base dos princpios

    filosficos e polticos que ajudam a pensar as sociedades contemporneas e a mapear as

    paisagens ticas e morais que servem de pano de fundo s trajectrias de vida.

    Assim, analisar narrativas familiares, histrias de vida concretas desenroladas em

    quotidianos banais, s sublinhou o facto de estarmos perante um tema que congrega uma

    rede complexa de intuies, questes empricas e conceptuais, bem como importantes

    discusses normativas (Dworkin 2001, 7). No se quis, contudo, e face complexidade

    que se tem procurado demonstrar, correr o risco de fazer um uso dogmatizado da noo de

    autonomia, limitando a discusso ao interpretar na realidade estudada as propriedades

    atribudas ao conceito (Corcuff 2005a), pela simples razo deste estar difusamente definido

    e mostrar ser plural nos seus significados.

    De acordo com algumas abordagens mais crticas (Corcuff 2005a, 2007, Wagner

    2001) a dogmatizao resulta, justamente, da pr-estruturao do olhar sociolgico que, ao

    negligenciar as razes filosficas dos seus questionamentos de base, bem como do seu

    espao interpretativo. Acaba assim, muitas vezes, por encaixar mecanicamente os

    conceitos nos seus esquemas de inteligibilidade, no os interpelando sistematicamente. H,

    com efeito, em muita Teoria Social contempornea um substrato ideolgico que no deve

    ser ignorado. Hoje, no entanto, muito menos visvel do que, por exemplo, na Teoria

    Social clssica, onde a articulao entre ticas e teorias sociais era alis assumida como um

    objectivo (nomeadamente Alexander 1995, 13, Cohen 2002, 136)4. Encetar um percurso de

    3 A referncia ao vortex, por contraponto ideia de vrtice, remete justamente para o carcter dinmico de tal debate, uma vez que vortex evoca a ideia de um fluxo em espiral, em constante movimento de rotao.

    4 Voltar-se- a este assunto em no ponto 2 da parte I.

  • INTRODUO

    6

    reflexividade que tentasse, no mnimo, contornar este risco, conduziu, assim, a uma

    averiguao que rapidamente obrigou a saltar as fronteiras disciplinares da Sociologia, para

    dialogar com particular intensidade com a Filosofia. O dilogo entre estes dois registos

    intelectuais revelou-se muito inspirador e permitiu, no s situar uma problemtica

    particular no trilho das questes histrico-filosficas que estruturam o debate sociolgico5,

    como emprestou anlise um adicional rigor conceptual. Mais no se fez, neste caso, do

    que seguir o convite de Corcuff (2007, 116), para quem uma maior densificao terica

    um resultado do convite renovao conceptual que s se consegue, em seu entender,

    atravs do estabelecimento de uma saudvel distncia crtica de noes rotinizadas por via

    de dilogos interdisciplinares.

    Mas um trajecto de averiguao terica, por muito valor que tenha enquanto

    exerccio intelectual, s teve interesse (e justificao) na medida em que servia o objectivo

    de iluminar um objecto emprico concreto: as experincias de jovens adolescentes e suas

    famlias. Esta trajectria de reflexividade conceptual foi pois, antes de mais, essencial na

    construo de um esquema de inteligibilidade, tecido a partir das pistas recolhidas da

    anlise dos dados. Isto , o exerccio vlido na medida em que forneceu os elementos

    crticos que permitiram aprofundar as relaes entre categorias e conceitos, porque ajudou

    a destrinar os ns interpretativos que em que se hesitou durante a anlise, e porque

    permitiu consolidar o fio condutor que orientou a construo da narrativa, criando sentidos

    para a leitura das mltiplas experincias que um corpus emprico contm.

    Esta dissertao , pois, composta por dois percursos principais que visam, em

    ltima anlise, promover uma discusso acerca da autonomia enquanto conceito, norma

    social e processo. Na primeira parte (Parte I), d-se conta do percurso de definio

    conceptual atravs da elencagem dos contributos relevantes construo do modelo de

    anlise, procurando tornar o conceito chave desta pesquisa a autonomia

    operacionalizvel e heurstico. Ao faz-lo, explora-se a sua trajectria conceptual, os seus

    sentidos e os seus contedos histricos, filosficos e sociolgicos. Um percurso que abre

    portas a um outro (Parte II) em que se retratam experincias juvenis a partir de vrios

    recortes temticos que abordam alguns elementos fundamentais para a compreenso dos

    processos de construo da autonomia juvenil e suas implicaes na vida familiar.

    5 Mesmo que frequentemente se ignore essa relao, o que leva vrios autores a criticar ora a concentrao no presente, ora a uma recolha demasiado selectiva de elementos do passado na produo das Cincias Sociais na actualidade (como refere, por exemplo, Wagner 2001, 78).

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    7

    Na Parte I faz-se uma aproximao progressiva ao objecto de pesquisa (do geral ao

    particular) em cinco momentos. No Captulo 1 parte-se em busca das razes filosficas da

    noo de sujeito, a partir de uma genealogia histrico-filosfica, breve e sinttica, da noo

    de autonomia enquanto eixo central do iderio moderno. Uma particular ateno dada aos

    paradoxos que resultam da afirmao da autonomia como valor, tanto na sua definio

    formal e conceptual, como na distncia que se estabelece entre o indivduo tico e a

    experincia do indivduo emprico, paradoxos que inspiram, alis, uma longa corrente de

    debates em torno do sentido a dar existncia humana.

    J no Captulo 2 pretende-se reflectir sobre o modo como o iderio moderno influi

    na gnese e desenvolvimento das Cincias Sociais e na forma como estas se organizam

    paradigmaticamente em torno de compromissos ticos e propsitos reformadores (embora

    nem sempre explcitos). Procurar argumentar-se como a leitura da autonomia enquanto

    valor fundamental, herdada dos antagonismos vigentes no pensamento filosfico, e os

    progressos e regressos que a histria trouxe aos sujeitos, o eixo fundamental do debate

    sociolgico, na forma como pensadores oriundos de vrias tradies interpretam o seu

    tempo e a condio humana em sociedade.

    No Captulo 3 chega-se finalmente s estratgias intelectuais usadas pela Sociologia

    para abordar o indivduo, aqui organizadas em funo do tratamento que do autonomia

    do sujeito e capacidade deste ser ou no verdadeiramente autnomo. Para o efeito,

    procurou fornecer-se uma viso dinmica e processual dos vrios aportes tericos no

    sentido do que so as tendncias contemporneas na anlise da complexidade e pluralidade

    dos indivduos e suas trajectrias de vida.

    O Captulo 4 debrua-se, por fim, sobre as transformaes da instituio famlia, a

    par de uma reviso crtica de alguns contributos resultantes da produo da Sociologia

    dedicada juventude, com o fito de estabelecer, por um lado, directrizes para a

    interpretao do objecto, atravs de exerccios de clarificao conceptual, e, por outro,

    desenhando um olhar terico sobre a adolescncia e os processos de construo de si que

    sintetiza, de certa forma, os mltiplos contributos que definem autonomia enquanto

    conceito compsito e plural e o processo de individuao como um percurso dinmico e

    relacional.

    Partindo da sistematizao dos objectivos especficos que orientam a construo

    desta narrativa, no Captulo 5 condensa-se, por fim, a descrio do e as reflexes sobre o

    percurso de investigao. Versa o ltimo captulo da primeira parte sobre a estratgia e

  • INTRODUO

    8

    procedimentos metodolgicos adoptados bem como sobre os fundamentos epistemolgicos

    que os justificam.

    A segunda parte dedicada a analisar e discutir os traos que caracterizam os

    processos de construo de autonomia por parte dos jovens, tendo em conta os vrios eixos

    de significao da autonomia enquanto norma social e processo psico-social que fora a

    recomposio das relaes familiares, averiguando o modo como se cruza com factores de

    desigualdade social, cultural ou de gnero. Quatro captulos a compem. Em primeiro

    lugar (Captulo 1), perscrutam-se os contextos e as estratgias de socializao familiar,

    atravs da discusso das vrias faces e interpretaes da autonomia nas culturas familiares

    e nas estratgias educativas desenvolvidas e aplicadas por famlias com perfis distintos do

    ponto de vista socioeconmico. Que valores desejam os pais transmitir aos seus filhos?

    Que tipo de percursos lhes auguram? Que competncias consideram ser essenciais a uma

    trajectria bem sucedida? Em torno das respostas a estas questes compe-se a paleta dos

    principais eixos de objectivos educativos de que se pintam as vrias culturas familiares.

    Estas no devem ser tomadas, porm, como elementos estticos ou perenes no tempo, antes

    se (re)compondo das experincias dos indivduos que a alimentam, rompendo ou

    subscrevendo tradies e vises do mundo. Na segunda parte do Captulo 1, percorrem-se,

    ainda, algumas experincias vividas pelos progenitores que, num quadro mais amplo de

    transformaes culturais e recomposio social, influenciaram os processos de reviso

    crtica das culturas familiares, dos modelos educativos, dos patrimnios normativos, a se

    entrevendo eixos de mudana e continuidade.

    Apesar de serem importantes os contextos familiares de socializao, no deve ser

    desprezada a fora das interaces, na medida em que os jovens sujeitos no so

    receptculos passivos das heranas parentais, nem um seu reflexo imediato. Ou seja, os

    contextos e as lgicas de socializao no explicam nunca a totalidade da aco do sujeito,

    apenas uma parte. Na realidade, no s a gesto da tenso entre o desejo de proteger e a

    misso de emancipar os filhos gera inevitveis paradoxos, como a aco parental esbarra

    na influncia de outros contextos de socializao formal e informal (a escola e os amigos),

    que ajudam a compor a autonomia do sujeito, na continuidade e na ruptura com a cultura

    familiar. Isto porque, num perodo da vida marcado pela abertura ao mundo, os sujeitos

    reclamam no s um novo estatuto (em relao famlia) como procuram e experimentam

    a sua identidade enquanto indivduos singulares. No raras vezes fazem-no interpelando a

    famlia e a legitimidade desta em gerir os seus percursos e o seu quotidiano.

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    9

    Os Captulos 2 e 3 debruam-se, assim, sobre a importncia das interaces, que

    geram um espao de intersubjectividade partilhada, na compreenso da aco e das

    trajectrias sociais. Isto , reconstitui-se o jogo assimtrico, ao longo do tempo, entre

    actores que desempenham diferentes papis no sistema de relaes familiares, no qual

    mobilizam competncias e estratgias com vista concretizao dos seus fins (mais ou

    menos divergentes). Para o efeito analisaram-se os percursos de reivindicao, conquista

    e/ou concesso de liberdade e independncia, e as consequncias positivas e negativas que

    estas experincias tm no processo de construo da autonomia (processo distinto, mas

    inter-relacionado). Por um lado, analisaram-se as modalidades de resoluo progressiva

    das tenses que resultam do esforo de ampliao do permetro de liberdade de circulao

    e aco no sentido da conquista de novos tempos e territrios pblicos de interaco,

    nomeadamente numa lgica de lazer (Captulo 2). Por outro, perscrutaram-se os sentidos

    implcitos na forma como so geridas as trocas financeiras na famlia, na medida em que a

    posse e gesto de dinheiro podem ser consideradas um indicador de independncia

    (Captulo 3).

    O registo de uma aco mais racional, feito da aferio de estratgias, lgicas de

    aco e confrontos mais ou menos tensos, uma viso que devolve aos actores capacidade

    para agir sobre si prprio e sobre o seu universo de experincia. A mesma experincia a

    que procuram, a par e passo, dar sentido, ensaiando uma unidade narrativa que exprima

    aquilo que o sujeito quer ser, ou pensa ser de facto. O Captulo 4 procura abordar o registo

    da subjectividade, observando as dinmicas inerentes vivncia do espao privado da casa,

    bem como os sentidos que lhes so atribudos. Simultaneamente estuda-se o modo como

    num territrio colectivo e partilhado, se vo construindo espaos privados e ntimos, onde

    se pode expressar objectivamente traos de uma identidade em construo (ainda que

    provisria e hesitante) e manifestar a assumpo de um novo lugar na famlia, atenuando

    eventualmente assimetrias estatutrias e relacionais.

    Para finalizar, resumem-se nas Concluses Finais as principais reflexes retiradas

    deste percurso entrecruzado de debates tericos e vidas de jovens e respectivas famlias, no

    sentido de contribuir para a compreenso de algumas das muitas questes relacionadas

    com a autonomia, na dupla vertente de valor matricial e processo social, na sociedade

    portuguesa contempornea.

  • INTRODUO

    10

  • 11

    PARTE I

    A autonomia na paisagem tica contempornea: da

    genealogia terica de um conceito definio de um objecto de

    pesquisa

  • 13

  • 14

    CAPTULO 1

    Autonomia, Indivduo e Modernidade:

    em busca das razes filosficas da noo de sujeito

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    15

    Apresentao

    A autonomia frequentemente invocada como um dos eixos centrais da constelao

    de valores que caracterizaria a contemporaneidade6. Com efeito, as sociedades ocidentais

    contemporneas tm sido apresentadas como sociedades crescentemente diferenciadas e

    individualizadas, o que justifica, para autores como Beck por exemplo, que se entendam os

    processos de individuao actuais como substancialmente diferentes do que eram h

    algumas dcadas atrs. No desenvolvimento do seu programa terico e emprico defende

    que, muito embora considere que no se possa falar de ps-modernidade prefere o termo

    segunda modernidade , se deu uma ruptura em relao ao passado nas sociedades

    contemporneas (Beck e Lau 2005, 526). Essa ruptura pode representar-se no primado do

    princpio utpico que afirma que cada indivduo pode (e deve, alis) tornar-se maestro da

    sua prpria vida (Singly 2006b, 11).

    Assim, qualquer indagao sobre o tema do indivduo, qualquer que seja a fase do

    ciclo de vida, e das identidades deparar-se- com um emaranhado de referncias ao

    eventual fim ou continuidade da modernidade enquanto tempo histrico, emergncia de

    uma nova ordem de valores centrada no indivduo (em que a autonomia ocuparia um

    papel de destaque), assumpo plena do indivduo como unidade base da organizao

    social, ao maior ou menor alcance do processo de individualizao e ao desenvolvimento

    do individualismo nas sociedades actuais (em verses mais liberais ou mais

    6 Recorre-se ao termo contemporaneidade propositadamente. Com efeito, uma das determinaes posta em prtica neste trabalho o uso de vocbulos relativamente neutros para nomear o tempo presente. Quantos trabalhos no faro um uso acrtico de expresses hoje j banalizadas como modernidade tardia, segunda modernidade, alta modernidade, ps-modernidade, etc.?

  • AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE

    16

    institucionalizadas) (Bauman 2001, Beck e Beck-Gernsheim 2002, Beck et al. 2000,

    Giddens 1994, 1996, Kaufmann 2008, Singly 2000a). Termos como fragmentao,

    incerteza e risco emergem como alguns dos principais atributos que adjectivam as

    trajectrias de vida na contemporaneidade, agora muito menos previsveis do que

    anteriormente. Justificando estas interpretaes esto mudanas no mundo do trabalho,

    com a flexibilizao e precarizao das relaes contratuais a par da reconfigurao do

    tecido produtivo (com os processos de terciarizao e a expanso das tecnologias da

    informao, nomeadamente); o aumento progressivo da durao mdia das carreiras

    escolares e prolongamento da co-residncia familiar por parte dos jovens; o aumento da

    participao feminina no mercado de trabalho e as mudanas no seio das relaes de

    gnero na famlia que habitualmente lhe so associadas; o aumento da divorcialidade e das

    unies conjugais no oficializadas, entre outras; e o declnio da participao poltica e a

    crise dos Estados-Providncia. Em suma, em causa esto processos de desestruturao,

    desinstitucionalizao e mudana cultural. Apesar de sentidas com diferentes graus de

    intensidade consoante os contextos, so tendncias partilhadas pela maioria dos pases

    ditos ocidentais.

    Destas leituras, trs concluses principais. Primeiro, a importncia da autonomia

    individual no sistema de valores contemporneos. Ainda que seja foroso referir a sua

    deficiente definio conceptual, a sua centralidade no se resume a uma constatao

    emprica ocasional, mas algo amplamente referido na literatura, nomeadamente a que se

    ocupa das geraes mais jovens (Cicchelli 2001a, 2001b, 2007, Gaviria 2005, Henderson

    et al. 2007, Maunaye e Molgat 2003, Ramos 2002, Singly 2000b, 2005b, 2006a, Thomson

    et al. 2002, Thomson e Holland 2002, para citar apenas alguns exemplos). Segundo, apesar

    da omnipresena da autonomia, tratada tantas vezes como recurso explicativo adquirido,

    esta raramente questionada ou abordada nas suas razes conceptuais e normativas.

    Terceiro, o discurso terico foca demasiado o novo nas sociedades

    contemporneas, fazendo uso de uma escala de anlise temporal pouco profunda de um

    modo geral. Como justamente refere Martuccelli (2005), as perspectivas contemporneas

    do indivduo, lanado nas ltimas duas dcadas para a frente do palco do interesse

    sociolgico, inscrevem-se na descendncia e no tanto na ruptura de abordagens j

    centenrias. Acrescenta, alis, que insistir na profunda continuidade do olhar sociolgico

    permite ter uma atitude teraputica face iluso amnsica que a afirmao da novidade de

    uma Sociologia do indivduo constitui.

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    17

    Na verdade, o facto de se referir a contemporaneidade como recorte temporal de

    referncia no impede, muito pelo contrrio, que se entenda a actualidade como o produto

    de processos a operar num tempo longo. A excessiva concentrao no presente de muitas

    teorias de curto e mdio alcance na Sociologia, por exemplo, tem sido fortemente criticado

    por autores como Norbert Elias (1987), que dedica todo um texto ao tema, embora outros

    tambm denunciem o mesmo problema como Jeffrey Alexander (1995), Pierre Corcuff

    (2007) e Peter Wagner (2001). Tende a haver, pois, um certo grau de precipitao no

    recurso ao adjectivo novo em muitas reflexes sobre a realidade contempornea (Smart

    1990, 20-22)7.

    Pelo exposto entende-se que a reflexo sobre a autonomia passa por uma reflexo

    sobre o iderio cultural com origem na gnese da modernidade e que, de acordo com a

    literatura sociolgica, tem consequncias passveis de serem entrevistas nas experincias

    singulares. A autonomia remete, pois, invariavelmente para o indivduo, quer na sua

    concepo tica e moral, quer na sua condio de sujeito emprico amostra indivisvel da

    espcie humana, para usar uma designao feliz que tanto Dumont (1992, 268) como

    Ricoeur (1996, 1) usam. As diferentes vises da forma como estes dois indivduos se

    relacionam dominaram, de certa forma, as agendas de investigao da Sociologia desde a

    sua fundao at hoje, o que resultou de um modo geral em modelos interpretativos do

    indivduo parciais e incompletos. esse pelo menos o argumento que aqui se defende.

    As transformaes sociais mais recentes redundaram, no entanto, numa maior

    exposio do indivduo, ele prprio e no apenas enquanto suporte corpreo das estruturas

    sociais nem to pouco uma abstraco terica pura (abordagens dominantes at certa

    altura), dando origem a um renovado interesse por parte dos investigadores sociais.

    Martuccelli (2005) considera mesmo que esse interesse resultou numa inflexo nas teorias

    sociolgicas no sentido de passarem a abordar a complexidade inerente experincia

    individual (vide frente Captulo 3, Parte I).

    Pensar a autonomia nos dias de hoje no se pode reduzir, ainda assim, anlise e

    discusso de um projecto filosfico o moderno, tal como visto do presente. O mundo, na

    sua globalidade, assistiu a profundas transformaes nos ltimos sculos que reformularam

    as paisagens empricas e ticas onde os indivduos fazem os seus percursos de vida. A

    7 Quer isto dizer que quando se referenciam mudanas, fazem-no grosso modo por referncia a um eixo temporal curto, sendo as mudanas no mundo do trabalho um bom exemplo: se se recordar todo o perodo que antecedeu os denominados trinta gloriosos anos que sucederam 2 Guerra Mundial, ser mais rigoroso chamar s mudanas no mundo do trabalho um retorno em novos moldes aos sistemas precrios de relaes laborais que inspiraram os movimentos sindicalistas do sculo XIX e XX.

  • AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE

    18

    diversidade das e nas experincias de vida tem, com efeito, renovado constantemente o

    stock de problemticas e inquietaes disponveis reflexo social e sobre o social.

    Mudanas que parecem ter-se acelerado e intensificado nas ltimas quatro dcadas, como

    tm verificado os tericos sociais que as tm procurado interpretar (concorde-se ou no

    com as suas propostas) e que fazem com que a valorizao do Eu seja tida como uma das

    caractersticas mais consensuais das sociedades de hoje (Ion 2005, 28 ver tambm

    Kaufmann 2008). Assim, se no plano das ideias podem por vezes parecer demasiado

    estanques e antagnicas as diversas linhagens conceptuais, mesmo quando se perscrutam

    as relaes que estabelecem entre si, importante sublinhar a fluidez e continuidade, se se

    tiver em conta a dimenso histrica que faz com que certas ideias s surjam num

    determinado tempo, e num determinado lugar8. Esta meno serve apenas para sublinhar

    que esta a razo que leva a que o percurso de discusso terica, que agora se inicia, recue

    mais de dois sculos no tempo para situar as razes da importncia atribuda (ainda) hoje

    autonomia enquanto norma central da paisagem tica.

    1.1 Autonomia no projecto moderno: entre o indivdu o e o bem comum

    No que importa para esta pesquisa, o facto que ensaiar uma genealogia situada no

    tempo do conceito de autonomia e do seu peso nos sistemas ticos e normativos implicou

    uma completa imerso num debate deveras persistente nas Cincias Sociais9, desde a sua

    fundao no sculo XIX, que aquele que se debrua sobre os modos de afirmao e as

    caractersticas de uma era civilizacional a modernidade surgida a partir de meados do

    sculo XVIII. poca que pode at, na perspectiva de alguns, ter j dado lugar a um novo

    tempo. Na verdade, um dos aspectos positivos a destacar da controvrsia acerca da

    8 Na verdade, o plano da histria das ideias est intimamente associado s vrias tradies nacionais de pensamento, como demonstra o percurso feito por Levine (1995). Ser indiferente o facto de Dewey, que com Mead desenvolve as bases do interaccionismo simblico, ter sido aluno de Hegel, apesar de ser igualmente forte a influncia do pragmatismo de Pierce? Hegel, um autor que, por sua vez, se integra num conjunto de pensadores apologistas da ideia que os fenmenos humanos no podem ser reduzidos a propenses e mecanismos naturais, mas que manifestam a sua distintividade atravs dos sentidos imbudos nas aces pelos actores (ideia que ir inspirar Weber e Simmel, por exemplo). J a tradio francesa, que tem em Durkheim um ilustre representante - ele prprio um republicano militante, responde ao individualismo metodolgico desenvolvido na tradio britnica vinda de Hobbes, postulando que a sociedade um fenmeno com propriedades no redutveis s propenses dos indivduos que a compem (Levine 256-260, 300-306).

    9 O uso do termo Cincias Sociais tem o propsito de reforar a ideia de que se trata de um debate terico gerador de uma meta-linguagem de interpretao do mundo social, comum s vrias disciplinas da rea das Cincias Sociais e, por isso, anterior s fronteiras entre objectos e criao de abordagens especficas e particulares.

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    19

    existncia de uma ps-modernidade o facto de ter renovado, desde h algumas dcadas, o

    interesse no estudo da modernidade ela prpria, dando origem a interessantes reflexes e

    questionamentos crticos acerca do patrimnio terico das Cincias Sociais (Wagner 2001,

    5).

    Com efeito, a modernidade aqui encarada na sua dupla vertente de projecto e

    processo. Reconhecer esta dualidade , segundo Wagner (2001, 4, argumento desenvolvido

    parcialmente em A Sociology of Modernity, 2002 [1994], 3-4), o primeiro passo para que

    as dimenses ticas e histricas da modernidade sejam situadas nos respectivos planos,

    malgrado a tenso existente entre ambas:

    O termo modernidade carrega inevitavelmente uma dupla conotao; sempre tanto filosfica como emprica, ou tanto substantiva como temporal, ou () tanto conceptual como histrica.10

    Parece ser consensual que o papel da autonomia nas sociedades contemporneas

    est relacionado com a emergncia de um iderio cultural prprio da modernidade

    ocidental. Esta ter sido fundada sobre um programa normativo em que a autonomia,

    juntamente com a busca do controlo racional sobre a natureza, assim entendida como

    inteligvel e dominvel, se constituem no duplo imaginrio da modernidade (Wagner 2001,

    Wagner 2002 [1994], a partir de uma ideia original de Castoriadis). Taylor (1989, 12)

    sustenta uma interpretao semelhante, afirmando que a noo de autonomia a base de

    qualquer interpretao da modernidade (ou seja, referncia tanto para partidrios como

    opositores). A verdade que a discusso sobre a autonomia no mais perdeu terreno no

    plano da discusso filosfica e, de forma menos bvia, na sociolgica tambm. Seno veja-

    se.

    No obstante diferenas especficas nas diversas leituras da modernidade, quase

    todas situam no perodo iluminista um importante movimento filosfico, cujos efeitos se

    estendem poltica e economia, no modo de conceber e organizar as sociedades

    ocidentais. A afirmao do racionalismo, da razo enquanto referncia fundamental para o

    Homem, o primeiro trao desse novo tempo a merecer destaque. , com efeito, um

    racionalismo que libertaria (do ponto de vista ontolgico e epistemolgico) o Homem das

    amarras da religio e do destino tornando-o autnomo de instncias metafsicas de

    regulao. Ou seja, trata-se de um racionalismo cuja concretizao se articularia, tambm,

    10 Com vista a tornar a leitura da dissertao mais escorreita, esta e todas as citaes em lngua estrangeira foram traduzidas livremente pela autora.

  • AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE

    20

    com um processo de secularizao. Note-se, porm, que o que caracterizava as sociedades

    democrticas que se desejavam implementar no estava no facto do indivduo passar a

    achar em si a principal fonte de crenas em vez de o fazer no espectro do divino, mas sim

    que as crenas podiam ser encontradas na razo humana, ou seja, na opinio comum e no

    no sobrenatural (Descombes 2004, 372).

    Com efeito, Alexander (1995, 1-2) assinala que, no obstante o carcter de

    novidade que lhe normalmente atribudo, no totalmente verdade que o racionalismo, e

    mesmo o universalismo, sejam exclusivos da poca moderna, afirmando que tambm a

    civilizao judaico-crist11 se organizou em torno de uma racionalidade com pretenses

    universais, embora inalcanvel e exterior aos homens a ela subjugados. A transformao

    no se deu, na sua perspectiva, na forma mas sim no contedo: a razo do Homem separa-

    se definitivamente da razo de Deus, assumindo a primeira o lugar antes ocupado pela

    segunda enquanto princpio estruturador das vises do mundo. Durante muito tempo, alis,

    do ponto de vista estritamente filosfico, a f em Deus foi substituda pela f no Homem,

    mantendo-se o carcter linear, histrico, e governado por uma concepo poderosa de

    uma fora impessoal e objectiva embora sem o satisfatrio e confortante sentido de uma

    finalidade teolgica, que a ancoragem transcendental fornecia. Ou seja, diz o mesmo

    autor mais frente, que o que se viu de facto foram os sonhos de salvao serem

    substitudos por sonhos de razo. Isto significava, em coerncia com o optimismo do

    projecto moderno, capacitar os homens a alcanar a Verdade, atravs do conhecimento e

    do controlo sobre a natureza: a revoluo nos modos de produo (agora industriais) e o

    desenvolvimento do conhecimento cientfico12 foram dois dos pilares fundamentais dessa

    crena13.

    Subjacente ao projecto da modernidade est, tambm, um novo modo de conceber o

    indivduo. Apesar de num primeiro momento o discurso filosfico estar mais atento ao

    Homem do que aos homens e mulheres concretos configurando o que se poder chamar

    11 Se a modernidade evoca a noo de progresso, necessrio sublinhar que uma tal concepo s possvel devido primazia progressiva de uma noo de tempo linear sobre uma de tempo cclico caracterstico de sociedades eminentemente agrcolas. A linearidade do tempo tambm , note-se, um contributo das religies monotestas de raiz judaica (ver a este propsito Pereira 1989).

    12 Berthelot (2008) lembra, justamente, como o conhecimento cientfico se instituiu como a empresa da verdade objectiva e irrefutvel, fruto das capacidades que a razo humana conquistou na modernidade.

    13 Sublinhe-se que este no um argumento exclusivo de Alexander. Wagner (2002 [1994], 9) invoca um argumento semelhante ao falar da Razo referida pelo iderio iluminista como uma categoria supra-individual e, talvez, supra-humana, tal como Taylor (1989, 21-22) que sublinha o facto de a ideia de desafiliao racional estar na continuidade do raciocnio teolgico judaico-cristo.

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    21

    um individualismo humanista h importantes mudanas nos princpios antropolgicos

    morais e, consequentemente, nas categorias de pensamento. Os indivduos so, com efeito,

    institudos como as unidades bsicas e indivisveis da organizao social, unos por via da

    sua singularidade e dignidade individual (reveja-se a este propsito o iderio da revoluo

    francesa e americana). Isto , passa a ser valorizado o indivduo (idealmente) autnomo,

    livre e independente, merecedor, por isso, de respeito e de tratamento igual ao prximo.

    Por outro lado, o modelo societrio promovido pelo projecto moderno permitiria tambm

    ao indivduo libertar-se da famlia, durante sculos nvel nico de integrao social e, luz

    dos novos princpios, um obstculo completa emancipao dos grilhes da tradio. O

    indivduo por si s passa a concebido como tendo direitos inalienveis, ou imanentes sua

    condio humana (ao estilo da trindade lockeana vida, liberdade e propriedade, por

    exemplo) e no exclusivos de uma qualquer condio social.

    Significa isto que com a modernidade, a natureza humana emerge como o

    enquadramento antropolgico da liberdade enquanto valor supremo (Wagner 2001, 8).

    Todo este edifcio filosfico assenta no pressuposto da autonomia, pois dela depende o

    desenvolvimento de pressupostos como a noo de sujeitos desafiliados, libertos de uma

    confortvel mas ilusria sensao de imerso na natureza, objectivando o mundo sua

    volta (Taylor 1989, 12). Elevar a condio de indivduo ao centro do pensamento

    filosfico e da organizao poltica representa, como explica Elias (1993 [1987], 174-177),

    uma importante mudana, recordando que nas sociedades clssicas e at ao Renascimento,

    por exemplo, no existia um vocbulo que exprimisse a noo de indivduo, enquanto

    pessoas independentes dos grupos a que pertenciam.

    Na verdade, o projecto da modernidade foi desenhado como um programa de

    emancipao, ao visar reconhecer em todos os indivduos o mesmo grau de integridade.

    Subjazem nesta afirmao duas importantes consequncias filosficas que se constituem

    como pilares igualmente importantes do projecto moderno: a noo de que com isso se

    promovia o bem comum, uma vez que se tratavam de princpios universais (porque

    derivando da natureza humana ela prpria) o que permitiria articular a soberana vontade

    individual com o regular funcionamento da sociedade. alis no (des)equilbrio precrio

    entre a nfase atribuda ao indivduo e ao bem comum, na definio dos modelos

    societrios, que assentaro os mais significativos debates polticos nos sculos que se

    seguiro.

    Com efeito, no contexto anglo-saxnico parece ter prevalecido uma tradio de

    pensamento cuja orientao foi claramente mais individualista e utilitarista, ao entender, de

  • AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE

    22

    um modo genrico, como objectivo ltimo do sistema moral (e social) a busca da

    satisfao dos interesses individuais, assim garantindo a ordem social. J no quadro do

    pensamento francs, a Filosofia social e poltica pendeu claramente para a valorizao do

    bem comum, partindo de um ideal de sociedade em que era a garantia da ordem social que

    permitia aos indivduos o exerccio de liberdades e da sua autonomia (cf. Levine 1995).

    Como explica Ion (2005, 26),

    O ideal republicano valoriza a assembleia de cidados, reunio de indivduos sem dependncia, o que quer dizer, por um lado, libertos de todo os sistemas de pertena (religiosa, familiar, tnica, geogrfica, profissional, etc.) e, por outro, informados pela razo e logo educados, capazes de debater o interesse geral da res publica, sem misturar qualquer tipo de interesse particular.

    So estes, de forma muito sinttica e forosamente simplificada, os princpios

    bsicos da modernidade filosfica que inspiraram a construo de (novos) modelos

    societrios (variando a sua orientao conforme o contexto filosfico nacional). O Estado-

    Nao democrtico, contrato social entre indivduos-cidados, com as suas instituies

    centralizadas, reguladoras e independentes da Igreja uma das formulaes atribudas

    modernidade filosfica. Esta foi uma das solues institucionais encontradas para

    materializar o bem e a justia para todos os seus membros, atravs da promoo e garantia

    da liberdade e autonomia dos indivduos. A expanso dos mesmos princpios normativos

    sincrnica de um assinalvel surto de desenvolvimento social, cultural, econmico,

    poltico, tecnolgico e cientfico, que deve ser estudado como modernidade, sim, mas

    tentando no confundir o que o processo histrico-emprico com as dimenses

    epistemolgicas, por um lado, e ticas, por outro, a que temos vindo a fazer referncia

    (Wagner 2001, 1)14. Ainda assim, seria ingnuo analisar a modernidade nas suas duas

    vertentes sem considerar, a cada momento, as complexas relaes que os princpios

    filosficos tm no processo histrico, institucional e cultural de longo prazo.

    Apesar de se poder falar de alguma hegemonia deste iderio, sobretudo na primeira

    fase do processo de industrializao com o desenvolvimento das Filosofias utilitaristas (no

    contexto britnico principalmente) e a emergncia do econmico como segmento separado

    do poltico (cf. Dumont 1992), hoje reconhece-se a natureza fragmentada das fontes

    culturais da modernidade, pelo que como processo histrico no deve ser interpretado

    14 A ideia de que a poca moderna resulta da forosa relao entre a atitude que tornou possvel a cincia moderna (onde se incluem as Cincias Sociais) e a atitude que tornou possveis as revolues polticas modernas faz particular sentido no plano da Filosofia da histria, lembra Descombes (2004, 352), devendo ser questionada quando se trilham outras abordagens.

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    23

    linearmente (Taylor 1989). Sobretudo porque os iderios culturais se confrontaram com

    processos de mudana social profundamente lentos e ambguos, por um lado, e por

    desenvolvimentos polticos no mnimo contraditrios com as promessas emancipatrias do

    imaginrio moderno15. Por isso, sucumbir ao optimismo universalista dos princpios

    modernos (ou de quaisquer outros), usando-os como fio condutor da histria , pois, uma

    armadilha que se deve evitar. Na verdade, rapidamente o carcter retrico do discurso

    moderno comeou a ser denunciado. Refira-se a incmoda problemtica da afirmao

    universal de uma condio de Indivduo, livre e autnomo, por contraste aos

    condicionalismos profundos, novos e antigos, vividos pelos sujeitos empricos. Com efeito,

    o bem comum no se estaria a sobrepor s liberdades individuais atravs da aco do

    Estado? Direitos inalienveis para o Homem, mas para todos os seres humanos e de igual

    forma? Com efeito, recordando a lgica dialctica recuperada da Filosofia hegeliana,

    parece mais adequado projectar a trajectria da modernidade no como seguindo uma

    linha direita, mas mais uma espiral alternando picos e depresses tanto empricas como

    conceptuais (Levine 1995, 314).

    Descombes (2004) explica que a noo de autonomia, sobre a qual se constri afinal

    todo o projecto moderno estava, logo partida, ferida de uma dualidade difcil de

    sintetizar. Uma das vises, herdeira do aristotelismo que Hobbes tanto se esforara por

    criticar, evoca a autonomia no sentido cvico e poltico, remetendo para o sujeito que

    capaz de governar e ser governado. Recorde-se que a cidadania foi, no tempo clssico e

    posteriormente, um privilgio e no um direito natural. Outra, a que se idealiza na poca

    das luzes, de natureza liberal, reconhecendo a qualquer indivduo dignidade enquanto tal

    e a capacidade de se governar a si prprio e de estabelecer para si os prprios objectivos.

    Contudo, importante sublinhar que a transio de uma concepo para outra no , de

    modo algum, completa. Nem tal estava nos planos dos arquitectos do projecto moderno,

    como demonstra o peso atribudo noo de bem comum, principalmente em Frana.

    Na verdade, a leitura que Dumont (1992, 89-99) oferece de Hobbes e Rosseau

    (salvaguardando o antagonismo intelectual que assumiram entre si) demonstra como a sua

    definio de indivduo remete para o sujeito eminentemente social, nomeadamente ao

    defenderem que a sua humanidade s totalmente realizada na relao com os seus

    15 Como o jacobinismo aps a revoluo francesa e todos os totalitarismos nos sculos que se seguiram, por exemplo. No ter sido a desiluso com o processo revolucionrio francs que levou Toqueville a visitar os Estados Unidos da Amrica para se inteirar do modo como aparentemente resultava a democracia naquele pas? (Dumont, 1992).

  • AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE

    24

    semelhantes. o elemento poltico, que reconhece a dimenso hierrquica da sociedade

    como garante da ordem social, que define pois o homem. Este deve, por isso, submeter-se

    livre e conscientemente ao governante absoluto, no caso de Hobbes, e vontade geral

    atravs do contrato social, no caso de Rosseau. Assim, no s a noo de autonomia anda a

    par da de obedincia e conformao (que, no limite, pode ser associada heteronomia)

    implcita na noo de bom cidado , como persiste a ideia de que preciso ser-se capaz

    de exercer a autonomia, tornando o ideal de igualdade ainda mais difcil de concretizar.

    Caracterizar o paradoxo da autonomia passar tambm por perceber a convivncia

    sincrnica dos dois registos paradoxais nas estratgias intelectuais para conceber o

    indivduo.

    Como salienta Dumont (idem, p. 99), Rosseau ter colocado de forma exemplar o

    problema do homem moderno, transformado em indivduo poltico e/ou tico (autnomo e

    livre) mas continuando, tal como os seus congneres, a ser um sujeito social

    (constrangido), dilema que no mais abandonou o pensamento social, como se ver

    adiante. Ou seja, preconizava-se o direito a uma autonomia democrtica embora se vivesse

    num regime de experincia de autonomia no sentido aristotlico, eminentemente regulada,

    desigual e de acesso diferencial, significando isso que a prpria lgica interna da noo de

    autonomia ensombrava a sua concepo poltica (Descombes 2004, 322, 327-329).

    Vale a pena, por isso, reconstituir o percurso filosfico do sujeito atravs da

    discusso do modo como os paradoxos da autonomia postulada politicamente no projecto

    moderno se impuseram progressivamente como dimenses do conceito.

    1.2 Desafiando os paradoxos da autonomia: o sujeito filosfico em

    anlise

    O sujeito emprico colocava, como se procurou demonstrar, importantes dilemas de

    concretizao norma idealizada de autonomia. Muitos foram os que tentaram ao longo do

    tempo, por via de exerccios lgicos e demonstrativos, dar coerncia ao conceito. Um

    esforo situado no tempo histrico, certamente, mas que foi deixando marcas indelveis na

    forma como se entende a autonomia individual. Seno veja-se.

    Razo e reflexividade, primeiro. Antes de se discutirem todas as outras dimenses do conceito, a noo de

    autonomia foi, como se viu, ancorada ideia de Razo. E na moral Kantiana, inspirada

    pelo iluminismo racionalista do sc. XVIII que se abordou brevemente, que a relao entre

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    25

    autonomia e razo definitivamente estabelecida: pois o actor que se auto-governa f-lo-

    apenas se agir de acordo com imperativos exclusivamente racionais, o que implica, por seu

    turno, um auto-controlo sobre as pulses e os desejos imediatos. Esta afirmao arredou

    filosoficamente a subjectividade e a emoo da aco moralmente superior, ou seja, a

    aco autnoma. Nesta perspectiva, a autonomia um valor, por definio, universal e

    uma caracterstica essencial que o sujeito pensante e dotado de razo deve possuir para

    almejar o acesso condio de indivduo moderno. Reconhecer no sujeito a capacidade de

    agir de acordo com razes, orientado por leis morais que adopta exclusivamente atravs

    de actos de vontade individual uma interessante proposta para a compreenso da noo

    de autonomia. Algo que, segundo Levine (1995, 189), se constituiu como o postulado da

    auto-determinao normativa na busca de uma tica secular e racional (tarefa, alis, que a

    Sociologia ir, no seu incio, tambm tomar como sua) caracterstico de parte significativa

    da tradio germnica de pensamento (deixe-se o Romantismo alemo, por agora, de

    parte):

    Os julgamentos normativos no devem ser fundados em qualquer agncia exterior aos sujeitos mas atravs de cdigos que libertam os agentes humanos, como indivduos ou colectividades, para se promulgarem a si prprios.

    Relembre-se o contedo do 1 imperativo categrico para situar o alcance de tal

    posio: deve-se apenas agir de acordo com princpios com valor moral universal,

    universalidade que deriva do facto de ser livre dos sentidos, do desejo ou de qualquer

    aspecto contingente. Implcita nesta moral est a existncia de indivduos livres e

    independentes, uma vez que se parte do princpio que agir de acordo com motivaes

    exclusivamente individuais implica que no existam obstculos exteriores vontade

    singular.

    O indivduo na perspectiva kantiana , por definio um actor comprometido com o

    dever, o que remete para os temas do controlo e da responsabilidade a que tambm se ir

    fazer referncia. A separao que Kant faz do mundo da liberdade (metafsico) do mundo

    da natureza contribuiu fortemente para contornar a divergncia entre o sujeito poltico e o

    sujeito emprico que assim se legitimava. Na verdade, no disfara a influncia do

    ascetismo luterano ao resolver o dilema do sujeito emprico, colocando no plano metafsico

    a experincia plena da liberdade e do bem, independentemente dos constrangimentos da

    existncia social. Ou seja, resolve o problema negando-o na sua essncia. Com efeito, esta

    abordagem reflecte uma noo de indivduo isolado que precede o indivduo real (social),

    com uma trajectria e inserido numa teia de relaes sociais. Do plano abstracto ao

  • AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE

    26

    concreto, restaram, pois, muitos espaos por preencher na lgica racional pura do sujeito

    kantiano. Na verdade, as principais crticas dirigidas a esta linha de pensamento so o seu

    hiper-individualismo e a-historicidade, pois negligencia-se o papel das narrativas

    individuais, o lugar das emoes e dos afectos, dos contextos concretos da aco, como

    sublinha entre muitos outros Christman (2003).

    Retomando, aps este breve parntesis, o registo do sujeito pensante comprometido

    com o dever, como pode destacar-se o indivduo das suas pulses e emoes, adquirindo

    controlo sobre elas16? Segundo seguidores da lgica kantiana, no lhe basta uma

    capacidade racional de agir (no sentido de uma racionalidade meios/fins to cara s

    Filosofias utilitaristas), mas uma capacidade de se auto-analisar e criticamente avaliar

    escolhas e decises. A auto-determinao normativa assim o exige. Com efeito, a

    autonomia implica sempre uma relao consigo prprio (Buss 2002). Chamar-se- a tal

    capacidade reflexividade17, entendida neste contexto enquanto capacidade de se auto-

    distanciar de si e analisar crtica e racionalmente opes, alternativas e contextos de forma

    a poder descontaminar a aco dos seus aspectos mais contingentes. Conforme lembra

    Levine (1995, 182), o sujeito kantiano implica sempre um esforo de construo racional

    de uma moral, pois em seu entender o bem no natural no homem, ao contrrio do que

    alguns pensadores franceses, como Rosseau, defendiam.

    Christman (1988, 116) conclui que na base destas abordagens est a convico de

    que para ser autnomo o actor tem de desempenhar um papel activo fazendo uso da sua

    racionalidade crtica nos processos de tomada de deciso o que por seu turno tambm

    introduz uma importante dimenso na aco racional tal como vai ser retomada pela

    Sociologia: a estratgia. Contudo, pensando nos indivduos concretos e nos seus

    quotidianos foroso constatar que nem todas as suas decises so alvo de tal processo de

    reviso crtica, nem todos os sujeitos apresentam as mesmas capacidades de tomada de

    deciso em todos os momentos do seu ciclo de vida, nem em todas as decises que tomam

    ou so forados a tomar diariamente. Autonomia no , por isso, uma caracterstica que se

    tem ou no se tem, uma competncia que pode ser exercida em diferentes graus, assim

    16 Note-se como o tema do controlo sobre pulses e desejos vai ser to caro na teorizao sobre a vida psquica dos sujeitos em Freud e no processo civilizacional no Ocidente, trabalhado por Elias.

    17 O facto do termo reflexividade ser um conceito amplamente utilizado na literatura sociolgica contempornea no alheio nesta pesquisa, nomeadamente a centralidade que lhe conferida nas teorias da individualizao (Beck 1992, Beck e Beck-Gernsheim 2002, Beck et al. 2000, Giddens 1996, para citar apenas alguns autores). O sentido aqui atribudo vai claramente mais no sentido da conversao interna definido por Archer (2003, nomeadamente).

  • FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA

    27

    como algo que passvel de ser construdo ao longo de um perodo de tempo.

    Competncias racionais, para alm da capacidade de auto-crtica e reflexividade (que

    implicam a capacidade do sujeito se distanciar subjectivamente de si mesmo para se pensar

    e analisar), embora muito importantes, no bastam, por si s, para dar conta do conceito.

    Falta perceber, por um lado, o modo como as emoes, afectos e sentimentos so

    integrados nos processos de deciso e a sua relao com a autonomia do sujeito; e como

    integrar a natureza eminentemente social e socializada das trajectrias de vida dos actores

    concretos, por outro. Antes, porm, algumas reflexes sobre implicaes (aparentemente)

    secundrias da associao entre autonomia, razo e reflexividade.

    Controlo, responsabilidade e respeito, entretanto. Da tradio kantiana, para alm das elaboraes tericas da relao entre autonomia

    e racionalidade, importa ainda referir que a autonomia (moral) implica que o sujeito,

    fazendo uso da sua liberdade, se comprometa com a aco moralmente superior,

    suprimindo desejos e motivaes no universalizveis (embora seus), ou manipulaes

    externas (que na linguagem filosfica vm referidas como intervenes paternalistas). Por

    um lado, tal capacidade significa que o sujeito autnomo, para alm da capacidade de (se)

    pensar, seja capaz de (se) controlar, mobilizando competncias de reflexividade e

    distanciamento de si, como se disse acima, para poder decidir e escolher livre e

    independentemente de presses e influncias externas. Por outro lado, entende-se que o

    sujeito s autnomo se livremente se comprometer com uma determinada hierarquia de

    valores que no so gerados por si prprio, uma vez que so universais e do plano do bem

    comum, e agir de acordo com ela, mesmo se contra os seus desejos mais imediatos, esses

    sim, verdadeiramente auto-gerados. por esta via que a perspectiva kantiana no descura a

    dimenso social, aliviando (apenas em parte, certo) a potencial atomizao que resulta da

    interpretao mais radical do seu pensamento. Na verdade, acrescenta Descombes (2004,

    322), a autoridade sobre si prprio que a moral kantiana preconiza no em si uma

    faculdade humana, pois exige do sujeito que se subordine a uma ordem de valores que

    precisamente lhe confere essa autoridade sobre si. , tambm por isso, um compromisso

    com uma determinada identidade (moral) que se auto-impe e se quer pr em prtica

    apontando para o lado voluntarista do sujeito-actor que Kant compe.

    Est, assim, implcita a ideia de que o sujeito autnomo ao ser auto-regulador, pode

    alterar-se, modificar atitudes, traos e valores para adoptar outras que sejam coerentes com

    o projecto identitrio moral, denunciando aquilo que se poder chamar, no limite, uma

  • AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE

    28

    perspectiva construtivista do indivduo, ao atribuir-lhe competncias emancipadoras sobre

    si prprio. Algo que ganha um particular sentido se enquadrado na fase de plena definio

    do projecto moderno de recusa do fatalismo religioso que subjugava os indivduos a um

    destino. Ainda assim, no poder ser lido o compromisso com uma ordem exterior de

    valores como uma forma voluntria e consciente de heteronomizao? Ou seja ser a

    autonomia uma virtude que, de acordo com esta perspectiva, apenas se concretiza na

    heteronomia (do bem comum, da regulao estatal, da norma moral partilhada)? Na

    verdade, poder-se- afirmar que o sujeito autnomo aquele que de forma livre se

    compromete, abdicando de concretizar parte das suas pulses e desejos pessoais em

    benefcio do que se quer (e deve) ser enquanto sujeito. O compromisso converte-se, ainda,

    em responsabilidade, pois o sujeito-actor, se autnomo imputvel, logo responsvel pelas

    suas aces e pelas suas consequncias, tanto presentes como futuras.

    Segundo Ricoeur (1996, 300-306) o que est em causa o confronto constante entre

    esta perspectiva universalista e outra contextualista da moralidade, o que tem

    consequncias na abordagem da autonomia. Com efeito, esclarece que tal significa que se

    podem fazer aproximaes autonomia atravs da regra da justia (exterior e pertencente

    ao plano das instituies), qual preside o princpio da unidade, e que acompanha uma

    lgica de justificao universal para os juzos; ou atravs da regra da reciprocidade (j

    pertencente ao plano interpessoal), subsidiria de um princpio de pluralidade, a que se

    associa uma lgica de argumentao contextual (log