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i
UNIVERSIDADE DE L ISBOA
INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS
JUVENTUDE , FAMLIA E AUTONOMIA
Entre a norma social e os processos de individuao
Lia Pappmikail Ribeiro dAlmeida
Tese orientada pelo Prof. Doutor Jos Machado Pais
Doutoramento em Cincias Sociais
Especialidade: Sociologia Geral
2009
iii
Agradecimentos
Levar um projecto de doutoramento a bom porto , em grande medida, um trajecto individual e solitrio. Espera-nos uma navegao seguramente mais agitada e turbulenta porm, se no se puder contar, ao longo da viagem, com o incondicional apoio de pessoas e instituies. A todos eles so devidos, por essa razo, os meus mais sinceros agradecimentos.
No plano institucional, uma especial referncia devida Fundao de Cincia e Tecnologia que financiou atravs de uma bolsa de doutoramento este projecto, permitindo que a ele me pudesse dedicar durante quatro anos. Ao Instituto de Cincias Sociais estendo o agradecimento, por me acolher e apoiar (a mim e pesquisa), e por me ter permitido beneficiar das condies de excelncia para a investigao e debate cientfico que pautam a sua actividade acadmica. Ao Observatrio Permanente de Escolas, estou particularmente grata pelos vvidos debates e discusses e pelo ambiente fraterno que se criou entre os colegas do grupo de seminrios do OPE a quem hoje dedico um forte sentimento de amizade e com quem muito tenho aprendido.
No plano estritamente pessoal, congratulo-me pela extensa lista de pessoas que me vem mente quando penso nas pessoas que me acompanham desde sempre e a quem gostava de agradecer individualmente. Se a alguns bastou-lhes estar presentes, como sempre, outros, por circunstncias e conjunturas diversas, acompanharam este desafio mais de perto, escutando-me, partilhando angstias, fazendo leituras crticas, sugerindo bibliografias, relativizando medos e anseios.
minha famlia, me, av e irms, sobrinhos e cunhado, por cada um sua maneira constituir um exemplo de coragem, dignidade e perseverana, que muito me orgulha e inspira. Sofia, especialmente, e porque alm de irm colega, agradeo o apoio incondicional que s uma irm pode dar e a serenidade e confiana que transmite em todas as esferas da minha vida.
A todos os meus colegas do ICS (investigadores e tcnicos), especialmente os do quarto piso (como a Vanessa e a Alice, entre outros), pela cumplicidade forjada no quotidiano de trabalho. Um agradecimento muito especial e sentido aos amigos que por l fui fazendo e que se tornaram ncoras fundamentais na minha vida. Ao Vtor Ferreira tudo o que me deu a aprender, cientifica e humanamente. A ele e ao Pedro Alcntara da Silva devo tambm, alis, doses regulares de nimo, cozinhado em momentos de cumplicidade e descontraco onde reina sempre o bom humor e a ironia. Ctia, o mais recente elemento do grupo, devo a disponibilidade constante, manifestao de um corao maior, e o enorme favor de ter traduzido o resumo da dissertao e de se ter empenhado na reviso atenta de parte deste manuscrito, alcanando gralhas e lapsos que os meus olhos j no eram capazes de ver. J Sofia Aboim une-me uma dvida de amizade e gratido, por me ter ajudado a abrir horizontes intelectuais e por sempre se ter disposto, generosa como s
iv
ela, a escutar desabafos e a ajudar-me a encontrar solues para os bloqueios vrios que a escrita conheceu.
Ainda no ICS, Maria Manuel Vieira, coordenadora do OPE, agradeo especialmente a companhia, a boleia e o apoio numa decisiva incurso no terreno em Fevereiro de 2006 e tudo o se seguiu. Karin Wall agradeo o carinho, preocupao e ateno que me dedicou, e as vrias oportunidades que me ofereceu de trabalhar com ela, enriquecendo a minha experincia acadmica com outros temas e horizontes.
Fora do ICS, do outro lado do Atlntico, a Melissa, e do lado de c, a Ana Isabel e o Manelinho, a Guida e o Z Mrio, a Alice e o Pedro, a Sofia e o Lus, a Camila, o Bruno, a Jussara foram alguns dos ns fundamentais de uma rede de afectos que deram mais cor aos tempos livres, fornecendo energia vital para os tempos do trabalho. Filipa, uma justa homenagem pelas cumplicidades forjadas a par e passo (literalmente), pelas discusses infindas sobre todos os assuntos e pelas pontes que estabelecemos entre os nossos objectos. Patrcia cuja perspiccia e inteligncia nunca pra de me surpreender, agradeo (para alm de tudo o resto que nada tem a ver com este trabalho) ter-se dedicado reviso do manuscrito, melhorando-o com sugestes certeiras.
Ao meu orientador, Doutor Jos Machado Pais quero agradecer, em primeiro lugar, a oportunidade que me deu em 2001 para ingressar numa carreira de investigao. Tenho procurado honr-la dando o meu melhor. Em segundo, e sobretudo, por me ter empurrado, com uma mestria incomparvel, para fora da minha zona de conforto em todas os momentos da pesquisa (e da escrita), fazendo constantes interpelaes (e provocaes), espicaando-me com o seu sagaz esprito crtico, forando-me, enfim, a pensar mais e melhor em todas e cada uma das palavras que fui escrevendo.
Aos meus entrevistados, o maior dos agradecimentos pela generosidade com que acederam a partilhar um pouco das suas vidas. Devo-lhes afinal a existncia da matria-prima que me permitiu trabalhar e compor esta narrativa.
Agradeo, por fim, ao Antnio todo o amor, dedicao e pacincia (em doses iguais), a compreenso e partilha quotidiana, e o trazer signficado ao esforo que tudo isto representou.
Ao Loureno, inesgotvel fonte de inspirao, dedico esta dissertao. Ansiei-lhe o fim como se de uma gravidez se tratasse: com ansiedade, expectativa e alguma angstia. Foram muitos os dias em que, embalada na escrita, via o fim cada vez mais prximo. Ento olhava o relgio e constatava j ter chegado a hora de o ir buscar. E l ia sentir-lhe os abraos do reencontro e as saudades de um dia separados. Olhando para trs, vejo que completei este enorme desafio sem nunca ter ido busc-lo tarde, sem nunca abdicar da sua presena ao final do dia, sem nunca pr o filho de papel frente do filho de carne e osso. E o facto que acabei (mal ou bem, melhor ou pior) mesmo assim. No , na verdade, ter acabado que me deixa mais feliz, ter conseguido (ou feito questo de) que a vida continuasse com as prioridades no seu devido lugar.
Aos meus rapazes agradeo, pois, por me lembrarem a cada instante daquilo que verdadeiramente importante na vida.
v
Resumo
Nesta pesquisa discutiu-se, atravs do estudo de jovens adolescentes e suas famlias, a relao que o valor da autonomia tem com os processos de individuao, aferindo as lgicas sociais atravs das quais os sujeitos reportam norma. Esta emergiu como plural nos seus sentidos, pois compsita de elementos mais racionais, que remetem para a integrao (social e grupal), e mais expressivos, que evocam a autenticidade (de modos de ser e de estar).
Justificou-se, em primeiro lugar, a centralidade da autonomia na paisagem tica e cultural da contemporaneidade, ensaiando uma genealogia conceptual, por via da recolha de contributos da Filosofia e da histria. Ao situar a autonomia no vrtice dos dilemas fundamentais da modernidade, explanou-se como estes se reflectem na construo paradigmtica da Teoria Social, em geral, e na forma como a Sociologia tem abordado o indivduo, em particular.
A adolescncia e juventude emergiram, pois, como um perodo do ciclo de vida particularmente denso e intenso de abertura ao mundo, em que simultaneamente se expandem as relaes sociais e os territrios de existncia num processo complexo de aquisio de liberdades e independncias. Um processo em que participam, ainda assim, os contextos econmicos, culturais e sociais em que vivem os jovens. nessa medida que a adolescncia surge como um fenmeno simultaneamente individual, familiar e social. Com efeito, so mltiplos os desafios e provas que ao longo do percurso enfrentam os sujeitos, o que imprime um carcter probatrio s suas performances, donde resultam hesitaes, dvidas e vulnerabilidades. Ao mesmo tempo que crescem e amadurecem, procuram, pois, (ou -lhes oferecido um espao para) acomodar a autonomia que vo construindo, no sistema de relaes familiares, relativamente estvel at ento. Ao reivindicar um novo estatuto e encetando um percurso de desafiliao relativa, os sujeitos interpelam a famlia cuja aco orientada pela dupla injuno de proteger e emancipar, forando recomposio e transformao das relaes, o que torna a adolescncia um perodo igualmente desafiante para os progenitores.
Estes constituem os principais traos que resultaram da anlise da forma como o valor da autonomia se inscreve nas culturas familiares, aferindo traos de transformao social e cultural; da forma como os jovens adquirem ou conquistam mais liberdade de aco e circulao, por um lado, e mais independncia instrumental e financeira, por outro; e dos trilhos que os jovens percorrem para constituir, expressivamente no espao domstico e relacional, universos privados e ntimos.
Palavras-Chave: Famlia, Juventude, Adolescncia, Identidade, Autonomia
vii
Abstract
In this research through the study of young teenagers and their families, the relationship that the value of autonomy has with the processes of individualization was discussed, by assessing the social logics through which individuals report to the norm. This emerged as plural in its different meanings, composed of more rational elements, related to integration (group and social), and more expressive ones that evoke authenticity (ways of being and doing).
First, the centrality of autonomy within the ethic and cultural background of contemporary societies was justified; drawing on a conceptual genealogy which gathered contributes of history and philosophy. By placing autonomy at the vertex of the fundamental dilemmas of modernity, it was explained how these reflect a paradigmatic construction of Social Theory, in general, and the way Sociology has been portraying the individual, in particular.
Adolescence and youth emerged, thus, as a period of the life cycle particularly dense and intense of openness to the world, where social relations and territories of existence expand simultaneously in a complex process of gaining freedoms and independences. This is a process that involves, nevertheless, the economic, cultural and social contexts in which young people live in. It is in this vein that adolescence is simultaneously an individual, social and family phenomenon. In fact, multiple are the challenges and proofs that individuals face throughout this path, which give a probational character to their performances, resulting in hesitations, doubts and vulnerabilities.
As they grow up and mature, they seek (or are provided with space for) to accommodate the autonomy they are creating, within the system of family relations, which has been relatively stable until then. While claiming a new status and setting up a trajectory of relative disaffiliation, individuals interpellate the family whose action is directed by the dual injunction of protect and emancipate, which forces the recomposition and transformation of relations, making adolescence a period equally challenging for parents too.
These constitute the main outlines that resulted from the analysis of how the value of autonomy is inscribed in family cultures, assessing characteristics of social and cultural transformation; the way young people get or conquer more freedom of action and movement, on the one hand, and more instrumental and financial independence, on the other; and the routes that young people go through to constitute - expressively within the domestic and relational space - private and intimate universes.
Keywords: Family, Youth, Adolescence, Identity, Autonomy
ix
Ser, parecer Entre o desejo de ser e o receio de parecer o tormento da hora cindida Na desordem do sangue a aventura de sermos ns restitui-nos ao ser que fazemos de conta que somos Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Ed. Caminho, 1999
xi
NDICE
Agradecimentos ....................................................................................................................... iii Resumo ...................................................................................................................................... v Abstract ................................................................................................................................... vii Introduo ................................................................................................................................. 1 PARTE I A autonomia na paisagem tica contempornea: da genealogia terica de um conceito definio de um objecto de pesquisa .................................................................................. 11
CAPITULO 1 Autonomia, Indivduo e Modernidade: em busca das razes filosficas da noo de sujeito ....................................................................................................................................... 14
Apresentao ........................................................................................................ 15
1.1 Autonomia no projecto moderno: entre o indivduo e o bem comum ............ 18
1.2 Desafiando os paradoxos da autonomia: o sujeito filosfico em anlise ....... 24
Razo e reflexividade, primeiro. ....................................................................... 24
Controlo, responsabilidade e respeito, entretanto. ............................................ 27
Autenticidade, Identificao e Identidade, por fim. ......................................... 29
CAPTULO 2 Modernidade, autonomia e Cincias Sociais: das questes ticas s respostas cientficas ................................................................................................................................. 37
Apresentao ........................................................................................................ 39
2.1 O sujeito nas narrativas do nosso tempo: o comprometimento esquecido das
Cincias Sociais? ................................................................................................... 40
2.2 Modernidade e cdigos binrios: divergncias paradigmticas ..................... 44
CAPTULO 3 A fabricao do Indivduo na Sociologia:49 (mais) variaes sobre o tema da autonomia ................................................................................................................................ 49
xii
Apresentao ........................................................................................................ 51
3.1 O indivduo socializado .................................................................................. 53
3.2 O indivduo actuante: entre o racional e o relacional ..................................... 63
O Indivduo Racional ....................................................................................... 65
O Indivduo Relacional .................................................................................... 69
3.3 Ultrapassando antagonismos: reflexes em torno de uma viso dialgica de
indivduo ............................................................................................................... 84
CAPTULO 4 Modernidade, famlia e indivduo em devir: (re)definindo conceitos, lanando pistas ... 91
Apresentao ........................................................................................................ 93
4.1. Algumas notas sobre importantes mudanas sociais que afecta(ra)m a famlia
e as relaes de filiao ......................................................................................... 93
4.2 Entre fase da vida e categoria social? Das perspectivas sobre a juventude s
experincias dos jovens ....................................................................................... 106
4.3 O problema das transies juvenis para a vida adulta e o seu contributo para a
clarificao e definio dos conceitos: distinguindo autonomia, liberdade e
independncia ...................................................................................................... 114
4.4 Do corpo que cresce e da autonomia que se constri: um (novo) olhar sobre o
processo de individuao .................................................................................... 123
CAPTULO 5 Objecto, Metodologia e procedimentos: um percurso reflexivo ...................................... 131
5.1 Objecto e objectivos: trilhos, questes e reflexes ...................................... 133
5.2 Desenho da pesquisa e trabalho de campo: opes metodolgicas, definio
de procedimentos e sua aplicao ....................................................................... 139
5.3 Da anlise dos dados composio de uma narrativa ................................. 151
PARTE II Juventude, autonomia e famlia: iluminando o processo de construo de si ................ 159 CAPTULO 1 Culturas familiares e objectivos educativos: continuidades e mudanas ........................ 163
xiii
Apresentao ...................................................................................................... 165
1.1 Patrimnios normativos e lgicas de transmisso: objectivos de ser, ter e
fazer ..................................................................................................................... 170
O importante era ir estando feliz: liberdade, autonomia e identidade ........ 171
Do Respeito pelos outros: pluralidade de sentidos e de orientaes .............. 176
Do ser e do ter: ambivalncias em torno do materialismo.............................. 188
Conforto material e mobilidade social: entre aspiraes e estratgias ........... 193
Esforo e trabalho: entre o sacrifcio e o mrito ............................................. 198
1.2 Do filho que fui, ao pai que sou: continuidades e mudanas na sociedade
portuguesa ........................................................................................................... 202
A experincia da ausncia: entre a privao e a solido ................................. 205
A experincia da distncia: afectos, comunicao e afinidades ..................... 208
ramos sempre muitos: a experincia do convvio, da festa e da rua ......... 216
Concluindo ..................................................................................................... 220
CAPTULO 2 Efeitos de luz?: liberdade de circulao e aco e reformulao do estatuto na famlia a partir da anlise das interaces ...................................................................................... 225
Apresentao ...................................................................................................... 226
2.1. Dos percursos que se trilham durante o dia: uma primeira abordagem s
lgicas de aco individuais e aos seus efeitos no processo de individuao em
termos de liberdade e independncia................................................................... 234
Exercitando competncias: estratgias e prticas educativas em anlise ....... 236
Gesto do quotidiano e controlo distncia: confiana ou crena? ............... 240
Banalizao e rotinizao: a fixao de novas fronteiras aos territrios de
liberdade diurna .............................................................................................. 243
Lgicas de aco parental e filial: diferentes perfis de interaco, diferentes
resultados? ...................................................................................................... 247
2.2 Sair noite: o pomo da discrdia e a turbulenta transformao da relao de
foras no sistema de gesto dos tempos e espaos de vida juvenis ..................... 257
As divergncias fundamentais ........................................................................ 262
Da semelhana nos argumentos e nas razes diferena nos resultados:
retomando a anlise das lgicas de aco e os perfis de interaco ............... 268
xiv
A via do ajustamento e do compromisso: construindo estratgias de controlo e
vigilncia ........................................................................................................ 288
Para l dos consensos: estratgias para contornar e transgredir regras e limites
........................................................................................................................ 312
Concluindo ..................................................................................................... 317
CAPTULO 3 O valor que o dinheiro tem: reequacionando a (in)dependncia juvenil na sua relao com a liberdade de aco e circulao ................................................................................ 327
Apresentao ...................................................................................................... 329
3.1 Gesto das trocas financeiras: dois modelos, vrias interpretaes ............. 340
A aprendizagem da responsabilidade: o dinheiro como territrio educativo . 341
A afirmao ritual da dependncia no quotidiano: indiferena ou controlo? . 350
3.2. Trabalho, independncia e liberdade: transies estatutrias e aco parental
............................................................................................................................. 367
Concluindo ..................................................................................................... 377
CAPTULO 4 O meu quarto sou eu?: territrios partilhados, universos privados e identidades em construo ............................................................................................................................. 385
Apresentao ........................................................................................................ 387
4.1 Fazer parte: dinmicas familiares, partilhas e construo de um espao
individual ............................................................................................................ 396
Partilhar o quarto: gnero, idade e intimidade relacional ............................... 398
O meu quarto na casa deles: da gesto dos espaos gesto das relaes .. 403
Privacidade, universo ntimo e reformulao das relaes ............................ 426
4.2 Estar parte: subjectividades, narrativas e autenticidade em construo .... 439
O quarto como espao para a reorganizao reflexiva de si? ......................... 440
O meu quarto sou eu?: uma anlise aos objectos mais significativos ............ 445
Concluindo ......................................................................................................... 459
CONCLUSES FINAIS: do valor social da autonomia e a sua expresso nos processos de individuao .................................................................................................... 467
xv
Uma autonomia compsita e plural: dos ideais experincia, um fluxo de tenses
e paradoxos (i)resolveis? ................................................................................... 468
Adolescncia, individuao e famlia em transformao: interpelao dos sujeitos
e construo da autonomia .................................................................................. 475
REFERNCIAS ................................................................................................................... 491
ANEXO 1 ............................................................................................................................... 505 Snteses biogrficas dos casos .............................................................................................. 507
1
Introduo
Nesta pesquisa estudaram-se jovens adolescentes em processo de construo de si.
Para o efeito seguiu-se o fio condutor da autonomia. E a noo de autonomia surgiu na
pesquisa por dois caminhos distintos, cujas interligaes se desejaram ver melhor
explicadas. Por um lado, perceber como uma norma social interpretada e acolhida pelos
indivduos. Por outro, aferir os processos atravs dos quais autonomia se constri e
concretiza (ou no), constituindo-se como um dos eixos centrais do percurso de construo
identitria. Em suma, averiguar como se articula um paradigma normativo, onde a
autonomia parece ocupar um lugar de destaque, com os processos concretos (mesmo que
inacabados) de emancipao individual.
Sendo uma problemtica transversal ao ciclo de vida, concentrou-se o olhar numa
fase em particular a adolescncia na medida em que esta constitui um perodo
particularmente intenso em experincias relacionadas com a construo da autonomia, a
conquista de liberdade e a aquisio de independncia. Porqu? Em virtude dos sujeitos
estarem imersos num processo de abertura ao mundo, pleno de desafios e transformaes
fsicas, psicolgicas e sociais, em que se interpelam a si e aos outros. Com efeito,
investigar esta etapa da vida pode contribuir para a compreenso dos modos como num
espao relacional, como a famlia, se cruzam e confrontam em diferentes contextos
sociais e culturais, experincias de construo da autonomia e de transformao das
relaes. Ou seja, medida que (para alm de tudo o resto) os jovens reclamam um novo
estatuto na famlia, que se constituiu, por esta razo, a principal plataforma de observao
dos processos individuao, ainda que se reconhea a existncia e a importncia de muitos
outros territrios de socializao e interaco (a escola, os grupos de pares, os media, etc.).
INTRODUO
2
A formulao problemtica do objecto no surgiu, claro est, de gerao espontnea
mas antes de um percurso por vezes cronolgico (episdios que se sucedem), por vezes
lgico (reflexes que se organizam). Na verdade, o processo de construo de objectos de
investigao sociolgica tambm pode obedecer velha mxima de Lavoisier: nada se
cria, nada se perde, tudo se transforma. Ou seja, os objectos no se inventam, antes esto
por a, nos trilhos do quotidiano, espera de ser interpelados (Pais 2002, 247-261).
Essencialmente, as inquietaes que motivaram o desejo de estudar a autonomia
juvenil numa nova perspectiva surgiram de pistas soltas resultantes dum percurso de
pesquisa sobre juventude (Pappmikail 2004, 2005, Pappmikail e Pais 2004). Constatou-
se a dada altura, analisando os testemunhos de jovens entrevistados para uma pesquisa
sobre apoio familiar nas transies da escola para o mercado de trabalho, a afirmao
recorrente da autonomia1 de escolhas e decises como um trao importante de afirmao
de si, pelo que a centralidade que a autonomia tinha nos discursos constitua um caminho
que deveria ser explorado mais aprofundadamente. Mais, falando sobre o seu quotidiano
actual, a maioria situava no passado um perodo tenso ou mesmo turbulento na relao
com a famlia, de fixao de limites e regras de convivncia, mas sobretudo um perodo
fundamental para nela forjar um novo estatuto, mais igualitrio face aos progenitores.
Restava pois saber, que lgicas e processos sociais subjaziam a esse percurso. Por outro
lado, outra importante questo continuava por responder de forma satisfatria: porque
que, apesar de objectivas situaes de dependncia e influncia familiar (instrumental e
afectiva), a maioria dos jovens reivindicava uma condio de autonomia na gesto da sua
vida, sublinhando o facto de, ao mesmo tempo, serem responsveis pelas suas aces?
A autonomia reivindicada nos discursos parecia assumir um carcter mais retrico
do que prtico, como alis defendem alguns autores nas suas pesquisas sobre jovens
contemporneos (Thomson et al. 2002). Ou seja, emergia um paradoxo que faz com que
muitos jovens contemporneos possam ter a sensao de ser autnomos, sem terem
autonomia de facto. Mais do que tomar esta dualidade como um pressuposto, adensou-se
sobretudo a ideia de que se lidava com uma noo, no mnimo, paradoxal, ao condensar
vrios sentidos. Estariam afinal em jogo no um, mas vrios conceitos relacionados
associados a uma s palavra?
1 Desde logo um reparo: poca da realizao da referida pesquisa o uso do termo autonomia pode ter sido precipitado, carecendo, em abono da verdade, da aturada clarificao conceptual que aqui se defende ser necessria.
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
3
Levando na bagagem estas inquietaes e uma reviso breve de literatura, lanou-se
a pesquisa sem mais demora: entrevistas a jovens rondando o limiar da maioridade e a pelo
menos um dos progenitores. As suas caractersticas socioeconmicas de origem eram
diversificadas, sendo que a maioria estudava ainda. Seguindo o conselho de Kaufmann
(1996, 36), optou-se deliberadamente por partir para o terreno sem um aprofundamento
bibliogrfico demasiado estruturado para que os aportes tericos no contaminassem o
olhar e as perguntas colocadas, ocultando a novidade e a surpresa com a confirmao
emprica de postulados tericos. Importa, pois, ressalvar o facto de muitos dos
questionamentos tericos, que na primeira parte se exploram, terem sido suscitados e
desenvolvidos, na verdade, no contacto com a empiria, ou seja, atravs das tenses e
inquietaes surgidas da anlise dos testemunhos que se recolheram (vide captulo 5, Parte
I para mais explicaes sobre o percurso de investigao). Foi, em suma, o somatrio de
todas estas questes, que serviu de ponto de partida para o percurso de indagao terica
que pretende contextualizar a problemtica da autonomia nas sociedades contemporneas.
A questo capital era, no entanto, a autonomia. E como estudar um conceito cujo
contedo no sequer consensual? Mais, como operacionalizar um conceito to complexo,
sem explorar criticamente a sua j longa histria, negligenciado o papel fundamental que
desempenhou no desenvolvimento das sociedades ocidentais? Recorrendo terminologia
usada por Wagner (2001) h questes de pesquisa que so inescapveis, se se pretende
aprofundar um determinado tema. Procurar solues para aqueles dilemas implicados na
tarefa de procurar definir a autonomia enquanto valor e enquanto processo - representou
um esforo de indagao que conduziu a pesquisa, no s s origens da prpria disciplina
de Sociologia (atravs da genealogia do conceito), como a um dos fundamentos
normativos das sociedades contemporneas ocidentais: a noo de indivduo emancipado,
isto , livre, autnomo e independente2.
Em suma, mobilizar o conceito de autonomia revelou-se desde cedo particularmente
complexo, pelo facto de ser um vocbulo que se multiplica numa srie de sentidos:
polticos (a cidadania implica a autonomia dos sujeitos); ticos (devemos ser autnomos ou
2 Perguntar-se- nesta altura o leitor como foi possvel alargar a escala da discusso (da aparente retrica de autonomia juvenil aos fundamentos das sociedades ocidentais) ao ponto de se estar j a fazer referncia a aspectos polticos, histricos e filosficos da noo de autonomia, quando apenas se pretende estudar jovens e respectivas famlias. Na verdade, o interesse num dado objecto, observado nas suas manifestaes empricas mais simples e prosaicas, no deve representar desinteresse pelas questes tericas que, de forma mais ou menos subtil, os trespassam. Imps-se portanto como tarefa desta pesquisa no s avanar com interpretaes para os contedos empricos da autonomia, mas tambm explorar o porqu de a pensarmos como pensamos.
INTRODUO
4
a autonomia a plena realizao da individualidade), comportamentais (ter autonomia),
identitrios (ser autnomo), processuais (tornar-se autnomo).
Tambm verdade que se trata de uma palavra banalizada tanto no seu uso
quotidiano, como no vocabulrio das Cincias Sociais, onde autonomia surge
frequentemente ora como causa, ora como consequncia de fenmenos, como
manifestao ou como explicao de comportamentos, como indicador ou como dimenso
de anlise, sem muitas vezes se dar conta de qual concepo de autonomia est a ser
mobilizada. , na realidade, uma das armadilhas mais frequentes das Cincias Sociais:
longe de qualquer definio pura, o vocabulrio conceptual constitudo de palavras
que, para alm dos usos mltiplos no quotidiano, carregam uma histria que lhes atribui
significados que so, na sua gnese pelo menos, normativos.
, ainda assim, possvel afirmar que na literatura cientfica contempornea a noo
de autonomia surge presidindo a um universo semntico povoado de conceitos com
sentidos prximos, o que resulta em serem muitas vezes tomados como sinnimos. Seno
veja-se: autonomia surge por vezes como equivalente de liberdade, mas tambm de auto-
regulao ou de soberania; associada dignidade, integridade, individualidade,
independncia, responsabilidade e ao auto-conhecimento; vista como uma qualidade
que se relaciona com a assertividade, reflexo crtica, libertao dos compromissos,
ausncia de coaco externa e conhecimento de si; uma caracterstica atribuvel s
aces, s crenas, s razes para agir, s regras, s vontades de outros, aos pensamentos e
aos princpios (Dworkin 2001, 6).
Na verdade, circulam muitas concepes para um s conceito, como justamente
reconhece Dworkin (2001, 9), referindo-se importncia de se proceder sua clarificao.
Recorrer etimologia da palavra, exerccio fundamental para a clarificao conceptual,
no se revela, neste caso, suficiente. Autonomia significa literalmente dar lei (nomos) ao
prprio (auto), o que apontando direces semnticas e o seu sentido geral, no d conta
nem da importncia e alcance do conceito, nem do seu lugar como norma social, nem
tampouco das caractersticas especficas que permitem (ou no) considerar algum
autnomo.
A autonomia, no obstante os mltiplos significados a ela atribudos, surge assim no
centro dum tringulo cujos vrtices representam importantes debates nas Cincias Sociais:
a individualizao (tempo histrico), individuao (tempo biogrfico) e a identidade
(tempo subjectivo). Uma triangulao vital para abordar o conceito. Reconhec-lo no
significa, contudo, que nos satisfaamos com uma mera referncia s teses da
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
5
individualizao, pois trata-se de um processo socio-histrico de tal modo complexo que
merece um exame mais detalhado. Christman (2003) lembra, justamente, que a
autonomia est, na verdade, no vortex3 da complexa discusso acerca da modernidade, e
este um debate que tem interessado uma mirade de tericos sociais (Alexander 1995,
Corcuff et al. 2005, Kaufmann 2008, Taylor 1989, 2004, Turner 1990, Wagner 2001,
Wagner 2002 [1994], s para citar alguns dos mais relevantes).
A centralidade da autonomia deve-se, de acordo com Wagner (2001, 4), a partir da
tese de Castoriadis (1975), ao facto da autonomia, a par da racionalidade que permite ao
ser humano controlar a sua relao consigo prprio e com a natureza, se constiturem como
a dupla significao do imaginrio da modernidade. Muito para alm de um conceito
operativo que refere processos empricos, a autonomia est, pois, na base dos princpios
filosficos e polticos que ajudam a pensar as sociedades contemporneas e a mapear as
paisagens ticas e morais que servem de pano de fundo s trajectrias de vida.
Assim, analisar narrativas familiares, histrias de vida concretas desenroladas em
quotidianos banais, s sublinhou o facto de estarmos perante um tema que congrega uma
rede complexa de intuies, questes empricas e conceptuais, bem como importantes
discusses normativas (Dworkin 2001, 7). No se quis, contudo, e face complexidade
que se tem procurado demonstrar, correr o risco de fazer um uso dogmatizado da noo de
autonomia, limitando a discusso ao interpretar na realidade estudada as propriedades
atribudas ao conceito (Corcuff 2005a), pela simples razo deste estar difusamente definido
e mostrar ser plural nos seus significados.
De acordo com algumas abordagens mais crticas (Corcuff 2005a, 2007, Wagner
2001) a dogmatizao resulta, justamente, da pr-estruturao do olhar sociolgico que, ao
negligenciar as razes filosficas dos seus questionamentos de base, bem como do seu
espao interpretativo. Acaba assim, muitas vezes, por encaixar mecanicamente os
conceitos nos seus esquemas de inteligibilidade, no os interpelando sistematicamente. H,
com efeito, em muita Teoria Social contempornea um substrato ideolgico que no deve
ser ignorado. Hoje, no entanto, muito menos visvel do que, por exemplo, na Teoria
Social clssica, onde a articulao entre ticas e teorias sociais era alis assumida como um
objectivo (nomeadamente Alexander 1995, 13, Cohen 2002, 136)4. Encetar um percurso de
3 A referncia ao vortex, por contraponto ideia de vrtice, remete justamente para o carcter dinmico de tal debate, uma vez que vortex evoca a ideia de um fluxo em espiral, em constante movimento de rotao.
4 Voltar-se- a este assunto em no ponto 2 da parte I.
INTRODUO
6
reflexividade que tentasse, no mnimo, contornar este risco, conduziu, assim, a uma
averiguao que rapidamente obrigou a saltar as fronteiras disciplinares da Sociologia, para
dialogar com particular intensidade com a Filosofia. O dilogo entre estes dois registos
intelectuais revelou-se muito inspirador e permitiu, no s situar uma problemtica
particular no trilho das questes histrico-filosficas que estruturam o debate sociolgico5,
como emprestou anlise um adicional rigor conceptual. Mais no se fez, neste caso, do
que seguir o convite de Corcuff (2007, 116), para quem uma maior densificao terica
um resultado do convite renovao conceptual que s se consegue, em seu entender,
atravs do estabelecimento de uma saudvel distncia crtica de noes rotinizadas por via
de dilogos interdisciplinares.
Mas um trajecto de averiguao terica, por muito valor que tenha enquanto
exerccio intelectual, s teve interesse (e justificao) na medida em que servia o objectivo
de iluminar um objecto emprico concreto: as experincias de jovens adolescentes e suas
famlias. Esta trajectria de reflexividade conceptual foi pois, antes de mais, essencial na
construo de um esquema de inteligibilidade, tecido a partir das pistas recolhidas da
anlise dos dados. Isto , o exerccio vlido na medida em que forneceu os elementos
crticos que permitiram aprofundar as relaes entre categorias e conceitos, porque ajudou
a destrinar os ns interpretativos que em que se hesitou durante a anlise, e porque
permitiu consolidar o fio condutor que orientou a construo da narrativa, criando sentidos
para a leitura das mltiplas experincias que um corpus emprico contm.
Esta dissertao , pois, composta por dois percursos principais que visam, em
ltima anlise, promover uma discusso acerca da autonomia enquanto conceito, norma
social e processo. Na primeira parte (Parte I), d-se conta do percurso de definio
conceptual atravs da elencagem dos contributos relevantes construo do modelo de
anlise, procurando tornar o conceito chave desta pesquisa a autonomia
operacionalizvel e heurstico. Ao faz-lo, explora-se a sua trajectria conceptual, os seus
sentidos e os seus contedos histricos, filosficos e sociolgicos. Um percurso que abre
portas a um outro (Parte II) em que se retratam experincias juvenis a partir de vrios
recortes temticos que abordam alguns elementos fundamentais para a compreenso dos
processos de construo da autonomia juvenil e suas implicaes na vida familiar.
5 Mesmo que frequentemente se ignore essa relao, o que leva vrios autores a criticar ora a concentrao no presente, ora a uma recolha demasiado selectiva de elementos do passado na produo das Cincias Sociais na actualidade (como refere, por exemplo, Wagner 2001, 78).
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
7
Na Parte I faz-se uma aproximao progressiva ao objecto de pesquisa (do geral ao
particular) em cinco momentos. No Captulo 1 parte-se em busca das razes filosficas da
noo de sujeito, a partir de uma genealogia histrico-filosfica, breve e sinttica, da noo
de autonomia enquanto eixo central do iderio moderno. Uma particular ateno dada aos
paradoxos que resultam da afirmao da autonomia como valor, tanto na sua definio
formal e conceptual, como na distncia que se estabelece entre o indivduo tico e a
experincia do indivduo emprico, paradoxos que inspiram, alis, uma longa corrente de
debates em torno do sentido a dar existncia humana.
J no Captulo 2 pretende-se reflectir sobre o modo como o iderio moderno influi
na gnese e desenvolvimento das Cincias Sociais e na forma como estas se organizam
paradigmaticamente em torno de compromissos ticos e propsitos reformadores (embora
nem sempre explcitos). Procurar argumentar-se como a leitura da autonomia enquanto
valor fundamental, herdada dos antagonismos vigentes no pensamento filosfico, e os
progressos e regressos que a histria trouxe aos sujeitos, o eixo fundamental do debate
sociolgico, na forma como pensadores oriundos de vrias tradies interpretam o seu
tempo e a condio humana em sociedade.
No Captulo 3 chega-se finalmente s estratgias intelectuais usadas pela Sociologia
para abordar o indivduo, aqui organizadas em funo do tratamento que do autonomia
do sujeito e capacidade deste ser ou no verdadeiramente autnomo. Para o efeito,
procurou fornecer-se uma viso dinmica e processual dos vrios aportes tericos no
sentido do que so as tendncias contemporneas na anlise da complexidade e pluralidade
dos indivduos e suas trajectrias de vida.
O Captulo 4 debrua-se, por fim, sobre as transformaes da instituio famlia, a
par de uma reviso crtica de alguns contributos resultantes da produo da Sociologia
dedicada juventude, com o fito de estabelecer, por um lado, directrizes para a
interpretao do objecto, atravs de exerccios de clarificao conceptual, e, por outro,
desenhando um olhar terico sobre a adolescncia e os processos de construo de si que
sintetiza, de certa forma, os mltiplos contributos que definem autonomia enquanto
conceito compsito e plural e o processo de individuao como um percurso dinmico e
relacional.
Partindo da sistematizao dos objectivos especficos que orientam a construo
desta narrativa, no Captulo 5 condensa-se, por fim, a descrio do e as reflexes sobre o
percurso de investigao. Versa o ltimo captulo da primeira parte sobre a estratgia e
INTRODUO
8
procedimentos metodolgicos adoptados bem como sobre os fundamentos epistemolgicos
que os justificam.
A segunda parte dedicada a analisar e discutir os traos que caracterizam os
processos de construo de autonomia por parte dos jovens, tendo em conta os vrios eixos
de significao da autonomia enquanto norma social e processo psico-social que fora a
recomposio das relaes familiares, averiguando o modo como se cruza com factores de
desigualdade social, cultural ou de gnero. Quatro captulos a compem. Em primeiro
lugar (Captulo 1), perscrutam-se os contextos e as estratgias de socializao familiar,
atravs da discusso das vrias faces e interpretaes da autonomia nas culturas familiares
e nas estratgias educativas desenvolvidas e aplicadas por famlias com perfis distintos do
ponto de vista socioeconmico. Que valores desejam os pais transmitir aos seus filhos?
Que tipo de percursos lhes auguram? Que competncias consideram ser essenciais a uma
trajectria bem sucedida? Em torno das respostas a estas questes compe-se a paleta dos
principais eixos de objectivos educativos de que se pintam as vrias culturas familiares.
Estas no devem ser tomadas, porm, como elementos estticos ou perenes no tempo, antes
se (re)compondo das experincias dos indivduos que a alimentam, rompendo ou
subscrevendo tradies e vises do mundo. Na segunda parte do Captulo 1, percorrem-se,
ainda, algumas experincias vividas pelos progenitores que, num quadro mais amplo de
transformaes culturais e recomposio social, influenciaram os processos de reviso
crtica das culturas familiares, dos modelos educativos, dos patrimnios normativos, a se
entrevendo eixos de mudana e continuidade.
Apesar de serem importantes os contextos familiares de socializao, no deve ser
desprezada a fora das interaces, na medida em que os jovens sujeitos no so
receptculos passivos das heranas parentais, nem um seu reflexo imediato. Ou seja, os
contextos e as lgicas de socializao no explicam nunca a totalidade da aco do sujeito,
apenas uma parte. Na realidade, no s a gesto da tenso entre o desejo de proteger e a
misso de emancipar os filhos gera inevitveis paradoxos, como a aco parental esbarra
na influncia de outros contextos de socializao formal e informal (a escola e os amigos),
que ajudam a compor a autonomia do sujeito, na continuidade e na ruptura com a cultura
familiar. Isto porque, num perodo da vida marcado pela abertura ao mundo, os sujeitos
reclamam no s um novo estatuto (em relao famlia) como procuram e experimentam
a sua identidade enquanto indivduos singulares. No raras vezes fazem-no interpelando a
famlia e a legitimidade desta em gerir os seus percursos e o seu quotidiano.
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
9
Os Captulos 2 e 3 debruam-se, assim, sobre a importncia das interaces, que
geram um espao de intersubjectividade partilhada, na compreenso da aco e das
trajectrias sociais. Isto , reconstitui-se o jogo assimtrico, ao longo do tempo, entre
actores que desempenham diferentes papis no sistema de relaes familiares, no qual
mobilizam competncias e estratgias com vista concretizao dos seus fins (mais ou
menos divergentes). Para o efeito analisaram-se os percursos de reivindicao, conquista
e/ou concesso de liberdade e independncia, e as consequncias positivas e negativas que
estas experincias tm no processo de construo da autonomia (processo distinto, mas
inter-relacionado). Por um lado, analisaram-se as modalidades de resoluo progressiva
das tenses que resultam do esforo de ampliao do permetro de liberdade de circulao
e aco no sentido da conquista de novos tempos e territrios pblicos de interaco,
nomeadamente numa lgica de lazer (Captulo 2). Por outro, perscrutaram-se os sentidos
implcitos na forma como so geridas as trocas financeiras na famlia, na medida em que a
posse e gesto de dinheiro podem ser consideradas um indicador de independncia
(Captulo 3).
O registo de uma aco mais racional, feito da aferio de estratgias, lgicas de
aco e confrontos mais ou menos tensos, uma viso que devolve aos actores capacidade
para agir sobre si prprio e sobre o seu universo de experincia. A mesma experincia a
que procuram, a par e passo, dar sentido, ensaiando uma unidade narrativa que exprima
aquilo que o sujeito quer ser, ou pensa ser de facto. O Captulo 4 procura abordar o registo
da subjectividade, observando as dinmicas inerentes vivncia do espao privado da casa,
bem como os sentidos que lhes so atribudos. Simultaneamente estuda-se o modo como
num territrio colectivo e partilhado, se vo construindo espaos privados e ntimos, onde
se pode expressar objectivamente traos de uma identidade em construo (ainda que
provisria e hesitante) e manifestar a assumpo de um novo lugar na famlia, atenuando
eventualmente assimetrias estatutrias e relacionais.
Para finalizar, resumem-se nas Concluses Finais as principais reflexes retiradas
deste percurso entrecruzado de debates tericos e vidas de jovens e respectivas famlias, no
sentido de contribuir para a compreenso de algumas das muitas questes relacionadas
com a autonomia, na dupla vertente de valor matricial e processo social, na sociedade
portuguesa contempornea.
INTRODUO
10
11
PARTE I
A autonomia na paisagem tica contempornea: da
genealogia terica de um conceito definio de um objecto de
pesquisa
13
14
CAPTULO 1
Autonomia, Indivduo e Modernidade:
em busca das razes filosficas da noo de sujeito
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
15
Apresentao
A autonomia frequentemente invocada como um dos eixos centrais da constelao
de valores que caracterizaria a contemporaneidade6. Com efeito, as sociedades ocidentais
contemporneas tm sido apresentadas como sociedades crescentemente diferenciadas e
individualizadas, o que justifica, para autores como Beck por exemplo, que se entendam os
processos de individuao actuais como substancialmente diferentes do que eram h
algumas dcadas atrs. No desenvolvimento do seu programa terico e emprico defende
que, muito embora considere que no se possa falar de ps-modernidade prefere o termo
segunda modernidade , se deu uma ruptura em relao ao passado nas sociedades
contemporneas (Beck e Lau 2005, 526). Essa ruptura pode representar-se no primado do
princpio utpico que afirma que cada indivduo pode (e deve, alis) tornar-se maestro da
sua prpria vida (Singly 2006b, 11).
Assim, qualquer indagao sobre o tema do indivduo, qualquer que seja a fase do
ciclo de vida, e das identidades deparar-se- com um emaranhado de referncias ao
eventual fim ou continuidade da modernidade enquanto tempo histrico, emergncia de
uma nova ordem de valores centrada no indivduo (em que a autonomia ocuparia um
papel de destaque), assumpo plena do indivduo como unidade base da organizao
social, ao maior ou menor alcance do processo de individualizao e ao desenvolvimento
do individualismo nas sociedades actuais (em verses mais liberais ou mais
6 Recorre-se ao termo contemporaneidade propositadamente. Com efeito, uma das determinaes posta em prtica neste trabalho o uso de vocbulos relativamente neutros para nomear o tempo presente. Quantos trabalhos no faro um uso acrtico de expresses hoje j banalizadas como modernidade tardia, segunda modernidade, alta modernidade, ps-modernidade, etc.?
AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE
16
institucionalizadas) (Bauman 2001, Beck e Beck-Gernsheim 2002, Beck et al. 2000,
Giddens 1994, 1996, Kaufmann 2008, Singly 2000a). Termos como fragmentao,
incerteza e risco emergem como alguns dos principais atributos que adjectivam as
trajectrias de vida na contemporaneidade, agora muito menos previsveis do que
anteriormente. Justificando estas interpretaes esto mudanas no mundo do trabalho,
com a flexibilizao e precarizao das relaes contratuais a par da reconfigurao do
tecido produtivo (com os processos de terciarizao e a expanso das tecnologias da
informao, nomeadamente); o aumento progressivo da durao mdia das carreiras
escolares e prolongamento da co-residncia familiar por parte dos jovens; o aumento da
participao feminina no mercado de trabalho e as mudanas no seio das relaes de
gnero na famlia que habitualmente lhe so associadas; o aumento da divorcialidade e das
unies conjugais no oficializadas, entre outras; e o declnio da participao poltica e a
crise dos Estados-Providncia. Em suma, em causa esto processos de desestruturao,
desinstitucionalizao e mudana cultural. Apesar de sentidas com diferentes graus de
intensidade consoante os contextos, so tendncias partilhadas pela maioria dos pases
ditos ocidentais.
Destas leituras, trs concluses principais. Primeiro, a importncia da autonomia
individual no sistema de valores contemporneos. Ainda que seja foroso referir a sua
deficiente definio conceptual, a sua centralidade no se resume a uma constatao
emprica ocasional, mas algo amplamente referido na literatura, nomeadamente a que se
ocupa das geraes mais jovens (Cicchelli 2001a, 2001b, 2007, Gaviria 2005, Henderson
et al. 2007, Maunaye e Molgat 2003, Ramos 2002, Singly 2000b, 2005b, 2006a, Thomson
et al. 2002, Thomson e Holland 2002, para citar apenas alguns exemplos). Segundo, apesar
da omnipresena da autonomia, tratada tantas vezes como recurso explicativo adquirido,
esta raramente questionada ou abordada nas suas razes conceptuais e normativas.
Terceiro, o discurso terico foca demasiado o novo nas sociedades
contemporneas, fazendo uso de uma escala de anlise temporal pouco profunda de um
modo geral. Como justamente refere Martuccelli (2005), as perspectivas contemporneas
do indivduo, lanado nas ltimas duas dcadas para a frente do palco do interesse
sociolgico, inscrevem-se na descendncia e no tanto na ruptura de abordagens j
centenrias. Acrescenta, alis, que insistir na profunda continuidade do olhar sociolgico
permite ter uma atitude teraputica face iluso amnsica que a afirmao da novidade de
uma Sociologia do indivduo constitui.
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
17
Na verdade, o facto de se referir a contemporaneidade como recorte temporal de
referncia no impede, muito pelo contrrio, que se entenda a actualidade como o produto
de processos a operar num tempo longo. A excessiva concentrao no presente de muitas
teorias de curto e mdio alcance na Sociologia, por exemplo, tem sido fortemente criticado
por autores como Norbert Elias (1987), que dedica todo um texto ao tema, embora outros
tambm denunciem o mesmo problema como Jeffrey Alexander (1995), Pierre Corcuff
(2007) e Peter Wagner (2001). Tende a haver, pois, um certo grau de precipitao no
recurso ao adjectivo novo em muitas reflexes sobre a realidade contempornea (Smart
1990, 20-22)7.
Pelo exposto entende-se que a reflexo sobre a autonomia passa por uma reflexo
sobre o iderio cultural com origem na gnese da modernidade e que, de acordo com a
literatura sociolgica, tem consequncias passveis de serem entrevistas nas experincias
singulares. A autonomia remete, pois, invariavelmente para o indivduo, quer na sua
concepo tica e moral, quer na sua condio de sujeito emprico amostra indivisvel da
espcie humana, para usar uma designao feliz que tanto Dumont (1992, 268) como
Ricoeur (1996, 1) usam. As diferentes vises da forma como estes dois indivduos se
relacionam dominaram, de certa forma, as agendas de investigao da Sociologia desde a
sua fundao at hoje, o que resultou de um modo geral em modelos interpretativos do
indivduo parciais e incompletos. esse pelo menos o argumento que aqui se defende.
As transformaes sociais mais recentes redundaram, no entanto, numa maior
exposio do indivduo, ele prprio e no apenas enquanto suporte corpreo das estruturas
sociais nem to pouco uma abstraco terica pura (abordagens dominantes at certa
altura), dando origem a um renovado interesse por parte dos investigadores sociais.
Martuccelli (2005) considera mesmo que esse interesse resultou numa inflexo nas teorias
sociolgicas no sentido de passarem a abordar a complexidade inerente experincia
individual (vide frente Captulo 3, Parte I).
Pensar a autonomia nos dias de hoje no se pode reduzir, ainda assim, anlise e
discusso de um projecto filosfico o moderno, tal como visto do presente. O mundo, na
sua globalidade, assistiu a profundas transformaes nos ltimos sculos que reformularam
as paisagens empricas e ticas onde os indivduos fazem os seus percursos de vida. A
7 Quer isto dizer que quando se referenciam mudanas, fazem-no grosso modo por referncia a um eixo temporal curto, sendo as mudanas no mundo do trabalho um bom exemplo: se se recordar todo o perodo que antecedeu os denominados trinta gloriosos anos que sucederam 2 Guerra Mundial, ser mais rigoroso chamar s mudanas no mundo do trabalho um retorno em novos moldes aos sistemas precrios de relaes laborais que inspiraram os movimentos sindicalistas do sculo XIX e XX.
AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE
18
diversidade das e nas experincias de vida tem, com efeito, renovado constantemente o
stock de problemticas e inquietaes disponveis reflexo social e sobre o social.
Mudanas que parecem ter-se acelerado e intensificado nas ltimas quatro dcadas, como
tm verificado os tericos sociais que as tm procurado interpretar (concorde-se ou no
com as suas propostas) e que fazem com que a valorizao do Eu seja tida como uma das
caractersticas mais consensuais das sociedades de hoje (Ion 2005, 28 ver tambm
Kaufmann 2008). Assim, se no plano das ideias podem por vezes parecer demasiado
estanques e antagnicas as diversas linhagens conceptuais, mesmo quando se perscrutam
as relaes que estabelecem entre si, importante sublinhar a fluidez e continuidade, se se
tiver em conta a dimenso histrica que faz com que certas ideias s surjam num
determinado tempo, e num determinado lugar8. Esta meno serve apenas para sublinhar
que esta a razo que leva a que o percurso de discusso terica, que agora se inicia, recue
mais de dois sculos no tempo para situar as razes da importncia atribuda (ainda) hoje
autonomia enquanto norma central da paisagem tica.
1.1 Autonomia no projecto moderno: entre o indivdu o e o bem comum
No que importa para esta pesquisa, o facto que ensaiar uma genealogia situada no
tempo do conceito de autonomia e do seu peso nos sistemas ticos e normativos implicou
uma completa imerso num debate deveras persistente nas Cincias Sociais9, desde a sua
fundao no sculo XIX, que aquele que se debrua sobre os modos de afirmao e as
caractersticas de uma era civilizacional a modernidade surgida a partir de meados do
sculo XVIII. poca que pode at, na perspectiva de alguns, ter j dado lugar a um novo
tempo. Na verdade, um dos aspectos positivos a destacar da controvrsia acerca da
8 Na verdade, o plano da histria das ideias est intimamente associado s vrias tradies nacionais de pensamento, como demonstra o percurso feito por Levine (1995). Ser indiferente o facto de Dewey, que com Mead desenvolve as bases do interaccionismo simblico, ter sido aluno de Hegel, apesar de ser igualmente forte a influncia do pragmatismo de Pierce? Hegel, um autor que, por sua vez, se integra num conjunto de pensadores apologistas da ideia que os fenmenos humanos no podem ser reduzidos a propenses e mecanismos naturais, mas que manifestam a sua distintividade atravs dos sentidos imbudos nas aces pelos actores (ideia que ir inspirar Weber e Simmel, por exemplo). J a tradio francesa, que tem em Durkheim um ilustre representante - ele prprio um republicano militante, responde ao individualismo metodolgico desenvolvido na tradio britnica vinda de Hobbes, postulando que a sociedade um fenmeno com propriedades no redutveis s propenses dos indivduos que a compem (Levine 256-260, 300-306).
9 O uso do termo Cincias Sociais tem o propsito de reforar a ideia de que se trata de um debate terico gerador de uma meta-linguagem de interpretao do mundo social, comum s vrias disciplinas da rea das Cincias Sociais e, por isso, anterior s fronteiras entre objectos e criao de abordagens especficas e particulares.
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
19
existncia de uma ps-modernidade o facto de ter renovado, desde h algumas dcadas, o
interesse no estudo da modernidade ela prpria, dando origem a interessantes reflexes e
questionamentos crticos acerca do patrimnio terico das Cincias Sociais (Wagner 2001,
5).
Com efeito, a modernidade aqui encarada na sua dupla vertente de projecto e
processo. Reconhecer esta dualidade , segundo Wagner (2001, 4, argumento desenvolvido
parcialmente em A Sociology of Modernity, 2002 [1994], 3-4), o primeiro passo para que
as dimenses ticas e histricas da modernidade sejam situadas nos respectivos planos,
malgrado a tenso existente entre ambas:
O termo modernidade carrega inevitavelmente uma dupla conotao; sempre tanto filosfica como emprica, ou tanto substantiva como temporal, ou () tanto conceptual como histrica.10
Parece ser consensual que o papel da autonomia nas sociedades contemporneas
est relacionado com a emergncia de um iderio cultural prprio da modernidade
ocidental. Esta ter sido fundada sobre um programa normativo em que a autonomia,
juntamente com a busca do controlo racional sobre a natureza, assim entendida como
inteligvel e dominvel, se constituem no duplo imaginrio da modernidade (Wagner 2001,
Wagner 2002 [1994], a partir de uma ideia original de Castoriadis). Taylor (1989, 12)
sustenta uma interpretao semelhante, afirmando que a noo de autonomia a base de
qualquer interpretao da modernidade (ou seja, referncia tanto para partidrios como
opositores). A verdade que a discusso sobre a autonomia no mais perdeu terreno no
plano da discusso filosfica e, de forma menos bvia, na sociolgica tambm. Seno veja-
se.
No obstante diferenas especficas nas diversas leituras da modernidade, quase
todas situam no perodo iluminista um importante movimento filosfico, cujos efeitos se
estendem poltica e economia, no modo de conceber e organizar as sociedades
ocidentais. A afirmao do racionalismo, da razo enquanto referncia fundamental para o
Homem, o primeiro trao desse novo tempo a merecer destaque. , com efeito, um
racionalismo que libertaria (do ponto de vista ontolgico e epistemolgico) o Homem das
amarras da religio e do destino tornando-o autnomo de instncias metafsicas de
regulao. Ou seja, trata-se de um racionalismo cuja concretizao se articularia, tambm,
10 Com vista a tornar a leitura da dissertao mais escorreita, esta e todas as citaes em lngua estrangeira foram traduzidas livremente pela autora.
AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE
20
com um processo de secularizao. Note-se, porm, que o que caracterizava as sociedades
democrticas que se desejavam implementar no estava no facto do indivduo passar a
achar em si a principal fonte de crenas em vez de o fazer no espectro do divino, mas sim
que as crenas podiam ser encontradas na razo humana, ou seja, na opinio comum e no
no sobrenatural (Descombes 2004, 372).
Com efeito, Alexander (1995, 1-2) assinala que, no obstante o carcter de
novidade que lhe normalmente atribudo, no totalmente verdade que o racionalismo, e
mesmo o universalismo, sejam exclusivos da poca moderna, afirmando que tambm a
civilizao judaico-crist11 se organizou em torno de uma racionalidade com pretenses
universais, embora inalcanvel e exterior aos homens a ela subjugados. A transformao
no se deu, na sua perspectiva, na forma mas sim no contedo: a razo do Homem separa-
se definitivamente da razo de Deus, assumindo a primeira o lugar antes ocupado pela
segunda enquanto princpio estruturador das vises do mundo. Durante muito tempo, alis,
do ponto de vista estritamente filosfico, a f em Deus foi substituda pela f no Homem,
mantendo-se o carcter linear, histrico, e governado por uma concepo poderosa de
uma fora impessoal e objectiva embora sem o satisfatrio e confortante sentido de uma
finalidade teolgica, que a ancoragem transcendental fornecia. Ou seja, diz o mesmo
autor mais frente, que o que se viu de facto foram os sonhos de salvao serem
substitudos por sonhos de razo. Isto significava, em coerncia com o optimismo do
projecto moderno, capacitar os homens a alcanar a Verdade, atravs do conhecimento e
do controlo sobre a natureza: a revoluo nos modos de produo (agora industriais) e o
desenvolvimento do conhecimento cientfico12 foram dois dos pilares fundamentais dessa
crena13.
Subjacente ao projecto da modernidade est, tambm, um novo modo de conceber o
indivduo. Apesar de num primeiro momento o discurso filosfico estar mais atento ao
Homem do que aos homens e mulheres concretos configurando o que se poder chamar
11 Se a modernidade evoca a noo de progresso, necessrio sublinhar que uma tal concepo s possvel devido primazia progressiva de uma noo de tempo linear sobre uma de tempo cclico caracterstico de sociedades eminentemente agrcolas. A linearidade do tempo tambm , note-se, um contributo das religies monotestas de raiz judaica (ver a este propsito Pereira 1989).
12 Berthelot (2008) lembra, justamente, como o conhecimento cientfico se instituiu como a empresa da verdade objectiva e irrefutvel, fruto das capacidades que a razo humana conquistou na modernidade.
13 Sublinhe-se que este no um argumento exclusivo de Alexander. Wagner (2002 [1994], 9) invoca um argumento semelhante ao falar da Razo referida pelo iderio iluminista como uma categoria supra-individual e, talvez, supra-humana, tal como Taylor (1989, 21-22) que sublinha o facto de a ideia de desafiliao racional estar na continuidade do raciocnio teolgico judaico-cristo.
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
21
um individualismo humanista h importantes mudanas nos princpios antropolgicos
morais e, consequentemente, nas categorias de pensamento. Os indivduos so, com efeito,
institudos como as unidades bsicas e indivisveis da organizao social, unos por via da
sua singularidade e dignidade individual (reveja-se a este propsito o iderio da revoluo
francesa e americana). Isto , passa a ser valorizado o indivduo (idealmente) autnomo,
livre e independente, merecedor, por isso, de respeito e de tratamento igual ao prximo.
Por outro lado, o modelo societrio promovido pelo projecto moderno permitiria tambm
ao indivduo libertar-se da famlia, durante sculos nvel nico de integrao social e, luz
dos novos princpios, um obstculo completa emancipao dos grilhes da tradio. O
indivduo por si s passa a concebido como tendo direitos inalienveis, ou imanentes sua
condio humana (ao estilo da trindade lockeana vida, liberdade e propriedade, por
exemplo) e no exclusivos de uma qualquer condio social.
Significa isto que com a modernidade, a natureza humana emerge como o
enquadramento antropolgico da liberdade enquanto valor supremo (Wagner 2001, 8).
Todo este edifcio filosfico assenta no pressuposto da autonomia, pois dela depende o
desenvolvimento de pressupostos como a noo de sujeitos desafiliados, libertos de uma
confortvel mas ilusria sensao de imerso na natureza, objectivando o mundo sua
volta (Taylor 1989, 12). Elevar a condio de indivduo ao centro do pensamento
filosfico e da organizao poltica representa, como explica Elias (1993 [1987], 174-177),
uma importante mudana, recordando que nas sociedades clssicas e at ao Renascimento,
por exemplo, no existia um vocbulo que exprimisse a noo de indivduo, enquanto
pessoas independentes dos grupos a que pertenciam.
Na verdade, o projecto da modernidade foi desenhado como um programa de
emancipao, ao visar reconhecer em todos os indivduos o mesmo grau de integridade.
Subjazem nesta afirmao duas importantes consequncias filosficas que se constituem
como pilares igualmente importantes do projecto moderno: a noo de que com isso se
promovia o bem comum, uma vez que se tratavam de princpios universais (porque
derivando da natureza humana ela prpria) o que permitiria articular a soberana vontade
individual com o regular funcionamento da sociedade. alis no (des)equilbrio precrio
entre a nfase atribuda ao indivduo e ao bem comum, na definio dos modelos
societrios, que assentaro os mais significativos debates polticos nos sculos que se
seguiro.
Com efeito, no contexto anglo-saxnico parece ter prevalecido uma tradio de
pensamento cuja orientao foi claramente mais individualista e utilitarista, ao entender, de
AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE
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um modo genrico, como objectivo ltimo do sistema moral (e social) a busca da
satisfao dos interesses individuais, assim garantindo a ordem social. J no quadro do
pensamento francs, a Filosofia social e poltica pendeu claramente para a valorizao do
bem comum, partindo de um ideal de sociedade em que era a garantia da ordem social que
permitia aos indivduos o exerccio de liberdades e da sua autonomia (cf. Levine 1995).
Como explica Ion (2005, 26),
O ideal republicano valoriza a assembleia de cidados, reunio de indivduos sem dependncia, o que quer dizer, por um lado, libertos de todo os sistemas de pertena (religiosa, familiar, tnica, geogrfica, profissional, etc.) e, por outro, informados pela razo e logo educados, capazes de debater o interesse geral da res publica, sem misturar qualquer tipo de interesse particular.
So estes, de forma muito sinttica e forosamente simplificada, os princpios
bsicos da modernidade filosfica que inspiraram a construo de (novos) modelos
societrios (variando a sua orientao conforme o contexto filosfico nacional). O Estado-
Nao democrtico, contrato social entre indivduos-cidados, com as suas instituies
centralizadas, reguladoras e independentes da Igreja uma das formulaes atribudas
modernidade filosfica. Esta foi uma das solues institucionais encontradas para
materializar o bem e a justia para todos os seus membros, atravs da promoo e garantia
da liberdade e autonomia dos indivduos. A expanso dos mesmos princpios normativos
sincrnica de um assinalvel surto de desenvolvimento social, cultural, econmico,
poltico, tecnolgico e cientfico, que deve ser estudado como modernidade, sim, mas
tentando no confundir o que o processo histrico-emprico com as dimenses
epistemolgicas, por um lado, e ticas, por outro, a que temos vindo a fazer referncia
(Wagner 2001, 1)14. Ainda assim, seria ingnuo analisar a modernidade nas suas duas
vertentes sem considerar, a cada momento, as complexas relaes que os princpios
filosficos tm no processo histrico, institucional e cultural de longo prazo.
Apesar de se poder falar de alguma hegemonia deste iderio, sobretudo na primeira
fase do processo de industrializao com o desenvolvimento das Filosofias utilitaristas (no
contexto britnico principalmente) e a emergncia do econmico como segmento separado
do poltico (cf. Dumont 1992), hoje reconhece-se a natureza fragmentada das fontes
culturais da modernidade, pelo que como processo histrico no deve ser interpretado
14 A ideia de que a poca moderna resulta da forosa relao entre a atitude que tornou possvel a cincia moderna (onde se incluem as Cincias Sociais) e a atitude que tornou possveis as revolues polticas modernas faz particular sentido no plano da Filosofia da histria, lembra Descombes (2004, 352), devendo ser questionada quando se trilham outras abordagens.
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
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linearmente (Taylor 1989). Sobretudo porque os iderios culturais se confrontaram com
processos de mudana social profundamente lentos e ambguos, por um lado, e por
desenvolvimentos polticos no mnimo contraditrios com as promessas emancipatrias do
imaginrio moderno15. Por isso, sucumbir ao optimismo universalista dos princpios
modernos (ou de quaisquer outros), usando-os como fio condutor da histria , pois, uma
armadilha que se deve evitar. Na verdade, rapidamente o carcter retrico do discurso
moderno comeou a ser denunciado. Refira-se a incmoda problemtica da afirmao
universal de uma condio de Indivduo, livre e autnomo, por contraste aos
condicionalismos profundos, novos e antigos, vividos pelos sujeitos empricos. Com efeito,
o bem comum no se estaria a sobrepor s liberdades individuais atravs da aco do
Estado? Direitos inalienveis para o Homem, mas para todos os seres humanos e de igual
forma? Com efeito, recordando a lgica dialctica recuperada da Filosofia hegeliana,
parece mais adequado projectar a trajectria da modernidade no como seguindo uma
linha direita, mas mais uma espiral alternando picos e depresses tanto empricas como
conceptuais (Levine 1995, 314).
Descombes (2004) explica que a noo de autonomia, sobre a qual se constri afinal
todo o projecto moderno estava, logo partida, ferida de uma dualidade difcil de
sintetizar. Uma das vises, herdeira do aristotelismo que Hobbes tanto se esforara por
criticar, evoca a autonomia no sentido cvico e poltico, remetendo para o sujeito que
capaz de governar e ser governado. Recorde-se que a cidadania foi, no tempo clssico e
posteriormente, um privilgio e no um direito natural. Outra, a que se idealiza na poca
das luzes, de natureza liberal, reconhecendo a qualquer indivduo dignidade enquanto tal
e a capacidade de se governar a si prprio e de estabelecer para si os prprios objectivos.
Contudo, importante sublinhar que a transio de uma concepo para outra no , de
modo algum, completa. Nem tal estava nos planos dos arquitectos do projecto moderno,
como demonstra o peso atribudo noo de bem comum, principalmente em Frana.
Na verdade, a leitura que Dumont (1992, 89-99) oferece de Hobbes e Rosseau
(salvaguardando o antagonismo intelectual que assumiram entre si) demonstra como a sua
definio de indivduo remete para o sujeito eminentemente social, nomeadamente ao
defenderem que a sua humanidade s totalmente realizada na relao com os seus
15 Como o jacobinismo aps a revoluo francesa e todos os totalitarismos nos sculos que se seguiram, por exemplo. No ter sido a desiluso com o processo revolucionrio francs que levou Toqueville a visitar os Estados Unidos da Amrica para se inteirar do modo como aparentemente resultava a democracia naquele pas? (Dumont, 1992).
AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE
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semelhantes. o elemento poltico, que reconhece a dimenso hierrquica da sociedade
como garante da ordem social, que define pois o homem. Este deve, por isso, submeter-se
livre e conscientemente ao governante absoluto, no caso de Hobbes, e vontade geral
atravs do contrato social, no caso de Rosseau. Assim, no s a noo de autonomia anda a
par da de obedincia e conformao (que, no limite, pode ser associada heteronomia)
implcita na noo de bom cidado , como persiste a ideia de que preciso ser-se capaz
de exercer a autonomia, tornando o ideal de igualdade ainda mais difcil de concretizar.
Caracterizar o paradoxo da autonomia passar tambm por perceber a convivncia
sincrnica dos dois registos paradoxais nas estratgias intelectuais para conceber o
indivduo.
Como salienta Dumont (idem, p. 99), Rosseau ter colocado de forma exemplar o
problema do homem moderno, transformado em indivduo poltico e/ou tico (autnomo e
livre) mas continuando, tal como os seus congneres, a ser um sujeito social
(constrangido), dilema que no mais abandonou o pensamento social, como se ver
adiante. Ou seja, preconizava-se o direito a uma autonomia democrtica embora se vivesse
num regime de experincia de autonomia no sentido aristotlico, eminentemente regulada,
desigual e de acesso diferencial, significando isso que a prpria lgica interna da noo de
autonomia ensombrava a sua concepo poltica (Descombes 2004, 322, 327-329).
Vale a pena, por isso, reconstituir o percurso filosfico do sujeito atravs da
discusso do modo como os paradoxos da autonomia postulada politicamente no projecto
moderno se impuseram progressivamente como dimenses do conceito.
1.2 Desafiando os paradoxos da autonomia: o sujeito filosfico em
anlise
O sujeito emprico colocava, como se procurou demonstrar, importantes dilemas de
concretizao norma idealizada de autonomia. Muitos foram os que tentaram ao longo do
tempo, por via de exerccios lgicos e demonstrativos, dar coerncia ao conceito. Um
esforo situado no tempo histrico, certamente, mas que foi deixando marcas indelveis na
forma como se entende a autonomia individual. Seno veja-se.
Razo e reflexividade, primeiro. Antes de se discutirem todas as outras dimenses do conceito, a noo de
autonomia foi, como se viu, ancorada ideia de Razo. E na moral Kantiana, inspirada
pelo iluminismo racionalista do sc. XVIII que se abordou brevemente, que a relao entre
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
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autonomia e razo definitivamente estabelecida: pois o actor que se auto-governa f-lo-
apenas se agir de acordo com imperativos exclusivamente racionais, o que implica, por seu
turno, um auto-controlo sobre as pulses e os desejos imediatos. Esta afirmao arredou
filosoficamente a subjectividade e a emoo da aco moralmente superior, ou seja, a
aco autnoma. Nesta perspectiva, a autonomia um valor, por definio, universal e
uma caracterstica essencial que o sujeito pensante e dotado de razo deve possuir para
almejar o acesso condio de indivduo moderno. Reconhecer no sujeito a capacidade de
agir de acordo com razes, orientado por leis morais que adopta exclusivamente atravs
de actos de vontade individual uma interessante proposta para a compreenso da noo
de autonomia. Algo que, segundo Levine (1995, 189), se constituiu como o postulado da
auto-determinao normativa na busca de uma tica secular e racional (tarefa, alis, que a
Sociologia ir, no seu incio, tambm tomar como sua) caracterstico de parte significativa
da tradio germnica de pensamento (deixe-se o Romantismo alemo, por agora, de
parte):
Os julgamentos normativos no devem ser fundados em qualquer agncia exterior aos sujeitos mas atravs de cdigos que libertam os agentes humanos, como indivduos ou colectividades, para se promulgarem a si prprios.
Relembre-se o contedo do 1 imperativo categrico para situar o alcance de tal
posio: deve-se apenas agir de acordo com princpios com valor moral universal,
universalidade que deriva do facto de ser livre dos sentidos, do desejo ou de qualquer
aspecto contingente. Implcita nesta moral est a existncia de indivduos livres e
independentes, uma vez que se parte do princpio que agir de acordo com motivaes
exclusivamente individuais implica que no existam obstculos exteriores vontade
singular.
O indivduo na perspectiva kantiana , por definio um actor comprometido com o
dever, o que remete para os temas do controlo e da responsabilidade a que tambm se ir
fazer referncia. A separao que Kant faz do mundo da liberdade (metafsico) do mundo
da natureza contribuiu fortemente para contornar a divergncia entre o sujeito poltico e o
sujeito emprico que assim se legitimava. Na verdade, no disfara a influncia do
ascetismo luterano ao resolver o dilema do sujeito emprico, colocando no plano metafsico
a experincia plena da liberdade e do bem, independentemente dos constrangimentos da
existncia social. Ou seja, resolve o problema negando-o na sua essncia. Com efeito, esta
abordagem reflecte uma noo de indivduo isolado que precede o indivduo real (social),
com uma trajectria e inserido numa teia de relaes sociais. Do plano abstracto ao
AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE
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concreto, restaram, pois, muitos espaos por preencher na lgica racional pura do sujeito
kantiano. Na verdade, as principais crticas dirigidas a esta linha de pensamento so o seu
hiper-individualismo e a-historicidade, pois negligencia-se o papel das narrativas
individuais, o lugar das emoes e dos afectos, dos contextos concretos da aco, como
sublinha entre muitos outros Christman (2003).
Retomando, aps este breve parntesis, o registo do sujeito pensante comprometido
com o dever, como pode destacar-se o indivduo das suas pulses e emoes, adquirindo
controlo sobre elas16? Segundo seguidores da lgica kantiana, no lhe basta uma
capacidade racional de agir (no sentido de uma racionalidade meios/fins to cara s
Filosofias utilitaristas), mas uma capacidade de se auto-analisar e criticamente avaliar
escolhas e decises. A auto-determinao normativa assim o exige. Com efeito, a
autonomia implica sempre uma relao consigo prprio (Buss 2002). Chamar-se- a tal
capacidade reflexividade17, entendida neste contexto enquanto capacidade de se auto-
distanciar de si e analisar crtica e racionalmente opes, alternativas e contextos de forma
a poder descontaminar a aco dos seus aspectos mais contingentes. Conforme lembra
Levine (1995, 182), o sujeito kantiano implica sempre um esforo de construo racional
de uma moral, pois em seu entender o bem no natural no homem, ao contrrio do que
alguns pensadores franceses, como Rosseau, defendiam.
Christman (1988, 116) conclui que na base destas abordagens est a convico de
que para ser autnomo o actor tem de desempenhar um papel activo fazendo uso da sua
racionalidade crtica nos processos de tomada de deciso o que por seu turno tambm
introduz uma importante dimenso na aco racional tal como vai ser retomada pela
Sociologia: a estratgia. Contudo, pensando nos indivduos concretos e nos seus
quotidianos foroso constatar que nem todas as suas decises so alvo de tal processo de
reviso crtica, nem todos os sujeitos apresentam as mesmas capacidades de tomada de
deciso em todos os momentos do seu ciclo de vida, nem em todas as decises que tomam
ou so forados a tomar diariamente. Autonomia no , por isso, uma caracterstica que se
tem ou no se tem, uma competncia que pode ser exercida em diferentes graus, assim
16 Note-se como o tema do controlo sobre pulses e desejos vai ser to caro na teorizao sobre a vida psquica dos sujeitos em Freud e no processo civilizacional no Ocidente, trabalhado por Elias.
17 O facto do termo reflexividade ser um conceito amplamente utilizado na literatura sociolgica contempornea no alheio nesta pesquisa, nomeadamente a centralidade que lhe conferida nas teorias da individualizao (Beck 1992, Beck e Beck-Gernsheim 2002, Beck et al. 2000, Giddens 1996, para citar apenas alguns autores). O sentido aqui atribudo vai claramente mais no sentido da conversao interna definido por Archer (2003, nomeadamente).
FAMLIA , JUVENTUDE E AUTONOMIA
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como algo que passvel de ser construdo ao longo de um perodo de tempo.
Competncias racionais, para alm da capacidade de auto-crtica e reflexividade (que
implicam a capacidade do sujeito se distanciar subjectivamente de si mesmo para se pensar
e analisar), embora muito importantes, no bastam, por si s, para dar conta do conceito.
Falta perceber, por um lado, o modo como as emoes, afectos e sentimentos so
integrados nos processos de deciso e a sua relao com a autonomia do sujeito; e como
integrar a natureza eminentemente social e socializada das trajectrias de vida dos actores
concretos, por outro. Antes, porm, algumas reflexes sobre implicaes (aparentemente)
secundrias da associao entre autonomia, razo e reflexividade.
Controlo, responsabilidade e respeito, entretanto. Da tradio kantiana, para alm das elaboraes tericas da relao entre autonomia
e racionalidade, importa ainda referir que a autonomia (moral) implica que o sujeito,
fazendo uso da sua liberdade, se comprometa com a aco moralmente superior,
suprimindo desejos e motivaes no universalizveis (embora seus), ou manipulaes
externas (que na linguagem filosfica vm referidas como intervenes paternalistas). Por
um lado, tal capacidade significa que o sujeito autnomo, para alm da capacidade de (se)
pensar, seja capaz de (se) controlar, mobilizando competncias de reflexividade e
distanciamento de si, como se disse acima, para poder decidir e escolher livre e
independentemente de presses e influncias externas. Por outro lado, entende-se que o
sujeito s autnomo se livremente se comprometer com uma determinada hierarquia de
valores que no so gerados por si prprio, uma vez que so universais e do plano do bem
comum, e agir de acordo com ela, mesmo se contra os seus desejos mais imediatos, esses
sim, verdadeiramente auto-gerados. por esta via que a perspectiva kantiana no descura a
dimenso social, aliviando (apenas em parte, certo) a potencial atomizao que resulta da
interpretao mais radical do seu pensamento. Na verdade, acrescenta Descombes (2004,
322), a autoridade sobre si prprio que a moral kantiana preconiza no em si uma
faculdade humana, pois exige do sujeito que se subordine a uma ordem de valores que
precisamente lhe confere essa autoridade sobre si. , tambm por isso, um compromisso
com uma determinada identidade (moral) que se auto-impe e se quer pr em prtica
apontando para o lado voluntarista do sujeito-actor que Kant compe.
Est, assim, implcita a ideia de que o sujeito autnomo ao ser auto-regulador, pode
alterar-se, modificar atitudes, traos e valores para adoptar outras que sejam coerentes com
o projecto identitrio moral, denunciando aquilo que se poder chamar, no limite, uma
AUTONOMIA, INDIVDUO E MODERNIDADE
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perspectiva construtivista do indivduo, ao atribuir-lhe competncias emancipadoras sobre
si prprio. Algo que ganha um particular sentido se enquadrado na fase de plena definio
do projecto moderno de recusa do fatalismo religioso que subjugava os indivduos a um
destino. Ainda assim, no poder ser lido o compromisso com uma ordem exterior de
valores como uma forma voluntria e consciente de heteronomizao? Ou seja ser a
autonomia uma virtude que, de acordo com esta perspectiva, apenas se concretiza na
heteronomia (do bem comum, da regulao estatal, da norma moral partilhada)? Na
verdade, poder-se- afirmar que o sujeito autnomo aquele que de forma livre se
compromete, abdicando de concretizar parte das suas pulses e desejos pessoais em
benefcio do que se quer (e deve) ser enquanto sujeito. O compromisso converte-se, ainda,
em responsabilidade, pois o sujeito-actor, se autnomo imputvel, logo responsvel pelas
suas aces e pelas suas consequncias, tanto presentes como futuras.
Segundo Ricoeur (1996, 300-306) o que est em causa o confronto constante entre
esta perspectiva universalista e outra contextualista da moralidade, o que tem
consequncias na abordagem da autonomia. Com efeito, esclarece que tal significa que se
podem fazer aproximaes autonomia atravs da regra da justia (exterior e pertencente
ao plano das instituies), qual preside o princpio da unidade, e que acompanha uma
lgica de justificao universal para os juzos; ou atravs da regra da reciprocidade (j
pertencente ao plano interpessoal), subsidiria de um princpio de pluralidade, a que se
associa uma lgica de argumentao contextual (log