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THIAGO PEREIRA JACHELLI - GRR20063661 AFINAÇÃO E TEMPERAMENTO DESIGUAL NO BARROCO Curitiba 2010 Monografia apresentada ao curso de Música Bacharelado em Produção Sonora do Departamento de Artes do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Professor orientador: Profª. Drª. Silvana Scarinci

Jachelli - Afinacao e Temperamento

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THIAGO PEREIRA JACHELLI - GRR20063661

AFINAÇÃO E TEMPERAMENTO DESIGUAL NO BARROCO

Curitiba – 2010

Monografia apresentada ao curso

de Música – Bacharelado em Produção Sonora do

Departamento de Artes do Setor

de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do

Paraná.

Professor orientador: Profª. Drª.

Silvana Scarinci

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Sumário

1. Introdução

2. A música historicamente informada

2.1. Utilização dos temperamentos históricos

2.2. Escolhendo um temperamento

2.2.1. Acurácia histórica

3. Afinação, música e matemática

3.1. Perspectiva histórica do sconceitos de acústica

3.2. Consonância e dissonância

3.3. Construção das afinações

3.3.1. O círculo das quintas

3.4. O Cent

3.4.1. Intervalos microtonais

4. Afinações e temperamentos no período barroco

4.1. Afinação pitagórica

4.2. Temperamento mesotônico

4.3. Temperamentos desiguais

4.3.1. Temperamentos circulares

4.3.2. Temperamentos e afetos

4.4. Temperamento Vallotti

5. Comparações entre os temperamentos analisados

6. Conclusão

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1. Introdução

Não existe sistema de afinação que convenha a toda a música

ocidental1. Existem variações regionais e ao longo do tempo. Por este motivo faz-

se útil um estudo comparativo dos diferentes sistemas, com indicações sobre

onde, quando e como foram utilizadas, bem como uma descrição de

características próprias de cada afinação e os métodos matemáticos para

obtenção destas. Na atual prática da “música historicamente informada”, existe

uma busca por aspectos históricos que tragam informações relevantes sobre o

uso de instrumentos, técnicas de execução, entre outros parâmetros que venham

embasar a prática atual de uma música do passado. Este trabalho visa contribuir

à melhor compreensão dos sistemas de afinação a fim de trazer maior quantidade

de informações possível ao intérprete moderno. Há ainda poucas publicações

sobre processos músico-matemáticos em português relacionadas à música

antiga, concentrando-se estas em assuntos de tecnologia e computação ligados à

música.

Até a Idade Média, com o uso extensivo da monodia, a escala pitagórica,

calculada pelo ciclo das quintas, foi amplamente utilizada. Este modelo pitagórico

dava maior ênfase aos intervalos de quinta, afinados de forma pura2, e acabava

por criar terças maiores bem mais altas que as terças puras, e por isso tratadas

como dissonância pelos teóricos medievais. Logo se descobriu ser impossível

afinar quintas e terças de forma pura simultaneamente. A partir de então, muitos

foram os que desenvolveram métodos para adaptar a escala para receber a nova

arte polifônica. Entre estes se encontram nomes como Zarlino, Mersenne, Galileu,

Kepler e Descartes. Assim como no quadrivium medieval, a história da música se

confunde com a história da física e da matemática.

O temperamento é a forma como se distribuem os intervalos musicais

dentro do âmbito de uma oitava. Existem virtualmente infinitas formas de se

temperar uma escala, mas vamos ater-nos ao estudo de dois dos temperamentos

mais utilizados atualmente pelos intérpretes de música barroca, os

temperamentos mesotônico e Vallotti, expondo algumas de suas características e

limitações, dentro de uma perspectiva histórica. Partindo da afinação pitagórica,

o desenvolvimento da polifonia e o uso de intervalos harmônicos, principalmente

1HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons (Caminhos para uma nova compreensão musical). Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 1998. Pág. 85. 2 Exceto a “quinta do lobo” como veremos na seção 4.1.

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terças, levam a uma necessidade de adaptação da escala. A partir daí se

desenvolvem os temperamentos mesotônico, durante o renascimento, e mais

tarde os temperamentos circulares e os temperamentos “bons” (estes

temperamentos serão discutidos na seção 3.1), já nos séculos XVII e XVIII. Os

temperamentos “bons”, em uso no barroco alemão e italiano do século XVIII,

permitem o uso de todas as tonalidades maiores e menores, conferindo uma

característica única a cada uma delas.

Tratar de intervalos musicais implica na idéia de proporcionalidade entre

duas notas. Como um temperamento trata de pequenos desvios de afinação em

relação a um intervalo puro na busca de um equilíbrio entre as notas da escala,

existe uma seção neste trabalho que demonstra uma das formas de se medir

pequenos intervalos, chamada Cent. Esta unidade será utilizada durante todo o

trabalho na medição dos desvios dos intervalos de um temperamento em relação

ao intervalos puros.

Depois de expor alguns exemplos de temperamentos utilizados na prática

da música barroca, seguem algumas tabelas mostrando os desvios dos intervalos

de cada temperamento abordado, para que o músico possa, munido de maiores

informações, escolher o temperamento que achar mais adequado para cada

ocasião.

2. A música historicamente informada

A fim de por em prática a música de determinado período, os intérpretes

normalmente optam por recriar, na medida do possível, a atmosfera e o ambiente

nos quais esta música foi composta e executada originalmente. Para tal, usam-se

alguns artifícios como instrumentos contemporâneos às obras ou réplicas dos

mesmos, afinados conforme a prática vigente na época.

2.1. Utilização dos temperamentos históricos

Conforme as pesquisas históricas avançam, temos um melhor

entendimento sobre a questão da afinação em cada fase do período barroco. A

partir destes dados, obtidos em tratados da época, manuais práticos, ou

deduzidos a partir das composições, foi possível detectar várias maneiras

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5

utilizadas pelos músicos da época para temperar os intervalos de várias

tonalidades ou modos, gerando nuances e variações entre as tonalidades, fato

que era conhecido e amplamente utilizado pelos compositores e intérpretes

barrocos.

2.2. Escolhendo um temperamento

Ao se deparar com a prática da música antiga, o intérprete deverá seguir

uma série de diretrizes a fim de determinar a melhor afinação em cada ocasião. A

seguir veremos alguns destes parâmetros, dando especial atenção aos diferentes

temperamentos utilizados em diferentes épocas dentro do período Barroco.

Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, com a evolução da polifonia e os

sucessivos estilos, foram-se detectando novas necessidades de afinação para as

novas técnicas de composição. A afinação pitagórica, amplamente utilizada

durante toda a Idade Média, foi perdendo força à medida que o intervalo de terça

maior e as tríades foram ganhando importância. Neste contexto surgiu a afinação

mesotônica3, durante o renascimento. Com o desenvolvimento da polifonia e o

desejo de maior campo para modulações, o sistema mesotônico deu lugar aos

temperamentos circulares, e mais tarde aos temperamentos “bons”, já no fim do

período Barroco. É importante ressaltar que, na prática, muitos destes

temperamentos coexistiram, não formando uma cadeia simples de evolução. Ao

se escolher um temperamento para um determinado grupo de peças, é preciso

estar consciente destes fatos, a fim de se determinar uma afinação adequada à

execução das obras.

2.2.1. Acurácia histórica

Em um concerto historicamente informado, baseado na obra de um

determinado compositor, fontes contemporâneas às obras podem sugerir ou

negar certas afinações. É útil que se leve em conta as possibilidades a fim de

determinar o tipo de temperamento que se revele mais condizente com o

repertório a ser executado. Um exemplo interessante é a tocatta em F#menor, de

J.S.Bach (BWV910), na qual, em determinado momento, uma frase é repetida

3 Explicada mais detalhadamente na seção 4.2.

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diversas vezes, cada repetição transposta para algum outro grau. Mais do que um

exemplo de modelo e sequência, o trecho geraria monotonia se fosse executado

em um temperamento mesotônico (o trecho mantém-se dentro do âmbito das

tonalidades aceitáveis por este sistema) ou igual (já existente, mas pouco

utilizado no período), indicando que o uso de um temperamento desigual é o mais

razoável para a ocasião, gerando diferentes sensações a cada repetição da frase4.

Segundo Benson (2008), Bach teria conhecimento sobre o temperamento igual,

mas preferia os desiguais. Seria historicamente mais plausível que seus 48

prelúdios e fugas tivesse sido compostos com a intenção de serem executados por

este tipo de temperamento.

3. Afinação, música e matemática

Antes de descrever propriamente os diferentes temperamentos, faz-se

necessária uma recapitulação acerca da Ciência da época, já que o desenrolar

histórico da Música resulta de uma série de fatores relacionados ao avanço

técnico dos mecanismos à disposição dos compositores. A “descoberta” dos

harmônicos, o cálculo infinitesimal e o desenvolvimento do logaritmo, para citar

alguns exemplos abordados neste trabalho, foram cruciais para o

aperfeiçoamento dos sistemas de afinação, e deram as bases para o

Temperamento Igual, determinante na transição do Barroco para o Classicismo, e

utilizado até os dias de hoje como a afinação padrão a ser seguida.

3.1. Perspectiva histórica dos conceitos de acústica.

A análise dos intervalos musicais, suas razões e batimentos entre si tem

suas bases na Grécia e China antigos, que perceberam empiricamente que a

dissonância ente duas cordas chegava a um ponto mínimo quando estas

chegavam a uma razão proporcional a dois números inteiros pequenos, e quanto

menores estes números, maior a consonância. Por não terem conhecimento sobre

harmônicos, este fenômeno era tratado com uma visão mística.

Na Idade Média, a consonância pela razão entre números pequenos formou

os fundamentos da escola pitagórica, baseada em relações matemáticas entre

4 BENSON, Dave. Music: a matemathical offering. Aberdeen, 2008. p 182.

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números pequenos. Graças a isto, a música foi incluída entre as disciplinas do

Quadrivium medieval, ao lado da Aritmética, Geometria e Astronomia.

Gioseffo Zarlino (1517-1590), em seu “Le Istitutione Harmoniche”, de 1558,

diz que os intervalos são considerados consonantes pelo ouvido humano quando

suas razões se expressam por números inteiros menores que 6, explicando por

que as discussões sobre afinação e temperamento se dão baseadas em intervalos

de oitava, quinta, quarta, terça e sexta. Durante todo o Renascimento muito se

discutiu sobre este tema, inclusive com comentários de autores renomados do

período, como Descartes, Galileu-Galilei e Mersenne, este último sendo o primeiro

a identificar harmônicos como componentes de um som complexo, mesmo com as

provas matemáticas para tal vindo a ser desenvolvidas somente no século

seguinte, e confirmadas por Fourier no início do século XIX.

Entre os séculos XVI e XVIII, a Revolução Científica presenciou o advento

do Cálculo Infinitesimal, por Isaac Newton (1684) e Gottfried Leibniz (1684).

Ainda neste período, Marin Mersenne (1636) apresenta suas idéias sobre a

representação do som como forma de onda, que, junto com o suporte matemático

desenvolvido na época, deu grande impulso à acústica. Em 1701, Joseph Saveur,

a quem se atribui o termo “acústica”, demonstrou cientificamente a existência

dos harmônicos, o que facilitou sobremaneira o entendimento dos batimentos,

das consonâncias e dissonâncias, e permitiu a demonstração de um conceito

antigo, de que a desafinação, ou o desvio do intervalo puro, é tão mais perceptível

quanto mais consonante for este intervalo, ou, em outras palavras, estes desvios

são tão mais toleráveis quanto mais dissonantes forem os intervalos. Este período

coincidiu com o barroco na música, período no qual esta pesquisa se insere, e

muitos destes cientistas eram também músicos, teóricos ou realizaram pesquisas

na área musical.

3.2. Consonância e dissonância

Um dos principais métodos utilizado desde a antiguidade para avaliar a

proporção entre dois sons era comparar duas cordas sujeitas à mesma tensão,

mas com comprimentos diferentes. Notou-se que os intervalos considerados

consonantes tinham a razão entre os comprimentos das cordas expressada por

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números pequenos. A seguir segue uma tabela das razões entre os comprimentos

das cordas nos intervalos puros5.

INTERVALO RAZÃO

Uníssono 1/1

Semitom 16/15

Tom menor 10/9

Tom maior 9/8

Terça menor estreita 7/6

Terça menor 6/5

Terça maior 5/4

Quarta justa 4/3

Quarta aumentada 7/5

Quinta diminuta 10/7

Quinta justa 3/2

Sexta menor 8/5

Sexta maior 5/3

Sétima menor 9/5

Sétima maior 15/8

Oitava 2/1

Tabela 3.2. razões entre os intervalos puros

3.3. Construção das afinações

Na antiguidade existiam diversos métodos para a determinação das notas

da escala, utilizados principalmente por gregos e chineses. Na Europa, um destes

métodos, atribuído a Pitágoras de Samos (século VI AC), embora possa ter sua

origem em tempos ainda mais antigos, se tornou o padrão de afinação até a Idade

Média. Este método utiliza basicamente a obtenção de sucessivos intervalos de

quinta.

3.3.1. O círculo das quintas

5 DI VEROLI, Claudio. Unequal temperaments: Theory, History and Practice.Bray, Irlanda, 2009. p 38.

Page 9: Jachelli - Afinacao e Temperamento

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Matematicamente, uma quinta pura é uma frequência obtida

multiplicando-se uma frequência f por 3/2. O procedimento pitagórico consiste

em multiplicar f uma quantidade de vezes seguidas, obtendo uma nova nota a

cada iteração. Sempre que a frequência obtida ultrapassar o âmbito de uma

oitava (2f), divide-se o resultado por 2 a fim de trazer a nota para dentro da

mesma oitava.

Por exemplo, tomemos uma frequência f e chamemos de Fá. Multiplicando-

a por 3/2, obtemos 3f/2, ou Dó. Repetindo a operação, encontramos 9f/4. Uma

vez que esta fração ultrapassa o limite da oitava, dividimos ela por 2 e

encontramos 9f/8, ou Ré. Seguindo este processo, os próximos resultados são

27f/16 ou Lá e 81f/32, este último também precisando ser dividido por 2 para

entrar no âmbito da nossa oitava, chegando a 81f/64 ou Mi, e assim

sucessivamente até a 12ª iteração, onde encontramos uma frequência final

especialmente próxima de f, 531441f/524288, ou 1,01364f. Este pequeno

desvio é chamado coma pitagórica, a diferença entre 7 oitavas e 12 quintas puras.

Figura 5.2 – O círculo das quintas e a quinta do lobo.

3.4. O Cent

A distribuição das notas musicais sobre o espectro sonoro se dá de maneira

logarítmica, e desde o século XVII, com Newton, e por todo os séculos XVIII e XIX,

várias unidades logarítmicas foram propostas na teoria musical. A mais

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conhecida, e a adotada nesta pesquisa é o Cent, proposto na década de 1830 por

Bosanquet e de Drony, e utilizado por Alexander Ellis em seus comentários sobre

a obra de Helmholtz, em 18856.

O Cent deriva da idéia de temperamento igual, que tem como objetivo

dividir a oitava em 12 partes proporcionalmente iguais. Dividir a oitava em 12

semitons iguais significa encontrar um valor para o semitom S, que multiplicado

12 vezes resulte em uma oitava. Matematicamente, temos:

S¹²·f=2f

S¹²=2

S=¹²√2

S=1,059463094359295...

Para a maioria dos cálculos, S=1,0594631 já é suficientemente preciso,

gerando uma margem de erro da ordem te 1 em 100.000.000.

Ellis (1885) descreve o Cent como “a centésima parte de um semitom

igualmente temperado, medidos em valores logarítmicos.” Matematicamente:

Log (1 C) = log (2¹/¹²) / 100 = log 2 / 1200 = 0.00025085832972

Bem mais conveniente que dividir o logaritmo de uma fração por log (1 C) é

calcular o coeficiente inverso K. Assim substituímos todas as operações de

divisão por multiplicação, como veremos a seguir. Dado um intervalo de razão r,

seu valor em Cents se expressa por K·log r:

K=1/log(1 C) = 1200/log 2= 3986,31371386483...

Por exemplo, no caso de uma terça maior pura, com razão 5/4, temos:

K· log (5/4) = 3986,3137... x 0, 09691... = 386,3137...

6 ELLIS, Alexander. On the musical scale of various nations. Publicado em Journal of the society of Arts 33, p 485-

527. 1885

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Consequentemente, por meio de identidades matemáticas bastante

conhecidas, temos que:

Log (a · b) = log a + log b

e K(a+b) = Ka + Kb

Com base nestas informações, definimos que para somar intervalos, basta

somarmos sua representação em Cents. O mesmo vale para as demais operações

básicas.

O Cent representa de forma satisfatória à percepção auditiva humana,

também logarítmica, além de ser aproximadamente o menor intervalo musical

discernível por ouvidos treinados. A definição de 1200 Cents em uma oitava,

apesar de derivada da busca pelo temperamento igual, pode e é utilizada

independentemente de sua origem.

Aplicando as operações matemáticas descritas acima, apresento uma

tabela para os intervalos puros convertidos em Cents. Esta tabela, proposta por

Claudio Di Veroli (2009) servirá como base de comparação com todos os

temperamentos e afinações descritos neste trabalho.

INTERVALO RAZÃO CENTS

Uníssono 1/1 0,00

Semitom 16/15 111,73

Tom Menor 10/9 182,40

Tom Maior 9/8 203,91

Terça Menor pequena 7/6 266,87

Terça Menor 6/5 315,64

Terça Maior 5/4 386,31

Quarta Justa 4/3 498,04

Quarta Aumentada 7/5 582,51

Quinta Dimiuta 10/7 617,49

Quinta Justa 3/2 701,96

Sexta Menor 8/5 813,69

Sexta Maior 5/3 884,36

Sétima Menor 9/5 1017,60

Sétima Maior 15/8 1088,27

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Tabela 7.3 1 – Intervalos puros medidos em Cents7

3.4.1. Intervalos microtonais

É importante calcular também o tamanho dos principais intervalos

microtonais, como a coma pitagórica, ou quinta do lobo, medindo 23,46C; a Coma

Sintônica, medindo a diferença entre 4 quintas puras e uma terça maior duas

oitavas acima, mede 21,50C. Por causa de seus valores numéricos apresentarem

tamanhos muito parecidos, as duas comas causaram muitas confusões entre os

teóricos, apesar de terem origens e serem calculadas de maneiras diferentes. A

diferença entre as comas pitagórica e sintônica se chama schisma, e mede 1,96C

O último intervalo microtonal tratado neste trabalho é a Diesis, a diferença entre

3 terças maiores e uma oitava e mede 41,05C. O cálculo destes intervalos se faz

importante por normalmente serem estes os desvios utilizados nos intervalos em

cada temperamento. Ao nos depararmos com estes desvios na análise de um

temperamento, podemos deduzir a origem deste desvio, facilitando assim a

prática da afinação.

4. Afinações e temperamentos no período barroco

Neste capítulo examinaremos com maiores detalhes duas espécies de

temperamento: o mesotônico e o Vallotti. É importante ressaltar que existem

diversas variantes de cada um destes temperamentos, e as análises apresentadas

aqui dizem respeito apenas às formas mais difundidas de cada um deles. Além

disso existe uma contextualização histórica da afinação pitagórica, origem dos

temperamentos e afinações da música ocidental.

4.1.Afinação pitagórica

Da Grécia antiga ao canto gregoriano, a música sempre foi caracterizada

pela monodia, com uma única linha melódica. No caso específico da música

grega, havia ainda o acompanhamento instrumental simples, em uníssono,

7 DI VEROLI, Claudio. Unequal temperaments: Theory, History and Practice.Bray, Irlanda, 2009. p 38.

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oitavas ou quintas. Neste caso, a consonância era utilizada como uma ferramenta

de afinação, sem o conceito de harmonia.

Durante a Idade Média, os modos, que consistem basicamente da escala

pitagórica sendo iniciada em diferentes graus, foram amplamente utilizados. Uma

vez que as oitavas, quintas e quartas eram os intervalos-base deste sistema, os

outros intervalos foram negligenciados pelos compositores. As terças,

notavelmente maiores que as terças puras, eram tratadas como dissonâncias e

assim evitadas enquanto intervalos harmônicos.

Neste contexto surgiu a polifonia, no século XII, com a escola de Notre

Damme, em Paris, personificada nas figuras de Léonin e Pérotin. Ao passo que

esta nova arte polifônica se desenvolvia, novas vozes eram adicionadas as 3 ou 4

vozes originais, mesclando textos sagrados e melodias populares, causando certa

ininteligibilidade ao texto. A partir do século XIV, compositores começaram a

utilizar as terças como intervalos harmônicos, e teóricos pesquisavam modos de

reduzir o incômodo causa do pelas terças pitagóricas, propondo novas entonações

e temperamentos, como as entonações justas e justo-pitagóricas. A polifonia

continuou a se desenvolver, com o início da prática do contraponto, enquanto a

Europa redescobria a ciência e as artes do período clássico grego, um período que

veio a ser chamado de Renascimento.

4.2. Afinação mesotônica

Na primeira metade do século XVI, principalmente na Itália, o sistema

mesotônico surgiu como uma solução para diversos problemas da época.

Com as mudanças estilísticas ocorridas na renascença, as terças passaram

a ser tratadas integralmente como consonâncias, gerando uma demanda por

terças puras ou com o menor grau de impureza possível, assim como as quintas.

Neste contexto, o sistema justo pitagórico, até então utilizado, não

conseguia mais preencher as características necessárias para a escrita polifônica,

e o sistema justo padrão, com suas quintas do lobo, limitava demais a gama de

modulações desejadas. Assim o sistema mesotônico surgiu como uma alternativa

ideal para a música da época.

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14

A primeira referência clara a este sistema é encontrada no tratado de Pietro

Aron em seu “Il toscanello in musica”8, em 1523. A sua forma mais comum, a de

¼ de coma, foi descrita matematicamente por Francisco de Salinas (1577)9, onde

apresentou três versões diferentes de temperamento mesotônico: a de 1/3 de

coma, ¼ de coma e 2/7 de coma.

No sistema justo, mesmo evitando a quinta do lobo, existiam dois

tamanhos de tom: o tom maior, de razão 9/8, gerado por duas quintas puras

consecutivas (menos uma oitava) e o tom menor, que incluía uma quinta

reduzida em 1 coma sintônico10, de razão 10/9. A diferença entre o tom maior e o

menor era exatamente esta coma. Como no temperamento mesotônico todas as

quintas eram reduzidas em ¼ de coma, quaisquer duas quintas consecutivas

produziam um tom de mesmo tamanho, exatamente na metade da diferença

entre o tom maior e o menor, chamado tom médio, origem da palavra

mesotônico.11

Com o sistema mesotônico, os semitons maiores e menores se

estabeleceram, com a Diesis como a distância entre um sustenido e seu vizinho

bemol12.

A partir de então, as composições musicais se mantiveram, em sua

maioria, dentro das fronteiras das tríades desejáveis no sistema mesotônico.

Em sua construção, o temperamento mesotônico dá ênfase especial às

terças maiores das tríades de Eb até E, respeitando-se a ordem do círculo das

quintas. Para atingir esta configuração, as quintas são estreitadas em 5.4C em

relação ao intervalo puro, excetuando-se a quinta do lobo G#-D#, alongada em

35.7C. Com estas características, o mesotônico apresenta dois tipos distintos de

terças maiores, a saber: as que passam por G#, chamadas “terças do lobo” por

sofrerem um desvio de 41.1C, consideradas impraticáveis e evitadas a todo custo

pelos compositores; e as terças puras, que juntamente com o pouco desvio das

quintas, geram acordes bastante agradáveis, e permitem cadências e sequencias

altamente satisfatórias nas tonalidades entre Bb e A maiores, seguindo o círculo

das quintas. As terças menores também são, excetuando-se as que envolvem o

8 HORA, Edmundo. As obras de Froberger no contexto da afinação mesotônica. Campinas, 2004. p.39. 9 SALINAS, Francisco de. De musica libri septem. Salamanca, 1577. 10 Explicado mais detalhadamente na seção 5.3 11 HORA, Edmundo. As obras de Froberger no contexto da afinação mesotônica. Campinas, 2004. p.40. 12 DI VEROLI, Claudio. Unequal temperaments: Theory, History and Practice.Bray, Irlanda, 2009. p 153.

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G#, bastante próximas dos intervalos puros, possibilitando uma gama razoável de

tonalidades e modulações praticáveis pelos compositores e intérpretes.

Figura 4.2. O círculo das quintas e os dois tipos de terças maiores do

temperamento mesotônico13.

O temperamento mesotônico pode ser considerado quase regular, pois

todas as quintas sofrem o mesmo estreitamento, com exceção da quinta do lobo.

Estas 11 quintas idênticas fazem com que as tonalidades boas tenham todas o

mesmo caráter. No renascimento e início do barroco, o que se buscava era a

beleza dos intervalos puros, e o número de tonalidades e modulações possíveis

com o temperamento mesotônico era considerado suficiente, sendo as tonalidades

evitadas e a quinta do lobo uma contrapartida justa diante das possibilidades de

modulação e intervalos quase puros.

13 DI VEROLI, Claudio. Unequal temperaments: theory, history and practice. Bray, Irlanda: Bray Baroque, 2009. p62

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NOTA Eb Bb F C G D A E B F# C# G#

dV -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 +35.7

dIII 0 0 0 0 0 0 0 0 +41.1 +41.1 +41.1 +41.1

diii +2.3 +2.3 +2.3 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 +41.1

Tabela 4.2. desvios em relação aos intervalos puros no temperamento

mesotônico14

Com esta configuração, existem oito boas tríades maiores, e seis

tonalidades maiores praticáveis, a saber: Bb, F, C, G, D e A. As tríades menores

de Eb, Bb e F eram evitadas, por causa das terças afinadas mais altas que as

terças menores puras as aproximavam das terças maiores. Sendo assim, As

tonalidades menores mais utilizadas se limitavam a G, D e A. Apesar de existirem

oito boas tríades menores, somente nestes casos a tríade dominante maior é boa.

Uma das limitações mais marcantes do temperamento mesotônico era a

dificuldade de transposição. Como na época não existiam indicações claras de

instrumentação, às vezes era necessária uma transposição para que a música

pudesse ser executada pelos instrumentos disponíveis. Muitas vezes esta

transposição levava a tonalidades impraticáveis, por conta dos intervalos “do

lobo”.

Como saída para o problema de transposição, algumas teclas de cravos e

órgãos foram divididas entre seus sons “enarmônicos”, diferentes entre si pela

diesis, gerando teclados com 14 ou mais notas por oitava, embora visualmente

contasse com apenas 12 teclas. Estas “notas auxiliares” se situavam nas teclas

pretas, e eram dispostas umas sobre as outras. As teclas divididas mais

utilizadas eram Eb/D# e G#/Ab.

Eventualmente, com o declínio do temperamento mesotônico e o

surgimento dos sistemas circulares, na segunda metade do século XVII, estes

instrumentos de teclas divididas deixaram de ser fabricados, exceto na Inglaterra,

onde ambos coexistiram até meados do século XIX.

4.3. Temperamentos desiguais.

14 DI VEROLI, Claudio. Unequal temperaments: theory, history and practice. Bray, Irlanda: Bray Baroque, 2009. p63

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Situado entre o renascimento, berço do sistema mesotônico, e o

classicismo, o barroco foi um período onde se criaram sistemas de afinação

circulares, que geravam diferentes sensações em diferentes tonalidades. Este

fenômeno era explorado pelos compositores como um meio de expressão musical

sob o nome de “afeto”.

O desenvolvimento e aperfeiçoamento dos sistemas circulares procurava

manter este sistema de afetos, ao mesmo tempo em que ampliava a gama de

modulações herdado do mesotônico para um maior número de tonalidades com

tríades aceitáveis.

Dentro deste contexto encontramos muitos temperamentos diferentes, mas

para este trabalho somente um deles será aprofundado. O temperamento Vallotti,

amplamente utilizado na prática da música da primeira metade do século XVIII.

Este temperamento é tido como uma melhoria em relação ao temperamento

Werckmeister III, também bastante popular entre os intérpretes de música

barroca.

4.3.1. Temperamentos circulares

Como tentativa de romper as limitações de modulação do sistema

mesotônico, os temperamentos circulares se desenvolveram no período barroco.

Como a grande maioria dos teóricos da época baseava suas pesquisas em

entonações justas e temperamentos regulares, baseados em 11 intervalos de

quinta de mesmo tamanho, os temperamentos irregulares foram tratados como

uma questão puramente prática, sendo negligenciados pela análise científica.

Os temperamentos regulares, com todas as quintas de mesmo tamanho

(exceto a “quinta do lobo”, normalmente situada no intervalo G#-D#, que fazia

com que o D# fosse afinado uma coma pitagórica abaixo da afinação pura, para

fechar o círculo das quintas), geram dois tipos diferentes de terças maiores, uma

compreendendo o re# e outra não. Por sua vez, os temperamentos circulares

apresentam dois ou mais tamanhos de quintas, além da do lobo, geram um

mínimo de seis tamanhos diferentes de terças maiores, o que torna a sua análise

consideravelmente mais complexa, enquanto na parte prática o compositor e o

intérprete ganham em possibilidades de modulação e nuances de afeto.

Page 18: Jachelli - Afinacao e Temperamento

18

Na França do século XVII houveram várias propostas de temperamento

com o objetivo de atingir a circularidade, isto é, que fechassem totalmente o

círculo das quintas, sem discrepância entre as notas enarmônicas, como no caso

da coma que separa o Ré# do Mib na afinação pitagórica. Estes temperamentos,

propostos por grandes nomes como Mersenne, Descartes, Rousseau, entre outros

teóricos da época, também foram utilizados na Inglaterra e Espanha. Baseados

nas quintas do temperamento mesotônico, distribuem a quinta do lobo entre as

quintas vizinhas à quinta do lobo original (G#-Eb). A sonoridade do mesotônico se

mantém nas tonalidades centrais (C maior e vizinhos), com terças puras ou quase

puras, e o espaço para modulação se expande em relação ao mesotônico.

Utilizada primariamente no barroco italiano e alemão do século XVIII, os

temperamentos chamados “bons” apresentam uma diferenciação clara entre as

quintas diatônicas e cromáticas. As quintas diatônicas são menos reduzidas que

nos temperamentos franceses, eliminando a necessidade das quintas cromáticas

serem muito grandes a fim de fechar o círculo das quintas. Este sistema se afasta

da sonoridade do mesotônico por ter menos terças maiores puras, mas ainda

assim é considerado o suficiente para ter qualidade em todas as tonalidades mais

comuns do período. Atualmente os temperamentos “bons”, como o Wermeister III

e o temperamento Vallotti (e sua variante Vallotti-Young), descritos em maiores

detalhes a seguir, são mais utilizados que os temperamentos franceses, por serem

mais versáteis em termos de transposição e modulação.

4.3.2. Temperamentos e afetos

Com a expansão das possibilidades de tonalidades “tocáveis”, promovida

pelos temperamentos circulares, especialmente os “bons”, os teóricos e

compositores perceberam que, por causa da variação de tamanho das terças e

das quintas em relação a cada fundamental, cada acorde adquiria uma “cor”, e

pelo encadeamento dos acordes, cada tonalidade também tinha uma

característica própria. Apesar de totalmente subjetivo e não científico, estas

nuances eram amplamente exploradas pelos compositores da época. A seguir

apresento uma lista das características de cada tonalidade, de acordo com

Page 19: Jachelli - Afinacao e Temperamento

19

Christian Schubart, publicado no seu Ideen zu einer Aesthetik der Tonkunst

(1806)15

Características dos afetos das tonalidades

Segundo Christian Schubart em Ideen zu einer Aesthetik der Tonkunst (1806)

C maior

Completamente puro. O caráter é de: pureza; inocência;simplicidade; ingenuidade. Infantil.

C menor

Declaração de amor e ao mesmo tempo o lamento do amor infeliz. Toda a languidez, saudade dos suspiros da alma de

quem ama estão neste tom.

Db maior

Uma tonalidade lasciva, degenerando em tristeza e êxtase. Não ri, mas consegue sorrir. Não consegue gritar, mas pode

expressar seu lamento - consequentemente somente personagens e emoções nao usuais se enquadram nesta tonalidade.

C# menor

Lamento de penitência. Conversa íntima com Deus, amigo e conselheiro da vida.Suspiro de desapontamento sobre

amizade e amor se encotram neste âmbito.

D maior

A tonalidade do triunfo, das Aleluias e dos gritos de guerra, da alegria da vitória. Desta forma as sinfonias de convite, as

marchas, conções para os dias santos e coros de ascenção aos séus são postos neste tom.

D menor

Feminilidade melancólica, filha da raiva e dos humores.

Eb maior

Tom do amor, devoção, do contato íntimo com Deus.

D# menor

Sentimentos de ansiedade da mais profunda agonia da alma, vinda do desespero, da depressão mais escura. Todo o

medo e hesitação do coração apertado vem da horrível tonalidade de D#menor. Se os fantasmas pudessem falar, seu

discurso se aproximaria deste tom.

E maior

Gritos barulhentos de alegria, prazeres cômicos e total deliciamento estão em E maior.

E menor

15 Tradução minha da versão em inglês de Rita Steblin em “A History of Key Characteristics in the 18th and Early 19th

Centuries”. UMI Research Press (1983)

Page 20: Jachelli - Afinacao e Temperamento

20 Ingenuidade, declaração inocente de amor feminino, lamento sem reclamação. Suspiros acompanhados de algumas

lágrimas; Esta tonalidade fala sobre a esperança iminente de se resolver na felicidade pura de C maior.

F maior

Complacência e calma.

F menor

Depressão profunda, lamento fúnebre. Rugidos miseráveis, desejosos pela sepultura.

F# maior

Triunfo sobre as dificuldades, respiro aliviado quando os problemas são totalmente resolvidos; eco de uma alma que

lutou bravamente e finalmente conquistou os objetivos são os objetos deste tom.

F# menor

Uma tonalidade obscura: se agarra às paixões como um cão mordendo um vestido. Ressentimento e descontentamento

fazem parte da sua língua.

G maior

Totalmente rústico, idílico e lírico, toda calma e paixão satisfeita, cada gratidão pela amizade verdadeira e amor fiel;

cada emoção gentil e pacífica do coração é corretamente expressa neste tom.

G menor

Descontentamento, desconforto, preocupação a respeito de um plano frustrado; ranger de dentes de mau humor; em

poucas palavras: ressentimento e desgosto.

Ab maior

O tom da sepultura. Morte, putrefação, julgamento e eternidade estão neste âmbito.

Ab menor

O coração se aperta até sufocar; lamento gritado; em poucas palavras, a cor deste tom é de qualquer coisa que luta com

dificuldade.

A maior

Este tom inclui declarações de amor inocente, satisfação com o atual estado do relacionamento, esperança de ver o ser

amado novamente ao partir; positividade da juventude e crença em Deus.

A menor

Feminilidade pia e gentileza de caráter

Bb maior

Amor alegre, consciência limpa, esperança, aspirações por um mundo melhor.

Page 21: Jachelli - Afinacao e Temperamento

21 Bb menor

Criatura soturna, geralmente vestida para a noite. Antipática, muito raramente tem uma expressão alegre. Zomba de

Deus e do mundo; descontente consigo mesma e com todo o resto; preparação para o suicídio soa neste tom.

B maior

De cores fortes, anuncia paixões selvagens, feitas das cores mais vibrantes. Ira, raiva, ciúme, fúria, desespero e todo

fardo carregado pelo coração se encontra neste esfera.

B menor

O tom da paciência, da calma espera pelo destino e da submissão aos desígnios divinos.

Intervalos temperados de forma alongada em relação a seu modelo puro

possuem mais brilho, enquanto os intervalos diminuídos são considerados mais

sombrios. No período de transição da música barroca para o clássico, existiram

grandes debates entre os teóricos, alguns propondo a adoção do temperamento

igual, outros defendendo a permanecia dos temperamentos desiguais. De fato, as

descrições dos afetos faziam parte da educação musical básica da juventude,

sendo continuamente reimpressas até meados do século XIX16. Mesmo como

recém criado pianoforte sendo afinado pelo temperamento igual, os compositores

preferiam utilizar as tonalidades sugeridas pela teoria dos afetos, pois além de

estar sedimentada em sua educação, sabiam que suas obras poderiam ser

executadas em instrumentos temperados de forma desigual. Die Wiener

Pianoforte-Schule, de Friedreich Starke, lançado em 1821, continha a lista das

características das tonalidades descritas por Schubart, traduzida no tópico

anterior, o que leva a conclusão de que o declínio do temperamento desigual foi

mais lento do que se imagina, e influenciou compositores do período clássico e os

primeiros românticos.

4.4. Temperamento Vallotti

O sistema proposto pelo padre italiano Francesco Antonio Vallotti, diretor

musical da basílida de Santo Antonio de Padova, e publicado em 1754 pelo

violinista e teórico Guiseppe Tartini atualmente é o temperamento circular mais

utilizado por intérpretes, por ser de fácil afinação, além de uma série de outras

vantagens. É um sistema bi-regular, significando que existem duas séries de

16 ISHIGURO, Maho. The affective properties of keys in instrumental music from the late nineteenth and early twentieth

centuries. University of massachussetts, 2010. p36.

Page 22: Jachelli - Afinacao e Temperamento

22

quintas de mesmo tamanho: quintas puras de F a B, descendo o círculo das

quintas; de C a E, a coma pitagórica é dividida em 6 partes iguais, gerando um

encurtamento de 3,9C. Possui também uma simetria no que se refere aos desvios

das quintas, seguindo o eixo G#-D, em azul na figura abaixo. Outro eixo de

simetria aparece em relação aos desvios das terças maiores, vindos de C e

chegando a F#, a quantidade de variação em relação à terça pura varia

uniformemente subindo ou descendo o círculo das quintas.

Figura 5.6. Círculo das quintas no temperamento Vallotti

Com esta configuração, as tonalidades com poucos acidentes possuem um

equilíbrio bastante interessante no que se refere aos desvios de terças e quintas,

e mesmo as tonalidades mais distantes ainda têm intervalos com desvios de terça

aceitáveis, ainda mais dentro do contexto da teoria dos afetos, em voga no século

XVIII. Mesmo a cadência da tonalidade de F#maior, formado pelos acordes com

maiores desvios de terça (B-F#-C#), é aceitável, e a ela foi dada o afeto visto

Page 23: Jachelli - Afinacao e Temperamento

23

acima, de vitória apesar de dificuldades, provavelmente por causa de suas terças

excessivamente brilhantes nos três acordes da cadência.

5. Comparações entre os temperamentos analisados

Uma vez expostos as características e objetivos dos dois temperamentos

analisados, percebemos que o estreitamento das quintas em 5.4C no

temperamento mesotônico leva a quinta do lobo alongada em 35.7C. Isto leva a

dois tipos de terças maiores: terças puras seguindo o círculo das quintas de Eb a

E, e terças “do lobo” de B a G#, estas consideradas impraticáveis por seu desvio

de +41.1C. O temperamento Vallotti estreita as quintas de F a E seguindo o

círculo das quintas em 1/6 da coma pitagórica, ou 3.9C, eliminando desta

maneira a quinta do lobo, enquanto as outras quintas são afinadas em sua forma

pura. Isto gera um desvio mínimo de +5.9C em C e vizinhos (F e G) e uma taxa de

desvio de +3.9C a cada quinta a partir de então, subindo ou descendo o círculo

das quintas, até chegar às terças pitagóricas (com desvio de +21.5C) em F# e seus

vizinhos B e C#.

Eb Bb F C G D A E B F# C# G#

Mesotônico 0 0 0 0 0 0 0 0 +41.1 +41.1 +41.1 +41.1

Vallotti +13.7 +9.8 +5.9 +5.9 +5.9 +9.8 +13.7 +17.6 +21.5 +21.5 +21.5 +17.6

Tabela 5.9.2. Desvios de terças maiores nos temperamentos analisados

Embora não conte com nenhuma terça maior pura como o mesotônico, o

temperamento Vallotti não possui nenhuma tríade com desvio maior que uma

coma pitagórica, o que torna todas as suas tonalidades mais ou menos aceitáveis.

Eb Bb F C G D A E B F# C# G#

Mesotônico -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 -5.4 +35.7

Vallotti 0 0 -3.9 -3.9 -3.9 -3.9 -3.9 -3.9 0 0 0 0

Tabela 5.9.1. Desvios das quintas nos temperamentos analisados

Por serem intervalos extremamente consonantes, tanto os desvios das

quintas do Vallotti quanto os do mesotônico (com exceção da quinta do lobo G#-

Page 24: Jachelli - Afinacao e Temperamento

24

D#, alta demais, se aproximando de uma quinta aumentada desafinada e por isso

evitada pelos compositores) são utilizados sem maiores problemas. O principal

objetivo em se temperar as quintas é a obtenção de terças mais ou menos puras,

de acordo com o princípio de que 5 quintas menos 2 oitavas forma uma terça

maior aumentada em uma coma sintônica.

6. Conclusão

Analisando os temperamentos dentro do contexto histórico, pudemos

acompanhar como as afinações e os estilos de composição foram se

desenvolvendo, a partir da afinação pitagórica em uso até a idade média, quando

a monodia era a forma de música mais comum. No início da polifonia no século

XII, as únicas consonâncias eram quintas (e seu intervalo complementar, a

quarta) e oitavas. A terça pitagórica é consideravelmente mais alta que o intervalo

puro, a ponto de ser tratada como dissonância. No início do renascimento, os

compositores polifônicos começam a realizar tentativas de incluírem as terças

maiores como consonâncias, afinando algumas delas de forma pura, de acordo

com a necessidade. A estas entonações foram dadas o nome de Justas, por serem

obtidas utilizando apenas intervalos puros. Com o contínuo desenvolvimento da

harmonia durante o renascimento, no século XVI surge o temperamento

mesotônico, que possibilita a construção de tríades e cadências aceitáveis. Sendo

bastante utilizado nos dias de hoje na prática da música renascentista e barroca,

foi um dos temperamentos escolhidos para ser estudado de maneira mais

profunda neste trabalho, tanto na sua construção quanto no contexto histórico

no qual se insere. Mesmo sem criar uma ruptura na linha evolutiva das

afinações, o temperamento mesotônico possibilitou o surgimento de cadências e

progressões harmônicas, lançando as bases para o que se chamaria harmonia

clássica na segunda metade do século XVIII.

Conforme o estilo composicional barroco foi se desenvolvendo, foi criada

uma demanda por uma total flexibilidade de modulações e transposições.

Diversos teóricos se debruçaram sobre o tema, na tentativa de se atingir uma

total circularidade e igualar as notas enarmônicas. Primeiramente na França,

depois na Itália e Alemanha, surgiram propostas para eliminar os intervalos “do

lobo”, mantendo as terças e quintas com graus aceitáveis de impureza. Estes

Page 25: Jachelli - Afinacao e Temperamento

25

temperamentos desiguais geravam diversos tamanhos de terças maiores, e cada

tonalidade tinha uma distribuição única de terças de diferentes tamanhos,

gerando sonoridades bastante características. Isto era bastante explorado pelos

compositores do século XVIII, sob o nome de afeto. Em 1691, Andreas

Werckmeister publica sua monumental obra Musikalische Temperatur, na qual

descreve seis temperamentos diferentes, quatro deles desiguais. Um destes

temperamentos, Werckmeister III, foi amplamente empregado na primeira metade

do século XVIII e ainda hoje é utilizado por intérpretes de música barroca. Neste

trabalho apresentamos com mais detalhes o temperamento proposto por

Francesco Antonio Vallotti, tido como uma melhoria do temperamento

Werckmeister III17. Neste temperamento existe uma simetria tanto nos desvios

das terças quanto nas quintas, facilitando assim a sua afinação, e considerado

mais cômodo para instrumentos de cordas e madeiras18. O contraste entre as

tonalidades é menor, ganhando em versatilidade e possibilidades de transposição,

comparado com o Werckmeister III e apontando uma tendência clara na segunda

metade do século XVIII em direção ao temperamento igual, embora haja indícios

de que ambos tenham coexistido até meados do século XIX.

Comparando os dois temperamentos apresentados aqui em maiores

detalhes, concluímos que o temperamento mesotônico possui intervalos com

maior grau de pureza, embora menos tonalidades sejam consideradas boas, e

alguns intervalos tecnicamente impraticáveis, gerando dificuldades de modulação

e transposição. Por este motivo, se presta mais ao repertório do início do barroco,

ou a composições que se atenham mais a uma ou poucas tonalidades, evitando

os intervalos indesejáveis.

O temperamento Vallotti, publicado no final do período barroco, é bastante

utilizado por sua versatilidade e liberdade de modulações, mantendo a

expressividade e coloração de cada tonalidade, característica dos temperamentos

desiguais do século XVIII. Em relação a outros temperamentos desiguais

utilizados na prática da música historicamente informada, o caráter das

diferentes tonalidades não é tão pronunciado, embora seja claramente

perceptível. Em um concerto que inclui peças de diferentes fases do barroco,

17

DI VEROLI, Claudio. Unequal temperaments: theory, history and practice. Bray, Irlanda: Bray Baroque, 2009. p

121

18 DIAS, Gustavo Ângelo. Temperamentos desiguais: teoria e prática. Campinas, 2009. p 16.

Page 26: Jachelli - Afinacao e Temperamento

26

frequentemente é o temperamento escolhido, por se adequar bem ao repertório do

século XVII, mesmo sendo um produto do barroco tardio.

O pensamento contrário, de escolher um temperamento do século XVII

para a execução de obras do século XVIII não gera bons resultados, pois o estilo

composicional do fim do barroco inclui modulações e intervalos considerados

muito pobres no modelo de afinação mesotônica.

Page 27: Jachelli - Afinacao e Temperamento

27

7. Referências bibliográficas

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construção dos significados). São Paulo: Escrituras, 2006.

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Irlanda: Bray Baroque, 2009.

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2009.

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